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sociedade
'Quase tirou a minha vida': a infecção "carnívora" enfrentada pela atriz Georgie Henley
Georgie Henley afirma que ficou calada por muito tempo, mas não mais. A atriz de 27 anos, conhecida por sua participação na saga "As Crônicas de Nárnia", revelou que sofreu ao ser diagnosticada com fasciíte necrosante, uma infecção "carnívora" que afeta a pele. "Quase tirou a minha vida e causou estragos em todo o meu corpo", revelou a artista em um post no Instagram. A fasciíte necrosante é causada por uma bactéria e pode ocorrer se uma ferida for infectada. É necessário tratamento hospitalar imediato, segundo o Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido. A bactéria libera toxinas que danificam os tecidos próximos. Fim do Matérias recomendadas Os primeiros sintomas são semelhantes aos da gripe e podem causar também vômitos e inchaço nas áreas afetadas e levar a problemas graves, como envenenamento do sangue (sepse) e falência de órgãos. A atriz explicou que contraiu a infecção aos 18 anos e isso deixou cicatrizes que ela escondeu por muito tempo. Porém, hoje ela decidiu falar sobre o tema. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Levei muito tempo para me curar tanto fisicamente quanto mentalmente, mas eu esperava que um dia fosse a hora certa para falar sobre o que aconteceu. Hoje é um começo", escreveu Henley. Ela ficou conhecida ainda na infância, quando interpretou o papel de Lucy Pevensie nos filmes da saga "As Crônicas de Nárnia". Ela participou das sequências "O leão, a feiticeira e o guarda-roupa", "Príncipe Caspian" e "A viagem do Peregrino da Alvorada". Após o diagnóstico do problema de saúde, ela diz ter vivido "a vergonha de se sentir diferente". Henley havia completado 18 anos quando contraiu a fasciíte necrosante. Na época, ela havia acabado de ingressar na universidade. A jovem correu o risco de ter o braço esquerdo amputado, por isso foi submetida a uma "exaustiva cirurgia invasiva" e depois a um procedimento reconstrutivo de enxerto de pele, explicou em seu relato. Isso deixou uma série de cicatrizes visíveis em seu braço. "Nos últimos nove anos, fui aberta sobre minhas cicatrizes na minha vida pessoal, mas as escondi completamente em qualquer contexto profissional", explicou. Para isso, ela usou curativos, maquiagem, roupas com mangas e calças para colocar a mão esquerda no bolso. A jovem não queria que as marcas na pele atrapalhassem suas oportunidades profissionais. "A indústria da qual faço parte se concentra, muitas vezes, na ideia muito estreita sobre o que é considerado 'perfeição' estética e eu estava preocupada que as minhas cicatrizes me impedissem de conseguir trabalho", contou. "A verdade é que não existe essa 'perfeição', mas ainda vivo com a vergonha de me sentir diferente, exacerbada pelas expectativas que surgiram com o início da minha carreira desde mais nova." A atriz demorou nove anos para revelar o que sofreu. Ela assegura que nesse tempo aprendeu a gostar de si e a se sentir bem ao aparecer em público. "As minhas cicatrizes não são nada para me envergonhar. Elas são um mapa da dor que meu corpo suportou e, mais importante, um lembrete da minha sobrevivência", escreveu ela. "Elas não afetam a minha capacidade como atriz, e estou orgulhosa de ser uma pessoa que tem cicatrizes visíveis nessa indústria." A publicação dela recebeu dezenas de milhares de curtidas e comentários positivos. Com orgulho, Henley concluiu em seu post que está segura de que falará mais sobre as suas experiências no futuro. "Mas hoje simplesmente estou feliz por me sentir, pela primeira vez em muito tempo, finalmente livre."
2022-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63446207
sociedade
O país com os políticos mais jovens do mundo
Muitas das decisões que impactam o mundo atualmente são tomadas por políticos da chamada "terceira idade". Vladimir Putin, o líder russo que mergulhou a Europa em uma nova guerra com a invasão da Ucrânia, acaba de completar 70 anos. Do outro lado do Atlântico, nos Estados Unidos, os olhos estão voltados para as eleições legislativas que em novembro medirão o poder de outros dois septuagenários: o presidente democrata Joe Biden (de 79 anos) e seu principal rival, o ex-presidente republicano Donald Trump. (76). E no Brasil há, neste domingo (30/10), o segundo turno da eleição presidencial entre o atual presidente Jair Bolsonaro, de 67 anos, e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de 76. Mas apesar de ser habitual que os líderes dos países acumulem muitas décadas de vida e experiência política, nos últimos anos começaram a aparecer políticos muito mais jovens que estão mudando essa tradição. Fim do Matérias recomendadas Em 2021, o Chile elegeu Gabriel Boric, o presidente mais jovem do mundo. Na época, ele tinha 35 anos. Boric é um ano mais novo que Sanna Marin, a primeira-ministra da Finlândia, eleita em 2019 quando tinha 34. Uma das líderes mais populares do mundo é Jacinda Ardern, que tinha 37 quando foi eleita a primeira-ministra da Nova Zelândia em 2017. E Emmanuel Macron era apenas dois anos mais velho quando se tornou o presidente mais jovem da história da França, naquele mesmo ano. Mas quando se trata de eleger jovens representantes, o país que ocupa o topo desse pódio é a Noruega. De acordo com os últimos dados da União Interparlamentar (UIP) — organização que engloba 178 parlamentos do mundo — esse país escandinavo tem a maior proporção de jovens políticos no mundo. Os dados mostram que 13,6% dos legisladores noruegueses têm menos de 30 anos, o número mais alto do mundo nessa faixa etária. E quase 45% têm menos de 45 anos. A média total do parlamento é de 46 anos. Em contraste, o parlamento britânico não tem pessoas com menos de 30 anos. Além disso, menos de 2% possui abaixo de 45 anos. A média de idade é de 70 anos. Também não há menores de 30 anos no Senado dos Estados Unidos. Apenas 4% têm menos de 45 anos e a média de idade é de 64 anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora em muitos países a sabedoria e a experiência adquiridas com a idade sejam consideradas fatores-chave para uma boa liderança política, há quem acredite que os líderes mais velhos não são considerados representações das populações que governam. De acordo com a ONG Our World in Data, apenas 10% da população mundial hoje tem mais de 65 anos, enquanto a média global de idade é de 30 anos. "A experiência que uma pessoa vive informa as suas prioridades legislativas", disse Amanda Litman, cofundadora do Run for Something, um grupo que apoia candidatos progressistas com menos de 40 anos nos EUA. Litman afirmou, em entrevista à BBC, que a falta de progresso em temas que preocupam os jovens, como a violência armada e as mudanças climáticas, alimenta "um ciclo de cinismo" e desconexão. Jonny Lang, da UIP, observou que é fundamental que os parlamentos se pareçam mais com os países que representam. Ele disse ter a crença de que os jovens conduzem a políticas melhores. Maren Grøthe se tornou a parlamentar mais jovem da história da Noruega no ano passado, quando foi eleita membro da assembleia nacional com apenas 20 anos Nascida meses antes dos ataques de 11 de setembro de 2021 nos Estados Unidos, ela é um dos 23 representantes com menos de 30 anos que fazem parte do parlamento norueguês. "Eu gosto muito. Esse é um trabalho com grandes responsabilidades, e sinto essas responsabilidades todos os dias", disse Grøthe ao jornalista Amund Trellevik, da BBC, em Oslo. Apesar da pouca idade, Grøthe já havia atuado por dois anos como política local em seu município de origem quando foi eleita para a assembleia nacional. Hoje, ela tem uma ampla lista de tarefas a cumprir. Em um período recente, por exemplo, ela começou a semana em uma viagem do comitê parlamentar à Alemanha e terminou com o retorno para casa para assistir à inauguração de um novo campo de futebol nos arredores de Trondheim, no centro da Noruega, onde vive com o namorado. Ela se define como uma "jovem norueguesa comum" que gosta de participar de festas com os amigos e fazer caminhadas nas montanhas. Mas desde que foi eleita para um cargo nacional, ela tem tido muito menos tempo para essas atividades. Grøthe acredita que ter tantos políticos jovens na Noruega traz muitas vantagens, com diferentes culturas e melhor representação das idades. "Nós, jovens, temos experiência de vida, mas de uma maneira diferente. Necessitamos desenvolver políticas para todos no país", afirmou. O que ela pode trazer para a política que alguém mais velho não pode? "Tenho perspectivas e conhecimentos completamente diferentes sobre ser jovem hoje. Cada vez mais jovens lutam com a sua saúde mental. Também terminei a minha educação secundária recentemente, o que é muito útil para o comitê de educação da assembleia nacional", disse. Segundo os especialistas, em muitos países existem problemas estruturais que dificultam ao máximo o acesso dos mais jovens a cargos eletivos. Em alguns países há limites de idade para determinados cargos. No Brasil, por exemplo, só é permitido ser presidente da República, vice-presidente ou senador a partir dos 35 anos. Para governador ou vice é preciso ter, ao menos, 30. Já para deputado federal, estadual ou distrital, prefeito ou vice-prefeito é necessário ter a partir de 21 anos. E o cargo de vereador é o que permite os políticos mais novos no Brasil: a partir dos 18. Nos Estados Unidos é preciso ter ao menos 25 anos para a Câmara dos Representantes, e ao menos 30 para fazer parte do Senado. Segundo Sam Cabral, da BBC News em Washington, o Congresso americano valoriza a antiguidade, e os legisladores mais velhos costumam ser os primeiros na fila para funções de liderança, atribuições de comitês importantes e outras formas de influência. "O reconhecimento e a visibilidade do nome dão aos titulares (que já ocupam esses cargos) um caminho mais fácil para a reeleição", disse. Os jovens aspirantes também enfrentam barreiras financeiras ao buscar por esses cargos, já que têm menos recursos, menos acesso à riqueza e obstáculo como os custos com cuidados de crianças, caso tenham filhos, ou da dívida estudantil, acrescentou Cabral. Nesse sentido, uma das principais razões pelas quais a Noruega tem o parlamento mais jovem do mundo é o sistema eleitoral local, afirmou Ragnhild Louise Muriaas, professora de ciência política da Universidade de Bergen, na Noruega. Várias pessoas do mesmo partido podem ser eleitas no mesmo distrito. "Isso significa que um homem mais velho conhecido pode ser o principal candidato, mas mulheres jovens desconhecidas podem ser escolhidas para os próximos lugares da lista e garantir que sejam eleitas", diz ele. Em países como França, Reino Unido e Estados Unidos, o mais votado leva tudo e os partidos sentem que não podem "se dar ao luxo" de liderar as listas com candidatos jovens e inexperientes, explicou. As alas juvenis dos partidos políticos desempenham um papel distinto, acrescentou. Essas organizações são uma força política poderosa, muitas vezes com visões opostas às da matriz do partido. Além disso, Muriaas reconheceu que também poderia haver possíveis inconvenientes relacionados à pouca idade dos políticos, e conta que está pesquisando se os jovens desaparecem mais rapidamente da política e se a falta de experiência de vida e de trabalho antes de serem eleitos é um fator que pode ser considerado prejudicial. Com reportagem de Sam Cabral e Amund Trellevik da BBC News em Washington e Oslo..
2022-10-29
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-63438417
sociedade
Por que tantos millennials relatam viver casamento sem sexo
"Nos primeiros [vários] anos do nosso casamento, tínhamos uma vida sexual incrível... e, agora que ele ficou mais velho (está agora com 30 anos), ele simplesmente não parece estar mais interessado em sexo." Este é um dos muitos comentários que aparecem no subgrupo r/DeadBedrooms na plataforma de rede social Reddit - autodescrito como "grupo de discussão para membros do Reddit que estão enfrentando um relacionamento com séria falta de intimidade sexual". Casos de frustração como este, de pessoas que estão em relacionamentos com pouco ou nenhum sexo, são frequentes. "Por que ele prefere a própria mão a ter sexo comigo?", pergunta uma mensagem. E a perspectiva do subgrupo é um tanto desoladora: "conselhos são sempre bem-vindos", diz a descrição, "mas não se surpreenda ao saber que já ouvimos de tudo". Pode parecer natural quando essas histórias vêm de casais mais velhos que lutam para manter a faísca que tinham décadas atrás. Mas muitas são postadas por pessoas que afirmam estar na faixa entre 27 e 40 anos. Fim do Matérias recomendadas Alguns afirmam que os filhos ou casamentos interrompem suas vidas sexuais; outros dizem que seus maridos com "baixa libido" podem assistir a pornografia sem parar, mas não ficam estimulados. E a lista de queixas prossegue, com multidões de millennials postando sobre seus "quartos mortos". Embora os millennials (nascidos entre 1981 e 1995) estejam no seu ápice sexual, ou perto dele, existem relatos de que alguns membros dessa geração em todo o mundo estão se "afastando do sexo". Os fóruns de millennials - incluindo o r/DeadBedrooms - confirmam essa tendência, especialmente entre os casais casados e em relacionamentos longos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E estatísticas recentes contam uma história similar. Uma pesquisa de 2021 entre adultos com 18 a 45 anos de idade nos Estados Unidos, realizada pelo Instituto Kinsey da Universidade de Indiana e pela empresa de produtos eróticos Lovehoney, demonstrou que, entre os adultos casados, os millennials foram os mais propensos a "relatar problemas com desejo sexual no último ano". A pesquisa demonstrou que 25,8% dos millennials casados relataram esse problema, enquanto apenas 10,5% dos casados da geração Z (nascidos entre 1995 e 2010) e 21,2% dos adultos casados da geração X (nascidos entre cerca de 1965 e 1980) relataram a mesma situação. "O baixo nível de desejo não é necessariamente sinônimo de um casamento sem sexo", segundo o pesquisador Justin Lehmiller, do Instituto Kinsey, mas "quando um ou os dois parceiros de um casamento enfrentam redução do desejo sexual, a frequência do sexo normalmente cai - e a perda do desejo é uma das maiores razões para que os casamentos acabem ficando sem sexo." Mas o que, exatamente, está acontecendo? Terapeutas sexuais e pesquisadores indicam uma série de fatores que podem explicar os casamentos sem sexo dos millennials, que vão desde os seus atuais estágios de vida até a toda-poderosa influência da internet. Mas, independentemente das razões específicas dos problemas sexuais, esta geração está, acima de tudo, tendo que enfrentar obstáculos únicos, e até sem precedentes, para atingir vidas sexuais saudáveis. Existem diversas definições de um casamento sem sexo. Uma é literal: o casal não faz sexo nenhum por um longo período de tempo. E outra medida amplamente utilizada para definir um casamento sem sexo é ter sexo menos de 10 vezes por ano. Os especialistas que conversaram com a BBC também apresentaram ideias variadas. O terapeuta sexual Stephen Snyder, de Nova York (Estados Unidos), afirma: "normalmente penso em 'sem sexo' como quatro vezes por ano ou menos", a menos que o casal esteja "tendo sexo a cada três meses e ambos afirmam que isso é incrível". Já Kimberly Anderson, terapeuta sexual e professora de psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos Estados Unidos, define o limite de casamento com "pouco sexo" em menos de 25 vezes por ano. Outros afirmam que a definição é puramente subjetiva. Se um casal estiver infeliz com a frequência com que estiverem tendo sexo, existe um problema que merece ser enfrentado. Existem muitos fatores que podem levar a um casamento sem sexo ou com pouco sexo. Quando existe uma "discrepância do desejo", nas palavras da terapeuta sexual Christene Lozano, da Califórnia, nos Estados Unidos, esse desequilíbrio pode crescer ao longo do tempo se o casal não fizer um bom trabalho para enfrentar a questão. A pessoa que deseja mais sexo e insiste em começar poderá desistir e perder sua autoestima se continuar a ser rejeitada, por exemplo. Já o parceiro que o rejeita pode sentir-se cada vez mais culpado e as duas situações criam condições ainda piores para alimentar o desejo. Outros fatores também podem contribuir, incluindo questões médicas ou de saúde mental, que podem tornar o sexo difícil, indesejável ou impossível. Vidas atribuladas com o trabalho e/ou as crianças também podem retirar o sexo da equação, da mesma forma que a falta de comunicação entre os desejos de cada parceiro. Embora esses aspectos que contribuem para casamentos sem sexo não sejam específicos de nenhuma geração, alguns especialistas observaram uma mudança nas pessoas que vivenciam relacionamentos sem sexo e em qual período da vida. "[Os casais] estão passando a ficar sem sexo em menos tempo", acredita a terapeuta sexual Celeste Hirschmann, de San Francisco, nos Estados Unidos. Ela analisa clientes há cerca de 20 anos e costumava observar, entre seus pacientes, que levava cerca de 10 a 15 anos para que os casais parassem de ter sexo. "Agora, pode estar levando de três a cinco", segundo ela. Anderson trabalha como terapeuta sexual há 30 anos e afirma que a demografia dos casamentos sem sexo, de fato, mudou desde que ela começou a trabalhar. "Trinta anos atrás, a maior parte dos casais em casamentos sem sexo que eu tratava tinha mais de 50 anos de idade", ela conta. Eles enfrentavam a queda da libido com as mudanças hormonais e as doenças decorrentes do envelhecimento. Mas, hoje, a maioria dos casais em casamentos sem sexo que procuram Anderson tem 45 anos ou menos. "A dinâmica por trás do processo é muito diferente da que existe/existia com os casais mais velhos", ela conta. Estresse em demasia pode atrapalhar a vida sexual de qualquer pessoa - e os millennials, especialmente, têm sérios problemas com cortisol, o hormônio controlador do estresse. "O estresse é um dos maiores assassinos da libido", afirma Lehmiller, "e os millennials são um grupo particularmente estressado de muitas formas, especialmente em comparação com a geração X". Os principais estágios da vida são um fator. Muitos millennials estão na idade em que estão sendo pais pela primeira vez ou têm filhos pequenos. É uma fase extenuante da vida das pessoas. Em um estudo realizado em 2018 pela rede de aconselhamento britânica Relate, 61% das pessoas na casa de 30 anos de idade relataram ter menos sexo do que gostariam porque "as crianças atrapalham", enquanto 31% disseram que "perderam sua libido desde que tiveram filhos". Outras dificuldades dessa geração também surgem do estresse, já que os millennials já estavam atrás das gerações anteriores na busca por objetivos de vida, como a compra de casas. Agora, com os preços disparando e o débito estudantil cada vez maior, os millennials estão sob forte tensão, especialmente financeira. Mas, acima de tudo, o estado atual do mercado de trabalho está dominando o estresse. Dados da empresa de consultoria global Deloitte, coletados em cinco países em maio de 2022, revelaram que 38% dos millennials relatam enormes problemas de saúde mental, especialmente as mulheres (41%) em comparação com os homens (36%), causados, em grande parte, pela ansiedade no trabalho. É claro que o ambiente de trabalho nunca foi particularmente estável ou livre de grandes tensões para os millennials. "Muitos millennials começaram suas carreiras durante a Grande Recessão, por exemplo", afirma Lehmiller. E a pressão adicional da pandemia de covid-19 trouxe ainda novos conflitos. "Em tempos de grandes mudanças tecnológicas, as pessoas tendem a trabalhar demais", acrescenta Snyder. E os dados demonstram que os millennials são particularmente workaholics. O trabalho em excesso, muitas vezes, leva à exaustão, que pode fazer com que os casais frequentemente estejam cansados demais para o sexo no final de um longo dia - um padrão que os especialistas consultados afirmam poder perdurar se for repetido com muita regularidade. E as preocupações com a estabilidade financeira apenas exacerbam o problema. "Maiores preocupações financeiras, alinhadas às taxas mais altas de depressão e ansiedade, podem ser uma combinação particularmente potente para produzir alto estresse e baixo desejo sexual", afirma Lehmiller. A influência da internet também não pode ser subestimada. Snyder descreve as redes sociais como "distração" das atividades interpessoais físicas, como o sexo, mas Hirschmann acredita que o seu papel para o aumento dos casamentos sem sexo é muito mais profundo. Ela afirma que elas levam à maior "consciência da imagem" entre os millennials - a primeira geração totalmente engajada no uso intenso das redes sociais. As pessoas sentem necessidade de mostrar perfeição nessas plataformas, segundo ela, com filtros e retoques que não são disponíveis na vida real. A autoconsciência resultante pode acompanhar as pessoas para a cama e o casamento, fazendo com que elas sejam menos confiantes no seu corpo. Segundo os dados de 2018 da Relate, 37% das pessoas com menos de 30 anos de idade que estavam em parcerias com pouco sexo relataram autoconsciência sobre os seus corpos, enquanto apenas 14% das pessoas com 60 anos ou mais afirmaram passar pela mesma situação. Além das redes sociais, os especialistas concordam que a pornografia tem grande influência sobre os millennials, já que muitos deles ficaram maiores de idade quando a pornografia estava começando a se tornar amplamente acessível online. É claro que esta é uma enorme mudança com relação às gerações anteriores. "No século 20, alguns rapazes costumavam ser sexualmente compulsivos com muitas mulheres", relembra Snyder. "Hoje em dia, eles costumam simplesmente assistir a muita pornografia." Em outras palavras, eles não precisam procurar sexo com alguém para ter uma experiência que envolva outras pessoas, mesmo se essas pessoas estiverem apenas em vídeo. Anderson tem muitos clientes homens com menos de 45 anos de idade em casamentos sem sexo que sofrem de "disfunção erétil induzida por pornografia", uma condição que torna impossível ou muito difícil ter uma ereção sem pornografia, com alguém da vida real. Isso pode fazer com que eles prefiram ter sexo solo e não com outra pessoa. Ela explica que alguns deles se acostumaram a ter total controle sobre o seu prazer, ou às imagens mais extremas que eles veem na pornografia, com as quais seu sexo de casado não pode competir. "'A pornografia nunca me rejeita' ou 'a pornografia nunca critica meu desempenho' são comentários comuns no meu consultório", afirma Anderson. É claro que os millennials não podem mudar o fato de que eles entraram no mercado de trabalho durante uma recessão e agora estão começando a sair de mais uma. E também não podem apagar a influência da pornografia ou das redes sociais. É claro que a falta de sexo é um tema sobre o qual algumas pessoas têm dificuldade de falar até com a pessoa com quem compartilham a cama, o que dificulta ainda mais a compreensão dessas questões e a busca de soluções. Como alguém escreveu no subgrupo do Reddit r/DeadBedrooms recentemente, com vidas atribuladas e inúmeras pressões, até levantar o assunto pode parecer impossível. "Eu simplesmente nem sei mais o que pedir", escreveu uma mulher em dificuldades. "Eu quero consertar isso, mas simplesmente não sei como."
2022-10-29
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63385868
sociedade
As 10 'mega-ameaças' que rondam a humanidade, segundo Nouriel Roubini, um dos economistas que previram a crise de 2008
O economista Nouriel Roubini foi apelidado de "Dr. Fim do Mundo" por prever a crise financeira de 2008 e por suas advertências pessimistas em relação ao futuro da humanidade. Em seu livro mais recente, Megathreats ("Mega-ameaças", em tradução literal), ele identifica os principais perigos que, na sua opinião, espreitam nossa espécie. Em sua lista de 10 ameaças, destacam-se o baixo crescimento econômico e a inflação, a dívida e as mudanças climáticas. Embora às vezes seja criticado por seu catastrofismo, Roubini, que nasceu em Istambul, na Turquia, também propõe soluções. Ele ganhou fama ao prever a crise financeira de 2008, uma das piores da história recente — dois anos antes de a mesma acontecer, o economista advertiu sobre a iminência da crise das hipotecas "subprime" em uma conferência do Fundo Monetário Internacional (FMI). Fim do Matérias recomendadas Mais recentemente, Roubini, que é professor da Universidade de Nova York, nos EUA, fez um novo alerta. Ele advertiu que o bitcoin estava "supervalorizado" e o comparou a uma "fossa", um presságio que se confirmou quando o preço desta e de outras grandes criptomoedas caiu. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast James Menendez, apresentador do programa Newshour da BBC, o entrevistou. BBC - O mundo que se seguiu à Segunda Guerra Mundial tem sido de relativa paz, aumento de renda e saúde para grande parte do mundo. Isso está prestes a acabar? Nouriel Roubini - Penso que sim. Há novas ameaças que não existiam nas décadas entre os anos 1960 e 1980. Naquela época, ninguém se preocupava com uma possível guerra nuclear entre superpotências, em meio à polarização entre os Estados Unidos e a União Soviética. Ninguém falava tampouco das mudanças climáticas e, após a grande pandemia de 1918, não houve outra grande até a década de 1980. Não fazíamos ideia de que a inteligência artificial, a robótica e a automação substituiriam a maioria dos empregos, e tínhamos democracias estáveis, não os populismos de esquerda e direita que estão chegando ao poder agora. E os compromissos que vêm com o envelhecimento, para os quais não há financiamento, como aposentadorias e sistema de saúde, não existiam, porque ainda tínhamos uma população jovem e crescente. Portanto, o mundo hoje é muito diferente do que era entre 1945 e meados da década de 1980. Há novas ameaças que são mega-ameaças e podem destruir não apenas a economia global, mas o mundo em geral. BBC - Vou perguntar sobre uma delas, a dívida global. Por que o senhor acha que ela pode alterar radicalmente a economia mundial? Roubini - Na década de 1970, a proporção da dívida pública e privada em relação ao PIB era de cerca de 100%, e agora nas economias avançadas está em 420% e subindo. Esse índice era alto, mas o custo dessa dívida era baixo até recentemente, graças a taxas de juros nulas ou negativas e políticas expansionistas. Até mesmo famílias, empresas e corporações "zumbis", até mesmo governos "zumbis", conseguiram sobreviver porque as taxas de juros eram muito baixas. (No vocabulário econômico, chama-se de "zumbis" empresas caracterizadas pela tendência de não lucrar o suficiente para se livrar do peso das obrigações, mas ainda possuem acesso suficiente ao crédito para rolar as dívidas.) Os juros agora estão altos e subindo porque temos que combater a inflação, e veja o que está acontecendo com a dívida hipotecária no Reino Unido, ou dívida do consumidor, ou dívida corporativa que está agora à beira da crise. O estímulo fiscal quase levou a uma crise fiscal nas últimas semanas. O livro de Roubini apresenta dez "mega-ameaças", que ele aborda em cada um dos capítulos da publicação. São elas: - A mãe de todas as crises de dívida; - Fracassos públicos e privados; - A bomba-relógio demográfica; - A armadilha do dinheiro fácil e o fim do boom; - A Grande estagflação que está chegando; - Colapso da moeda e instabilidade financeira; - O fim da globalização; - A ameaça da inteligência artificial; - A nova guerra fria; - Um planeta inabitável. BBC - O que tudo isso significa para as pessoas ao redor do mundo? Seremos mais pobres nas próximas décadas? Roubini - Se vamos ter uma dívida que não é sustentável, só nos restam algumas opções. Ou vamos à falência e entramos em concordata; ou, como espero, os governos usarão surtos inesperados de inflação para reduzir o valor real da dívida nominal. Acho que os bancos centrais vão ceder e não agir, porque quando os governos não conseguem reduzir a dívida do governo nem os impostos porque há um grande déficit e guerras contra as mudanças climáticas ou contra pandemias ou contra outros países, tomamos emprestado demais e acabamos inflando a onda, como aconteceu na década de 1970. BBC - O senhor fala sobre mudanças climáticas em uma parte avançada de seu livro. Essa é a maior ameaça que nós humanos enfrentamos? Roubini - É a décima ameaça na minha lista, mas de certa forma é muito importante. Mas é uma ameaça lenta, enquanto a estagflação é um risco de muito curto prazo, assim como o risco de colapso financeiro ou que o que está acontecendo entre a Rússia e a Ucrânia se transforme em um confronto com a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte, aliança militar ocidental) ou uma guerra não convencional com o Irã de um lado e os Estados Unidos e Israel do outro, ou entre os Estados Unidos e a China por causa de Taiwan. As mudanças climáticas vão nos destruir, mas, embora os danos que causem hoje sejam graves, como as secas nos Estados Unidos, na Ásia ou na América Central, e os preços dos alimentos tenham disparado por causa disso, elas vão nos destruir nas próximas décadas. É uma ameaça que se move mais lentamente em comparação com outras. BBC - O senhor acha que os governantes ao redor do mundo estão à altura do desafio? Roubini - Não. Tanto os países democráticos como os autoritários evitam enfrentar o futuro, enterrando a cabeça na areia como avestruzes. Os líderes não tomam decisões difíceis porque querem ser reeleitos. Os autoritários também precisam de apoio. Quando se trata de mudanças climáticas, fala-se muito sobre investimento socialmente responsável no mundo dos negócios e no setor financeiro, mas, na verdade, há muito mais conversa do que ação. Porque nem os atores públicos nem os privados querem assumir os sacrifícios imediatos que o futuro exige. É por isso que há uma paralisia política. BBC - Alguns anos atrás, o senhor foi apelidado de "Dr. Fim do Mundo". Como o senhor se levanta todos os dias, considerando que vê o futuro como sombrio? Roubini - Sou realista, não catastrofista. No final de cada capítulo do meu livro, sugiro uma solução para cada mega-ameaça e proponho dois cenários, um distópico em que não fazemos nada e essas ameaças destroem o mundo, e outro menos distópico e mais utópico em que se aplicam a todos os níveis, também individual, políticas que nos conduzam por um caminho melhor. Espero que estejamos na direção certa, mas neste momento temo que não haja incentivo para fazer a coisa certa. É o que eu faço. Tentar mudar o mundo para melhor.
2022-10-29
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63404852
sociedade
Os 'trabalhos dos sonhos' que se transformam em pesadelos
Com 25 anos de idade, Andrew estava progredindo em sua carreira na área da culinária, como confeiteiro em um restaurante recomendado pelo guia Michelin na Escócia. Todas as sobremesas deliciosas e os bolos finamente esculpidos na cozinha eram criações dele. Ele finalmente ocupava um cargo que havia passado anos desejando e procurando. Andrew havia atingido esse nível depois de apenas seis anos no setor de hotelaria e alimentação. Ele começou com 19 anos de idade, como auxiliar de cozinha, em um hotel na sua cidade-natal no oeste da Escócia, e rapidamente foi promovido para chef júnior. Com 21 anos, ele foi aprendiz de chef em um premiado hotel da região dos Lagos, no norte da Inglaterra. Ao mesmo tempo, Andrew estudava confeitaria obstinadamente nas horas vagas. Ele estava pronto para dedicar sua vida a aperfeiçoar seus conhecimentos. "Era tudo o que me importava", conta ele. Mas, no auge da carreira, trabalhando no emprego dos seus sonhos em um renomado restaurante, ele pediu demissão. Fim do Matérias recomendadas Com 26 anos de idade, ele voltou a estudar, desta vez em um curso de graduação de quatro anos em desenvolvimento de software. Ele havia abandonado não só o emprego para o qual ele havia se dedicado tanto, mas o setor hoteleiro como um todo. Para Andrew, a virada veio quando, depois de finalmente conseguir o cargo de destaque que tanto desejava, ele percebeu que o trabalho exaustivo que era necessário não valia a pena. "Dos 19 aos 25 anos, todo aquele período da minha vida, eu simplesmente me sacrifiquei", ele conta. "Todos os outros estavam se divertindo e eu basicamente era um servo na cozinha." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Andrew percebeu que, ao longo de toda a sua carreira, ele se sentiu sobrecarregado, subvalorizado e mal pago. "Eu estava trabalhando 65 a 70 horas por semana e recebendo [um salário de] 20 mil libras (cerca de R$ 123 mil) por ano", afirma ele. "Eu era responsável pelo setor [de confeitaria]. Estava criando a maioria das sobremesas... por 5,95 libras (cerca de R$ 37) por hora. Eu comecei a pensar, 'por tão pouco dinheiro, o que estou fazendo com a minha vida? Como assim, fiquei maluco?'." Geralmente, os profissionais esperam conseguir um cargo que combine seus interesses e paixões. Afinal, parece um ótimo negócio trocar a rotina do escritório por aquela sonhada padaria ou por um cargo divertido em uma empresa de videogames. Mas essa narrativa de "fazer o que você ama" traz desvantagens. Muitas pessoas percebem que o emprego dos sonhos exige mais trabalho, sob condições piores. Outros descobrem que os setores que eles idolatram aproveitam-se das paixões dos profissionais e pagam baixos salários. Diante dessas pressões, alguns profissionais estão se perguntando se o emprego dos sonhos realmente vale a pena. Nos dias atuais, mais do que nunca, a ideia de que a felicidade e o sucesso dependem de trabalhar em um emprego "divertido" — um cargo pelo qual você é apaixonado, em um ambiente de trabalho interessante e invejável — é um consenso. "Esse tipo de pensamento vem se manifestando há alguns anos, mas tornou-se realmente explícito durante os lockdowns, sobre seguir sua paixão e [buscar] o emprego dos sonhos", afirma Eleanor Twedell, coach profissional e autora do livro Why Losing Your Job Could be the Best Thing that Ever Happened to You ("Por que perder seu emprego poderá ser a melhor coisa que já aconteceu a você", em tradução livre). Segundo uma pesquisa do portal americano de freelancers Fiverr no final de 2020, 59% dos 2 mil americanos pesquisados acreditam que a pandemia de covid-19 incentivou as pessoas a buscar os empregos dos seus sonhos. E a maioria dos participantes (71%) viu-se buscando seu emprego dos sonhos algum dia, enquanto 45% acreditavam que era possível dedicar-se a ele em tempo integral. Mas os redirecionamentos de carreiras em busca do emprego dos sonhos nem sempre funcionam como as pessoas esperam, especialmente se os empregadores se aproveitarem da paixão dos seus funcionários. "Os funcionários que adoram seus empregos ou realmente valorizam seu trabalho estão dispostos a suportar condições mais difíceis do que outros, como horários de trabalho fora do padrão ou baixos salários", segundo Laura Giurge, professora de ciências do comportamento da London School of Economics and Political Science. "E, até certo ponto, os empregadores podem saber disso e, portanto, pedir a esses funcionários dedicados e apaixonados que assumam trabalho adicional ou enfrentem condições terríveis", afirma ela. Esta prática de exploração da paixão é particularmente proeminente nos setores de criação. Uma pesquisa de 2019 demonstrou que os trabalhos mais criativos no Reino Unido, como o de jornalista, estilista de moda, músico e designer de jogos, ficavam abaixo da média salarial anual. E trabalhar de graça é comum: segundo uma pesquisa entre profissionais de criação do Reino Unido em 2020, 47% das pessoas com menos de 30 anos de idade afirmaram que haviam feito um estágio não remunerado para garantir o emprego dos seus sonhos. Segundo o mesmo estudo, 60% das pessoas abaixo de 30 anos afirmaram que não haviam sido pagas por todas as horas em que haviam trabalhado no mês anterior. Um estudo de 2019 segue o mesmo caminho para explicar por que isso acontece. A pesquisa concluiu que as pessoas consideravam que tratar mal os funcionários — como pedindo para que eles realizassem tarefas adicionais ou trabalhassem por mais horas sem pagamento — era mais legítimo quando se acreditava que os profissionais eram apaixonados pelo seu trabalho. Andrew afirma que reconheceu esse fenômeno logo de início no setor hoteleiro. "Eles basicamente constroem todos os negócios com base na exploração de outras pessoas", explica ele. E, apesar da sua realização inicial, a paixão que ele tinha pelo trabalho o impediu de pedir demissão por anos. "Quando comecei no bar, minha ambição era chegar àquele nível qualificado pelo Michelin", relembra ele. "Por isso, decidi que o dinheiro não importava, mas é claro que importa." Esse desprezo inicial pela segurança financeira é algo que Twedell observa com frequência entre seus clientes que buscam uma carreira com mais realização. Muitas vezes, é um comportamento que ela, como coach, precisa eliminar. "Na verdade, nós trabalhamos por dinheiro", afirma ela. "Não há vergonha nisso. A maioria de nós trabalha porque precisa do dinheiro." Por isso, em vez de incentivar um cliente a ter um início de carreira arriscado para tornar-se confeiteiro, Twedell pergunta o que o cliente realmente quer, não do seu trabalho, mas da sua vida. "Muitas pessoas respondem 'eu quero liberdade, longe do horário das nove às cinco'. Por isso, elas conseguiam o emprego desejado e percebiam, 'meu Deus, não existe liberdade aqui. Preciso trabalhar ainda mais para ganhar o mesmo que ganhava antes'." Twedell afirma que, para algumas pessoas, mudar para um emprego mais tradicional e abandonar o emprego dos sonhos pode ser libertador — algo que Josh Mansker viveu oito anos atrás. Mansker passou quatro anos em teatros dos Estados Unidos, trabalhando como iluminador e técnico de som, uma carreira que ele foi inspirado a buscar depois de fazer parte da comunidade dos "meninos do teatro" no ensino médio. Mas, aos 23 anos de idade, ele ficou frustrado porque ele e seus colegas ele não estavam conseguindo ganhar muito. "Olhei para os colegas que estavam na casa dos 30 e 40 anos de idade e todos eles realmente tinham dificuldades financeiras, lutando para conseguir manter uma família, o que era algo importante para mim", relembra ele. Mansker então tomou a difícil decisão de deixar para trás seu emprego dos sonhos e requalificar-se. Ele agora trabalha em Toronto como professor de escola secundária e ganha mais do que algum dia já ganhou no teatro. "Tenho todos os benefícios de ser professor e um ótimo salário", afirma ele. "O salário de professor normalmente é muito baixo, mas em Toronto não é ruim." Seu cronograma de trabalho também é combinado com o da sua esposa, que também é professora. Com isso, o casal pode passar as férias de verão juntos. Pode parecer excesso de zelo chamar um emprego com horário de trabalho das nove às cinco de libertador, mas, para alguns profissionais, um emprego "normal" pode fornecer a estrutura e o apoio que o emprego "agradável" não consegue oferecer. Foi o caso de Adrian, que trabalhava como caixa em um banco. Depois de ser demitida no início da pandemia, um amigo a ajudou a encontrar uma vaga em uma farmácia que oferecia cannabis no seu Estado-natal do Maine, nos Estados Unidos, que legalizou o seu uso medicinal e recreativo. Esta é uma área que a interessa. "Eu própria uso cannabis. Muitos dos meus amigos usam, faz parte da rotina da nossa comunidade", afirma Adrian. E ela foi feliz por algum tempo, falando apaixonadamente aos clientes sobre a cannabis e ajudando-os a encontrar os produtos que, em alguns casos, estavam ajudando no tratamento de condições médicas. Mas alguns clientes não eram tão agradáveis. "O que realmente me fez sair foram os diversos incidentes com um cliente que me importunava sexualmente, a mim e às outras mulheres atendentes [vendedoras da farmácia]", ela conta. "Não fizeram muito sobre isso. Eles [os empregadores] queriam o dinheiro, então nada acontecia com ele." Desmoralizada com a experiência e cansada depois de dois anos trabalhando por longas horas e na maioria dos fins de semana, Adrian retornou ao mundo bancário, onde ela agora se sente mais protegida contra esses casos e mais bem atendida enquanto funcionária. "Agora, no banco, tenho um cronograma de trabalho bem definido e melhores horários. Eu trabalho das 8 da manhã às 4 horas da tarde e tenho todos os fins de semana de folga", afirma ela. "E as licenças remuneradas são outro ponto importante. Nas farmácias, não há licenças remuneradas. Se ficar doente, você não recebe o pagamento daquele dia. Não havia nenhum benefício. O benefício era a erva grátis sempre que ela chegava, o que não era tão frequente assim", ela conta. Adrian levou dois anos para sair do setor pelo qual era apaixonada. Mansker levou quatro e Andrew, seis. Essa mudança drástica na carreira pode levar tempo e a perspectiva de requalificação pode ser apavorante. E, em nível pessoal, os profissionais podem ter dificuldades para dissociar-se dos seus empregos. Sem uma carreira "divertida", quem eles são? "Os adultos passam a maior parte do tempo no trabalho e não surpreende que as pessoas possam vir a equacionar o que elas fazem com o que elas são", afirma Laura Giurge. E pode ser muito difícil descartar uma identidade profissional quando ela está tão interligada com os interesses e as paixões do profissional. Mas, se uma pessoa conseguir reconhecer-se como mais que apenas o seu cargo, sua carreira "menos interessante" não precisa ser o fim da sua paixão, como Mansker felizmente descobriu. "Tenho meio que usado aqui as técnicas de teatro da escola", ele conta. "Temos algum equipamento de teatro, eu tenho muitas câmeras... posso ensinar às crianças as coisas que adoro fazer." Embora Andrew raramente faça bolos ou sobremesas no seu tempo livre — o cheiro da confeitaria ainda lhe causa náuseas —, sua nova carreira como programador de software permite que ele tenha tempo à noite e nos fins de semana para buscar suas outras paixões. "No ano passado, voltei a jogar futebol e, alguns meses depois, entrei em um time", ele conta. "Finalmente consegui um emprego no qual posso realmente fazer as coisas de que gosto." Agora com 31 anos, livre do setor de alimentação, com salário em rápido crescimento e, finalmente, bem descansado, Andrew está disposto a treinar outras pessoas para que elas saiam da "armadilha da paixão" na qual ele se encontrava. "Se você já se cansou e quer mudar, você pode... Se quiser fazer uma mudança, faça, porque você não vai se arrepender." Andrew e Adrian estão usando seus nomes do meio por motivos de segurança profissional.
2022-10-27
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-63411663
sociedade
'Creditocracia': como endividamento em massa corrói democracia e cria 'servidão', segundo pesquisador
Somos prisioneiros dos bancos. Nos transformamos em uma sociedade presa na "creditocracia", um sistema em que os cidadãos precisam pedir dinheiro emprestado para atender às suas necessidades básicas. Um mundo em que corretoras, fundos, firmas de capital privado e todas as demais entidades do sistema bancário se tornaram ferramentas de acumulação de capital para seus proprietários, clientes e acionistas. No fim das contas, "o que a dívida faz é redistribuir a riqueza para cima e restringir a democracia para baixo", diz Andrew Ross, professor de análise social e cultural da Universidade de Nova York. Essas são as ideias centrais do livro "Creditocracy: And the Case for Debt Refusal" (em português, algo como "Creditocracia e os motivos para não ter dívidas"). O sociólogo e autor de mais de uma dezena de ensaios defende que o negócio dessas entidades é obter o maior lucro possível mantendo todos os demais endividados, pelo maior tempo possível. Fim do Matérias recomendadas É o que ele chama de "armadilha da dívida". "Uma creditocracia surge quando o custo dos bens, sem importar o quanto sejam básicos, tem que ser financiado com dívidas, e quando o endividamento se torna a condição não apenas para melhorias materiais na qualidade de vida, mas também para cobrir as necessidades básicas", explica Ross. "Para os trabalhadores pobres, esse tipo de endividamento compulsório é muito comum e sobreviveu a séculos. Sob feudalismo, contratação ou escravidão." Em seu livro, ele analisa as implicações do endividamento massivo para qualquer democracia. Como quando os governos da Itália e da Grécia, após a crise financeira global de 2008, tiveram que cortar massivamente os gastos públicos — prejudicando seus cidadãos — "para satisfazer os credores estrangeiros alemães, franceses, suíços e holandeses", em uma decisão que criou um debate sobre onde começa e onde termina a soberania de um Estado. Nesta entrevista à BBC News Mund, o serviço em espanhol da BBC, o pesquisador americano Andrew Ross alerta para os perigos do endividamento, de viver constantemente de crédito, e apresenta soluções para fugir desse novo modelo de "servidão". BBC Mundo - O que significa o termo creditocracia que dá título a um de seus últimos livros? Andrew Ross - Vivemos em uma sociedade onde, cada vez mais, uma grande porcentagem da população, se não a maioria das famílias, está se afogando em dívidas. Na maioria dos países industrializados, especialmente os EUA, os empréstimos para habitação, carros, dívida estudantil ou transporte dispararam. Nós nos tornamos uma sociedade onde a classe credora é dominante e obtém a maior parte de sua renda e lucros de empréstimos e onde os cidadãos de muitos países nunca poderão pagar suas dívidas. 77% das famílias americanas estão seriamente endividadas. Os principais bancos são maiores e mais lucrativos do que eram antes da crise de 2008, e os legisladores são praticamente impotentes para derrubá-los. A tudo isso devemos acrescentar que os credores não estão interessados ​​em que as pessoas paguem suas dívidas. BBC Mundo - Por quê? Ross - Enquanto você estiver endividado, os credores podem ganhar dinheiro com você. Se você pagar por tudo na íntegra, então você não tem utilidade para eles. Você não é mais uma fonte de renda para eles. Portanto, em uma creditocracia, o objetivo é mantê-lo endividado pelo maior tempo possível, de várias maneiras até o dia em que você morrer e mais além, se for possível. Este é um tipo de sociedade em que a reestruturação capitalista fez com que a maior parte dos lucros das empresas venha de atividades financeiras, como empréstimos. E o tipo de sociedade industrializada em que costumávamos viver, onde os lucros eram obtidos com a produção, deu lugar a esse novo tipo de economia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC Mundo - É uma sociedade viciada em dívidas? Ross - Cada vez mais, todos os bens públicos ou sociais que costumavam ser mais acessíveis agora têm que ser financiados com dívidas. Ou seja, é preciso solicitar empréstimos para acessar esses bens essenciais, dos quais precisamos para viver. BBC Mundo - Então, estamos falando de viagens de férias, iPhones, ou estamos falando de coisas mais básicas? Ross - Bem, para famílias que vivem no limite, estamos falando de contas básicas de vida, que muitas pessoas pagam com seus cartões de crédito. Esta é uma parte significativa da dívida das famílias. E há muitas famílias sufocadas em dívidas que nunca chegam a pagar suas contas mensais. Eles renovam a dívida principal, pagam taxas atrasadas ou pagam multas. E ao fazer isso, eles se tornam o que é conhecido na indústria como "revólveres". Esses são os clientes favoritos: aqueles que não podem pagar toda a dívida, mas que pagam o mínimo mensal junto com multas ou encargos por atraso. Isso garante aos bancos um fluxo constante de receita. Seus lucros dependem de nos manter endividados. BBC Mundo - Em seu livro, você cita os "bancos da pobreza". O que seria isso? Ross - Eles são o tipo de credores que se beneficiam dos pobres. Vou te dar um exemplo. Você sai da prisão e é muito pobre. Você não tem crédito. Mas você precisa comprar um carro para encontrar um emprego. Você sempre encontrará alguém disposto a lhe vender um carro muito caro com um empréstimo abusivo. E as entidades sabem que você não poderá cumprir o pagamento, mas elas se beneficiarão da sua incapacidade para fazê-lo. Na verdade, se você se encontra nessa situação nos Estados Unidos, é mais fácil comprar um carro caro do que encontrar um apartamento para alugar. BBC News Mundo - Quais são as implicações do endividamento massivo? Ross - Por um lado, temos as implicações diárias para muitas pessoas que vivem no limite. Mas há também algumas consequências em grande escala para a democracia. São muito poucos os países que conseguiram melhorar sua relação dívida/PIB desde a crise financeira, o que significa que, para os políticos responsáveis, a prioridade é garantir que essas dívidas sejam pagas. E se os orçamentos públicos estão com problemas, eles devem priorizar esse pagamento aos credores estrangeiros e devem fazê-lo acima das necessidades dos cidadãos. Isso significa que os políticos estão agindo essencialmente como cobradores de dívidas em nome de bancos estrangeiros. Isso costumava acontecer no hemisfério sul, mas após a crise financeira, a chamada "armadilha da dívida" migrou para o norte. Vimos todos os tipos de países entre os ricos caírem na mesma armadilha onde, basicamente, é o poder dos credores estrangeiros que orienta as decisões do governo. BBC News Mundo - Como o problema da dívida causou "democracias falidas" em todo o mundo? Ross - Isso já aconteceu muitas vezes na história. E acho que não estamos mais falando apenas de países mais pobres. Isso também acontece entre países muito ricos. Vimos isso depois da crise financeira mundial com a Itália e com a Grécia. Seus governos tiveram que cortar massivamente os gastos públicos — prejudicando seus cidadãos — para satisfazer os credores estrangeiros. BBC News Mundo - Como a sociedade chegou a essa situação? Ross - Assistimos a uma reestruturação do capitalismo. Basicamente, é um capitalismo que não obtém mais seus benefícios da produção. Ela obtém a maior parte de seus lucros e receitas de empréstimos e atividades financeiras. As vantagens do sistema financeiro são muito maiores do que as da produção de bens. BBC News Mundo - Estamos falando de uma nova forma de escravidão? Ross - Eu não usaria o termo escravidão porque tem certas conotações, especialmente neste país. Esses credores externos têm um poder sobre você que pode ser semelhante à escravidão, mas isso é apenas uma analogia. Eu não usaria o termo escravidão, mas é uma servidão. BBC News Mundo - E as pessoas estão realmente conscientes dessa servidão? Ross - Acho que as pessoas estão plenamente conscientes disso. Há um sentimento muito profundo em nossa cultura de que você sempre tem que pagar suas dívidas. Parece que se você não pagar, algo horrível vai acontecer com você. Há um forte componente de moralidade associado a não pagar suas dívidas. Esta deve ser uma das prioridades do ser humano responsável. Mas se olharmos para o setor financeiro, encontramos organizações, entidades e empresas que não pagam suas dívidas. As pessoas ricas e as instituições são resgatadas por seus amigos ou por políticos. Não sofrem as mesmas consequências que o resto de nós. Portanto, há um padrão nisso. A moralidade só funciona em uma direção. Os ricos fazem empréstimos para ganhar mais dinheiro. O resto de nós toma empréstimos para sobreviver. BBC News Mundo - É por isso que você diz em seu livro que quando um governo não pode proteger seu povo de danos infligidos por extratores de renda, então a recusa em pagar é um ato de desobediência civil? Ross - Se o seu governo não pode proteger seus cidadãos do dano, então está vivendo em uma democracia falida. E temos visto uma série de movimentos sociais que se levantaram contra isso em muitos países, especialmente na América Latina. E esses são momentos em que são perfeitamente justificados porque os governos não os estão protegendo. A primeira prioridade de um governo é proteger os cidadãos e, se não puder, os cidadãos têm que resolver o problema com as próprias mãos. Mas a dor por não cumprir com os pagamentos ao Fundo Monetário Internacional será interminável. Os países que decidem não fazê-lo ou não podem, perdem o acesso aos mercados internacionais, sua reputação e sua classificação ficam prejudicadas... Claro. É uma coisa arriscada para os países fazer isso por conta própria, assim como é arriscado para as pessoas porque suas classificações de crédito são afetadas. E é por isso que no movimento do qual faço parte - União Coletiva da Dívida - promovemos a desobediência coletiva, não a desobediência individual. Como pessoa física, se você for a um banco ou ao seu credor, eles sempre estarão dispostos a renegociar com você individualmente, mas não negociarão de forma coletiva. Isso também ocorre ao nível da dívida nacional. Se quiser renegociar uma dívida com o Clube de Paris, eles só verão você individualmente. Se você sair com outras nações, eles não te atenderão. Se um grupo de nações na mesma circunstância trágica se unisse e agisse em conjunto, então seriam mais poderosas. BBC News Mundo - Como podemos escapar dessa roda de crédito? Ross - No curto prazo, promovemos, como disse, uma ação coletiva. Pessoas agindo juntas têm muito mais poder em uma economia financeirizada do que indivíduos. Se você deve um milhão de dólares ao banco, então você está com problemas. Mas se você deve ao banco coletivamente, se deve US$ 100 milhões ao banco, então você é "dono" do banco. BBC News Mundo - Você acha possível que bancos e instituições financeiras tenham tanto poder no momento que é impossível controlar isso? Ross - Bem, eles definitivamente têm muito poder e a regulamentação faz parte disso. Essas não são duas questões separadas: elas têm muito poder porque não estão regulamentadas. Acho que, em última instância, estamos mais interessados ​​em capacitar pessoas comuns para que possam agir por si mesmas, em vez de depender de políticos para fazer todo o trabalho. Porque as autoridades eleitas tiveram muitas oportunidades de verificar o poder da comunidade financeira. E é claro que não foram capazes de fazê-lo. Os credores são muito poderosos.
