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Emannuel | 7ÍndiceNa intimidade de Emmanuel 9Primeira ParteI - Dois amigos 17II - Um escravo 32III - Em casa de Pilatos 50IV - Na Galileia 66V - O Messias de Nazaré 82VI - O rapto 98VII - As pregações do Tiberíades 117VIII - No grande dia do Calvário 132IX - A calúnia vitoriosa 147X - O Apóstolo da Samaria 169Segunda ParteI - A morte de Flamínio 216II - Sombras e núpcias 240III - Planos da treva 258 |
Emannuel | IV - Tragédias e esperanças 275V - Nas catacumbas da fé e no circo do martírio 302VI - Alvoradas do Reino do Senhor 345VII - Teias do infortúnio 361VIII - Na destruição de Jerusalém 390IX - Lembranças amargas 417X - Nos derradeiros minutos de Pompeia 428 |
Emannuel | 9Na intimidade de EmmanuelAo LeitorLeitor, antes de penetrares o limiar desta história, é justoapresentemos à tua curiosidade algumas observações de Emmanuel, o ex-senador Públio Lentulus, descendente da orgulhosa "gens Cornelia",recebidas desse generoso Espírito, na intimidade do grupo de estudosespiritualistas de Pedro Leopoldo, Estado de Minas Gerais.Através destas observações ficarás conhecendo as primeiraspalavras do Autor, a respeito desta obra, e suas impressões maisprofundas, no curso do trabalho, que foi levado a efeito de 24 de outubrode 1938 a 9 de fevereiro de 1939, segundo as possibilidades de tempo doseu médium e sem perturbar outras atividades do próprio Emmanuel, juntoaos sofredores que freqüentemente o procuram, e junto ao esforço depropaganda do Espiritismo cristão na Pátria do Cruzeiro.Em 7 de setembro de 1938, afirmava ele em pequena mensagemendereçada aos seus amigos encarnados:- "Algum dia, se Deus mo permitir, falar-vos-ei do orgulhoso patrícioPúblio Lentu- |
Emannuel | lus, a fim de algo aprenderdes nas dolorosas experiências de uma almaindiferente e ingrata."Esperemos o tempo e a permissão de Jesus."Emmanuel não esqueceu a promessa. Com efeito, em 21 de outubrodo mesmo ano, voltava a recordar, noutro comunicado familiar:- "Se a bondade de Jesus nos permitir, iniciaremos o nosso esforço,dentro de alguns dias, esperando eu a possibilidade de grafarmos asnossas lembranças do tempo em que se verificou a passagem do DivinoMestre sobre a face da Terra."Não sei se conseguiremos realizar tão bem, quanto desejamos,semelhante intento. De ante-mão, todavia, quero assinalar minha confiançana Misericórdia do Nosso Pai de Infinita Bondade."De fato, em 24 de outubro referido, recebia o médium Xavier aprimeira página deste livro e, no dia seguinte, Emmanuel voltava a dizer:- "Iniciamos, com o amparo de Jesus, mais um despretensiosotrabalho. Permita Deus que possamos levá-lo a bom termo."Agora verificareis a extensão de minhas fraquezas no passado,sentindo-me, porém, confortado em aparecer com toda a sinceridade domeu coração, ante o plenário de vossas consciências. Orai comigo,pedindo a Jesus para que eu possa completar esse esforço, de modo queo plenário se dilate, além do vosso meio, a fim de que a minha confissãoseja um roteiro para todos."Durante todo o esforço de psicografia, o Autor deste livro nãoperdeu ensejo de ensinar a humildade e a fé a quantos o acompanham. Em30 de dezembro de 1938, comentava, em nova mensagem afetuosa: |
Emannuel | ...- "Agradeço, meus filhos, o precioso concurso que me vindesprestando. Tenho-me esforçado, quanto possível, para adaptar umahistória tão antiga ao sabor das expressões do mundo moderno, mas, emrelatando a verdade, somos levados a penetrar, antes de tudo, na essênciadas coisas, dos fatos e dos ensinamentos."Para mim essas recordações têm sido muito suaves, mas tambémmuito amargas. Suaves pela rememoração das lembranças amigas, masprofundamente dolorosas, considerando o meu coração empedernido, quenão soube aproveitar o minuto radioso que soara no relógio da minha vidade Espírito, há dois mil anos."Permita Jesus que eu possa atingir os fins a que me propus,apresentando, nesse trabalho, não uma lembrança interessante acerca deminha pobre personalidade, mas, tão somente, urna experiência para osque hoje trabalham na semeadura e na seara do Nosso Divino Mestre."De outras vezes, Emmanuel ensinava aos seus companheirosencarnados a necessidade de nossa ligação espiritual com Jesus, nodesempenho de todos os trabalhos. No dia 4 de janeiro de 1939, grafavaele esta prece, ainda com respeito as memórias do passado remoto:"Jesus, Cordeiro Misericordioso do Pai de todas as graças, sãopassados dois mil anos e minha pobre alma ainda revive os seus diasamargurados e tristes!..."Que são dois milênios, Senhor, no relógio da Eternidade?"Sinto que a tua misericórdia nos responde em suas ignotasprofundezas... Sim, o tempo é o grande tesouro do homem e vinte séculos,como vinte existências diversas, podem ser vin- |
Emannuel | te dias de provas, de experiências e de lutas redentoras."Só a tua bondade é infinita! Somente tua misericórdia podeabranger todos os séculos e todos os seres, porque em Ti vive a gloriosasíntese de toda a evolução terrestre, fermento divino de todas as culturas,alma sublime de todos os pensamentos."Diante de meus pobres olhos, desenha-se a velha Roma dos meuspesares e das minhas quedas dolorosas... Sinto-me ainda envolto namiséria de minhas fraquezas e contemplo os monumentos das vaidadeshumanas... Expressões políticas, variando nas suas características deliberdade e de força, detentores da autoridade e do poder, senhores dafortuna e da inteligência, grandezas efêmeras que perduram apenas porum dia fugaz!... Tronos e púrpuras, mantos preciosos das honrariasterrestres, togas da falha justiça humana, parlamentos e decretossupostos irrevogáveis!... Em silêncio, Senhor, viste a confusão que seestabelecera entre os homens inquietos e, com o mesmo desvelado amor,salvaste sempre as criaturas no instante doloroso das ruínas supremas...Deste a mão misericordiosa e imaculada aos povos mais humildes e maisfrágeis, confundiste a ciência mentirosa de todos os tempos, humilhasteos que se consideravam grandes e poderosos!..."Sob o teu olhar compassivo, a morte abriu suas portas de sombra eas falsas glórias do mundo foram derruídas no torvelinho das ambições,reduzindo-se todas as vaidades a um acervo de cinzas!..."Ante minhalma surgem as reminiscências das construçõeselegantes das colinas célebres; vejo o Tibre que passa, recolhendo osdetritos da grande Babilônia imperial, os aquedutos, os mármorespreciosos, as termas que pareciam |
Emannuel | ...indestrutíveis... Vejo ainda as ruas movimentadas, onde uma plebemiserável espera as graças dos grandes senhores, as esmolas de trigo, osfragmentos de pano para resguardarem do frio a nudez da carne."Regurgitam os circos... Há uma aristocracia do patriciadoobservando as provas elegantes do Campo de Marte e, em tudo, das viasmais humildes até os palácios mais suntuosos, fala-se de César, oAugusto!..."Dentro dessas recordações, eu passo, Senhor, entre farraparias eesplendores, com o meu orgulho miserável! Dos véus espessos de minhassombras, também eu não te podia ver, no Alto, onde guardas o teu sólio degraças inesgotáveis..."Enquanto o grande Império se desfazia em suas lutas inquietantes,trazias o teu coração no silêncio e, como os outros, eu não percebia quevigiavas!"Permitiste que a Babel romana se levantasse muito alto, mas,quando viste que se ameaçava a própria estabilidade da vida no planeta,disseste: - "Basta! São vindos os tempos de operar-se na seara daVerdade!" E os grandes monumentos, com as estátuas dos deusesantigos, rolaram de seus pedestais maravilhosos! Um sopro de mortevarreu as regiões infestadas pelo vírus da ambição e do egoísmodesenfreado, despovoando-se, então, a grande metrópole do pecado.Ruíram os circos formidandos, caíram os palácios, enegreceram-se osmármores luxuosos..."Bastou uma palavra tua, Senhor, para que os grandes senhoresvoltassem às margens do Tibre, como escravos misérrimos!...Perambulamos, assim, dentro da nossa noite, até o dia em que nova luzbrotara em nossa consciência. Foi preciso que os séculos passassem, |
Emannuel | para aprendermos as primeiras letras de tua ciência infinita, de perdão ede amor!"E aqui estamos, Jesus, para louvar-te a grandeza! Dá quepossamos recordar-te em cada passo, ouvir-te a voz em cada somdistraído do caminho, para fugirmos da sombra dolorosa!... Estende-nostuas mãos e fala-nos ainda do teu ....... Temos sede imensa daquela águaeterna da vida, que figuraste no ensinamento à Samaritana..."Exército de operários do teu Evangelho, nós nos movemos sob astuas determinações suaves e sacrossantas! Ampara-nos, Senhor, e nãonos retires dos ombros a cruz luminosa e redentora, mas ajuda-nos asentir, nos trabalhos de cada dia, a luz eterna e imensa do teu Reino depaz, de concórdia e de sabedoria, em nossa estrada de luta, desolidariedade e de esperança!..."Em 8 de fevereiro último, véspera do término da recepção destelivro, agradecia Emmanuel o concurso de seus companheiros encarnados,em comunicado familiar, do qual destacamos algumas frases:- "Meus amigos, Deus vos auxilie e recompense. Nosso modestotrabalho está a terminar. Poucas páginas lhe restam e eu vos agradeço decoração."Reencontrando os Espíritos amigos das épocas mortas, sinto ocoração satisfeito e confortado ao verificar a dedicação de todos ao firmepensamento de evolução, para a frente e para o alto, pois não é sem razãode ser que hoje laboramos na mesma oficina de esforço e boa vontade."Jesus há-de recompensar a cota de esforço amigo e sincero queme prestastes e que a sua infinita misericórdia vos abençoe é a minhaoração de sempre." |
Emannuel | ...Aqui ficam algumas das anotações íntimas de Emmanuel, fornecidasna recepção deste livro. A humildade desse generoso Espírito vemdemonstrar que no plano invisível há, também, necessidade de esforçopróprio, de paciência e de fé para as realizações.As notas familiares do Autor são um convite para que todos nóssaibamos orar, trabalhar e esperar em Jesus-Cristo, sem desfalecimentosna luta que a bondade divina nos oferece para o nosso resgate, nocaminho da redenção.Pedro Leopoldo, 2 de março de 1939.A EDITORA |
Emannuel | 17PRIMEIRA PARTEIDois amigosOs últimos clarões da tarde haviam caído sobre o casario romano.As águas do Tibre, ladeando o Aventino, deixavam retratados osderradeiros reflexos do crepúsculo, enquanto nas ruas estreitas passavamliteiras apressadas, sustidas por escravos musculosos e lépidos.Nuvens pesadas amontoavam-se na atmosfera, anunciandoaguaceiros próximos, e as últimas janelas das residências particulares ecoletivas fechavam-se com estrépito, ao sopro dos primeiros ventos danoite.Entre as construções elegantes e sóbrias, que exibiam mármorespreciosos, no sopé da colina, um edifício havia que reclamava a atençãodo forasteiro pela singularidade das suas colunas severas e majestosas.Uma vista de olhos ao seu exterior indicava a posição do proprietário,dado o aspecto artístico e imponente.Era, de fato, a residência do senador Públio Lentulus Cornelius,homem ainda moço, que, à ma- |
Emannuel | neira da época, exercia no Senado funções legislativas e judiciais, deacordo com os direitos que lhe competiam, como descendente de antigafamília de senadores e cônsules da República.O Império, fundado com Augusto, havia limitado os poderessenatoriais, cujos detentores já não exerciam nenhuma influência diretanos assuntos privativos do governo imperial, mas mantivera ahereditariedade dos títulos e dignidades das famílias patrícias,estabelecendo as mais nítidas linhas de separação das classes, nahierarquia social.Eram dezenove horas de um dia de maio de 31 da nossa era. PúblioLentulus, em companhia do seu amigo Flamínio Severus, reclinado notriclínio, terminava o jantar, enquanto Lívia, a esposa, expedia ordensdomésticas a uma jovem escrava etrusca.O anfitrião era um homem relativamente jovem, aparentando menosde trinta anos não obstante o seu perfil orgulhoso e austero, aliado àtúnica de ampla barra purpúrea, que impunha certo respeito a quantos selhe aproximavam, contrastando com o amigo que, revestindo a mesmaindumentária de senador, deixava entrever idade madura, iluminada de cãsprecoces, em penhor de bondade e experiência da vida.Deixando a jovem senhora entregue aos cuidados domésticos,ambos se dirigiram ao peristilo, por buscarem um pouco de oxigênio danoite cálida, embora o aspecto ameaçador do firmamento prenunciassechuva iminente.- A verdade, meu caro Públio - exclamava Flamínio, pensativo -, éque te consomes a olhos vistos. Trata-se de uma situação que precisamodificar-se sem perda de tempo. Já recorreste a todos os facultativos nocaso de tua filhinha?- Infelizmente - retorquia o patrício com amargura - já lancei mão detodos os recursos ao nosso alcance. Ainda nestes últimos dias, minhapobre Lívia levou-a a distrair-se em nossa vivenda |
Emannuel | ...de Tibur (1), procurando um dos melhores médicos da cidade, que afirmoutratar-se de um caso sem remédio na ciência dos nossos dias. Ofacultativo não chegou a positivar o diagnóstico, certamente em razão dasua comiseração pela doentinha e pelo nosso paternal desespero; mas,segundo nossas observações, acreditamos que o médico de Tiburpresume tratar-se de um caso de lepra.- É uma presunção atrevida e absurda!- Entretanto, se não podemos admitir qualquer dúvida com relaçãoaos nossos antepassados, sabes que Roma está cheia de escravos detodas as regiões do mundo e são eles o instrumento de nossos trabalhosde cada dia.- É verdade... - concordou Flamínio, com amargura.Um laivo de perspectivas sombrias transparecia na fronte dos doisamigos, enquanto as primeiras gotas de chuva satisfaziam a sede dasroseiras floridas que enfeitavam as colunas graciosas e claras.- E o pequeno Plínio? - perguntou Públio, como desejoso deproporcionar novo rumo a conversação.- Esse, como sabes, continua sadio, demonstrando ótimasdisposições Calpúrnia atrapalha-se, a cada momento, para satisfazer-lheos caprichos dos doze anos incompletos. Às vezes, é voluntarioso erebelde, contrariando as observações do velho Parmênides, só seentregando aos exercícios da ginástica quando muito bem lhe apraz; noentanto, tem grande predileção pelos cavalos. Imagina que, num momentode irreflexão própria da idade, burlando toda a vigilância do irmão,concorreu a uma tirada de bigas realizada nos treinos comuns de umestabelecimento esportivo do Campo de Marte, obtendo um dos lugares demaior destaque. Quando contemplo meus dois filhos, lembro-me sempreda__________ (1) Hoje Tivoli. (Nota da Editora.) |
Emannuel | tua pequena Flávia Lentúlia, porque bem sabes dos meus propósitos parao futuro, no sentido de estreitar os antigos laços que prendem as nossasfamílias.Públio ouvia o amigo, calado, como se a inveja lhe espicaçasse ocoração carinhoso de pai.- Todavia - revidou -, apesar de nossos projetos, os áugures nãofavorecem nossas esperanças, porque a verdade é que minha pobre filha,com todos os nossos cuidados, mais parece uma dessas infelizescriaturinhas atiradas ao Velabro (1).- Contudo, confiemos na magnanimidade dos deuses- Dos deuses? - repetiu Públio, com mal disfarçado desalento. - Apropósito desse recurso imponderável, tenho excogitado mil teorias nocérebro fervilhante. Há tempos, em visita a tua casa, tive ocasião deconhecer mais intimamente o teu velho liberto grego. Parmênides falou-meda sua mocidade e permanência na Índia, dando-me conta das crençashindus, com as suas coisas misteriosas da alma. Acreditas que cada umde nós possa regressar, depois da morte, ao teatro da vida, em outroscorpos?- De modo algum - replicou Flamínio, energicamente. - Parmênides,não obstante o seu caráter precioso, leva muito longe as suas divagaçõesespirituais.- Entretanto, meu amigo, começo a pensar que ele tem razão. Comopoderíamos explicar a diversidade da sorte neste mundo? Porque aopulência dos nossos bairros aristocráticos e as misérias do Esquilino? Afé no poder dos deuses não consegue elucidar esses problemastorturantes. Vendo minha desventurada filhinha com a carne dilacerada eapodrecida, sinto que o teu escravo está com a verdade. Que teria feito apequena Flávia, nos__________(1) Bairro da antiga Roma e que se localizava sobre um pântano. |
Emannuel | ...seus sete anos incompletos, para merecer tão horrendo castigo daspotestades celestiais? Que alegria poderiam encontrar as nossasdivindades nos soluços de uma criança e nas lágrimas dolorosas que noscalcinam o coração? Não será mais compreensível e aceitável quetenhamos vindo de longe com as nossas dividas para com os poderes doCéu?Flamínio Severus meneou a cabeça, como quem deseja afastar umadúvida, mas, retomando o seu aspecto habitual, obtemperou com firmeza:- Fazes mal em alimentar semelhantes conjeturas no teu foro íntimo.Nos meus quarenta e cinco anos de existência, não conheço crenças maispreciosas do que as nossas, no culto venerável dos antepassados. Épreciso considerares que a diversidade das posições sociais é umproblema oriundo da nossa arregimentação política, a única queestabeleceu uma divisão nítida entre os valores e os esforços de cada um;quanto à questão dos sofrimentos, convém lembrar que os deuses podemexperimentar nossas virtudes morais, com as maiores ameaças àenfibratura do nosso ânimo, sem que necessitemos adotar os absurdosprincípios dos egípcios e dos gregos, princípios, aliás, que já os reduziramao aniquilamento e ao cativeiro. Já ofereceste algum sacrifício no templo,depois de tão angustiosas dúvidas?- Tenho sacrificado aos deuses, segundo os nossos hábitos -respondeu Públio, compungida mente - e ninguém mais que eu se orgulhadas gloriosas virtudes de nossas tradições familiares. Entretanto, minhasobservações não surgem tão somente a propósito da filhinha. Há muitosdias, ando torturado com o espantoso enigma de um sonho.- Um sonho? Como pode a fantasia abalar, desse modo, a fibra deum patrício?Públio Lentulus recebeu a pergunta mergulhado em profundascismas. Seus olhos parados pre- |
Emannuel | sumiam devorar uma paisagem que o tempo distanciara no transcurso dosanos.A chuva, agora em bátegas pesadas, caía continuadamente, fazendoos mais fortes transbordamentos do implúvio e represando-se na piscinaque enfeitava o pátio do peristilo.Os dois amigos haviam-se recolhido a um largo banco de mármore,reclinando-se nos estofos orientais que o forravam, prosseguindo napalestra amistosa.- Sonhos há - prosseguiu Públio - que se distinguem da fantasia, tala sua expressão de realidade irretorquívelVoltava eu de uma reunião no Senado, onde havíamos discutido umproblema de profunda delicadeza moral, quando me senti presa deinexplicável abatimento.Recolhi-me cedo e, quando parecia divisar junto de mim a imagemde Têmis, que guardamos no altar doméstico, considerando as singularesobrigações de quem exerce as funções da justiça, senti que uma forçaextraordinária me selava as pálpebras cansadas e doloridas. No entanto,via outros lugares, reconhecendo paisagens familiares ao meu espírito,das quais me havia esquecido inteiramente.Realidade ou sonho, não o sei dizer, mas vi-me revestido dasinsígnias de cônsul, ao tempo da República. Parecia-me haver retrocedidoà época de Lúcio Sergius Catilina, pois o via a meu lado, bem como aCícero, que se me figuravam duas personificações, do mal e do bem.Sentia-me ligado ao primeiro por laços fortes e indestrutíveis, como seestivesse vivendo a época tenebrosa da sua conspiração contra o Senado,e participando, com ele, da trama ignominiosa que visava à mais intimaorganização da República. Prestigiava-lhe as intenções criminosas,aderindo a todos os seus projetos com a minha autoridade administrativa,assumindo a direção de reuniões secretas, onde decretei assas- |