2022-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63380488
sociedade
Nova radioterapia é promissora contra tumores preservando tecido saudável; entenda
Uma nova radioterapia, criada em Israel, oferece resultados promissores tanto no objetivo principal - eliminar tumores - quanto em preservar células saudáveis, algo que as radioterapias convencionais nem sempre conseguem fazer. Chamada de DaRT (Diffusing Alpha emitters Radiation Therapy), a técnica é aplicada através de um laser focado na erradicação das células cancerígenas, poupando os tecidos saudáveis ao redor do tumor. O tratamento, que está disponível só para grupos de estudos, pretende colaborar para a remissão do câncer de boca, língua, pâncreas e o câncer de mama. A pesquisa foi desenvolvida no Centro Médico Hadassah, em Jerusalém, Israel, e será implementada em outros hospitais, como o Memorial Sloan Kettering Center e o Dana Farber-Cancer Institute, nos Estados Unidos. Os cientistas buscam parcerias em diferentes países. "Gostaríamos de ter a pesquisa instituída também em algum hospital brasileiro, já que o país possui uma grande diversidade étnica e altas taxas de câncer", diz o professor Aron Popovtzer, principal responsável pelos estudos da técnica. Fim do Matérias recomendadas Na publicação, os cientistas descrevem o que aconteceu com 13 pacientes com câncer de pele ou cabeça e pescoço resistente à radiação. Em um acompanhamento médio de cinco meses, todos os tumores responderam ao tratamento; nove tumores tiveram resposta completa, três tumores apresentaram resposta parcial e um tumor não foi destruído com sucesso e foi considerado "em observação". Nenhuma toxicidade importante foi notada. Popovtzer explica com exclusividade para a BBC News Brasil a ação da DaRT no corpo humano e em qual estágio a terapia está. As radioterapias comumente usadas atualmente têm a radiação beta ou radiação gama, que são executadas com fótons ou elétrons ou até prótons - diferentemente da DaRT, que emite partículas alfa. Popovtzer esclarece que essas radiações padrão têm a vantagem de viajar por distâncias consideradas longas (de vários centímetros), podendo ser irradiadas de fora do corpo para o meio dele. "Mas entre os problemas da radiação padrão está o fato de serem dependentes do oxigênio, criando radicais livres que destroem, muitas vezes, apenas uma das fitas de DNA da célula cancerosa, e infelizmente, isso significa que a outra pode se reparar e, portanto, não necessariamente matará todo o tumor." A DaRT, explica o professor, só consegue viajar alguns milímetros, mas é muito eficaz na forma como ataca diretamente o tumor. "Essa radioterapia tem o poder de 'matar' ambas as fitas de DNA e portanto, as células não conseguem se regenerar. É uma terapia nova porque ao longo dos anos, apesar de sabermos que as partículas alfa têm características específicas que a tornam muito eficaz para a radiação, simplesmente não sabíamos como usá-la." Há quinze anos, os professores Yona Keisari e Itzhak Kelson, da Universidade de Tel Aviv, descobriram uma maneira de usar a radiação alfa para destruir tumores. Antes disso, como citado pelo professor Popovtzer, sabia-se do potencial da radiação alfa, mas ela não podia alcançar mais do que cerca de 50 mícrons (1/20 de milímetro) dentro do tecido humano. O tratamento de um tumor de, digamos, 5 centímetros exigiria centenas de milhares de fontes emissoras de alfa de curto alcance - o que seria teoricamente impossível. Mas os cientistas descobriram que, quando entregue através de um isótopo (átomo) específico do elemento rádio, a radiação alfa poderia viajar até 3 mm - o suficiente para alcançar tumores sólidos - liberando átomos que se difundem dentro de um tumor e então emitem suas próprias partículas alfa. "Nossos estudos iniciais foram feitos em camundongos e mostraram que a DaRT tinha um poder maior de destruição de tumores quando comparada a radiação padrão", aponta Popovtzer. "E isso nos levou ao nosso primeiro estudo em seres humanos, a publicação de 2018 no International Journal of Radiation Oncology." "Mais recentemente temos usado uma nova tecnologia que é baseada em software de computador para garantir que cobrimos todo o tecido que precisamos", complementa Popovtzer. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O que você faz para usar essa tecnologia é colocar 'sementes' intersticiais [dentro da pele] no corpo, o que é feito com anestesia local." "A vantagem, em relação à braquiterapia [radioterapia interna usada em alguma parte específica do corpo] , é que as sementes são muito finas e, portanto, é muito fácil fazer isso. E a DaRT tem uma tendência especial de entrar apenas em áreas com ele passa por vasos sanguíneos deficientes, uma característica presente nos tumores", diz o professor. Agora, a equipe de cientistas está fazendo estudos simultâneos para ver como a DaRT funciona em tipos de cânceres distintos e com populações de diferentes países. "Por enquanto os pacientes beneficiados são apenas aqueles que fazem parte dos estudos. O objetivo é conseguir a aprovação do FDA (Food and Drug Administration) [a agência reguladora de saúde dos Estados Unidos], a qual as decisões o governo de Israel tende a abraçar, para podermos instituir a tecnologia em hospitais diversos, e com o passar do tempo, esperançosamente, barateá-la, já que o custo ainda é alto."
2022-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63380075
sociedade
'Homem mais sujo do mundo' morre aos 94 anos após 1º banho em mais de meio século
Um eremita que ficou conhecido pela imprensa como "o homem mais sujo do mundo" morreu aos 94 anos, apenas alguns meses depois de tomar seu primeiro banho em décadas. Amou Haji se recusou a usar água e sabão por mais de meio século, temendo que o deixasse doente. O iraniano, que morava na província de Fars, no sul do país, havia se esquivado de tentativas anteriores dos moradores de dar banho nele. Mas, segundo a imprensa local, ele finalmente sucumbiu à pressão e tomou banho alguns meses atrás. De acordo com a agência de notícias iraniana Irna, Amou Haji ficou doente pouco depois e morreu no domingo (23/10). Fim do Matérias recomendadas Em entrevista concedida ao Tehran Times em 2014, ele revelou que sua refeição favorita era porco-espinho e que vivia entre um buraco no chão e um refúgio de alvenaria construído por vizinhos preocupados com ele no vilarejo de Dejgah. Ele disse ao jornal na época que suas escolhas incomuns se deviam a "contratempos emocionais" quando era mais jovem. Anos sem tomar banho o deixaram com a pele coberta de "fuligem e pus", de acordo com a agência de notícias Irna, enquanto sua alimentação consistia em carne podre e água insalubre tomada em uma lata de óleo velha. Ele também gostava de fumar, sendo retratado em pelo menos uma ocasião fumando mais de um cigarro ao mesmo tempo. As tentativas de dar banho nele ou oferecer água limpa para beber o deixavam triste, segundo a agência de notícias. Mas, se ele detém o recorde de ter passado mais tempo sem tomar banho, é uma questão alvo de debate. Em 2009, houve relatos de um homem indiano que — naquele momento — não tomava banho ou escovava os dentes há 35 anos. O que aconteceu com ele desde então não ficou claro.
2022-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63387422
sociedade
As 6 empresas mais endividadas do mundo — e por que isso nem sempre é um problema
Um balanço saudável e contas equilibradas costumam ser o objetivo de qualquer ator econômico: um Estado, uma empresa ou até mesmo uma família. Estar com excesso de dívida é, no fim das contas, uma maneira de colocar em risco a saúde das finanças. Porém, existem empresas e grandes conglomerados que precisam pedir empréstimos com frequência para poder seguir com seus negócios. Esse é o caso sobretudo de empresas de capital intensivo (que precisam de grande volume de dinheiro para a sua operação), como as petrolíferas, que fazem dezenas de explorações antes de encontrar petróleo bruto no subsolo. Elas têm que investir muito. Ou das marcas de automóveis em constante inovação para fabricar motores melhores ou carros mais seguros. Fim do Matérias recomendadas Outras, como as farmacêuticas, investem anos para desenvolver novos medicamentos. Se olharmos para o caso da Netflix, antes de poder encher a sua plataforma de streaming com séries e filmes, ela tem que pagar atores, produtores, roteiristas… Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "A Netflix continuou aumentando os seus empréstimos para financiar a criação de conteúdo, embora seu balanço seja muito mais saudável hoje do que no passado, como evidenciado por classificações de créditos", diz um estudo da empresa Janus Henderson Investors. E para tudo isso, é preciso dinheiro. Muito dinheiro. Não é por acaso que as 10 empresas mais endividadas do mundo, segundo o relatório da Janus Henderson, pertencem a setores em que é preciso fazer muita pesquisa, em que a inovação é fundamental ou a concorrência é acirrada. Nas primeiras posições do ranking estão as empresas automotivas Toyota e Volkswagen, com dívida líquida em 2021 de US$ 186 bilhões e US$ 185 bilhões, respectivamente. Elas são seguidas por três provedores de telecomunicações: AT&T, Verizon e a alemã Deutsche Telekom, com US$ 182 bilhões, US$ 174 bilhões e US$ 153 bilhões em dívidas cada. Para efeito de comparação, esses números são semelhantes aos de toda a dívida pública da Noruega em 2021 (US$ 176 bilhões) ou da Colômbia (US$ 171 bilhões) no mesmo ano. Em sexto lugar, está outra marca de automóveis bem conhecida: a Mercedes-Benz, que tinha US$ 109 bilhões em dívidas pendentes em seu balanço no ano passado. Se olharmos para os países, as empresas do México acumulam US$ 36 bilhões em dívidas, enquanto as da Colômbia deviam cerca de US$ 20 bilhões até junho deste ano. As do Chile, US$ 12 bilhões. "As empresas de mercados emergentes devem relativamente pouco, o que é reflexo de condições econômicas mais voláteis", dizem os analistas da Janus Henderson, Seth Meyer e Tom Ross. Mas embora as dívidas sempre indiquem a saúde financeira de uma empresa, ter muitas não é necessariamente uma coisa negativa. Existem setores da indústria, como fabricantes de automóveis ou empresas de telecomunicações, que precisam de muito capital para funcionar. "As empresas precisam pedir dinheiro emprestado porque elas têm a necessidade de crescer em muitos setores. O investimento sempre exige financiamento, que pode ser via mais capital, dinheiro de sócios ou empréstimos", comenta Pedro Aznar, professor do departamento de Economia, Finanças e Contabilidade da Escola de Negócios ESADE, na Espanha. Para o professor, o endividamento é uma boa opção desde que o retorno esperado do investimento supere o custo da dívida, algo que tem sido comum em alguns setores, com tipos de juros mais baixos. Então é ruim ter muitas dívidas? Tudo depende, dizem os especialistas, do equilíbrio entre o valor do que uma empresa possui e o que ela deve. "É uma questão relativa. A dívida pode ser colocada em relação ao total de ativos da empresa, ao valor de tudo que ela tem. Se uma empresa tem ativos que podem perder valor, ou de valor volátil, a dívida é um risco", diz Aznar à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. "Mas se uma empresa tem ativos com valor seguro que suportam sua dívida, um certo grau de endividamento não é negativo: pelo contrário, permite que ela cresça e também aumente a rentabilidade", acrescenta. E como esses números são do último ano fiscal, é provável que, no novo contexto econômico, as empresas comecem a ser mais conservadoras na forma de se financiar. Se os lucros caírem, o pagamento dos empréstimos pode ser mais complicado. E um aumento de juros — como temos visto nestes meses — também afeta, já que os juros da dívida sobem e isso prejudica os resultados. "O fato de ter que pagar juros e o valor principal no vencimento torna a dívida mais arriscada do que o patrimônio como fonte de financiamento para a empresa", diz Pierre Verlé, chefe de dívida corporativa da empresa de investimentos Carmignac. "O crescimento econômico global mais lento, incluindo as recessões em algumas partes do mundo, está tornando as empresas mais cautelosas", estimam Meyer e Ross.
2022-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63338807
sociedade
Feminismo erra ao focar em demonização dos homens, diz filósofa feminista
"A maioria das mulheres ainda gosta dos homens, apesar da propaganda de que deveríamos estar com raiva deles o tempo todo." A frase, dita entre risos por Nina Power, resume o que a filósofa inglesa defende em seu livro What Do Men Want: Masculinity and Its Discontents ("O que os Homens Querem? Masculinidade e seus Descontentamentos", em tradução livre, sem edição em português). Lançado neste ano no Reino Unido por um selo da editora Penguin Books, a obra prega a diminuição do clima de hostilidade entre mulheres e homens e uma forma "mais construtiva" de curar os ressentimentos entre os dois sexos. Em entrevista à BBC News Brasil, Power afirma que um discurso generalizado que aponta todos os homens como tóxicos ou potencialmente violentos é contraproducente, nega a experiência da maioria das pessoas e cria uma atmosfera de beco sem saída nas relações heterossexuais (que são o foco da obra). Com doutorado em Filosofia pela Universidade Middlesex e editora da revista online Compact, a autora de 43 anos se define politicamente como "esquerda velha guarda" e diz se identificar com as ideias da segunda onda do feminismo — atuante entre as décadas de 1960 e 1970. Fim do Matérias recomendadas A segunda onda era ligada à ideia de libertação feminina e de combate à discriminação que atinge mulheres de diferentes classes e etnias. Exortava as mulheres a se qualificarem, voltarem ao mercado de trabalho e tomarem as rédeas de seus direitos reprodutivos (como uso da pílula anticoncepcional). Questionava, por meio de pensadoras como Angela Davis, ideias baseadas no ponto de vista das mulheres brancas e mais ricas. "Nunca foi sobre dizer que todos os homens eram ruins. Era sobre tentar entender o lugar das mulheres no mundo", afirma ela, também autora de One Dimensional Woman ("Mulher Unidimensional", em tradução livre), centrado no feminismo. "Parte do objetivo era dizer a homens e meninos que eles não precisam viver de acordo com estereótipos, que esse tipo de expectativa sobre gênero é ruim para todo mundo, incluindo para eles. Era um movimento de libertação das mulheres, e não um movimento de demonização dos homens." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Isso não quer dizer que não haja problemas [hoje]. Claro, há questões históricas, questões atuais, e a maior parte da violência é evidentemente praticada por homens — em grande parte contra outros homens ou contra eles próprios [em casos de suicídio], mas também contra as mulheres. Mas acho que é do interesse de todos tentarmos entender o tipo de dinâmica social que se instalou nos últimos 10 ou 15 anos." Assim, ela propõe que homens e mulheres sejam "menos duros uns com os outros". "Apenas aceitar que estamos meio que jogados neste mundo e que nenhum de nós tem uma solução pronta", completa. Power argumenta que é razoável pensar que a maior parte dos homens no mundo são pessoas "boas" e que há um desequilíbrio na forma como eles são enxergados, principalmente na internet. Para ela, hashtags como #KillAllMen (#MatemTodosOsHomens), que circulam nas redes sociais e são defendidas apenas como uma forma de desabafo feminino que não deve ser tomado literalmente, contribuem para reforçar a ideia de que a masculinidade é um mal em si. What Do Men Want faz uma atípica costura de ideias originadas em campos ideológicos opostos. A desaprovação ao feminismo atual pelos ataques a valores masculinos e a defesa de um certo retorno à tradição representam uma posição que poderia ser associada à direita conservadora, enquanto a crítica à influência do capitalismo de hoje é uma visão quase sempre encontrada na esquerda. Um exemplo do primeiro caso é a sua defesa de que elementos masculinos que moldaram de forma positiva a história da humanidade — como figura paterna que protege e o "homem responsável" — tendem a desaparecer e dar lugar apenas a uma sociedade competitiva e homogeneizada entre os sexos que "serve muito bem o capitalismo consumista". "Nas sociedades industriais modernas, a diferença sexual é completamente achatada. Nós nos tornamos esse tipo de ser homogêneo", afirma. Até os apps de namoro incentivam essa rivalidade, diz. "Todo o mistério e a beleza são de alguma forma erradicados neste mundo tecnocrático e homogeneizante, no qual somos forçados a competir uns com os outros economicamente, socialmente, politicamente e assim por diante. Isso tira a poesia das coisas." Power também ataca o que chama de hipersexualização do mundo atual depois da revolução sexual dos anos 1960 e afirma que a repressão tem seu papel. "E acho que uma cultura tão permeada pela sexualidade não é uma cultura livre, na verdade. É uma cultura que está subordinada aos seus instintos. A liberdade do consumidor, a liberdade do indivíduo de escolher, é na verdade uma liberdade muito, muito solitária." "Desde os anos 1960 vivemos em uma atmosfera em que o desejo é supostamente bom. Mas é óbvio que nem todos os desejos são iguais. Alguns desejos são extremamente perigosos", diz. "Claro que soa uma provocação dizer que repressão é algo bom. Mas é apenas uma descrição prática do que as pessoas têm que fazer para viver de uma maneira que não seja prejudicial a nós mesmos e aos outros." Nem todos receberam bem a proposta de sua obra. O jornal inglês The Guardian afirmou que o seu "chamado pela compaixão" foi na "direção do reacionário" enquanto a revista norte-americana The New Yorker disse que o livro declara rápido demais que foi cumprida a missão masculina de reformar as estruturas de opressão e o fim das desigualdades entre os sexos. Há também críticas, principalmente nas redes sociais, de que ela faria uma defesa da "cisnormatividade" (o conceito de que, se uma pessoa nasce com vagina, é mulher, e com pênis, homem) e se encaixaria no termo TERF (sigla em inglês que significa feminista radical trans-excludente, que rejeita a ideia de que mulheres trans são mulheres). "Não tem nada a ver com a crítica a indivíduos [transsexuais]. Ninguém está sugerindo que uma pessoa possa ter negados direitos que pertencem a todos os seres humanos", afirma. Na visão de Power, há uma banalização de cirurgias de transição de sexo, especialmente no caso de adolescentes. "Há pessoas que estão apenas pedindo cautela e dizendo, olhe, espere um minuto, vá mais devagar." Power diz não acreditar na ideia de abolição do sexo, mas que "podemos estar em um mundo que aceita mais os diferentes traços de caráter e comportamentos". Para restaurar pontes entre mulheres e homens, Power propõe — inspirada em sua maior referência, o teólogo e crítico social austríaco Ivan Illich, e também na Grécia Antiga — uma atmosfera lúdica e relaxada, de brincadeira ("playfulness", no original), que se perdeu na sociedade moderna da escassez de tempo e do privilégio à interação online. "Um dos problemas é que as pessoas não estão falando o suficiente umas com as outras cara a cara, e há um desejo humano de que exista um bode expiatório, algo que tem vazão mais fácil pela internet. É uma necessidade antropológica muito profunda." A filósofa acredita que esses contatos podem ir além da busca pelo par romântico perfeito e da ideia de que todos os encontros entre mulheres e homens sempre têm algum fim sexual. "Não defendo acabar totalmente com a ideia de romance. O que estou tentando dizer é que há toda uma variedade de interações possíveis, e a nossa cultura reforça modelos muito restritos centrados no parceiro romântico ou que envolva algum tipo de status baseado em relacionamentos. Isso não encoraja uma atmosfera mais relaxada entre os sexos opostos", diz ela. Escreve Power em What Do Men Want: "Relacionamentos entre homens e mulheres podem ter flerte, podem ser divertidos, amigáveis, feitos de atenção, compaixão, compreensão, serem mutuamente desconcertantes e por aí vai. Eu acho que devemos tentar abrir espaço para um tipo de brincadeira infinita que é também séria — que leva a sério o ato de brincar".
2022-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63294627
sociedade
O poder surpreendente dos memes da internet
Para a maior parte do mundo, são apenas desenhos divertidos mostrando um adorável coelho sentado ao lado — ou, às vezes, inexplicavelmente, no meio — de uma tigela de arroz. Mas, na China, onde vêm circulando nas redes sociais, essas imagens carregam um significado mais sério e profundo. O "coelho do arroz" (米兔, em chinês), como é conhecida essa coleção de imagens e emojis, surgiu em 2018, como parte do movimento global de mulheres #MeToo para denunciar o assédio sexual. Na China, como a censura estatal bloqueou as hashtags relacionadas à campanha, as usuárias da internet precisaram encontrar uma alternativa para coordenar o movimento no país. Foi quando surgiu o coelho do arroz. A imagem parece inofensiva, mas seu verdadeiro significado aparece quando as palavras aparentemente não relacionadas são pronunciadas em voz alta. A pronúncia dos ideogramas em chinês é "mǐtù" — idêntica à hashtag em inglês #MeToo. Com esse homófono translinguístico, as mulheres chinesas conseguiram compartilhar suas histórias por algum tempo, divulgando o movimento #MeToo em um país em que os movimentos sociais organizados podem atrair grandes suspeitas. Fim do Matérias recomendadas Aparentemente, os memes da internet são uma fonte onipresente de entretenimento — uma forma adotada pelas pessoas para se expressar por meio de modelos inteligentemente manipulados de texto, imagens e vídeos. Eles provavelmente são o papel de parede dos nossos feeds nas redes sociais e, muitas vezes, propiciam alguns minutos de diversão e procrastinação ao longo do dia. Mas os memes também têm um lado sério, segundo os pesquisadores que analisam formas modernas de comunicação. Eles são uma linguagem própria, capaz de transcender culturas e construir identidades coletivas entre as pessoas. Essas brincadeiras visuais, quando compartilhadas, também podem ser poderosas ferramentas de autoexpressão, conexão, influência social e até subversão política. Os memes da internet "são uma das manifestações mais claras de que existe algo chamado cultura digital", afirma Paolo Gerbaudo, professor de política digital e diretor do Centro de Cultura Digital da Universidade King's College London. Gerbaudo descreve os memes como uma "espécie de linguagem pronta com muitos tipos de estereótipos, símbolos e situações. Uma paleta que as pessoas podem usar, de forma similar aos emojis, para transmitir um certo conteúdo". Segundo a rede social Instagram, pelo menos 1 milhão de postagens mencionando "meme" foram compartilhadas todos os dias ao longo de 2020. Mas o que torna os memes da internet tão populares e por que eles são uma forma tão eficaz de transmitir ideias? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É claro que os memes existem desde muito antes da ascensão e reprodução de memes conhecidos na internet, como o do namorado distraído ou as expressões inteligentes do cachorro Doge. O biólogo evolutivo Richard Dawkins cunhou o termo "meme" no livro O Gene Egoísta, publicado originalmente em 1976. O livro relaciona obras discretas da cultura humana que se propagam entre as pessoas até os seus genes. Dawkins abreviou a antiga palavra grega "mimeme" — não sem antes pedir desculpas aos seus colegas classicistas — para "meme", que rima com "creme". Ele sugeriu que os memes seriam melodias, ideias, frases de efeito ou informações que passam de um cérebro para outro pela imitação, acelerando sua transmissão. Ele cunhou o termo para destacar como a cultura humana consegue se reproduzir. E, de certa forma, os memes provavelmente existem desde que os seres humanos adquiriram cultura para compartilhar. Mas também podemos observar as sementes do sucesso dos memes atuais da internet nas formas antigas da cultura popular. "Observamos a reprodução da realidade mundana em muitas formas de arte", diz Idil Galip, pesquisadora de doutorado da Universidade de Edimburgo, na Escócia, e fundadora da Rede de Pesquisa de Estudos de Memes. "Mesmo se voltarmos, digamos, aos tempos da Grécia Antiga, você encontrará algo como o teatro, que retira fatos perturbadores que aconteceram com você na vida real e os transforma em comédia, como fazem os memes", explica. Mas, com a chegada da internet, os memes se tornaram um fenômeno mais tangível que pode ser observado à medida que crescem, se espalham e sofrem mutações. "De certa forma, é como se os usuários da internet estivessem formando o caminho para que os acadêmicos observassem os memes de forma mais científica", diz Limor Shifman, professora de comunicação da Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel. Pesquisadores do Facebook mostraram em um estudo de 2014 como os memes postados na rede social podem se disseminar e evoluir. Em um exemplo, eles encontraram 121.605 variantes diferentes de um meme específico, postadas em 1,14 milhão de atualizações de status. A definição de meme criada por Shifman, agora amplamente utilizada neste campo, os descreve como "um grupo de textos com características compartilhadas e um núcleo comum de conteúdo, forma e postura". De forma geral, "conteúdo" se refere a ideias e ideologias, "forma" designa nossas experiências sensoriais, sejam elas visuais ou auditivas, e "postura" remete ao tom ou estilo, estruturas de participação e funções comunicativas do meme. Fundamentalmente, nenhum meme é uma ilha. "Um texto que simplesmente é bem difundido e observado por muitas pessoas não é um meme", segundo Shifman. "É viral. Mas, se muitas pessoas criarem suas próprias versões, ele se torna um grupo de textos e então é chamado de meme." Os memes exploram a consciência coletiva online e foram descritos como folclore digital, ou "netlore". "Podemos não só observar as novas formas em que as pessoas fazem as coisas ou se expressam em público, mas também alguns dos temas, algumas das ansiedades ou desejos das pessoas", afirma Gerbaudo. "Todas essas questões complexas são refletidas em coisas como os memes." Mas, para que uma ideia se torne um meme, é preciso que ela seja compartilhada. Os memes da internet mais bem sucedidos — os que chegaram mais longe e atingiram mais pessoas — possuem alguns atributos fundamentais em comum. "Normalmente, os memes mais virais, mais adorados, são memes sobre coisas que são muito recentes na memória do público", afirma Galip. Mas muitos também são sobre "algo que foi importante para muita gente". "Os memes virais normalmente apelam para o denominador mais comum. Por isso, você não precisa necessariamente estar envolvido na subcultura da internet para entender o que ele diz", ela explica. "E, por fim, eu acho que a questão mais básica, mas também muito difícil de se reproduzir, é que ele deve ser divertido, para que seja observado e compartilhado." Um estudo concluiu que os memes que despertam reação emocional mais forte apresentavam maior chance de compartilhamento. As pessoas também são mais propensas a encaminhar vídeos engraçados, em vez de vídeos bonitos, repugnantes ou que causam ódio. Muitos de nós passamos a apreciar mais os memes durante a pandemia de covid-19, como uma boa fonte de alívio. Uma pesquisa realizada durante o lockdown de 2020 na Espanha por Lucía-Pilar Cancelas-Ouviña, professora de didática da linguagem e literatura na Universidade de Cádiz, na Espanha, concluiu que o humor era uma característica central dos memes compartilhados pelo WhatsApp. Cancelas-Ouviña sugere que eles ajudaram a reduzir o medo e as incertezas disseminadas no auge da pandemia. Esta conclusão foi confirmada por outros estudos, em outras partes do mundo. A montagem feita pela atriz Reese Witherspoon que faz um resumo de 2020 foi um meme viral da pandemia que resumiu o ano em formato de calendário — fazendo muita gente se identificar. E inspirou versões posteriores apresentando outras celebridades, como a atriz Mindy Kaling e a apresentadora de TV Oprah Winfrey. Mas os memes nem sempre precisam ser engraçados para chamar nossa atenção. "O humor é importante para popularizar essa forma de expressão, e as pessoas gostam de espalhar conteúdo divertido", afirma Shifman. Dito isso, "mesmo se não for engraçado, se for perturbador, se deixar as pessoas com raiva, se despertar sentimentos, elas ainda o farão circular". O recente compartilhamento na internet de memes sobre a guerra na Ucrânia pode ser um exemplo. Os memes também são uma forma excepcional de capturar um sentimento, experiência ou estado de espírito que encontra ressonância nas pessoas, dependendo da sua especificidade de nicho. Um pequeno estudo recente concluiu que pessoas com depressão consideram os memes relativos à sua condição mais engraçados, relacionáveis e compartilháveis. Os pesquisadores indicam que os memes retratam a experiência da depressão de forma elegante, que algumas pessoas podem ter dificuldade para verbalizar. E, como são altamente relacionáveis entre as pessoas com depressão, podem oferecer a percepção de apoio social e conexão emocional. Essas descobertas coincidem com as de outros estudos, que sugeriram que os memes da internet podem colaborar para a formação de uma identidade coletiva entre grupos marginalizados, como a comunidade LGBTQIA+, ou entre redes formadas por pessoas heterogêneas, como as que foram concebidas mediante doação de esperma ou óvulos. "Os memes de nicho não pretendem ser virais", afirma Galip. "Eles normalmente se destinam a criar sentimentos como pertencimento ao grupo, algo que talvez fortaleça uma sensação de identidade." No seu trabalho de exploração das subculturas digitais, ela concluiu que "os memes facilitam a comunidade, não apenas na internet, mas também meio que vazam, digamos, para o mundo real ou o mundo offline." Em poucas horas, a hashtag reuniu mais de 10 mil postagens nas redes sociais e gerou amplas discussões na imprensa sobre o sexismo na ciência. Se você está pensando se faz parte de uma subcultura de memes, Gerbaudo afirma que, se você olhar para um meme e "decifrar o enigma ou o mistério em volta dele sem questionar", provavelmente você faz parte do grupo a que ele se destina. "Você entende [a] linguagem, você compreende os pressupostos do grupo", diz ele. Mas os memes também podem influenciar os nossos pontos de vista. Uma perspectiva apresentada por Joshua Nieubuurt, que estuda a desinformação, seja ela proposital ou não, na Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, e na Universidade de Okinawa, no Japão, é que os memes podem ser considerados a versão digital moderna do folheto de propaganda. Ele indica as formas como os memes vêm sendo usados para respaldar ou destruir argumentos sobre as restrições e vacinação contra covid-19, usando humor e sarcasmo para minar a legitimidade das opiniões das pessoas dos dois lados do debate. E os memes políticos são uma forma eficaz de despertar a participação política. Segundo um estudo, 30 memes políticos em formato de vídeo ou gif (criados, em grande parte, por cidadãos comuns) reuniram mais de 45 milhões de visualizações durante a eleição geral britânica de 2017. E um conjunto de memes conhecido como Caća se vrača (que pode ser traduzido como "o papai está voltando"), ilustrando o ex-primeiro-ministro da Croácia Ino Sanadar como um solucionador de problemas depois que foi libertado da prisão, pode ter influenciado as reportagens na imprensa sobre ele. Um estudo indicou que a cobertura adotou um tom mais positivo. Outro estudo, em Uganda, concluiu que os memes políticos são uma forma eficaz de participação política entre os millennials, sugerindo até que maior exposição aos memes apresentou relação positiva com a participação. Mais recentemente, o governo da Ucrânia começou a publicar memes na sua conta oficial no Twitter durante a escalada que levou à guerra contra a Rússia, como forma de reunir apoio popular. Um meme postado em novembro de 2021 usou o humor para enfraquecer publicamente a negação da Rússia do seu plano de atacar a Ucrânia. Em outra postagem, usou um meme leve sobre dores de cabeça para comunicar o estresse de ser vizinho da Rússia. Embora simples e divertidos, esses memes incentivaram milhares de pessoas a participar das discussões sobre a perturbadora realidade da guerra iminente. Nos Estados Unidos, os pesquisadores Mia Moody-Ramirez e Andrew Church exploraram memes no Facebook durante a eleição presidencial de 2016. E, de forma geral, eles concluíram que os memes no Facebook sobre os candidatos à presidência, Donald Trump e Hillary Clinton, tinham tom negativo. Os memes sobre Trump faziam mais referência ao seu penteado e expressões faciais, enquanto os memes sobre Hillary destacavam o escândalo dos e-mails e seus relacionamentos. Os autores indicam que a cultura popular dos memes permite que pessoas comuns dispensem a grande imprensa, historicamente considerada um "portal" para temas e discursos políticos nas campanhas presidenciais. Agora, os criadores de memes (sejam eles cidadãos comuns ou candidatos) têm o poder de compartilhar ideias com uma vasta audiência online, moldar discussões políticas e, por fim, influenciar as decisões de votação. Não é surpreendente observar que somos mais inclinados a compartilhar memes consistentes com as nossas visões políticas e submeter os memes políticos a maior escrutínio que os demais. Mas, além de aumentar o alvoroço a que estamos expostos nas redes sociais, os memes políticos oferecem uma forma subversiva de questionar os discursos dominantes de governos autoritários. Gerbaudo afirma que o uso de memes "como meio de contestação política é enriquecido pela prevalência do sarcasmo e da ironia, que são muito comuns nos memes, expondo a fraqueza, a mediocridade ou a ignorância do adversário, ridicularizando a pompa excessiva, a arrogância excessiva dos poderosos". Mas também podem ser usados como veículos para o descontentamento político e a raiva. O ativismo digital na forma de memes é uma forma de expressão importante para as pessoas que vivem em regimes opressivos, em que o debate aberto na imprensa contra as instituições é algo inaceitável. Um estudo encontrou memes satíricos postados em páginas do Facebook no Marrocos, ostensivamente definidos como "para diversão" ou "de entretenimento" — mas que, na verdade, geravam discussões políticas subversivas sobre a monarquia, que acabavam incentivando a participação política. É claro que, em regimes políticos mais autoritários, sempre existe a possibilidade de que os memes políticos subversivos sejam censurados de uma forma ou de outra, como ocorreu com o meme do Ursinho Puff, que brincava com o presidente chinês Xi Jinping. Em um artigo publicado no Journal of Visual Culture, a escritora e tecnóloga An Xiao Mina afirma que os memes políticos na China são dissimuladamente subversivos para evitar o escrutínio dos censores estatais humanos ou eletrônicos. Segundo ela, a cuidadosa inclusão de mensagens ativistas em imagens simples, como um gato ou uma lhama, pode disfarçar esses memes como se fossem conteúdo trivial e apolítico, reduzindo a probabilidade de que sejam identificados e bloqueados. "No mundo de hoje, os memes são as sementes que dão origem aos movimentos sociais", escreve An Xiao Mina no livro Memes to Movements ("Memes para os movimentos", em tradução livre). "Mas, para florescer, eles precisam encontrar seu lugar no terreno fértil das mentes e culturas." Em certos casos, os ativistas estão levando a cultura dos memes da internet de volta para as ruas, como ocorreu em Mianmar em 2021 e na Marcha das Mulheres em Washington, nos EUA, em 2017, tentando usar o humor e as imagens desenvolvidas nas redes sociais para reforçar seus objetivos. Durante a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014, memes também foram usados para espalhar ideias por ativistas contrários e favoráveis ao governo, segundo a pesquisa conduzida por Anastasia Denisova, professora de jornalismo da Universidade de Westminster, no Reino Unido, e autora do livro Internet Memes and Society: Social, Cultural and Political Contexts ("Memes da internet e sociedade: contextos sociais, culturais e políticos", em tradução livre). Denisova afirma que eles forneceram uma forma poderosa de discurso alternativo, fora do "ambiente restrito da imprensa russa". Limor Shifman destaca que os memes são usados como aparelhos políticos por todos os lados do debate. "[Os memes] abalam os equilíbrios de poder e permitem que pessoas comuns expressem suas opiniões, expressem suas ansiedades", afirma. "Por outro lado... os memes podem também ser forças dos governos, eles agora são usados por empresas poderosas, também são usados por extremistas de todo tipo." Mas os memes podem ter um lado ainda mais sombrio, ajudando a difundir desinformação e teorias da conspiração que podem ter impactos no mundo real, como ficou evidente durante a pandemia de covid-19. Em vez de serem uma forma de apresentar teorias elaboradas, os memes foram descritos como oferecendo conspirações "compactas", que podem ser repetidas, adaptadas e amplamente compartilhadas. No caso da covid-19, muitos dos memes conspiratórios que surgiram foram tentativas de preencher lacunas de conhecimento à medida que a pandemia se alastrava. "Quando você não tem conhecimento suficiente, você vai preencher as lacunas com qualquer conhecimento que possa encontrar", afirma o psicólogo forense Alexander Jack, da Birmingham and Solihull Mental Health Foundation Trust, no Reino Unido, que estudou como os memes conspiratórios sobre covid-19 se espalharam entre os pacientes com problemas de saúde mental. Para essas pessoas, os memes conspiratórios podem ser mais problemáticos, segundo adverte a psiquiatra forense Reena Pancha, copesquisadora do estudo. "Se você for uma pessoa vulnerável e encontrar alguém ou um grupo de pessoas com as mesmas opiniões, você imediatamente percebe uma sensação de pertencimento e aquilo meio que aumenta a força das suas crenças", explica. Mas, à medida que os memes se espalham e se transformam na velocidade da luz, podemos esperar que eles permaneçam como forma de expressão no futuro. "Este formato de comunicação chegou para ficar porque é uma forma muito estável de expressar sua individualidade e seu senso de comunidade", afirma Shifman. Já Gerbaudo destaca que os memes estão evoluindo para incluir mais compartilhamento de vídeos. "Os vídeos do TikTok têm características de memes", ele observa. "Eles reagem a desafios, que têm um certo formato, no qual as pessoas precisam meio que brincar com um certo conjunto de interações pré-estabelecidas." Mas os memes são uma força do "bem" ou do "mal"? Tudo depende de como decidimos utilizá-los. "Eles são modos neutros de comunicação", segundo Idil Galip. "Você pode dar qualquer sentido aos memes, dependendo do que queira transmitir." O que fica claro é que os memes modestos não devem ser subestimados. Eles escondem complexidade e cultura por trás da sua aparência simples. Online, os memes são importantes facilitadores da comunicação, pertinentes e parte do ativismo digital, que podem nos unir ou nos dividir, dependendo de quem somos e de como interagimos com eles.
2022-10-22
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-63304815
sociedade
60 anos da crise dos mísseis de Cuba: as fotos de aviões espiões que ajudaram a revelar armamento
A primeira pergunta do presidente americano John F. Kennedy para o funcionário da CIA Sidney Graybeal naquela manhã deixava clara sua principal preocupação: "Isso está pronto para ser disparado?" "Isso" eram os mísseis que a União Soviética (URSS) havia secretamente transportado para Cuba. Seu alcance de 1.770 km permitiria atingir com bombas nucleares todo o sudeste de Estados Unidos - e até alcançar a capital do país. O clima em Washington, com seus agradáveis 23 °C, estava longe de refletir o aumento brutal da temperatura política que acabava de ocorrer naquele 16 de setembro de 1962. E esse clima perduraria por várias semanas, quando o mundo viveu seu momento mais próximo da 3ª Guerra Mundial. Graybeal era o chefe da Divisão Espacial e de Mísseis da CIA. Naquele dia, ele havia chegado à Casa Branca às 7h, junto com Art Lundahl, então diretor do Centro de Interpretação Fotográfica (NPIC, na sigla em inglês), que era o precursor da atual Agência Nacional de Inteligência Geoespacial. Eles levaram grandes quadros, preparados para sua exposição sobre a existência dos mísseis soviéticos em Cuba, perante o Comitê Executivo do Conselho de Segurança Nacional (EXCOMM, na sigla em inglês), que era o grupo de funcionários que viria a assessorar Kennedy ao longo da crise. Fim do Matérias recomendadas Mas, antes disso, eles passaram a manhã informando altos funcionários sobre a gravidade da situação. Eles falaram com o conselheiro de Segurança Nacional, McGeorge Bundy; com o secretário do Tesouro, Clarence Douglas Dillon; e, depois, com o então procurador-geral da república, Bobby Kennedy, irmão do presidente, que subiu imediatamente até o quarto pessoal de John Kennedy para informá-lo. Por volta das 11h, os funcionários passaram para o salão do gabinete. E, perto de meio-dia, o presidente Kennedy reuniu-se a eles. Após a breve introdução do então diretor em exercício da CIA, o general Marshall "Pat" Carter, Lundahl abriu os enormes quadros sobre a mesa, bem em frente ao presidente. Ao lado de Kennedy, estavam o então secretário da Defesa, Robert McNamara, e de Estado, Dean Rusk. Lundahl começou a detalhar as imagens aéreas que mostravam os acampamentos sendo montados na ilha para instalação das armas soviéticas. Mas os mísseis, as plataformas de lançamento, outros objetos e estruturas que haviam sido fotografados estavam cobertos por grandes lonas, o que levou Kennedy a perguntar como eles sabiam que ali havia mísseis balísticos de médio alcance. Foi quando chegou a vez de Graybeal intervir como especialista em mísseis Anos depois, ele explicaria que as conclusões a que eles haviam chegado sobre o tipo de mísseis a serem lançados, bem como as condições e o tempo necessário para o seu disparo, eram o resultado da análise de um conjunto de elementos que combinava informações de inteligência obtidas por fontes humanas e a análise das fotografias aéreas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As imagens feitas pelos aviões de reconhecimento tiveram papel fundamental. "As fotografias aéreas foram a chave de toda a crise dos mísseis cubanos", afirmou Dorothy Cochrane, curadora do Museu Nacional do Ar e Espaço do Instituto Smithsoniano, à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC). Para essas tarefas, foram utilizados dois tipos de aeronaves. Um deles foi o avião de reconhecimento U-2 da empresa Lockheed Martin, que tirava fotografias em grande altitude. E havia os aviões Vought RF-8 Crusader e RF-101, que podiam realizar voos de baixa altitude, por cima das copas das árvores, a cerca de 30 metros do solo. Cochrane indica que os aviões de reconhecimento U-2 possibilitaram detectar o que estava acontecendo em Cuba, permitindo a Kennedy confrontar o primeiro-ministro soviético, Nikita Khrushchev, que inicialmente negou as ações da URSS na ilha. "Kennedy então pediu que se fizessem fotografias de baixa altitude, que realmente confirmaram a presença desses mísseis", diz Cochrane. "Por isso, foram as imagens de baixa altitude feitas pelo capitão William Eckner, da Marinha americana, no seu avião RF-8A, que confirmaram a presença da base de mísseis soviética e seu nível de preparação para o lançamento." Ela explica que essas imagens foram mostradas para Kennedy como prova de um possível ataque iminente e também serviram para que o presidente refutasse a negativa de Khrushchev sobre o envio dos mísseis soviéticos para Cuba. Posteriormente, houve um momento em que as imagens dos aviões de reconhecimento foram mostradas para o mundo na Organização das Nações Unidas (ONU), de forma que a URSS já não poderia continuar negando o que estava acontecendo. No verão de 1962, a inteligência americana começou a receber informações sobre a entrada sem precedentes de armas soviéticas em Cuba. Uma missão do avião de reconhecimento U-2 em 29 de agosto descobriu a presença de mísseis terra-ar SA-2, o que gerou preocupação junto ao chefe da CIA, John McCone. Ele enviou uma nota a Kennedy, expressando sua apreensão de que a URSS pudesse tentar instalar mísseis ofensivos em Cuba. Mas o presidente, da mesma forma que a maior parte da comunidade americana de inteligência, estava inclinado a acreditar que esses mísseis estivessem desmontados com fins defensivos, para evitar outra ação como a invasão da Baía dos Porcos. Enquanto isso, a CIA vinha recebendo diversos relatórios de inteligência humana provenientes de Cuba através de Miami, na Flórida, nos Estados Unidos, sobre o transporte de mísseis por diferentes partes da ilha. "Analisei detalhadamente esses relatórios e a maior parte deles poderia referir-se a mísseis terra-ar, pois, segundo as descrições, eles não eram suficientemente grandes para serem mísseis ofensivos. Noventa por cento desses relatórios podiam ser explicados dessa forma, como não sendo mísseis ofensivos", afirmou Sidney Graybeal em uma entrevista concedida em 1999, mantida no Arquivo de Segurança Nacional da Universidade George Washington, nos Estados Unidos. Mas o ex-funcionário explicou que, dentre todos esses relatórios, cinco eram realmente preocupantes, pois descreviam um objeto coberto com uma lona, que era sempre transportado em altas horas da noite. Ele era levado em um trailer que não conseguia dobrar as esquinas e, por isso, precisava retroceder e avançar, devido às suas dimensões similares às de um poste telefônico. "Um míssil terra-ar não teria enfrentado problemas [para dobrar as esquinas], de forma que esse relatório e outros similares foram a base que usamos, quando os U-2 começaram a voar, para tentar orientar onde eles deveriam procurar", explicou Graybeal. Foi assim que uma missão conduzida no dia 14 de outubro de 1962 encontrou as primeiras imagens que foram analisadas no dia seguinte pelos especialistas do NPIC e apresentadas a Kennedy na reunião de 16 de outubro. Naquela primeira sessão do EXCOMM, as imagens mostravam, entre outras coisas, comboios soviéticos transportando mísseis perto de San Cristóbal e a existência de um provável complexo de lançamento de mísseis balísticos de médio alcance em Guanajay, ambas na região centro-oeste de Cuba. Segundo o relatório inicial apresentado pelo general Carter, foram identificados no local de lançamento 14 trailers de mísseis cobertos com lonas, com cerca de 20 metros de comprimento. Este viria a ser um dado fundamental para determinar o tipo de míssil, embora não fosse o único. Graybeal explicou para Kennedy naquela reunião que havia dois tipos de mísseis balísticos soviéticos envolvidos - o SS-3, que media cerca de 20 metros e podia ter alcance de 1.014 km a 1.126 km, e o SS-4, que media cerca de 22 metros e tinha alcance de até 1.770 km. Os mísseis SS-4 detectados em Cuba estavam sem o cone na ponta, o que justificava a diferença entre os 20 metros de comprimento dos trailers e os 22 metros dos mísseis já montados. Na entrevista concedida em 1999, Graybeal explicou que, para identificar esses mísseis, foram empregadas as fotografias tiradas pelos aviões U-2 sobre Cuba, além de imagens captadas quanto esses mísseis eram exibidos nos desfiles militares em Moscou e outras em lugares onde eles sabiam que esses mísseis haviam sido testados. "Nós tínhamos excelentes informações de telemetria, que nos forneciam as características internas do míssil", afirmou ele, salientando que, desta forma, eles conheciam o alcance e a capacidade de carga, entre outros detalhes. Outra informação crítica muito importante, embora não fosse proveniente das fotografias aéreas, vinha dos manuais de funcionamento daqueles mísseis, que os Estados Unidos haviam conseguido por meio de Oleg Penkovsky, alto oficial da inteligência soviética que colaborou com a CIA e com o Serviço Secreto de Inteligência britânico (o MI6). Com esses dados, era possível saber o que faltava e quanto tempo seria necessário para instalar um míssil daquele tipo e deixá-lo pronto para ser disparado. Após aquela primeira reunião do EXCOMM, os aviões de reconhecimento norte-americanos continuaram realizando missões para acompanhar a situação no local. Foi assim, por exemplo, que um voo permitiu identificar, em 16 de outubro de 1962, o local onde provavelmente estavam armazenadas as ogivas nucleares, próximo a um dos locais de lançamento. E, no dia seguinte, outra missão detectou a presença na ilha de caças soviéticos MIG-21. As imagens forneceram indicações sobre a presença de tropas perto dos locais onde estavam localizados os mísseis. Isso ajudou a avaliar a quantidade de militares soviéticos enviados para a ilha e a rapidez com que eles poderiam deixar os mísseis prontos para disparo. Os aviões de reconhecimento também localizaram as defesas instaladas pelos soviéticos para proteger seus mísseis balísticos. A presença de mísseis terra-ar dificultava as operações de vigilância americanas e reduzia a probabilidade de uma ação militar sobre a ilha. Eles também permitiram descobrir como a URSS estava reforçando sua presença militar em Cuba com o envio, em partes, de aviões bombardeiros Ilyushin-28, para que fossem montados na ilha. As fotografias aéreas possibilitaram aos Estados Unidos acompanhar os avanços soviéticos para a instalação dos mísseis de médio alcance, como se pode observar na imagem de 25 de outubro de 1962. Nela, estão presentes todos os elementos necessários para o lançamento de um desses mísseis, segundo os analistas do NPIC. Os rastros no terreno que levam até uma das tendas onde os mísseis estavam abrigados indicam que ali havia uma arma quase pronta para ser usada. Após a resolução da crise pela via diplomática, quando os soviéticos aceitaram retirar os mísseis de Cuba, as fotografias dos aviões de reconhecimento permitiram acompanhar a desmontagem dos acampamentos e a retirada do material bélico até seu embarque de volta para a União Soviética. E, seis décadas depois da crise dos mísseis, os aviões de reconhecimento U-2 continuam em operação. Eles sobreviveram ao desenvolvimento dos satélites de vigilância e dos drones não tripulados, que se acreditava que fossem torná-los obsoletos.