Emannuel | ...sínios nefandos... Num relâmpago, revivi toda a tragédia, sentindo queminhas mãos estavam nodoadas do sangue e das lágrimas dos inocentes.Contemplei, atemorizado, como se estivesse regressandoinvoluntariamente a um pretérito obscuro e doloroso, a rede de infâmiasperpetradas com a revolução, em boa hora esmagada pela influência deCícero; e o detalhe mais terrível é que eu havia assumido um dos papéismais importantes e salientes na ignomínia... Todos os quadros hediondosdo tempo passaram, então, à frente dos meus olhos espantados...Todavia, o que mais me humilhava nessas visões do passadoculposo, como se a minha personalidade atual se envergonhasse desemelhantes reminiscências, é que me prevalecia da autoridade e do poderpara, aproveitando a situação, exercer as mais acerbas vinganças contrainimigos pessoais, contra quem expedia ordens de prisão, sob as maisterríveis acusações. E ao meu coração desalmado não bastava orecolhimento dos inimigos aos calabouços infectos, com a conseqüenteseparação dos afetos mais caros e mais doces, da família. Ordenei aexecução de muitos, na escuridão da noite, acrescendo a circunstância deque a muitos adversários políticos mandei arrancar os olhos, na minhapresença, contemplando-lhes os tormentos com a frieza brutal das vinditascruéis!... Ai de mim que espalhava a desolação e a desventura em tantasalmas, porque, um dia, se lembraram de eliminar o verdugo cruel!Depois de toda a série de escândalos que me afastaram doConsulado, senti o término dos meus atos infames e misérrimos, diante decarrascos inflexíveis que me condenaram ao terrível suplício doestrangulamento, experimentando, então, todos os tormentos e angústiasda morte.O mais interessante, porém, é que revi o inenarrável instante daminha passagem pelas águas escuras do Aqueronte, quando me pareciahaver |
Emannuel | descido aos lugares sombrios do Averno, onde não penetram asclaridades dos deuses. A grande multidão de vítimas acercou-se, então, deminhalma angustiada e sofredora, reclamando justiça e reparação erebentando em clamores e soluços, que me pereciam no recôndito docoração.Por quanto tempo estive, assim, prisioneiro desse martírioindefinível? Não sei dizê-lo. Apenas me recordo de haver lobrigado a figuraceleste de Lívia, que, no meio desse vórtice de pavores, estendia-me asmãos fúlgidas e carinhosas.Afigurava-se-me que minha esposa me era familiar de épocasremotíssimas, porque não hesitei um instante em lhe tomar as mãossuaves, que me conduziram a um tribunal, onde se alinhavam figurasestranhas e venerandas. Cãs respeitáveis aureolavam o semblante serenodesses juizes do Céu, emissários dos deuses para julgamento dos homensda Terra. A atmosfera caracterizava-se por estranha leveza, cheia de luzescariciosas que iluminavam, perante todos os presentes, os meuspensamentos mais secretos.Lívia devia ser o meu anjo-tutelar nesse conselho de magistradosintangíveis, porque sua destra pairava sobre minha cabeça, como a impor-me resignação e serenidade, a fim de ouvir as sentenças supremas.Desnecessário será dizer-te do meu espanto e do meu receio, diantedesse tribunal que eu desconhecia, quando a figura daquele que mepareceu a sua autoridade central me dirigiu a palavra, exclamando:- Públio Lentulus, a justiça dos deuses, na sua misericórdia,determina tua volta ao turbilhão das lutas do mundo, para que laves asnódoas de tuas culpas nos prantos remissores. Viverás numa época demaravilhosos fulgores espirituais, lutando com todas as situações edificuldades, não obstante o berço de ouro que te receberá ao renasceres,a fim de que edifiques tua consciência denegrida, nas do- |
Emannuel | ...res que purificam e regeneram!... Feliz de ti se bem souberes aproveitar aoportunidade bendita da reabilitação pela renúncia e pela humildade...Determinou-se que sejas poderoso e rico, a fim de que, com o teudesprendimento dos caminhos humanos, no instante preciso, possas serelemento valioso para os teus mentores espirituais. Terás a inteligência e asaúde, a fortuna e a autoridade, como ensanchas à regeneração integral detua alma, porque chegará um momento em que serás compelido adesprezar todas as riquezas e todos os valores sociais, se bem souberespreparar o coração para a nova senda de amor e humildade, de tolerânciae perdão, que será rasgada, em breves anos, à face escura da Terra!... Avida é um jogo de circunstâncias que todo espírito deve entrosar para obem, no mecanismo do seu destino. Aproveita, pois, essas possibilidadesque a misericórdia dos deuses coloca ao serviço da tua redenção. Nãodesprezes o chamamento da verdade, quando soar a hora do testemunho edas renúncias santificadoras... Lívia seguirá contigo pela via dolorosa doaperfeiçoamento, e nela encontrarás o braço amigo e protetor para os diasde provações ríspidas e acerbas. O essencial é a tua firmeza de ânimo nocaminho escabroso, purificando tua fé e tuas obras, na reparação dopassado delituoso e obscuro!...A essa altura, a voz altiva do patrício ia-se tornando angustiada edolorosa. Amargas comoções íntimas represavam-se-lhe no coração,atormentado por incoercível desalento.Flamínio Severus ouvia-o com interesse e atenção, rebuscando omeio mais fácil de lhe desvanecer impressões tão penosas. Sentia ímpetosde desviar-lhe o curso dos pensamentos, arrancando-lhe o espíritodaquele mundo de emoções impróprias da sua formação intelectual,apelando para sua educação e para o seu orgulho; mas, ao mesmo tempo,não conseguia sopitar as próprias dúvidas íntimas, em face daquelesonho, cuja nitidez e aspecto de |
Emannuel | realidade o deixavam aturdido. Compreendia que era necessário primeirorestabelecer sua própria fortaleza de ânimo, entendendo que a lógica dabrandura deveria ser o escudo de suas palavras, para esclarecimento doamigo que ele mais considerava irmão.Foi assim que, pousando a mão esguia e branca nos seus ombros,perguntou com amável doçura:- E depois, que mais viste?Públio Lentulus, sentindo-se compreendido, recobrou energiasnovas e continuou:- Depois das exortações daquele juiz severo e venerando, não maislobriguei o vulto de Lívia a meu lado, mas outras criaturas graciosas,envolvidas em peplos que me pareciam de neve translúcida, confortavam-me o coração com os seus sorrisos acolhedores e bondosos.Atendendo-lhes ao apelo carinhoso, senti que meu Espíritoregressava à Terra.Observei Roma, que já não era bem a cidade do meu tempo; umsopro de beleza estava reconstituindo a sua parte antiga, porque notei aexistência de novos circos, teatros suntuosos, termas elegantes e paláciosencantadores, que meus olhos não haviam conhecido antes.Tive ocasião de ver meu pai entre os seus papiros e pergaminhos,estudando os processos do Senado, tal qual se verifica hoje conosco, e,depois de implorar a bênção dos deuses, no altar doméstico de nossacasa, experimentei uma sensação de angústia no recesso de minhalma.Pareceu-me haver sofrido dolorosa comoção cerebral e fiqueiadormentado numa vertigem indefinível...Não sei descrever literalmente o que se passou, mas despertei comfebre alta, como se aquela digressão do pensamento, pelos mundos deMorfeu, me houvesse trazido ao corpo dolorosa sensação de cansaço. |
Emannuel | ...Ignoro o teu julgamento, em face desta confidência amargurada e penosa,mas desejaria me explicasses algo a respeito.- Explicar-te? - obtemperou Flamínio, tentando imprimir à voz umatonalidade de convicção enérgica. - Bem sabes do respeito que meinspiram os áugures do templo, mas, afinal, o que te ocorreu não podepassar, simplesmente, de um sonho, e tu não ignoras como devemostemer a imaginação dentro de nossas perspectivas de homens práticos.Por sonharem excessivamente, os atenienses ilustres transformaram-seem escravos misérrimos, constituindo obrigação de nossa parte oreconhecimento da bondade dos deuses que nos concederam o senso darealidade, necessário às nossas conquistas e triunfos. Seria lícitorenunciasses ao amor de ti mesmo e à posição de tua família, tão somentelevado pela fantasia?Públio deixou que o amigo discorresse abundantemente sobre oassunto, recebendo-lhe as exortações e conselhos, mas, depois, tomando-lhe as mãos generosas, exclamou angustiado:- Meu amigo, eu seria indigno da magnanimidade dos deuses se medeixasse conduzir ao sabor dos acontecimentos. Um simples sonho nãome daria margem a tão dolorosas conjeturas, mas a verdade é que ainda tenão disse tudo.Flamínio Severus franziu o sobrolho, rematando:- Ainda não disseste tudo? Que significam estas afirmativas?No seu íntimo generoso, angustiosa dúvida fora já implantada com adescrição minuciosa daquele sonho impressionante e doloroso, e era comgrande esforço que o seu coração fraternal trabalhava por ocultar aoamigo as penosas emoções que intimamente o atormentavam.Públio, mudo, tomou-lhe do braço, conduzindo-o às galerias dotablino localizado a um canto do peristilo, nas proximidades do altardoméstico, |
Emannuel | onde oficiavam os mais puros e mais santos afetos da família.Os dois amigos penetraram o escritório e a sala do arquivo comprofundo sinal de respeitoso recolhimento.A um canto, dispunham-se em ordem numerosos pergaminhos epapiros, enquanto, nas galerias, avultavam retratos de cera, deantepassados e avoengos da família.Públio Lentulus tinha os olhos úmidos e a voz trêmula, como seprofundas emoções o dominassem naquelas circunstâncias.Aproximando-se de uma imagem de cera, entre as muitas que ali seenfileiravam, chamou a atenção de Flamínio, com uma simples palavra:- Reconheces?- Sim - respondeu o amigo, estremecendo -, reconheço esta efígie.Trata-se de Públio Lentulus Sura, teu bisavó paterno, estrangulado háquase um século, na revolução de Catilina.- Faz precisamente noventa e quatro anos que o pai de meu avô foieliminado nessas tremendas circunstâncias - exclamou Públio, comênfase, como quem está de posse de toda a verdade. - Repara bem ostraços desta figura, para verificares a semelhança perfeita que existe entremim e esse longínquo antepassado. Não estaria aqui a chave do meusonho doloroso?O nobre patrício observou a notável identidade de traçosfisionômicos daquela efígie morta com o semblante do amigo presente.Suas vacilações atingiram o auge, em face daquelas demonstraçõesalucinantes. Ia elucidar o assunto, encarecendo a questão da linhagem eda hereditariedade, mas o interlocutor, como se adivinhasse os mínimosdetalhes de suas dúvidas, antecipou o julgamento, exclamando:- Eu também participei de todas as hesitações que ferem o teuraciocínio, lutando contra a razão, antes de aceitar a tese de nossasconversa- |
Emannuel | ...ções desta noite. A semelhança pela imagem, ainda a mais extrema, énatural e é possível; isto, porém, não me satisfaz plenamente. Expedi,nestes últimos dias, um dos servos de nossa casa, a Taormina, em cujasadjacências possuímos antiga habitação, onde se guardava o arquivo doextinto, que fiz transportar para aqui.E, num movimento de quem estava certo de todos os seusconceitos, revirava nas mãos nervosas vários documentos, exclamando:- Repara estes papiros! São notas de meu bisavô, acerca dos seusprojetos no Consulado. Encontrei neste acervo de pergaminhos diversasminutas de sentenças de morte, as quais já havia observado nas minhasdigressões do sonho inexplicável... Confronta estas letras! Não separecem com as minhas? Que desejaríamos mais, além destas provascaligráficas? Há muitos dias, vivo este obscuro dilema no íntimo docoração... Serei eu Públio Lentulus Sura, reencarnado?Flamínio Severus deixou pender a fronte, com indisfarçávelinquietação e indizível amargura.Numerosas haviam sido as provas da lucidez e da lógica do amigo.Tudo conspirava para que o seu castelo de explicações desmoronasse,fragorosamente, diante dos fatos consumados, mas procuraria novasforças, a fim de salvaguardar o patrimônio das crenças e tradições dosseus maiores, tentando esclarecer o espírito do companheiro de tantosanos.- Meu amigo - murmurou, abraçando-o -, concordo contigo, em facedestes acontecimentos alucinantes. O fato é dos que empolgam o espíritomais frio, mas não podemos arriscar nossas responsabilidades no rumoincerto das primeiras impressões. Se ele nos parece a realidade, existemas realidades imediatas e positivas, aguardando o nosso concurso ativo.Considerando as tuas ponderações e acreditando mesmo na veracidadedo fenômeno, não acredito devamos mergulhar o raciocínio |
Emannuel | nestes assuntos misteriosos e transcendentes. Sou avesso a essasperquirições, certamente em virtude das minhas experiências da vidaprática. Concordando, de modo geral, com o teu ponto de vista,recomendo-te não estendê-lo além do círculo de nossa intimidadefraternal, mesmo porque, não obstante a propriedade de conceitos comque me dás testemunho da tua lucidez, sinto-te cansado e abatido nessetorvelinho de trabalhos do ambiente doméstico e social.Fez uma pausa nas suas observações comovidas, como quemraciocinasse procurando recurso eficaz para remediar a situação, esugeriu com doçura:- Poderias descansar um pouco na Palestina, levando a família paraessa estação de repouso.Existem ali regiões de clima adorável, que operariam, talvez, a curade tua filhinha, restabelecendo simultaneamente as. tuas forças orgânicas.Quem sabe? Esquecerias o tumulto da cidade, regressando mais tarde aonosso meio, com energias novas. O atual Procurador da Judeia é nossoamigo. Poderíamos harmonizar vários problemas do nosso interesse e denossas funções, porquanto não me seria difícil obter do Imperadordispensa dos teus trabalhos no Senado, de modo a que continuassesrecebendo os subsídios do Estado, enquanto permanecesses na Judeia.Que julgas a respeito? Poderias partir tranqüilo, pois eu tomaria a meucargo a direção de todos os teus negócios em Roma, zelando pelos teusinteresses e pelas tuas propriedades.Públio deixou transparecer no olhar uma chama de esperança, e,como quem estivesse examinando, intimamente, todas as razõesfavoráveis ou contrárias à execução do projeto, ponderou:- A idéia é providencial e generosa, mas a saúde de Lívia não meautoriza a tomar uma resolução pronta e definitiva.- Porquê? |
Emannuel | ...- Esperamos, para breve, o segundo rebento do nosso lar.- E quando esperas esse advento?- Dentro de seis meses.- Interessa-te a viagem depois do inverno próximo?- Sim.- Pois bem: estarás, então, na Judeia, precisamente daqui a um ano.Os dois amigos reconheceram que a palestra havia sido longa.Cessara o aguaceiro. O firmamento esplendia de constelaçõeslavadas e límpidas.Iniciara-se já o tráfego das carroças barulhentas, com os gritospouco amáveis dos condutores, porque na Roma imperial as horas do diaeram reservadas, de modo absoluto, ao tráfego dos palanquins patrícios eao movimento dos pedestres.Flamínio despediu-se comovidamente do amigo, retomando a liteirasuntuosa, com o auxilio dos seus escravos prestos e hercúleos.Públio Lentulus, tão logo se viu só, encaminhou-se ao terraço, ondecorriam céleres as brisas da noite alta.À claridade do luar opulento, contemplou o casario romanoespalhado pelas colinas sagradas da cidade gloriosa. Espraiou os olhosna paisagem noturna, considerando os problemas profundos da vida e daalma, deixando pender a fronte, entristecido. Incoercível tristeza dominava-lhe o ânimo voluntarioso e sensível, enquanto uma onda de amor-próprio ede orgulho lhe sopitava as lágrimas íntimas do coração atormentado porangustiosos pensamentos. |
Emannuel | 32IIUm escravoDesde os primeiros tempos do Império, a mulher romana havia-seentregado à dissipação e ao luxo excessivo, em detrimento das obrigaçõessantificadoras do lar e da família.A facilidade na aquisição de escravos empregados nos serviçosmais grosseiros, como nos mais elevados misteres de ordem doméstica,inclusive os da própria educação e instrução, havia determinado grandequeda moral no equilíbrio das famílias patrícias, porquanto a disseminaçãodos artigos de luxo, vindos do Oriente, aliada à ociosidade, amolecera asfibras de energia e de trabalho das matronas romanas, encaminhando-aspara as frivolidades da indumenta, para as intrigas amorosas, a preludiar amais completa desorganização da família, no esquecimento de suastradições mais apreciáveis.Contudo, algumas casas haviam resistido heroicamente a essainvasão de forças perversoras e criminosas.Mulheres havia, ao tempo, que se orgulhavam do padrão das antigasvirtudes familiares, de quantas as tinham antecedido no labor construtivodas gerações de tantas almas sensíveis e nobres. |
Emannuel | ...As esposas de Públio e Flamínio eram desse número. Criaturasinteligentes e valorosas, ambas fugiam da onda corruptora da época,representando dois símbolos de bom-senso e simplicidade.As últimas expressões do inverno já haviam desaparecido, no anode 32, entornando pela terra, primaveril e alegre, uma taça imensa de florese perfumes...Num dia claro e ensolarado, vamos encontrar Lívia e Calpúrnia, naresidência da primeira, em amável palestra, enquanto dois rapazinhosdesenham, distraidamente, a um canto da sala.As duas senhoras organizam aprestos de viagem, corrigindodefeitos de algumas peças de lã e trocando impressões íntimas, à meiavoz, em tom amigo e discreto.Em dado momento, os dois meninos alcançam um dos quartoscontíguos, enquanto Lívia chama a atenção da amiga, nestes termos:- Teus pequenos não têm hoje os exercícios habituais?- Não, minha boa Lívia - respondeu Calpúrnia, com delicadezafraternal, adivinhando-lhe as intenções -, não só Plínio, mas, também,Agripa, consagraram o dia de hoje à doentinha. Adivinho as suasvacilações e escrúpulos maternos, considerando a boa saúde dos nossosfilhinhos; mas, os teus receios são infundados...- Sabem os deuses, todavia, como tenho vivido nestes últimostempos, desde que ouvi a opinião franca e sincera do médico de Tibur.Bem sabes que para ele o caso de minha filha é mal doloroso e sem cura.Desde então, toda a minha vida tem sido uma série de preocupações emartírios. Tomei todas as providências para que a pequena fosse isoladado círculo de nossas relações, atendendo aos imperativos da higiene e ànecessidade de circunscrever, com o nosso próprio esforço, a moléstiaterrível. |
Emannuel | - Mas, quem te diz que o mal é incurável? Acaso semelhante opiniãoprovejo da palavra infalível dos deuses? Não sabes quanto é enganosa aciência dos homens?Há tempos, ambos os meus fílhinhos adoeceram com febre insidiosae destruidora. Chamados os médicos, observei que eles se revezavam nomister de salvar os dois enfermos, sem resultados apreciáveis. Depois,refleti melhor na providência dos céus e, imediatamente, ofereci umsacrifício no templo de Castor e Pólux, salvando-os de morte certa. Graçasa essa providência, hoje os vejo sorridentes e felizes.Agora que não tens somente a pequena Flávia, mas também opequenino Marcus, aconselho-te fazeres o mesmo, recorrendo aos deusesgêmeos.- É verdade, minha boa Calpúrnia, assim farei antes de nossa partidapróxima.- E por falar na viagem, como te sentes em face desta mudançaimprevista?- Bem sabes que tudo farei pela tranqüilidade de Públio e pela nossapaz doméstica. Há muito noto Públio abatido e doente, em razão de suaslutas exaustivas ao serviço do Estado. Jovial e expansivo, de tempos aesta parte tornou-se taciturno e irritadiço. Enerva-se com tudo e por tudo,acreditando eu que a saúde precária de nossa filhinha contribuadecisivamente para a sua misantropia e mau humor.Considerando essas razões disponho-me, com satisfação, aacompanhá-lo à Palestina, pesando-me apenas no íntimo a circunstânciade ser obrigada, ainda que temporariamente, a afastar-me da tuaintimidade e dos teus conselhos.- Folgo de assim te ouvir, porque a nós nos compete examinar asituação daqueles que o nosso coração elegeu para companheiros de todaa vida, tudo envidando por suavizar-lhes os aborrecimentos do mundo. |
Emannuel | ...Públio é um bom coração, generoso e idealista, mas, como patríciodescendente de família das mais ilustres da República, é vaidoso emdemasia. Homens dessa natureza requerem grande senso psicológico damulher, sendo justo e necessário que aparentes igualdade absoluta desentimentos, de modo a poderes conduzi-lo sempre pelo melhor caminho.Flamínio deu-me a conhecer todas as circunstâncias da tuapermanência na Judeia, mas, alguns pormenores existem que eu aindadesconheço. Ficarás, de fato, em Jerusalém?- Sim. Públio deseja que nos fixemos na mesma residência do seutio Sálvio, em Jerusalém, até que possamos eleger o melhor clima do país,de maneira a beneficiar a saúde de nossa filhinha.- Está bem - exclamou Calpúrnia, assumindo ares da maior discrição-, em face da tua inexperiência, sou obrigada a esclarecer o teu espírito,considerando a possibilidade de quaisquer complicações futuras.Lívia surpreendeu-se com a observação da amiga, mas, todaouvidos, revidou impressionada:- Mas, que queres dizer?- Sei que não tens um conhecimento mais acurado dos parentes deteu marido, que há tanto tempo se conservam ausentes de Roma -murmurou Calpúrnia, com as minudências características do espíritofeminino - e constituí um dever de amizade aclarar o teu espírito, a fim denão te conduzires com demasiada confiança por onde passares.O pretor Sálvio Lentulus, que há muitos anos foi destituído dogoverno das províncias, e agora tem simples atribuições de funcionáriojunto do atual Procurador da Judeia, não é bem um homem idêntico a teumarido, que, se tem certos defeitos de família, é um espírito muito franco esincero. Eras muito jovem quando se verificaram acontecimentosdeploráveis em nosso ambiente social, com referência às criaturas comquem agora vais conviver. |
Emannuel | A esposa de Sálvio, que ainda deve ser uma mulher moça e bem cuidada, éirmã de Cláudia, mulher de Pilatos, a quem teu marido vai recomendado,em caminho da alta administração da província.Em Jerusalém vais encontrar toda essa gente, de costumes bemdiferentes dos nossos, e precisas pensar que vais conviver com criaturasdissimuladas e perigosas.Não temos o direito de reprovar os atos de ninguém, a não ser empresença daqueles que consideramos culpados ou passíveis derecriminações, mas devo prevenir-te de que o Imperador foi compelido adesignar essa gente para serviços no exterior, considerando gravesassuntos de família, na intimidade da Corte.Que os deuses me perdoem as observações da ausência, mas é que,na tua condição de romana e mulher de senador ainda jovem, seráshomenageada pelos nossos conterrâneos distantes, homenagens quereceberás em sociedade como ramalhetes de rosas cheios de perfume,mas também cheios de espinhos...Lívia ouviu a amiga, entre espantada e pensativa, exclamando emvoz discreta, como quem quisesse desfazer uma dúvida:- Mas, o pretor Sálvio não é homem idoso?- Estás enganada. É pouco mais moço que Flamínio, mas os seusapuros de cavalheiro fazem da sua personalidade um tipo de soberbaaparência.- Como poderei levar a bom termo os meus deveres, no caso de mecercarem as perfídias sociais, tão comuns em nosso tempo, sem agravar oestado espiritual de meu esposo?- Confiemos na providência dos deuses - murmurou Calpúrnia,deixando transparecer a fé magnífica do seu coração maternal.Mas, as duas não conseguiram prosseguir na conversação. Umruído mais forte denunciava a aproximação de Públio e Flamínio, queatravessavam o vestíbulo, procurando-as. |
Emannuel | ...- Então? - exclamou Flamínio, bem humorado, assomando à porta,com malicioso sorriso. - Entre a costura e a palestra, deve sofrer areputação de alguém nesta sala, porque já dizia meu pai que mulhersozinha pensa sempre na família; mas, se está com outra, pensa logonos... outros.Um riso sadio e geral coroou as suas palavras alegres, enquantoPúblio exclamava contente:- Estejamos sossegados, minha Lívia, porque tudo está pronto e anosso inteiro contento. O Imperador prontificou-se a auxiliar-nosgenerosamente com as suas ordens diretas, e, daqui a três dias, umagalera nos esperará nas cercanias de Óstia, de modo a viajarmostranqüilamente.Lívia sorriu satisfeita e confortada, enquanto do apartamento dapequena Flávia assomavam duas cabeças risonhas, preparando-seFlamínio para receber nos braços, de uma só vez, os dois filhinhos.- Venham cá, ilustres marotos! Porque fugiram ontem das aulas?Hoje recebi queixa do ginásio, nesse sentido, e estou muito contrariadocom esse procedimento...Plínio e Agripa ouviram a reprimenda paterna. desapontados,respondendo o mais velho, com humildade:- Mas, papai, eu não sou culpado. Como o senhor sabe, o Plíniofugiu dos exercícios, obrigando-me a sair para procurá-lo.- Isso é uma vergonha para você, Agripa - exclamou Flamínio,paternalmente -, sua idade não permite mais a participação nastraquinadas de seu irmão.Ia a cena nessa altura, quando Calpúrnia interveio apaziguando:- Tudo está muito certo, mas teremos de resolver o assunto em casa,porque a hora não comporta discussões entre pai e filhos.Ambos os meninos foram beijar a mão materna, como se lheagradecessem a intervenção carinhosa, e, daí a minutos, despediam-se asduas famí- |
Emannuel | lias, com a promessa de Flamínio, no sentido de acompanhar os amigosaté Óstia, nas proximidades da foz do Tibre, no dia do embarque.Decorridas aquelas setenta e duas horas de azáfama e preparativos,vamos encontrar nossas personagens numa galera confortável e elegante,nas águas de Óstia, onde ainda não existiam as construções do porto, aliedificadas mais tarde por Cláudio.Plínio e Agripa ajudavam a acomodar a pequena enferma no interior,instigados pelos pais, que os preparavam desde cedo para as delicadezasda vida social, enquanto Calpúrnia e Lívia instruíam uma serva, a respeitoda instalação do pequenino Marcus. Públio e Flamínio trocavamimpressões, a distância, ouvindo-se a recomendação do segundo, queelucidava o amigo confidencialmente:- Sabes que os súditos conquistados pelo Império muitas vezes nosolham com inveja e despeito, tornando-se preciso nunca desmerecermosda nossa posição de patrícios.Algumas regiões da Palestina, segundo os meus própriosconhecimentos, estão infestadas de malfeitores e é necessário estejasprecavido contra eles, principalmente na tua marcha em demanda deJerusalém. Leva contigo, tão logo aportes com a família, o maior númerode escravos para a tua garantia e dos teus, e, na hipótese de ataques, nãohesites em castigar com severidade e aspereza.Públio recebeu a exortação, atenciosamente, e, daí a minutos,movimentavam-se ambos no interior da nave, onde o viajante interpelava ochefe dos serviços:- Então, Áulus, tudo está pronto?- Sim, Ilustríssimo. Apenas aguardamos as vossas ordens para apartida. Quanto aos nossos trabalhos, podeis ficar tranqüilo, porqueescolhi a dedo os melhores cartagineses para o serviço de remos. |
Emannuel | ...Com efeito, começaram ali as últimas despedidas. As duas senhorasabraçavam-se com lágrimas enternecidas e afetuosas, enquanto seexpressavam promessas de perene lembrança e votos aos deuses pelatranqüilidade geral.Derradeiros abraços comovidos e largava a galera suntuosa, onde abandeira da águia romana tremulava orgulhosa, ao sopro suave dasvirações marinhas. Os ventos e os deuses eram favoráveis, porque, embreve, ao esforço hercúleo dos escravos no ritmo dos remos poderosos,os viajantes contemplavam de longe a fita esverdeada da costa italiana,como se avançassem na massa liquida para as vastidões insondáveis doInfinito.Transcorria a viagem com o máximo de serenidade e calma.Públio Lentulus, não obstante a beleza da paisagem na travessia doMediterrâneo e a novidade dos aspectos exteriores, considerada amonotonia dos seus afazeres na vida romana, junto dos numerososprocessos do Estado, tinha o coração cheio de sombras. Debalde a esposaprocurara aproximar-se do seu espírito irritado, buscando tanger assuntosdelicados de família, com o fim de conhecer e suavizar-lhe os íntimosdissabores. Experimentava ele a impressão de que caminhava paraemoções decisivas do desenrolar de sua existência. Conhecera parte daÁsia, porque, na primeira mocidade, havia servido um ano naadministração de Esmirna, de modo a integrar-se, da melhor maneira, nomecanismo dos trabalhos do Estado, mas não conhecia Jerusalém, onde oesperavam como legado do Imperador, para a solução de vários problemasadministrativos de que fôra incumbido junto ao governo da Palestina.Como encontraria o tio Sálvio, mais moço que seu pai? Há muitosanos não o via pessoalmente; entretanto, era pouco mais velho do que elepróprio. E aquela Fúlvia, leviana e caprichosa, que lhe desposara o tio notorvelinho dos seus numerosos es- |
Emannuel | cândalos sociais, tornando-se quase indesejável no seio da família?Recordava mais íntimos pormenores do passado, abstendo-se, todavia, decomunicar à mulher as mais penosas expectativas. Refletindo, igualmente,na situação da esposa e dos dois filhinhos, encarava com ansiedade osprimeiros obstáculos à sua permanência na Judeia, na qualidade depatrícios, mas também como estrangeiros, considerando que as amizadesque os aguardavam eram problemáticas.Entre as suas cismas e as preces da esposa, estava a terminar atravessia do Mediterrâneo, quando chamou a atenção do seu servo deconfiança, nestes termos:- Comênio, dentro em pouco estaremos às portas de Jerusalém;mas, antes que isso se verifique, temos de realizar pequena marcha,depois do ponto de desembarque, reclamando-se muito cuidado de minhaparte, com relação ao transporte da família. Esperam-se algunsrepresentantes da administração da Judeia, mas certamente estaremosacompanhados dos teus cuidados, pois vamos aportar a região para mimdesconhecida e estrangeira. Reúne todos os servos sob as tuas ordens, demodo a garantirmos absoluta segurança pelo caminho.- Senhor, contai com o nosso desvelo e dedicação - respondeu oservidor, entre respeitoso e comovido.No dia imediato Públio Lentulus e comitiva desembarcavam empequeno porto da Palestina, sem incidentes dignos de menção.Esperavam-no, além do legado do Procurador, alguns lictores enumerosos soldados pretorianos, comandados por Sulpício Tarquinius,munido de todos os aprestos e elementos exigidos para uma viagemtranqüila e confortável, pelas estradas de Jerusalém.Após o necessário repouso, a caravana pôs-se a caminho,parecendo antes expedição militar que |
Emannuel | ...transporte de simples família, através das estações periódicas dedescanso.As armaduras dos cavalos, os capacetes romanos reluzindo ao Sol,os trajes extravagantes, palanquins enfeitados, animais de tração e oscarros pesados da bagagem davam idéia de expedição triunfal, emboraazafamada e silenciosa.Ia a caravana a bom termo, quando, nas proximidades de Jerusalém,ocorre um imprevisto. Um corpo sibilante cortou o ar fino e claro, alojando-se no palanquim do senador, ouvindo-se ao mesmo tempo um gritoestridente e lamentoso. Minúscula pedra ferira levemente o rosto de Lívia,determinando grande alarme na massa enorme de servos e cavaleiros.Entre os carros e os animais que pararam assustados, numerososescravos rodeiam os senhores, buscando, com precipitação, inteirar-se dofato. Sulpício Tarquinius, num golpe de vista, dá largas ao galope damontada, buscando prender um jovem que se afastava, receoso, dasmargens do caminho. E, culpado ou não, foi um rapaz dos seus dezoitoanos apresentado aos viajantes, para a punição necessária.Públio Lentulus recordou a recomendação de Flamínio, momentosantes da partida, e, sopitando os seus melhores sentimentos de tolerânciae generosidade, resolveu prestigiar a sua posição e autoridade aos olhosde quantos houvessem de lhe seguir a permanência naquele paísestrangeiro.Ordenou providências imediatas aos lictores que o acompanhavam,e ali mesmo, ante as claridades mordentes do Sol a pino e sob o olharespantado de algumas dezenas de escravos e centuriões numerosos,determinou que vergastassem sem comiseração o rapaz, pela sualeviandade.A cena era desagradável e dolorosa.Todos os servos acompanhavam, compungidos, o estalar do chicoteno dorso seminu daquele homem ainda moço, que gemia, em soluçosdolorosos, sob o látego despótico e cruel. Ninguém ousou con- |
Emannuel | trariar as ordens impiedosas, até que Lívia, não conseguindo contemplarpor mais tempo a rudeza do espetáculo, pediu ao esposo, em voz súplice:- Basta, Públio, porque os direitos da nossa condição não traduzemdeveres de impiedade...O senador considerou, então, a sua severidade excessiva e rigorosa,ordenou a suspensão do castigo doloroso, mas, a uma pergunta deSulpício, quanto ao novo destino do infeliz, falou em tom rude e irritado:- Para as galeras!...Os presentes estremeceram, porque as galeras significavam a morteou a escravidão para sempre.O desventurado amparava-se, exânime, nas mãos dos centuriõesque o rodeavam, porém, ao ouvir as três palavras da sentençacondenatória, deitou ao seu orgulhoso juiz um olhar de ódio supremo e desupremo desprezo No âmago de sua alma coriscavam relâmpagos devingança e de cólera, mas a caravana pôs-se novamente a caminho, entreo ruído dos carros pesados e o tilintar das armaduras, ao movimento doscavalos fogosos e irrequietos.A chegada a Jerusalém ocorreu sem outros fatos dignos de nota.A novidade dos aspectos e a diversidade das criaturas é queimpressionaram os viajantes no seu primeiro contacto com a cidade, cujafisionomia, com raras mudanças, no decurso de todos os séculos, foisempre a mesma, triste e desolada, preludiando as paisagens ressequidasdo deserto.Pilatos e sua mulher encontravam-se nas solenidades de recepçãoao senador, que ia, como legado de Tibério, junto da administração daprovíncia, encarnando o princípio da lei e da autoridade.Sálvio Lentulus e a esposa, Fúlvia Prócula, receberam os parentescom aparato e prodigalidade. Homenagens numerosas foram prestadas aPúblio Lentulus e sua mulher, salientando-se que Lívia, fosse em razão dasadvertências de Calpúrnia, ou em vista de sua acuidade psicológica,reconheceu |
Emannuel | ...logo que naquele ambiente não palpitavam os corações generosos esinceros dos seus amigos de Roma, experimentando, no íntimo, dolorosasensação de amargura e ansiedade. Verificara, com satisfação, que a suapequena Flávia havia melhorado, não obstante a viagem exaustiva, mas, aomesmo tempo, torturava-se percebendo que Fúlvia não possuía amplitudede coração para acolhê-los sempre com carinho e bondade. Notara que, aolhe apresentar a filhinha enferma, a patrícia vaidosa fizera um movimentoinstintivo de recuo, afastando sua pequena Aurélia, filha única do casal, docontacto com a família, apresentando pretextos inaceitáveis. Bastou umdia de permanência naquele lar estranho, para que a pobre senhoracompreendesse a extensão das angústias que a esperavam ali, calculandoos sacrifícios que a situação exigiria do seu coração sensível e carinhoso.E não era somente o quadro familiar, nos seus detalhesimpressionantes, que lhe torturava a mente trabalhada de expectativaspungentes. Deparando-se-lhe Pôncio Pilatos, no próprio momento de suachegada, sentira, no íntimo, que havia encontrado um rude e poderosoinimigo.Forças ignoradas do mundo intuitivo falavam ao seu coração demulher, como se vozes do plano invisível lhe preparassem o espírito paraas provas aspérrimas dos dias vindouros. Sim, porque a mulher, símbolodo santuário do lar e da família, na sua espiritualidade, pode, muitas vezes,numa simples reflexão, devassar mistérios insondáveis dos caracteres edas almas, na tela espessa e sombria das reencarnações sucessivas edolorosas.Públio Lentulus, ao contrário, não experimentou as mesmasemoções da companheira. A diversidade do ambiente modificara-lhe umtanto as disposições íntimas, sentindo-se moralmente confortado em faceda tarefa que lhe competia desempenhar no cenário novo de suasatividades de homem de Estado. |
Emannuel | No segundo dia de permanência na cidade, tão logo regressara daprimeira visita às instalações da Torre Antônia, onde se aquartelavamcontingentes das forças romanas, observando o movimento dos casuístase dos doutores, no Templo famoso de Jerusalém, foi procurado por umhomem humilde e relativamente moço, que apresentava como credencial,tão somente, o coração aflito e carinhoso de pai.Obedecendo mais aos imperativos de ordem política que aosentimento de generosidade do coração, o senador quebrou as etiquetasdo momento, recebendo-o no seu gabinete privado, disposto a ouvi-lo.Um judeu, pouco mais velho que ele próprio, em atitude derespeitosa humildade e expressando-se dificilmente, de modo a fazer-secompreendido, falou-lhe nestes termos:- Ilustríssimo senador, sou André, filho de Gioras, operário modestoe paupérrimo, não obstante numerosos membros de minha família terematribuições importantes no Templo e no exercício da Lei. Ouso vir até vós,reclamando o meu filho Saul, preso, há três dias, por vossa ordem eremetido diretamente para o cativeiro Perpétuo das galeras... Peço-vosclemência e caridade na reparação dessa sentença de terríveis efeitos paraa estabilidade da minha casa pobre... Saul é o meu primogênito e neledeponho toda a minha esperança paternal... Reconhecendo-lhe ainexperiência da vida, não venho inocentá-lo da culpa, mas apelar para avossa clemência e magnanimidade, em face da sua ignorância de rapaz,jurando-vos, pela Lei, encaminhá-lo doravante pela estrada do deverausteramente cumprido...Públio recordou a necessidade de fazer sentir a autoridade da suaposição, revidando com o orgulho característico das suas resoluções:- Como ousa discutir minhas determinações, quando guardo aconsciência de haver praticado a |
Emannuel | ...justiça? Não posso modificar minhas deliberações, estranhando que umjudeu ponha em dúvida a ordem e a palavra de um senador do Império,formulando reclamações desta natureza.- Mas, senhor, eu sou pai...- Se o és, porque fizeste de teu filho um vagabundo e um inútil?- Não posso compreender os motivos que levaram meu pobre Saul acomprometer-se dessa maneira, mas, juro-vos que ele é o braço-forte dosmeus trabalhos de cada dia.- Não me cabe examinar as razões do teu sentimento, porque aminha palavra esta dada irrevogavelmente.André de Gioras mirou Públio Lentulus de alto a baixo, ferido na suaemotividade de pai e no seu sentimento de homem, esfuziando de dor e decólera reprimida. Seus olhos úmidos traíam íntima angústia, em facedaquela recusa formal e inapelável, mas, desprezando todos osconvencionalismos humanos, falou com orgulhosa firmeza:- Senador, eu desci da minha dignidade para implorar vossacompaixão, mas aceito a vossa recusa ignominiosa!...Acabais de comprar, com a dureza do coração, um inimigo eterno eimplacável!... Com os vossos poderes e prerrogativas, podeis eliminar-mepara sempre, seja reduzindo-me ao cativeiro ou condenando-me a perecerde morte infame; mas eu prefiro afrontar a vossa soberbia orgulhosa!...Plantastes, agora, uma árvore de espinhos, cujo fruto, um dia, amargarásem remédio o vosso coração duro e insensível, porque a minha vingançapode tardar, mas, como a vossa alma inflexível e fria, ela será tambémindefectível e tenebrosa!...O judeu não esperou a resposta do seu interlocutor, amargamenteemocionado com a veemência daquelas palavras, saindo do recinto apasso firme e de rosto erguido, como se houvesse obtido os melhoresresultados da sua curta e decisiva entrevista. |