2022-10-22
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63317987
sociedade
Após ataque violento, homem estuda medicina aos 39 anos e tem rosto reconstruído por colegas
Em 2010, Picasso Rodrigues, na época com 38 anos, saiu com amigos para uma lanchonete em Maringá, no Paraná, para comemorar a promoção que havia conseguido na empresa de telefonia onde trabalhava. "Dei dinheiro para um guarda ficar de olho no meu carro e fui tranquilo. Quando voltei para ir embora, levei uma pancada na cabeça e não lembro de mais nada." Picasso foi encontrado no dia seguinte, no canteiro de uma obra, com o rosto completamente desfigurado por politraumatismo facial, que parecia ter sido causado por um ataque violento com uma pedra. "Os pedreiros me encontraram sem sinais vitais aparentes. Eu perdi parte da audição do ouvido esquerdo e da minha visão, hoje não tenho mais a capacidade de perceber detalhes como as características do rosto de alguém em uma distância a partir de dois metros. Além disso, fiquei sem olfato e paladar permanentemente", revela. Picasso passou por 22 cirurgias e ficou internado no hospital durante três meses. Fim do Matérias recomendadas "Todo mundo quer saber de você nos primeiros dias. Depois que passam várias semanas, só a família mesmo. Não que eu não tivesse bons amigos, mas a própria rotina consome as pessoas", diz ele. "Quando eu finalmente saí do hospital, tinha dificuldade para caminhar, e, como não podia dirigir por não enxergar direito, não conseguia mais trabalhar no mesmo emprego. Eu não podia voltar a ser quem eu era, precisava ressignificar minha vida." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Foi quando Picasso passou a reconsiderar um sonho antigo, de infância, de se tornar médico. "Esse desejo me assustou um pouco, nem a molecada afiada conseguia passar no vestibular, que é muito concorrido, e eu já tinha 39 anos na época." Inscrito em um cursinho, ele ficou quatro anos seguidos se dedicando aos estudos para o vestibular. "A partir do segundo ano, eu passei para algumas universidades, mas meu objetivo era estudar na PUC Curitiba, então segui batalhando. Mas depois de algum tempo, decidi fazer a inscrição na UNOESC (Universidade do Oeste de Santa Catarina). Cursei alguns meses, e no mesmo ano, fui visitar minha mãe em Maringá. Ela me incentivou a tentar entrar na universidade que era minha primeira escolha." Picasso conseguiu uma vaga na PUC de Londrina, mais perto da mãe, em Maringá — mas, no ano seguinte, ela faleceu. "Um cardiologista que era coordenador do curso me ajudou a fazer a transferência para a unidade de Curitiba em janeiro de 2018. Aí eu pude dizer que realizei completamente meu projeto de vida." Durante os dois últimos anos de medicina é comum que os alunos de medicina fiquem mais focados na experiência prática, passando por diferentes especialidades. "Quando fiquei trabalhando na área de otorrinolaringologia, fiz amizade com as residentes, e depois de algum tempo, elas perguntaram o que tinha acontecido com o meu rosto — que ainda era bastante deformado." Depois de algum tempo, as médicas disseram que se ele aceitasse, a PUC e o Hospital Universitário Cajuru, onde a equipe trabalhava, gostariam de reconstruir esteticamente sua face. "Em janeiro de 2022, uma cirurgia extensa, de nove horas, foi feita pelo meu professor e minhas amigas no hospital em que estou me tornando médico, que é parceiro da universidade em que sempre sonhei entrar. Significou muito." Gabriel Zorron Cavalcanti, professor de Picasso, é responsável pela área de cirurgia crânio-facial dentro do departamento de otorrinolaringologia — e conta alguns detalhes sobre o procedimento. "Ele tinha várias placas de cirurgias antigas infeccionadas e gerando rejeição, que estavam comprometendo a função do rosto. Como ele teve múltiplas fraturas, quem tentou reconstruir inicialmente colocou placas sem o osso [que já era inexistente] por baixo, deixando o nariz sem formato." O cirurgião conta que a face foi novamente aberta, as placas antigas foram retiradas, e uma vasta limpeza com soro fisiológico e antibióticos foi feita dentro do rosto dele. Para a reconstrução, foi usado o material mais biocompatível possível: um enxerto ósseo [parte do osso de outro local do corpo. "Em casos de reconstrução de face, um bom material é a cartilagem da costela. Focamos não só na estética, mas em toda a funcionalidade do nariz — e fizemos uma reconstrução completa", explica Buco. Como aluno, ele afirma que Picasso é muito perseverante apesar de sua dificuldade aumentada por conta dos traumas que sofreu na face. "Ainda assim ele consegue superar, em muito, a média dos estudantes", afirma. Depois da cirurgia, Picasso diz ter recuperado parte da sua autoestima perdida no ataque. "Eu olhava no espelho e não me reconhecia. Hoje vivo procurando espelhos." Em menos de um mês, Picasso vai se tornar médico. "Não foi fácil fazer faculdade na minha idade, com as limitações que eu tenho… Mas quando eu lembrava o que havia me levado até ali, tudo fazia sentido." No início do curso, o desejo era se tornar psiquiatra. "Foram três as pessoas que me agrediram, mas [de acordo com as investigações], só uma quase me matou. Eu entrei na faculdade para entender o que seria um psicopata, mas no decorrer das aulas, aprendi outras coisas pelas quais me apaixonei", conta. Ele decidiu se tornar médico de família e comunidade para "atender no postinho mesmo, da criança à vovó, conhecer a realidade de cada um, e ajudar não só na saúde física, mas no espectro social daquelas pessoas". "O que me realiza é que, pelo fato de eu ter ficado no hospital, e agora estar na beira do leito, eu entendo que posso levar alguma esperança. Meus amigos falam: 'Você vai para o hospital e volta sorrindo'. Não é que eu não tenha sensibilidade, mas me alegra poder contribuir." Picasso diz contar sua história aos pacientes sempre que tem a oportunidade. "Eu vejo que isso inspira as pessoas. Muitos pensam: 'Esse cara ficou todo bagunçado e conseguiu realizar um sonho. Acho que dá para mim também'."
2022-10-22
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63205896
sociedade
Por que a geração Z bebe menos que as anteriores
Quando Lola era adolescente, seu hábito de beber variava em ciclos. Ela podia passar uma noite bebendo muito e o dia seguinte inteiro se arrependendo e juntando os cacos. Depois, ela ficava um período sóbria, até que viesse a balada seguinte. Mas, quando veio a pandemia, Lola voltou para a casa dos seus pais em Londres e seu hábito de beber foi abruptamente suspenso. Ela conta que o lockdown trouxe uma oportunidade de afastar-se dos seus costumes arraigados e cuidar dos seus problemas de ansiedade. Agora, a estudante de 22 anos tem uma relação diferente com o álcool. Recentemente, ela começou a sair sem beber. Lola ainda bebe, mas com muito menos frequência. "Não sou contra a bebida — eu simplesmente não gosto de me embriagar ou me sentir mal na manhã seguinte", afirma ela. "Gosto de ir para casa com segurança e me lembrar das pessoas que conheci. Por isso, as noites sóbrias funcionam bem para mim." Fim do Matérias recomendadas Lola não é um caso isolado entre seus amigos. Ela conta que todos estão bebendo menos desde o início da pandemia e que ela não enfrenta julgamento dos colegas quando não bebe. "Os amigos que não reduziram a bebida tanto quanto eu acham bom quando as pessoas saem e não bebem", ela conta. "A mentalidade é 'cada um faz o que quiser' e as pessoas respeitam suas escolhas, seja para proteger sua saúde mental ou simplesmente porque você não gosta." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Experimentar o álcool e beber em excesso eram considerados, há muito tempo, um rito de passagem para a idade adulta, pelo menos na cultura ocidental. Desde muito cedo, muitas vezes antes da idade legal, o álcool é considerado um "lubrificante social" — uma forma de se divertir, fazer amigos e escapar da realidade do dia a dia. Poucos eventos sociais deixavam de incluir alguma forma de álcool. Mas os jovens da geração Z (nascidos entre 1995 e 2010) estão mais cuidadosos à medida que entram na idade adulta, seja não bebendo ou bebendo com muito menos frequência e em menor quantidade que as gerações anteriores. O maior estudo recente sobre o comportamento de bebida no Reino Unido concluiu que, em 2019, a geração com 16 a 25 anos de idade era a mais abstêmia — 26% deles não bebiam, em comparação com 15% entre a geração que mais bebia (55 a 74 anos de idade). Entre os americanos adultos, o instituto Gallup concluiu que pessoas com 35 a 54 anos de idade são as mais dispostas a beber álcool (70%), à frente da geração Z (60%) e dos baby boomers (52%). Já um estudo de 2020 indicou que a parcela de jovens americanos abstêmios em idade universitária aumentou de 20% para 28% em uma década. Entre as pessoas que bebem, a maior parte dos jovens europeus (definidos como entre a idade legal e 39 anos) bebe uma vez por mês (27%). Nos Estados Unidos, o maior grupo bebe uma vez por semana (25%). Especialistas indicam que a redução do consumo de álcool pelos jovens é significativa e está espalhada pela maior parte dos países europeus de renda mais alta, além dos Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia. Durante o lockdown, os australianos da geração Z mostraram-se mais dispostos a reduzir o seu consumo — 44% informaram que estavam bebendo menos, o que é mais que o dobro do percentual de qualquer outra geração. E, na Nova Zelândia, a incidência de consumo excessivo de álcool entre os jovens também caiu em mais da metade entre 2001 e 2012 — e continua a cair até hoje. Mas atribuir essa queda a um único fator é impossível. Os jovens da geração Z estão crescendo em um cenário social único. Sobrecarregados com preocupações sociais e financeiras, eles são mais avessos ao risco. E eles têm uma compreensão maior de como a bebida prejudica a saúde deles e das pessoas à sua volta. Com isso, está florescendo uma cultura de juventude em que beber deixou de ser o normal, e essa mudança está se fazendo presente. O comércio e o setor de hotéis e restaurantes estão se movendo com rapidez para adaptar-se enquanto a geração Z redefine o conceito de "balada" e socializa muitas vezes sem beber. O declínio do consumo de bebida ocorre, em parte, porque a geração Z aparentemente é mais cautelosa que as anteriores, tanto em termos de saúde quanto da percepção de si próprios pelos colegas. "[A redução do consumo de bebidas alcoólicas] certamente não está acontecendo devido às políticas contra o álcool, porque todas as práticas de risco estão diminuindo — uso de drogas, sexo sem proteção e comportamentos arriscados [como o fumo, crime e direção perigosa]. Os jovens em geral são mais avessos ao risco", afirma Amy Pennay, pesquisadora sênior do Centro de Pesquisa de Políticas sobre o Álcool da Universidade La Trobe, em Melbourne, na Austrália. Um fator para essa mudança é o fato de que os jovens hoje em dia sabem muito mais sobre os perigos associados a esse tipo de comportamento. E, com maior disponibilidade de pesquisas e com a discussão aberta, o seu conhecimento é cada vez mais multifacetado, segundo Pennay. Atualmente, é mais fácil do que nunca aprender mais sobre os riscos da bebida, seja com uma rápida pesquisa no Google, visitando comunidades no TikTok (como #SoberTok, em inglês) ou conversando com amigos e familiares. A preocupação com a perda do controle e o desenvolvimento de dependência da bebida, por exemplo, é sensivelmente mais alta entre os jovens. Uma pesquisa do Google em 2019 concluiu que 41% dos jovens da geração Z associam o álcool a "vulnerabilidade", "ansiedade" e até "abuso". E, no Reino Unido, 60% dos jovens da geração Z associam beber à perda de controle — quase o dobro dos que não fazem essa associação. Ondas de casos em que pessoas sofrem o golpe do "boa noite, Cinderela" em bares e baladas também pode dissuadir as pessoas de beber, especialmente as mulheres. E, com as atividades dos jovens podendo ser exibidas em tempo real nas redes sociais para os amigos, familiares e até empregadores, perder o controle traz uma carga de risco. A mesma pesquisa do Google indica que 49% dos jovens da geração Z afirmam que sua imagem online está sempre na mente quando eles saem para beber e socializar. Por isso, não é surpresa que 76% deles acreditam ser importante estar no controle de todos os aspectos da sua vida, todo o tempo. John Holmes, professor de políticas sobre álcool da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, acrescenta que também houve uma acentuada mudança de comportamento. A geração Z não só tem consciência mais profunda dos riscos à saúde, mas também rejeita ativamente a noção de embriaguez. "Em meados até o final dos anos 2000, beber demais e ficar embriagado era uma maneira de formar e solidificar amizades. Até experimentar juntos os efeitos negativos [da bebida] era uma parte fundamental da formação e manutenção de amigos na adolescência e no início da idade adulta", afirma ele. "Mas a geração Z costuma considerar a embriaguez desagradável, inconveniente ou desinteressante." Lola, por exemplo, fica desconfortável quando vê alguém muito bêbado. "Conheço poucas pessoas que bebem muito e ficam bem", afirma ela. "Ainda bem que a narrativa está mudando e as pessoas reconhecem que beber demais é ruim para elas." Mas não só a aversão ao risco está reduzindo o consumo de álcool. A forma como as pessoas encaram o lazer também mudou. Especialistas afirmam que isso, em grande parte, está ligado aos desafios que os jovens percebem que os aguardam no futuro, bem como à forma em que eles querem levar as suas vidas. O uso da tecnologia e o consumo de conteúdo a todo momento fazem com que o lazer muitas vezes assuma a forma de fuga, ou de intervalo da extroversão das redes sociais. Durante pesquisas no início dos anos 2000, em meio a uma era de alto consumo de álcool e drogas de recreação, Pennay lembra-se de ver jovens discutindo o abandono hedonístico e seu desejo de desligar-se "ficando obliterados e aproveitando o momento". Agora, acontece o oposto. Para Pennay, os jovens da geração Z normalmente preferem recarregar suas baterias no tempo de descanso do trabalho ou aperfeiçoando seus estudos ou desenvolvimento pessoal. Mas, embora o crescimento profissional seja prioridade entre os jovens, conseguir ganhar a vida já é suficientemente difícil. Em 2022, a empresa de serviços profissionais Deloitte perguntou a quase 15 mil jovens da geração Z de todo o mundo qual a sua principal preocupação. Eles mencionaram o custo de vida em primeiro lugar (29%), acima das mudanças climáticas, do desemprego, da saúde mental e do assédio sexual. Quase a metade deles (46%) afirmou que vive um mês de cada vez, preocupando-se com o pagamento das suas despesas. E, para fechar suas contas, 43% têm um segundo trabalho de tempo parcial ou integral além do seu emprego principal — 10% a mais do que os millennials (os nascidos entre 1981 e 1995). "A forma como a geração Z mantém seu orçamento e suas economias é muito diferente das gerações anteriores, pois eles não podem entrar no mercado habitacional", afirma Pennay. "Por isso, alguns veem o álcool como um produto caro demais, que ofusca o quadro mais amplo." Proteger sua saúde mental é o principal motivador da curiosidade de Lola sobre permanecer sóbria, mas o custo do álcool também representa um papel importante. No início do ano, ela morou em Paris, na França, e lá ela bebia mais porque era muito mais barato. "Eu conseguia gastar 20 euros (cerca de R$ 102) e beber com frequência, mas, em Londres, esse dinheiro não chega", ela conta. "Mesmo se eu realmente quisesse me embriagar, eu não teria dinheiro para isso." Sejam quais forem as causas, mais jovens se afastando do álcool trazem um ambiente que facilita e até incorpora a sobriedade. Jason, que tem 24 anos e mora em Nova York, nos Estados Unidos, parou de beber há três anos. Desde então, ele fez amizade com muitos outros jovens que não bebem. "Beber é uma parte importante da cultura de Nova York e eu esperava enfrentar atritos, mas as pessoas com a minha idade e mais jovens são muito gentis e atenciosas sobre a minha decisão", ele conta. Holmes acredita que as atitudes e o comportamento moderado em relação ao álcool da geração Z são um progresso natural. "O consumo de álcool cresceu ao longo da segunda metade do século 20, mas o hedonismo e o excesso de bebida do final dos anos 1990 e início dos anos 2000 foram um pico irracional", afirma ele. "As tendências de consumo vêm em longas ondas que sobem e descem - esperava-se que a bebida diminuísse em algum momento e era provável que as gerações mais jovens fizessem essa mudança." Naturalmente, a geração Z perdeu uma série de ritos de passagem para a idade adulta durante a pandemia e ainda não está claro se o intervalo de dois anos irá mudar a forma como os jovens veem a socialização no futuro. Mas, de forma geral, Pennay não prevê um grande retorno ao consumo excessivo de bebida após a pandemia. Se for normal não beber com 17 anos de idade, será ainda mais normal com 18, 19 e assim por diante. A geração Z agora representa um terço da população mundial e a indústria do álcool está se adaptando às novas preferências dos jovens. Emma Hutchison, fundadora da agência global de bebidas Sweet & Chilli e proprietária de três bares em Londres, observou uma mudança entre os jovens, que agora priorizam a qualidade e não a quantidade. Em vez de beber diversos coolers, eles podem agora preferir um coquetel, com ou sem álcool, que dure toda a noite. De fato, um estudo do final de 2021 concluiu que pessoas com mais de 21 anos de idade nos Estados Unidos preferem bebidas fortes como destilados ou refrigerantes alcoólicos, champanhe e bebidas com pouco ou sem álcool, no lugar de vinho e cerveja. "Eles estão procurando experiências de qualidade que enriqueçam suas vidas", afirma Hutchison. "Os jovens da geração Z querem marcas que estejam de acordo com suas próprias mentalidades e estão tomando decisões mais conscientes sobre o que eles consomem." Da mesma forma, a rápida expansão do setor de bebidas não alcoólicas e a inovação que ela traz enviou uma mensagem para os consumidores que não bebem ou que estão curiosos sobre a abstinência: os bares têm algo a oferecer para todos. "Antigamente, você podia sentir-se excluído no local de alimentação se não quisesse beber", afirma Hutchison. "Mas é muito estimulante ver bebidas não alcoólicas receberem a mesma publicidade, consideração e qualidade dos ingredientes das suas versões alcoólicas." A maior diversidade de opções também está trazendo dividendos. Ao contrário do álcool, a categoria sem ou com pouco álcool vem crescendo consistentemente e a empresa líder na análise do mercado de bebidas IWSR prevê que, até 2024, o volume total de consumo crescerá em mais de 31% no Brasil, Austrália, Canadá, França, Alemanha, Japão, África do Sul, Espanha, no Reino Unido e nos EUA. Após a pandemia, os bares e restaurantes também aumentaram sua oferta de experiências para atrair todas as gerações, especialmente a geração Z. Eles acrescentaram mesas de pingue-pongue e de shuffleboard, por exemplo. "Existe enorme desejo de socializar-se em espaços que tenham sido e ainda são associados a 'sair para beber'", segundo Hutchison. "Mas, com a indústria patrocinando alternativas, será mais um espaço seguro para que a geração Z se socialize, conecte-se e aproveite ricas experiências de comidas e bebidas." Como ocorre com a maioria dos jovens com 24 anos de idade, Jason tem uma vida social concentrada em cafeterias, restaurantes, partidas esportivas e noites com amigos. Ele gosta de experimentar atividades alternativas que não envolvam bebida. "Vou a festas sem bebida e a festas onde as pessoas bebem. Eu gosto de ser ativo e sair", ele conta. "Tem sido revelador para mim perceber que você pode ser jovem e abstêmio e ter amizades muito intensas." Os sobrenomes de Lola e Jason foram omitidos para manter sua privacidade pessoal e profissional.
2022-10-21
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-63315138
sociedade
Qual a idade certa para dar um celular a uma criança
É um dilema da vida moderna. Você deve dar um telefone celular ao seu filho ou mantê-lo longe dos aparelhos pelo maior tempo possível? Pais e mães costumam pensar que o telefone celular é uma espécie de caixa de Pandora que pode liberar todo o mal que existe no mundo e fazer com que ele entre na vida sadia dos seus filhos - e devem ser perdoados por isso. Afinal, as inúmeras e desconcertantes manchetes sobre o possível impacto dos telefones e do uso das redes sociais pelas crianças são suficientes para fazer qualquer pessoa se afastar deles. E nem as celebridades parecem ser imunes a esse problema moderno da criação de filhos. Madonna afirmou que se arrependeu de dar telefones aos seus filhos mais velhos com 13 anos de idade e que não faria isso de novo. Por outro lado, provavelmente você tem um celular que considera uma ferramenta essencial para a sua vida diária - e usa para checar emails, fazer compras online, chamadas de vídeo e manter álbuns de fotos da família. E, se todos os colegas de escola e amigos dos seus filhos estiverem ganhando smartphones, eles não ficariam excluídos se não tivessem um? Existem ainda muitas questões sem resposta sobre os efeitos de longo prazo dos telefones celulares e das redes sociais sobre as crianças e adolescentes, mas as pesquisas existentes fornecem algumas evidências sobre os seus principais riscos e benefícios. Fim do Matérias recomendadas Particularmente, embora não existam amplas evidências que demonstrem que ter um telefone celular ou usar as redes sociais seja prejudicial para o bem-estar das crianças em geral, pode haver outros aspectos nesta história que ainda são desconhecidos. A maior parte das pesquisas disponíveis no momento concentra-se nos adolescentes e não nos grupos de menor idade - e as evidências que surgem demonstram que pode haver fases específicas de desenvolvimento em que as crianças são mais suscetíveis a efeitos negativos. E, mais do que isso, os especialistas concordam que diversos fatores importantes devem ser considerados ao decidir se o seu filho está pronto para ter um celular - e o que deve ser feito quando eles tiverem um. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os smartphones ainda são uma tecnologia relativamente nova para podermos compreender seus efeitos de longo prazo. Mas já existem evidências que revelam alguns fatores importantes para diferentes faixas etárias: Crianças de zero a oito anos de idade têm "pouca ou nenhuma percepção dos riscos online, quando o assunto é o uso de telefones celulares e aplicativos de redes sociais", segundo um estudo realizado em sete países europeus. Os pais detêm influência poderosa como modelos: o mesmo estudo concluiu que as crianças, muitas vezes, copiam o uso do celular pelos seus pais. Os adolescentes podem ser particularmente sensíveis ao feedback das redes sociais. Certas mudanças de desenvolvimento durante a adolescência podem significar que os jovens ficam mais sensíveis ao status e às relações sociais, o que, por sua vez, pode tornar o uso das redes sociais mais estressante para eles. Especialistas afirmam que a abertura e a comunicação são fundamentais quando o assunto é a forma com que os pais lidam com o uso dos smartphones pelos jovens. Isso inclui conversar sobre o que eles estão vendo e suas experiências online. Dados do órgão regulador britânico de comunicações Ofcom demonstram que a ampla maioria das crianças no Reino Unido tem um smartphone com 11 anos de idade. Esse índice sobe de 44% aos 9 anos para 91% aos 11 anos. Nos Estados Unidos, 37% dos pais de crianças com 9 a 11 anos de idade afirmam que seu filho tem seu próprio celular. E, em um estudo realizado em 19 países da Europa, 80% das crianças com 9 a 16 anos de idade responderam que usam um smartphone para acessar a internet diariamente ou quase todos os dias. "Quando estudamos os adolescentes mais velhos, mais de 90% têm telefone", afirma Candice Odgers, professora de Psicologia da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Um relatório europeu sobre o uso da tecnologia digital entre crianças desde o nascimento até os 8 anos de idade concluiu que essa faixa etária tem "pouca ou nenhuma percepção dos riscos online". Mas ainda faltam evidências mais sólidas sobre os efeitos prejudiciais do uso de celulares - e dos aplicativos de redes sociais que vêm com eles - sobre crianças mais velhas. Odgers analisou seis meta-análises em busca da relação entre o uso da tecnologia digital e a saúde mental das crianças e dos adolescentes, além de outros estudos em larga escala e sobre o uso diário. Ela não encontrou relação consistente entre o uso da tecnologia pelos adolescentes e seu bem-estar. E, nos poucos estudos que encontraram associação, os efeitos, tanto positivos quanto negativos, foram pequenos. "A maior descoberta realmente foi uma diferença entre o que as pessoas acreditam, incluindo os próprios adolescentes, e o que as evidências mostram na realidade", ela conta. Outra análise, conduzida por Amy Orben, psicóloga experimental da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, também constatou que as evidências são inconclusivas. Embora houvesse uma pequena correlação negativa, em média, entre os estudos analisados, Orben concluiu que era impossível saber se a tecnologia estava causando a queda do bem-estar ou vice-versa - ou se outros fatores estavam influenciando a ambos. Orben ressalta que grande parte das pesquisas nesta área não tem qualidade suficiente para fornecer resultados significativos. É claro que estes resultados são as médias. "Existe uma grande variação inerente sobre os impactos [sobre o bem-estar] na literatura científica", segundo Orben. E a experiência de adolescentes individuais dependerá das suas próprias circunstâncias pessoais. "Muitas vezes, quem pode realmente julgar isso são apenas as pessoas mais próximas", acrescenta a psicóloga. Em termos práticos, isso significa que, independentemente do que disserem as evidências mais amplas, pode haver crianças que enfrentam dificuldades resultantes do uso de redes sociais ou de certos aplicativos. Por isso, é importante que os pais fiquem atentos e ofereçam apoio. Por outro lado, para alguns jovens, o celular pode ser uma tábua de salvação - seja para que pessoas com deficiências possam encontrar uma nova forma de acesso e formação de redes sociais ou para que adolescentes possam buscar respostas a questões prementes sobre a sua saúde. "Imagine que você seja um adolescente preocupado com possíveis problemas na sua puberdade ou que sua sexualidade não é a mesma dos seus amigos - ou que esteja preocupado com as mudanças climáticas quando os adultos à sua volta estão saturados com o assunto", pondera Sonia Livingstone, professora de Psicologia Social da London School of Economics, no Reino Unido, e uma das autoras de Parenting for a Digital Future ("Criando filhos para um futuro digital", em tradução livre). Mas, na maior parte das vezes, quando estão usando o celular para comunicar-se, as crianças estão falando com os amigos e a família. "Se você realmente analisar com quem as crianças estão falando online, existe uma coincidência muito forte com sua rede offline", afirma Odgers. "Acho que toda esta ideia de que estamos perdendo uma criança isolada para o telefone pode ser um risco real para algumas crianças, mas, para a ampla maioria, eles estão se conectando, compartilhando, vendo coisas em conjunto", diz ela. De fato, embora os celulares muitas vezes sejam culpados pelo fato de as crianças passarem menos tempo em ambientes externos, um estudo dinamarquês com crianças de 11 a 15 anos de idade encontrou algumas evidências de que, na verdade, os celulares oferecem a possibilidade de locomoção independente para as crianças, aumentando a sensação de segurança dos pais e ajudando a criança a navegar por ambientes não familiares. As crianças afirmam que seus telefones ampliaram suas experiências fora de casa, ouvindo música e mantendo contato com os pais e os amigos. É claro que a capacidade de estar em comunicação quase constante com os colegas sempre traz algum risco. "Acho que o celular tem sido fantástico para revelar o que sempre foi uma necessidade não atendida da parte dos jovens", afirma Livingstone. "Mas, para muitos, ele pode ser coercitivo, pode tornar-se incrivelmente normativo." "Ele pode pressioná-los a sentir que existe um lugar onde estão as pessoas populares, onde eles estão lutando para entrar ou de onde podem ser excluídos, onde todos estão fazendo o mesmo tipo de coisas e conhecem o mais recente seja-lá-o-que-for", segundo ela. E, de fato, Orben e seus colegas encontraram "janelas de sensibilidade de desenvolvimento". Nelas, o uso das redes sociais é associado a um período posterior de queda da satisfação com a própria vida, em idades específicas durante a adolescência. Analisando dados de mais de 17 mil participantes com 10 a 21 anos de idade, os pesquisadores concluíram que o maior uso das redes sociais com 11 a 13 anos para as meninas e 14 a 15 anos para os meninos era um indicador de menor satisfação com a vida um ano mais tarde. E o inverso também era verdadeiro: menor uso das redes sociais nessas idades indicava maior satisfação com a vida no ano seguinte. Isso está de acordo com o fato de que as meninas costumam atravessar a puberdade antes dos meninos, segundo os pesquisadores, embora não haja evidências suficientes para afirmar que esta seja a causa da diferença de tempo. Outra janela surgiu aos 19 anos de idade para participantes homens e mulheres, perto da época em que muitos adolescentes saíam de casa. Os pais deveriam considerar com cautela essas faixas de idade ao tomar decisões para suas próprias famílias, mas vale a pena levar em conta que mudanças de desenvolvimento podem tornar as crianças mais sensíveis aos lados negativos das redes sociais. Durante os anos da adolescência, por exemplo, o cérebro sofre enormes mudanças, o que pode influenciar como os jovens agem e se sentem, chegando a torná-los mais sensíveis aos relacionamentos e ao status social. "Ser adolescente realmente é uma época importante do desenvolvimento", afirma Orben. "Você é muito mais influenciado pelos colegas, você está muito mais interessado pelo que as outras pessoas pensam sobre você. E o formato das redes sociais - como elas fornecem contato social e feedback, mais ou menos a um clique de distância - pode ser mais estressante em determinados momentos." Além da idade, outros fatores podem influenciar o impacto das redes sociais sobre as crianças e os adolescentes, mas os pesquisadores estão apenas começando a explorar essas diferenças individuais. "Realmente, esta é agora uma área central de pesquisa", afirma Orben. "Haverá pessoas que sofrerão impactos positivos ou negativos maiores em diferentes momentos. Isso pode ocorrer porque eles vivem vidas diferentes, passam pelo desenvolvimento em momentos diferentes e podem usar as redes sociais de forma diferente. Realmente precisamos identificar essas coisas." Embora as pesquisas possam oferecer subsídios para que as famílias decidam se devem comprar um celular para seus filhos, elas não conseguem oferecer respostas específicas para a difícil pergunta "quando?". "Acho que, ao dizer que as coisas são mais complexas, elas naturalmente devolvem a questão para os pais", afirma Amy Orben. "Mas, na verdade, isso pode não ser algo tão ruim, já que é muito individual." A questão principal que os pais precisam perguntar, segundo Candice Odgers, é: "Como ele se encaixa para a criança e para a família?". Para muitos pais, comprar um celular para uma criança é uma decisão prática. "Em muitos casos, os pais são os que desejam que as crianças mais jovens tenham celulares para poderem manter contato com elas todo o dia e coordenar os transportes", afirma Odgers. E ter um celular pode ser considerado um passo rumo à idade adulta. "Acho que dá às crianças uma sensação de independência e responsabilidade", afirma Anja Stevic, pesquisadora do Departamento de Comunicação da Universidade de Viena, na Áustria. "É definitivamente algo que os pais devem considerar: seus filhos estão em um estágio em que são suficientemente responsáveis para que tenham seu próprio aparelho?" Um fator que os pais não devem descartar é até que ponto eles se sentem confortáveis quando seus filhos têm um telefone celular. Um estudo de Stevic e seus colegas demonstrou que, quando os pais sentem falta de controle sobre o uso do smartphone pelas crianças, tanto elas quanto os pais relatam mais conflitos relacionados ao aparelho. Mas vale a pena lembrar que ter um telefone celular não abre necessariamente as portas para todo e qualquer aplicativo ou jogo que existe. "Quando entrevisto crianças, ouço cada vez mais que os pais estão dando a eles o telefone, mas exigindo que os aplicativos que eles instalarem sejam verificados e discutidos", afirma Sonia Livingstone. "Acho que isso pode ser muito inteligente." Os pais também podem, por exemplo, passar um tempo jogando com as crianças para ter certeza de que estão satisfeitos com o conteúdo ou dedicar um tempo para verificar o que há no telefone junto com as crianças. "Existe um pouco de supervisão, mas é preciso ter essa comunicação e abertura a respeito, poder apoiá-los pelo que eles estiverem vendo e experimentando online, da mesma forma que offline", explica Odgers. Outra recomendação é que, no momento de definir regras domésticas para o uso do smartphone - como não deixar o celular no quarto da criança à noite -, os pais também observem honestamente o seu próprio uso dos seus celulares. "As crianças odeiam hipocrisia", afirma Livingstone. "Elas odeiam sentir que estão recebendo instruções para não fazer algo que os seus pais fazem, como usar o telefone na hora da refeição ou ir para a cama com o telefone." E até as crianças mais jovens aprendem com o uso do celular pelos seus pais. Um relatório europeu sobre o uso de tecnologia digital entre as crianças desde o nascimento até os 8 anos de idade concluiu que essa faixa etária tinha pouca ou nenhuma consciência dos riscos, mas que as crianças, muitas vezes, copiavam o uso da tecnologia pelos seus pais. Alguns pais até descobriram durante o estudo que as crianças sabiam as senhas dos seus aparelhos, para poder acessá-los de forma independente. Mas os pais podem usar isso a seu favor, fazendo com que as crianças mais jovens se envolvam durante as tarefas realizadas no telefone celular, formando boas práticas. "Acho que esse envolvimento e uso em conjunto é realmente uma boa forma para que eles aprendam o que está acontecendo nesse aparelho e para que ele serve", afirma Stevic. Por fim, a decisão sobre quando comprar um telefone celular para um filho é uma decisão importante para os pais. Para alguns, a decisão correta será de não comprar. E, com um pouco de criatividade, as crianças que não têm celular não terão nada a perder. "Crianças que são razoavelmente confiantes e sociáveis encontrarão soluções para participar do grupo", afirma Livingstone. "Afinal, a maior parte da sua vida social está na escola e, basicamente, eles se veem todos os dias, de qualquer forma." De fato, aprender a lidar com o medo da exclusão que eles sentem por não terem um celular pode ser uma lição útil para os adolescentes mais velhos, quando, sem as restrições impostas pelos pais, eles acabam por comprar um para si próprios e precisam aprender a definir limites. "O problema com o medo da exclusão é que ele nunca acaba, de forma que todas as pessoas precisam aprender a definir um limite em algum lugar", afirma Livingstone. "Se não fosse assim, você estaria simplesmente rolando telas 24 horas por dia, sete dias por semana."
2022-10-20
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-63291695
sociedade
Sumiço de idosa em excursão a Aparecida completa 10 anos e segue como mistério
"É uma situação bastante estranha. Mesmo com tanto tempo e com tanta divulgação, não tivemos nenhuma resposta", diz o químico João Winck, de 63 anos, sobre o desaparecimento da mãe. Nesta sexta-feira (21), o mistério sobre Beatriz Winck completa uma década. "São 10 anos sem resposta. Às vezes desanima e dá vontade de desistir [da busca por respostas], porque não houve evolução na investigação", declara João à BBC News Brasil. Beatriz, que na época tinha 77 anos, sumiu durante uma excursão ao Santuário Nacional de Aparecida, no interior de São Paulo. Segundo os familiares, ela foi vista pela última vez enquanto esperava o marido, o aposentado Delmar Winck, que estava em uma loja do local. A Polícia Civil de São Paulo investiga o caso, mas até hoje não foi encontrado nenhum indício sobre o paradeiro de Beatriz. João, o primogênito dos quatro filhos de Beatriz e Delmar, é o principal responsável por buscar notícias da mãe. Desde 2012, ele começou a fazer investigações por conta própria e ações para divulgar o desaparecimento dela. Fim do Matérias recomendadas Atualmente, uma página no Facebook com milhares de seguidores e um site são as principais formas que ele usa para compartilhar o caso e receber possíveis novas informações. Ao longo dos últimos 10 anos, ele já recebeu inúmeras mensagens sobre o possível paradeiro dela e diversas imagens de idosas que poderiam ser Beatriz. O químico afirma que deu atenção a todas as suspeitas que chegaram e as encaminhou às autoridades policiais. "Mas nunca houve nada que se tratasse realmente dela", lamenta. Beatriz morava em Portão, no interior do Rio Grande do Sul, e viajou a Aparecida (SP) com o marido em uma excursão. Eles, que eram casados havia cerca de 60 anos, costumavam viajar com frequência a diferentes lugares com grupos de idosos. "Os meus pais estavam sempre juntos. A minha mãe não fazia nada sem o meu pai", diz o primogênito do casal. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pouco antes da viagem a Aparecida, conta João, Beatriz passou por exames que mostraram que ela não enfrentava problemas sérios de memória ou algo que a impedisse de ter a autonomia de participar de excursões com o marido. No dia em que a aposentada desapareceu, ela e o marido haviam acabado de chegar a Aparecida. Segundo Delmar relatou na época, ele e a esposa decidiram caminhar pelo Santuário, que na data estava lotado de turistas. Ainda conforme Delmar contou na época, ele pediu que a esposa o esperasse na porta de uma loja de artigos religiosos enquanto ele aguardava em uma fila para pagar pelos itens que havia comprado. "Ele pagou e saiu da loja, mas não encontrou mais a minha mãe", detalha João. Nos registros de segurança do Santuário, conta João, não havia imagens do momento em que a idosa desapareceu. "Descobrimos que as filmagens ali eram feitas uma em cima da outra. Então nada ficava registrado." Em nota à BBC News Brasil, o Santuário Nacional de Aparecida afirma que colaborou com com tudo o que foi "solicitado e direcionado" pela polícia em relação ao desaparecimento de Beatriz. O Santuário afirma, ainda em nota, que "possui estrutura e protocolos que são acionados quando as pessoas se desencontram de seus familiares, sendo efetivo o reencontro ainda no mesmo dia." Desde o desaparecimento da idosa, os familiares já tentaram diversas formas de encontrar respostas sobre o que aconteceu com Beatriz: distribuíram milhares de panfletos na região de Aparecida, tiveram o apoio de diversos voluntários que se mobilizaram na cidade para procurar Beatriz e divulgaram o caso intensamente por meio da imprensa. A aposentadoria dela, segundo a família, logo foi bloqueada para evitar que o dinheiro pudesse ser usado por outras pessoas, caso ela tivesse sido vítima de algum tipo de crime. A polícia também começou a fazer buscas por Beatriz. João não descarta que a mãe possa ter ficado desorientada, tenha tido algum problema de saúde ou até tenha sido vítima de um crime. Mas ele frisa que nunca soube de nenhum caso de idosa desmemoriada, perdida ou internada em um hospital que pudesse ser associado a Beatriz. "Acho muito estranho o desaparecimento dela. A gente fez de tudo, divulgou de todas as formas possíveis e nunca surgiu uma informação concreta, absolutamente nada. Alguém poderia ter visto ela, mas até hoje não temos nada concreto ou qualquer indício. Isso me deixa com a pulga atrás da orelha." O primogênito de Beatriz estima que recebeu, ao longo dos anos, cerca de 200 fotos de idosas que as pessoas suspeitavam que poderia ser aposentada. Naquelas em que realmente havia alguma característica semelhante à mãe, ele dava mais atenção. O químico diz ter viajado a dezenas de cidades brasileiras em busca de asilos, hospitais ou qualquer possível pista da mãe, além de ter entrado em contato com autoridades locais em diversas cidades. Nos últimos anos, diz João, as mensagens com possíveis pistas de Beatriz diminuíram cada vez mais. "Agora são cerca de duas ou três por mês", estima. Desde o desaparecimento, ele costuma se apegar a qualquer tipo de informação que possa indicar o paradeiro dela. "Ontem recebi uma mensagem de uma menina que disse que viu uma reportagem sobre a minha mãe. Ela disse que tem um pouco de mediunidade e que acredita que minha mãe pode estar em uma determinada cidade", conta João. "Eu me apego a tudo, a qualquer possibilidade. Ela me mandou mensagem ontem e já pesquisei a cidade e mandei e-mail para a Prefeitura", detalha ele, que conta que ainda não recebeu uma resposta. João diz que mantém a esperança de descobrir o que aconteceu com Beatriz. "Tenho certeza de que vou encontrar a minha mãe e continuo na busca. O meu sentimento diz que vou encontrá-la viva, mas tenho que estar consciente de que talvez não seja possível. Hoje ela teria 87 anos e a família dela é muito longeva, sempre viveram quase 100 anos. Mas estou consciente de que ela não é mais uma pessoa jovem", diz. Para João, esclarecer o desaparecimento da mãe é também uma forma de dar uma resposta ao pai dele. "O meu pai completa 92 anos daqui a duas semanas e está acamado após alguns AVCs (Acidente Vascular Cerebral) nos últimos cinco anos. Ele não consegue ficar em pé sem um apoio, mas está lúcido e tem consciência do desaparecimento da minha mãe. Ele me pergunta às vezes sobre isso e eu digo para ele que isso é responsabilidade minha." "É um assunto que a gente não toca mais com ele, porque ele começa a chorar quando fala disso", acrescenta. Em nota à BBC News Brasil, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirma que continua apurando o desaparecimento de Beatriz por meio da Delegacia de Polícia de Investigações sobre Pessoas Desaparecidas. Segundo a pasta, ainda são feitas buscas para tentar localizar a aposentada. "Qualquer informação que possa contribuir com o trabalho policial pode ser fornecida via Disque Denúncia (181)", orienta a secretaria.
2022-10-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63323583
sociedade
Por que vinhos de uvas diferentes estão cada vez mais parecidos
Logo após o devastador incêndio florestal ocorrido em setembro de 2020 no Vale de Napa, na Califórnia (Estados Unidos), a caixa de mensagens da especialista em química do vinho Anita Oberholster ficou abarrotada de e-mails de centenas de viticultores em pânico. Eles queriam saber se podiam colher suas uvas sem o temido efeito sobre o seu vinho: aquele odioso cheiro de cinzeiro conhecido pelo nome em inglês smoke taint. A única resposta que Oberholster, da Universidade da Califórnia em Davis, podia oferecer era: "talvez". Os laboratórios especializados estavam repletos de amostras de uvas para testar, com tempos de espera de até seis semanas. Os produtores não sabiam se valia a pena colher sua produção. Oito por cento das uvas viníferas da Califórnia foram deixadas para apodrecer nos campos em 2020. Os viticultores já conhecem as vicissitudes causadas pelas mudanças climáticas. As temperaturas mais altas têm sido uma bênção nas regiões mais frias, que estão comemorando frutas mais maduras, mas também foram devastadoras para outros lugares. Fim do Matérias recomendadas Ondas de calor escaldantes, incêndios florestais e outras calamidades causadas pelo clima já arruinaram colheitas na Europa, América do Norte, Austrália e em outras partes do mundo. E o ano de 2020 mostrou que as mudanças climáticas podem prejudicar as uvas sem destruí-las diretamente. Incêndios florestais e temperaturas mais altas podem transformar o sabor do vinho, cuja qualidade e sua própria identidade dependem da delicada química das uvas e das suas condições de cultivo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Muitos produtores e fabricantes de vinho estão cada vez mais preocupados com a perda dos sabores característicos das suas bebidas com as mudanças climáticas, que chegam a arruinar safras inteiras. "Esta é a grande preocupação", afirma a especialista em vinhos Karen MacNeil, que mora no Vale de Napa e é autora de The Wine Bible ("A Bíblia do Vinho", Ediouro, 2003). "É a pulsação do vinho - relacionada ao seu local." Para MacNeil, o maior desafio trazido pelas mudanças climáticas à produção de vinho é a imprevisibilidade. Os produtores costumavam saber quais variedades deveriam cultivar, como plantar, quando colher as frutas e como fermentá-las para produzir um vinho de qualidade consistente. Mas, agora, todas essas etapas estão indefinidas. Esta percepção cada vez maior está impulsionando os pesquisadores e produtores de vinho a encontrar formas de preservar variedades de uvas apreciadas e suas qualidades próprias frente às condições caprichosas e em mutação do mundo atual em aquecimento. Para aprender mais sobre as ameaças à nossa bebida favorita, conversamos com enólogos de duas renomadas regiões produtoras de vinho: Bordeaux, na França, e a Califórnia, nos Estados Unidos. E, tentando compreender como as mudanças climáticas estão alterando as uvas e vinhos tradicionais, viajamos para a Universidade da Califórnia em Davis e para o Vale de Napa no final de 2021, para conversar com cientistas, viticultores e fabricantes de vinho. Conseguimos ter uma visão interna de como cada etapa da produção de vinho está se transformando para preservar sabores e aromas desejados - e, claro, provamos muito vinho, desde o mais fino Cabernet Sauvignon até amostras afetadas pela fumaça e pelo calor escaldante. O aumento das temperaturas vem prejudicando a delicada química das uvas, responsável pelos vinhos premiados. Veja como os produtores, fabricantes de vinho e pesquisadores estão trabalhando para preservar o sabor da bebida. Fileiras redutoras da radiação Alguns produtores reorientaram suas fileiras para a direção nordeste-sudoeste, para que o sol não atinja diretamente as uvas - o que causa perda de substâncias como as antocianinas, que dão a cor das uvas tintas. Tratamentos no vinhedo e em laboratório Os pesquisadores estão catalogando compostos relacionados ao smoke taint e encontrando formas de filtrá-los. Eles estão ajustando a produção de vinho para reduzir a perda de sabor com o aquecimento global, como tratamentos iônicos que aumentam a acidez. Colheita e poda Os produtores podem podar as folhas para reduzir o açúcar das uvas ou colher de manhã cedo para reter a acidez. Plantio de uvas resistentes Pesquisadores e produtores estão testando novos porta-enxertos para uso em variedades tradicionais, ajudando as plantas a suportar as mudanças climáticas. Os fabricantes de vinho estão testando variedades de uvas tolerantes ao calor. Treliças A forma como as uvas são fixadas aos fios de sustentação afeta a quantidade de luz que atinge as frutas. Treliças com função de guarda-chuvas podem evitar que as uvas recebam sol demais. Filmes de sombra Cientistas projetaram filmes que permitem a passagem de raios que promovem o crescimento e a produção das uvas e bloqueiam espectros que prejudicam o desenvolvimento de compostos aromáticos importantes. Os extremos climáticos podem matar até as uvas mais resistentes, mas grande parte da ameaça climática é invisível a olho nu: as mudanças químicas das uvas. A qualidade do vinho, no seu nível mais básico, resume-se em atingir o equilíbrio entre três aspectos gerais das frutas: açúcar, ácidos e compostos secundários. O açúcar acumula-se nas uvas durante a fotossíntese dos vinhedos. Os ácidos decompõem-se à medida que as uvas amadurecem. Já os compostos secundários - basicamente, substâncias químicas que não são essenciais para o metabolismo central da planta - acumulam-se ao longo da estação. Substâncias chamadas antocianinas dão às uvas tintas sua cor e protegem a planta contra os raios ultravioleta. E outras denominadas taninos dão ao vinho o amargor e a sensação seca e adstringente na boca. Aos vinhedos, eles oferecem proteção contra os animais de pastagem e outras pragas. Estes três componentes - e, consequentemente, o sabor do vinho - são afetados por inúmeros fatores ambientais, que incluem o tipo de solo e os níveis de chuva e neblina. Todos esses fatores são englobados pela palavra francesa "terroir". E o clima (os padrões estabelecidos de temperatura e precipitação) forma a maior parte do terroir, segundo Oberholster. Quando o clima de uma região muda, o equilíbrio de açúcar, ácidos e compostos secundários pode ser prejudicado pela alteração da velocidade em que cada um deles se desenvolve ao longo da estação de cultivo, segundo a bióloga vegetal Megan Bartlett, que estuda viticultura na Universidade da Califórnia em Davis. As uvas, como a maior parte das frutas, decompõem ácidos e acumulam açúcar à medida que amadurecem. Mas, sob temperaturas mais altas, o amadurecimento é sobrecarregado, gerando uvas com sabor doce, similar a passas. Os fermentos consomem esses açúcares durante a fermentação e expelem álcool, de forma que a fermentação de uvas mais doces gera vinho com teor alcoólico mais alto. E, de fato, o teor de álcool dos vinhos de regiões quentes como o sul da França vem aumentando. Essa tendência é indesejável para os consumidores dos vinhos da região, especialmente porque é acompanhada por uma queda da acidez, segundo Cécile Ha, porta-voz do Conselho do Vinho de Bordeaux. A acidez gera sabor de frutas frescas e garante que os vinhos durem por anos na adega. Em alguns vinhos, o teor de álcool mais alto cria um sabor ardente e mascara os aromas sutis, segundo a cientista alimentar Carolyn Ross, da Universidade do Estado de Washington, nos Estados Unidos. Ela catalogou compostos aromáticos do vinho na publicação Annual Review of Food Science and Technology. Os vinhos com maior teor alcoólico também costumam ter sabor mais picante. Por isso, à medida que o clima fica mais quente, "você está caminhando cada vez mais para o estilo Zinfandel [uva vinífera popular na Califórnia]", afirma Bartlett. "O que é ótimo se o que o que você quer é Zinfandel. Mas, se você tiver plantado Pinot ou Cabernet, você não tem mais a expressão real da melhor versão daquela variedade." Se a questão fosse simplesmente de açúcar e ácidos, a solução seria relativamente simples: colher as uvas mais cedo, antes que elas fiquem doces demais e enquanto elas ainda mantêm sua acidez. Mas os produtores também querem a formação da mescla de compostos secundários, que cria as camadas de aromas fundamentais para vinhos de qualidade. Isso pode forçar os produtores de vinho a escolher entre colher cedo, sem o desenvolvimento completo dos taninos e antocianinas, ou colher mais tarde, quando as uvas estão carregadas desses compostos, mas também estão doces demais. Se nada for alterado, as mudanças das uvas causadas pelo aumento das temperaturas geram sabores mais maduros, ou "cozidos", no vinho. MacNeil descreve a progressão desta forma: "[primeiro] cerejas verdes, depois cerejas quase maduras, depois cerejas maduras, depois suco de cereja, depois cerejas que foram cozidas no fogão como se fôssemos fazer uma torta, depois cerejas secas que são quase como passas." Para os vinhos de locais mais quentes, as mudanças climáticas são preocupantes porque há o risco de que eles percam o senso de local, à medida que cada vez mais vinhos ficam parecidos com uvas passas. E "todas as passas têm o mesmo gosto", segundo MacNeil. A falta de distinção entre os vinhos, causada pelas temperaturas mais altas e pela maior imprevisibilidade do clima, além do aumento dos intercâmbios de técnicas de cultivo, já está afetando a indústria. Ela dificultou ainda mais a certificação dos mestres sommeliers - um exame difícil e constrangedor, que inclui adivinhar a variedade, o ano e a região de um vinho. "Existem muitas pessoas que são mestres do vinho há mais tempo e mestres sommeliers que afirmam que, se fossem prestar o exame agora, especialmente o exame de sabor, nunca seriam aprovadas", afirma MacNeil. Açúcar As uvas amadurecem com mais rapidez sob temperaturas mais altas, acumulando mais açúcar, o que aumenta o teor alcoólico do vinho. Ácidos A acidez, que aumenta o frescor e o sabor do vinho, é reduzida em climas mais quentes. Compostos secundários Pigmentos conhecidos como antocianinas decompõem-se com o calor. Os taninos, importantes para a sensação do vinho na boca, podem não se desenvolver o suficiente se as uvas forem colhidas mais cedo para reduzir o aumento do nível de açúcar. Mas essas mudanças do sabor do vinho são sutis em comparação com outro temido impacto climático: o sabor de fumaça. Um pouco de sabor de fumaça gerado, por exemplo, pelo envelhecimento em barris pode melhorar um vinho. Mas estamos falando de um "sabor de cinzeiro muito característico na parte posterior da garganta", como descreve Oberholster, com notas como "Band-Aid" e "de remédio". Compostos conhecidos como fenóis voláteis, produzidos quando a madeira é queimada, infiltram-se nas uvas e acumulam-se principalmente nas cascas. Esses fenóis unem-se aos açúcares em compostos inodoros chamados glicosídeos - até a fermentação, quando alguns desses fenóis se rompem, fornecendo o sabor distinto e avassalador. Essa decomposição prossegue no barril, na garrafa e na boca. O sabor é mais pronunciado quando as frutas são imersas em fumaça nova, em vez de fumaça mais antiga. A experiência é "retronasal", ou seja, o aroma eleva-se para os seios nasais quando o vinho está na língua. Estima-se que 20 a 25% das pessoas não conseguem sentir esse sabor, possivelmente porque sua saliva não contém as enzimas que rompem as ligações que liberam as notas de fumaça. Trata-se de uma ameaça principalmente para os vinhos tintos, que são fermentados com as cascas das uvas. O recente surto de intensos incêndios florestais, agravado pelas mudanças climáticas, vem deixando os produtores de Napa ansiosos todos os anos, à medida que se aproxima a colheita de outono das uvas. Desde 2017, vem pairando forte fumaça sobre os vinhedos de Napa todos os anos. Os viticultores preocupados procuraram Oberholster para pedir orientação e a química fermentou diversos lotes de teste expostos a variados níveis de fumaça. No dia em que a encontramos, Oberholster nos levou a uma biblioteca de vinho, com capacidade para 24 mil garrafas, no Instituto Robert Mondavi, da Universidade da Califórnia em Davis. Ela retira dois tintos do estoque e nos entrega as safras de 2020. Um deles é um vinho com fumaça moderada, produzido com uvas expostas a uma semana de fumaça do incêndio florestal no Vale de Napa. O outro é uma fermentação altamente enfumaçada, com uvas que receberam fumaça de um grande complexo de incêndios causados por raios logo acima do vinhedo naquele mesmo ano. Posteriormente, as autoras realizaram um teste cego informal na mesa da cozinha de Ula Chrobak, em Reno (Nevada, Estados Unidos). Em comparação com um Cabernet Sauvignon Kirkland Signature, os vinhos afetados têm uma nota de fumaça similar a uma fogueira, que Katarina Zimmer percebe principalmente na forma de odor, enquanto Ula também sente uma queimação na parte posterior da garganta. "Bebendo madeira queimada", anota Ula no seu caderninho, sobre a safra mais enfumaçada. O gosto de fumaça é gritante e pode ser percebido até mesmo por amadores como nós. Mas muitos produtores também estão preocupados com as formas mais sutis em que as mudanças climáticas ameaçam o sabor e a identidade dos seus produtos. De prontidão, os produtores e pesquisadores nas regiões mais quentes estão aprendendo como adaptar seus vinhedos, sua produção de vinhos e as próprias bebidas. Em Bordeaux, por exemplo, o estilo tradicional dos vinhos tintos é encorpado, com fortes aromas frutados e leve rusticidade. Mas a chegada da primavera mais cedo significa que as uvas das variedades tradicionais amadurecem durante o pico do verão e não no outono, gerando grandes quantidades de açúcar, menos ácidos e alterações indesejáveis dos aromas. Para identificar os tipos de uva mais adaptados aos climas mais quentes, que ainda produzem vinho com aromas típicos de Bordeaux, a agrônoma Agnès Destrac-Irvine, do Instituto Nacional de Agricultura, Alimentação e Meio Ambiente da França, e seus colegas concluíram recentemente um estudo de uma década sobre 52 variedades de outras regiões. Trabalhando com produtores de vinhos, eles encontraram quatro tipos de vinho tinto e dois de vinho branco que atendem às exigências. E, em decisão inovadora, as autoridades francesas - que há muito tempo permitiam apenas o cultivo de seis variedades tradicionais de uvas tintas e oito de uvas brancas - autorizaram formalmente em 2021 os produtores de vinho de Bordeaux a experimentar as novas variedades, desde que elas não representem mais de 10% do produto final. Essas novas ferramentas oferecem aos produtores de vinho opções para equilibrar os efeitos das mudanças climáticas sobre os blends de Bordeaux, segundo Destrac-Irvine. Uma delas, a variedade francesa Arinarnoa, pode aumentar os níveis de acidez e tanino, enquanto outra, a portuguesa Touriga Nacional, pode elevar os poderosos aromas da fruta escura que as variedades sensíveis ao calor podem perder. "Se você tiver mais cores, pode haver mais possibilidades de pintura", afirma Ha. Mas a aprovação das seis variedades escolhidas é apenas experimental. Em Bordeaux, onde os viticultores vêm cuidando das uvas há cerca de 2 mil anos, a ideia de novas variedades é assustadora, segundo o fisiologista vegetal Gregory Gambetta, da Bordeaux Sciences Agro (a Escola Superior Nacional de Ciências Agronômicas de Bordeaux) e do Instituto de Ciência do Vinho e da Uva da Universidade de Bordeaux. Afinal, as variedades tradicionais estão tão entrelaçadas com a cultura e a história da região que, "francamente, seria muito melhor se pudéssemos adaptar o sistema usando outros instrumentos", afirma ele. É exatamente isso que Gambetta e outros pesquisadores estão tentando fazer: estudar como adotar técnicas de enxerto para cultivar uvas à prova de mudanças climáticas, usando diferentes porta-enxertos - que, de qualquer forma, normalmente já são de uma variedade diferente. Os porta-enxertos (também conhecidos na agricultura como "cavalos") controlam a resistência geral e o consumo de água da planta. Se eles forem selecionados para tolerar o mundo em aquecimento, a variedade cultivada - que determina a química única e o sabor das uvas - pode ainda ser usada e desenvolver-se. Em um dia quente de sol em novembro de 2021, o especialista em viticultura Kaan Kurtural, da Universidade da Califórnia em Davis, leva-nos a um canteiro de uvas no Vinhedo Experimental de Oakville, no Vale de Napa. Ele fica entre montanhas cobertas de florestas, perto de vinhedos comerciais. Desde 2016, Kurtural e seus colegas vêm monitorando 16 combinações exclusivas de porta-enxertos e clones de Cabernet Sauvignon para verificar quais combinações são mais resistentes a condições estressantes, como ondas de calor e seca, mantendo a produção de uvas Cabernet Sauvignon de alta qualidade. Alguns dos enxertos experimentais - incluindo um deles com um porta-enxerto francês chamado 420A - claramente estavam murchos e, depois de apenas cinco anos, alguns já estavam mortos. Mas outros, incluindo os que usaram o porta-enxerto austríaco Kober 5 BB e os franceses 3309 Couderc e 110 Richter, pareciam mais fortes e folhosos. Andy Beckstoffer, importante viticultor de Napa que está trabalhando com Kurtural em um teste similar em um dos seus próprios vinhedos, acredita que os resultados serão uma bênção para o Cabernet Sauvignon nos próximos anos. "Esperamos que surjam novas combinações resistentes às mudanças climáticas que também melhorem a qualidade dos vinhos", afirma ele. Os produtores de todo o mundo já estão mudando suas práticas tradicionais para compensar os efeitos do aquecimento global. As uvas muitas vezes são colhidas mais cedo para evitar o amadurecimento excessivo e, nas regiões sujeitas a incêndios, para evitar o pico da estação de incêndios florestais e o sabor de fumaça. Os trabalhadores de Bordeaux agora correm para colher as uvas de manhã cedo, quando a acidez é mais alta, e podam os arbustos para controlar a produção de açúcar. Na estação de pesquisa de Oakville, Kurtural mostra um experimento atrás do outro para pesquisar os efeitos de diferentes práticas de viticultura, incluindo uma gramínea que absorve carbono e pode ser cultivada entre as fileiras, além de videiras amarradas a fios em diversos estilos de treliça. Felizmente, para lugares como a Califórnia, atormentada pela seca, a solução não é simplesmente oferecer mais água. Suas pesquisas indicam que os vinhos mais equilibrados e aromáticos vêm de uvas sob tensão de água suave e constante. Uma melhor abordagem pode ser reduzir a exposição ao sol. "Algumas regiões do espectro podem ser prejudiciais, como o infravermelho próximo", explica Kurtural. Elas podem aquecer a planta e as frutas. No vinhedo, ele nos leva a um canteiro de uvas Cabernet Sauvignon que passaram as duas últimas estações embaixo de filmes que formam sombra, como se fossem guarda-sóis. Os filmes retardam o processo de amadurecimento e, aparentemente, não afetam a quantidade de uvas produzida pelas videiras. Chegamos a provar a diferença na mesma viagem, em uma conferência sobre a pesquisa do vinho na Universidade da Califórnia em Davis. Ali, Lauren Marigliano - uma das alunas de graduação de Kurtural - apresentou uma análise química das uvas totalmente expostas ao sol ou protegidas por diferentes tipos de sombra. Em seguida, ela forneceu amostras de vinho de três tratamentos para a audiência de pesquisadores, viticultores e fabricantes de vinho. À nossa volta, profissionais giravam suas taças, cheiravam, tomavam goles e depois cuspiam em pequenos baldes de plástico. Nós observávamos suas técnicas e os imitávamos cuidadosamente. O primeiro vinho era bem amargo, enquanto o segundo tinha sabor menos complexo. Um especialista ao nosso lado afirmou que ele infelizmente "tem arestas". Gostamos mesmo foi do terceiro, que tem um aroma de frutas mais intenso e sabor mais suave. Os participantes o aprovaram, murmurando que ele era "redondo". Ocorre que esse vinho "redondo" veio de uvas cultivadas sob um filme protetor que bloqueou cerca de 30% do infravermelho próximo, os comprimentos de onda mais responsáveis pela transmissão de calor. Ao resfriar as uvas, o filme permitiu que elas acumulassem maiores concentrações de antocianinas sensíveis ao calor que as uvas da primeira e da segunda amostra. Uma delas foi cultivada com um filme protetor menos eficiente, que bloqueou outro conjunto de comprimentos de onda, e a outra sem nenhum filme. O filme vencedor permitiu ainda a passagem de luz suficiente para acúmulo dos compostos dependentes do sol, criando um vinho tinto mais completo e encorpado, segundo explicou Marigliano à audiência. Mas nem sempre é econômico para os agricultores instalar longos filmes sobre suas fileiras de uvas, especialmente em terrenos maiores. É quando entra em jogo a treliça. Durante nossa visita ao vinhedo experimental, Kurtural para em um ponto para indicar uma fileira de vinhas serpenteando ao longo de um único fio suspenso no alto. Ele explica que este estilo de treliça funciona de forma similar a um bom filme protetor, permitindo que as próprias folhas das videiras protejam as frutas. Práticas como filmes protetores e treliças de proteção das uvas são principalmente limitadas à Austrália, América do Sul, Israel e Espanha. Mas, "agora, com as mudanças climáticas, existem cerca de 30 anos de boas pesquisas sobre a viticultura em clima quente que, de repente, passaram a ser relevantes para locais como a Borgonha e Beaujolais [na França], Alemanha, Napa e Sonoma [na Califórnia]", afirma Steve Matthiasson, produtor de vinho do Vale de Napa que adotou os tecidos protetores. Matthiasson também plantou suas uvas em orientação de nordeste para sudoeste, de forma que o sol brilhe diretamente sobre as videiras, deixando as frutas protegidas pelas folhas. "Napa era uma região de cultivo de clima fresco uma geração atrás", afirma ele, surpreso. Mesmo as uvas mais resistentes nem sempre conseguem suportar o calor extremo e a fumaça. Por isso, os pesquisadores e produtores de vinho também estão desenvolvendo formas de trabalhar com safras afetadas pelo clima e ainda produzir vinhos "redondos". Oberholster calcula que muitas das uvas que não foram colhidas após os intensos incêndios da Califórnia em 2020 ainda poderiam ter produzido bons vinhos. Por isso, ela incentiva os viticultores a fazer "fermentações em balde", em pequena escala, poucas semanas antes da colheita para testar o gosto de fumaça, já que a fermentação libera esses fenóis com gosto de cinzeiro. Os produtores podem então enviar uma amostra do vinho para um laboratório, para que ele próprio analise e prove os microlotes. Eles poderão detectar alterações que um laboratório comercial não encontraria, já que os laboratórios verificam apenas um conjunto limitado de compostos e poderiam concluir que um vinho está bom quando não está. Oberholster acrescenta que adoçar o vinho defumado com um pouco de concentrado de uva também pode ajudar. Isso faz com que o açúcar adicional impeça que as enzimas da boca liberem os fenóis. Uma solução ainda melhor seria remover completamente os fenóis, mas os tratamentos atuais, que incluem carvão ativado e osmose reversa, são dirigidos a uma ampla variedade de compostos de fumaça. Por isso, inevitavelmente, eles também irão retirar alguns aromas desejáveis. Por isso, Oberholster está selecionando enzimas usadas nas indústrias de alimentos e bebidas para encontrar aquelas que podem ajudar a decompor os compostos indesejados do vinho e facilitar sua retirada por filtragem. E métodos de combinação de vinhos também podem ajudar. Beckstoffer afirma, por exemplo, que suas uvas atingidas pela fumaça de 2020 foram fermentadas e, quando misturadas com vinhos sem fumaça, "podem não valer US$ 200 por garrafa, mas muitas delas podem encher uma garrafa de vinho de US$ 40". Já Matthiasson mistura as variedades cuidadosamente para equilibrar os sabores. Ele colhe Cabernet Sauvignon no início da estação para preservar a acidez, o que também significa que as uvas têm menos riqueza na língua e no meio do palato. Por isso, ele mistura uvas Petit Verdot para alimentar o palato e Cabernet Franc para compensar a falta de aromas herbáceos. Ele também plantou uma reserva de emergência da variedade Sagrantino - "com 20 anos de estrada" - que é rica em taninos, que as uvas Cabernet Sauvignon perdem durante as noites mais quentes. O aumento das temperaturas ameaça o estilo preferido de Matthiasson: vinhos com teor de álcool mais baixo e maior acidez que a maioria dos vinhos encorpados que são populares atualmente. Mas ele não acha que seja inevitável ter vinho com gosto de passas em todos os lugares. Na verdade, existem estudos que indicam que grande parte do crescimento dos vinhos mais fortes e doces é uma escolha orientada pelos viticultores e pela demanda de mercado, não só pelo aquecimento global. "Fico muito frustrado quando vejo produtores de vinho usarem as mudanças climáticas como desculpa para vinhos maduros demais, ricos e frutados quando não é o caso", afirma Matthiasson. E a produção de vinho também está usando a alta tecnologia para adaptar-se às mudanças climáticas. Na França, a microbióloga Fabienne Remize, da Universidade de Montpellier, produziu cepas de levedura inovadoras que produzem menos álcool durante a fermentação, para superar a questão do excesso de açúcar. Cientistas também desenvolveram um processo de eletrodiálise que pode aumentar a acidez do vinho removendo íons como potássio. Este método já foi adotado por produtores de vinho da França, Marrocos e Espanha. A grande questão para os vinhos que sofrem com as mudanças climáticas e as adaptações a serem desenvolvidas pelos pesquisadores e produtores, naturalmente, é: as pessoas continuarão a comprar e degustar vinho? Uma das lições mais surpreendentes das pesquisas de mercado é esse gosto pelos vinhos encorpados e frutados, observado por Kurtural e Gambetta. Em um estudo sobre vinhos tintos de Napa e Bordeaux, eles concluíram que as avaliações dos vinhos, na verdade, vêm crescendo nos últimos 60 anos, mesmo com o aquecimento daquelas regiões. Para eles, as conclusões parecem contradizer as previsões anteriores de que a qualidade chegaria ao pico a uma temperatura média de 17,3 °C na estação de cultivo, que as duas regiões já ultrapassaram há muito tempo. Kurtural e Gambetta ainda observam que podemos estar atingindo um momento crítico, em que as temperaturas mais altas eliminam os compostos secundários além da capacidade dos produtores de adaptar-se. "Francamente, não sabemos qual é o ideal", afirma Gambetta. "Precisamos de melhores ferramentas e melhores análises para descobrir o quanto é demais." Já Matthiasson acredita que os vinhos finos superarão o aquecimento global. Com seus tecidos protetores, técnicas de combinação e a reserva de emergência de Sagrantino, ele está pronto para o que vier. "Acho que conseguiremos nos adaptar", afirma ele. "A curto prazo, nossa velocidade de aprendizado é maior que a das mudanças climáticas." * Ula Chrobak é jornalista freelancer especializada em ciências de Reno, em Nevada (Estados Unidos). Katarina Zimmer é jornalista freelancer especializada em ciência e meio ambiente de Nova York, nos Estados Unidos.
2022-10-18
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-63306379
sociedade
Por que app citado por Bolsonaro não alfabetiza alunos 'em 6 meses'
Durante o mais recente debate presidencial exibido no domingo (16/10) pela Band TV, os candidatos Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) responderam a perguntas feitas por jornalistas sobre diferentes temas, como educação. Quando os candidatos foram questionados sobre o que fariam para diminuir a defasagem educacional dos quase 10 meses sem aula durante a pandemia — o que atingiu principalmente os estudantes mais pobres — Bolsonaro citou um aplicativo focado em alfabetização como parte da solução encontrada pelo seu governo. "Nós já estamos fazendo. O nosso Ministro da Educação tem um aplicativo que foi aperfeiçoado e já está há um ano em vigor, chama-se GraphoGame. Ou seja, num telefone celular se baixa o programa e a garotada fica ali. Letra A, ela aperta o A e aparece o som de A. Vai para sílabas. C e A: Ca. No passado, no tempo do Lula, a garotada levava três anos para ser alfabetizada. Agora, em nosso governo, leva seis meses." O aplicativo citado por Bolsonaro é o GraphoGame, um app finlandês que foi adaptado para a língua portuguesa por pesquisadores do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer) da PUC-RS para ser utilizado em escolas brasileiras. O jogo começa com exercícios que trabalham a associação entre letras e sons da linguagem. Passando de nível, os exercícios ficam mais difíceis, trabalhando sons de sílabas e de palavras inteiras. Fim do Matérias recomendadas O Ministério da Educação (MEC) recomenda o GraphoGame Brasil para todos os estudantes do 1º e do 2º ano do ensino fundamental e para aqueles com defasagens no aprendizado da leitura. Mas em nota à BBC News Brasil, a PUCRS disse que o GraphoGame não é um app de alfabetização — como sugeriu Bolsonaro — e sim apenas uma ferramenta de apoio ao ensino. "A universidade explica que o aplicativo pode ser uma ferramenta de apoio, mas que sozinho não é capaz de alfabetizar. Este não foi e não é o objetivo da iniciativa e dos pesquisadores em nenhum momento. Para uma criança ser alfabetizada ela precisa de instrução sistemática e consistente, precisa de vivências e sem dúvida alguma do apoio da Escola e especialmente de educadores", afirma a nota da PUCRS. De acordo com a universidade, foram investidos R$ 100,5 mil pelo MEC para a adaptação do jogo feita pelo InsCer. A BBC News Brasil tentou contato com Augusto Buchweitz, o principal pesquisador responsável pela adaptação do aplicativo para o Brasil, que não tem mais vínculo com a PUCRS. Ele disse preferir não se manifestar. Dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) mostram que, entre 2019 e 2021, o percentual de crianças do 2º ano que não sabem ler e escrever mais que dobrou: passou de 15% para 34%, de acordo com os dados do Saeb Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb). "É importante contextualizar o GraphoGame nesse cenário", diz Maria Alice Junqueira, coordenadora de projetos da ONG Cenpec, que trabalha com educação pública no país. Junqueira rechaça a ideia de que o app seja efetivo para alfabetizar crianças em seis meses. "Se o aplicativo, que começou a rodar 2020, tivesse esse poder, os índices estariam melhores, e não piores", diz Junqueira. Outro ponto levantado pela especialista é que o aplicativo precisa de internet para ser baixado — e depois pode ser usado offline. Mas muitas crianças de famílias mais pobres sequer possuem celular ou computador. "É um problema pensarmos que a solução é uma única ferramenta, como o GraphoGame." Para a especialista do Cenpec, as escolas precisam avaliar quem são os alunos com dificuldade na alfabetização e oferecer reforços com materiais que já existem nas escolas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para a professora da Escola de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em alfabetização Silvia Gasparian Colello, o jogo é uma "prova do quanto o Bolsonaro está mal assessorado na Educação". Segundo ela, por associar a alfabetização a um game, o grande público tem a falsa impressão de modernização do ensino, quando na verdade o governo estaria reproduzindo práticas de ensino já superadas. "O jogo talvez fosse eficiente para alfabetizar papagaios, mas certamente não para ensinar sujeitos pensantes", diz a professora. "É chocante constatar que em pleno século 20 a alfabetização seja vista apenas como correspondência mecânica entre fonemas e grafemas. É um pressuposto que aniquila o que a língua tem de mais precioso — que é a possibilidade de comunicação. Dessa forma, ensinar a língua escrita vem na contramão do direito das crianças se expressarem e interagirem com a sociedade." No jogo de associação mnemônica, em sua análise, o usuário não tem oportunidade de se encantar com a língua ou de formar o hábito da leitura. Isso só acontece se a alfabetização acontece a partir da literatura e do aprendizado com contexto. "Tira a oportunidade, por exemplo, de fazer a criança escrever uma cartinha pro coelho da Páscoa e contar a sua própria história." Colello avalia que as recompensas do jogo, como o ganho de estrelas, pouco servem para a aprendizagem, e considera que o cenário do aplicativo, marcado por montanhas e tiros de canhão nas letras, ficam distantes do dia a dia dos estudantes. No entanto, os autores apontam que "a alfabetização é um empreendimento social e, portanto, o aplicativo idealmente precisa ser usado em conjunto com atividades de leitura ou nos lares para que todo o seu potencial seja realizado". A maioria das evidências coletadas foi de alunos com dificuldade de aprendizagem, como aqueles que têm dislexia. É também o que recomenda o MEC no manual de uso: "Lembrem-se, o GraphoGame funciona melhor quando um adulto interage com a criança, ou quando integrado a atividades de literacia". Em outra parte do documento, o MEC acrescenta: "Estudos mais recentes mostram que o GraphoGame é ainda mais eficaz quando utilizado em conjunto com atividades de sala de aula, com um programa de alfabetização e com um currículo rico em linguagem oral".
2022-10-18
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63294813
sociedade
'É muita humilhação': o desabafo de mulher após fala de Bolsonaro sobre analfabetos
"Aquilo me deixou deprimida mesmo. É muita humilhação", comenta a auxiliar de limpeza Joana* ao lembrar da declaração recente do presidente Jair Bolsonaro (PL), que associou o analfabetismo no Nordeste ao alto índice de votos no ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na região. "A coisa mais triste do mundo é não saber ler e precisar depender dos outros, aí ele vai e fala essa besteira", diz Joana à BBC News Brasil. Ela, que tem por volta de 60 anos, nasceu em uma região no interior da Bahia e há cerca de três décadas mora em uma comunidade no Rio de Janeiro (RJ), para onde se mudou com o marido e os filhos em busca de uma vida melhor. Na infância, Joana morava em uma região rural junto com a mãe e os irmãos e não frequentou uma escola, porque precisava ajudar a família. "A gente morava na roça mesmo, não tinha água, luz, não tinha nada." Na região Nordeste, a atual taxa de analfabetismo corresponde a 13,9%, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2019, a mais recente em relação ao tema. Fim do Matérias recomendadas Esse número representa uma taxa, aproximadamente, quatro vezes maior que as regiões Sudeste e Sul — ambas com 3,3%. No Centro-Oeste, esse número é de 4,9%. Já na região Norte é de 7,6 %. Ainda há cerca de 11 milhões de brasileiros que não sabem ler ou escrever, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse número de analfabetismo absoluto tem diminuído no país nas últimas décadas — apesar disso, indicadores apontam o avanço do analfabetismo funcional (quando o indivíduo tem dificuldades para reconhecer textos simples) nos últimos anos. Em meio à preocupação de especialistas em educação com o analfabetismo no país, a relação feita por Bolsonaro é considerada sem qualquer fundamento. "É muito forte uma declaração dessas vinda de um presidente da República. Se ele atribui dessa forma, é preciso dizer que ele também tem responsabilidade no analfabetismo", diz a pedagoga Ana Paula Abreu Moura, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). "Foi, inclusive, o governo dele que extinguiu a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), criada em 2004, sob a alegação de que suas ações seriam alocadas em outras secretarias, o que, de fato, não aconteceu e paralisou ações que vinham sendo desenvolvidas", acrescenta Ana, que trabalhou com a educação de jovens e adultos por 11 anos e atualmente ensina professores que dão aulas para esse público. A afirmação de Bolsonaro foi feita em live após o primeiro turno, no qual Lula obteve 48,4% dos votos contra 43,2% do adversário. Na transmissão, o presidente mencionou uma reportagem que afirma que o petista venceu em nove dos 10 estados com maior taxa de analfabetismo no país. Na live, Bolsonaro disse que os Estados do Nordeste enfrentam problemas como o analfabetismo porque são "administrados pelo PT". "Onde a esquerda entra leva ao analfabetismo, leva à falta de cultura, leva ao desemprego, leva à falta de esperança. É assim que age a esquerda no mundo todo", declarou. Lula derrotou Bolsonaro em todos os Estados do Nordeste. Sua maior vitória na região aconteceu no Piauí, onde o petista teve 73,8% dos votos válidos, ante 20% de Bolsonaro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma checagem feita pelo portal UOL apontou que a declaração de Bolsonaro sobre a administração do PT em Estados do Nordeste nos últimos 20 anos é falsa. Os Estados da região com maior hegemonia petista na região são Bahia e Piauí, que tiveram governadores do PT por 16 anos. Já alguns outros Estados foram ou ainda são administrados pela legenda por períodos inferiores a 10 anos. Enquanto isso, Alagoas, Maranhão e Paraíba não tiveram nenhum governo do PT desde, ao menos, 1994, aponta o UOL Confere. Para Ana Abreu, a declaração de Bolsonaro que relaciona os votos dados no petista ao analfabetismo é uma forma de buscar um argumento para não assumir que os nordestinos não aprovaram a gestão do atual presidente. "É muito simples olhar essa realidade do país hoje e dizer simplesmente que quem votou no Lula é analfabeto ou que o resultado eleitoral tem a ver com analfabetismo. É uma discussão muito mais complexa." A pedagoga frisa que o analfabetismo não impede que as pessoas sejam "perspicazes na leitura do mundo". "Não questionam a capacidade dessas pessoas para trabalhar, ter famílias ou educar filhos. Para isso elas servem. Mas na hora de exercer o direito de votar elas são desqualificadas?", questiona. Joana afirma que a declaração de Bolsonaro sobre o Nordeste reforça o que ela já pensava sobre o presidente. "Ele humilha muito as pessoas, principalmente o povo nordestino." Eleitora de Lula, ela defende que todo nordestino vote no ex-presidente. "Nordestino que não vota no Lula tá doido. Ele foi o pai da pobreza. Falo com sinceridade, lá na minha terra, na minha roça, ele que levou luz, água e televisão", diz. Mas Joana conta que nem sempre pode manifestar o apoio a Lula, principalmente em seu trabalho em uma empresa no Rio de Janeiro. "Esse negócio de política me deixa muito triste e chateada, porque às vezes tô dentro de uma sala (no trabalho) e jogam piadas, falam dos nordestinos e dizem que são todos burros e por isso têm que sofrer. Não falam direto pra mim, mas eu tô ali dentro da sala e sabem que sou nordestina." Em razão disso, ela costuma dizer que não vota - o voto não é obrigatório para pessoas analfabetas. "Faço isso para evitar problemas. Às vezes alguém chega e pergunta: 'e aí, vai votar em quem?' Eu falo: 'vocês são abestados, eu não voto'." "Todo mundo quase no trabalho é Bolsonaro, quem é Lula não costuma falar. Eu fico quieta, na minha, porque se eu falar alguma coisa é capaz de nem trabalhar mais lá." Por causa dessa situação no serviço, Joana pediu que sua identidade fosse ocultada na reportagem. Quando termina o expediente, Joana segue para um local que ela avalia que tem mudado a sua vida: a sala de aula. Após uma vida inteira sem saber ler, ela foi incentivada pelos netos a ingressar em um curso gratuito de alfabetização. "Decidi estudar porque meu neto mais velho falou: 'vó, por que você não estuda?' Às vezes eu fico falando: 'a vovó é muito burra'. E ele diz: 'vó, não fala isso, você é muito inteligente, sabe trabalhar e pegar ônibus'", diz, emocionada. "Aí eu coloquei na minha cabeça que vou estudar e vou aprender. E meus netos ficam falando: vó, você é inteligente", completa, ainda emocionada. As aulas começaram há alguns meses. Recentemente, ela teve uma de suas primeiras vitórias: conseguiu escrever o próprio nome. "Eu não sabia nada. Agora, a professora vai colocando algumas coisas no quadro e eu já consigo entender as letras. Só falta aprender a ler. Quando aprender, vou ficar muito feliz", comenta. Professores do curso de alfabetização contaram à BBC News Brasil que Joana e outros alunos ficaram indignados e alguns até choraram por causa da declaração de Bolsonaro sobre o analfabetismo no Nordeste, principalmente porque a maioria das turmas é composta por nordestinos. A pedagoga Ana Abreu Moura avalia que declarações como a de Bolsonaro reforçam um estigma que persegue as pessoas analfabetas. "Há todo um estigma em volta do analfabetismo. O tempo inteiro tentam desqualificar essas pessoas. Por exemplo, é muito comum que o analfabetismo seja usado como xingamento. E a figura do Estado, que deveria amparar e desconstruir esse estigma, reforçou isso em rede nacional, já que a live do Bolsonaro teve grande repercussão", diz a especialista. "Essas pessoas têm todo um esforço para conseguir, depois de um dia de trabalho, sentar na sala de aula para que possam se alfabetizar. É muito comum ouvir de um aluno que ele decidiu estudar para virar gente, porque nem gente ele se sente. Então é preciso também todo um trabalho social para mostrar a essas pessoas que o que elas tiveram foi a destituição de um direito, que é a educação, pela qual elas também pagam imposto", acrescenta. Comentários como o de Bolsonaro, avalia a pedagoga, geram insatisfação e tristeza. "Apesar de não ter autonomia com leitura e escrita, essas pessoas possuem outros saberes, inclusive de leitura do mundo", reforça a pedagoga. E para muitas dessas pessoas, a alfabetização é um passo fundamental e também um incentivo para que continuem estudando. É o caso de Joana, que quer continuar na sala de aula mesmo após aprender a ler e escrever. "Enquanto tiver escola, vou continuar." "Agora eu tenho fé em Deus que o Lula vai ganhar, vou me aposentar e vou embora de volta pra minha roça. Fiz até promessa e vou cumprir", diz. *Nome alterado para preservar a identidade da entrevistada.
2022-10-17
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63237527
sociedade
Como começou o patriarcado – e como a evolução pode mudá-lo
O patriarcado havia se retraído um pouco em algumas partes do mundo, mas agora voltou a ficar em evidência. No Afeganistão, o Talebã volta a vigiar as ruas, mais preocupado em manter as mulheres em casa, seguindo os rígidos códigos de vestimenta, que com o iminente colapso do país frente à fome. Enquanto isso, em outro continente, parte dos Estados Unidos vem legislando para garantir que as mulheres não tenham mais acesso ao aborto legal. Nos dois casos, crenças patriarcais ocultas ressurgiram com o fracasso da liderança política. Temos a estranha sensação de estarmos voltando no tempo. Mas quando o patriarcado começou a dominar nossas sociedades? A condição das mulheres é uma questão de interesse da antropologia há muito tempo. Ao contrário da crença popular, pesquisas indicam que o patriarcado não é uma espécie de "ordem natural das coisas". Ele nem sempre foi preponderante e pode, de fato, desaparecer algum dia. Fim do Matérias recomendadas As comunidades de coletores e caçadores podem ter sido relativamente igualitárias, pelo menos em comparação com alguns dos regimes que se seguiram. E sempre existiram mulheres líderes e sociedades matriarcais. A reprodução é a moeda da evolução. Mas não só os nossos corpos e cérebros evoluem. Nossos comportamentos e culturas também são produtos da seleção natural. Para maximizar o seu próprio sucesso reprodutivo, por exemplo, os homens muitas vezes tentaram controlar as mulheres e sua sexualidade. Nas sociedades nômades onde há pouca ou nenhuma riqueza material, como costuma ser o caso entre os coletores e caçadores, a mulher não pode ser facilmente forçada a permanecer em um relacionamento. Ela e seu parceiro podem viver juntos com os parentes dela, com os parentes dele ou com outras pessoas. E, se estiver infeliz, ela pode simplesmente ir embora. Isso pode ser difícil se ela tiver filhos, pois os cuidados dos pais ajudam no desenvolvimento e até na sobrevivência das crianças, mas ela pode ir viver com parentes em outro lugar ou encontrar um novo parceiro - sem necessariamente ficar em uma situação pior. Mas o advento da agricultura, que ocorreu até 12 mil anos atrás em algumas regiões, virou o jogo. Mesmo as hortas relativamente simples exigiam que a produção fosse defendida e, portanto, que as pessoas permanecessem no mesmo local. E os assentamentos aumentaram os conflitos entre os grupos e até dentro de um mesmo grupo. Os cultivadores de hortas yanomami da Venezuela, por exemplo, viviam em residências coletivas altamente fortificadas, com ataques violentos contra grupos vizinhos e a frequente "captura de noivas". Nos locais onde evoluiu a criação de gado, a população local precisava defender seus animais contra roubos, gerando combates e militarização. Como as mulheres não tinham tanto sucesso nos combates quanto os homens, por serem fisicamente mais fracas, seu papel caiu em relação a eles. Esse declínio ajudou os homens a ganhar poder, deixando-os encarregados dos recursos que estavam defendendo. À medida que a população crescia e se assentava, surgiam problemas de coordenação. Desigualdade social florescia às vezes quando líderes (normalmente, homens) se estabeleciam após proverem benefícios à população, talvez na forma de bom desempenho em batalhas ou atendendo ao bem público de outra forma. A população em geral, homens e mulheres, muitas vezes tolerava elites em troca de auxílio para proteger as suas posses. À medida que a agricultura e a pecuária ficaram mais intensivas, a riqueza material, agora controlada principalmente pelos homens, tornou-se ainda mais importante. As regras de parentesco e descendência foram mais formalizadas para evitar conflitos sobre riqueza dentro das famílias e os casamentos ficaram mais contratuais. A transmissão da terra ou dos animais ao longo das gerações permitiu que algumas famílias acumulassem riquezas substanciais. A riqueza gerada pela agropecuária permitiu a prática da poliginia (um homem com diversas esposas). Já a poliandria (uma mulher com vários maridos) era rara. Na maioria dos sistemas, as mulheres jovens eram o recurso mais procurado, pois sua janela para ter filhos era mais curta e elas normalmente cuidavam mais da prole. Os homens usavam sua riqueza para atrair mulheres jovens para os recursos que eles tinham a oferecer. Os homens concorriam pagando o "preço da noiva" para a família dela. Com isso, os homens ricos podiam ter várias esposas, enquanto alguns pobres acabavam solteiros. Os homens então precisavam da riqueza para competir pelas noivas, enquanto as mulheres adquiriam os recursos necessários para a reprodução por meio do seu marido. Desta forma, se os pais quisessem maximizar o número de netos, fazia sentido para eles dar sua riqueza para seus filhos e não para as filhas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Isso fez com que a riqueza e as propriedades fossem transmitidas formalmente para a linhagem masculina. E também fez com que as mulheres, muitas vezes, acabassem vivendo longe de casa, com a família do marido, após o casamento. As mulheres começaram a perder o controle das suas ações. Se as terras, os animais e os filhos fossem propriedade dos homens, o divórcio era quase impossível para as mulheres. Uma filha que retornasse para a casa dos pais não seria bem-vinda e o preço da noiva precisaria ser devolvido. O patriarcado estava se estabelecendo com firmeza. Quando as mulheres saem da casa dos pais para viver com a família do seu novo marido, elas não têm, na sua nova residência, o mesmo poder de barganha que teriam se ficassem na sua casa de origem. Modelos matemáticos indicam que a dispersão das mulheres, aliada ao histórico de guerras, fez com que os homens fossem mais bem tratados que as mulheres. Os homens tinham a oportunidade de competir por recursos com outros homens por meio das guerras, enquanto as mulheres só competiam com outras mulheres dentro de casa. Por esses dois motivos, tanto homens como mulheres colhiam maiores benefícios evolutivos sendo mais altruístas com relação a homens do que com mulheres, gerando o surgimento dos "clubes de meninos". Essencialmente, as mulheres entraram no jogo do viés de gênero contra elas próprias. Em alguns sistemas agrícolas, as mulheres podem ter tido mais autonomia. Em locais onde a disponibilidade de terra para o plantio era limitada, pode ter havido limites para a poliginia, pois os homens não conseguiam sustentar diversas famílias. Quando a agricultura era difícil e a produtividade era determinada mais pela dedicação ao trabalho que pela quantidade de terra, a mão de obra feminina era uma necessidade básica e os casais trabalhavam juntos em uniões monogâmicas. Com a monogamia, se uma mulher se casasse com um homem rico, toda a riqueza iria para os seus filhos. Por isso, as mulheres competiam entre si pelos melhores maridos. Mas, com a poliginia, é diferente. A riqueza da família é dividida entre os filhos de diversas outras esposas, de forma que as vantagens para as mulheres de se casar com um homem rico são menores. Por isso, o pagamento pelo casamento monogâmico caminha na direção oposta da poliginia, assumindo a forma de "dote". Os pais da noiva dão dinheiro aos pais do noivo ou ao próprio casal. O dote, que ainda é importante hoje em dia em grande parte da Ásia, é a forma que os pais têm de ajudar suas filhas a competir com outras mulheres no mercado de casamentos. O dote, às vezes, pode oferecer às mulheres maior controle ao menos sobre parte da riqueza da sua família. Mas existe um fator complicador. A necessidade do dote pode fazer com que as meninas representem um custo mais alto para os pais, às vezes com terríveis consequências - como no caso de famílias que já têm filhas e que matam ou rejeitam novas bebês (ou, atualmente, o aborto seletivo das meninas). A monogamia também trouxe outras consequências. Como a riqueza ainda era transmitida pela linhagem masculina para os filhos de uma única esposa, os homens faziam todo o possível para garantir que aqueles filhos fossem deles. Eles não queriam investir inadvertidamente sua riqueza nos filhos de outro homem. Por isso, a sexualidade das mulheres passou a ser fortemente vigiada. Manter as mulheres afastadas dos homens ("purdah", entre os muçulmanos), colocá-las em "claustros" como monastérios (clausura) na Índia, ou a prática de enfaixar os pés das mulheres para que eles ficassem pequenos, adotada por 2 mil anos na China, podem ser algumas consequências. E, no contexto atual, a proibição do aborto torna as relações sexuais potencialmente caras, retendo as pessoas em casamentos e prejudicando as perspectivas de carreira das mulheres. É relativamente raro que a riqueza seja passada para a linhagem feminina, mas existem sociedades que adotam essa prática. Os sistemas matriarcais tendem a ser adotados em ambientes marginais, onde existe pouca riqueza a ser disputada. Existem regiões na África, por exemplo, conhecidas como o "cinturão da linhagem matriarcal", onde a mosca tsé-tsé tornou a criação de gado impossível. Em alguns desses sistemas de linhagem matriarcal africanos, os homens continuam sendo uma força poderosa nas residências, mas são os irmãos mais velhos e tios que tentam controlar as mulheres, em vez dos pais e dos maridos. Mesmo assim, em geral, o poder das mulheres realmente é maior. Já sociedades onde os homens se ausentam por grande parte do tempo, devido a longas distâncias de viagem ou alto risco de mortalidade - causado pelos perigos da pesca oceânica na Polinésia ou pelas guerras em certas comunidades nativas americanas, por exemplo -, também adotaram a linhagem matriarcal. As mulheres no sistema matriarcal muitas vezes dependem do apoio de suas mães e irmãs, não dos seus maridos, para ajudar a criar os filhos. Essa "criação comunitária" pelas mulheres, observada, por exemplo, em alguns grupos de linhagem matriarcal na China, faz com que os homens se interessassem menos (no sentido evolutivo) em investir na residência, que abrigam não apenas os filhos da sua esposa, mas também de muitas outras mulheres com quem eles não têm relação familiar. Isso enfraquece os laços conjugais e facilita a transmissão da riqueza entre as mulheres da mesma família. As mulheres também são menos controladas sexualmente nessas sociedades, pois a paternidade certamente é uma preocupação menor quando as mulheres controlam a riqueza e a transmitem para suas filhas. E, nas sociedades com linhagem matriarcal, homens e mulheres podem praticar a poligamia. O povo himba do sul da África é uma sociedade com linhagem matriarcal e tem algumas das mais altas taxas de bebês gerados desta forma. Mesmo nos ambientes urbanos atuais, a alta taxa de desemprego dos homens gera estilos de vida mais centralizados nas mulheres, com as mães ajudando as filhas a criar seus filhos e netos, muitas vezes em relativa pobreza. Mas a introdução de riqueza material, que pode ser controlada pelos homens, forçou em muitos casos a mudança dos sistemas de linhagem matriarcal, para que se tornassem patriarcais. A visão de patriarcado descrita acima pode fazer parecer que o papel da religião é minimizado. As religiões frequentemente estabelecem instruções sobre o sexo e a família. A poliginia, por exemplo, é aceita no islã, mas não no cristianismo. Mas as origens dos diversos sistemas culturais pelo mundo não podem ser simplesmente explicadas pela religião. O islamismo surgiu no ano 610 em uma parte do mundo (a península arábica) então habitada por grupos de pastores nômades, onde a poligamia era comum. Já o cristianismo surgiu no império romano, onde o casamento monogâmico já era a norma. Por isso, as instituições religiosas certamente ajudam a impor as regras, mas é difícil defender que elas tenham sido a causa original. Por fim, a herança cultural das normas religiosas, ou de quaisquer outras regras, pode preservar preconceitos sociais hostis muito depois que a causa original já desapareceu. O que está claro é que as normas, as atitudes e a cultura trazem enormes consequências para o comportamento das pessoas. Essas normas podem mudar e, de fato, mudam ao longo do tempo, principalmente em caso de alterações da ecologia ou da economia vigentes. Mas algumas normas ficam arraigadas ao longo do tempo e, por isso, sua mudança é lenta. Ainda nos anos 1970, filhos de mães solteiras no Reino Unido foram retirados das suas mães e embarcados para a Austrália, onde foram colocados em instituições religiosas e oferecidos para adoção. E pesquisas recentes também demonstram como o desrespeito pela autoridade das mulheres ainda é generalizado nas sociedades europeias e americanas, que se orgulham da sua igualdade de gênero. Isto posto, fica claro que as normas de gênero estão ficando muito mais flexíveis e o patriarcado é impopular junto a muitos homens e mulheres em grande parte do mundo. Muitos estão questionando a própria instituição do casamento. O controle da natalidade e os direitos reprodutivos das mulheres oferecem mais liberdade, tanto para as mulheres quanto para os homens. Embora o casamento poligâmico agora seja raro, o acasalamento poligâmico é bastante comum e é visto como uma ameaça, tanto por incels - celibatários que odeiam mulheres - quanto por conservadores. Além disso, os homens querem participar cada vez mais da vida dos seus filhos e apreciam não precisar ser os principais responsáveis pelo sustento das famílias. Por isso, muitos homens estão dividindo ou até assumindo todo o peso do trabalho de casa e da criação dos filhos. Ao mesmo tempo, estamos vendo as mulheres mais confiantes, ganhando cargos de poder no mundo do trabalho. Enquanto homens e mulheres geram cada vez mais sua própria riqueza, o velho patriarcado está achando mais difícil controlar as mulheres. A lógica do investimento dos pais orientado aos filhos homens fica muito prejudicada se as meninas tiverem o mesmo benefício da educação formal e as oportunidades de emprego forem abertas para todos. É difícil prever o futuro. A história e a antropologia não progridem de forma linear e previsível. Guerras, fomes, epidemias ou inovações estão sempre surgindo, com consequências previsíveis e imprevisíveis para as nossas vidas. O patriarcado não é inevitável. Precisamos de instituições que nos ajudem a resolver os problemas do mundo. Mas, se as pessoas erradas chegarem ao poder, o patriarcado pode se fortalecer. * Ruth Mace é professora de antropologia do University College de Londres.
2022-10-16
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63075928
sociedade
HPV: por que vacina que ajuda a prevenir diferentes tipos de câncer tem pouca adesão no Brasil?
A cura definitiva para qualquer tipo de câncer ainda é um sonho para a Ciência. Mas já existem meios efetivos de prevenir — uma das ferramentas importantes para isso, a vacina contra o vírus HPV, que está disponível em todo o Brasil e contribui para a prevenção de ao menos seis tipos de câncer, tem pouca adesão no país. Disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) para as meninas desde janeiro de 2014 e para meninos desde 2017, a vacina vem sofrendo quedas na adesão desde o segundo ano de sua implantação no Plano Nacional de Imunizações (PNI). Dados levantados pelo Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA) no DataSUS, do Ministério da Saúde, indicam que 72% menos meninas e 52% menos meninos foram imunizados, após o primeiro ano de vacinação no Brasil (entre 2015 e 2021 e 2018 e 2021, respectivamente). A imunização de ambos os sexos é necessária para quebrar a cadeia de transmissão do Papilomavírus humano (HPV), que é fator de risco para desenvolvimento de câncer de pênis, vulva, vagina, reto e de cabeça e pescoço (orofaringe/garganta) e, principalmente, de colo do útero. Com acesso à vacina contra HPV e ao Papanicolau, considerado o principal exame preventivo, o câncer de colo do útero pode ser erradicado do país, assim como caminham países como Canadá e Austrália. Fim do Matérias recomendadas "Dependendo do tipo de HPV, o vírus pode representar baixo ou alto risco de evolução para câncer. Hoje, a vacina é quadrivalente e protege contra os quatro tipos de vírus mais frequentes", explica a oncologista clínica Andréa Gadêlha Guimarães, coordenadora de advocacy do Grupo Brasileiro de Tumores Ginecológicos (EVA) e médica titular do A.C.Camargo Cancer Center. Além de meninos e meninas, o Ministério da Saúde ampliou a campanha de vacinação para homens e mulheres imunossuprimidos, de 9 a 45 anos, que vivem com HIV/Aids, transplantados de órgãos sólidos ou medula óssea e pacientes oncológicos. Quem não faz parte do público alvo, mas sabe que não se imunizou na infância ou adolescência, pode receber a vacina na rede privada, a depender de avaliação médica que conclua que a pessoa pode ser beneficiada. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), estima-se que haja de 9 a 10 milhões de infectados por esse vírus no Brasil e que, a cada ano, surjam 700 mil novos casos de infecção. Mas se a vacinação é importante para doenças tão graves quanto o câncer, por que as famílias brasileiras não levam as crianças e adolescentes para receber as doses? Falta de percepção sobre a gravidade das doenças Na avaliação de Guimarães, parte da população brasileira foi perdendo a percepção da importância das vacinas conforme o tempo, o que piorou durante a pandemia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mônica Levi, diretora da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBim), complementa: "É uma frase clichê entre os médicos, mas falamos que as vacinas são vítimas de seu próprio sucesso. Conforme as doenças são erradicadas ou se tornam raras, a população perde a percepção de risco. O sarampo está aí para provar que surtos podem ocorrer graças à não adesão". "Também temos filas quilométricas quando há surtos muito fortes — gripe pandêmica de H1N1, covid-19… Já quando a situação é equilibrada, as pessoas esquecem da doença. Falta educação para que as pessoas entendam que, para evitar um surto, precisamos de coberturas vacinais altas." No caso da vacinação para meninas, iniciada em 2014, as doses eram dadas dentro do ambiente escolar, e a primeira dose teve adesão de 92% na época. "Depois, na segunda dose, já caiu bastante, mas quando passou para o ambiente de postos de saúde, no ano seguinte, caiu ainda mais", diz Guimarães, explicando que, para o público jovem, levar a imunização até eles é considerada uma boa estratégia para aumentar a adesão, mas que requer um planejamento forte de logística. A estratégia já voltou a ser adotada em algumas partes do país. Na cidade de Campinas, no interior de São Paulo, por exemplo, a escola Tenista Maria Esther Andion Bueno foi um ponto de vacinação para estudantes entre 9 e 14 anos em 7 de outubro. Falta de correlação do HPV com diferentes tipos de câncer Muitas das vacinas acabam caindo sendo vistas como algo opcional por parte da população, sem um olhar cuidadoso sobre seus reais benefícios. "Não é de conhecimento da população de forma geral que essa é uma vacina que pode ajudar a prevenir cânceres e de forma gratuita", aponta Andréa Gadêlha Guimarães. Fatores culturais e religiosos "Algumas pessoas, sobretudo as que têm princípios religiosos mais conservadores, acreditam que dar a vacina pode ser um estímulo à atividade sexual precoce. É um grande engano. Apesar de o HPV ser um vírus sexualmente transmissível, essa correlação não existe. Hepatite B também pode ser transmitida pela via sexual e é dada na maternidade", explica a oncologista. Um estudo publicado no Jama Internal Medicine em 2015 corrobora com isso. Após a análise de dados de milhares de mulheres jovens, dentro da faixa etária recomendada para a imunização, os pesquisadores concluíram que a vacina contra o HPV não leva as adolescentes a adotar comportamentos sexuais precoces ou arriscados, nem eleva as taxas de doenças sexualmente transmissíveis. "A recomendação de vacinar crianças e jovens é feita justamente porque, nessa idade, eles ainda não foram expostos ao vírus, o que torna a capacidade de criação de anticorpos maior. Vacinar na idade adulta, [depois do início da vida sexual], pode trazer um benefício menor", aponta Mônica Levi. Desinformação "Supostos eventos adversos graves sobre as vacinas, não só a que combate o HPV, são espalhados com frequência. Mas as informações são falsas. Os efeitos adversos são leves, relacionados ao lugar da aplicação, como vermelhidão e dor local", afirma Guimarães. Os efeitos disso são uma população confusa e pouco confiante nas vacinas. "Para meninos, só 37% da população-alvo tomou duas doses. É muito pouco, um desperdício do investimento na saúde pública. Para uma mãe de um bebê que fica com pulga atrás da orelha por conta de notícias falsas, por exemplo, é mais fácil para ela correr o risco da doença, que ela acha que não vai chegar até seu filho, do que arriscar um suposto efeito colateral gravíssimo logo após a vacinação. O movimento antivacina ficou mais organizado pós-pandemia e tem sido efetivo em causar hesitação." As especialistas explicam que a vacina é feita com vírus inativado, ou seja, não contém o DNA do vírus, apenas proteínas do capsídeo viral (envoltório do vírus), que não é capaz de produzir a doença no corpo humano. "A vigilância dessa vacina é uma das melhores que já foram feitas. Temos uma mídia poluída com informações falsas que colocam medo nas pessoas, e adolescentes, que não necessariamente entendem a importância, também são alvo dessas fake news", diz a diretora da SBIm. Na avaliação dela, as campanhas de comunicação do Ministério da Saúde são atualmente péssimas. "Já fomos exemplo mundial de como comunicar e agora estamos tão ruins quanto outros lugares com coberturas vacinais ruins. O próprio Ministério da Saúde reconhece a necessidade de combater notícias falsas." Dificuldades logísticas Há também questões relacionadas a estratégias, como postos de saúde abertos apenas em horários comerciais, e pais, mães e outros familiares sem condições de levar a criança ou o jovem por conta de trabalho. "Isso já está sendo entendido pelo PNI como uma barreira, e é mais fácil de contornar. Alguns locais já começaram a oferecer horários aos sábados e domingos, por exemplo", diz Levi. Além disso, a especialista avalia que a alimentação de dados do Ministério da Saúde deixa a desejar, o que pode atrapalhar as campanhas e a atualização de números de imunizados. "Alguns postos de saúde têm internet precária, um sistema manual ou digitalizado, mas antigo, além de ser possível acontecer erros humanos. Na pandemia, o consórcio de imprensa que fornecia dados era mais eficaz em comunicar atualizações para a população do que o próprio Ministério da Saúde."