Emannuel | Num misto de orgulho e ansiedade, Públio Lentulus experimentou,naquele instante, as mais variadas gamas de sentimento a dominar-lhe ocoração Desejou determinar a prisão imediata daquele homem que lheatirara em rosto as mais duras verdades, experimentando,simultaneamente, o desejo de chamá-lo a si, prometendo-lhe o regresso dofilho querido, a quem protegeria com o seu prestígio de homem de Estado;mas a voz se lhe sumiu na garganta, naquele complexo de emoções que denovo lhe roubara a paz e a serenidade. Dolorosa opressão paralisou-lhe ascordas vocais, enquanto no coração angustiado repercutiam as palavrascandentes e amarguradas.Uma série de reflexões penosas enfileirou-se no seu mundo íntimo,assinalando os mais fortes conflitos de sentimentos. Também ele não erapai e não procurava reter os filhinhos perto do coração? Aquele homempossuía as mais fortes razões para considerá-lo um espírito injusto eperverso.Recordou o sonho inexplicável que, relatado a Flamínio, fôra a causaindireta da sua vinda para a Judeia e considerou as lágrimas decompunção que derramara, em contacto com o turbilhão de lembrançasperniciosas da sua existência passada, em face de tantos crimes edesvios.Retirou-se do gabinete com a solução mental da questão em foco,ordenando que trouxessem o jovem Saul à sua presença, com a urgênciaque o caso requeria, a fim de recambiá-lo à casa paterna, e modificando,dessa forma, as penosas impressões que havia causado ao pobre André.Suas ordens foram expedidas sem delongas; todavia, esperava-odesagradável surpresa, com as informações dos funcionários a quemcompetia a providência de semelhantes serviços.O jovem Saul desaparecera do cárcere, fazendo crer numa fugadesesperada e imprevista. Os informes foram transmitidos à autoridadesuperior, sem que Públio Lentulus viesse a saber que os maus |
Emannuel | ...servidores do Estado negociavam, muitas vezes, os prisioneiros jovenscom os ambiciosos mercadores de escravos, que operavam nos centrosmais populosos da capital do mundo.Informado de que o prisioneiro se evadira, o senador sentiu aconsciência aliviada das acusações que lhe pesavam no intimo. Afinal,pensou, tratava-se de caso de somenos importância, porquanto o rapaz,distante do cárcere, procuraria imediatamente a casa paterna; e,consolidando sua tranqüilidade, expediu ordens aos dirigentes do serviçode segurança, recomendando se abstivessem de qualquer perseguição aoforagido, a quem se levaria, oportunamente, o indulto da lei.O caminho de Saul, todavia, fôra bem outro.Em quase todas as províncias romanas funcionavam terríveisagrupamentos de malfeitores, que, vivendo à sombra da máquina doEstado, haviam-se transformado em mercadores de consciências.O moço judeu, na sua juventude promissora e sadia, fora vítimadessas criaturas desalmadas. Vendido clandestinamente a poderososescravocratas de Roma, em companhia de muitos outros, foi embarcadono antigo porto de Jope, com destino à Capital do Império.Antecipando-nos na cronologia de nossas narrativas, vamosencontrá-lo, daí a meses, num grande tablado, perto do Fórum, onde sealinhavam, em penosa promiscuidade, homens, mulheres e crianças,quase todos em míseras condições de nudez, tendo cada qual um pequenocartaz pendurado ao pescoço. Olhos chispando sentimentos de vingança,lá se encontrava Saul, seminu, um barrete de lã branca a cobrir-lhe acabeça e com os pés descalços levemente untado de gesso.Junto daquela massa de criaturas desventuradas, passeava umhomem de ar ignóbil e repulsivo, que exclamava em voz gritante para amultidão de curiosos que o rodeava: |
Emannuel | - Cidadãos, tende a bondade de apreciar... Como sabeis, não tenhopressa em dispor da mercadoria, porque não devo a ninguém, mas aquiestou para servir aos ilustres romanos!...E, detendo-se no exame desse ou daquele infeliz, prosseguia na suaarenga grosseira e insultuosa:- Vede este mancebo!... É um exemplar soberbo de saúde,frugalidade e docilidade. Obedece ao primeiro sinal. Atentai bem para oaprumo da sua carne firme. Doença alguma terá força sobre o seuorganismo.Examinai este homem! Sabe falar o grego corretamente e é bem feitoda cabeça aos pés!...Nesses pruridos de negocista, continuou a propaganda individual,em face da multidão de compradores que o assediava, até que tocou a vezdo jovem Saul, que deixava transparecer, no aspecto miserável, os seusímpetos de cólera e sentimentos tigrinos:- Atentai bem neste mancebo! Acaba de chegar da Judeia, como omais belo exemplar de sobriedade e saúde, de obediência e de força. Éuma das mais ricas amostras deste meu lote de hoje. Reparai na suamocidade, ilustres romanos!... Dar-vo-lo-ei ao preço reduzido de cinco milsestércios!...O jovem escravo contemplou o mercador com a alma esfervilhantede ódio e alimentando, intimamente, as mais ferozes promessas devingança. Seu semblante judeu impressionou a multidão que estacionavana praça, aquela manhã, porque um intenso movimento de curiosidade lhecercou a figura interessante e originalíssima.Um homem destacou-se da multidão, procurando o mercador, aquem se dirigiu à meia voz, nestes termos:- Flacus, meu senhor necessita de um rapaz elegante e forte para asbigas dos filhos. Esse |
Emannuel | ...jovem me interessa. Não o darias ao preço de quatro mil sestércios?- Vá lá - murmurou o outro em tom de negócio -, meu interesse ébem servir à ilustre clientela.O comprador era Valério Brutus, capataz dos serviços comuns dacasa de Flamínio Severus, que o incumbira de adquirir um escravo novo ede boa aparência, destinado ao serviço das bigas dos filhos, nos grandesdias das festas romanas.Foi assim que, imbuído de sentimentos ignóbeis e deploráveis, Saul,o filho de André, foi introduzido, pelas forças do destino, junto de Plínio ede Agripa, na residência da família Severus, no coração de Roma, ao preçomiserável de quatro mil sestércios. |
Emannuel | 50IIIEm casa de PilatosA secura da natureza, onde se ergue Jerusalém, proporciona àcélebre cidade uma beleza melancólica, tocada de pungente monotonia.Ao tempo do Cristo, seu aspecto era quase igual ao que hoje seobserva. Apenas a colina de Mizpa, com as suas tradições suaves e lindas,representava um recanto verde e alegre, onde repousavam os olhos doforasteiro, longe da aridez e da ingratidão das paisagens.Todavia, devemos registrar que, na época da permanência de PúblioLentulus e de sua família, Jerusalém acusava novidades e esplendores davida nova. As construções herodianas pululavam nos seus arredores,revelando novo senso estético por parte de Israel. A predileção pelosmonólitos talhados na rocha viva, característica do antigo povo israelita,fora substituída pelas adaptações do gosto judeu às normas gregas,renovando as paisagens interiores da famosa cidade. A jóia maravilhosaera, porém, o Templo, todo novo na época de Jesus. Sua reconstrução fôradeterminada por Herodes, no ano de 21, notando-se que os pórticoslevaram oito anos a edificar-se, e considerando-se, ainda, |
Emannuel | ...que os planos da obra grandiosa, continuados vagarosamente no curso dotempo, somente ficaram concluídos pouco antes de sua completadestruição.Nos pátios imensos, reunia-se diariamente a aristocracia dopensamento israelita, localizando-se ali o fórum, a universidade, o tribunale o templo supremo de toda uma raça.Os próprios processos civis, além das discussões engenhosas deordem teológica, ali recebiam as decisões derradeiras, resumindo-se notemplo imponente e grandioso todas as ambições e atividades de umapátria.Os romanos, respeitando a filosofia religiosa dos povos estranhos,não participavam das teses sutis e dos sofismas debatidos e examinadostodos os dias, mas a Torre Antônia, onde se aquartelavam as forçasarmadas do Império, dominava o recinto. facilitando a fiscalizaçãoconstante de todos os movimentos dos sacerdotes e das massaspopulares.Públio Lentulus, após o incidente do prisioneiro, que continuava aconsiderar como episódio sem importância, retomava certa serenidadepara o desempenho de suas obrigações consuetudinárias. Os aspectosáridos de Jerusalém tinham, para seus olhos cansados, encanto novo, noqual o pensamento repousava das numerosas e intensas fadigas de Roma.Quanto a Lívia, esta guardava o coração voltado para os seus afetosdistantes, analisando a aridez dos espíritos ao alcance do seu convívio.Como por milagre, a pequena Flávia havia melhorado, observando-senotável transformação das feridas que lhe cobriam a epiderme. Mas, asatitudes hostis de Fúlvia, que lhe não perdoava a simplicidade encantadorae os dotes preciosos de inteligência, sem perder ensejo para jogar-lhe emrosto pequeninas indiretas, por vezes irônicas e mordentes, deixavam-lheo espírito aturdido num turbilhão de expectativas alucinantes.Semelhantes acontecimentos |
Emannuel | eram desconhecidos do marido, a quem a pobre senhora se abstinha derelatar os seus mais íntimos desgostos.Esses fatos, porém, não eram os elementos que mais contribuíampara acabrunhá-la naquele ambiente de penosas incertezas.Fazia uma semana que se encontravam na cidade e notava-se que,contrariando talvez seus hábitos, Pôncio Pilatos comparecia diariamente àresidência do pretor, a pretexto de predileção pela palestra com ospatrícios recém-chegados da Corte. Horas a fio eram empregadas nessemister, mas Lívia, com as secretas intuições da sua alma, compreendia ospensamentos inconfessáveis do governador a seu respeito, recebendo deespírito prevenido os seus amáveis madrigais e alusões menos diretas.Nessas aproximações de sentimentos que prenunciam a preamardas paixões, via-se também a contrariedade de Fúlvia, tocada de venenosociúme em face da situação que a atitude de Pilatos ia criando. Por detrásdaqueles bastidores brilhantes do cenário da amizade artificial, com queforam recebidos, Públio e Lívia deveriam compreender que existia ummamei de paixões inferiores, que, certo, haveria de tisnar a tranqüilidadede suas almas. Não entenderam, todavia, os detalhes da situação epenetraram de espírito confiante e ingênuo no caminho escuro e dolorosodas provações que Jerusalém lhes reservava.Reafirmando incessantes obséquios e multiplicando gentilezas,Pilatos fez questão de oferecer um jantar, no qual toda a família sereconfortasse e a fraternidade e a alegria fossem perfeitasNo dia aprazado, Sálvio e Públio, acompanhados pelos seus,compareciam à residência senhorial do governador, onde Cláudiaigualmente os esperava com um sorriso bondoso e acolhedor.Lívia estava pálida, no seu traje simples e despretensioso, sendo denotar que, contra toda a ex- |
Emannuel | ...pectativa do esposo, fizera questão de levar a filhinha doente, nopressuposto de que o seu cuidado materno representasse alguma coisacontra as pretensões do conquistador que o seu coração de mulheradivinhava, através das atitudes indiscretas e atrevidas do anfitriãodaquela noite.O jantar servia-se em condições essencialíssimas, segundo oshábitos mais rigorosos e elegantes da Corte.Lívia estava aturdida com aquelas solenidades a se desdobraremnos mais altos requintes da etiqueta romana, costumes esses oriundos deum meio do qual ela e Calpúrnia sempre se haviam afastado, na suasimplicidade de coração. Numerosa falange d escravos se movimentavaem todas as direções, como verdadeiro exército de servidores, em face detão reduzido número de comensais.Depois dos pratos preparados, chegam os vocadores recitando osnomes dos convivas, enquanto os infertores trazem os pratos dispostoscom singular simetria. Os convidados recostam-se então no triclínio,forrado de penugens cetinosas e pétalas de flores. As carnes são trazidasem pratos de ouro e os pães em açafates de prata, multiplicando-se osservos para todos os misteres, inclusive aqueles que deviam provar asiguarias, a fim de se certificar do seu paladar, para que fossem servidascom a máxima confiança. Os copeiros servem um falerno precioso eantigo, misturado de aromas, em taças incrustadas de pedras preciosas,enquanto outros servos os acompanham apresentando, em galhetas deprata, a água tépida ou fria, ao sabor dos convidados. Junto dos leitos,onde cada comensal deve recostar-se molemente, conservam-se escravosjovens, trajados com apuro e ostentando na fronte gracioso turbante,braços e pernas seminus, cada qual com a sua função definida. Algunsagitam nas mãos longos ramos de mirto, afugentando as moscas,enquanto outros, curvados aos pés dos convi- |
Emannuel | vas, são obrigados a limpar discretamente os sinais da sua gula eintemperança.Quinze serviços diferentes sucederam-se através dos esforços dosescravos dedicados e humildes, quando, após o repasto, brilham os salõescom centenas de tochas, ouvindo-se agradáveis sinfonias. Servos jovens ebem postos executam danças apaixonadas e voluptuosas em homenagemaos seus senhores, mimoseando-lhes os sentimentos inferiores com a suaarte exótica e espontânea, e, somente não foi levado a efeito um númerode gladiadores, segundo o costume nos grandes banquetes da Corte,porque Lívia, de olhos súplices, pedira que poupassem naquela festa odoloroso espetáculo do sangue humano.A noite era das mais cálidas de Jerusalém, motivo por que, findos ojantar e as cerimônias complementares, a caravana de amigos,acompanhada agora de Sulpício Tarquinius, se dirigia para o amplo e bemposto terraço, onde jovens escravas faziam deliciosa música do Oriente.- Não julgava encontrar em Jerusalém uma noite patrícia como esta -exclamou Públio, sensibilizado, dirigindo-se ao governador com respeitosacortesia. - Devo à vossa bondade fidalga e generosa a satisfação de revivero ambiente e a vida inesquecíveis da Corte, onde os romanos distantesguardam o coração e o pensamento.- Senador, esta casa vos pertence - replicou Pilatos com intimidade. -Ignoro se a minha sugestão ser-vos-á agradável, mas só teríamos razãopara agradecer aos deuses, se nos concedêsseis a honrosa alegria de voshospedar aqui, com os vossos dignos familiares. Acredito que a residênciado pretor Sálvio não vos oferece o necessário conforto, e, acrescendo acircunstância do íntimo parentesco que liga minha mulher à esposa devosso tio, sinto-me à vontade para fazer este oferecimento, sem quebra denossos costumes, em sociedade. |
Emannuel | ...- Lá isso não, exclamou por sua vez o pretor, que acompanharaatento a gentileza da oferta. - Eu e Fúlvia nos opomos à realização dessamedida - e, acenando confiante para a consorte, terminava a suaponderação -, não é verdade, minha querida?Fúlvia, porém, deixando transparecer uma ponta de contrariedade,redargüiu, com surpresa de todos os presentes:- De pleno acordo. Públio e Lívia são nossos hóspedes efetivos;contudo, não podemos esquecer que o objetivo de sua viagem se prende àsaúde da filhinha, objeto de todas as nossas preocupações no momento,sendo justo que os não privemos de qualquer recurso que se venha averificar, a favor da pequena enferma...E dirigindo-se instintivamente para o banco de mármore, ondedescansava a doentinha, exclamou com escândalo geral:- Aliás, esta menina representa uma séria preocupação para todosnós. Sua epiderme dilacerada acusa sintomas invulgares, recordando.. -Mas, não conseguiu terminar a exposição de seus receiosescrupulosos, porque Cláudia, alma nobre e digna, constituindo umaantítese da irmã que o destino lhe havia dado, compreendendo a situaçãopenosa que os seus conceitos iam criando, adiantou-se-lhe redargüindo:- Não vejo razões que justifiquem esses temores; suponho apequena Flávia muito melhor e mais forte. Quero crer, até, que bastará oclima de Jerusalém para a sua cura completa.E avançando para a doentinha, como quem desejasse desfazer adolorosa impressão daquelas observações indelicadas, tomou-a nosbraços, osculando-lhe o rosto infantil, coberto de tons violáceos de maldisfarçadas feridas.Lívia, que trazia o semblante afogueado pela humilhação daspalavras de Fúlvia, recebeu a gentileza como bálsamo precioso para assuas inquieta- |
Emannuel | ções maternas; quanto a Públio, este, amargamente surpreendido,considerou a necessidade de reaver a sua serenidade e energia máscula,dissimulando o desgosto que o episódio lhe causara, retomando a direçãoda palestra, sobremaneira comovido:- É verdade, amigos. A saúde da minha pobre Flávia representa oobjeto primordial da nossa longa viagem até aqui. Resolvidos osproblemas do Estado, que me trouxeram a Jerusalém, há alguns dias queexamino a possibilidade de me localizar em qualquer região do interior, demodo que a filhinha possa recuperar o precioso equilíbrio orgânico,aspirando um ar mais puro.- Pois bem - replicou Pilatos, com segurança -, em assuntos declima, sou aqui um homem entendido. Há seis anos que me encontronestas paragens em função do cargo e tenho visitado quase todos osrecantos da província e das regiões vizinhas, tendo motivos para afiançarque a Galileia está em primeiro plano. Sempre que posso repousar doslabores intensos que aqui me prendem, busco imediatamente a nossa vilados arredores de Nazaré, para gozar a serenidade da paisagem e as brisasdeliciosas do seu lago imenso. Concordo em que a distância é muitolonga, mas a verdade é que, se permanecesse nas cercanias da cidade,nas minhas estações de repouso, perderia o tempo, atendendo àssolicitações incessantes dos rabinos do templo, sempre a braços cominumeráveis pendências. Ainda agora, Sulpício terá de partir, a fim desuperintender alguns trabalhos de reparação da nossa residência, poistencionamos seguir para ali dentro de pouco tempo, a refazer as energiasesgotadas na luta cotidiana.Já que a minha hospedagem não vos será necessária em Jerusalém,quem sabe teremos o prazer de hospedar-vos, mais tarde, na vila a que merefiro?- Nobre amigo - exclamou o senador, agradecido -, devo poupar-vostanto trabalho, mas, |
Emannuel | ...ficar-vos-ei imensamente grato se o vosso amigo Sulpício providenciar emNazaré a aquisição de uma casa confortável e simples, que me sirva,reformando-a de conformidade com os nossos hábitos familiares, e ondepossamos residir despreocupadamente por alguns meses.- Com o máximo prazer.- Muito bem - atalhou Cláudia, com bondade, enquanto Fúlvia maldissimulava venenoso despeito -, ficarei incumbida de adaptar a nossa boaLívia à vida campestre, onde a gente se sente tão bem em contacto diretocom a Natureza.- Desde que se não transformem em judias... - disse o senador, bemhumorado, enquanto todos sorriam alegremente.Neste comenos, ouvido sobre os detalhes dos serviços que lheseriam confiados em dias próximos, Sulpício Tarquinius, homem daconfiança do governador, sentiu-se com a liberdade de intervir no assunto,exclamando, com surpresa para quantos o ouviam:- E por falar de Nazaré, já ouvistes falar do seu profeta?- Sim - continuou -, Nazaré possui agora um profeta que vemrealizando grandes coisas.- Que é isso, Sulpício? - perguntou Pilatos, ironicamente - pois nãosabes que dos judeus nascem profetas todos os dias? Acaso as lutas notemplo de Jerusalém se verificam por outra coisa? Todos os doutores daLei se consideram inspirados pelo Céu e cada qual é dono de uma novarevelação.- Mas, esse, senhor, é bem diferente.- Estarás, acaso, convertido a uma nova fé?- De modo algum, mesmo porque compreendo o fanatismo e aobcecação dessas miseráveis criaturas; mas fiquei realmente intrigadocom a figura impressionante de um Galileu ainda moço, quando passava,há alguns dias, por Cafarnaum.Ao centro de uma praça, acomodada em bancos improvisados, feitosde pedra e de areia, vi consi- |