2022-10-15
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62972110
sociedade
'Fila de 24h na calçada e sem banheiro': o desespero de mães que temem perder Auxílio Brasil
Um colchonete, cobertores, pedaços de papelão e um travesseiro. Esse foi o kit levado pela maior parte das 50 pessoas que passaram até 24 horas na fila à espera de atendimento para atualizar o CadÚnico no Centro de Referência da Assistência Social (Cras), na Brasilândia, no extremo norte de São Paulo. Isso ocorreu porque a unidade móvel que estava fazendo atendimento no Centro Educacional Unificado (CEU) era a única da região a distribuir 50 senhas para atendimento presencial. As demais funcionam apenas por agendamento online ou telefônico. Para algumas famílias, sexta-feira (14/10) seria o último dia possível para fazer a atualização do CadÚnico. Caso contrário, poderiam perder o direito de receber benefícios sociais, como o Auxílio Brasil. No entanto, o governo federal estendeu esse prazo por mais um mês. Fim do Matérias recomendadas A BBC News Brasil conversou com quatro mães que cuidam sozinhas de seus filhos na Brasilândia e dependem majoritariamente de benefícios sociais para comprar alimentos e pagar contas básicas de casa. A babá Ingrid Souza disse que tenta há quatro meses fazer o agendamento para atualizar o cadastro no Cras. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela conta que o cartão dela foi bloqueado em agosto e, desde então, só consegue receber os benefícios sociais numa agência da Caixa. Na sexta, ela foi até o Cras 3, na Brasilândia, em mais uma tentativa de atualizar o cadastro. Mas sem sucesso. "Eles dizem que não podem fazer nada. Dizem que tenho que atualizar pelo site, mas eu já tentei. Também liguei no 156 (atendimento da prefeitura) e aplicativo. Tenho dois filhos e não pude dormir na fila para garantir a atualização", afirmou. Ingrid contou à BBC News Brasil que o dinheiro do auxílio é essencial para a família pagar as contas básicas e se alimentar. Ela mora sozinha e sustenta os dois filhos, de 7 e 3 anos. "A primeira coisa que eu faço quando eu pego o dinheiro é comprar o leite das crianças e a fralda usada pelo meu filho de 3 anos para dormir em cima porque faz xixi na cama. De resto, eu complemento a renda com bicos como babá, que rendem R$ 200 por mês", contou enquanto segurava uma criança que ela cuida. Ingrid disse ainda que uma das principais ajudas que ela conta para gastar menos é com as refeições que os filhos dela fazem na escola. Procurada, a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads) de São Paulo informou que "o atendimento no CadÚnico na cidade de São Paulo é feito prioritariamente por agendamento prévio desde 2018, com a finalidade de evitar a formação de filas". Por mês, segundo a pasta, "são feitos cerca de 62 mil agendamentos na capital. De acordo com a Coordenação de Gestão de Benefícios da Smads, há ausência em cerca de 25% dos agendamentos. Estas vagas geradas por ausência ficam novamente disponíveis à população". Joana d'Arc Ferreira da Cruz cuida sozinha dos três filhos. E diz que também está há meses tentando agendar um atendimento no Cras para continuar recebendo o Auxílio Brasil, principal renda da família. "Já tentei pelo site, associação de bairro, no 156. Eu não posso perder o benefício. Só meu aluguel custa R$ 300, que é metade do auxílio. Fora isso, tenho que pagar wi-fi para os meus filhos estudarem", afirmou. Joana disse que os filhos fazem carretos de maneira esporádica, mas que ela não conta com esse dinheiro para a casa. Ela complementa a renda da família com o trabalho que faz coletando material reciclável. "Esse trabalho me garante uma renda de até R$ 150 por semana. Como somos quatro pessoas na casa, eu faço o que posso." Às 10h de quinta-feira (13/10), quando Fernanda Aparecida Benedito chegou ao local onde a van itinerante do Cras estava estacionada na Brasilândia, ela foi informada que, caso não entrasse na fila para ser atendida no dia seguinte, possivelmente teria o Auxílio Brasil cancelado. "Naquela hora, já tinham 22 pessoas na minha frente. Eu tive que passar a noite aqui, com muita gente dormindo na calçada. Pessoas com crianças e idosos sem banheiro ou tenda. Vi senhoras fazendo xixi atrás dos carros nas ruas. Quem trouxe coberta se cobriu. Quem não trouxe, ficou passando frio", relatou. Ela conta que algumas pessoas chegaram a brigar à noite com quem já estava na fila, por entender que eles não queriam mais pessoas lá. "A gente dizia para as pessoas que chegavam que eram só distribuiriam 50 senhas, mas elas achavam que a gente não queria que elas fossem atendidas. Teve até briga de puxão de cabelo por causa disso", disse Fernanda. Ela contou à reportagem que nos últimos três meses ligou para o 156 para tentar agendar atendimento, mas sempre ouviu que não havia vagas. Para ir à fila, ela deixou os filhos na casa da mãe porque não tinha quem os levasse à escola. "Então, as crianças perdem os estudos e a gente perde dinheiro porque nós trabalhamos com eventos. E como vamos trabalhar hoje se a gente dormiu a noite inteira na rua?", questionou. Ela disse que usa o Auxílio Brasil para pagar o aluguel de R$ 600 da casa onde vive com os filhos, de 14 e 9 anos. O pai deles, segundo ela, dá uma ajuda financeira informal para as crianças. "Se eles não dão o benefício, eu não consigo pagar o aluguel. O trabalho que eu faço é para nos alimentar, pagar uma perua para levar meu filho, comprar roupas", disse. Com queixas de artrose e dores no nervo ciático, Sandra Lia do Nascimento disse que "foi muito sofrido" passar a noite ao relento para atualizar o cadastro. "Mas a gente precisa", se consola momentos antes de ter o nome dela chamado pela atendente. Ao ser perguntada pela BBC News Brasil, ela disse que agora tem esperança de que terá seu problema resolvido. "Eu espero em Deus que eu consiga. Afinal, depois da tempestade, vem a bonança", disse, sorrindo.
2022-10-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63265822
sociedade
Região Sul lidera denúncias de assédio eleitoral no país, mostra MPT
A região Sul do Brasil lidera as denúncias de assédio eleitoral — quando empregadores ameaçam ou prometem benefícios para que os funcionários votem ou deixem de votar em determinado candidato —, com 144 registros, segundo dados do Ministério Público do Trabalho (MPT). O Paraná aparece em primeiro lugar nessa lista com 50 registros até o início da noite desta sexta-feira (14/10), seguido por Santa Catarina (48) e Rio Grande do Sul (46). Em todo o país já foram feitas 324 denúncias de assédio eleitoral até o momento. De acordo com o MPT, os registros da prática ilegal têm aumentado desde o início do segundo turno. Em todo o pleito de 2018, segundo o MPT, foram registrados 212 casos de assédio eleitoral em 98 empresas em todo o país. Neste ano, conforme o órgão, os registros feitos até o momento envolvem cerca de 300 empresas. Procuradores do MPT acreditam que, a pouco mais de duas semanas do fim do pleito, as denúncias devem subir ainda mais. Fim do Matérias recomendadas Entre os casos noticiados recentemente pela imprensa estão os de uma fabricante de máquinas e implementos agrícolas e uma prestadora de serviços de manutenção em máquinas da indústria de transformação do plástico, ambas no interior do Rio Grande do Sul. As empresas, cujos donos defendem a reeleição do presidente Jair Bolsonaro (PL), enviaram cartas aos seus fornecedores nas quais informaram possíveis cortes nos orçamentos e nas atividades a partir de 2023 caso o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vença. Essas empresas foram alvos do MPT do Rio Grande do Sul, que investigou os casos e ajuizou ações civis públicas contra elas na Justiça do Trabalho. "Tivemos um aumento significativo de denúncias, principalmente desde a semana passada, após o primeiro turno. Não que isso não existisse antes, porque tivemos casos em eleições passadas. Mas isso praticamente dobrou ou triplicou nas últimas semanas", diz o procurador-chefe do MPT do Rio Grande do Sul, Rafael Foresti Pego. O aumento dessas denúncias em todo o país chama a atenção de autoridades e causa preocupação. Presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Alexandre de Moraes convocou uma reunião com representantes do Ministério Público Eleitoral e do MPT para debater sobre um combate mais efetivo a esse tipo de crime. "Lamentavelmente, no século 21, retornamos a uma prática criminosa que é o assédio eleitoral", declarou Moraes, na quinta-feira (13/10). "Não é possível que ainda se pretenda coagir o empregado em relação ao seu voto", acrescentou o ministro, que classificou a prática como "nefasta". Nas redes sociais, circulam vídeos de empresários de diversas regiões do Brasil dizendo que seus funcionários deveriam votar em Bolsonaro. Em muitos desses registros, eles afirmam que as empresas devem enfrentar problemas econômicos em caso de vitória do candidato petista. O MPT afirma que todos os vídeos que foram encaminhados para o órgão ou ganharam notoriedade nas redes são alvos de investigações. O assédio eleitoral se trata de um caso de constrangimento ou humilhação a um funcionário em seu ambiente de trabalho. "É uma forma de manipular o voto no ambiente de trabalho. É uma intimidação, uma ameaça no ambiente de trabalho para que o empregado vote em determinado candidato. Isso não pode ocorrer. Essa violência no trabalho precisa ser combatida", declara o procurador-geral do Trabalho do MPT José de Lima Ramos Pereira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma fala ou uma mensagem que cause constrangimento ao trabalhador por seu posicionamento político é um caso de assédio eleitoral, explica o procurador. Isso pode ocorrer por meio de declarações feitas pessoalmente ao empregado ou por meio de mensagens. "Dentro da relação de trabalho há uma subordinação. Quando o empregador faz isso com falas de convencimento com oferta de dinheiro, pode até configurar como crime eleitoral de compra de voto", explica Adriane Reis de Araújo, procuradora regional do Trabalho. "Isso também pode ocorrer fora do ambiente de trabalho, mas desde que vinculado ao trabalho, como em via pública por meio de convocação do empregador ou de seus representantes", explica.Adriane, que acompanha as denúncias em todo o país por ser coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade) do MPT. As principais ameaças, segundo os procuradores, são as de desemprego. "Dizem que se determinado candidato não for eleito pode haver redução de pessoal ou até de fechamento da empresa. Há também ameaça de dispensar determinados trabalhadores que apoiam candidatos oponentes, o que é uma clara discriminação política", diz Adriane. A reportagem apurou que há casos de ameaças de cortes de benefícios dados aos trabalhadores, como o de cestas básicas, ou até mesmo de corte do 13° salário. Os procuradores afirmam que não comentam sobre casos específicos e não detalham sobre a quais candidatos se referem as denúncias que têm recebido. A segunda região com mais denúncias até o momento é o Sudeste (91), com Minas Gerais na primeira posição com 53 denúncias. Em seguida aparecem Campinas e região (15), São Paulo e Rio de Janeiro (ambas com 8) e Espírito Santo (7). Depois aparece o Nordeste, com 51 registros até o momento: Piauí (9), Alagoas e Pernambuco (8), Sergipe e Rio Grande do Norte (6), Ceará (5), Maranhão (4), Paraíba (3) e Bahia (2) No Centro-Oeste foram 20 registros: Mato Grosso (9), Distrito Federal (7), Mato Grosso do Sul (3) e Goiás (1). Já na região Norte foram 18 até o momento: Rondônia (7), Pará (5), Tocantins (4), Acre (1) e Amazonas (1). Não houve registros, até o momento, no Amapá e em Roraima. Os procuradores ouvidos pela BBC News Brasil afirmam desconhecer o real motivo para que a região Sul lidere esse tipo de denúncia. Um dos motivos para que as denúncias tenham aumentado de modo geral neste ano, avaliam os procuradores, é o intenso esclarecimento sobre o assédio eleitoral por meio de campanhas de divulgação e até mesmo alguns Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) assinados por empresários que fizeram esse tipo de pressão e precisaram se retratar em vídeos nas redes sociais. "Em parte, esse número (de 2022) ocorre em razão da conscientização da ilegalidade dessa prática em 2018, quando havia casos de procedimento padrão entre várias empresas com materiais em apoio a determinados candidatos", diz a procuradora Adriane Reis. "É importante conscientizar as pessoas de que o voto é secreto e é um direito fundamental do cidadão. Cada eleitor tem o direito de tomar decisões com base simplesmente em suas convicções, sem ameaças", declara o procurador Rafael Foresti.
2022-10-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63265922
sociedade
Por que a miopia está crescendo entre crianças
No final dos anos 1980 e na década de 1990, os pais de Cingapura começaram a observar uma condição preocupante nos seus filhos. Na época, a vida das pessoas naquela pequena nação, de forma geral, vinha melhorando sensivelmente. Particularmente, o acesso à educação estava transformando uma geração e abrindo as portas para a prosperidade. Mas uma tendência menos positiva começava a ser observada: cada vez mais crianças estavam ficando míopes. Ninguém conseguia interromper essa crise nacional de visão. A incidência de miopia continuou a aumentar cada vez mais. E, atualmente, a taxa de miopia em Cingapura é de cerca de 80% entre os jovens adultos. O local é conhecido como a "capital mundial da miopia". "Estamos enfrentando [esta] questão há 20 anos e ficamos quase anestesiados por isso", afirma Audrey Chia, professora e consultora sênior do Centro Ocular Nacional de Cingapura (SNEC, na sigla em inglês). "Quase todas as pessoas em Cingapura agora são míopes." Fim do Matérias recomendadas O que aconteceu em Cingapura agora parece estar se verificando em todo o mundo. Países com estilos de vida aparentemente diferentes são unidos por um fenômeno impressionante: a disparada das taxas de miopia. Nos Estados Unidos, cerca de 40% dos adultos são míopes, contra 25% em 1971. E as taxas aumentaram em níveis similares no Reino Unido. Mas esta situação parece menos significativa em comparação com a de adolescentes e jovens adultos da Coreia do Sul, Taiwan e da China continental, onde as taxas de incidência de miopia variam entre 84 e 97%. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E o problema parece estar se espalhando mais rapidamente do que nunca. Se essa tendência continuar, metade da população mundial será míope em 2050. A miopia aumentou dramaticamente entre as crianças na China. Hoje, ela atinge 76 a 90% das crianças em idade escolar. "É um aumento extremamente alto", segundo Chia. À primeira vista, a ideia de um mundo míope pode não parecer um grande problema. Afinal, quando alguém tem dificuldade para enxergar coisas à distância, temos uma solução há muito tempo comprovada: os óculos. Mas os pesquisadores alertam que a miopia não é uma característica benigna. Ela é uma das principais causas de deficiência visual e cegueira, por exemplo. E, nas crianças, pode levar algum tempo para identificar o problema e corrigi-lo. Isso pode prejudicar sua capacidade de aprendizado na escola e de aproveitar a vida diária - e causar problemas de saúde ocular no futuro. Para piorar as coisas, embora a idade típica para uma criança desenvolver miopia seja de 8 a 12 anos, elas agora estão ficando míopes mais cedo. E, quanto mais cedo uma criança desenvolve miopia, mais provavelmente ela terá miopia grave na idade adulta, o que pode chegar a ameaçar sua visão, causando problemas relacionados a diferentes partes do olho, como glaucoma, deslocamento da retina, catarata e maculopatia miópica. A genética representa apenas uma pequena parte. Embora o histórico familiar de miopia aumente o risco do seu desenvolvimento pelas crianças, os casos puramente genéticos de miopia são raros, segundo Neema Ghorbani-Mojarrad, professor da Universidade de Bradford, no Reino Unido, e optometrista certificado. Fatores de estilo de vida são considerados mais significativos, particularmente a falta de tempo em ambientes externos e a concentração em objetos próximos por períodos mais longos, como durante a leitura. Estes fatores ajudam a explicar por que o aumento da educação - uma tendência altamente positiva em outros setores da vida das crianças - inadvertidamente aumentou a difusão da miopia. É claro que a educação propriamente dita - no sentido de descoberta do mundo e empoderamento das pessoas com conhecimentos e técnicas - não piora a saúde ocular. Na verdade, a educação está relacionada a diversos efeitos positivos e mensuráveis sobre a saúde. Mas a forma como as crianças obtêm a educação no mundo moderno, com ênfase em longas horas passadas em salas de aula, parece estar prejudicando consistentemente sua saúde ocular. "Já se demonstrou que a educação causa miopia", afirma Ghorbani-Mojarrad, referindo-se à educação medida pelos anos na escola. "Não sabemos qual a relação com a educação. Suspeitamos que seja a leitura e passar mais tempo em ambientes internos. Cada ano completo de educação aumenta a quantidade esperada de miopia." Ghorbani-Mojarrad e seus colegas estudaram o efeito da educação, medida em anos de escola, sobre a miopia, pesquisando o impacto do aumento da idade de término da escola no Reino Unido, de 15 para 16 anos, nos anos 1970. "Existe literalmente um salto no gráfico para esse ano de escola adicional. Agora que a idade escolar no Reino Unido vai até os 18 anos, imagino se encontraremos o mesmo outra vez", afirma ele. Para entender esta relação surpreendente, é preciso analisar primeiro como se desenvolve a miopia. A maioria dos recém-nascidos começa a vida com hipermetropia. No seu primeiro ano de vida, os olhos se desenvolvem naturalmente e a hipermetropia se reduz, até que sua visão fique quase perfeita. Mas, em alguns casos, os olhos não param de crescer, desenvolvendo a miopia. O globo ocular é alongado demais para poder distinguir os objetos mais distantes sem o auxílio de uma medica corretiva, como os óculos. "Todos nós temos uma quantidade finita de retina e, se o olho continuar a crescer, é como tentar passar a mesma quantidade de manteiga em um pedaço maior de pão", afirma Ghorbani-Mojarrad. "A retina fica muito fina e mais propensa a romper-se." Aparentemente, ficar dentro de casa pode piorar esse problema, talvez devido à diferença entre a iluminação interna e a luz natural. Cingapura realizou algumas das pesquisas mais longas sobre a miopia infantil e os especialistas chegaram a uma conclusão similar. "A geração do meu pai passou muito tempo fora de casa, pescando e em outras atividades", afirma Chia. "Mas, quando a urbanização chegou a Cingapura, houve um grande impulso em busca da excelência acadêmica. Os pais quiseram que seus filhos entrassem nas melhores escolas e fossem para a universidade. Isso levou todas as crianças a ler mais nos ambientes internos, já que a leitura era considerada algo bom para você." O paradoxo, é claro, é que podemos determinar o quanto a leitura é realmente boa para as crianças. A alfabetização e a educação escolar, de forma mais ampla, são fundamentais para o bem-estar das crianças. Sua ausência pode trazer prejuízos duradouros. Mas a busca de excelência educacional excluindo outros aspectos da vida, como passar tempo fora de casa, pode ser prejudicial para a saúde ocular, segundo Nathan Congdon, professor de saúde ocular global do Centro de Saúde Pública da Universidade Queen's em Belfast, no Reino Unido. Ele indica que países como o Japão, Coreia, Vietnã, China, Hong Kong e Cingapura apresentam enorme incidência de miopia: "eles também atingiram imensos sucessos educacionais. É um fenômeno cultural complicado." Na China, foram conduzidos testes com salas de aula que imitam o aprendizado em ambiente externo. Em um estudo realizado em 2017 pelo Centro Oftálmico Zhongshan, onde Congdon também trabalha, crianças e professores preferiram salas de aula brilhantes, que se parecem com estufas, em comparação com salas de aula tradicionais. Mas, no verão e nos dias de sol, a intensidade da luz estava no "limite superior prático para uso cotidiano". E a construção da sala de aula brilhante também é duas vezes mais cara que a sala de aula comum, em parte porque são necessários mecanismos de refrigeração. Este problema complexo, em que a miopia é um efeito colateral de uma tendência que, em outros pontos, é positiva, também aparece em outra área: os níveis de renda. Como a educação, a renda mais alta é geralmente associada ao aumento do bem-estar das crianças, mas não quando o assunto é a saúde ocular. A miopia é associada à posição socioeconômica mais alta. Congdon explica que "quanto mais ricos ficamos, melhor protegemos nossas crianças para que não saiam sempre à rua, pois elas têm mais coisas para fazer. Elas podem tocar piano, aprender saxofone, assistir à TV e assim por diante." Em países de renda média e baixa, a incidência de miopia ainda tende a ser menor. A Índia e Bangladesh, por exemplo, relatam taxas de cerca de 20-30% em adultos. Mas isso está mudando. Na África, por exemplo, a miopia costumava ser incomum em comparação com os outros continentes, até que, nos últimos 10 anos, a incidência de miopia infantil começou a crescer rapidamente. Além disso, os países com renda mais baixa podem não ter recursos para diagnosticar e corrigir a miopia nas crianças, com enorme impacto sobre as suas vidas e sua educação. Algumas comunidades na África já relataram não ter óculos disponíveis e que seu acesso à assistência oftalmológica é muito pequeno. Não poder enxergar adequadamente significa que as crianças não conseguem acompanhar o que o professor escreve no quadro e podem também ter dificuldade para participar de outras atividades escolares de rotina. À medida que as taxas de alfabetização aumentam nesses países - e, consequentemente, o desenvolvimento do bem-estar geral -, este problema poderá crescer, a menos que haja um grande esforço para também fornecer exames oculares e óculos, segundo alertam os especialistas. "Podemos esperar que as taxas de miopia continuem a aumentar, pois países como a Índia estão levando mais crianças para a escola", afirma Congdon. "E, se as crianças passarem mais tempo na escola, elas ficam mais tempo lendo e menos tempo em ambientes externos." Mas o tempo na escola, por si só, não é necessariamente a raiz do problema, como demonstraram os lockdowns causados pela pandemia de covid-19. O problema parece ser ficar em ambientes internos. Durante os lockdowns, as escolas fecharam em todo o mundo, mas a saúde ocular das crianças ficou ainda pior. Tipicamente, elas permaneceram dentro de casa durante os lockdowns e passaram horas olhando para telas, seja acompanhando aulas ou assistindo à TV, já que outras formas de aprendizado e entretenimento haviam desaparecido. Com o legado dos lockdowns, a maior preocupação de Chia no momento é com as crianças com quatro a seis anos de idade. "Estamos preocupados porque, devido à covid-19, as crianças passaram ainda mais tempo em ambientes internos e a incidência pode ter aumentado", afirma ela. "Estamos aguardando dados para descobrir." E os dados da China já demonstram que os lockdowns, de fato, foram um golpe para a saúde ocular das crianças mais jovens. Um estudo comparou as taxas de miopia entre as crianças, medidas em estudos anuais. Antes da pandemia, entre 2015 e 2019, a taxa de miopia mais alta medida entre crianças com seis anos de idade foi de 5,7%. Já em junho de 2020, após cinco meses de confinamento, os pesquisadores mediram a visão das crianças no mesmo grupo de idade e concluíram que a incidência havia disparado para 21,5%, segundo David C. Musch, um dos coautores do estudo e professor de oftalmologia, ciências visuais e epidemiologia da Universidade do Michigan, nos Estados Unidos. Os pesquisadores deram a esse efeito o nome de "miopia da quarentena" - basicamente, a miopia induzida pelo lockdown. Os lockdowns fizeram com que a miopia também se tornasse preocupação em países que não eram muito afetados por ela até então. Isso pode ser particularmente observado em países onde as crianças geralmente ficavam fora de casa antes da pandemia e ficaram subitamente confinadas. "Em países com estilos de vida passados em ambientes externos, pode haver um aumento dramático dos casos de miopia devido aos lockdowns da pandemia", afirma Chia. "Em países como Cingapura, onde não saímos muito à rua, a mudança causada pela pandemia pode não ser tão grande." Frente a esses fatos, muitos pais podem estar imaginando o que eles podem fazer para proteger a visão dos seus filhos. E, como a saúde ocular é um problema global, muitos países também fizeram dela uma prioridade. A China, por exemplo, está buscando uma enorme quantidade de estratégias diferentes, alertando que a disseminação da miopia pode causar falta de mão de obra em muitos setores. "A maior parte das intervenções existentes para impedir o aumento da miopia foi desenvolvida ou testada na China", afirma Ghorbani-Mojarrad. Mas os resultados foram inconsistentes. Exercícios com os olhos, que antes eram recomendados como estratégia de saúde de baixo custo, foram considerados insuficientes para evitar a miopia a longo prazo. A China limitou o tempo que as crianças passam jogando vídeo game a um período definido por semana, mas esta medida concentrou-se, em grande parte, nas preocupações sobre a percepção de influência negativa causada pelos jogos, não pelo tempo em frente à tela em si. As evidências sobre a possível relação entre o tempo em frente às telas e a miopia não são conclusivas. "Existem muitos tipos diferentes de telas e muitas variáveis, de forma que é difícil obter dados precisos sobre o risco", afirma Ghorbani-Mojarrad. "Como pai, provavelmente vale a pena ser cuidadoso com as telas, particularmente porque as evidências demonstram que este pode ser um fator. Se o seu filho realmente gostar das telas, coloque-o sentado fora de casa para vê-las." Outras soluções dependem dos avanços tecnológicos. A estratégia de Singapura para combater a miopia, por exemplo, inclui óculos ou lentes de contato especiais. Seus pesquisadores não encontraram evidências que indiquem a eficácia de tratamentos como suplementos orais, exercícios com os olhos, máquinas de relaxamento ocular, acupressão ou terapia magnética. Mas colírios simples podem ajudar e uma nova terapia com luz vermelha também parece promissora. "A máquina emite uma luz vermelha em direção ao olho da criança por alguns minutos por dia, cinco dias por semana", explica Ghorbani-Mojarrad. "Demonstrou-se que ela reduz a velocidade de desenvolvimento da miopia. Mas não entendemos totalmente por quê." Em última análise, o tratamento correto depende da criança, segundo os especialistas. E, se os pais estiverem preocupados, eles devem consultar um optometrista. Mas, por enquanto, algumas das soluções mais eficazes para administrar ou evitar a miopia são surpreendentemente simples. Em muitas partes do mundo, fornecer um par de óculos comum pode mudar a vida de uma pessoa. Congdon trabalha na China desde o início dos anos 1980, em conjunto com a ORBIS International, uma ONG que forneceu óculos de baixo custo para 2,5 milhões de crianças na China e na Índia. Ele realizou o primeiro teste para descobrir se os óculos melhorariam os resultados educacionais. Seu estudo com 20 mil crianças em Guangdong, na China, concluiu que o impacto da doação de um par de óculos que custa US$ 4 (cerca de R$ 21) é maior que o impacto da educação dos pais ou da renda familiar. "Isso significa que uma intervenção simples, de baixo custo, pode reverter grande parte das desvantagens que uma criança poderá enfrentar no mundo, em comparação com a educação dos seus pais ou a baixa renda familiar", segundo Congdon. "Achamos isso estimulante." A estratégia de prevenção mais eficaz, segundo as evidências, também é surpreendentemente não tecnológica e pode ser aplicada a todos os países, independentemente da sua riqueza ou recursos: mais tempo em ambientes externos. Os pesquisadores também estão investigando exatamente por que ficar em ambientes externos, à luz natural, ajuda a evitar a miopia. Mas, por enquanto, sua conclusão mais importante é que isso é eficaz. O desafio é fazer com que as crianças façam uso desse estímulo natural. Em Singapura, o tempo em ambientes externos na pré-escola dobrou para uma hora, como parte da estratégia nacional ampla de combate à miopia. Os exames dos alunos mais jovens foram abolidos, para reduzir o tempo das lições de casa. "Queremos aumentar o tempo dos alunos mais velhos em ambientes externos, mas o currículo é bastante fechado", segundo Chia. "Somos uma ilha pequena, de forma que algumas escolas não têm espaço para que as crianças saiam e não ficam perto de parques ou algo assim." Embora permaneçam muitas incertezas sobre a miopia, Chia é incentivada pelo progresso feito em décadas de pesquisa. "Três anos atrás, não sabíamos como a luz do sol é importante." E, por fim, a visão das crianças é parte do seu bem-estar geral, segundo Chia. "Não queremos que o foco seja sobre os seus olhos, mas sobre todo o corpo e a boa saúde mental. Queremos que nossas crianças tenham vidas saudáveis."
2022-10-14
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-63251704
sociedade
O que significa se identificar como pansexual
Mariel Eaves tem 34 anos. Ela conhecia há muito tempo sua atração por "pessoas de vários gêneros", mas não tinha pensado muito sobre o que isso significava para sua identidade até cerca de seis anos atrás. Foi quando, como profissional clínica social que oferecia terapia para "pessoas trans e queer" na Carolina do Norte, nos Estados Unidos, eles começaram a aprender novos termos para descrever orientações sexuais. Um deles era "pansexual", que eles ainda não haviam considerado até então. Mais ou menos na época, Eaves — que usa os pronomes they/them em inglês (eles) para referir-se a si própria — também percebeu que sua identidade de gênero era não-binária (ou seja, nem feminino, nem masculino). Para eles, essa percepção veio de encontro à sua identificação como pansexual. "Sinto que meu gênero muda [e] devido a isso, consegui pensar nas coisas mais como um espectro", explicam eles. "Isso me permitiu sair dos binários que, na cultura americana, são meio que doutrinados." Atualmente, em vez de pensar muito sobre os gêneros dos seus parceiros reais ou possíveis, a identificação como pansexual significa para Eaves concentrar-se em outros aspectos das identidades dos seus parceiros, como "seus valores, suas condutas, a forma como eles me tratam, se temos interesses ou objetivos comuns", afirmam eles. "O gênero está no fim da lista." Fim do Matérias recomendadas Após surgir como conceito cerca de um século atrás para descrever de forma mais ampla o papel desempenhado pela sexualidade na vida das pessoas, o significado da pansexualidade mudou significativamente ao longo dos anos. O termo veio à tona mais recentemente na cultura popular, quando celebridades como a cantora e compositora americana Janelle Monáe o usou para descrever suas orientações sexuais. Ella Deregowska — voluntária e embaixadora da juventude para a ONG LGBTQIA+ Just Like Us, com sede em Londres — considera a pansexualidade "o termo quase mais aberto que posso encontrar para explicar a atração sexual". Com 23 anos de idade, ela afirma que a expressão "representa a sensação de 'tenho atração por seres humanos por quem eles são e nada mais que isso". É claro que nem todos os que se identificam como pansexuais definem o termo da mesma forma. Alguns também usam outras palavras, como bissexual, para descrever sua orientação, além de pansexual. Mas, de forma geral, o termo atende ao propósito de retirar a importância de gênero da equação de atração. Como no caso de Eaves, ele permite que as pessoas coloquem o gênero no "fim da lista" quando o assunto é decidir o que mais interessa sobre seus parceiros românticos e sexuais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Reduzir a importância do papel de gênero na atração e nos relacionamentos é o papel central da pansexualidade. Mas existem na prática algumas nuances sobre o seu significado para as pessoas pansexuais. O personagem David Rose, interpretado pelo ator Dan Levy na série canadense de televisão Schitt's Creek, usa o vinho como analogia para descrever o significado da pansexualidade para ele. "Eu bebo vinho tinto, mas também bebo vinho branco e tenho tentado experimentar o rosé de vez em quando. Dois verões atrás, experimentei um Merlot que costumava ser Chardonnay, o que ficou um pouco complicado", explica o personagem. "Eu gosto de vinho e não do rótulo, faz sentido?" Para Eaves, identificar-se como pansexual "significa que não levo muito em conta a identidade de gênero para definir por quem sou atraída ou se quero namorar alguém. Se a sua identidade de gênero mudar ou se eles aprenderem coisas novas sobre si próprios, isso também não muda o que eu sinto pelas pessoas." Já na visão de Deregowska, pansexual simplesmente descreve a forma como ela experimenta a atração melhor do que outros termos. "Já usei outros rótulos anteriormente, como bissexual ou lésbica, mas eles pareciam limitadores demais", afirma ela. "Eu posso ser atraída, por exemplo, por uma mulher em um momento e por alguém que é não binário, em outro." Mas, cerca de um século antes de pessoas como Eaves e Deregowska começarem a definir a pansexualidade desta forma, a conotação era muito diferente. Na época, o termo apareceu na publicação Journal of Abnormal Psychology. Nela, J. Victor Haberman resumiu criticamente o pensamento do psicoanalista Sigmund Freud sobre como o sexo motivava todas as ações humanas. Haberman definiu o ponto de vista de Freud com a palavra "pansexualismo": a ideia de que os instintos sexuais desempenham papel central em tudo o que os seres humanos fazem. Em outras palavras, "pansexualismo" não descrevia uma orientação sexual, mas sim a influência superdimensionada da sexualidade sobre a vida das pessoas. Isso só foi mudar anos depois. Ajudando a definir o caminho da mudança, o pesquisador do sexo Alfred Kinsey sugeriu, perto dos anos 1940, que a sexualidade existia em um espectro, indicando que as pessoas poderiam usar rótulos além de "heterossexual" ou "homossexual" para descrever suas orientações. Assim foi aberta a porta para o aumento da terminologia. Foi perto dos anos 1970 que as pessoas começaram a usar em público o termo "pansexual" com significado mais próximo do que tem hoje em dia. Em 1974, por exemplo, o roqueiro americano Alice Cooper afirmou em uma entrevista que "o prefixo 'pan' indica que você está aberto a todo tipo de experiências sexuais, com todo tipo de pessoas. Significa o fim das restrições; significa que você pode se relacionar sexualmente com qualquer ser humano." Não existem amplas informações sobre a demografia das pessoas que atualmente se identificam como pansexuais. "Ainda não há muitos estudos elaborados sobre [a pansexualidade]", segundo April Callis, diretora associada de Iniciativas LGBTQ+ do Centro de Diversidade e Inclusão Estudantil da Universidade Miami em Ohio, nos Estados Unidos, que estudou a bissexualidade e a pansexualidade. Na experiência de Callis, sempre houve "uma luta real para que as pesquisas até sobre a bissexualidade fossem observadas e compreendidas como algo legítimo". Com todos os outros termos novos sobre a sexualidade que vêm entrando em uso comum, desde a demissexualidade até a pansexualidade, "simplesmente ainda não houve aquela disposição de começar a explorá-los", segundo ela, do ponto de vista da pesquisa mais formal. Afinal, essas identidades começaram a entrar no discurso comum apenas poucos anos atrás. Mas, em 2016, pesquisadores de Sydney, na Austrália, pesquisaram 2.220 pessoas que não se identificavam como heterossexuais — e 146 desses participantes identificaram-se como pansexuais. A pesquisa demonstrou que os participantes que se identificavam como pansexuais normalmente eram mais jovens, em comparação com os que se identificavam como pessoas lésbicas, gays ou bissexuais. E também apresentaram maior propensão a não se identificarem como de gênero cis (alguém cuja identidade de gênero corresponde à atribuída no nascimento). Callis sugere que isso pode ter ocorrido porque participantes com mais idade não tinham a palavra "pansexual" facilmente disponível para descrever suas orientações. As gerações mais velhas podem ter combinado a bissexualidade e a pansexualidade, já que este último termo não era comumente usado na época em que eles questionavam suas identidades. Callis acrescenta que, mais recentemente, a pansexualidade vem sendo usada para diferenciar-se da bissexualidade, que indica um foco no gênero quando o assunto é atração. "Bi" pode indicar atração aos dois gêneros binários, masculino e feminino, ou pode indicar atração às pessoas que compartilham o mesmo gênero da pessoa ou que não compartilham aquele gênero. Richard Sprott, diretor de pesquisa da ONG Alternative Sexualities Health Research Alliance da Califórnia, nos Estados Unidos, escreveu sobre a prevalência da pansexualidade nas comunidades kink e BDSM. Para ele, a pansexualidade transmite maior sensação de estabilidade que termos mais amplos como queer, por comunicar uma atração mais estática com relação às pessoas, independentemente do seu gênero. "A pansexualidade é ainda muito flexível, mas, ao mesmo tempo, ela não está necessariamente tentando comunicar que as coisas podem mudar de forma fluida", afirma ele. Mas identificar-se como pansexual não exclui necessariamente a identificação simultânea com outras orientações sexuais. Eaves, por exemplo, usa os termos pansexual, bissexual e queer para descrever-se. Eles consideram que todos esses termos são razoavelmente similares e o contexto, muitas vezes, indica qual eles escolhem para usar em um dado momento. "Em um espaço que eu sei que é ocupado predominantemente por outras pessoas da comunidade LGBTQIA+, provavelmente direi apenas que sou queer porque, a menos que eu esteja tentando namorar alguém especificamente, é mais importante saber que sou da comunidade do que a forma exata como tenho relacionamentos", afirmam eles. "Eu me identifico principalmente como pansexual, mas uso bissexual como definição alternativa para pessoas que não têm tanta familiaridade com o termo pansexual, que é mais novo." E identificar-se com um termo "mais novo" também traz suas dificuldades. Callis afirma que os conceitos errôneos sobre a pansexualidade incluem as pessoas que acreditam que aqueles que se identificam como pan não podem ser monogâmicos (já que eles têm sexo com qualquer pessoa!) e que eles estão adotando uma "identidade da moda" — em outras palavras, estão descrevendo-se como pan porque está na moda. Eaves conta que costuma enfrentar "invalidações vulgares", como pessoas heterossexuais perguntando "se você está namorando um homem, por que se identifica como pansexual?" E, como educadora, Eaves às vezes se sente levada a ensinar mais do que gostaria nesse tipo de cenário. "Tenho dificuldade de definir onde devem ficar esses limites, se estou disposta a instruir alguém naquele momento ou se quero apenas poder ser quem eu sou", eles contam. Já Deregowska está cansada de ouvir sempre as mesmas brincadeiras — como aquela em que as pessoas ouvem que ela é pansexual e perguntam "então você tem atração por panelas?" "Pode ser algo sensível uma pessoa apresentar-se a alguém novo e comentar sobre seus rótulos, de forma que respostas na forma de brincadeiras não caem bem comigo", afirma ela. Individualmente, identificar-se como pansexual é uma escolha pessoal, mas o termo traz implicações sociais mais amplas. Para Richard Sprott, "a ideia de que o que as pessoas acham atraente em outras pessoas pode não ter nada a ver com seu gênero ainda é meio que uma ideia radical". "Nossa sociedade atual e, honestamente, nossas teorias atuais de orientação sexual consideram que uma das coisas mais importantes que nos atraem é o gênero de uma pessoa", segundo ele. "A pansexualidade é uma das formas de contestar essa ideia, em termos de ciência e de sociedade." E contestar essa ideia fez com que mais pessoas falassem abertamente sobre a pansexualidade, oferecendo aos demais a linguagem que finalmente expressa como elas experimentam a atração. Usar o rótulo "pan" não mudou quem eles namoram, mas mudou a forma como Eaves se comunica com essas pessoas. No passado, quando Mariel Eaves namorava homens cis, eles "talvez considerassem que eu fosse heterossexual", eles contam, e teriam se sentido ameaçados ao saberem que não era o caso. Agora, Eaves conta logo de início que é pansexual às pessoas que estiver namorando. Esta abordagem direta também foi uma bênção para os seus parceiros. Como Eaves não namora pessoas com base no seu gênero, seus namorados passaram a ter mais espaço para explorar suas próprias identidades de gênero, já que não se sentem pressionados para permanecer estáticos para atender aos parâmetros de atração de Eaves. Eaves afirma que "não parece ameaçador [para eles] considerar que sua identidade pode não ser aquela que eles adotaram muito tempo atrás". E identificar-se como pansexual retirou um certo grau de estresse das experiências de Ella Deregowska. Segundo ela, "posso mover-me com maior fluidez e aceitar cada atração que sinto sem achar que preciso reconsiderar minha identidade ou rótulo para explicá-la".
2022-10-14
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-63242770
sociedade
'Perdi 22 bebês, mas falar sobre isso é um tabu'
Imtiaz Fazil engravidou 24 vezes, mas tem apenas dois filhos vivos. Ela engravidou pela primeira vez em 1999. Nos 23 anos seguintes, teve 17 abortos espontâneos e cinco bebês morreram antes do primeiro aniversário devido a uma condição genética rara. A mulher de 49 anos, moradora da cidade de Manchester, na Inglaterra, disse à BBC que não é fácil falar sobre suas perdas, mas que está determinada em fazer isso. Em parte, porque essas coisas continuam sendo um assunto tabu entre comunidades do sul da Ásia no Reino Unido e em diversos países. Ela disse que quer mudar isso e quebrar o estigma em torno da perda do bebê. Ela disse que a própria família dela "não fala muito comigo sobre essas coisas", pois pensa que "eu posso me machucar (por) lembrar dessas memórias". Fim do Matérias recomendadas "É muita tristeza; é por isso que ninguém aborda esse tipo de coisa. Elas apenas guardam para si mesmas." Ela disse que, apesar de sofrer tantas perdas, "ninguém sequer me perguntou se estou bem (ou) se ainda penso nos meus bebês". "Não há um dia em que eu não pense nos meus filhos", acrescentou. Outro casal — Sarina Kaur Dosanjh e o seu marido Vik — também quer quebrar o silêncio em torno da perda do bebê. Os jovens de 29 anos, da cidade inglesa de West Midlands, criaram o Himmat Collective, uma instituição de caridade que oferece um espaço virtual para mulheres e homens do sul da Ásia compartilharem suas experiências. O casal teve dois abortos espontâneos nos últimos dois anos. "O assunto é varrido para debaixo do tapete", diz Sarina Ela disse que se cria um estigma de evitar relações com qualquer pessoa que tenha sofrido um aborto espontâneo "porque é quase como se fosse contagioso"."Esse é um dos estigmas que precisam ser quebrados", disse ela. Vik disse que recebeu reações distintas ao falar sobre a perda do seu bebê.Ele disse que, embora alguns homens tenham dito que ele os ajudou a lidar com o trauma, outros disseram que esse não era um assunto sobre o qual ele deveria estar falando. No entanto, ele disse acreditar firmemente que um "problema compartilhado é um problema dividido pela metade".Sarina disse que as pessoas "em nossa comunidade precisam saber que não devem se sentir envergonhadas se tiverem sofrido aborto espontâneo, natimorto ou qualquer tipo de perda de bebê"."Minha esperança é que no longo prazo as pessoas possam ver que isso é normal e que podem falar sobre o assunto."Essa também é a esperança de Imtiaz.Ela disse que a dor de perder 22 bebês é um fardo grande em sua vida, mas ela quer ajudar outras pessoas que enfrentam situações semelhantes com alguns conselhos simples."Não guarde tudo dentro de si", aconselha ela."Se você segurar, você não vai conseguir. Você precisa se abrir e falar sobre isso, senão você não vai aguentar."
2022-10-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63251524
sociedade
As consequências genéticas do casamento entre primos: o que é real e o que é tabu
*Este artigo é um resumo do episódio "É tão ruim assim casar com meu primo?" (Is Marrying My Cousin Really That Bad?) do podcast Am I Normal? with Mona Chalabi ("Eu sou normal? com Mona Chalabi"), pelo TED Audio Collective e reproduzido pela BBC. Toda cultura tem seus tabus - crenças profundamente arraigadas de que certas práticas são ruins ou até abomináveis. Os tabus são essencialmente uma forma de controle social que nos diz quais comportamentos são aceitáveis e quais não são. Mas cada cultura tem seus tabus - e algo que é considerado repulsivo em uma sociedade pode ser uma prática cotidiana em outra. O casamento entre primos é um exemplo. Ele é muito comum em todo o mundo, especialmente no Oriente Médio, no sul da Ásia e no norte da África. Cerca de 10% das famílias de todo o mundo são formadas por casais de primos em primeiro ou segundo grau. Eles representam mais de 750 milhões de pessoas. Fim do Matérias recomendadas O casamento entre primos é permitido por lei na maior parte da Europa, América, Austrália e em partes da África e da Ásia. É permitido no Brasil, onde a proibição do casamento entre parentes vai até parentes de terceiro grau - e primos são considerados colaterais em quarto grau. Já nos Estados Unidos, o mapa das leis de casamento entre primos parece uma colcha de retalhos. Alguns Estados, como Nova York, Califórnia e a Flórida, permitem o casamento entre primos-irmãos sem restrições. Mas em muitos outros, como Virgínia Ocidental, Kentucky e Texas, o casamento entre primos é proibido. E há os Estados que permitem o casamento entre primos com limitações. Em Utah, Arizona e Illinois, você só pode se casar com seu primo se um dos dois for estéril ou se ambos tiverem mais que uma determinada idade. E, no Maine, você só pode casar com sua prima ou primo se tiver se submetido a aconselhamento genético. Mas por quê? Se perguntarmos aos norte-americanos por que o casamento entre primos não é correto, a maioria responderá que é porque os filhos do casal sofrerão de doenças genéticas. Será verdade? A geneticista Wendy Chung, da Universidade Columbia em Nova York, nos Estados Unidos, pesquisa os transtornos genéticos, que ocorrem quando o DNA mostra algum sinal de anomalia. Chung também assessora e trata de famílias com transtornos genéticos. Para ela, "a genética é extremamente lógica. (...) E é muito satisfatório poder entender a ciência e ajudar as pessoas, as famílias afetadas". À medida que o embrião cresce no útero, os genes podem mudar ou causar transtornos. Podem ocorrer anomalias genéticas que fazem com que partes do corpo não se desenvolvam da forma esperada - como no caso de lábio leporino, por exemplo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Wendy Chung explica que mesmo em casais sem parentesco, já há um risco de 3 a 4% de terem um filho com o que ela chama de "um dos principais tipos de problemas (causados por anomalias genéticas)". "Em um casal de primos-irmãos, este risco dobra", afirma Chung. Em várias culturas, existem razões fortes para ver com bons olhos o casamento com um primo ou prima. Em primeiro lugar, vem a ideia de manter os bens na família. E, depois, vem a familiaridade. O objetivo do casamento arranjado é unir pessoas com um histórico de anos de relações familiares, em vez de um homem ou uma mulher com quem só se tenha tido alguns poucos encontros. Na Europa e nas Américas, o casamento entre primos costumava ser bastante comum. Personalidades da História como Charles Darwin, Edgar Allan Poe, H.G.Wells, Albert Einstein, o cineasta britânico David Lean e os compositores Igor Stravinsky, Sergei Rachmaninoff e Darius Milhaud se casaram com primas-irmãs. Casamentos entre primos sempre foram comuns nas famílias reais europeias. A rainha Vitória, da Inglaterra, se casou com seu primo-irmão, o príncipe Alberto. De forma geral, o casamento entre primos é bastante seguro. Mas, em certas populações ou famílias específicas, pode haver mais riscos. Wendy Chung afirma que isso se deve a uma categoria de condições genéticas. "Você tem duas cópias do seu gene, uma da sua mãe e outra do seu pai. Para determinadas condições, é preciso haver mudanças genéticas nas duas cópias dos genes para causar um problema." "Se você tiver 50% desse gene fazendo seu trabalho, pode dar certo", explica a geneticista. "Mas, quando você tem 100% [anômalo], aí ocorrem os problemas", diz ela. Quando Chung fala em problemas, ela se refere a doenças ou condições autossômicas recessivas. Existem milhares delas e algumas são bem conhecidas e graves, como a anemia falciforme, a fibrose cística e a atrofia muscular espinhal. A maioria das pessoas do mundo possui alguns genes recessivos anômalos. Se você tiver uma cópia anômala, não há problema. Mas, se você tiver duas cópias anômalas, surgirá um distúrbio. Se você se casar com seu primo ou prima, isso não quer dizer que seu filho terá um distúrbio recessivo. Mas "quando você compartilha 12,5% da sua informação genética com seu parceiro, existe um risco maior de que os dois carreguem uma mutação no mesmo gene herdado de um ancestral comum", explica Chung. E se ambos forem portadores da mesma condição genética recessiva, existe maior probabilidade de que seu filho nasça com um transtorno genético. Para determinar o risco genético relacionado ao casamento com um primo, Chung afirma que não podemos olhar simplesmente para esse casal ou sua família. "Não é só a questão do casamento entre primos-irmãos", explica ela, "mas, na verdade, o contexto da população mais ampla em que isso está ocorrendo." "Em certas comunidades, pode ter ocorrido casamentos mistos por gerações", afirma Chung. "Seja em uma ilha, uma aldeia ou uma cidade, pode haver frequência relativamente alta de certas variantes genéticas em certos genes que conferem maior risco de doenças." Ela prossegue: "Em certas famílias de realeza, os casamentos entre primos ocorreram como forma de manter o poder e a riqueza dentro da família. Por isso, não se trata apenas de compartilhar 12,5% da sua informação genética. Na verdade, você pode estar compartilhando uma fração muito maior das suas informações genéticas, devido a essas relações ao longo de várias gerações." Chung afirma que, quando uma população teve muitos casamentos entre primos no passado, o risco de surgirem filhos com transtornos genéticos é maior. Mas, quando não há muitos casamentos entre primos, esse risco é muito menor. Os geneticistas não conseguem calcular com precisão o risco de condições recessivas para todos os casamentos entre primos, pois cada família e cada casal é diferente. Para determinar o risco de um casal, o geneticista precisaria observar seus genes, para ver se ambos são portadores das mesmas anomalias. Isso é particularmente importante nas comunidades em que esses transtornos são mais frequentes, como os judeus ultraortodoxos de Nova York. Chung trabalha com essa comunidade. "O rabino Joseph Eckstein, membro dessa comunidade, infelizmente foi afetado de forma trágica com sua família porque teve vários filhos com a doença de Tay-Sachs, que é mortal", ela conta. "Até hoje, não temos tratamento para essa doença e as crianças morrem antes dos cinco anos", explica a geneticista. "E pode ser estigmatizante saber que você é portador de Tay-Sachs. Se a sua família tiver esse gene, pode ser menos desejável que você forme um casal na comunidade." A formação de casais é a maneira que define a maioria dos casamentos na comunidade judaica ortodoxa. E essa prática cultural tornou-se uma oportunidade para solucionar o problema de Tay-Sachs. O rabino Eckstein idealizou um plano para que os jovens se submetessem a um teste genético antes da formação do casal. Os portadores do gene de Tay-Sachs só formariam casais com os não portadores. "Culturalmente, foi extremamente bem aceito, bem considerado e este programa, de fato, foi transformador para a comunidade judaica ortodoxa, pois realmente já não vemos mais a doença de Tay-Sachs", afirma Chung. Por isso, casar-se com um primo pode ser arriscado em algumas comunidades, mas esse risco geralmente não é muito maior que o da população comum. E, com a ajuda da ciência — com o assessoramento genético e a fertilização in vitro —, as comunidades podem reduzir ainda mais o risco desses genes recessivos.
2022-10-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63217911
sociedade
Por que a maçonaria inspira tantas teorias da conspiração
Uma hora é um livro novo, outra hora uma declaração política. Teorias e conspirações envolvendo a maçonaria, uma sociedade que sempre teve sua aura de mistério, povoam desde ficções best-sellers como O Símbolo Perdido, de Dan Brown, até as campanhas eleitorais brasileiras. Mas o que é a maçonaria, afinal? Com cerca de 170 mil membros no Brasil, trata-se de uma sociedade outrora secreta, de caráter filosófico e filantrópico. Seus integrantes defendem os princípios da liberdade, da democracia, da igualdade e da fraternidade, além de serem entusiastas do aperfeiçoamento intelectual. Calcula-se que haja 3,6 milhões de maçons no mundo. O grupo, então, nasceu assim: como um maneira de garantir a hegemonia do conhecimento e, ao mesmo tempo, possibilitar um intercâmbio de informações entre essa confraria de construtores. Aos poucos, outros temas foram introduzidos nas conversas. O que eram apenas convescotes laborais, portanto, foram ganhando importância em termos de debate. Como sociedade filosófica e filantrópica, a maçonaria foi fundada em 24 de junho de 1717, na Inglaterra. Foi ideia de dois pastores protestantes, James Anderson e J. T. Desaguliers, alinhados com os princípios do livre pensamento que nortearam o movimento conhecido como iluminismo. Fim do Matérias recomendadas Historicamente, a sociedade só aceita homens. De acordo com eles, é uma questão de tradição: como a maçonaria teve origem nas corporações de ofício dos pedreiros medievais - e eles eram estritamente masculinos -, a regra foi mantida. O poder veio nos Estados Unidos. Ali, os maçons tiveram participação importante na Independência americana e, não à toa, dos 55 signatários da Declaração de Independência, nove vinham da maçonaria. Dos 39 que aprovaram a Constituição, 13 eram maçons. Benjamin Franklin era maçom. George Washington, o primeiro presidente americano, também. Na virada do século 18 para o século 19, a maçonaria era um 'clube' que reunia as mentes mais influentes e antenadas do planeta. Os maçons também influenciaram a Revolução Francesa - conta-se que a Marselhesa, hino da França, foi composta na loja maçônica de Marselha. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na América do Sul, não foi diferente. Conforme estudos do pesquisador inglês Andrew Prescott, autor de A História da Maçonaria da Marca, a sociedade participou dos processos de independência de todos os países sul-americanos. Na lista dos ilustres maçons libertadores, estão o venezuelano Simon Bolívar, o argentino José de San Martín e o chileno Bernardo O'Higgins. Além, é claro, de D. Pedro 1º. "A maçonaria influenciou o processo de independência e, depois do Sete de Setembro, reuniões em lojas maçônicas pediam ajuda aos irmãos para que D. Pedro fosse reconhecido como imperador constitucional do Brasil", afirma o historiador Paulo Rezzutti, autor da biografia D. Pedro - A História Não Contada. A maçonaria brasileira nomeou Pedro 1º grão-mestre da sociedade. E ele assumiu a alcunha de Guatimozin - nome dado pelos cronistas espanhóis ao último imperador asteca. Não foi só a Independência. A República também veio por meio de um maçom, marechal Deodoro da Fonseca. O terreno fértil para conspirações tem dois motivos: o fato de a maçonaria ser uma sociedade exclusiva, ou seja, um clube onde só entram convidados e cujas reuniões são a portas fechadas; e por causa do alto número de celebridades da História que já fizeram parte da sociedade. Dessa junção de fatores veio também a conhecida teoria conspiratória sobre a suposta "Nova Ordem Mundial". De acordo com essa lenda, seria um plano para que o mundo tivesse um governo único, planejado e comandado por maçons. Na prática, não faz sentido: nem as lojas maçônicas são únicas, do ponto de vista organizacional; cada casa é independente e abriga confrades com pontos de vista diferentes. A Confederação Maçônica Brasileira (Comab) esforça-se para combater os mitos acerca da sociedade. Segundo a organização, os maçons não são anticatólicos, tampouco "racistas e elitistas", como muitos acreditam. "Quanto ao racismo, a maçonaria estabelece explicitamente a igualdade entre os homens sem considerar raça, credo ou cor. Se considerarmos que apenas são convidados a participar da maçonaria homens virtuosos e representantes da sociedade, pode-se dizer que ela é uma elite, embora o correto seja afirmar que ela impõe critérios rigorosos para a iniciação de um novo membro", frisa a Confederação. Para se tornar um maçom é preciso receber um convite ou se candidatar - hoje em dia, as associações maçônicas costumam disponibilizar formulários de interesse nos seus sites. A sociedade só permite homens maiores de idade, com endereço fixo e renda própria. Ter religião não é obrigatório, mas é preciso acreditar em Deus. Se o sujeito for casado, tem de contar com a anuência da família. O iniciante passa por uma avaliação que pode durar até um ano. "Tenha paciência. Esse processo pode demorar algum tempo e nós precisamos ter certeza de que você será um elemento útil à nossa Instituição, assim como você também deverá ter certeza de que sua decisão será benéfica para você e sua família", informa a Grande Loja Maçônica do Estado do Rio de Janeiro, em recado aos interessados. Tudo pode ser investigado: vida financeira, ficha policial, círculo de amizades, relações de trabalho. O nome é submetido aos outros membros e o candidato precisa ser aprovado por unanimidade. Uma vez dentro, o novato precisa fazer o pacto de silêncio. Ou seja: nada do que é conversado ali dentro pode ser divulgado. Os maçons costumam fazer trabalhos voluntários em instituições filantrópicas e também se ajudam uns aos outros em caso de necessidade. Historiadora da Universidade de São Paulo, Solange Ferraz de Lima conta que se surpreendeu com a rede maçom quando estudou a vida e a obra do pintor e decorador italiano Oreste Sercelli. Ela percebeu que ele conseguiu rapidamente destaque nos círculos sociais brasileiros, tão logo chegou ao país. Logo, encontrou a explicação: ele era ligado à maçonaria - e, portanto, contava com o apoio dos confrades. "A história da maçonaria é bem interessante. É impressionante como eles estão presentes em tudo", afirma a historiadora. "Eles têm essa capacidade de articular, é uma rede muito poderosa. Mas, curiosamente, não é muito estudada - porque eles são muito fechados." É uma irmandade. E exclusivamente masculina. Mulheres e filhos são bem-vindos nos trabalhos sociais e eventos festivos - nunca nas reuniões ordinárias. Segundo os maçons, o veto às mulheres é uma questão de tradição: como a maçonaria teve origem nas corporações de ofício dos pedreiros medievais - e eles eram estritamente masculinos -, a determinação foi mantida. Apesar de todas essas regras e esse imaginário, acredita-se que a sociedade esteja muito mais aberta do que no passado. Crítico da ordem, o ex-maçom britânico Martin Short escreveu, no livro Inside The Brotherhood, que a maçonaria passa por essa transição. Segundo ele, o que era uma sociedade secreta, hoje é uma sociedade discreta. Mas, em breve, o autor acredita, a maçonaria será uma sociedade civil aberta.
2022-10-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-45457166
sociedade
O curioso motivo pelo qual os holandeses não costumam pedir desculpas
A Holanda é um país pequeno, mas conhecido por muitas coisas: as bicicletas, o queijo, os "coffee shops", os moinhos de vento e pela população mais alta do mundo. Um detalhe mais curioso tem a ver com algo que os holandeses raramente fazem: pedir desculpas. Saskia Maarse, que dá palestras sobre cultura holandesa, diz que há um motivo cultural por trás disso. "Os holandeses são conhecidos por serem diretos, o que quer dizer que suas mensagens são claras e precisas", diz ela à BBC Reel. "Mas na maioria dos demais países o estilo de comunicação é indireto, o que significa que, para entender as pessoas, é preciso considerar seus valores subjacentes." "O estilo dos britânicos, por exemplo, tem muita cortesia, diplomacia e tato. Já nos Países Baixos os valores subjacentes são a transparência, a honestidade e a franqueza", Maarse acrescenta. Fim do Matérias recomendadas Os holandeses pedem desculpas apenas quando de fato se arrependem, diz Maarse, mas não como um recurso polido de conversa como ocorre em tantos países. "No estilo de comunicação britânico, 'desculpe' (sorry) é uma boa palavra a se usar para ser mais diplomático ou educado. Já aqui (nos Países Baixos) dizemos que você só deve pedir desculpas se realmente sentir arrependimento." Para pessoas de outros países que se mudam aos Países Baixos, é necessário um pouco de esforço para compreender o estilo holandês. É o caso de Verena, oriunda da Indonésia. Ela diz que no seu país natal predomina um estilo bastante diferente. "Nós indonésios não somos nada diretos. Tendemos a dar voltas ao falar, enquanto os holandeses são do tipo: 'se você quer dizer algo, simplesmente diga. Vá logo ao ponto'", conta. Desse modo, alguns estrangeiros veem o estilo holandês como brusco, ou rude, mas muitos entendem que é acima de tudo um traço cultural. A BBC Reel saiu às ruas de Amsterdã para ouvir opiniões a respeito dessa curiosa característica. "Os jovens nas bicicletas sempre se desculpam. Mas outras pessoas, as gerações mais velhas, não. Nunca pedem desculpas", afirma um dos entrevistados. "Se eu sei que tenho culpa, peço desculpas. Não suporto a injustiça", diz outro holandês. Esse traço cultural tem curiosas origens históricas e práticas, segundo Maarse: é parte de uma espécie de "cultura de consenso". "Se você observar a história, verá que (nós holandeses) temos um inimigo em comum: a água", diz ela, em referência ao fato de que, historicamente, o país sempre enfrentou enchentes. E quase um quarto do seu território fica abaixo do nível do mar. Por isso, ao longo de séculos, os holandeses se viram obrigados a trabalhar em conjunto na busca por soluções para enfrentar inundações. "Eles se sentavam ao redor de mesas e mantinham longas discussões e deliberações. Era preciso ser honesto nas ideias, pensamentos e opiniões, para poder encontrar uma solução comum", argumenta Maarse. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A especialista diz ainda que, nesse contexto, as pessoas sempre se viam em pé de igualdade — algo que também se enraizou no estilo de comunicação. A franqueza holandesa pode causar dissonâncias, especialmente em conversas com britânicos, que nem sempre dizem o que pensam. "Se você faz uma oferta de negócios e o britânico ou britânica diz 'ah, isso soa interessante, vou analisar', nós entendemos como 'ah, ele realmente ficou interessado e vai analisar'. Mas (para não-holandeses) isso pode muito bem significar 'não estou interessado porque é uma ideia ruim'. O desafio para os holandeses é entender o real sentido da conversa. Nós falamos inglês, mas nem sempre entendemos a mensagem", afirma Maarse. Ela acrescenta que "ao mesmo tempo, para as pessoas do Reino Unido, é um desafio não se chocar com a franqueza (holandesa). A intenção é ser honesto e claro, mas isso é algo que às vezes percebido como rude ou mesmo arrogante." A expressão usada para pedir desculpas em holandês é Het spijt me - o que poderia ser traduzido para o português como "eu sinto muito". Saskia Maarse explica que a frase expressa um arrependimento que vai além da palavra "desculpe" na maioria dos idiomas. "O Het spijt me envolve mais (do que um pedido de desculpas): envolve uma história, uma situação", diz ela. Segundo Lynn, uma das holandesas entrevistadas pela BBC, quando é usada, a expressão visa exprimir "algo que realmente vem do coração. Significa realmente se arrepender". O que, para Lynn, só reforça a ideia de que não se deve pedir desculpas à toa. "Apenas diga 'desculpe' se realmente quiser se desculpar. Não diga se não for o que sente", diz ela.
2022-10-11
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63185758
sociedade
Boicote a pesquisas por eleitores de Bolsonaro pode distorcer resultados?
O que aconteceria se muitos eleitores de um só candidato resolvessem boicotar pesquisas eleitorais, deixando de respondê-las? O resultado poderia, sim, ser distorcido, segundo especialistas em estatística e pesquisas sociais. Até agora, no entanto, as informações disponíveis não indicam que este foi um fator que influenciou os resultados das pesquisas no Brasil até aqui, segundo os profissionais do mercado e da academia ouvidos pela reportagem. Fim do Matérias recomendadas A BBC News Brasil pediu entrevista ao Datafolha, que não respondeu, e ao Ipec, que disse que a porta-voz não teria agenda para responder aos questionamentos. A consultoria Quaest disse que leva em conta a preocupação com subnotificação no que se refere a eleitores de Bolsonaro e que há ferramentas estatísticas capazes de lidar com essa questão (veja mais detalhes abaixo). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os especialistas ouvidos pela reportagem são unânimes em dizer que, se muitos eleitores de um só candidato decidirem não responder às pesquisas eleitorais, isso pode distorcer resultados. Nenhum deles aponta, no entanto, que considera que isso foi um problema identificado no primeiro turno. O cientista de dados Tomás Veiga, que é mestre em estudos populacionais e pesquisas sociais pela ENCE-IBGE e consultor sênior na EY, diz que um movimento assim "pode ser um problema". Para Veiga, em teoria é possível compensar a não participação de um grupo nas pesquisas, mas na prática é mais complicado. "Você teria que pesá-los de alguma forma - pesando o candidato (em quem eles pretendem votar) para mais, por exemplo -, mas você não saberia qual é esse peso", resumiu. A lógica por trás das pesquisas é exatamente a de buscar uma amostra que vai poder representar o todo (neste caso, total de eleitores) - já que não é possível entrevistar todo mundo, como lembra a estaticista Adriana Silva, professora e consultora na ASN.Rocks. "E hoje o que acontece nas pesquisas eleitorais, dada a situação de vida real, são amostragem por cotas - e elas, sim, são separadas então por nichos. Então, se um determinado nicho decidir falar diferente ou não falar, aquilo vai ter um peso no resultado final", diz ela, que também é professora de pós graduação em Analytics na FGV e na ESALQ/USP. Adriana Silva diz que, diante desse cenário, vê duas possibilidades: "não esperar uma resposta tão precisa" (ou seja, aumentar a margem de erro) ou "restringir a população" (deixar determinado perfil de fora da pesquisa, alertando, claro, que aquele resultado não se refere a toda a população). Ela pondera que a segunda opção pode não fazer sentido estratégica e politicamente, mas que, "pensando estatisticamente, é uma abordagem válida". O professor de estatística da Universidade de Brasília (UnB) Alan Silva também diz que a recusa de um grupo específico - e não uma recusa aleatória, em grupos variados - pode influenciar a taxa de erro. E aponta que aumentar a margem de erro pode ser uma alternativa. "É claro que ninguém quer uma margem de erro muito alta porque tudo ficaria empate técnico. Mas com a recusa, sua amostra vai diminuindo e você não consegue atingir aquele (nível de) erro que você pré-determinou." O professor também diz que os institutos poderiam divulgar dados sobre as recusas e mais detalhes sobre como estão recalculando. E afirma que pesquisas por telefones tendem, na avaliação dele, a ser uma forma mais fácil de o entrevistado deixar de participar. "Quando você é abordado na rua, não tem muito como escapar. No telefone, ele liga e você desliga, não tem nem chance de tentar explicar nada." Os três especialistas em estatística entrevistados fazem o alerta de que, em qualquer discussão sobre pesquisas de intenção de voto, é importante lembrar que elas devem ser encaradas como um retrato da opinião do eleitor naquele dia, e não uma projeção para o dia da eleição. "É uma intenção de voto. A pessoa responde uma coisa que é o que ela pretende fazer naquele momento", aponta o cientista de dados Tomás Veiga. O professor Alan Silva compara: "Se eu perguntar qual é a sua idade, a princípio fica imutável em certo período de tempo. Mas a opinião muda." Para a estaticista Adriana Silva, a pesquisa de opinião "hoje infelizmente está sendo interpretada de uma forma que não deveria ser", já que "não é modelo de previsão, não prevê futuro", diz. Ela explica que há ferramentas para buscar prever o comportamento das pessoas, mas que isso depende de muito mais que apenas uma pesquisa de opinião. Inclusive menciona o trabalho do estatístico Nate Silver, responsável pelo FiveThirtyEight.com, que ganhou notoriedade nas eleições de 2012 nos EUA após prever corretamente o resultado nos 50 estados. "Se você vai ver a base do estudo dele, não foi pesquisa de opinião somente, foi um modelo de predição, em que ele levou várias pesquisas em consideração, cenários econômicos, cenários do que vinha acontecendo e virou um modelo de predição", afirmou Adriana Silva. Ela lembra que profissionais da área já fazem modelos para prever, por exemplo, quando uma pessoa deixará de ser cliente de determinada empresa e que trabalho semelhante poderia ser feito para parte dos eleitores. "Só que repara a complexidade desse tipo de análise", diz ela, que complementa que é necessário entender classe social, renda, estilo, coisas que a pessoa gosta de fazer e outras informações sobre o indivíduo para tentar prever a opinião política dele. Diretor da Quaest, o professor e cientista político Felipe Nunes disse à BBC News Brasil que a consultoria tem, desde que começou a trabalhar com pesquisa para as eleições de 2022, preocupação com subnotificação relacionada a eleitores de Bolsonaro. Ele reconhece um risco de transformar a participação nas sondagens em um gesto político. "Embora seja lamentável esse tipo de situação, há ferramentas estatísticas capazes de lidar com isso", respondeu. Nunes explicou que a Quaest pergunta em quem o eleitor disse ter votado no segundo turno de 2018. "Temos monitorado essa variável desde o começo do projeto, e vamos intensificar esse monitoramento agora incluindo a pergunta sobre em quem o eleitor votou no primeiro turno. Isso vai nos permitir identificar se a amostra tem ou não tem esse tipo de eleitor representado", disse. Esses dados, segundo ele, indicam que não houve esse problema até aqui. Mas ele reforça que a empresa vai "intensificar o controle dessa situação no campo". Ele argumentou, ainda, que tem um controle "muito grande" sobre a taxa de não resposta. "Somos a única empresa que coleta dados de quantas tentativas são necessárias para conseguir uma entrevista. Ao longo do último ano, aumentou a média de tentativas para se conseguir uma entrevista. Mas não temos dados de outras eleições para comparar e saber se é um movimento normal pelo volume de pesquisas ou algo específico desta eleição", afirmou. Nunes disse, ainda, que a legislação brasileira impede os institutos de trabalharem com margens de erro maiores. "Somos obrigados a informar antes da realização do campo a margem de erro estimada. Mas todos sabemos que isso subestima as margens reais. A Quaest começou a publicar os dados com margem de erro por sub-grupo justamente para tentar avançar esse debate. Mas ninguém prestou atenção nisso e continuamos a ver jornalistas assumindo que as estimativas publicadas são 100% precisas, o que não é verdade."
2022-10-11
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63200355
sociedade
Por que o ser humano não é 'programado' para se exercitar, segundo cientista
O escritor americano Mark Twain, que viveu até os 75 anos, disse uma vez que fazia todo o exercício que precisava atuando como carregador de caixão nos funerais de seus amigos que se exercitavam regularmente. Ou talvez essas palavras tenham sido do senador americano Chauncey Depew, que morreu aos 94 anos. De qualquer forma, embora nem todos o expressem com tanto humor, não são os únicos que, ao longo da história, não se mostraram muito afeitos ao exercício. Estamos programados para evitar esforços desnecessários, não para triatlos ou esteiras, disse ele. Então, seria um mito dizer que é normal fazer exercício. Fim do Matérias recomendadas O ser humano, ressalta, nunca evoluiu para fazer exercício e, do ponto de vista científico, é uma atividade estranha. Ou seja, embora tenhamos evoluído para nos movermos, para sermos fisicamente ativos, "o exercício é um tipo particular de atividade física: é uma atividade física voluntária em prol da saúde e da boa forma". Essa é uma "invenção" relativamente nova, enfatizou o pesquisador. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Não faria sentido, por exemplo, para um caçador ou pequeno agricultor de subsistência gastar energia extra desnecessariamente correndo 8 quilômetros pela manhã: ele perderia calorias valiosas que necessita para atividades prioritárias. "Temos esses instintos muito arraigados para evitar atividades físicas desnecessárias", explica o paleoantropólogo. Hoje, porém, "consideramos que as pessoas são preguiçosas se não se exercitam. Mas não são preguiçosas. São apenas normais", diz Lieberman. Mas isso não quer dizer que o exercício não seja benéfico; só explica por que é tão difícil para muitos de nós fazermos o suficiente. E Lieberman acha que entender isso pode nos ajudar a fazer mais. "Já que indicar e promover exercícios obviamente não está funcionando, acho que seria melhor pensarmos como antropólogos evolucionistas." Felizmente, é exatamente isso que ele é, então aqui estão quatro de suas recomendações: Não se sinta mal por não querer se exercitar, seu instinto é não fazer mais do que o necessário. Mas também somos seres racionais. Estamos conscientes de que construímos um mundo que nos beneficiou imensamente, mas, como já não nos obriga a ser fisicamente ativos, colocou em risco a nossa saúde. É um mundo em que se tornou necessário fazer mais do que o necessário. Inúmeros estudos têm demonstrado isso. Se aprendermos a reconhecer esses instintos, podemos superá-los mais facilmente, diz Lieberman. "Quando me levanto de manhã para correr, muitas vezes está frio e isso é muito complicado, porque não tenho vontade de me exercitar. Minha mente me dá todos os tipos de razões para adiar. Às vezes tenho que me forçar sair pela porta", diz. "Meu ponto aqui é ser compassivo consigo mesmo e entender que essas pequenas vozes em sua cabeça são normais e que todos, mesmo 'viciados em exercícios', lutam com elas." Existem apenas duas razões pelas quais evoluímos para sermos fisicamente ativos: suprir necessidades e nos gratificar socialmente. "A maioria de nossos ancestrais saía para caçar ou coletar todos os dias porque senão morreriam de fome." "As outras vezes em que eles eram fisicamente ativos eram durante atividades divertidas, como dançar e jogar", diz o especialista. Para eles, assim como para nós, a diversão trazia benefícios sociais. Após anos de estudos, o paleoantropólogo aconselha a ter essa mesma mentalidade em relação ao exercício. "Torne-o divertido, mas também necessário", diz. E uma das melhores maneiras de atingir ambos os objetivos é tornar a atividade física uma atividade social, por exemplo, juntando-se a um grupo de corrida. "A obrigação vai torná-lo divertido, social e necessário", afirma Daniel Lieberman. Lieberman sugere que "A abordagem antropológica final que pode ajudar é não se preocupar com quanto tempo e quanto exercício é necessário". Ele ressalta que temos essa imagem de que nossos antepassados eram realmente incrivelmente fortes... afinal, eles tinham que levantar pedras gigantes e caçar feras pesadas. Mas o especialista garante que isso está longe de ser verdade. "Nossos ancestrais eram razoavelmente, mas não excessivamente ativos e fortes." "Eles também não corriam todos os dias, ou regularmente; provavelmente faziam isso uma vez por semana ou algo assim." Além disso, Lieberman lembra que você não precisa ir tão longe no passado para descobrir, pois ainda existem povos com estilos de vida semelhantes. "Os caçadores-coletores típicos se envolvem em apenas cerca de 2 ¼ horas por dia de atividade física moderada a vigorosa." "Eles não são extremamente musculosos e passam tantas horas sentados quanto nós, quase 10 por dia." A mensagem é que, embora exista o mínimo recomendado, um pouco de atividade física é extremamente saudável. "Saber isso, acredito, pode ajudar as pessoas a se sentirem melhor em fazer pelo menos um pouco de exercício em vez de nenhum", diz. Os estudos mostram que 150 minutos de exercício por semana - 21 minutos por dia - reduzem as taxas de mortalidade em cerca de 50%, acrescenta. Mas é crucial não só fazê-lo, mas também... "Inventamos o conceito de aposentadoria no mundo ocidental moderno e, junto com isso, a noção de que quando você chega aos 65 anos, é normal ir com calma", pondera Lieberman. No entanto, "evoluímos para ser fisicamente ativos durante toda a vida." Essa atividade, por sua vez, nos ajuda a viver mais e a permanecer saudáveis ​​à medida que envelhecemos. "Isso ocorre porque a atividade física ativa uma ampla gama de mecanismos de reparação e manutenção que neutralizam os efeitos do envelhecimento", explica. Uma prova disso são os caçadores-coletores de hoje, que tendem a viver quase tanto quanto suas contrapartes nas sociedades industrializadas ocidentais. A diferença, ele observa, é que sua "expectativa de saúde" (o número de anos saudáveis ​​de vida) quase corresponde à sua expectativa de vida, enquanto nas sociedades industrializadas é comum temer que você passe anos incapacitado antes de morrer. "À medida que as pessoas envelhecem no Ocidente, elas tendem a perder muita força e poder, e isso torna as tarefas básicas mais difíceis. E quando isso acontece, as pessoas se tornam menos ativas. Quando ficam menos ativas, se tornam menos aptas." "É um ciclo vicioso realmente desastroso", finaliza Lieberman. Portanto, supere seus instintos, mesmo que sua mente esteja relutante em ajudá-lo, e continue em movimento, mesmo que já não seja necessário. E se o exercício te aborrece, faça como na Idade da Pedra: comece a dançar!
2022-10-10
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-63139375
sociedade
5 tabus que Bolsonaro e Lula enfrentarão no 2º turno
Pela sétima vez na história, as eleições presidenciais do Brasil serão definidas no segundo turno. A Constituição prevê que, para vencer em primeiro turno, um candidato deve receber pelo menos metade dos votos mais um. Postulante à reeleição, Jair Bolsonaro (PL) recebeu 51 milhões de votos (43,2% do total), 6 milhões a menos que Lula (PT), que recebeu 57,2 milhões de votos (48,4% do total) e ficou a 1,8 milhão de vencer no primeiro turno. Apenas o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso venceu as eleições presidenciais em primeiro turno. Isso ocorreu duas vezes, em 1994 e na reeleição em 1998. Na corrida para vencer a disputa eleitoral de 2022, Bolsonaro e Lula vão enfrentar uma série de tabus. Entre eles, o de que nunca houve uma virada no segundo turno do pleito à cadeira presidencial. Por outro lado, Bolsonaro tem ao lado dele o retrospecto de nunca ter perdido uma eleição desde a primeira que disputou, em 1988. Fim do Matérias recomendadas A BBC News Brasil listou alguns desses tabus. A Constituição de 1988 prevê que, para que um candidato à presidência vença as eleições em primeiro turno, é necessário que ele receba mais da metade dos votos (50% mais um). Caso isso não ocorra, a eleição é decidida em um segundo turno entre os dois candidatos mais votados. Porém, desde a redemocratização, as posições dos dois melhores colocados no primeiro turno nunca sofreram alterações no segundo. Quem chegou mais próximo desse feito foi Aécio Neves, que ficou atrás de Dilma Rousseff no primeiro turno em 2014 e, no segundo, ficou apenas três pontos percentuais atrás dela. Nas duas vezes em que Lula foi eleito presidente, ele venceu no segundo turno. Na primeira, em 2002, registrou 46% dos votos no primeiro turno contra José Serra, e 61% no segundo. Na reeleição, o petista registrou no primeiro turno 48,6% dos votos (apenas 0,2 ponto percentual a mais que em 2022) contra Geraldo Alckmin, hoje candidato a vice na chapa dele. No segundo turno, o petista registrou 60,8% dos votos. Assim que saiu o resultado do primeiro turno das eleições deste ano, Bolsonaro disse em uma entrevista coletiva a jornalistas no Palácio do Planalto: "Nunca perdi uma eleição e não será agora". O presidente da República começou a carreira política como vereador no Rio de Janeiro, em 1998, e, desde então, nunca perdeu um pleito. Em 1990, dois anos depois de ingressar na política como vereador, Bolsonaro foi eleito para o primeiro de sete mandatos consecutivos como deputado federal, pelo Rio de Janeiro. Em 2018, ele chegou à presidência da República após vencer Fernando Haddad (hoje candidato ao governo de São Paulo pelo PT), com 55% dos votos (57,7 milhões). Desde o fim da Ditadura, os três presidentes da República que tentaram concorrer a um segundo mandato foram reeleitos. Fernando Henrique foi o primeiro, reeleito em 1998 pelo PSDB. O segundo foi Lula, em 2006, e Dilma Rousseff, em 2014, ambos pelo PT. Se Jair Bolsonaro não se eleger no segundo turno, será algo inédito nas eleições brasileiras. Esta é a eleição que registrou a menor diferença entre os dois candidatos à presidência que foram para o segundo turno. A mais próxima até então tinha sido nas eleições de 2006, quando Lula registrou 48,61% dos votos contra 41,64% de Geraldo Alckmin. No segundo turno daquele ano, o petista venceu a corrida à presidência com 60,83% dos votos contra 39,17% do concorrente. A diferença de apenas 5,2 pontos percentuais entre Lula e Bolsonaro é vista por especialistas como mais uma demonstração da polarização no país e deixa ainda mais acirrada a disputa para o segundo turno. Um levantamento feito pelo jornalista Fernando Torres, do jornal Valor Econômico, aponta que, nas cinco vezes em que o Partido dos Trabalhadores chegou ao segundo turno da Presidência, obteve pelo menos mais 40% dos votos restantes em disputa. Caso isso se repita neste segundo turno, de acordo com o levantamento, o ex-presidente Lula receberá os votos necessários para ocupar o cargo mais alto da República pela terceira vez. Isso porque o balanço apontou que Lula precisaria receber 19% dos votos dos eleitores que não escolheram entre ele ou Jair Bolsonaro no primeiro turno, sem perder os que já tinham votado nele. O estudo aponta que Jair Bolsonaro teria que conquistar 81% dos votos dados aos demais candidatos no primeiro turno.
2022-10-10
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63167190
sociedade
O que foi a República das Letras, a 'rede social' das grandes mentes dos séculos passados
Era uma terra estranha, real e imaginária ao mesmo tempo, invisível mas não clandestina. Sua lei era cultivar o saber. Um lugar protegido por um fosso imaginário cheio de tinta de escrever e defendido por canhões que disparavam balas de papel, como a cidade descrita pelo escritor espanhol Diego de Saavedra Fajardo no livro República Literária, publicado em 1655. Alguns pesquisadores rastreiam suas origens até os tempos de Platão, mas a menção mais antiga já encontrada sobre a República Literária foi de um dos discípulos do intelectual Francesco Petrarca, o veneziano Francesco Barbaro (1390-1459). Em 1417, Barbaro agradeceu ao escritor Poggio Bracciolini (1380-1459) "em nome de todos os homens de letras atuais e futuros, pelo presente oferecido à Respublica Literarum para o progresso da humanidade e da cultura". Bracciolini havia enviado manuscritos antigos que ele havia descoberto em bibliotecas monásticas, uma tarefa desempenhada pelos humanistas seguindo os passos do seu mestre. Fim do Matérias recomendadas Com a divulgação dos textos e a popularização do saber, o debate de ideias deixou de ser exclusivo dos universitários eclesiásticos. E, nesse diálogo mais aberto, até autores mortos chegavam a participar por meio de suas obras, graças ao contato com a Antiguidade e seu longo tempo de existência. Mas a expressão República das Letras só se tornaria comum no século 17, quando intelectuais como o monge francês Noël Argonne (1634-1704) a descreveram: Segundo Argonne, "a República das Letras tem origem muito antiga. Ela engloba o mundo inteiro e é composta por todas as nacionalidades, todas as classes sociais, todas as idades e ambos os sexos." "Ela fala todos os idiomas, antigos e modernos. As artes se unem às letras e os artesãos também encontram seu lugar. O louvor e a honra são concedidos pela aclamação popular", escreveu Argonne em 1699. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De fato, em um mundo com hierarquias sociais bem definidas e divisões políticas e religiosas tão profundas que, muitas vezes, acabavam desembocando em guerras, os cidadãos da República das Letras, ou República Literária, defendiam que todos eram iguais e que qualquer argumento que impulsionasse o saber era importante. Não havia cidadania formal. As pesquisas, publicações e escritos eram a cédula de identidade dos seus cidadãos. Ela começou centralizada na Europa, mas, no século 18, a República das Letras já havia se expandido para lugares como Batávia (hoje Jacarta, na Indonésia), Calcutá (Índia), Cidade do México, Lima (Peru), Boston e Filadélfia (Estados Unidos), chegando ao Rio de Janeiro. Eram muitos os cidadãos dessa república. Para dar uma ideia, entre eles estavam o italiano Galileu Galilei, o inglês John Locke, o holandês Erasmo de Roterdã, o francês Voltaire e o norte-americano Benjamin Franklin. Já as mulheres eram em menor quantidade, mas não menos expressivas. Intelectuais como Anna Maria van Schurman, a princesa Isabel da Boêmia, Marie de Gournay, Marie du Moulin, Dorothy Moore, Bathsua Makin, Katherine Jones e Lady Ranelagh foram algumas das participantes ativas da República das Letras no século 17. Esse grupo de filósofas, professoras, reformistas e matemáticas da Inglaterra, Irlanda, Alemanha, França e Holanda, ao lado de outros pares masculinos como René Descartes, Christiaan Huygens, Samuel Hartlib e Michel de Montaigne, representava o espectro do enfoque da ciência, política, fé e avanço da educação vigente na época. A República das Letras nasceu e cresceu antes da compartimentalização do conhecimento. Naquela época, todos os que se dedicavam a cultivar o intelecto eram literalmente "filósofos" - cujo significado etimológico é "amigos do saber" - sem distinção entre disciplinas acadêmicas, nem divisões como "ciências exatas" e "humanas". Existiam os especialistas, mas todos costumavam estudar latim e grego, além de história, lógica e outras disciplinas. Por isso, não era raro, por exemplo, um matemático como Isaac Newton dedicar anos a experimentos com alquimia e a reescrever a história do mundo antigo. Por isso, quando se fala em República das "Letras" ou "Literária", engloba-se todo o conhecimento: matemáticos, naturalistas, astrônomos e médicos se identificavam totalmente com essa denominação. Mas esse nome também incluía um sentido de aprendizado, de busca do saber. Era uma comunidade de estudiosos, uma fraternidade de curiosos. Sua língua oficial era o latim, o idioma de todos os eruditos até 1650 e que continuou desempenhando um papel importante, embora o grego e o hebraico também fossem utilizados. E, do século 15 em diante, o uso culto das línguas vernáculas possibilitou um novo discurso, mais inclusivo. No centro dessa vida intelectual, estava a troca de cartas. A imprensa contribuiu muito com o auge da cultura intelectual a partir do Renascimento, mas os livros ainda eram raros e caros. As cartas preenchiam essa lacuna, permitindo comentários, consultas, exposição de ideias e debates. Por isso, os chamados homens de letras dedicavam muito tempo e reflexão a todas as cartas, enviadas e recebidas. Não é à toa que as escrivaninhas costumavam estar entre os móveis mais belos e elaborados já projetados. E "os secretários eram indispensáveis, pois, se você fosse um erudito famoso, a correspondência era tanta que era preciso ter ajuda", segundo declarou o historiador Peter Burke para a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Nessa rede social, como nas de hoje em dia, os escritos cobriam espectros muito amplos - desde discussões sobre história, política, filosofia, pesquisa científica e educação até notícias, fofocas, brincadeiras, poemas, experiências pessoais e outras. Em algumas ocasiões, as cartas eram dissertações completas sobre temas científicos, resenhas de livros recém-publicados, coletâneas de escritos ou cópias de inscrições. A única forma de reconhecer que elas eram cartas era examinar o início e o final do documento. Cartas escritas com tanto esmero e frequentemente com conteúdo valioso normalmente não eram jogadas fora, mas sim preservadas. Essa imensa herança cultural - que inclui, por exemplo, cerca de 20 mil cartas de Voltaire e 13.600 do médico e naturalista italiano Antonio Vallisneri (1661-1730) - está sendo digitalizada em grandes projetos que retomam as aspirações da República das Letras. E as cartas estão sendo usadas para mapear a própria República, fornecendo uma dimensão visual àquele lugar metafórico. Na República das Letras, todo cidadão precisava participar do intercâmbio de informações. E, assim como a posição social não era impedimento para fazer parte da República, a distância também não era obstáculo. As inúmeras cartas geradas pela República das Letras eram enviadas pelo correio ou por meio de amigos, comerciantes ou diplomatas, para que fossem entregues pessoalmente. Quando um destinatário recebia carta, esperava-se que ele a fizesse circular, pois o objetivo principal era sempre a difusão da informação, o desenvolvimento e a expansão do conhecimento. Nem mesmo os livros e manuscritos frequentemente recebidos por meio da rede deveriam ficar nas mãos de uma única pessoa. Era bem visto que o destinatário agradecesse pela correspondência com um antidoron - um presente de volta. Frequentemente, os portadores dessas cartas eram jovens que faziam seu Grand Tour pela Europa, uma viagem tradicional que era parte da educação daqueles que tinham condições de fazê-la. Mas muitos outros cidadãos da República das Letras perambulavam pelo continente, levando consigo cartas de recomendação, e eram recebidos em bibliotecas, arquivos, coleções de antiguidades greco-romanas ou de espécies raras. Esse procedimento ritualizado de estudos era conhecido como peregrinatio academica e incluía uma oportunidade inigualável: visitar e conversar com os eruditos locais. A conversa culta era outro ideal dessa rede internacional - e não só nos encontros mais íntimos com os sábios. A imagem de um pequeno grupo de amigos reunidos em torno da mesa em uma casa de campo recordava o antigo simpósio filosófico grego. Ela influenciou a cultura do salão, dos eventos privados em residências com uma lista de convidados selecionados e a cultura dos cafés, que recebiam cidadãos da República para falar sobre os assuntos que ocupavam suas mentes. Em nível mais institucional, a conversa encontrou outro polo no século 17, com a fundação de academias e sociedades, como a Sociedade Real de Londres e a Academia Francesa de Ciências. De certa forma, eram versões mais oficiais da rede de correspondência, já que elas ofereciam um lugar onde poderiam ser realizadas conferências, experimentos e demonstrações ao vivo. Essa comunicação para muitas pessoas de uma só vez demoraria muito tempo, se fosse feita pelo correio. E, embora os livros tenham sido parte essencial da República das Letras - muitos deles, ricamente ilustrados, fazendo com que os artistas se tornassem cidadãos da República -, as academias publicavam revistas, como a famosa Nouvelles de la République des Lettres ("Notícias da República das Letras", em tradução livre), que reuniam as informações e as difundiam para sociedades em diversos países. Foi assim que as academias e sociedades literárias começaram a assumir parte das atividades da erudição. E, pouco a pouco, a República das Letras foi desaparecendo. Segundo alguns historiadores, as mudanças sociais e tecnológicas foram responsáveis pela sua desintegração. Invenções como o telégrafo e os avanços no setor de transporte, como as ferrovias e os navios a vapor, facilitaram as comunicações. A impressão ficou melhor e mais barata, permitindo que as notícias e opiniões fossem distribuídas de forma mais ampla. Mas há intelectuais que garantem que a República das Letras nunca desapareceu. Um desses estudiosos é Peter Burke, professor emérito de história cultural da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e autor de diversos livros sobre história cultural e intelectual. "Do meu ponto de vista, a única mudança foi a forma de comunicação", segundo ele. "Por isso, faço distinção entre o que chamo de 'a república movida a cavalos', que é a tradicional que todos mencionam, e a 'república a vapor', que chegou posteriormente, quando as ferrovias possibilitaram a criação das conferências acadêmicas internacionais na segunda metade do século 19 e os navios a vapor permitiram que alguns acadêmicos, como Max Weber, dessem conferências nos Estados Unidos", explica o professor. "Depois da república do vapor, surgiu a 'república do jato', quando era possível viajar por todo o mundo, trocando conhecimentos. E, por fim, a 'república virtual', que permite a colaboração por e-mail", segundo Burke, trazendo a fraternidade para o tempo presente, na qual todos nós podemos fazer parte. Como todo cidadão da República das Letras, Burke acrescenta: "não elimino nenhuma dessas formas de comunicação que ajudaram os estudiosos a auxiliar-se e colaborar uns com os outros, o que não significa que sempre tenha sido assim, mas que existia pelo menos uma ética de cooperação". Este é o ponto central dessa república espetacular: a ética de colaboração em prol do saber, superando todos os obstáculos. E, ainda que a República das Letras à qual seus cidadãos juraram lealdade por séculos seja um lugar que só existe na nossa mente... não seria este também o caso, até certo ponto, em todas as repúblicas?