Emannuel | derável multidão que lhe ouvia a palavra, em êxtase de admiração ecomoção...Eu também, como se fôra tocado de força misteriosa e invisível,sentei-me para ouvi-lo.De sua personalidade, extraordinária de beleza simples, vinha um"não sei quê", dominando a turba que se aquietava, de leve, ouvindo-lhe aspromessas de um eterno reinado... Seus cabelos esvoaçavam às brisas datarde mansa, como se fossem fios de luz desconhecida nas claridadesserenas do crepúsculo; e de seus olhos compassivos parecia nascer umaonda de piedade e comiseração infinitas. Descalço e pobre, notava-se-lhe alimpeza da túnica, cuja brancura se casava à leveza dos seus traçosdelicados. Sua palavra era como um cântico de esperança para todos ossofredores do mundo, suspenso entre o céu e a terra, renovando ospensamentos de quantos o escutavam... Falava de nossas grandezas econquistas como se fossem coisas bem miseráveis, fazia amargasafirmativas acerca das obras monumentais de Herodes, em Sebasto,asseverando que acima de César está um Deus Todo-Poderoso,providência de todos os desesperados e de todos os aflitos... No seuensinamento de humildade e amor, considera todos os homens comoirmãos bem-amados, filhos desse Pai de misericórdia e justiça, que nósnão conhecemos...A voz de Sulpício estava saturada do tom emocional característicodos sentimentos filhos da verdade.O auditório se contagiara da comoção de sua narrativa, escutando-lhe a palavra com o maior interesse.Pilatos, todavia, sem perder o fio de suas vaidades de governador,interrompeu-o, exclamando:- Todos irmãos! Isso é um absurdo. A doutrina de um Deus úniconão é novidade para nós outros, nesta terra de ignorantes; mas, nãopodemos concordar com esse conceito de fraternidade |
Emannuel | ...irrestrita. E os escravos? E os vassalos do Império? Onde ficam asprerrogativas do patriciado?O que mais me admira, porém - exclamou com ênfase, dirigindo-separticularmente ao narrador -, é que, sendo tu um homem prático edecidido, te tenhas deixado levar pelas palavras loucas desse novoprofeta, misturando-te com a turba para ouvi-lo. Não sabes que a anuênciade um lictor pode significar enorme prestígio para as idéias dessehomem?- Senhor - respondeu Sulpício, desapontado -, eu próprio não saberiaexplicar a razão de minhas observações daquela tarde. Considerei,igualmente, de pronto, que as doutrinas por ele pregadas são subversivase perigosas, por igualarem os servos aos senhores, mas observei,também, as suas penosas condições de pobreza, consideradas por seusdiscípulos e seguidores como um estado alegre e feliz. o que, de algummodo, não constitui motivo de receio para as autoridades provinciais.Além disso, essas pregações não prejudicam os camponeses,porque são feitas geralmente nas horas de ócio e descanso, no intervalodos trabalhos de cada dia, notando-se igualmente que os seuscompanheiros prediletos são os pescadores mais ignorantes e maishumildes do lago.- Mas, como te deixaste empolgar assim por esse homem? - retornouPilatos, com energia.- Enganais-vos, quanto a isso - respondeu o lictor, mais senhor de si- não me sinto impressionado, como supondes, tanto assim que, notando-lhe a originalidade simples e formosa, não lhe reconheço privilégiossobrenaturais e acredito que a ciência do Império elucidará o fato que vounarrar, respondendo à vossa argüição do momento.Não sei se conheceis Copônio, velho centurião destacado na cidadea que me referi, mas cumpre-me cientificar-vos do fato por mim observado.Depois que a voz do profeta de Nazaré havia deixado uma doce quietudena paisagem, o meu conhe- |
Emannuel | cido apresentou-lhe o filhinho moribundo, implorando caridade para acriança que agonizava. Vi-o elevar os olhos radiosos para o firmamento,como se obsecrasse a bênção dos nossos deuses e, depois, notei quesuas mãos tocavam o menino, que, por sua vez, parecia haverexperimentado um fluxo de vida nova, levantando-se de súbito, a chorar ebuscando o carinho paterno, após descansar no profeta os olhinhosenternecidos...- Mas, até centuriões já se metem com os judeus nas suasperlengas? Preciso comunicar-me com as autoridades de Tiberíades,sobre esses fatos - exclamou o governador, visivelmente contrariado.- O caso é curioso - disse Públio Lentulus, intrigado com a narrativa.- A verdade, contudo, meu amigo - objetou Pilatos, dirigindo-se a ele-, é que nestas paragens nascem religiões todos os dias. Este povo émuito diverso do nosso, reconhecendo-se-lhe visível deficiência deraciocínio e senso prático. Um governador, aqui, não pode deixar-seempolgar pelas figuras e sim manter rígidos os princípios, no sentido desalvaguardar a soberania inviolável do Estado. É por esse motivo que,atendendo às sábias determinações da sede do governo, não me detenhonos casos isolados, para tão somente ponderar as razões dos sacerdotesdo Sinédrio, que representam o órgão do poder legítimo, apto a harmonizarconosco a solução de todos os problemas de ordem política e social.Públio dava-se por satisfeito com o argumento, mas as senhoraspresentes, com exceção de Fúlvia, pareciam fundamente impressionadascom a descrição de Sulpício, inclusive a pequenina Flávia, que lhe beberaas palavras com o máximo de curiosidade infantil.Um véu de preocupações obscurecera a facécia de todos ospresentes, mas o governador não se resignou com a atitude geral,exclamando: |
Emannuel | ...- Ora esta! um lictor que, em vez de fazer a justiça a nosso bem, agecontra nós próprios, obscurecendo o nosso ambiente alegre, merecesevera punição por suas narrativas inoportunas!...Um riso geral seguiu-lhe a palavra ruidosa e leve, enquantorematava:- Desçamos ao jardim para ouvir nova música, desanuviando ocoração desses aborrecimentos imprevistos.A idéia foi aceita com geral agrado.A pequena Flávia foi instalada pela dona da casa em apartamentoconfortável, e, em poucos minutos, os presentes se dividiam em trêsgrupos distintos, através das alamedas do jardim, aclarado de tochasbrilhantes, ao som de músicas caprichosas e lascivas.Públio e Cláudia falavam da paisagem e da natureza; Pilatosmultiplicava gentilezas junto de Lívia, enquanto Sulpício se colocava aolado de Fúlvia, tendo o pretor Lentulus resolvido permanecer no arquivo,examinando algumas obras de arte.Distanciando-se propositadamente dos demais grupos, ogovernador notava a palidez da companheira que, naquela noite, se lhefigurava mais sedutora e mais bela.O respeito que a sua formosura discreta lhe infundia nalma, pareciaaumentar, naquela hora, o ardor do coração apaixonado.- Nobre Lívia - exclamou com emoção -, não posso guardar por maistempo os sentimentos que as vossas virtudes cheias de beleza meinspiraram. Sei da natural repulsa de vossa alma digna, em face de minhaspalavras, mas lamento não me compreendais o coração tocado dessaadmiração que me avassala!...- Também eu - revidou a pobre senhora, com dignidade e energiaespontâneas - lastimo haver inspirado ao vosso espírito semelhantepaixão. Vossas palavras me surpreendem amarga- |
Emannuel | mente, não só porque partem de um patrício revestido das elevadasresponsabilidades de procurador do Estado, como por considerar aamizade confiante e nobre que vos consagra o meu esposo.- Mas, em assuntos do coração - atalhou ele, solícito - não podemprevalecer as formalidades da convenção política, mesmo as maiselevadas. Tenho dos meus deveres a mais alta compreensão e sei encarara solução de todos os problemas do meu cargo, mas não me recordo ondevos teria visto antes!... a realidade é que, há uma semana, tenho o coraçãodilacerado e oprimido... Encontrando-vos, parecia deparar-se-me estaimagem adorada e inesquecida. Tudo fiz por evitar esta cena desagradávele penosa, mas, confesso que uma força invencível me confunde ocoração!...- Enganais-vos, senhor! Entre nós não pode existir outro laço, alémdo inspirado pelo respeito à identidade de nossas condições sociais. Setendes em tão alta conta as vossas obrigações de ordem política, nãodeveis olvidar que o homem público deve cultivar as virtudes da vidaprivada, incentivando, em si mesmo, a veneração e a incorruptibilidade daprópria consciência.- Mas, a vossa personalidade me faz esquecer todos essesimperativos. Onde vos teria visto, afinal, para que me sentisse empolgadodesta maneira?- Calai-vos, pelos deuses! - murmurou Lívia, assustada eempalidecida. - Nunca vos vi, antes de nossa chegada a Jerusalém, e apelopara o vosso cavalheirismo de homem, a fim de me poupardes estasreferências que me amarguram!... Tenho razões para crer na vossa venturaconjugal, junto de uma mulher digna e pura, tal como a vejo, reputandouma loucura as propostas que vossas palavras me deixam entrever...Pilatos ia prosseguir na sua argumentação, quando a pobre senhora,amargamente surpreendida, sentiu-se desfalecer. Debalde mobilizou ela |
Emannuel | ...as suas energias vitais, com o fim de evitar o delíquio.Presa de singular abatimento, encostou-se a uma árvore do jardim,onde se desenrolava a palestra que acabamos de ouvir. Receando asconseqüências, o governador tomou-lhe a mão delicada e mimosa,torturado pelos seus inconfessáveis pensamentos, mas, ao seu contactoligeiro, a natureza orgânica de Lívia parecia reagir com decisão einquebrantável firmeza.Recobrando as forças, fez com a cabeça um leve sinal deagradecimento, enquanto Públio e Cláudia se acercavam de ambos,renovando-se a palestra geral, com a satisfação de todos.Todavia, a cena provocada pelas extravasões de afeto dogovernador não ficou circunscrita apenas aos dois atores que a viveramintensamente.Fúlvia e Sulpício acompanharam-na em seus mínimos detalhes,através dos claros abertos na ramagem sombria.- Ora esta! - exclamou o lictor para a companheira, observando asminudências da palestra que acabamos de descrever. - Então, já perdesteas boas graças do procurador da Judeia?A essa pergunta, Fúlvia, que por sua vez não tirava os olhos da cena,estremeceu convulsivamente, dando guarida aos mais largos sentimentosde ciúme e despeito.- Não respondes? - continuava Sulpício, gozando o espetáculo. -Porque me recusas tantas vezes, se tenho para oferecer-te um sentimentoprofundo de dedicação e lealdade?A interpelada continuou em silêncio, no seu posto de observação,rugindo de cólera íntima, quando viu que o governador guardava, entre assuas, a mão exânime da companheira, pronunciando palavras que seusouvidos não escutavam, mas os seus sentimentos inferiores presumiamadivinhar naquele colóquio inesperado. |
Emannuel | Tão logo, porém, Cláudia e Públio figuraram no cenário, Fúlviavoltou-se para o companheiro, murmurando com voz cava:- Acederei a todos os teus desejos, se me auxiliares numcometimento.- Qual?- O de levarmos ao senador, em tempo oportuno, o conhecimento dainfidelidade de sua mulher.- Mas, como?- Primeiramente, evitarás a instalação de Públio em Nazaré, paralevá-la mais distante, de modo a dificultar as relações entre Lívia e ogovernador, por ocasião de sua ausência de Jerusalém, porque estouadivinhando que ela desejará transferir-se para Nazaré, em breves dias. Emseguida, procurarei interferir, pessoalmente, de maneira que sejasdesignado para proteger o senador na sua estação de repouso e, investidonesse cargo, encaminharás os acontecimentos para consecução denossos planos. Isso feito, saberei recompensar teus esforços e bonsserviços de sempre, com a minha dedicação absoluta.O lictor ouviu a proposta, silenciando, indeciso. Mas a interlocutora,como se estivesse ansiosa por selar a aliança sinistra, interrogou em vozfirme:- Tudo combinado?- De pleno acordo!... - respondeu Sulpício, já resoluto.E as duas personificações do despeito e da lascívia reuniram-se àcaravana fraterna, com a máscara das alegrias aparentes, depois deconcluído o pacto tenebroso.As últimas horas foram consagradas às despedidas, com aafabilidade exterior do convencionalismo social.Lívia absteve-se de relatar ao esposo a cena penosa do jardim,considerando não somente a sua |
Emannuel | ...necessidade de repouso íntimo, como também a importância social daspersonalidades em jogo, prometendo a si mesma evitar, a todo transe,qualquer expressão menos digna no terreno do escândalo pelas palavras. |
Emannuel | 66IVNa GalileiaNo dia imediato a esses acontecimentos, às primeiras horas damanhã, Públio Lentulus foi procurado, na intimidade do seu gabineteparticular, por Fúlvia, que se lhe dirigiu, criminosamente, nestes termos:- Senador, o ascendente de nossas ligações familiares obriga-me aprocurar-vos para tratar de um assunto desagradável e doloroso, mas, nasminhas experiências de mulher, cumpre-me aconselhá-lo a resguardar suaesposa da insídia dos próprios amigos, pois que, ainda ontem, tiveoportunidade de surpreendê-la em íntimo colóquio com o governador...O interpelado estranhou aquela atitude insólita, grosseira, contráriaa todos os seus métodos de homem de bem.Repeliu dignamente a investida, encarecendo a nobreza moral desua esposa, passando Fúlvia a relatar-lhe, com os mais exaltados floreiosde sua imaginação doentia, a cena da véspera, nas suas mínimasminudências. |
Emannuel | ...O senador ficou pensativo, mas sentiu-se com a precisa coragemmoral para repelir a insinuação caluniosa.- Pois bem - disse ela, terminando a denúncia -, muito longe levais avossa confiança e boa fé. Um homem nunca perde por ouvir os conselhosda experiência feminina. A prova de que Lívia caminha na estrada larga daprevaricação tê-la-eis muito breve, porquanto ela há-de preferir a partidaimediata para Nazaré, onde o governador buscará encontrá-la.E, dizendo-o, retirou-se apressadamente, deixando o senador algodesalentado e compungido, pensando nos corações mesquinhos que orodeavam, porque, no tribunal da consciência, não se sentia disposto aaceitar idéia que viesse conspurcar a valorosa nobreza de sua mulher.Imenso véu de sombras cobriu-lhe o espírito sensível e afetuoso.Sentiu que, em Jerusalém, conspiravam contra ele todas as forçastenebrosas do seu destino, experimentando vasto deserto no coração.Ali, não encontraria a palavra prudente e generosa de um amigocomo Flamínio, com quem pudesse desabafar as suas profundas mágoas.Absorto nessas meditações angustiosas, não viu que as pétalas dashoras rodopiavam incessantes, nos torvelinhos do tempo. Só muito depoispercebeu o vozerio de um dos serviçais de confiança, vindo a saber queSulpício Tarquinius lhe solicitava o obséquio de uma entrevista particular,pedido a que atendeu com o máximo de atenção.Admitido ao interior do gabinete, o lictor referiu-se, sem preâmbulos,aos fins da visita, explicando com desembaraço:- Senador, honrado com a vossa confiança no caso de vossatransferência para uma estação de repouso, venho sugerir-vos oarrendamento de rica propriedade pertencente a um nosso compatrício,nos arredores de Cafarnaum, encantadora cidade da |
Emannuel | Galileia, situada no caminho de Damasco. É verdade que já escolhestesNazaré, mas, ao longo da planície de Esdrelon, as casas confortáveis sãomuito raras, acrescendo que seríeis obrigado a enormes dispêndios emserviços de remodelação e benfeitorias. Em Cafarnaum, porém, o caso édiferente. Tenho ali um amigo, Caio Gratus, decidido a arrendar por tempoir determinado a sua esplêndida vila, que é uma herdade provida de todo oconforto, com pomares preciosos, num ambiente de absoluto sossego.O senador ouvia o preposto de Pilatos como se o espírito lhepairasse noutra parte; mas, como se tivesse a atenção subitamentedespertada, exclamou, na atitude de quem argumenta consigo mesmo:- De Jerusalém a Nazaré, temos setenta milhas... Onde ficaCafarnaum?...- Muito distante de Nazaré - obtemperou o lictor, com segundaintenção.- Está bem, Sulpício - respondeu Públio, com ares de quem tomouuma resolução íntima -, estou muito agradecido pela tua gentileza, que nãoesquecerei de recompensar em tempo oportuno. Aceito a tua sugestão quereputo sensata, mesmo porque, de fato, não me pode interessar aaquisição definitiva de qualquer imóvel na Galileia, atenta a necessidadede regressar a Roma, dentro em breve. Ficas autorizado a concluir onegócio, porquanto me louvo nas tuas informações, descansando,confiadamente, no teu conhecimento do assunto.Secreta satisfação transpareceu nos olhos de Sulpício, que sedespediu com fingido reconhecimento.Públio Lentulus descansou novamente os cotovelos na mesa detrabalho, submerso em profundas cismas.Aquela sugestão de Sulpício chegava no instante psicológico desuas angustiosas cogitações, porque, em face dessa nova providência,conseguiria instalar a família longe de qualquer influência da |
Emannuel | ...casa do procurador da Judeia, salvando, assim, a sua reputação dossalpicos ignominiosos da maledicência.A denúncia de Fúlvia, todavia, desdobrava sucessivas preocupaçõesno seu íntimo. Fosse pelo inopinado da calúnia, ou pelo espírito deperversidade com que a mesma fôra urdida, seu pensamento mergulhouem ansiosas expectativas.À noite daquele mesmo dia, após o jantar, vamos encontrá-lo a sóscom Lívia, no terraço da residência do pretor, que, por sua vez, seausentara de casa por algumas horas, em companhia dos seus familiares,para atender a imperativos de certas pragmáticas.Notando-lhe no rosto os sinais evidentes de profunda contrariedade,rompeu a esposa com a encantadora intimidade do seu coração feminino:- Querido, pesa-me ver-te assim, dobrado ao jugo de tamanhosdesgostos, quando esta longa viagem deveria restituir-nos a tranqüilidadenecessária ao desenvolvimento dos teus encargos... Ouso pedir queapresses a nossa mudança de Jerusalém para um ambiente mais calmo,onde nos sintamos mais a sós, fora deste círculo de criaturas cujoshábitos não são os nossos, e cujos sentimentos desconhecemos. Quandopartiremos para Nazaré?...- Para Nazaré? - repetiu o senador, com voz irritada e sombria, comose o tocasse o espírito venenoso do ciúme, lembrando, involuntariamente,as acusações infundadas de Fúlvia.- Sim - prosseguiu Lívia, súplice e carinhosa -, pois não foram essasas providências ontem aventadas?- É verdade, querida! - exclamou Públio, já pesaroso, voltando a sidos maus pensamentos que havia abrigado por um instante - mas resolvidepois instalarmo-nos em Cafarnaum, contrariando as últimas decisões... |
Emannuel | E tomando a mão da companheira, como se buscasse um bálsamopara a alma ferida, sussurrou-lhe de manso:- Lívia, és tudo que me resta neste mundo!... Nossos filhos são floresda tua alma, que os deuses nos deram para minha alegria!... Perdoa-me,querida... Há quanto tempo tenho vivido absorto e taciturno, esquecendo oteu coração sensível e carinhoso! Parece-me estar despertando agora deum sono muito doloroso e muito profundo, mas despertando com a almareceosa e oprimida. Andam-me, no íntimo, amargurados vaticínios... Temoperder-te, quando quisera encerrar-te no peito, guardando-te no coraçãoeternamente... Perdoa-me...Enquanto ela o contemplava, surpresa, seus lábios sequiosos lhecobriam as mãos de beijos ardentes. E não foram apenas os ósculosafetuosos que brotaram nesse transbordamento de carinhos. Uma lágrimalhe gotejou dos olhos cansados, misturando-se às flores da sua afeição.- Que é isso, Públio? Choras? - exclamou Lívia, enternecida eangustiada.- Sim! Sinto os gênios do mal cercando-me o coração e a mente. Meuíntimo está povoado de visões sombrias, prenunciando o fim da nossafelicidade; mas eu sou um homem e sou forte... Querida, não me negues atua mão para atravessarmos juntos o caminho da vida, porque, contigo,vencerei o próprio impossível!...Ela estremeceu em face dessas observações, que lhe não eramfamiliares.Num relance, retrocedeu à noite anterior, considerando oatrevimento do governador, que dignamente repelira, experimentando, aolado da aflição pelo companheiro, soberana tranqüilidade de consciênciae, tomando ligeiramente as mãos do esposo, levou-o a um canto doterraço, onde se postou à frente de uma harpa harmoniosa e antiga,cantando |
Emannuel | ...baixinho, como se a sua voz, naquela noite, fosse o gorjeio de uma cotoviaapunhalada:"Alma gêmea da minhalma,Flor de luz da minha vida,Sublime estrela caídaDas belezas da amplidão!...Quando eu errava no mundoTriste e só, no meu caminho,Chegaste, devagarinho,E encheste-me o coração.Vinhas na bênção dos deuses,Na divina claridade,Tecer-me a felicidade,Em sorrisos de esplendor!...És meu tesouro infinito,Juro-te eterna aliança,Porque eu sou tua esperança,Como és todo o meu amor!"Tratava-se de uma composição dele, na mocidade, tão ao gosto dajuventude romana, dedicada a ela própria, e que o seu talento musicalguardava sempre, para circunstâncias especiais do seu sentimento.Naquele instante, porém, sua voz tinha tonalidades diferentes, comose houvera encerrado na garganta uma toutinegra divina, exilada dosprados brilhantes do Paraíso.Na última nota, tocada de tristeza e angústia indefiníveis, Públiotomou-a brandamente de encontro ao peito, forte e resoluto, como sequisesse reter para sempre, no coração, a sua jóia de inimaginável pureza.Agora, era Lívia a chorar copiosamente nos braços do companheiro,e este a beijá-la nos transportes de sua alma leal e, por vezes, impulsiva.Depois daquele arroubo emotivo, Públio sentiu-se desanuviado esatisfeito. |