2022-10-09
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63059535
sociedade
'Crítica construtiva nas empresas é uma mentira': autor defende que chefes deem atenção, e não 'feedback', a funcionários
Como melhorar o desempenho dos funcionários em uma organização produtiva? Desde os anos 1950, quando foi introduzida a expressão "capital humano" nas empresas de países na Europa e Américas, vêm sendo constantemente promovidas ferramentas com o propósito de otimizar o desempenho das pessoas que trabalham para uma organização. Entre estas ferramentas, uma das mais difundidas é o chamado feedback - que também pode ser compreendido como crítica construtiva ou retroalimentação. Por muito tempo, o feedback foi considerado um método eficaz para melhorar o ambiente de trabalho. Até que, nos últimos anos, alguns especialistas começaram a questionar sua eficácia. Um dos principais críticos é Marcus Buckingham, autor do artigo Why Feedback Rarely Does What It's Meant to ("Por que o feedback raramente faz o que deveria fazer", em tradução livre), publicado na Harvard Business Review. No artigo, o autor se refere ao feedback como uma "falácia". "É suposto que você deve ser cada dia melhor no que faz porque outra pessoa diz assim e isso, clara e simplesmente, é uma falácia. Uma mentira", afirmou Buckingham à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas Buckingham trabalhou como chefe de pesquisa no Instituto ADP, nos Estados Unidos, especializado no estudo de recursos humanos e ambientes de trabalho. Ele escreveu vários livros sobre o assunto. E o artigo, co-escrito com outro pesquisador, Ashley Godall, foi recentemente escolhido como um dos mais influentes e inovadores publicados nos cem anos de existência da revista Harvard Business Review. Ele foi incluído em uma edição especial para celebrar o centenário da revista americana especializada em negócios e gerenciamento de trabalho. A BBC News Mundo conversou com Buckingham para saber mais sobre as razões pelas quais ele acredita que o feedback não deve ser usado nas organizações. Confira abaixo a entrevista. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Mundo - O que você define como "falácia do feedback"? Marcus Buckingham - É acreditar que alguém pode vir a ser melhor se outra pessoa disser a ela o que está fazendo bem ou mal e ainda orientar como pode melhorar o seu trabalho. Isso é uma falácia. BBC - E como chegou a esta conclusão? Buckingham - Eu comecei a me interessar por isso depois de trabalhar por anos em diferentes empresas em vários lugares do mundo e perceber o enorme investimento em dinheiro, tempo e recursos humanos gasto pelas empresas, não só projetando ferramentas e sistemas para permitir que os gerentes, líderes de equipes ou até os colegas avaliem os atributos e pontos fortes e fracos, mas também para gerar espaços onde possa ser sinalizado o que as pessoas precisam mudar ou fazer diferente para melhorar seu desempenho no trabalho. O que vi foi que isso funciona dentro de um modelo de competência no qual as empresas geram um padrão ideal. Dou um exemplo: uma empresa estabelece que as pessoas do setor de vendas devem ter certas qualidades, certos atributos. Eles então analisam as pessoas com base nesses atributos incluídos no modelo. Depois, eles procuram as pessoas de vendas e dizem a elas o que devem fazer, sob a premissa de aproximar-se desse modelo estabelecido anteriormente. Como uma receita médica, com indicações e ações que devem ser tomadas. Isso que estou dizendo se aplica igualmente a todos os tipos de trabalho: modelos de competência para líderes, para gerentes, para enfermeiros, para engenheiros... Então, acredita-se que todo mundo esteja ansioso por isso: para que lhes digam o que precisam fazer para que sejam melhores, para que possam crescer. E aí reside a falácia, porque todo este processo é subjetivo, cercado de parcialidade. Algo que vários especialistas em psicologia e em assuntos de recursos humanos chamaram de "efeito qualificador idiossincrático". BBC - Pode explicar essa expressão e o que ela tem a ver com a subjetividade quando se fornece feedback? Buckingham - Veja, cabe esclarecer que esta é uma conclusão científica de diversos especialistas no assunto, não é uma conclusão a que cheguei sozinho. E basicamente consiste em olhar para o que acontece quando alguém qualifica em outra pessoa atributos que essa pessoa nem sequer tem. Um exemplo do que estamos falando: um gerente ou coordenador faz uma avaliação de uma pessoa com base em um padrão que podemos chamar, por exemplo, de pensamento crítico. Quando eu, como gerente, qualifico cinco ou seis aspectos de uma pessoa sobre este tema, dois terços deles refletem a mim e não à pessoa que estou qualificando. Por isso, chama-se efeito qualificador idiossincrático. Ou seja, o que essas pesquisas indicam é que qualificar a outra pessoa não só é algo totalmente subjetivo, mas também é possível que eu esteja refletindo os meus pontos fracos e fortes sobre o atributo que estou avaliando. As pessoas pensam que, quando dão feedback, é como se estivessem diante de uma vidraça olhando como a outra pessoa se comporta, mas, na realidade, elas estão diante de um espelho, onde parte do que se vê são elas mesmas. Por isso, destaco que é humanamente impossível fazer uma crítica construtiva, retroalimentação ou feedback, como você quiser chamar. BBC - Mas, embora seja humanamente impossível, isso funciona segundo um modelo bem estabelecido - o de dar e aprender a receber "bom feedback" -, e as empresas baseiam seus modelos de desenvolvimento humano, em grande parte, nessa retroalimentação. Buckingham - A grande conclusão a que chegamos, eu e meu colega, é que claramente não se pode confiar a seres humanos uma tarefa como a de dar feedback. Para começar, eu, como gerente, tenho um viés sobre a pessoa que vou qualificar. E isso me torna uma pessoa pouco confiável para levar a cabo essa tarefa. O que podemos fazer é expressar nossas sensações, relatar nossas experiências. Por isso é que funcionam tão bem as resenhas ou qualificações de restaurantes, hotéis, lojas etc.: "gostei do restaurante, gostei do lugar, gostei da comida". O que funciona ali é a nossa experiência. Nossos sentimentos. BBC - Uma das ideias que o senhor destaca no seu artigo é que a falácia começa quando se parte da premissa de que o cérebro é como um "recipiente vazio". Buckingham - Nesta experiência que comento, de ver como se trabalha a retroalimentação ou a melhoria do pessoal, uma das grandes conclusões a que cheguei é que essas ferramentas foram criadas totalmente com base na ideia de que os cérebros dos funcionários são recipientes vazios, prontos para serem preenchidos com todas essas avaliações. E sabemos muito bem que isso não é assim. O pior é que esta é a ideia usada como base para o projeto das escolas, para a estruturação dos nossos ambientes de trabalho. A ideia imposta desde que somos crianças é que podemos ser o que queremos ser. Algo que uma professora da Universidade de Stanford [Carol Dweck] chamou de "mentalidade do crescimento", que destaca que podemos aprender tudo o que precisamos aprender. Que podemos ser qualquer coisa que queiramos ser. E esta ideia traz dois problemas: primeiro, é possível ensinar a uma pessoa as exigências mínimas para desempenhar um trabalho. Por exemplo, ensinar uma enfermeira a aplicar uma injeção com segurança ou ensinar a um vendedor os benefícios de um produto para que depois ele possa vendê-lo. Ou seja, podemos esclarecer o mínimo que é esperado. O problema é que não exigimos isso, mas sim o "desempenho máximo": o que queremos ser. E o desempenho máximo não pode ser ensinado. Não pode ser mostrado. Como mostramos um modelo de desempenho excelente? O segundo problema é que o desempenho excelente não é algo homogêneo. Se colocarmos como exemplo de desempenho excelente o melhor jogador de futebol do planeta, é impossível para os demais poder acompanhá-lo, exatamente porque esse jogador é único. Mas, mesmo assim, quando fazemos a crítica construtiva, quando usamos o feedback, exigimos o "desempenho máximo". Porque acreditamos que as pessoas podem ser moldadas a partir de um modelo de competência, sem considerar que o cérebro humano já é uma rede complexa de neurônios que estabeleceram muitas coisas nas pessoas desde que elas eram pequenas. Não somos invólucros vazios. BBC - Então, como encher algo que não está vazio? Buckingham - Não sei se existe uma resposta totalmente adequada. O que é certo é que, dentro desse estudo que conduzimos, observamos que, se o nosso cérebro não é um "invólucro vazio", temos que pensar como podemos melhorar o que já está incorporado nele. Por isso, esse tema é tão complexo, pois precisamos identificar o estado desse invólucro, o que ele tem, como ele funciona. E já dissemos: não se trata de algo homogêneo. É heterogêneo, o que exige não apenas saber como funciona cada pessoa, mas também identificar qual é a melhor forma para que essa pessoa possa melhorar o que está fazendo. Tudo isso em termos de como você pensa, como constrói suas relações, como interpreta as coisas, como é o seu processo criativo. Então, voltamos àquilo que falamos antes: se você quiser o desempenho máximo, primeiro precisa ver o que é que a pessoa tem. BBC - Agora, a partir destas noções, como sugere que podemos conseguir com que as pessoas sejam melhores no que fazem? Buckingham - Vamos partir de uma ideia. Se quisermos que os funcionários cumpram com um trabalho, simplesmente isso, pode-se estabelecer padrões mínimos que o gerente pode conseguir que seus funcionários atinjam. Agora, se falarmos em querer o desempenho máximo, acredito que existam três coisas que podem ser aplicadas. Uma delas é ficar atento ao que as pessoas fazem e como elas fazem. Preocupar-se com o que elas fazem no dia a dia. Se existe algo que observei ao longo destes anos estudando essa dinâmica é que, na escola ou no mundo do trabalho, as pessoas realmente se sentem mal se forem ignoradas na sua individualidade. As pessoas gostam de atenção. Já se afirmou que as pessoas ficam ansiosas por feedback, que o pedem e tentam recebê-lo. Eu não concordo, acredito que o que as pessoas querem é atenção. Nietzsche já dizia: somos uma besta com bochechas vermelhas que quer a atenção dos outros. Em segundo lugar, dedique muita atenção à pessoa que está fazendo bem as coisas, para que ela faça muito melhor. No casamento, por exemplo: concentre-se nos momentos mais felizes e, se quiser melhorar, é preciso analisar o que funcionou naqueles momentos. O mesmo no trabalho: o que foi bem feito? Concentre-se nos detalhes, como os objetivos foram alcançados. Porque ficou claro para mim que o cimento das coisas boas que acontecem no futuro são as coisas boas feitas no presente. Agora, não se trata de enaltecer alguém. Trata-se de nos concentrarmos no que pode servir para que nós façamos bem feito. E o terceiro ponto: prestar atenção no que uma pessoa adora fazer. Pergunte a ela: "o que você adora fazer?" ou "Instintivamente, o que você faria voluntariamente?" Dizemos isso porque sabemos que as emoções e o aprendizado estão realmente relacionados quando estamos fazendo algo que adoramos. BBC - O senhor deixou clara a questão do desempenho máximo, mas seu texto também afirma que "a excelência e o fracasso não são termos opostos". Por quê? Buckingham - Tendemos a pensar que a excelência é o oposto do fracasso, de forma que avaliamos nossos fracassos para aprender sobre a excelência. Vemos isso todo o tempo nos jornais: a história dos empresários de sucesso que falharam muitas vezes até serem bem-sucedidos. E a história se repete, com essa máxima que está na moda, de que somente através do fracasso é possível atingir a excelência. E isso não é verdade no mundo real. O mundo real funciona de outra forma. Um exemplo: quando falamos em casamentos fracassados ou relações que não funcionam, uma das coisas que se afirma repetidamente é que as pessoas discutem muito. Mas as pesquisas demonstram que não é assim. Existe um estudo da Universidade de Buffalo [Estados Unidos], dedicado a pesquisar os casamentos felizes e os considerados infelizes. Eles contaram a quantidade de discussões (não brigas físicas) e chegou-se à conclusão de que não havia muita diferença no número de discussões entre os felizes e os infelizes. A grande diferença era o que acontecia no período entre cada discussão. Nos casamentos considerados infelizes, tratava-se mais de tomar medidas para proteger-se da outra pessoa. Mas, nos felizes, as discussões levavam a momentos de intimidade, de curiosidade, de abertura a novas coisas. Segundo o modelo geralmente aceito, nós deveríamos certamente nos concentrar no casamento infeliz: em resolver esses problemas. Diríamos que a excelência no casamento é totalmente o oposto e estaríamos fazendo um diagnóstico totalmente equivocado da situação. É com essa mesma lógica que chegamos à conclusão de que não é possível considerar que o fracasso ensine algo sobre a excelência. BBC - Então, se é preciso redefinir a forma em que se fornece feedback, também seria preciso exigir que se ensine a como recebê-lo? Buckingham - Não, porque não se trata de capacitação. É um tema fundamental. Não importa o quanto uma pessoa foi capacitada para dar feedback, tudo fica nas boas intenções. E o mesmo ocorre se fizermos o processo inverso - capacitar as pessoas a receber o feedback. Simplesmente, não é possível. O problema é o processo. O processo está corrompido, a forma como ele é feito, os resultados que são buscados. Aqui reside a dificuldade deste modelo, que precisa ser totalmente repensado. BBC - O senhor comenta a falácia de atingir a excelência. O que é para você a excelência e como podemos aspirar a ela? Buckingham - A excelência é um resultado. Por isso, dizemos que, quando algo funciona, é preciso identificar como se atingiu esse resultado e conduzir a atenção das pessoas para o processo bem sucedido por trás dele. Agora, como a excelência não pode ser aprendida estudando o fracasso, nunca poderemos ajudar a outra pessoa a ter sucesso comparando seu desempenho com um modelo de excelência pré-fabricado, fornecendo retroalimentação sobre o que não atende a esse modelo pré-estabelecido e dizendo a ela que preencha as lacunas. Isso nunca irá funcionar.
2022-10-09
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63176626
sociedade
Os coaches de divórcio que ajudam casais na vida pós-separação
Os primeiros seis meses depois que Katie, com 60 anos de idade, descobriu que seu marido estava tendo um caso foram de incerteza. Ela descreve que o início do seu processo de divórcio parecia um luto - amigos traziam comida, ela perdeu peso, sentiu raiva e derramou muitas lágrimas. Katie mora perto de Bath, no Reino Unido, e ficou devastada com o fim do seu casamento de 35 anos. Até que uma amiga de sua sobrinha, que era advogada, deu uma sugestão. "Ela me perguntou se eu poderia contratar um coach de divórcio, [porque] seria meu melhor investimento", ela conta. Katie entrou em contato com um coach de divórcio de Bristol, também no Reino Unido, e agora afirma que a experiência "mudou a sua vida". O coach, que era ex-advogado, concentrou-se totalmente no lado emocional de lidar com a separação, e Katie conta que isso a ajudou a ver sua nova vida como uma oportunidade. Ela se livrou de itens da sua casa que a lembravam do seu casamento e decidiu tirar um ano sabático para viajar pelo mundo. Fim do Matérias recomendadas "Lembro-me de pensar com muita intensidade: este divórcio não irá me definir", ela conta. "Eu me lembro de uma sessão em que meu coach de divórcio estava falando em 'navegar pelas ondas'. 'O mar é revolto, as ondas são grandes e a arrebentação é forte, mas o mais importante é o que acontece quando você chega ao porto'." Segundo a Escala de Estresse Holmes e Rahe - que mede o estresse de diferentes eventos da vida -, o divórcio é a segunda experiência mais estressante que uma pessoa pode enfrentar, depois da morte do cônjuge. Mas um grupo cada vez maior de coaches de divórcio promete facilitar um pouco o processo de separação. Especialistas afirmam que cada vez mais casais e indivíduos estão procurando coaches para ajudá-los a atravessar as dissoluções conjugais e muitos advogados de divórcio estão agora indicando serviços de coaching aos seus clientes, para ajudá-los a lidar com as dificuldades emocionais, financeiras e logísticas do fim de um casamento. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Natalia Juarez, coach de divórcio de Toronto, no Canadá, a decisão de ajudar outras pessoas a enfrentar rompimentos foi muito pessoal. Ela começou a trabalhar como coach depois do término do seu noivado, quando ela tinha pouco menos de 30 anos de idade. Agora, ela ajuda principalmente a orientar as pessoas, mas às vezes também casais, a passar pelo fim dos seus noivados e casamentos. Juarez estabeleceu, há um bom tempo, um esquema que inclui uma chamada inicial para definir as principais questões que levaram ao divórcio e definir objetivos, seguida por sessões semanais de acompanhamento. Ela recomenda três meses de coaching, mas afirma que cerca da metade dos seus clientes continua a trabalhar com ela depois dessa fase inicial. Seus preços variam de US$ 300 (cerca de R$ 1.570) por uma única sessão até US$ 3 mil (cerca de R$ 15,7 mil) pelo acompanhamento mais longo, de três meses. "A causa mais comum que leva as pessoas a procurar o coach de divórcio é porque elas estão emocional e mentalmente esgotadas", ela conta. "Muitas vezes, elas estão enfrentando muitas emoções complexas, estão sobrecarregadas com a logística e não querem incomodar seus amigos e a família como seu único sistema de apoio." Por conta dos preços cobrados, o trabalho de coaches de divórcio se dirige principalmente a indivíduos relativamente abastados, particularmente considerando a enorme pressão financeira que a maioria das pessoas já atravessa em um divórcio. Um relatório da companhia de seguros Aviva indicou que os custos médios de divórcio no Reino Unido atingem 14,5 mil libras (cerca de R$ 85,3 mil) em custos de vida e com o processo legal, mais 35 mil libras (cerca de R$ 206 mil) em aluguel ou 144,6 mil libras (cerca de R$ 850 mil) em uma nova casa, quando o processo envolver moradia. Além disso, Juarez afirma que seu cliente médio tem 30 a 50 anos de idade e 60% são homens, o que ela credita ao fato de que as mulheres têm mais apoio dos amigos e da família. E, embora 80% da sua lista de clientes sejam indivíduos, existe também um grupo significativo de casais que a procuram juntos. "Muitos casais decidem procurar juntos um coach de divórcio porque eles reconhecem que precisam de um terceiro", afirma ela. "Talvez eles entendam que enfrentam problemas de comunicação, que estão desconfortáveis com conflitos ou conversas difíceis ou que uma das partes que não quer o divórcio está causando mais dificuldades, talvez se fechando." Ela indica que, mesmo em separações amigáveis, os casais podem usar um coach para "administrar" o divórcio. Para ela, "trabalhar com um coach de divórcio pode ajudá-los a concentrar-se na logística do divórcio sem que precise ser tão pessoal". O crescimento do coaching de divórcio indica como as pessoas estão cada vez mais dispostas a investir para que o fim de um casamento seja o mais direto possível. Os millennials (pessoas nascidas entre 1981 e 1995) são descritos muitas vezes como a "geração da terapia" - um grupo de pessoas mais aberto a buscar auxílio profissional e estigmatiza menos a assistência à saúde mental. Por isso, não é surpresa que, à medida que os millennials se casam e, às vezes, se separam em seguida, o coach de divórcio esteja se tornando cada vez mais normalizado. "À medida que aumentaram as taxas de divórcio, ele se tornou normalizado", afirma a psicóloga clínica Yasmine Saad, fundadora dos Serviços Psicológicos Madison Park, em Nova York, nos Estados Unidos. "Ficamos cada vez mais confortáveis para buscar especialistas", segundo ela. "Divorciar-se não é mais visto como falha de caráter ou fracasso na própria vida e isso normalizou o uso de especialistas para buscar ajuda. É como buscar consultoria financeira antes de investir o seu dinheiro. Neste caso, é buscar consultoria legal, emocional e prática antes da transição para uma nova forma de vida." A advogada de direito familiar Nicole Sodoma, do escritório Sodoma Law, na Carolina do Norte (Estados Unidos), e autora do livro Please Don't Say You're Sorry ("Por favor, não diga que você lamenta", em tradução livre) trabalha com muitos casais que passam pelo divórcio. Muitas vezes, ela as direciona a coaches de divórcio para ajudá-los ao longo do processo. "O coach de divórcio pode ajudar você a identificar e, em seguida, investir tempo nas questões e tarefas mais importantes para você no longo prazo, ao mesmo tempo dando apoio para você lidar com as dificuldades que pode estar enfrentando no presente", afirma ela. Muitos advogados, como Sodoma, agora recomendam coaches de divórcio para seus clientes, até indicando especialistas apropriados em alguns casos, o que aumenta a percepção de legitimidade e popularidade do serviço. Mas existem alguns riscos ao trazer um terceiro para o processo de divórcio. "Os coaches de divórcio não são licenciados, e sua experiência varia muito", segundo Saad. "É fundamental verificar as credenciais do seu coach para garantir que você esteja em boas mãos." Ela também destaca que, dependendo da sua experiência, os coaches de divórcio podem não conseguir identificar problemas psicológicos que afetem a dinâmica do casal ou questões legais complexas que podem causar problemas se não forem resolvidas. Katie acredita que contratar um coach mudou a trajetória da sua vida após o divórcio. Dois anos atrás, pouco depois do término do seu divórcio, ela conheceu um novo parceiro. Ela avalia que as sessões de coaching a ajudaram a se sentir empoderada, confiante e suficientemente resiliente para iniciar um novo relacionamento. Para as pessoas que analisam a possibilidade de contratar um coach de divórcio, Katie afirma que pode sair caro, mas ela acredita que o investimento vale a pena. Katie defende que suas sessões fizeram com que ela pudesse aproveitar ao máximo sua assistência legal, que é ainda mais cara, por comparecer às reuniões com sua advogada totalmente preparada. Mas ela defende que é mais grata pelo investimento em um coach de divórcio devido ao impacto sobre ela como indivíduo. "Você pode estar machucada e com o coração partido, mas, no momento em que você está pronta para a mudança que merece, o coaching é a ajuda de que você precisa para seguir adiante", afirma ela. "O divórcio não me definiu e sinto que o futuro é brilhante."
2022-10-08
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-63152622
sociedade
Os corpos preservados em pântanos que podem revelar mistério de sacrifícios humanos na Europa
Atenção: esta reportagem contém detalhes que podem ser sensíveis para alguns leitores. Em maio de 1983, Andrew Mould encontrou um objeto sólido arredondado, enterrado na turfa em um pântano chamado Lindow Moss em Cheshire, no noroeste da Inglaterra. O objeto lembrava uma antiga bola de futebol feita de couro, mas um olhar mais atento revelou que se tratava de algo muito mais assustador. "Nós limpamos tudo e sabíamos que era um crânio", segundo Mould. No seu interior, havia até uma substância amarelada que ele soube depois que se tratava dos restos do cérebro. Encontrar restos humanos no pântano não é totalmente uma surpresa. Há séculos existem relatos de partes de corpos vindas à superfície em pântanos similares a Lindow Moss em todo o norte da Europa. O corte de turfa era o negócio familiar de Mould. Muitos dos seus parentes trabalhavam no pântano e ele viajava para Lindow Moss desde que era criança para ver seu pai cortar a turfa. Mould já havia lido sobre esses casos e ele próprio havia encontrado "pedaços" de corpos durante o seu trabalho, mas este caso era diferente. Ele então fez o que a maioria das pessoas faria e informou a polícia. Havia já mais de 20 anos que a polícia de Cheshire suspeitava que um morador local, Peter Reyn-Bardt, teria assassinado sua esposa Malika de Fernandez, mas o corpo dela nunca havia sido encontrado. Encontrar um corpo, ou parte dele, vindo à superfície no pântano próximo poderia finalmente encerrar o caso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E, quando a polícia de Cheshire contou a Reyn-Bardt que o crânio de uma mulher havia sido desenterrado em Lindow Moss, ele confessou ter matado sua esposa. "Foi há tanto tempo que eu achei que nunca seria descoberto", disse ele aos investigadores. O que Reyn-Bardt não sabia é que o crânio não era da sua esposa morta. Na verdade, ele pertenceu a uma mulher que havia vivido cerca de 1.600 anos antes. Por isso, enquanto a polícia encerrava um caso, os arqueólogos abriam outro, muito mais misterioso. Nas profundezas aquosas ácidas do pântano, com baixo teor de oxigênio, bactérias e outros micro-organismos não conseguem decompor tecidos orgânicos. Por isso, restos biológicos permanecem efetivamente em suspensão por milhares de anos. No caso da Mulher de Lindow, como ela ficou conhecida, o pântano chegou a preservar até um globo ocular, além do seu cérebro. Existem muitos outros como ela. Em todo o norte da Europa, o mesmo processo que transforma musgos em turfa conserva restos humanos na forma de corpos do pântano. Essas pessoas vêm sendo enterradas em pântanos da Irlanda até a Alemanha desde o ano 2000 a.C. - embora tenham sido encontrados esqueletos sem tecidos moles que foram datados até 8500 a.C. Os arqueólogos suspeitam que haja algo de incomum em muitos dos corpos dos pântanos, além da sua extraordinária preservação. Ser enterrado naquele período da história não era comum. Os enterros formais eram raros na Europa durante a Idade do Ferro. Os mortos muitas vezes eram cremados, recebiam funerais a céu aberto ou uma série de práticas diversas e criativas. Muitos dos corpos do pântano eram de jovens adultos, adolescentes e crianças, aparentemente em forma e saudáveis. Alguns estavam nus, exceto por algum pedaço de corda, chapéu ou casaco bem preservado. Às vezes, as roupas eram enterradas separadamente dos corpos em locais próximos no pântano. Mas, acima de tudo, muitos dos corpos haviam sofrido mortes extremamente violentas. E, como os métodos de exame forense dos corpos do pântano avançaram rapidamente nos últimos anos, estamos começando a descobrir os mistérios sobre esses corpos e quem eles eram, na vida e na morte. Depois da Mulher de Lindow, outra descoberta feita ao acaso no mesmo pedaço de turfa ajudou a reformular o estudo de corpos do pântano na Europa. A descoberta foi feita por alguém que já é nosso conhecido - novamente, Andrew Mould. No verão seguinte à descoberta da Mulher de Lindow, Mould estava trabalhando na esteira da máquina de moer turfa quando um torrão sólido escuro caiu aos seus pés. "Pensamos inicialmente que fosse um pedaço de madeira do pântano", relembra Mould. Mas, quando ele pegou o torrão, sentiu o que parecia ser o couro de uma bolsa. Ele mostrou para um colega. "Foi aí que limpamos um pouco e vimos as unhas dos dedos dos pés." Nos dias que se seguiram, uma cabeça inteira e o dorso foram cuidadosamente escavados (mesmo que, desta vez, a polícia de Cheshire não tenha resolvido nenhum outro caso pendente). O Museu Britânico concluiu que o corpo era de um homem na casa de 20 anos de idade, com cerca de 1,73 m e 64 kg, que havia vivido perto do século 1° d.C. "O espetacular a respeito dele é que ele quase foi morto por três vezes", afirma Miranda Aldhouse-Green, professora emérita da Faculdade de História, Arqueologia e Religião da Universidade de Cardiff, no Reino Unido, e autora do livro Bog Bodies Uncovered ("Corpos do pântano descobertos", em tradução livre). "Ele foi morto de forma prolongada e de uma maneira muito específica, por alguém que conhecia a anatomia humana", explica ela. "Ele foi atingido na cabeça com força suficiente para atordoá-lo, mas não matá-lo. Ele foi então estrangulado e, ao mesmo tempo, teve sua garganta cortada." Por que um assassinato tão brutal? O excesso de violência usado para executar o Homem de Lindow indica algo muito mais incomum que um assassinato "normal", segundo Aldhouse-Green. Para entender o destino dos corpos do pântano, é preciso primeiro compreender o pântano na Idade do Ferro e na Europa do Império Romano. "Nós consideramos os pântanos como espaços vazios", segundo Melanie Giles, professora sênior de arqueologia da Universidade de Manchester, no Reino Unido, e autora de Bog Bodies: Face to Face with the Past ("Corpos do pântano: cara a cara com o passado", em tradução livre). "Não é assim que as pessoas da Idade do Ferro os viam." "Eles retiravam combustível do pântano, cortando turfa e retirando minério de ferro", explica ela. "Eles produziam instrumentos e armas como caldeirões e espadas. Eles retiravam o musgo e teciam artigos extraordinários com ele. Eles caçavam as aves que viviam ali. Os pântanos eram lugares ricos e produtivos para as pessoas da Idade do Ferro." E existe o fato de que o pântano é uma região de fronteira, entre a terra e a água. "Acho que os pântanos também são muito especiais porque eles são repletos de miasmas", afirma Aldhouse-Green. "Eles têm vapores que saem deles e, às vezes, entram em combustão espontânea. Eles podem ter odores fortes. Eles parecem terra, mas não são terra. Eles podem ter sido compreendidos como sendo portais para o outro mundo e portais para os deuses." Até hoje, os pântanos elevados podem ser hipnotizantes, segundo Ole Nielsen, diretor do Museu Silkeborg em Hovedgården, na Dinamarca. Para ele, "realmente não é necessário fantasiar muito para imaginar que existem mais forças atuando do que você pode ver na realidade." Giles afirma que análises detalhadas das vizinhanças do local onde foi encontrado o Homem de Lindow demonstraram que, muito provavelmente, ele estava vivo quando adentrou pela última vez naquele ambiente de passagem. Usando dados do Sistema de Informações Geográficas (GIS, na sigla em inglês) para mapear o pântano, os pesquisadores concluíram que o Homem de Lindow foi enterrado na sua parte mais profunda. Conduzir uma pessoa morta ou atordoada até aquele local teria sido extremamente difícil naquele terreno traiçoeiro. "Como é muito perigoso chegar até aquele ponto, provavelmente ele estava vivo enquanto era transportado", segundo Giles. Os detalhes das suas lesões fatais apontam nessa direção. "O assassino era grande conhecedor da anatomia humana e sabia como manter aquela pessoa pairando entre a vida e a morte por muito tempo", explica Aldhouse-Green. "Quando ele foi empurrado com o rosto para baixo contra o pântano, ele ainda estava respirando, pois havia água nos seus pulmões." Outros sinais disso vêm do estômago do Homem de Lindow. Análises meticulosas da sua última refeição revelam um prato muito simples à base de cevada, talvez um pouco torrado demais. "A última coisa que ele comeu antes de morrer foi um alimento realmente muito simples", diz Sophia Adams, curadora do Período da Idade do Ferro Europeia e da Conquista Romana do Museu Britânico. "Ele comeu o que chamamos hoje de pão na chapa." A falecida acadêmica celta Anne Ross, que realizou importantes trabalhos iniciais com o Homem de Lindow, argumentava que esse pão na chapa, feito de cevada e parcialmente queimado, revela algo sobre o seu destino. Entre as classes sacerdotais britânicas daquela era, o pão na chapa era usado em uma cerimônia muito similar ao jogo dos palitos. As pessoas retiravam pedaços de pão na chapa de um saco e quem tirasse o pedaço queimado e torrado era escolhido como bode expiatório. E o pão na chapa do Homem de Lindow também continha traços de outra planta denunciadora: o visco. Ross argumenta que isso indica relação com os antigos druidas, que eram conhecidos por realizar rituais de coleta de visco. Aldhouse-Green destaca que o visco era conhecido na Antiguidade como planta medicinal para distúrbios nervosos e "pode ter sido administrado ao homem de Lindow para acalmá-lo e deixá-lo mais submisso frente à sua morte terrível". Outros corpos do pântano também contam últimas refeições incomuns. Um corpo dinamarquês conhecido como Homem de Grauballe é o de um agricultor da Idade do Ferro que viveu em cerca de 390 a.C., no centro da Dinamarca. Sua última refeição incluiu mais de 60 tipos diferentes de vegetais, amassados em um mingau intragável de cereais, ervas com sabor amargo e mais de 13 espécies de grama. "Você tem muitas sementes e plantas de uma área bastante ampla reunidas nessa refeição, o que indica muito conhecimento daquele território e sugere que era um ritual representado no sacrifício", afirma Aldhouse-Green. "Mas você pode interpretar esta última refeição de uma infinidade de formas. Pode também ter sido uma forma de humilhação." O Homem de Grauballe também teve uma substância psicoativa acrescentada à sua última refeição - mas, neste caso, a intenção pode ter sido qualquer uma, menos de acalmá-lo. Traços de toxinas alcaloides no intestino revelaram que sua última refeição incluiu o esporão-do-centeio, um fungo que cresce nas espigas de cereais como centeio e cevada. Em doses altas, o envenenamento com esse fungo causa alucinações e efeitos terríveis, conhecidos como Fogo de Santo Antônio. Eles incluem parada circulatória, sensação de queima e perda das extremidades por gangrena. Mas, nos níveis encontrados no trato digestivo do homem de Grauballe, o efeito teria sido mais suave. "Ele pode ter causado um comportamento muito estranho logo após a ingestão", afirma Aldhouse-Green. "O fungo teria feito com que ele fizesse movimentos desordenados, sentisse muito calor e gritasse. Ele estaria à beira de um fenômeno psicótico extremo e, possivelmente, isso era parte das preliminares rumo ao sacrifício." Entre os corpos descobertos nos pântanos, existe um alto percentual de pessoas com características físicas diferentes que podem ter chamado a atenção na sua comunidade, segundo Miranda Aldhouse-Green. A Menina de Yde, por exemplo, que viveu 2 mil anos atrás e morreu no pântano de Stijfveen, na Holanda, tinha curvatura pronunciada da espinha, que deve ter causado dores crônicas e provavelmente um andar cambaleante. Outro corpo do pântano holandês da mesma época, a Mulher de Zweeloo, tinha uma forma de nanismo. E, no Reino Unido, o terceiro corpo antigo encontrado em Lindow Moss (conhecido como Lindow 3º) tinha um vestígio de um segundo polegar na mão direita. "Existe a possibilidade de que as deficiências físicas não fossem exatamente comemoradas, mas, sim, marcadas como algo especial e poderoso, possivelmente associado a ser tocado ou abençoado pela divindade", afirma Aldhouse-Green. Mas ela salienta que não podemos ter certeza de como as diferenças físicas eram percebidas na Antiguidade, e essas teorias são apenas especulativas. Os corpos dos pântanos da Europa têm sido frequentemente exibidos em museus após sua escavação e preservação cuidadosa. No entanto, surgiram controvérsias sobre a exibição pública desses corpos. Uma exposição itinerante em Ottawa, no Canadá, enfrentou reações negativas por exibir os restos humanos. Melanie Giles, da Universidade de Manchester, argumenta que a exibição criteriosa dos restos humanos pode ajudar a criar emoções íntimas e laços sociais entre os corpos dos pântanos e as pessoas que os observam. Talvez o rosto mais bem preservado de todo o mundo antigo seja o do Homem de Tollund, um corpo do pântano encontrado na Dinamarca em maio de 1950. Atualmente, ele repousa em posição fetal no Museu Silkeborg. Como ocorre com muitos desses corpos, os ácidos do pântano transformaram a cor da sua pele em um tom preto-azulado. Seus pelos e cabelos ficaram com cor laranja brilhante, embora ele esteja usando um chapéu de pele de carneiro que cubra a maior parte. Todas as linhas finas e quase todos os poros da pele são visíveis. Suas pálpebras enrugadas estão fechadas, dando a ilusão de um sono pacífico. "Você consegue realmente conhecer essa pessoa", afirma Ole Nielsen. "O rosto é a parte do corpo que detém a maior expressão do corpo humano. E é realmente fascinante conhecer um homem da Idade do Ferro, com mais de 2 mil anos de idade, que parece poder despertar a qualquer momento." Além do seu chapéu de pele de carneiro, o Homem de Tollund foi enterrado vestindo apenas um cinto de tecido na cintura e uma corda em volta do pescoço. "Se ele estivesse vestido com alguma roupa de lã, ela teria sido preservada, sem dúvida", segundo Nielsen. Os ácidos do pântano preservam colágeno e queratina, que estão presentes em materiais como a lã. "Os seus cabelos ainda estão ali, suas unhas estão ali." Também não há marcas de roupas na superfície da pele do Homem de Tollund. "Nós realmente examinamos seu corpo com muito cuidado, usando microscópios. Ainda existem muitas folhas de musgo que podem ser observadas no corpo, mas nada que indique que houvesse alguma outra coisa sobre ele. Por isso, provavelmente ele foi morto como nós o vemos. É realmente muito inusitado vê-lo nu com um chapéu", explica Nielsen. No seu conjunto, as condições do homem de Tollund indicam um ritual da morte. "Para o sacrifício, ele foi barbeado e colocado no pântano com a corda do enforcamento", destaca Nielsen. Ele acredita que deixar a corda com o corpo seja simbólico, já que até um objeto simples como uma corda tinha valor e podia ser usado novamente. "Ela provavelmente foi deixada como um sinal", afirma Nielsen. "Sua função era ser colocado no pântano porque tinha aquele propósito. Se ele foi voluntário ou escolhido ao acaso, nós não sabemos. Mas ele não parece tão insatisfeito." A ideia de seguir voluntariamente para uma morte tão tenebrosa é difícil de entender para uma mente do século 21, mas pode não ter sido tão bizarra para as pessoas que viviam na Idade do Ferro. "Precisamos pensar em um mundo em que os deuses estão em toda parte. Tudo o que você fizer é associado aos deuses", afirma Aldhouse-Green. Por isso, manter os deuses felizes pode ser questão de vida e morte não só para os indivíduos, mas para comunidades inteiras. "Se você aborrecesse os deuses, eles dariam uma colheita fraca, uma praga, as safras seriam perdidas e assim por diante. E você precisava ter os deuses do seu lado", explica Miranda Aldhouse-Green. Melanie Giles concorda. "Você está lidando com entidades que influenciam a sua vida, deuses ou espíritos, existe algo sobrenatural ali e se pode ter acesso pelo pântano", afirma ela. Giles acrescenta que pode ter havido um elemento circular para a oferenda de pessoas aos deuses pelo pântano. "Como as pessoas tiravam muito dos pântanos, elas parecem ter sido compelidas a devolver alguma coisa." Às vezes, eram caldeirões, às vezes havia oferendas de alimentos como manteiga do pântano. "Se você ofertar uma pessoa, uma vida - talvez fosse o melhor tipo de oferenda que você poderia fazer", explica Giles. Embora existam evidências de que o Homem de Lindow, o Homem de Tollund, o Homem de Grauballe e outros fossem sacrifícios humanos, Giles ressalta que não devemos considerar que todos os corpos dos pântanos fossem oferendas. No caso de alguns corpos, como o da Mulher de Lindow, simplesmente não temos informações suficientes para formar um quadro convincente de como foi a sua morte. "Existem alguns corpos que não exibem sinais de violência e essas pessoas podem ter simplesmente afundado", ressalta ela. "São locais perigosos. As pessoas morrem no pântano - elas morrem de exposição, morrem tentando cruzar o pântano, perdem seus calçados ou calculam mal onde estão andando. Algumas delas podem ter sido mortes acidentais." Outros, segundo ela, podem ter sido simples assassinatos. Talvez o pântano deserto às vezes fosse apenas um local conveniente para atos abomináveis. E pode também ter havido vítimas de suicídio entre os mortos, talvez colocados ali em uma época em que essas mortes eram tratadas com medo e não com empatia. "Os pântanos podem ter sido considerados o local certo para colocar um corpo perigoso - alguém que morreu misteriosamente ou de forma não natural", afirma Giles. "Parte disso tinha a ver com as declarações da igreja, de que não queria essas pessoas nos seus cemitérios. E parte disso porque o pântano é um local poderoso, além da visão humana, onde os mortos podem ser guardados", conclui ela.
2022-10-07
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-63135507
sociedade
Com mais armas circulando, Brasil 'começa a colecionar' casos de tiros em escolas, vê especialista
Em menos de dez dias, foram registrados dois ataques a tiros dentro de escolas no Brasil. Ambos os crimes foram cometidos com armas obtidas, a princípio, legalmente — uma delas pertencia a um CAC (colecionador, atirador desportivo ou caçador) e a outra era de um policial militar. O caso mais recente aconteceu na manhã de quarta-feira (5/10), quando um adolescente de 15 anos atirou contra três estudantes em uma escola na cidade de Sobral, no Estado do Ceará. As informações foram passadas pela assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Estado à BBC News Brasil. Duas das três vítimas foram atingidas na cabeça. Ambas estão em estado grave. Uma delas tinha quadro estável no início da tarde, enquanto a outra estava entubada. A terceira foi atingida na perna e não teve os detalhes de seu quadro clínico divulgados. Ainda não há informações sobre como o adolescente teve acesso à arma. A diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, Carol Ricardo, afirma em entrevista à BBC News Brasil que o número de armas adquiridas por CACs mais do que triplicou de 2018 a 2022. Hoje, há mais de 1 milhão de armas em circulação em relação à 330 mil, quatros anos atrás. Fim do Matérias recomendadas A advogada e socióloga, Carol Ricardo, diz que três fatores principais contribuem para que esses incidentes com armas em escolas se tornem recorrentes. "O primeiro é o aumento das armas em circulação. O segundo é a falta de fiscalização e controle por parte do Exército e o terceiro é o incentivo e a banalização ao armamento por parte do poder público. Há um discurso de que ter uma arma e guardá-la em casa não oferece risco", afirma. De acordo com informações preliminares da Polícia Civil do Ceará, o estudante que abriu fogo contra três colegas de classe em Sobral usou uma arma dele, que é CAC, para cometer o crime. Segundo a Delegacia Municipal de Sobral da Polícia Civil, o adolescente planejou o ataque após ter sido vítima de bullying na escola. Em agosto, um menino de 8 anos matou o próprio cunhado de maneira acidental com uma arma deixada no banco de trás do carro onde ele estava sentado. A vítima, de 27 anos, era CAC e tinha ido buscar o filho de 2 anos em um colégio em Jacareí, no interior de São Paulo. Quando os três estavam no carro, o menino de 8 anos pegou a pistola, carregada com 12 balas, e disparou contra a cabeça do cunhado. Quando o socorro chegou ao local, ele já estava morto. A especialista disse que, durante a gestão do presidente Jair Bolsonaro (PL), foram aprovados diversos projetos de lei que não apenas facilitam o acesso a armas, mas também alguns permitem que sejam comprados armamentos mais potentes e munição em maior quantidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No dia 26 de setembro, um adolescente de 14 anos matou a tiros uma aluna cadeirante em Barreiras, no oeste baiano. De acordo com a polícia, a arma usada no crime foi um revólver calibre 38 que ele pegou do pai dele, que é policial militar. O adolescente teria encontrado a arma embaixo do colchão, onde o pai costumava guardá-la. Ele entrou encapuzado pelo portão principal do colégio e fez os disparos contra a aluna no pátio da escola. Carol Ricardo, do Sou da Paz, diz que é preocupante como o Brasil "começa a colecionar" casos de atiradores em escolas, como ocorre com mais frequência nos Estados Unidos. "Toda vez que tem um ataque nos Estados Unidos, ocorre essa discussão de controle de arma. Aqui também alertamos sobre os riscos desse amplo acesso às armas de fogo. A gente deve continuar vendo casos assim com mais frequência por conta dessa facilidade ao acesso." Para ela, esse caso deixa claro que, mesmo em posse de agentes de segurança, há riscos de a arma ser usada para praticar crimes. Ela diz que os argumentos para liberar mais armas não têm fundamento e que os recorrentes casos de incidentes revelam que não há cuidado com a maneira como elas são armazenadas. "A narrativa que busca legitimar o uso é a de que a arma é um bem e quem mata é o homem. Mas não há nenhuma informação ou treinamento sobre como elas estão sendo armazenadas. É uma situação grave, aliada a um sistema que não fiscaliza e não controla a distribuição desse armamento", afirmou. Para ela, as políticas que permitem um acesso mais fácil a armas para CACs estão causando tragédias. Ela afirma que a legislação sofreu constantes mudanças que facilitaram a compra desse armamento. "Nessa categoria, mesmo antes do Bolsonaro, já via-se um crescimento de compra porque é mais fácil se cadastrar e conseguir armas com o Exército do que com a Polícia Federal. Mas agora está muito mais fácil", afirmou. Ela alertou para que as escolas tenham mais preparo para discutir essa escalada da violência e os casos de bullying. "Não estou acusando a escola, mas hoje sabemos que a violência nas escolas e o bullying são uma realidade e que isso gera novas formas de agressões entre os estudantes. É necessário que as escolas entrem nessa discussão o quanto antes".
2022-10-05
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63152623
sociedade
São Francisco de Assis, o santo que inspira o atual papa e que se tornou símbolo de luta ambiental
Quando, em 13 de março de 2013, o cardeal argentino Jorge Bergoglio foi apresentado à multidão na Praça São Pedro como o papa eleito para suceder Bento 16, houve um momento de expectativa: que nome ele escolheria para ser a marca do seu pontificado? Pela tradição católica, papas assumem uma nova identidade quando chegam ao poder. Mais do que uma mera formalidade, o nome abraçado também procura, não raras vezes, trazem a mensagem que o líder católico pretende imprimir à sua época. E Bergoglio se tornou Francisco. O primeiro papa da história da Igreja com este nome. Sem dúvida nenhuma, naquele instante, o argentino estava apresentando sua proposta ao mundo, numa espécie de plano de governo, antecipando o que viria a ser a tônica do seu pontificado. Num contexto histórico em que a tragédia climática e ambiental parece irreversível, papa Francisco é uma voz lúcida acerca da necessidade de proteção ecológica, do "cuidado com a casa comum", como ele tanto clama. E num momento de crise da humanidade, ele insiste na importância do acolhimento e no fundamental da caridade e da inclusão dos mais pobres. Papa Francisco ecoa, oito século depois, os princípios de um dos santos mais famosos da história do cristianismo: São Francisco de Assis, cuja data é celebrada pelos católicos no dia 4 de outubro — de acordo com a tradição, ele morreu na noite do dia 3 para o dia 4 de outubro de 1226. Fim do Matérias recomendadas "A relação de papa Francisco com São Francisco de Assis é muito grande. São Francisco é a fonte de inspiração para o atual papado, pelo modo de conduzir a Igreja hoje. Francisco recupera uma Igreja mais próxima do evangelho, mais próxima de Jesus", avalia frei Mario Tagliari, reitor do Santuário São Francisco, em São Paulo. "São Francisco de Assis viveu em comunhão com a Igreja, mas provocou uma grande mudança a partir da radicalidade de viver o Evangelho", pontua ele. "Papa Francisco busca seu nome por causa de São Francisco de Assis." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por causa disso, hoje alguns costumam comparar que houve "o Francisco de Assis e agora há o Francisco de Roma", como lembra o teólogo Luiz Carlos Susin, também frade franciscano, professor na Pontifícia Universidade Católica no Rio Grande do Sul e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana. "Tudo até hoje mostra que de fato veio de Francisco de Assis a inspiração [para a escolha do nome do atual papa]", comenta Susin. O teólogo admite que, "pessoalmente", desde o início achou "muito desafiante e complicado" para um papa assumir tal identidade. "Porque Francisco de Assis, pelo seu modelo e sua sensibilidade, pela crise que atravessou e pela desapropriação que viveu, aquela liberdade com que viveu em relação às coisas e ao sistema do mundo, ele teve o que podemos chamar de sensibilidade antissistêmica", contextualiza. "Aquela inocência em não se enquadrar em coisa nenhuma… E o papa governa uma instituição imensa com mais de 1 bilhão de pessoas [católicas], com uma complicação enorme em termos jurídicos, institucionais… Parece um paradoxo, cria uma tensão muito grande." "E esse papa tem vivido essa tensão grande entre a pregação dele, bem franciscana, e o que ele tem de levar nas costas, um tamanhão institucional que Francisco de Assis não teria condições de carregar", compara. Susin recorda a homilia de inauguração do atual pontificado para destacar três pontos de conexão entre os dois Franciscos separados por 800 anos: a busca por uma Igreja mais simples, pobre e despojada; o diálogo ecumênico e o discurso pela paz; e o cuidado com a criação, com o meio ambiente. "Podemos dizer que o papa tem desenvolvido seu programa baseado nesses três pilares bastante franciscanos", argumenta. Frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos e assessor da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, comenta que o papa "trouxe para Roma e para o próprio espaço do Vaticano diversas práticas" de auxílio aos pobres — como lavanderia para moradores de rua e encontros com movimentos sociais. E isto dialoga profundamente com o carisma franciscano. Além disso, Guimarães enfatiza que a visão de São Francisco está presente de forma fundamental em duas encíclicas, a Laudato Si' e a Fratelli Tutti. "Temos um papa que, em todos os sentidos, está marcado pela espiritualidade franciscana", diz. Nascido em 1181 ou 1182 na cidade de Assis, atual Itália, ele foi batizado como Giovanni di Pietro di Bernardone e era filho de uma família relativamente bem-sucedida. Seu pai, Pietro di Bernardone dei Moriconi, era um comerciante têxtil que tinha bom tráfego entre a burguesia estabelecida na época. Sua mãe, Pica Bourlemont, era uma mulher de raízes francesas. Não há consenso sobre o seu apelido Francisco. Provavelmente, era uma referência à França. Para alguns biógrafos, porque desde pequeno o menino tinha encantamento pelo idioma, pela música e pela cultura francesa. Para outros, seria uma homenagem da família aos parentes franceses da mãe. O que parece não haver dúvidas é que se trata de um nome que foi assumido antes da vida religiosa — ou seja, desde a tenra juventude Giovanni já era chamado de Francesco, em português Francisco, pelos seus amigos. E teria sido uma juventude bastante agitada. Visto como excêntrico e indisciplinado, Francisco gostava de festas, bebida e não economizava o dinheiro do pai na hora de se divertir. Por volta dos 23 anos, ele passou a ter uma série de visões místicas. Aos poucos, passou a se desinteressar pelos prazeres mundanos e convenceu-se que o melhor seria adquirir hábitos mais frugais e próximos dos pobres. Depois de um retiro em uma caverna, decidiu que não queria se casar — mas, sim, abraçar a vida religiosa. Sonhos com mensagens avaliadas por ele como divinas passaram a ser recorrentes. E certa vez ele, ao ouvir os sinos que os leprosos eram obrigados a usar para alertar as pessoas do risco de contágio, em vez de afastar-se, aproximou-se. A repulsa deu lugar ao cuidado: Francisco deu seu manto ao homem que sentia frio e sentiu um prazer inexplicável ao ver, em seus olhos, a gratidão. Para os seus biógrafos, esse foi o ponto de virada em sua biografia, quando ele realmente decidiu dedicar-se aos pobres. Em seguida, Francisco pegou o estoque de tecidos do seu pai, vendeu a preços módicos no centro da cidade, e doou todo o dinheiro para a Igreja. Pietro revoltou-se e descobriu o filho escondido em um celeiro. Levou-o para casa e deixou-o preso, acorrentado, no porão. Com a ajuda da mãe, Francisco conseguiu escapar. E foi procurar abrigo junto ao bispo. O pai seguiu os passos, pretendendo tirar satisfações não só com o filho, mas também com o líder religioso da região. Para a surpresa de todos, Francisco debateu com o pai, tirou todas as suas vestes e devolveu-as a ele. Renunciou a qualquer direito que teria como herança e partiu, nu, para uma vida entre os pobres. O bispo teria abençoado o jovem e admirado sua postura. Isso teria ocorrido provavelmente em 1208. No ano seguinte, Francisco fundaria seu grupo religioso, a Ordem dos Frades Menores, com princípios claros de serviço aos pobres, humildade e uma profunda ligação com a natureza. Essa postura de Francisco, com boas doses de rebeldia nas condutas para conseguir realizar seus ideais humanitários, faz com que muitos vejam seu papel como o de um verdadeiro reformador dos valores da Igreja Católica. "Em minha visão, ele foi um homem estupendo que, mesmo antes de [Martinho] Lutero [(1483-1546), que rompeu com a Igreja e fundou o protestantismo] questionou a Igreja. Alguns pesquisadores dizem que ele foi um reformador sem sair da Igreja, pois questionava a riqueza e via a pobreza como algo significativo", afirma o estudioso de hagiologias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos. "Francisco tinha uma postura humilde, era o santo da alegria e fazia tudo pela paz. Pensava nos outros, tinha empatia, se preocupava com aqueles que forem", comenta. E sua atualidade também reside nesse fato. "A preocupação com os que sofrem é uma pauta contemporânea. Ele falava isso na Idade Média, criticando a miséria, o poder o status do clero que não ligava para os que necessitavam. Foi um santo extremamente complexo", analisa Maerki. "Suas ideias vão ao encontro daquilo que geralmente se prega no mundo contemporâneo, cada vez mais capitalista, material e do 'eu sem pensar no outro'." Para o pesquisador, a figura de Francisco de Assis se tornou "extremamente simbólica" justamente porque em uma "época em que muitos defendiam a riqueza, inclusive a hierarquia eclesiástica", ele acabaria, em sua ordem, decretando que os frades tinham de habitar casas mais simples, ter uma vida mais simples. "O hábito franciscano era a roupa das pessoas pobres da época", exemplifica. "Ele era uma pessoa antissistema, uma pessoa desconcertante. Estava sempre ao lado dos pobres, mas conseguia dialogar e trazer essa vida para o seio da Igreja", analisa Guimarães. "Ele fez um processo radical de fraternidade com os mais pobres, mudando seu status de vida para ser pobres e isso é sempre significativo." Pesquisar sobre a vida e a obra de São Francisco é mergulhar em uma seara de múltiplas facetas. Por um lado, muitos de seus contemporâneos escreveram sobre ele, com as primeiras hagiografias tendo sido feitas pouco tempo após sua morte, em 1226. Contudo, os primeiros franciscanos também se viram em meio a uma guerra de narrativas. "A vida de Francisco está envolta em polêmicas e isso perpassa toda sua trajetória", diz Maerki, que dedica toda sua trajetória acadêmica, da graduação ao pós-doutorado, ao estudo de textos sobre São Francisco. Ele conta que o primeiro relato sobre a vida do santo foi escrito pelo frade Tomás de Celano, que viveu aproximadamente entre 1200 e 1265. "Sua obra se torna uma espécie de legenda oficial da vida de Francisco, mas outras vão surgindo, escritas por outros companheiros de Francisco, inclusive por frades que eram muito próximos a ele e conheciam muito bem a vida dele. São várias hagiografias e escritos que começam a apresentar versões e outras facetas do santo. O que a gente conhece hoje é fruto de uma tradição, uma construção de 'muitos Franciscos'", avalia ele. Maerki recorda que havia grupos internos dentro da ordem franciscana que "disputavam uma certa narrativa". E, por isso, em 1260, o religioso João Boaventura — depois canonizado como São Boaventura — foi incumbido de "escrever uma nova vida [de São Francisco] para apaziguar os anônimos" e chegar à "biografia oficial". Então houve um decreto que passou a desconsiderar todas as narrativas anteriores — e, acredita-se, muitos textos tenham sido destruídos. "Acabaram sobrevivendo os que estavam guardados em bibliotecas de outras ordens religiosas, por exemplo, ou que caíram em mãos de particulares que não seguiram o decreto franciscano", comenta Maerki. Segundo o pesquisador, a versão oficializada foi a que predominou até o século 17, quando estudiosos passaram a resgatar outros relatos antigos sobre Francisco a fim de compor o mosaico de sua vida. No momento, o próprio Maerki está trabalhando em uma biografia de São Francisco escrita originalmente em português, do século 16 — em breve, uma edição da mesma preparada pelo pesquisador brasileiro deve ser lançada em livro. Trata-se da obra 'Crônicas da Ordem dos Frades Menores', escrita pelo franciscano Marcos de Lisboa (1511-1591) em 1557. "Ele comenta, em uma espécie de prefácio, que andou por praticamente toda a Europa em busca de textos acerca de Francisco de Assis e, com base neles, escreveu", conta. "De certa forma, ele antecipou um caráter científico de construção da história, não queria construir a história baseada em achismos ou naquilo que ouvia falar, não queria depender da tradição oral." Se hoje São Francisco é visto como o santo mais ligado ao meio ambiente, é preciso lembrar que essa noção não encontra eco nos discursos de seu tempo. "Muitas vezes ele é tomado como uma espécie de ícone para a causa ambiental mas isso é uma construção muito recente", argumenta Maerki. "Obviamente que essa questão ambiental não era uma preocupação, uma demanda do mundo medieval", salienta. "O que temos nas primeiras legendas sobre São Francisco é justamente esse respeito que ele tinha para com a natureza. Ele chamava toda a natureza de irmã, a lua era irmã, o sol era irmão, os pássaros eram irmãos, a Terra uma grande mãe. Esse respeito, mais tarde, foi interpretado com um viés ecológico." "Mas essa não foi obviamente uma preocupação de São Francisco nem dos primeiros franciscanos", ressalta. Susin atenta para o fato de que essa ligação com a natureza está presente na iconografia. "É muito difícil a gente ver uma representação dele sem um passarinho, sem um animal junto", comenta. "A interpretação romântica do século 19 fez isso de forma a colocar o sentimento no centro da espiritualidade, em contraposição à racionalidade mais científica." "Um dos biógrafos dele diz que ele tirava até a minhoca que estivesse passando no meio de um caminho para que, quando viesse uma cavalaria, ela não fosse pisoteada", diz Tagliari. "Ele pregou aos peixes, aos pássaros. Por isso tornou-se protetor da natureza e padroeiro da ecologia. Mas não de uma ecologia unicamente utilitarista. A relação de Francisco com a natureza é fraterna, no sentido de que nós, os animais e as plantas fomos feitos por Deus e somos, portanto, irmãos." Em carta apostólica publicada em novembro de 1999, o papa João Paulo 2º. (1920-2005) proclamou São Francisco como "o celestre padroeiro dos cultores da ecologia". "São Francisco faz um movimento muito forte de integração. Ele abre a ideia de sermos irmãos de toda a criação", explica Guimarães. "Um caminho intenso de ser fraterno. Por isso ele é o santo das relações saudáveis e integradas, convidando-nos a um reajuste nas diversas relações com a sociedade, buscando uma vida com o próximo, com Deus e com toda a criação." Francisco de Assis deixou escritos de punho próprio. Sua obra mais conhecida é o famoso 'Cântico das Criaturas', também chamado de 'Cântico do Irmão Sol'. O texto foi composto originalmente no dialeto da região da Úmbria e é apontado como um dos primeiros registros escritos no idioma italiano. "Francisco é considerado por muito teóricos como o primeiro poeta italiano e isso não é pouca coisa", lembra Maerki. "Foi um dos primeiros a escrever poesia no vernáculo italiano, no dialeto umbro. Torna-se muito importante para a literatura italiana." Esse reconhecimento não é algo apenas dos dias atuais. Considerado o maior poeta da língua italiana, Dante Alighieri (1265-1321) dedicou a São Francisco todo o cântico 11 reservada ao paraíso de sua obra-prima, A Divina Comédia.