Emannuel | - Porque não regressarmos a Roma quanto antes? - perguntou Lívia,como se o seu espírito estivesse clarificado por luzes proféticas, comrelação aos dias futuros. - Junto dos filhinhos retomaríamos nossasobrigações habituais, cientes de que a luta e o sofrimento estão em todosos lugares e de que toda alegria significa, neste mundo, uma bênção dosdeuses!..O senador ponderou a proposta da companheira, estabelecendo aanálise de toda a situação no seu íntimo, obtemperando, por fim:- Tua observação é justa e providencial, minha querida, mas, quediriam os nossos amigos quando soubessem que, depois de tantossacrifícios com a viagem, havíamos resolvido a permanência de apenasuma semana em região tão distante? E a nossa doentinha? Seu organismonão tem reagido de modo eficaz, em contacto com o novo clima?Estejamos confiantes e tranqüilos. Apressarei a partida para Cafarnaum e,em breves dias, estaremos em novo ambiente, segundo os nossosdesejos.Assim aconteceu, efetivamente.Reagindo às vibrações perniciosas do meio, Públio Lentulusprovidenciou a solução de todos os problemas atinentes à mudança,fazendo ouvidos moucos às indiretas de Fúlvia, enquanto Lívia,escudando-se na superioridade de sua alma, buscava insular-se dentro dopequeno mundo de amor dos dois filhinhos, fugindo à presença dogovernador, que não desistira dos seus assédios, e junto de quem a figuranobre de Cláudia sabia despertar em todos a mais sincera simpatia.Duas servas foram admitidas ao serviço do casal, na perspectiva desua transferência para Cafarnaum; não que fossem indispensáveis aodesdobramento das atividades domésticas, em face dos servosnumerosos trazidos de Roma; contudo, o senador examinara a utilidadedessa providência, considerando que ele e a família viriam a necessitar deum contacto mais direto com os costumes e |
Emannuel | ...dialetos do povo, reconhecida a circunstância de que ambas conheciam aGalileia.Ana e Sêmele, recomendadas por amigos do pretor, foram recebidasao serviço de Lívia, que as acolheu com bondade e simpatia.Trinta dias se passaram nos preparativos da projetada viagem.Sulpício Tarquinius, estimulado pelas vantagens dos própriosinteresses materiais, não perdeu ensanchas de captar a plena confiançado senador, organizando a propriedade com minúcias de atenção egentileza, provocando o contentamento e o elogio de todos.Nas vésperas da partida, Públio Lentulus compareceu ao gabinetede Pilatos, para o agradecimento das despedidas.Depois de saudá-lo cordialmente, exclamou o governador, comforçada jovialidade:- É pena, caro amigo, que as circunstâncias o conduzam paraCafarnaum, quando esperava ter a satisfação de retê-lo nas vizinhanças denossa casa, em Nazaré.Mas, enquanto permanecer na Galileia, em vez de minhas habituaisvisitas a Tiberíades, procurarei o norte para nos avistarmos.Públio manifestou-lhe sua gratidão e reconhecimento e, quando sepreparava para sair, o procurador da Judeia continuou, em tom afetuoso econselheiral:- Senador, não só como responsável pela situação dos patrícios naprovíncia, como também na qualidade de amigo sincero, não posso deixá-lo partir à mercê do acaso, tão somente na companhia de escravos eservos de confiança. Acabo de designar Sulpício, homem que me mereceinteira confiança, para dirigir os serviços de segurança que vos sãodevidos. Além dele, mais um lictor e alguns centuriões partirão paraCafarnaum, onde permanecerão às suas ordens. |
Emannuel | Públio agradeceu cortesmente, sentindo-se confortado com ooferecimento, embora a pessoa do governador lhe causasse poucasimpatia íntima.Afinal, terminados os aprestos de viagem, a compacta caravana sepôs em movimento, atravessando os territórios de Judá e as montanhasverdes da Samaria, em demanda da sua estação de destino.Alguns dias foram gastos através das estradas que contornammuitas vezes as águas leves e límpidas do Jordão.Prestes a chegar a Cafarnaum, à distância de meio quilômetro decaminho, entre árvores frondosas, junto ao lago de Genesaré, umaherdade imponente aguardava as nossas personagens para a sua estaçãode repouso.Sulpício Tarquinius desvelara-se nas mais íntimas minudências, noque dizia com o bom gosto da época.A propriedade estava situada em pequena elevação de terreno,rodeada de árvores frutíferas dos climas frios, pois, há dois mil anos, aGalileia, hoje transformada em poeirento deserto, era um paraíso deverdura. Nas suas paisagens maravilhosas, desabrochavam flores detodos os climas. Seu lago imenso, formado pelas águas cristalinas do riosagrado do Cristianismo, era talvez a mais piscosa bacia em todo omundo, descansando as suas vagas mansas e preguiçosas ao pé dosarbustos ricos de seiva, cujas raízes se tocavam do perfume agreste doseloendros e das flores silvestres. Nuvens de aves cariciosas cobriam, embandos compactos, aquelas águas feitas de um prodigioso azul celeste,hoje encarceradas entre rochedos adustos e ardentes.Ao norte, as eminências nevosas do Hermon figuravam-se em linhasalegres e brancas, divisando-se ao ocidente as alevantadas planícies daGaulanítida e da Pereia, envolvidas de sol, formando, juntas, um grandesocalco que se alonga de Cesareia de Filipe para o sul. |
Emannuel | ...Uma vegetação maravilhosa e única, operando a emanaçãoincessante do ar mais puro, temperava o calor da região, onde o lago selocaliza, muito abaixo do nível do Mediterrâneo.Públio e sua mulher sentiram uma onda de vida nova, que seuspulmões aspiravam a longos haustos.Entretanto, o mesmo não acontecia à pequenina Flávia, cujo estadogeral piorava ao extremo, contra todas as previsões.Agravaram-se as feridas que lhe cobriam o corpo magrinho e apobre criança não conseguia mais arredar pé do leito, onde se conservavaem profunda prostração.Acentuava-se, desse modo, a angústia paterna que, embalde,recorreu a todos os meios para melhorar as condições da doentinha.Um mês havia transcorrido em Cafarnaum, onde, mais em contactocom os dialetos do povo, já não lhes era desconhecida a fama das obras edas pregações de Jesus.Vezes inúmeras, pensou Públio em dirigir-se ao taumaturgo, a fim desolicitar a sua intervenção a favor da filhinha, atendendo a um apelosecreto do coração. Reconhecia no íntimo, porém, que semelhante atituderepresentava humilhação para a sua posição política e social, aos olhosdos plebeus e vassalos do Império, examinando as conseqüências quepoderiam advir de tal procedimento.Não obstante essas ponderações, permitia que numerosos servosde sua casa assistissem, aos sábados, às pregações do profeta de Nazaré,inclusive Ana, que se tomara de respeitosa veneração por aquele a quemos humildes chamavam Mestre.Dele teciam os escravos as mais encantadoras histórias, nas quais osenador nada via, além dos arrebatamentos instintivos da alma popular, sebem não deixasse de o surpreender a opinião lisonjeira de um homemcomo Sulpício. |
Emannuel | Uma tarde, porém, os padecimentos da pequenina haviam atingido oauge. Além das feridas que, de muitos anos, se haviam multiplicado nocorpinho gracioso, outras úlceras surgiram nas regiões da epiderme, antesvioláceas, transformando-lhe os órgãos delicados numa pústula viva.Públio e Lívia, intimamente consternados, aguardavam um fimpróximo.Nesse dia, após o jantar muito simples, Sulpício demorou-se atémais tarde, a pretexto de confortar o senador com a sua presença.É assim que vamos encontrá-los ambos no terraço espaçoso, ondePúblio lhe fala nestes termos:- Meu amigo, que me diz desses rumores aqui propalados acerca doprofeta de Nazaré? Habituado a não dar ouvidos à palavra ignorante dopovo, gostaria de ouvir novamente as suas impressões sobre esse homemextraordinário.- Ah! sim - diz Sulpício, como quem se esforça por se lembrar dealguma coisa -, intrigado com aquela cena que há tempos presenciei e quetive ocasião de relatar na residência do governador, tenho procuradoseguir as atividades desse homem, na medida das minhas possibilidadesde tempo.Alguns compatrícios nossos o têm na conta de visionário, opiniãoque compartilho no que se refere às suas prédicas, cheias de parábolasincompreensíveis, mas não no que respeita às suas obras, que nos tocamo coração.O povo de Cafarnaum anda maravilhado com os seus milagres eposso assegurar-vos que, em torno dele, já se formou uma comunidade dediscípulos dedicados, que se dispõem a segui-lo por toda parte.- Mas, afinal, que ensina ele às multidões? - perguntou Públio,interessado.- Prega alguns princípios que ferem as nossas mais antigastradições, como, por exemplo, a doutrina do amor aos próprios inimigos ea fraternidade absoluta entre todos os homens. Exorta os |
Emannuel | ouvintes a buscarem o reino de Deus e a sua justiça, mas não se trata deJúpiter, o senhor de nossas divindades; ao contrário, fala de um Paimisericordioso e compassivo, que nos segue do Olimpo e para quem estãopatentes as nossas idéias mais secretas. De outras vezes, o profeta deNazaré se expressa acerca desse reino do céu com apólogos interessantese incompreensíveis, nos quais há reis e príncipes criados pela suaimaginação sonhadora, que nunca poderiam ter existido.O pior, todavia - rematou Sulpício, emprestando grave entono àspalavras -, é que esse homem singular, com esses princípios de um novoreino, avulta na mentalidade popular como um príncipe surgido parareivindicar prerrogativas e direitos dos judeus, dos quais, talvez, queiraassumir a direção algum dia...- Que providência adotam as autoridades da Galileia, no examedessas idéias revolucionárias? - indagou o senador, com maior interesse- Aparecem já os primeiros indícios de reação, por parte doselementos mais ligados a Ântipas. Há alguns dias, quando passei porTiberíades, notei que se formavam algumas correntes de opinião, nosentido de levar o assunto à consideração das altas autoridades.- Bem se vê - exclamou o senador - que se trata de simples homemdo povo, a quem o fanatismo dos templos judaicos encheu de pruridos dereivindicações injustificáveis. Suponho que a autoridade administrativanada tem a recear de semelhante pregador, mestre de uma humildade efraternidade incompatíveis com as conquistas contemporâneas. Por outrolado, ao ouvir de tua boca a descrição dos seus feitos, sinto que essehomem não pode ser criatura tão vulgar, como vimos supondo.- Desejaríeis conhecê-lo mais de perto? - perguntou Sulpício,atencioso. |
Emannuel | - De modo algum - respondeu Públio, alardeando superioridade. - Talcometimento de minha parte viria quebrar a compostura dos deveres queme competem como homem de Estado, desmoralizando-se minhaautoridade perante o povo. Aliás, considero que os sacerdotes epregadores da Palestina deveriam fazer estágios de trabalho e de estudo,na sede do governo imperial, a fim de renovar-se esse espírito deprofetismo que aqui se observa em toda parte. Em contacto com oprogresso de Roma, haveriam de reformar suas concepções íntimasacerca da vida, da sociedade, da religião e da política.Enquanto os dois mantêm essa palestra sobre a personalidade e osensinos do mestre de Nazaré, penetremos no interior da casa.No quarto da doentinha, vamos encontrar Lívia e Ana pensando asferidas que cobriam a epiderme da pequenina enferma, agoratransformadas em uma só úlcera generalizada.Ana, coração bondoso e meigo, pouco mais velha que sua senhora,se havia transformado em companheira predileta, no círculo dos seusafazeres domésticos. Naquele deserto de corações, era naquela serva,inteligente e afetuosa, que a alma sensível de Lívia encontrara um oásispara as confidências e lutas de cada dia.- Ah! senhora - exclamava a serva, com sincero carinho a lhetransparecer dos olhos e dos gestos -, guardo no coração profunda fé nosmilagres do Mestre, acreditando mesmo que, se levássemos esta criançapara receber a bênção de suas mãos, sarariam as chagas e ela ressurgiriapara o seu amor maternal... Quem sabe?- Infelizmente - respondeu Lívia, com ponderação e tristeza - eu nãome atreveria a lembrar essa providência, consciente de que Públio haveriade recusá-la, dada a nossa posição social; mas, francamente, desejaria veresse homem caridoso e extraordinário de que sempre me falas. |
Emannuel | ...- Ainda no último sábado, senhora - respondeu a serva, animadapelas palavras de simpatia que acabava de ouvir -, o profeta de Nazarérecebeu nos braços numerosas crianças.Ao sair da barca de Simão, nós o esperávamos em massa, para lhebeber os ensinos consoladores. Precipitamo-nos para ele, ansiosos todosde receber ao mesmo tempo os sagrados eflúvios da sua presençaconfortadora, mas, nesse dia, muitas mães compareceram à prédica,conduzindo os filhinhos que se confundiam em algazarra ensurdecedora,como um bando de passarinhos inconscientes. Simão e mais algunsdiscípulos começaram a repreender severamente os meninos, a fim de quenão perdêssemos o encanto suave e doce das palavras do Mestre. Mas,quando menos esperávamos, sentou-se Ele na pedra costumeira eexclamou com indizível ternura: - "Deixai vir a mim os pequeninos, porqueo reino do céu lhes pertence." Houve, então, prodigioso silêncio entre osouvintes de Cafarnaum e os peregrinos que haviam chegado de Corazim ede Magdala, enquanto aqueles petizes trêfegos acorriam ao seu regaçoamoroso, beijando-lhe a túnica com indefinível alegria.Muitas crianças eram enfermas que as mães conduziam àspregações do lago, para que se curassem de mazelas antigas, ou dedoenças consideradas incuráveis...- O que me contas é de uma beleza edificante - exclamou Lívia,profundamente emocionada -; entretanto, possuindo à mão todos osrecursos materiais, sinto que não poderei receber os altos benefícios doteu Mestre.- E é pena, senhora, porque muitas mulheres de posição oacompanham na cidade. Não somos apenas os mais humildes quecomparecemos às suas predicações, mas numerosas senhoras dedestaque em Cafarnaum, esposas de funcionários de Herodes e depublicanos, assistem às lições carinhosas do lago, confundindo-se com ospobres e os escravos. |
Emannuel | E o profeta não desdenha a ninguém. A todos convida para o reinode Deus e sua justiça. Contrariamente a todos os enviados do céu, queconhecemos, ele se esquiva dos favorecidos da sorte, para manterrelações com as criaturas mais infelizes, considerando a todos comoirmãos muito amados do seu coração...Lívia escutava a palavra da serva com atenção e embevecimento. Afigura daquele homem, famoso e bom, exercia atração singular no seuespírito.E, enquanto seus grandes olhos expressavam o maior interessepelas narrações encantadoras e simples da serva leal, não reparavamambas que a doentinha as acompanhava com aguçada curiosidade,característica das almas infantis, não obstante a febre alta que lhedevorava o organismo.Neste comenos, o senador, após as despedidas de Sulpício, busca oapartamento da pequena enferma, satisfazendo à sua ansiedade paternal.Diante dele, calam-se as duas mulheres, entregando-se tão somenteaos afazeres que as retinham junto ao leito da pequenina, agora gemendodolorosamente.Públio Lentulus debruçou-se sobre o leito da filha, com os olhosrasos de pranto.Brincou com as suas mãozinhas mirradas e feridas, fazendo-lhefestas, com o coração tocado de infinita amargura.- Filhinha, que queres hoje para dormir melhor? - perguntou com avoz estrangulada, arrancando lágrimas dos olhos de Lívia.Comprar-te-ei muitos brinquedos e muitas novidades... Dize ao papaio que desejas...Copioso suor empastava as excrescências ulcerosas da doentinha,que deixava transparecer angustiosa ansiedade. Notava-se-lhe grandeesforço, como se estivesse realizando o impossível para responder àpergunta paterna. |
Emannuel | ...- Fala, filhinha - murmurava Públio, sufocado, observando-lhe odesejo de expressar qualquer resposta.Buscarei tudo que quiseres... Mandarei a Roma um portador,especialmente para trazer todos os teus brinquedos...Ao cabo de visível esforço, pôde a pequenina murmurar com vozcansada e quase imperceptível:- Papai... eu quero... o profeta... de Nazaré...O senador baixou os olhos, humilhado e confundido em face doimprevisto daquela resposta, enquanto Lívia e Ana, como se fossemtocadas por força invisível e misteriosa, pelo inopinado da cena,escondiam o rosto inundado de pranto. |
Emannuel | 82VO Messias de NazaréO dia seguinte amanheceu trazendo as mais sérias preocupações aPúblio e sua família.Ainda cedo, vamos encontrá-lo em íntimo colóquio com a esposa,que se lhe dirige em voz súplice e afetuosa:- Considero, querido, que devias atenuar um pouco os rigores daposição em que o destino nos colocou, procurando esse homemgeneroso, para benefício de nossa filha. Todos se referem às suas ações,empolgados por sua bondade edificadora, e eu acredito que o seu coraçãose apiedará da nossa desditosa situação.O senador ouviu-a apreensivo e incerto, exclamando afinal:- Pois bem, Lívia; acederei aos teus desejos, mas só a angústia quenos vai nalma me faz transigir, de maneira tão rude, com os meusprincípios.Não procederei, todavia, conforme sugeres. Irei sozinho à cidade,como se me encontrasse em hora de simples entretenimento, passandopelo trecho do caminho que nos conduz às margens do lago, sem chegarao cúmulo de abordar pessoalmente o pro- |
Emannuel | ...feta, de modo a não descer da minha dignidade social e política, e, no casode sobrevir alguma circunstância favorável, far-lhe-ei sentir o prazer quenos causaria a sua visita, com o fim de reanimar a nossa doentinha.- Muito bem! - disse Lívia, entre confortada e agradecida - guardonalma a mais sincera e profunda fé. Vai sim, querido!... Ficarei rogando abênção dos céus para a nossa iniciativa. O profeta, que agora surge comoverdadeiro médico das almas, saberá que atrás da tua posição de senadordo Império, há corações que sofrem e choram!...Públio notou que a esposa se exaltava nas suas considerações,deixando-se conduzir pelo que julgava um excesso de fraqueza epieguismo; entretanto, nada lhe admoestou a respeito, em face dasamarguras do momento, suscetível de desvairar o cérebro mais forte.Deixou que as horas movimentadas do dia se escoassem com asclaridades do poente e, quando o crepúsculo entornava as suas meias-tintas na paisagem maravilhosa, saiu, fingindo distração e alheamento,como se desejasse conhecer de perto a antiga fonte da cidade, motivo deatração para todos os forasteiros.Após haver percorrido uns trezentos metros de caminho, encontroutranseuntes e pescadores, que se recolhiam e o encaravam com maldisfarçada curiosidade.Uma hora passou sobre as suas amargas cogitações íntimas.Um velário imenso de sombras invadia toda a região, cheia devitalidade e de perfumes.Onde estaria o profeta de Nazaré naquele instante? Não seria umailusão a história dos seus milagres e da sua encantadora magia sobre asalmas? Não seria um absurdo procurá-lo ao longo dos caminhos,abstraindo-se dos imperativos da hierarquia social? Em todo caso, deveriatratar-se |
Emannuel | de homem simples e ignorante, dada a sua preferência por Cafarnaum epelos pescadores.Dando curso às idéias que lhe fluíam da mente incendiada e abatida,Públio Lentulus considerou dificílima a hipótese do seu encontro com omestre de Nazaré.Como se entenderiam?Não lhe interessara o conhecimento minucioso dos dialetos do povoe, certamente, Jesus lhe falaria no aramaico comumente usado na bacia deTiberíades.Profundas cismas entornavam-lhe do cérebro para o coração, comoas sombras do crepúsculo que precediam a noite.O céu, porém, àquela hora, era de um azul maravilhoso, enquanto asclaridades opalinas do luar não haviam esperado o fechamento absolutodo leque imenso da noite.O senador sentiu o coração perdido num abismo de cogitaçõesinfinitas, ouvindo-lhe o palpitar descompassado no peito opresso.Dolorosa emoção lhe compungia agora as fibras mais íntimas do espírito.Apoiara-se, insensivelmente, num banco de pedras enfeitado de silvas, edeixara-se ali ficar, sondando o ilimitado do pensamento.Nunca experimentara sensação idêntica, senão no sonhomemorável, relatado unicamente a Flamínio.Recordava-se dos menores feitos da sua vida terrestre, afigurando-se-lhe haver abandonado, temporariamente, o cárcere do corpo material.Sentia profundo êxtase, diante da Natureza e das suas maravilhas, semsaber como expressar a admiração e reconhecimento aos poderescelestes, tal a clausura em que sempre mantivera o coração insubmisso eorgulhoso.Das águas mansas do lago de Genesaré parecia-lhe emanaremsuavíssimos perfumes, casando-se deliciosamente ao aroma agreste dafolhagem. |
Emannuel | ...Foi nesse instante que, com o espírito como se estivesse sob oimpério de estranho e suave magnetismo, ouviu passos brandos dealguém que buscava aquele sítio.Diante de seus olhos ansiosos, estacara personalidadeinconfundível e única. Tratava-se de um homem ainda moço, que deixavatransparecer nos olhos, profundamente misericordiosos, uma belezasuave e indefinível. Longos e sedosos cabelos molduravam-lhe osemblante compassivo, como se fossem fios castanhos, levementedourados por luz desconhecida. Sorriso divino, revelando ao mesmotempo bondade imensa e singular energia, irradiava da sua melancólica emajestosa figura uma fascinação irresistível.Públio Lentulus não teve dificuldade em identificar aquela criaturaimpressionante, mas, no seu coração marulhavam ondas de sentimentosque, até então, lhe eram ignorados. Nem a sua apresentação a Tíbério, nasmagnificências de Capri, lhe havia imprimido tal emotividade ao coração.Lágrimas ardentes rolaram-lhe dos olhos, que raras vezes haviam chorado,e força misteriosa e invencível fê-lo ajoelhar-se na relva lavada em luar.Desejou falar, mas tinha o peito sufocado e opresso. Foi quando, então,num gesto de doce e soberana bondade, o meigo Nazareno caminhou paraele, qual visão concretizada de um dos deuses de suas antigas crenças, e,pousando carinhosamente a destra em sua fronte, exclamou em linguagemencantadora, que Públio entendeu perfeitamente, como se ouvisse oidioma patrício, dando-lhe a inesquecível impressão de que a palavra erade espírito para espírito, de coração para coração:- Senador, porque me procuras? - e, espraiando o olhar profundo napaisagem, como se desejasse que a sua voz fosse ouvida por todos oshomens do planeta, rematou com serena nobreza: - Fôra melhor que meprocurasses publicamente e na hora mais clara do dia, para que pudessesadquirir, |
Emannuel | de uma só vez e para toda a vida, a lição sublime da fé e da humildade...Mas, eu não vim ao mundo para derrogar as leis supremas da Natureza evenho ao encontro do teu coração desfalecido!...Públio Lentulus nada pôde exprimir, além das suas lágrimascopiosas, pensando amargamente na filhinha; mas o profeta, como seprescindisse das suas palavras articuladas, continuou:- Sim... não venho buscar o homem de Estado, superficial eorgulhoso, que só os séculos de sofrimento podem encaminhar ao regaçode meu Pai; venho atender às súplicas de um coração desditoso eoprimido e, ainda assim, meu amigo, não é o teu sentimento que salva afilhinha leprosa e desvalida pela ciência do mundo, porque tens ainda arazão egoística e humana; é, sim, a fé e o amor de tua mulher, porque a féé divina... Basta um raio só de suas energias poderosas para que sepulverizem todos os monumentos das vaidades da Terra...Comovido e magnetizado, o senador considerou, intimamente, queseu espírito pairava numa atmosfera de sonho, tais as comoçõesdesconhecidas e imprevistas que se lhe represavam no coração, querendocrer que os seus sentidos reais se achavam travados num jogoincompreensível de completa ilusão.- Não, meu amigo, não estás sonhando... - exclamou meigo eenérgico o Mestre, adivinhando-lhe os pensamentos. - Depois de longosanos de desvio do bom caminho, pelo sendal dos erros clamorosos,encontras, hoje, um ponto de referência para a regeneração de toda a tuavida.Está, porém, no teu querer o aproveitá-lo agora, ou daqui a algunsmilênios... Se o desdobramento da vida humana está subordinado àscircunstâncias, és obrigado a considerar que elas existem de toda anatureza, cumprindo às criaturas a obrigação de exercitar o poder davontade e do |
Emannuel | ...sentimento, buscando aproximar seus destinos das correntes do bem e doamor aos semelhantes.Soa para teu espírito, neste momento, um minuto glorioso, seconseguires utilizar tua liberdade para que seja ele, em teu coração,doravante, um cântico de amor, de humildade e de fé, na horaindeterminável da redenção, dentro da eternidade...Mas, ninguém poderá agir contra a tua própria consciência, sequiseres desprezar indefinidamente este minuto ditoso!Pastor das almas humanas, desde a formação deste planeta, hámuitos milênios venho procurando reunir as ovelhas tresmalhadas,tentando trazer-lhes ao coração as alegrias eternas do reinado de Deus ede sua justiça!Públio fitou aquele homem extraordinário, cujo desassombroprovocava admiração e espanto.Humildade? que credenciais lhe apresentava o profeta para lhe falarassim, a ele senador do Império, revestido de todos os poderes diante deum vassalo?Num minuto, lembrou a cidade dos césares, coberta de triunfos eglórias, cujos monumentos e poderes acreditava, naquele momento,fossem imortais.- Todos os poderes do teu império são bem fracos e todas as suasriquezas bem miseráveis.As magnificências dos césares são ilusões efêmeras de um dia,porque todos os sábios, como todos os guerreiros, são chamados nomomento oportuno aos tribunais da justiça de meu Pai que está no Céu.Um dia, deixarão de existir as suas águias poderosas, sob um punhado decinzas misérrimas. Suas ciências se transformarão ao sopro dos esforçosde outros trabalhadores mais dignos do progresso, suas leis iníquas serãotragadas no abismo tenebroso destes séculos de impiedade, porque sóuma lei existe e sobreviverá aos escombros da inquietação do homem - alei do amor, instituída por meu Pai, desde o princípio da criação... |
Emannuel | Agora, volta ao lar, consciente das responsabilidades do teudestino...Se a fé instituiu na tua casa o que consideras a alegria com orestabelecimento de tua filha, não te esqueças que isso representa umagravo de deveres para o teu coração, diante de nosso Pai, Todo-Poderoso!...O senador quis falar, mas a voz tornara-se-lhe embargada decomoção e de profundos sentimentos.Desejou retirar-se, porém, nesse momento, notou que o profeta deNazaré se transfigurava, de olhos fitos no céu...Aquele sítio deveria ser um santuário de suas meditações e de suaspreces, no coração perfumado da Natureza, porque Públio adivinhou queele orava intensamente, observando que lágrimas copiosas lhe lavavam orosto, banhado então por uma claridade branda, evidenciando a sua belezaserena e indefinível melancolia..Nesse instante, contudo, suave torpor paralisou as faculdades deobservação do patrício, que se aquietou estarrecido.Deviam ser vinte e uma horas, quando o senador sentiu quedespertava.Leve aragem acariciava-lhe os cabelos e a Lua entornava seus raiosargênteos no espelho carinhoso e imenso das águas.Guardando na memória os mínimos pormenores daquele minutoinesquecível, Públio sentiu-se humilhado e diminuído, em face da fraquezade que dera testemunho diante daquele homem extraordinário.Uma torrente de idéias antagônicas represava-se-lhe no cérebro,acerca de suas admoestações e daquelas palavras agora arquivadas parasempre no âmago da sua consciência.Também Roma não possuía os seus feiticeiros? Buscou rememorartodos os dramas misteriosos da cidade distante, com as suas figurasimpressionantes e incompreensíveis. |
Emannuel | ...Não seria aquele homem uma cópia fiel dos magos e adivinhos quepreocupavam igualmente a sociedade romana?Deveria ele, então, abandonar as suas mais caras tradições de pátriae família para tornar-se um homem humilde e irmão de todas as criaturas?Sorria consigo mesmo, na sua presumida superioridade, examinando ainanidade daquelas exortações que considerava desprezíveis. Entretanto,subiam-lhe do coração ao cérebro outros apelos comovedores. Não falarao profeta da oportunidade única e maravilhosa? Não prometera, comfirmeza, a cura da filhinha à conta da fé ardente de Lívia?Mergulhado nessas cogitações íntimas, abriu cautelosamente aporta da residência, encaminhando-se ansioso ao quarto da enferma e, oh!suave milagre! a filhinha repousava nos braços de Lívia, com absolutaserenidade.Sobre-humana e desconhecida força mitigara-lhe os padecimentosatrozes, porque seus olhos deixavam entrever uma doce satisfaçãoinfantil, iluminando-lhe o semblante risonho. Lívia contou-lhe, então, cheiade júbilo maternal, que, em dado momento, a pequenina disseraexperimentar na fronte o contacto de mãos carinhosas, sentando-se emseguida no leito, como se uma energia misteriosa lhe vitalizasse oorganismo de maneira imprevista. Alimentara-se, a febre desapareceracontra todas as expectativas; ela já revelava atitudes de convalescentepalestrando com a mãezinha, com a graça espontânea da sua meninice.Terminado o relato, a jovem senhora concluiu com entusiasmo:- Desde que saíste, eu e Ana oramos com fervor junto da nossadoentinha, implorando ao profeta que atendesse ao teu apelo, ouvindo osnossos rogos e, agora, eis que a nossa filhinha se restabelece!... Poderá,querido, haver felicidade maior do que esta?... Ah! Jesus deve ser umemissário direto de Júpiter, enviado a este mundo |
Emannuel | em gloriosa missão de amor e de alegria para todas as almas!...Ana, porém, que escutava comovida, interveio num gestoespontâneo e incoercível, oriundo da grata satisfação daquele momento.- Não, minha senhora!... Jesus não vem da parte de Júpiter. Ele é oFilho de Deus, seu Pai e nosso Pai que está nos céus, e cujo coração estásempre cheio de bondade e misericórdia para todos os seres, conforme oMestre nos ensina. Louvemos, pois, o Todo-Poderoso, pela graça recebida,agradecendo a Jesus com uma prece de humildade...Públio Lentulus acompanhou a cena, em silêncio, intimamentecontrariado, com o verificar a intimidade estreita de sua mulher com umasimples serva da casa. Observou, com profundo desagrado, não só aespontaneidade da gratidão entusiástica de Lívia, como a intromissão deAna na conversa, o que considerava ousadia. Num relance, mobilizoutodas as reservas do seu orgulho para restabelecer a disciplina interna dasua casa, e, retomando o aspecto altivo da sua expressão fisionômica,dirigiu-se secamente à esposa.- Lívia, torna-se preciso que te coíbas destes arrebatamentos! Afinal,não vejo nada de extraordinário no que acaba de ocorrer. Nada tem faltadoà nossa doente, no tocante ao tratamento e cuidados necessários, e eralógico que esperássemos uma reação salutar do organismo, em face danossa continuada assistência.Quanto a ti, Ana - disse, voltando-se com arrogância para a servaintimidada -, acredito já cumprida a missão que te fazia demorar nestequarto, porquanto, considerando as melhoras da menina, não vejonecessidade da tua permanência junto da patroa, que trouxe de Roma asservas do seu serviço pessoal.Ana fitou compungidamente a senhora, que mostrava no rosto ossinais evidentes da sua amargura pelo imprevisto daquelas palavrasintempes- |
Emannuel | ...tivas, e, fazendo ligeira e respeitosa mesura, saiu do aposento onde haviaempregado as melhores energias da sua fraternal abnegação.- Que é isso, Públio? - perguntou Lívia, fundamente comovida. -Justamente agora, quando deveríamos mostrar à dedicada serva a alegriado nosso reconhecimento, procedes com semelhante aspereza?- Tuas infantilidades obrigam-me a fazê-lo. Que dirão da matrona quese dá de alma aberta às suas escravas mais humildes? Como se haverá oteu coração com estes excessos de confiança? Noto com desgosto queentre nós existem, agora, profundas divergências. Porque essa demasiadaconfiança no profeta de Nazaré, quando ele não é superior aos magos efeiticeiros de Roma? E, além disso, onde colocas as tradições de nossasdivindades familiares, se não sabes guardar a fé em torno do altardoméstico?- Não concordo contigo, querido, nestas ponderações. Tenho plenaconvicção de que a nossa Flávia foi curada por esse homemextraordinário... No instante de sua melhora súbita, quando ela nos falavadas mãos sublimadas que a acariciavam, vi, com os meus olhos, que oleito da doentinha estava saturado de luz diferente, como nunca haviavisto, até então...- Luz diferente? Certo desvairas, depois de tantas fadigas; ou entãoestás contagiada das alucinações deste povo de fanáticos, em cujo seiotivemos a pouca sorte de cair...- Não, meu amigo, não se trata de desvario. Não obstante as tuaspalavras, que reconheço partidas do coração que mais adoro e admiro naTerra, tenho a certeza de que o Mestre de Nazaré acaba de curar nossafilhinha; e, quanto a Ana, querido, acho injusta a tua atitude, aliás, emdesacordo com a tua proverbial generosidade com os servos de nossacasa. Não podemos nem devemos esquecer que ela tem sido de umadedicação a toda prova, |
Emannuel | junto de mim e de nossa filha, nestes lugares ermos. Outras podem ser assuas crenças, mas presumo que a sua conduta honesta e santificante sópode honrar o serviço de nossa casa.O senador considerou a elevação dos conceitos da mulher,sentindo-se arrependido do seu ato de impulsividade, e capitulou diante dobom-senso daquelas palavras.- Está bem, Lívia, aprecio-te a nobreza do coração e estimarei acontinuidade de Ana nos teus serviços privados; mas, não transijo no casoda cura de nossa filhinha. Não admito que se atribua ao mago de Nazaré orestabelecimento da mesma. Quanto ao mais, deverás lembrar, sempre,que me apraz saber só a mim reservada a tua confiança e intimidade. Aservos ou desconhecidos não deve o patrício, e com especialidade amatrona romana abrir as portas do coração.- Sabes como acato as tuas ordens - disse-lhe a esposa, maisconfortada, dirigindo-lhe um olhar carinhoso e agradecido - e peço-teperdoar-me se te ofendi a alma generosa e sensível!...- Não, minha querida, se existe aqui um problema de perdão, sou euquem devo pedi-lo, mas não desconheces que esta região me atormenta eapavora. Sinto-me confortado, reconhecendo a reação benéfica danatureza orgânica da nossa filhinha, porque isto significa o nossoregresso a Roma em tempo breve. Esperaremos, apenas, mais alguns dias,e amanhã mesmo pedirei a Sulpício iniciar as providências para a nossavolta.Lívia concordou com as observações do marido, acariciando afilhinha reanimada e refeita do abatimento profundo que a prostrara porespaço de muitos dias. Intimamente, agradecia, satisfeita, a Jesus, poisfalava-lhe o coração que o acontecimento era uma bênção que o Pai dosCéus lhe enviara ao espírito maternal, através das mãos caridosas esantas do Mestre. |
Emannuel | ...Públio, contudo, obedecendo ao impulso de suas vaidades pessoais,não desejava recordar a figura extraordinária que tivera ante os olhosdeslumbrados. Arquitetava castelos de teorias na sua imaginaçãosuperexcitada, para afastar a interferência direta daquele homem no casoda cura da filhinha, respondendo, assim, às objeções do seu próprioespírito de observador e analista meticuloso.Não podia esquecer que o profeta o envolvera em. forças ignoradas,emudecendo-lhe a voz e fazendo-o ajoelhar-se, doendo-lhe ao orgulhodespótico essa circunstância, considerada como dolorosa humilhação.Idéias martirizantes povoavam-lhe o cérebro exausto de tantas lutasinteriores e, depois de uma invocação aos gênios protetores da família, noaltar doméstico, buscou repousar das amargas fadigas íntimas.Naquela noite, todavia, sua alma experimentava as mesmasrecordações da existência pregressa, nas asas embaladoras do sonho.Viu-se vestido com as mesmas insígnias de Cônsul ao tempo deCícero, reviu as atrocidades praticadas por Públio Lentulus Sura, suaexpulsão do Consulado, as reuniões secretas de Lúcio Sergius Catilina, asperversidades revolucionárias, sentindo-se de novo levado à presençadaquele mesmo tribunal de juizes austeros e venerandos, que no sonhoanterior lhe haviam notificado o seu renascimento na Terra, em época degrandes claridades espirituais.Diante daqueles magistrados veneráveis, ostentando togas alvas deneve, experimentou amarga sensação de angústia, batendo-lhedescompassadamente o coração.O mesmo juiz respeitável levantou-se, no ambiente sublimado deluzes espirituais, exclamando:- Públio Lentulus, porque desprezaste o minuto glorioso, com o qualpoderias ter comprado |
Emannuel | a hora interminável e radiosa da tua redenção na eternidade?Estiveste, esta noite, entre dois caminhos - o do servo de Jesus e odo servo do mundo. No primeiro, o jugo seria suave e o fardo leve; mas,escolheste o segundo, no qual não existe amor bastante para lavar toda ainiquidade... Prepara-te, pois, para trilhá-lo com destemor, porquepreferiste o caminho mais escabroso, em que faltam as flores dahumildade, para atenuar o rigor dos espinhos venenosos!...Sofrerás muito, porque nessa estrada o jugo é inflexível e o fardopesadíssimo; mas agiste com liberdade de consciência, no jogo amplo dascircunstâncias de tua vida... Conduzido a uma oportunidade maravilhosa,perseveraste no propósito de percorrer a via amarga e dolorosa dasprovações mais ríspidas e mais agudas.Não te condenamos, para tão somente lamentar o endurecimento doteu espírito em face da verdade e da luz! Retempera todas as fibras do teu"eu", pois enorme há-de ser, doravante, a tua luta!...Ouvia, atento, aquelas exortações comovedoras, mas, nesseinstante, despertou para a" sensações da vida material, experimentandosingular abatimento psíquico, a par de tristeza indefinível.Ainda cedo, sua atenção foi reclamada por Lívia, que lheapresentava a pequena Flávia, convalescente e feliz. A epiderme como quese alisara, submetida a processo terapêutico desconhecido e maravilhoso,desaparecendo os tons violáceos que, anteriormente, precediam as rosasde chaga viva.O senador recuperou alguma coisa da sua serenidade íntima, com overificar as melhoras positivas da filhinha, que apertou amorosamente deencontro ao coração, exclamando mais tranqüilo:- Lívia, é bem verdade que ontem, à noite, estive com o chamadomestre de Nazaré, mas, com a lógica da minha educação e dos meusconheci- |
Emannuel | ...mentos, não posso admitir seja ele o autor do restabelecimento de nossafilha.E, de seguida, passou a relatar de modo superficial osacontecimentos que já conhecemos, sem referir. todavia, os pormenoresque mais o impressionaram.Lívia ouviu atenciosamente a narrativa, mas, notando-lhe as íntimasdisposições para com o profeta, que ela considerava criatura superior evenerável, não quis externar seu pensamento em torno do assunto,receosa de um atrito de opiniões, inoportuno e injustificável. No seucoração, agradecia àquele Jesus carinhoso e compassivo, que lheatendera às angustiosas súplicas maternais e, no imo dalma, acariciava aesperança de beijar-lhe a fímbria da túnica, com humildade, emtestemunho do seu sincero reconhecimento, antes de regressar a Roma.Quatro dias decorridos, a enferma apresentava sinais evidentes deseguro restabelecimento físico, dando motivo ao mais amplo júbilo detodos os corações.Em radiosa manhã, vamos encontrar a jovem Lívia acalentando ofilhinho, prestes a completar um ano, e instruindo a criada de nomeSêmele, de origem judia, designada para velar pela criancinha, tal ointeresse que demonstrara pelo pequenino Marcus, desde o instante desua admissão ao serviço. Em dado momento, exclama a serva, apontandopara o largo caminho empedrado:- Senhora, lá vêm dois cavaleiros desconhecidos, a todo galope.Ouvindo-lhe a observação, Lívia pôde vê-los, igualmente, ao longoda estrada ampla, e logo se foi para o interior, a fim de prevenir o marido.Efetivamente, daí a minutos estacavam à porta dois cavalos suadose ofegantes. Um homem trajado à romana, em companhia de um guiajudeu, apeava rápido e bem disposto. |
Emannuel | Tratava-se de Quirilius, liberto de confiança de Flamínio Severus,que vinha, em nome do patrão, trazer a Públio e família algumas noticias enumerosas lembranças.Essa surpresa amável encheu o dia de gratas recordações e sadiosprazeres, motivando horas das mais inefáveis alegrias. O nobre patrícionão esquecera os amigos distantes, e, entre as notícias confortadoras econsiderável remessa de dinheiro, vieram doces lembranças de Calpúrnia,endereçadas a Lívia e aos dois fílhinhos.Naquele dia, Públio Lentulus ocupou-se tão somente de enchernumerosos rolos de pergaminho, para mandar ao companheiro de lutanotícias minuciosas de todas as ocorrências. Entre elas estava a boa-novado restabelecimento da filhinha, atribuído ao clima adorável da Galileia.Mas, como possuía naquele valoroso descendente dos Severus uma almade irmão dedicado e fiel, a cujo coração jamais deixara de confiar as maisrecônditas emoções do seu espírito, escreveu-lhe longa carta, emsuplemento. com vistas ao Senado Romano, sobre a personalidade deJesus-Cristo, encarando-a serenamente, sob o estrito ponto de vistahumano sem nenhum arrebatamento sentimental. E, por fim, Públio e Líviaanunciavam alegremente, aos seus amigos distantes, que retornariam aRoma possivelmente dentro de um mês, dado o perfeito restabelecimentoda pequena Flávia.Terminado o longo expediente, já era tarde; mas, nesse mesmo dia,ao cair da noite, quando os dois esposos se entretinham no triclínio a releras doces palavras dos queridos ausentes, tecendo as esperanças risonhasdo breve regresso, eis que Sulpício se faz anunciar em companhia de ummensageiro de Pilatos.Atendendo-os no gabinete particular, o senador recebe a visita doemissário, que se lhe dirige, respeitosamente, nestes termos: |
Emannuel | ...- Ilustríssimo, o senhor governador da Judeia participa-vos haverchegado à sua residência dos arredores de Nazaré, onde espera o gratoprazer de vossas ordens e notícias.- Agradecido! - replicou Públio, bem humorado, acrescentando: -Ainda bem que o senhor procurador não está distante, ensejando-mepouca demora em Jerusalém, no meu regresso a Roma em breves dias!...Algumas expressões protocolares foram trocadas, mas PúblioLentulus não reparou nas atitudes de Sulpício, que lhe deitava olharessignificativos. |
Emannuel | 98VIO raptoAo tempo do Cristo, a Galileia era um vasto celeiro que abasteciaquase toda a Palestina.Nessa época, o formoso lago de Genesaré não apresentava nível tãobaixo, como na atualidade. Todo o terreno circunvizinho era de regadio,em vista das fontes numerosas, dos canais e do serviço das noras queelevavam as águas, dando origem a uma vegetação luxuriante queenfeitava de frutos e enchia de perfumes aquelas paisagens paradisíacas.O trigo, a cevada, as abóboras, as lentilhas, os figos e as uvas eramelementos de semeadura e colheita em todo o ano, dando à vida satisfaçãoe abundância. Nas eminências da terra, misturando-se aos extensosvinhedos e olivais, elevavam-se palmeiras e tamareiras preciosas, cujosfrutos eram os mais ricos da Palestina.Em Cafarnaum, além dessas riquezas, prosperava a indústria dapesca, dada a abundância do peixe no então chamado "Mar da Galileia", oque resumia uma vida simples e tranqüila. Dentre todos os outros povosdos centros galileus, o de Cafar- |
Emannuel | ...naum se distinguia por sua beleza espiritual, despretensiosa e singela.Consciencioso e crente, aceitava a Lei de Moisés, mas estava muito longedas manifestações hipócritas do farisaísmo de Jerusalém. Foi em virtudedessa simplicidade natural e dessa fé espontânea e sincera que apaisagem de Cafarnaum serviu de palco às primeiras lições inesquecíveise imortais do Cristianismo, em sua primitiva pureza. Ali encontrou Jesus ocarinho de corações devotados e valorosos, e foi ali que o mundoespiritual encontrou os melhores elementos para a formação da escolainolvidável, onde o Divino Mestre exemplificaria os seus ensinos.Em todas as cidades da região havia sinagogas, para que as liçõesda Lei fossem ministradas aos sábados, dia que todos os indivíduosdeveriam dedicar exclusivamente ao descanso do corpo e às atividades doespírito. Nessas pequenas sinagogas, franqueava-se a palavra a quantosdesejassem utilizá-la, mas Jesus preferia o templo suave da Natureza paraa difusão dos seus ensinos.Todas as classes humildes acorriam às suas prédicas ao ar livre,cuja extraordinária beleza seduzia os corações mais empedernidos.Antiga convenção, entre os senhores, determinava o repouso dosservos no dia consagrado aos estudos da Lei, e os próprios romanosprocuravam cultivar aquelas tradições regionais, buscando a simpatia dopovo conquistado.Nessa época, grande era a afluência dos escravos às pregaçõesconsoladoras do Messias de Nazaré.Uma semana havia decorrido após o recebimento das notícias deRoma e, nesse sábado, às primeiras horas da tarde, vamos encontrar Líviae Ana em conversação íntima e carinhosa.- Sim - dizia a jovem patrícia à serva, que se encontrava em trajes desair -, se te for possível, hoje, agradecerás de viva voz ao profeta, em meunome, já que me sinto tão feliz, graças à sua |
Emannuel | infinita bondade. E dize-lhe que, se eu puder, nas vésperas de partir paraRoma procurarei conhecê-lo, a fim de lhe beijar as mãos generosas, emtestemunho do meu reconhecimento!...- Não esquecerei vossas ordens e espero que possais ir até à casade Simão para visitá-lo, antes de vos retirardes destes lugares... Ainda hoje- prosseguiu em tom confidencial - devo encontrar na cidade o velho tioSimeão, que veio de Samaria especialmente para receber a sua bênção eos seus ensinos. Não sei se a senhora sabe que entre os samaritanos e osgalileus há rixas muito antigas; mas o Mestre, muitas vezes, nas suaslições de amor e fraternidade, tem louvado os primeiros pela sua caridadeleal e sincera. Numerosos milagres já foram efetuados por ele, na Samaria,e meu tio é um desses beneficiados que hoje virá receber a bênção desuas mãos consoladoras!...Uma doce e comovente fé ungia a alma daquela mulher do povo,intensificando em Lívia o desejo de conhecer aquele homem extraordinárioque sabia iluminar, com as suas graças, os corações mais ignorantes emais singelos.- Ana, espera um pouco disse, sensibilizada, dirigindo-se aos seusaposentos. E voltando com a fisionomia radiante, satisfeita por começar alimesmo a sua fraternização cristã, deu à empregada algumas moedas,exclamando com a maior alegria:- Leva este dinheiro ao tio Simeão, em meu nome... Ele veio de longepara ver o Messias e tem necessidade de recursos!Ana recebeu a importância, que era de alguns denários, agradeceu,radiante, aquela dádiva considerada como verdadeira fortuna e, daí aminutos, com Sêmele e outras companheiras dirigiu-se pela estrada deCafarnaum, em demanda do lago, onde aguardariam o cair da tarde,quando a barca de Simão Barjona trouxesse o Messias para as pregaçõescostumeiras. |
Emannuel | ...Na cidade, seu primeiro cuidado foi correr a uma choupana pobre eantiga, onde o velho Simeão a estreitou carinhosamente nos braços,chorando de alegria. Grande júbilo alvoroçou em seguida aquelescorações desprotegidos da sorte, em face da generosa oferta de Lívia, aqual significava para eles um pequeno tesouro.Deixando as companheiras no local do costume, em virtude daquelacircunstância, Ana não pôde reparar que, logo após a sua ausência,Sêmele se retirou apressadamente em demanda de uma casa oculta entreoliveiras numerosas, ao fim de uma viela quase completamenteabandonada.Algumas pancadas na porta e uma senhora de boa aparência veioatendê-la, solícita.- Chegou o nosso amigo? - perguntou a empregada, fingindodespreocupação.- Sim, o senhor André aqui está desde ontem. à sua espera. Faça ofavor de esperar um pouco.Daí a minutos, uma personagem de nosso conhecimento vinha tercom Sêmele, num dos ângulos da sala, abraçando-a com efusão, corno sefosse pessoa de sua profunda estima.Era André de Gioras, que vinha a Cafarnaum para o golpe derepresália, favorecido por uma aliada que a sua sede de vindita conseguiracolocar, em Jerusalém, na casa de Públio Lentulus, através de umasagacidade cruel -Depois de longa palestra em voz muito baixa, ouçamos a serva dosenador, que lhe fala nestes termos:- Não há dúvida... Já consegui captar toda a confiança dos patrões ea simpatia do pequeno. Pode, pois, ficar tranqüilo, porque o momento éoportuno, visto que o senador pretende voltar para Roma em breves dias!- Infame! - exclamou André, cheio de cólera - já pensa, então, noregresso? Muito bem!... Aquele maldito romano conseguiu escravizar parasempre o meu pobre filho, desatendendo às minhas |
Emannuel | súplicas paternas, mas há-de pagar muito caro a sua ousadia deconquistador, porque seu filho há-de ser um servo da minha casa! Um dia,hei-de mostrar-lhe a minha desforra, provando-lhe que também sou umhomem!.Estas palavras ele as disse entre dentes, em voz soturna, de olhosparados e brilhantes, como que se apostrofasse seres invisíveis.- Então, tudo pronto? perguntou a Sêmele, denunciando umaresolução definitiva.- Perfeitamente - respondeu a serva, com a maior serenidade.- Pois bem; de hoje a três dias irei até lá, a cavalo, nas primeirashoras da madrugada.E entregando-lhe um frasco minúsculo, que ela ocultoucuidadosamente nas próprias vestes, continuou em voz abafada:- Bastam vinte gotas para que a criança adormeça e não despertesenão ao fim de doze horas... Quando for noite alta, aplique-lhe abeberagem num pouco de água levemente misturada de vinho fraco eespere o meu sinal. Estarei nas proximidades da casa, que desde ontemfiquei conhecendo, a aguardar a preciosa carga. Abrigará você a criançaadormecida, de tal maneira que o volume não denuncie o conteúdo, visto aalguma distância, e, como em assuntos dessa natureza há-de contar com apossibilidade do testemunho de olhos estranhos, irei trajado à romana,esperando que você consiga vestir uma das túnicas da patroa, de modo aevitarmos que a culpa deste rapto venha a recair sobre alguém da nossaraça, caso surja alguma testemunha inoportuna e imprevista... Dado o sinalde minha presença na estrada que margina o pomar, virá você ter comigo,entregando-me o precioso fardo.E, de olhos perdidos na visão antecipada da sua vingança, André deGioras exclamou, cerrando os punhos: |
Emannuel | ...- Se os malditos romanos nos escravizam os filhos, sem piedade,podemos também escravizar os seus desgraçados descendentes!... Oshomens nasceram com iguais direitos neste mundo...Ouvindo-lhe as palavras, atenciosamente, objetou Sêmele, algoamedrontada:- Mas, e eu? Não acompanharei o pequenino Marcus na mesmanoite?- Seria grande imprudência. Você deverá ficar em Cafarnaum todo otempo necessário, até que se percam todas as pistas do futuro senador,que não passará, aliás, de futuro escravo. Sua fuga seria indício seguro,agora ou mais tarde, e nós precisamos obstruir esse caminho certo.Como sabe, tenho parentes afortunados na Judeia, e não é demaisesperar que um golpe da sorte me conceda o lugar preeminente a queaspiro, no templo de Jerusalém. Não podemos, portanto, mantercomplicações com a justiça, podendo você ficar tranqüila, pois, mais tarde,o seu esforço de hoje será largamente recompensado.A serva suspirou resignada, acedendo a todas as sugestões daqueleespírito vingativo.Daí a horas, ao cair da noite, voltavam à herdade os servos dePúblio, em palestra animada e alegre, comentando os pequeninosincidentes e preocupações do dia.Sêmele não parecia preocupada, mesmo porque, havia muito, vinhasendo instruída pacientemente por André, de modo a colaborardecididamente naquele plano de vingança. Numerosos laços ligavam-na àfamília de Gioras, e, cooperando naquela trama sinistra em favor dadesforra, mais não fazia, segundo supunha, que resgatar numerosasdívidas de ordem material.Afinal, pensava ela consigo, liquidando o caso do pequenino,regressaria a Jerusalém quando muito bem lhe aprouvesse, consciente dehaver cumprido um dever, obedecendo as tremendas exigências de André. |
Emannuel | No dia seguinte, calculou todas as possibilidades de êxito docometimento, e, na data aprazada, tomou todas as providências precisas.A obtenção de uma túnica do uso particular de Lívia não lhe eradifícil. A senhora as possuía em grande número e quase que diariamenteAna se incumbia de preparar as que se encontravam fora de seusapartamentos privados, para o necessário serviço de higiene; e foi assimque, burlando a dedicação e vigilância da colega, conseguiu Sêmele umatúnica elegante e discreta, da senhora, de modo a observar, integralmente,as advertências daquele de quem se fizera cúmplice.Em casa, nunca o senador e sua mulher haviam vivido momentos detanta paz e tantas esperanças, desde que chegaram à Palestina. A cura dafilha era a doce felicidade de cada instante, ensejando os mais carinhososplanos de ventura para os dias do porvir.Lívia já organizava todos os seus apetrechos de viagem,considerando que em poucos dias estariam no antigo porto de Jope, deregresso à metrópole querida.Uma serenidade, que parecia imperturbável, descansava agora sobreo casal, fazendo-lhe os corações tranqüilos e ditosos.Públio havia esquecido totalmente as advertências do sonho, queconsiderava tão somente resultado da sua palestra impressionante com oprofeta de Nazaré, e o coração se lhe desanuviara, ponderando o valor dospoderes humanos, dentro da vaidade orgulhosa que lhe abafava todas aspreocupações de ordem espiritual. Um pensamento único lhe dominava ocoração - voltar a Roma, dentro de poucos dias.Nessa noite, porém, iam desmoronar-se todas as suas esperanças emodificar-se, para sempre, as linhas do seu destino na Terra.Quem conhecesse a trama urdida na sombra pelo espírito vingativode André, depois da meia- |
Emannuel | ...-noite poderia ouvir um longo silvo que se repetiu por três vezes, nosoturno silêncio do arvoredo.Um homem trajado à romana apeara de fogoso corcel, a algunsmetros da casa, no largo caminho que separava a vegetação do campo dasárvores frutíferas. Em seguida, uma porta abriu-se furtivamente e umamulher trajada à moda patrícia veio ter com o cavaleiro que a esperavaansioso, depondo-lhe nas mãos, com o máximo cuidado, um embrulhovolumoso.- Sêmele - exclamou ele baixinho -, esta hora é decisiva em nossosdestinos!A serva de Lentulus nada pôde responder, sentindo o peito opresso.Nesse instante, os atores de cena não observaram a aproximação deum homem que estacara, à distância de alguns passos, na espessura dasramagens sombrias.- Agora - tornou a dizer o cavaleiro, antes de partir em desabaladacarreira não se esqueça que o silêncio é ouro e que, se algum dia vocêfor ingrata, pode pagar com a vida a descoberta do nosso segredo!...Dito isso, André de Gioras partiu precipitadamente, a largo trote,pelos caminhos ensombrados, levando consigo o volume para ele tãoprecioso.A serva ainda o acompanhou com a vista por alguns instantes, entreassustada e compungida, recolhendo-se a passos cambaleantes.Ambos não sabiam que os olhos de um caluniador são piores que osbraços de um ladrão e que esses olhos os espreitavam na solidão da noite.Era Sulpício que, por coincidência, se recolhia tarde naquela noite,surpreendendo a cena palidamente iluminada pelos raios da Lua.Observando, de longe, que um homem e uma mulher, trajados àromana, se encontravam na estrada em hora tão imprópria, amorteceu ospassos de felino, entre as árvores, com o fim de identificá-los mais deperto. |
Emannuel | A cena fôra, todavia, muito rápida, chegando-lhe tão somente aosouvidos as últimas palavras "nosso segredo", proferidas por André, na suapromessa odiosa e ameaçadora.Em seguida, observou que a mulher, com a retirada do cavaleiro,regressava ao interior a passos vacilantes, como que presa de incoercívelabatimento. Estugou então os passos para surpreendê-la, reparando-lhe ovulto a poucos metros de distância. Mas, não se atreveu a aproximar-se,apenas identificando as características da vestimenta, à luz fraca da noite.Aquela túnica era-lhe conhecida. Aquela mulher, a seu ver, era Lívia, aúnica que podia trajar de tal modo, naquelas cercanias.Num instante, suas idéias rápidas de homem experimentado naspiores ações do mundo, associaram fatos, personalidades e coisas.Lembrou, em seus íntimos pormenores, a cena que tivera ocasião depresenciar no jardim de Pilatos, crendo que a esposa de Públio se fizeraamada pelo governador, cujo coração ela avassalara em poucos minutos,em virtude da sua peregrina beleza; recordou, por último, a estada doprocurador da Judeia, em Nazaré, e concluiu, monologando:- Um governador, na sua alta posição, não deixará, por isso, de serum homem, e um homem é muito capaz de cobrir toda a noite, em boamontaria, uma distância como a que vai de Cafarnaum a Nazaré, para seencontrar com a mulher amada... Ora esta!... temos agora de prosseguir,observando um casal de apaixonados... O único acontecimentoestranhável é a facilidade com que essa mulher, aparentemente tãoaustera, se deixou dominar dessa maneira! Mas, como tenho os meusinteresses com Fúlvia, vamos examinar o melhor modo de cientificar essepobre homem que, senador, tão jovem e tão rico, é um marido tãodesventurado!...E depois de assim monologar cautelosamente, Sulpício recolheu-seintimamente satisfeito, por se ver dono da situação, já antegozando oinstante em |
Emannuel | ...que faria Públio conhecedor do seu segredo, a fim de exigir mais tarde, emJerusalém, o preço ignominioso da sua perversidade, segundo aspromessas de Fúlvia.O dia imediato constituiu dolorosa surpresa para o senador e suamulher, aturdidos com o inopinado acontecimento.Ninguém conhecia as circunstâncias em que se verificara o rapto dacriança, no silêncio da noite.Como louco, Públio Lentulus tomou todas as providênciaspossíveis, junto às autoridades de Cafarnaum, sem lograr resultadofavorável. Numerosos servos de sua confiança foram expedidos a fim debater os arredores, improficuamente, e, enquanto o marido se multiplicavaem ordens e providências, Lívia recolhia-se ao leito, tomada de indefinívelangústia.Sêmele, que fingia a mais profunda consternação, auxiliava osdesvelos de Ana, junto da senhora, sucumbida de dor.Naquela mesma tarde, Públio ordenou a Comênio, então com ashonras de capataz de todos os trabalhos da herdade, a reunião geral dosservos da casa, a fim de que aprendessem no castigo severo, infligido aosescravos incumbidos do serviço noturno de vigilância, e, durante todas ashoras do crepúsculo, trabalhou o açoite na carne de três homens robustos,que debalde imploravam clemência e misericórdia, protestando a suainocência. Somente diante daquelas criaturas injustamente castigadas,considerou Sêmele a extensão do seu procedimento, mas, intimamenteapavorada com as conseqüências que poderiam advir do delito, cobrouânimo para ocultar, ainda mais, a culpa e o terrível segredo.Prosseguiam as ações punitivas, até que Lívia, atormentada poraqueles gritos lancinantes e comovedores, se levantou com extremadificuldade e, chamando o esposo a um canto da varanda, de onde ele |
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