2022-10-03
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63126004
sociedade
4 grandes cidades do mundo que estão se fechando para carros
Quando a primeira onda de covid-19 impediu reuniões em ambientes fechados na maior parte dos países, muitas cidades responderam rapidamente imaginando novas formas de viver em ambientes públicos externos. Algumas delas criaram ruas exclusivas para pedestres, enquanto outras transformaram estacionamentos em restaurantes temporários. As ciclovias também foram ampliadas, transformando ruas que antes eram repletas de carros em espaços propícios para pedalar e caminhar. Essas mudanças trouxeram dividendos - e não só no aumento da atividade econômica. Estudos demonstraram que o vírus se espalha com menos rapidez em bairros com grandes espaços para caminhadas. E, embora muitos lugares abandonaram iniciativas à medida que as pessoas começam a retomar suas atividades normais, algumas cidades mantiveram medidas tomadas em favor dos pedestres e estão aumentando ainda mais os espaços livres de automóveis. Escolhemos quatro cidades que se destacaram por algumas das inovações mais rápidas e arrojadas em favor dos pedestres durante a pandemia. Elas estão preservando várias dessas iniciativas, para incentivar seus moradores e visitantes a andar pela cidade a pé. Mesmo antes da pandemia, a capital francesa já era uma das pioneiras no aumento do espaço para os pedestres. Fim do Matérias recomendadas Como parte dos esforços para reduzir o número de carros em Paris, o cais inferior ao longo do rio Sena foi totalmente destinado aos pedestres no final de 2016. A medida se tornou permanente em 2018. A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, foi reeleita em 2020, em parte, pelo seu apoio ao projeto "cidade de 15 minutos": um novo conceito de planejamento urbano, que permite aos moradores realizar todas as suas tarefas diárias - incluindo compras e idas à escola e ao trabalho - deslocando-se pela distância equivalente a 15 minutos de caminhada ou de bicicleta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A pandemia, aliada a diversas greves do transporte público antes do lockdown, serviu para fortalecer a popularidade dessas iniciativas concentradas nas pessoas e ambientalmente sustentáveis. "A beleza de passear a pé em Paris aumentou ainda mais com a covid-19", afirma Kathleen Peddicord, fundadora da editora especializada Live and Invest Overseas. "O transporte público era inviável há muito tempo e ficou ainda mais desconfortável com a necessidade de usar máscaras. Por isso, mais pessoas começaram a usar seus pés." O número de ciclovias aumentou para reduzir o tráfego dos automóveis. A cidade pretende acrescentar mais 180 km de ciclovias e 180 mil vagas para estacionamento de bicicleta até 2026. "Moro em Paris há 14 anos e posso dizer com certeza que nunca vi uma transformação tão grande em toda a cidade como a que aconteceu recentemente para incentivar os ciclistas", afirma Sadie Sumner, responsável pela filial parisiense da companhia de turismo em bicicletas Fat Tire Tours. Avenidas importantes como a Rue de Rivoli, no centro de Paris, foram reduzidas a uma pista, com as ciclovias agora ocupando a largura de três pistas de automóveis. Paris também pretende plantar 170 mil árvores até 2026, para resfriar a cidade e torná-la mais agradável e confortável para os pedestres. E, como parte das preparações para os Jogos Olímpicos de 2024, a ponte entre a Torre Eiffel e Trocadéro também passará a ser exclusiva para pedestres. De forma geral, os moradores aprovaram as grandes mudanças e esperam por mais. "Os moradores realmente gostaram, há menos carros e as pessoas parecem um pouco mais relaxadas", segundo Roobens Fils, morador de Paris e responsável pelo blog Been Around the Globe. Fils indica sugestões para os turistas que gostam de caminhar: Parc Rives de Seine, uma caminhada de 7 km de extensão ao longo do rio; rue Montorgueuil, no coração de Paris, com suas lojas de queijos, vinhos e flores; rue Saint Rustique, em Montmartre, e seus marcos históricos (a rua mais antiga de Paris); e Cour Saint Emilion, com suas boutiques, cafés e restaurantes. A Colômbia e sua capital, Bogotá, sempre tiveram uma forte cultura ciclística. O ciclismo é o esporte nacional do país. Mas a pandemia incentivou a tomada de muitas medidas para reduzir a quantidade de carros. Em 2020, a prefeita Claudia Lopez estabeleceu 84 km de ciclovias temporárias em Bogotá, aumentando a rede já existente, de 550 km. A Ciclorruta, como é conhecida, já era uma das maiores redes de ciclovias do mundo - e as pistas temporárias tornaram-se permanentes. Bogotá foi uma das primeiras cidades do mundo a acrescentar ciclovias temporárias durante a pandemia e os moradores aprovaram a manutenção das mudanças de forma permanente. "A cidade realmente começou a desenvolver um ar parecido com Amsterdã [na Holanda] e Copenhague [na Dinamarca] nos últimos anos", afirma Alex Gillard, criador do blog Nomad Nature Travel, que morou em Bogotá por curtos períodos durante a pandemia. "Existem muitas bicicletas nas ruas em todos os horários do dia, o que é muito inspirador." Nos domingos e feriados, algumas ruas são totalmente fechadas para carros em um programa conhecido como Ciclovía, que atrai mais de 1,5 milhão de ciclistas, pedestres e corredores todas as semanas. Os novos ônibus do Sistema Integrado de Transporte Público de Bogotá (SITP), movidos a eletricidade e gás, também melhoraram significativamente o transporte público, segundo os moradores locais. "A aura de Bogotá mudou. Agora, é muito mais fácil, calmo e seguro transitar pela cidade", afirma Josephine Remo, blogueira de viagens e moradora da capital. Remo recomenda aos turistas visitar o bairro histórico de La Candelaria, onde a cidade foi fundada há mais de 400 anos. Lá eles encontrarão museus sobre a rica história de Bogotá, além de restaurantes instalados em construções de séculos atrás. Ela também sugere o Parque Usaquén, com seu mercado ao ar livre nos fins de semana, onde os visitantes podem experimentar a cozinha colombiana, apreciando o artesanato local e eventos musicais. A Itália foi um dos países mais atingidos no início da pandemia e suas cidades precisaram adaptar-se rapidamente para fornecer alternativas ao seu abarrotado sistema de transporte público. No verão de 2020, Milão adotou um plano ambicioso para alargar as calçadas e expandir as ciclovias ao longo de 35 km de ruas então dedicadas ao tráfego de automóveis. Estas mudanças transformaram a cidade, trazendo com elas restaurantes e mercados ao ar livre, além de jardins urbanos. "Não é a Milão de que me lembro no meu tempo de faculdade, 10 anos atrás", afirma a moradora Luisa Favaretto, fundadora do site Strategistico, sobre como morar no exterior. "Adoro o conceito da cidade de 15 minutos [Milão também explorou este plano] e fui atraída pela evolução da infraestrutura da cidade, que prioriza as pessoas e não os carros." Favaretto observou o crescimento do que ela chama de senso de comunidade "do mundo antigo", já que aumentaram as razões para atividades nas ruas e reuniões em espaços comunitários. O novo distrito CityLife é a maior área livre de carros de Milão e uma das maiores da Europa. "Ela é repleta de espaços verdes públicos, com inúmeras ciclovias, e oferece uma visão de futuro de uma Milão sustentável", segundo Favaretto. Ela também recomenda caminhar pelos canais de Navigli, aproveitando as opções de restaurantes ao ar livre e a vida noturna da região. Já o antigo distrito industrial de Isola, no norte de Milão, foi transformado em uma área para caminhar e andar de bicicleta, repleta de cafeterias, galerias e boutiques. Os turistas também não precisam se preocupar com a disponibilidade de bicicletas para pedalar nas ciclovias. O serviço de compartilhamento de bicicletas da cidade, BikeMI, dispõe de 300 estações em toda a cidade e oferece bicicletas comuns e elétricas. San Francisco, no norte da Califórnia, reagiu rapidamente ao início da pandemia ao lançar o programa Slow Streets ("Ruas Lentas"), usando sinalização e barreiras para limitar o tráfego e a velocidade dos automóveis em 30 corredores, a fim de facilitar o trânsito de pedestres e ciclistas. Dados coletados pela cidade indicam que o programa trouxe redução de 50% do tráfego de veículos. Nos dias de semana, houve aumento de 17% do tráfego de pedestres e um salto de 65% no de ciclistas. Muitas dessas ruas já retomaram sua mesma função de antes da pandemia, mas os moradores conseguiram manter quatro setores como permanentes: Golden Gate Avenue, Lake Street, Sanchez Street e Shotwell Street. A cidade programou para setembro de 2022 uma votação para decidir o futuro dos demais corredores. "É maravilhoso ver pedestres e ciclistas compartilhando as ruas", afirma a moradora Leith Steel, sobre as ruas que ainda estão fechadas. "Você vê famílias caminhando, crianças brincando - é uma experiência muito diferente." Ela destaca que a cidade dedicou dinheiro e esforços para construir ciclovias melhores em toda a cidade. E, agora, as ciclovias são sinalizadas de forma mais clara do que antes. Steel recomenda explorar todos os bairros de San Francisco, pois cada um deles tem suas próprias características e identidade. Seus corredores preferidos são Hayes Valley, com suas árvores, sofisticação e atmosfera moderna; Outer Sunset, com a descontração dos surfistas e sua praia de areia branca com 5,5 km de extensão; e North Beach, com seus alegres cafés de rua, no quarto melhor bairro para caminhadas da cidade. Ainda há um longo caminho pela frente para que San Francisco se torne uma cidade realmente amiga do pedestre, mas a história mostra que isso é possível. Afinal, uma das melhores áreas para caminhada da cidade - o Embarcadero, à beira-mar - já foi uma autoestrada, até que o terremoto conhecido como Sismo de Loma Prieta, em 1989, impossibilitou seu uso para o trânsito de veículos.
2022-10-02
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62922741
sociedade
As memórias do cárcere de um sobrevivente do Carandiru
Dos mais de 35,5 mil versículos da Bíblia, o favorito de Sidney Francisco Sales, de 53 anos, é o sétimo do Salmo 91: "Caiam mil ao teu lado, dez mil à tua direita, nada poderá atingi-lo". E não é por acaso. Na tarde de 2 de outubro de 1992, cerca de 340 homens da Polícia Militar de São Paulo receberam ordens para invadir o Pavilhão 9 da Casa de Detenção, mais conhecida como Carandiru, para conter uma rebelião. Por volta das cinco da tarde, Sales subiu às pressas para o quinto andar, onde ficava sua cela, a 504-E, e deu de cara com três policiais militares. "Vai ter que acontecer um milagre em sua vida hoje", disse, em tom de deboche, o soldado que segurava uma argola com cerca de 50 chaves. "Um milagre? Por quê?", perguntou Sales, ainda esbaforido, arregalando os olhos. Fim do Matérias recomendadas "Vou escolher uma dessas chaves", começou a explicar o PM, engatilhando a escopeta calibre 12. "Se a chave abrir o cadeado da cela, você entra e vive. Se não abrir, você fica e morre aqui mesmo no corredor", avisou, apontando a arma para a cabeça do preso. "Vamos executar você!", completou o outro agente da lei. Naquela época, Sales ainda não acreditava em milagres. Pelo sim pelo não, fechou os olhos com força e começou a rezar baixinho o único versículo bíblico que conhecia. Uma semana antes, sua mãe, Maria da Conceição Sales, lhe enviara uma carta, onde copiou, a mão, o bendito salmo. Sales ainda recitava baixinho o texto sagrado quando ouviu o ruído do cadeado se abrindo. Trinta anos depois, ele imita o barulho, estalando a língua. "Minha mãe morreu há uns dois anos. Foi a maior perda que sofri na vida. Nunca desistiu de mim. Sempre repetia: 'Mãe de joelho e filho de pé'!", emociona-se. Em uma das últimas cenas do filme Carandiru (2003), dirigido pelo cineasta argentino Hector Babenco (1946-2016), Sales aparece lendo a carta da mãe. No longa adaptado do livro Estação Carandiru (1999), escrito pelo médico Drauzio Varella, ele é interpretado pelo ator Robson Nunes e se chama Davidson, ou Dada, o craque do time do presídio. O pastor evangélico Sidney Sales é um dos sobreviventes do Massacre do Carandiru, o maior da história do sistema carcerário brasileiro. Estima-se que, em apenas 20 minutos, 111 presos foram mortos e outros 35 ficaram feridos durante uma operação da PM para conter uma rebelião. Os números são da Secretaria de Segurança Público do Estado de São Paulo. Do total de mortos, 102 foram executados por armas de fogo e nove por armas brancas. Segundo estimativas extraoficiais, os números de mortos são ainda maiores. "111 é pouco. Morreram mais de 250. Muitos não tinham pai ou mãe para reclamar seus cadáveres", defende Sales. Nenhum policial foi morto na operação. "Peço desculpas a quem perdeu a família nos campos de concentração nazistas, mas só tinha visto aquilo nos filmes da Segunda Guerra Mundial. Carandiru foi meu Auschwitz", compara. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Paulista de Jundiaí, município a 57 km da capital, Sales chegou à Casa de Detenção do Carandiru, o maior complexo penitenciário da época na América Latina, em 1989. Tinha 19 anos quando foi preso em flagrante pela Polícia Federal por roubo de carga em Osasco e levado para o Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), o antigo Departamento Estadual de Investigações Criminais. Condenado a quatro anos de prisão, Sales foi transferido para o Pavilhão 9, que abrigava cerca de 2,5 mil dos quase 8 mil detentos do Carandiru. Para lá, eram mandados os réus primários ou, no linguajar do presídio, os "cabeças de bagre". Os presos de maior periculosidade ficavam no Pavilhão 8. Dos 111 mortos no Carandiru, 88 (80% do total) eram presos provisórios. Ou seja, que ainda não tinham sido julgados pelos delitos que cometeram. Minutos antes da invasão, Sales comemorava a vitória do Cascudinho, time que ajudou a fundar e no qual jogava como zagueiro, por 2 a 1. Por volta de uma e meia da tarde, ouviu dizer que Antônio Luiz Nascimento, o Barba, e Luiz Tavares de Azevedo, o Coelho, tinham se envolvido numa briga no segundo andar do pavilhão. Até hoje, não se sabe ao certo o motivo do desentendimento. Dias antes, Barba tinha vendido fiado para Coelho. Como um não pagou o que devia, o outro resolveu cobrar a dívida. Os carcereiros ainda tentaram apartar a briga, mas os detentos não deixaram. Segundo a lei da cadeia, uma briga entre líderes de facções só termina quando um dos dois morre. Nenhum deles morreu, mas ambos ficaram feridos. Coelho foi transferido para o ambulatório, no Pavilhão 4. Já Barba demorou a ser socorrido pelos agentes penitenciários. As facções, espumando de ódio, declararam guerra entre si. Na confusão, atearam fogo na marcenaria. As chamas se espalharam e chegaram à cozinha. Houve explosão de gás. Com um megafone, o diretor do presídio, José Ismael Pedrosa (1935-2005), tentou acalmar os ânimos. Não conseguiu. Foi quando pediu ajuda à PM para controlar a situação. O então secretário de Segurança Pública de São Paulo, Pedro Franco de Campos, autorizou a entrada dos policiais militares sob o comando do coronel Ubiratan Guimarães (1943-2006). Com a repercussão negativa do caso, Campos deixou o cargo seis dias depois da operação. Participaram da intervenção, além da Tropa de Choque, as Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar (Rota), o Comando de Operações Especiais (COE) e o Grupo de Ações Táticas Especiais (Gate). Não havia reféns no Pavilhão 9. Todos os 20 carcereiros, diante da iminente explosão da panela de pressão, deram no pé. A ordem para invadir o Carandiru foi dada às quatro e meia da tarde. À medida que os policiais entravam, armados de fuzis, metralhadoras e escopetas, os presos, munidos de paus, estiletes e facões, fugiam, acuados, para os andares superiores. Os detentos ainda improvisaram uma barricada com móveis e colchões. Mas, de nada adiantou. À princípio, Sales achou que os policiais estivessem usando balas de borracha. Mas, quando o cheiro de pólvora se espalhou pelo ar, viu que estava enganado. Ele e outros presos tentaram procurar abrigo em uma caixa d'água no telhado do prédio, mas o rasante de um helicóptero da polícia cuspindo bala os obrigou a voltar para dentro do pavilhão. No quinto andar, o grupo se trancou em uma das celas. Um policial abriu o guichê (a abertura na porta de ferro) e efetuou disparos a esmo. Um ricocheteou na parede e atingiu a nuca de um preso chamado Estevão. Morreu na hora. Do lado de fora, o policial perguntou quantos presos havia na cela e, em seguida, ordenou que todos tirassem as roupas e saíssem. No corredor de pouco mais de dois metros de largura, Sales se deparou com dezenas de corpos amontoados no chão. Muitos estavam de bruços, com marcas de tiro à queima-roupa. Outros, ainda vivos, gemiam de dor ou gritavam por socorro. Perto da escada que levava para o quarto andar, os policiais improvisaram um corredor polonês e agrediram os presos a golpes de cassetete. Alguns eram arremessados no poço do elevador. Dos 111 mortos, 78 foram executados no segundo andar. Quinze morreram no primeiro andar, 10 no quarto e oito no terceiro. Terminada a operação, os policiais recrutaram alguns presos para recolher os corpos. Sales foi um deles. Enquanto um detento segurava os braços, o outro carregava as pernas. Muitos presos, para escapar da morte, se fingiram de mortos. Sales calcula ter transportado cerca de 30 corpos. Empilhados num canto do pátio, os cadáveres eram removidos, através de rabecões, para o Instituto Médico Legal (IML). Na madrugada do dia 3, os funcionários do IML não tiveram descanso. Os corpos não paravam de chegar ao necrotério. Dos 515 tiros disparados pelos PMs, 254 foram no peito e 126 na cabeça dos presos. Outros 135 foram desferidos nos membros inferiores. Os peritos identificaram ainda sinais de espancamento e de mordidas de cães no corpo das vítimas. Sales estava transportando os últimos corpos quando se deu conta de que um deles estava, havia pouco tempo, fazendo o mesmo serviço. "É queima de arquivo", pensou. "Serei o próximo!". Largou o homem ali mesmo e correu para o quinto andar. Foi quando deu de cara com os PMs que decidiram sua sorte com a argola de chaves. Um dia depois do massacre, Sales foi transferido para Mirandópolis, uma penitenciária no interior do Estado, onde terminou de cumprir sua pena. Em 1993, ganhou a liberdade, mas, negro, dependente químico e semianalfabeto, demorou para arranjar emprego. Bateu em muitas portas, mas nenhuma delas se abriu. "Quando saí da prisão, tinha o Ensino Médio incompleto. As empresas exigiam Word, Excel, Power Point... Não fazia ideia do que era isso. O máximo que eu tinha era um diploma de datilografia". Passados seis meses, Sales voltou a participar de roubos e assaltos. Pior: começou a beber e a consumir drogas. Em um confronto com a polícia, levou seis tiros e foi parar numa cadeira de rodas. Conclusão: mais dois anos de prisão, em regime fechado. "A Lei Áurea foi assinada pela Princesa Isabel, mas ainda não entrou em vigor no Brasil. Eles não libertaram os negros. Apenas trocaram a escravidão pelo encarceramento". Hoje, Sidney Sales mora em Várzea Paulista, no interior de São Paulo, e administra, ao lado da mulher, Adriana, quatro centros de acolhimento para pessoas em situação de rua e duas clínicas de reabilitação para usuários de drogas. Neles, oferece, entre outras, oficinas de costura, panificação e agricultura. Por suas instituições, já passaram mais de 5 mil pessoas. Atualmente, são 150. Não satisfeito, ele ainda dá emprego para outras 50, todas com carteira assinada. "Sou mais um ex-detento que virou pastor no Brasil. Sabe por que isso acontece? Porque a porta da igreja é a única que se abre para quem saiu da prisão e está à procura de uma segunda chance". Em 2007, Sales publicou Paraíso Carandiru — A História do Homem que, Levado ao Inferno, Encontrou a Porta do Céu. No momento, rascunha seu segundo livro, ainda sem título definido. "No primeiro, falo do meu passado. No segundo, do meu presente. Meu passado me condena, eu sei. Mas, meu presente me absolve." Entre outros temas, Sales dá palestra sobre dependência química e ressocialização de presos em colégios, universidades e presídios. Em 2019, participou do Brazil Conference Harvard & MIT, em Boston, a capital de Massachusetts (EUA). Ao lado de Maria Laura Canineu, a representante do Human Rights Watch, e de Flávio Dino, o governador do Maranhão, integrou o painel sobre Transformação do Sistema Carcerário Brasileiro. "Dizem que bandido bom é bandido morto. Discordo. Bandido bom é bandido ressocializado. O problema é que o Estado não ressocializa ninguém. Quem cumpre esse papel são as instituições filantrópicas." No ano em que o Massacre do Carandiru completa três décadas, o sistema prisional brasileiro atinge um recorde histórico: 919,6 mil presos — 867 mil homens e 49 mil mulheres. É, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a maior população carcerária já registrada no país. "Trinta anos depois, nada mudou. Pelo contrário. Piorou. Nosso sistema penitenciário faliu. Dentro dos presídios, o Estado não existe. São as facções criminosas que tomam conta das carceragens no país." Um levantamento do World Prison Brief (WPB), órgão do Instituto de Pesquisa de Política Criminal da Universidade de Londres (ICPR, na sigla em inglês), revela que o Brasil ocupa hoje a terceira posição no ranking dos países com maior população carcerária do mundo, atrás apenas dos EUA (2 milhões) e da China (1,6 milhão). São 434 presos por cada 100 mil habitantes. A situação carcerária no Brasil só não é ainda pior porque 352 mil mandados de prisão, 24 mil de foragidos, continuam em aberto. Caso contrário, o total de encarcerados já teria chegado a 1,2 milhão de pessoas. "O sistema carcerário brasileiro é, para dizer o mínimo, uma calamidade. Mesmo assim, não desisti de sonhar. Quero prisões mais humanizadas, daquelas em que os presos saem de lá com uma profissão. No Maranhão, por exemplo, os detentos plantam legumes e verduras para creches e escolas. Quando o governador me contou, não acreditei. Achei que estivesse mentindo. Tive que ver com meus próprios olhos para acreditar." Até hoje, nenhum dos 340 policiais que invadiram o Carandiru foi preso. Entre 2013 e 2014, 74 deles foram condenados a penas de até 624 anos de prisão. Mas, o julgamento foi anulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) em 2016. "Não houve massacre. Houve legítima defesa", declarou um desembargador. Em 2021, o caso sofreu nova reviravolta: uma decisão unânime do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a condenação dos 74 PMs. Em 2001, o coronel da reserva Ubiratan Guimarães foi condenado a 632 anos de prisão pela morte de 102 dos 111 presos. Com direito a recorrer da pena em liberdade, o comandante da invasão foi eleito deputado estadual em 2002, com 56 mil votos pelo antigo PPB, o Partido Progressista Brasileiro. Foi absolvido em fevereiro de 2006 por decisão do TJ-SP. Em 10 de setembro de 2006, o Coronel Ubiratan foi encontrado morto em seu apartamento nos Jardins. Acusada de sua morte, sua namorada, a advogada Carla Cepollina, foi absolvida por falta de provas. No muro do prédio onde ele morava, picharam a frase: "Aqui se faz, aqui se paga". Quem também morreu assassinado foi o antigo diretor do Carandiru, José Ismael Pedrosa. Aposentado desde 2003, foi executado com dez tiros ao volante de seu Honda Civic em uma emboscada no dia 23 de outubro de 2005. Não andava em carro blindado, nem tinha proteção de escolta. O crime foi cometido por integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), a maior facção criminosa do país. Os assassinos receberam penas que variaram de 14 a 19 anos de prisão. Quatro anos antes, sua filha, a médica Eulália Pedrosa Almeida, fora sequestrada em Taubaté, no interior de São Paulo. Em vez de resgate, os sequestradores pediram a soltura de líderes do PCC. Em 42 horas, a polícia estourou o cativeiro em São Vicente, resgatou a vítima e prendeu três sequestradores. "Não consigo mais ter raiva de ninguém. Mas reconheço o quanto eles foram incompetentes. Não souberam administrar a situação. Poderiam ter simplesmente cortado o fornecimento de água, luz ou comida. Teríamos nos rendido em dois ou três dias. Se tivessem feito isso, não teria acontecido aquela carnificina".
2022-10-01
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63069128
sociedade
As regras de ouro para educar as crianças, segundo o filósofo John Locke
"As mais leves ou efêmeras impressões na primeira infância podem ter consequências importantes e duradouras." Esta ideia é corroborada pela maioria dos psicólogos e educadores atuais, mas a citação é do livro Some Thoughts Concerning Education ("Alguns Pensamentos sobre a Educação", Ed. Almedina, 2012), escrito no final do século 17 por John Locke (1632-1704), um dos filósofos britânicos mais influentes de todos os tempos. A obra, elaborada em resposta a um amigo aristocrata que perguntou ao autor como deveria educar seus filhos, atingiu sucesso significativo desde o momento da sua publicação, em 1693. De fato, ela chegou a tornar-se o manual de referência para a formação dos menores, especialmente no contexto anglo-saxão. Quando um bom amigo e jovem pai me perguntou recentemente sobre algum livro útil para a educação das crianças, pensei nesta obra de Locke. Embora a bibliografia contemporânea sobre psicologia infantil e ciência educativa seja cada vez maior, preferi optar por uma obra clássica, ligada à tradição humanística e filosófica. Parece ser especialmente oportuno revisitar os valores da formação clássica em ciências humanas, nesta época em que muitos questionam sua utilidade na educação ou sua importância para o desenvolvimento pessoal e profissional. Fim do Matérias recomendadas Muitos pais delegam a atenção dos seus filhos aos smartphones, dispositivos tecnológicos, plataformas móveis e jogos digitais, seja por comodidade ou por falta de tempo ou de recursos alternativos. Por outro lado, o uso descontrolado das tecnologias desde pouca idade pode causar dependência. Já se estuda até a utilidade que teriam os robôs projetados especificamente para dar atenção aos filhos, em tempos em que os dois pais trabalham e os bons cuidadores são raros e caros. Já outros concebem um universo desumanizado, no qual a inteligência artificial pode suprir a mão de obra dos progenitores, professores ou tutores. De minha parte, penso que a tecnologia fornece um universo fabuloso de recursos para personalizar e potencializar o aprendizado de crianças e adultos. Mas também continuo confiante nos enormes benefícios das ciências humanas e na tradição clássica na educação. Para explicar a transcendência da educação na infância, Locke apresenta dois princípios fundamentais. Em primeiro lugar, a educação dos filhos é fundamentalmente competência dos pais. Por conveniência ou comodidade, ela pode ser delegada a outros familiares (sobretudo avós ou tios), aos professores ou até ao Estado, mas a responsabilidade final recai sobre os progenitores. Esta abordagem é especialmente relevante na nossa época. Existe atualmente, na maioria dos casos, a possibilidade de planejar o crescimento familiar e a decisão de ter filhos geralmente é consequência de um planejamento racional e consensual. Por outro lado, na sua função de proteger o direito básico à educação, o Estado e as diferentes administrações públicas têm a obrigação de atender e assistir os pais nesta função. Considerando a importância dos primeiros anos para moldar a personalidade, fixar valores e desenvolver capacidades, o Estado, especialmente nos países desenvolvidos, deveria investir em creches gratuitas de boa qualidade. O aprendizado de outros idiomas, por exemplo, é muito mais rápido e acessível entre os mais jovens, bem como o desenvolvimento da apreciação do conhecimento ou das características básicas que formam o caráter. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O segundo postulado lockiano destaca que a educação é o melhor investimento que se pode fazer nos filhos — mais do que os bens materiais que possam ser transferidos para eles. Locke se refere expressamente ao alto custo dos bons professores. A literatura e a vida fornecem exemplos de como alguns pais se esforçam para criar impérios econômicos para que seus filhos herdem e ampliem, achando que esta é a melhor contribuição que pode ser feita para eles. Como um dos filósofos que mais defenderam a propriedade privada como um dos direitos básicos a serem respeitados pelos governos, Locke não questionaria a relevância das heranças e doações familiares. Mas ele também é consciente do valor da educação sobre outras possibilidades, incluindo os bens materiais. "A diferença dos modos e das capacidades das pessoas deve-se à educação, mais do que a qualquer outro fator." Nós somos o que adquirimos com a educação. Locke rejeita que a nossa maneira de ser e o nosso comportamento sejam inatos — hoje se diria genético — ou consequência exclusiva do ambiente onde nascemos ou dos bens recebidos. Ele explica que, quando nascemos, somos uma folha em branco, onde tudo o que se escreve ainda está por vir. Esta ideia reflete o planejamento central do empirismo, que defende que a única fonte do conhecimento humano é a experiência e que toda proposição deve ser submetida às informações fornecidas pelos nossos sentidos e vivências. Locke é um dos expoentes desta corrente filosófica, ao lado de George Berkeley (1685-1753) e David Hume (1711-1776). Esta filosofia terá enorme influência posterior no desenvolvimento da filosofia analítica e do positivismo, tão arraigados no ambiente anglo-saxão e no pensamento atual. Por outro lado, Locke explica que a educação dos filhos não consiste simplesmente em dedicar tempo ou prestar atenção. Ele critica duramente o excesso de complacência como origem da má formação do caráter e a criação de pessoas mimadas e caprichosas. Usando uma analogia clássica, muito pertinente a este caso, o filósofo explica que a educação dos filhos assemelha-se à travessia entre os monstros marinhos Cila e Caríbdis, narrada por Homero na Odisseia. Na época de Ulisses, somente marinheiros habilidosos conseguiam manter o rumo entre dois obstáculos simultâneos: o redemoinho criado por Caríbdis, que tragava os navios, e o rochedo representado por Cila. Os pais, por sua parte, devem manter o equilíbrio entre o carinho e a disciplina. Locke explica que muitos pais cometem o erro de tentar ser "amiguinhos" dos seus filhos na infância e na juventude. Mas os pais só podem estabelecer essa relação com seus filhos na idade adulta, quando existe raciocínio e se entende o valor da amizade. A condenação de Locke sobre o castigo físico como solução para corrigir as falhas das crianças chama a atenção em um contexto histórico em que essa prática era frequente (e continuou sendo exercida até poucas décadas atrás). Ele só admite o emprego de castigo físico em casos extremos de obstinação. Em vez de empregar castigos e recompensas — o chicote e a cenoura —, o filósofo explica que é preferível recorrer ao elogio em público quando se realiza uma boa ação ou se demonstram os méritos pessoais e à repreensão em particular, quando as crianças agirem mal — e, às vezes, um simples olhar é suficiente. Esta recomendação é interessante e eu a indico também na relação profissional com os adultos. Locke é pioneiro em muitos outros aspectos da educação de crianças e jovens. Os primeiros capítulos do livro antecipam, por exemplo, as atuais teorias de bem-estar. Partindo da máxima do poeta da Roma antiga Juvenal, mens sana in corpore sano (mente sã em corpo são), Locke apresenta diversas recomendações relativas à necessidade do esporte, das atividades ao ar livre e de uma dieta equilibrada. É interessante a defesa que ele faz da natação, como prática que desenvolve o corpo e a personalidade. Locke menciona a expressão usada pelos romanos para descrever as pessoas mal educadas: nec literas nec natare (não têm cultura, nem sabem nadar). Ele também propôs práticas de preparação das crianças para adquirir resistência física, incluindo banhos frios e evitar agasalhos em excesso. Sua influência posterior é clara: atualmente, a proposta de combinar exercícios físicos e desenvolvimento intelectual faz parte do ideário de quase todas as instituições educativas. Já a abordagem de Locke sobre a nutrição reflete seu aprendizado de medicina na Universidade de Oxford, no Reino Unido — seus conhecimentos sobre os benefícios do consumo de certos alimentos ou da adoção de hábitos de vida saudáveis são abordados ao longo do livro. Locke sugere comer moderadamente, mastigar bem os alimentos, evitar o excesso de carne e praticar o jejum com frequência. "Os romanos jejuavam até o jantar", afirma ele. É especialmente interessante a defesa apresentada por Locke do aprendizado de um ofício ou profissão, compatível com o estudo das ciências humanas e das artes liberais, considerando especialmente que ele dirige suas recomendações a um aristocrata que vivia de renda. Neste ponto, Locke é o precursor do modelo de estudos adotado séculos depois por muitas universidades, que combina o estudo de disciplinas gerais com a especialização destinada à entrada no mercado de trabalho após a graduação. De forma geral, Locke segue a tradição clássica concentrada na educação das crianças e jovens para o desenvolvimento de virtudes ou hábitos. Novamente, as virtudes não são qualidades inatas, mas sim adquiridas. Para o aprendizado das virtudes, Locke sugere usar exemplos. "As crianças agem imitando os demais", explica ele. E, especificamente, seguindo o exemplo dos pais. "Todos nós somos uma espécie de camaleão." Na hora de escolher um livro de leitura para crianças, especialmente para as crianças pequenas, Locke recomenda as Fábulas de Esopo. Mantenho a recomendação, além da leitura de outros autores posteriores ao pensador britânico que constituíram leitura muito educativa para muitos de nós, como os contos de Hans Christian Andersen. Em resumo, Locke escreveu um manual clássico e moderno sobre educação infantil, muito recomendável para os pais. O conhecimento, a intuição e a sabedoria de Locke são surpreendentes, já que ele nunca se casou, nem teve filhos. Um pensador moderno, original e relevante. * Santiago Iñiguez de Onzoño é presidente da Universidade IE, da Espanha.
2022-09-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63089478
sociedade
Como neofascismo avança na Itália e pode impactar restante da Europa
Em 28 de outubro de 1922, os "camisas negras" de Benito Mussolini marcharam sobre Roma, abrindo o caminho para o regime fascista na Itália. Um século depois, pela primeira vez depois da Segunda Guerra Mundial, o partido mais votado na Itália tem suas raízes fincadas no fascismo e recuperou o lema que popularizou o "Duce", como Mussolini era conhecido: "Deus, pátria e família". Giorgia Meloni, a grande vencedora das eleições italianas de domingo (25/09), conseguiu levar seu partido Irmãos da Itália das margens para o centro político em apenas uma década - e, inexoravelmente, ao Palácio Chigi, sede do Executivo italiano. Afinal, espera-se que o presidente da Itália, Sergio Mattarella, encarregue Meloni de formar um governo nas próximas semanas. Após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha levou a cabo um processo de "desnazificação" e um doloroso ajuste de contas com seu passado. Mas a Itália decidiu olhar para o outro lado. Naquela época, o Partido Comunista italiano era o maior de toda a Europa ocidental. E os aliados, já mergulhados na dinâmica da Guerra Fria, tinham um objetivo principal: impedir que os comunistas chegassem ao poder. Fim do Matérias recomendadas O medo que o combate aos antigos fascistas pudesse gerar instabilidade política fez com que as potências aliadas fizessem vista grossa à criação de novos partidos herdeiros do "Duce" e suas ideias. Além disso, muitos símbolos e monumentos fascistas continuaram - e continuam, até hoje - presentes nas ruas italianas, como os símbolos do fascismo que ainda adornam muitas tampas de esgoto em Roma. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com isso, surgiu em 1946 o Movimento Social Italiano (MSI), fundado por Giorgio Almirante, que foi chefe de gabinete do último Ministério da Propaganda fascista. Meloni nunca escondeu sua admiração por Almirante. Em 2018, ela publicou uma montagem fotográfica intitulada "De Giorgio a Giorgia", mostrando um ao lado do outro, com slogans idênticos: "Podemos olhar nos seus olhos". Em 2020, quando se completaram 32 anos da morte de Almirante, a atual vencedora das eleições italianas o homenageou no Twitter, dizendo que foi "um grande homem, um grande político, um patriota". Com a queda do bloco comunista, surgiram novos partidos de direita. Um deles, o Força Itália (liderado pelo multimilionário Silvio Berlusconi), incluiu o MSI, então liderado por Gianfranco Fini, na sua coalizão de governo em 1994. Foi assim que o pós-fascismo entrou no governo e, ante os olhos dos italianos, "deu a ele respeitabilidade", segundo Luciano Cheles, da Universidade de Grenoble, na França. O MSI passou a chamar-se Aliança Nacional e a jovem Giorgia Meloni, militante do partido desde os 15 anos de idade, tornou-se líder da sua juventude. É deste processo que nasceu o partido Irmãos da Itália. "Eles mudaram muitos princípios, alteraram alguns aspectos, mas são, é claro, um partido de direita que tem suas raízes no movimento pós-fascista", afirma Lorenzo Pregliasco, professor de Ciências Políticas da Universidade de Bolonha, na Itália. Já Cheles argumenta que as origens do partido estão intimamente ligadas aos partidos neofascistas, mas Irmãos da Itália e Giorgia Meloni enfrentam um desafio. "De um lado, eles querem apresentar uma imagem respeitável, de moderação e modernidade. Por isso, eles disseram que cortaram o cordão umbilical com o fascismo. Mas, por outro lado, eles não querem perder uma parte do eleitorado que acredita que uma forma moderna do fascismo ainda é válida e aceitável", explica Cheles. Essas raízes estão presentes em toda a simbologia do partido. A mais evidente é a chama tricolor, o símbolo do Movimento Social Italiano que foi mantido pelo partido Irmãos da Itália. E a Frente Nacional, da França, também adotou a mesma chama (ainda que com as cores da bandeira francesa). Mais estilizada, ela também está presente na Reagrupação Nacional francesa de Marine Le Pen. "Mas, na sua propaganda, existem muitas outras referências ao fascismo, algumas mais ou menos escondidas porque se destinam a ser compreendidas pelos fascistas e pelas pessoas familiarizadas com a sua simbologia", segundo Cheles, que é especialista em iconografia política. Um dos exemplos encontrados pelo professor é o próprio hino da juventude da Aliança Nacional, dirigida por Meloni por vários anos. "Trata-se da canção 'O Amanhã me Pertence', cantada por um jovem nazista no filme 'Cabaret', de Bob Fosse (1972). Ela continua sendo um símbolo que aparece em grande parte da propaganda de Giorgia Meloni." O próprio Giorgio Almirante, que Meloni tanto admira, é outro exemplo: todas as edições do boletim do partido Irmãos da Itália trazem a sua foto, que também se encontra na página web da agremiação, segundo Cheles. O partido Irmãos da Itália tem suas raízes no pós-fascismo, mas o que conserva daquela filosofia? O famoso semiólogo, filósofo e escritor italiano Umberto Eco defendia que o fascismo "não tinha essência" e que Mussolini não tinha uma filosofia específica, mas que "só tinha retórica". Eco afirmou em um discurso em 1995 que o fascismo "era um totalitarismo confuso, um mosaico de diferentes ideias políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições". Portanto, não havia uma filosofia específica por trás do fascismo, mas, "emocionalmente, fixava-se firmemente a certos cimentos arquetípicos", como o culto à tradição, o medo das diferenças, o populismo seletivo e o machismo. O partido Irmãos da Itália conserva algumas dessas raízes culturais, segundo explica à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, a jornalista italiana Annalisa Camilli, que trabalha para o semanário Internazionale. Ela afirma que "eles têm um forte discurso contra a imigração e contra os direitos das mulheres, são contrários ao aborto e querem aumentar a taxa de natalidade da Itália, que é a mais baixa da Europa. Neste sentido, são muito tradicionalistas, daí o seu lema: Deus, pátria e família". Mas Camilli ressalta que "eles se libertaram desse passado. Agora, são um partido moderno de extrema-direita, mais parecido com outros partidos como a Reagrupação Nacional, de Marine Le Pen, Vox na Espanha ou o partido de Viktor Orbán, na Hungria." "Eles procuram um consenso em torno de certos pilares, como a luta contra a imigração ilegal, a promoção de uma identidade nacional e as políticas de apoio à natalidade", afirma a jornalista. Como ocorre com tantos outros líderes de ultradireita, desde Orbán até o republicanismo de Donald Trump nos Estados Unidos, a ideologia de Meloni ataca a "esquerda globalista", os supostos "lobbies LGBT" e fala de como a "imigração massiva" acabará substituindo os italianos "de toda a vida", ou seja, os brancos e cristãos, de forma alinhada com a "grande substituição" do polêmico escritor francês Renaud Camus. "O neofascismo não traz necessariamente camisas negras", segundo Cheles. "O fascismo hoje tem uma forma mais sutil. É uma forma de autoritarismo cujos elementos resumem-se a não respeitar as diferenças, nem as minorias, e que mantém atitudes intolerantes contra certos grupos de pessoas." Annalisa Camilli indica que, em um país como a Itália, "o fascismo é endêmico. De alguma forma, 100 anos depois, as testemunhas já morreram e a memória que ficou não é suficientemente forte para evitá-lo." E a base eleitoral ficou muito mais instável. Se existe algo que os italianos demonstraram nos últimos anos, é que eles sempre votam pela mudança. Sucessivos governos italianos geraram insatisfação entre os cidadãos e o populismo parece ter chegado para ficar. "O Movimento 5 Estrelas já preparou esse terreno, garantindo que não havia diferença entre a esquerda e a direita, que tudo era corrupção", destaca Camilli. Esse discurso de indignação contra as castas e as elites, contra os partidos tradicionais e a política clientelista que muitos italianos rejeitam, é o mesmo defendido pelos populistas do Movimento 5 Estrelas e que agora foi adotado por Giorgia Meloni e pelo partido Irmãos da Itália. A coalizão de extrema-direita alimentou-se das "classes trabalhadoras que perderam suas economias com a inflação e da classe média que fica cada vez mais pobre, prometendo uma 'nova era'", explica Camilli. E, há 100 anos, o fascismo também prometia "uma nova era", um novo começo. Para Luciano Cheles, o auge dos partidos de extrema-direita em toda a Europa, como os Democratas da Suécia, Vox na Espanha, Lei e Justiça na Polônia e a Hungria de Orbán - que o Parlamento Europeu declarou recentemente que não pode ser considerada uma democracia plena - tem uma mesma origem: o aumento da imigração. "Essas ideias neofascistas vêm sendo introduzidas com este tipo de argumentos, que dizem que a Itália e outros países não podem permitir a entrada de tantos estrangeiros", afirma o professor. Em Bruxelas, a Comissão Europeia garante que irá trabalhar com qualquer governo que saia das urnas, mas a preocupação é real. Tanto o Irmãos da Itália quanto a Liga - partido do senador Matteo Salvini que faz parte da coalizão de extrema-direita - conduziram forte retórica "eurocética", embora com algumas diferenças. Meloni moderou seu discurso nos últimos meses. Ela afirmou que não quer que a Itália saia da União Europeia, nem de organizações como a Otan. Sobre a Guerra na Ucrânia, Meloni apoiou a decisão do primeiro-ministro Mario Draghi de enviar armas para Kiev. Mas a postura dos seus sócios de coalizão apresenta oposição frontal a Bruxelas. Salvini tem estreitas relações com a Rússia e seu partido está sob suspeita de ter recebido financiamento de Moscou. Já o terceiro "sócio" da coalizão, Silvio Berlusconi, também é amigo íntimo de Vladimir Putin e recentemente justificou a invasão da Ucrânia pela Rússia. Mas, além da guerra, o que realmente preocupa a União Europeia é a possibilidade de que a Itália, país fundador do bloco e sua terceira maior economia, torne-se outra Hungria ou Polônia, colocando em risco seus valores fundamentais. "Existem preocupações em nível internacional", reconhece Lorenzo Pregliasco, que também é diretor da revista digital YouTrend, especializada em jornalismo de dados. "Mas acredito que a democracia italiana é mais forte do que parece e, é claro, mais forte do que era em 1922."
2022-09-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63079395
sociedade
O fenômeno que está 'esvaziando' as grandes cidades da Coreia do Sul
A capital sul-coreana, Seul, encarnou por décadas o espírito de progresso e desenvolvimento do país. A megalópole é uma das mais ricas capitais do mundo e o epicentro de indústrias tecnológicas poderosas e inovadoras que conquistaram o mundo. O magnetismo de Seul faz com que somente a sua área metropolitana abrigue quase 25 milhões de habitantes - praticamente a metade da população da Coreia do Sul. Mas um número crescente de sul-coreanos vem se dedicando a uma nova aventura: o kwichon. "Kwichon significa literalmente 'retorno ao rural'", segundo explica Su Min Hwang, editora do Serviço Coreano da BBC. Fim do Matérias recomendadas Nas últiumas décadas, o governo da Coreia do Sul observou com preocupação o despovoamento das zonas rurais, com pessoas se mudando cada vez mais para a capital e sua área metropolitana. Por isso, diversas medidas foram tomadas para motivar as pessoas a voltar para o campo. Mas aparentemente o kwichon vive agora seu grande momento, com um número recorde de jovens sul-coreanos migrando para a zona rural. Em 2021, a jornalista Julie Yoonnyung Lee, do Serviço Coreano da BBC, visitou a pequena cidade de Suncheon, na província de Jeolla do Sul. Lá, ela conheceu Yun Sihu, de 11 anos, e sua mãe Oh Sujung. Na porta de casa, havia uma grande plantação de batatas, milho, berinjelas, pimentões e alface. Mas Lee conta que, pouco tempo atrás, a vida delas era muito diferente. Sihu e sua família moravam no nono andar de um edifício de 19 andares em uma zona de tráfego intenso. Mesmo antes dos confinamentos causados pela pandemia de covid-19, Sihu e seu irmão já haviam inventado uma forma de jogar baseball dentro do apartamento, devido à falta de espaço ao ar livre. Desde que a família se mudou para Suncheon, os arranha-céus da cidade foi substituídos por montanhas, o ruído do tráfego pelo cacarejar das galinhas e o apartamento minúsculo da família, por uma casa de madeira e tijolos com o tradicional teto curvado. "Agora, coloco um pé para fora de casa e todo o terreno é um espaço de jogos. Rego os pimentões, as berinjelas e as alfaces todos os dias", conta Sihu. Com mais da metade da população do país vivendo na região metropolitana de Seul, muitas pessoas recearam que a covid-19 pudesse se alastrar rapidamente pelos blocos de apartamentos densamente ocupados da capital. Assim que o vírus chegou, as escolas foram fechadas. Para Sihu, o isolamento foi forte demais. Sua saúde mental ficou debilitada ao ficar presa no aprendizado online, sem poder encontrar seus amigos. Vê-la assim, para sua mãe, era devastador. Ela então aproveitou a oportunidade para colocar em ação uma ideia com que ela sonhava havia anos: deixar a cidade em busca de uma vida nova no campo. E outras centenas de milhares de sul-coreanos estão fazendo o mesmo. Voltar para o campo e para a agricultura é uma tendência que vem ganhando força nos últimos anos, devido ao impacto da pandemia e à necessidade de buscar estilos de vida alternativos. Uma pesquisa realizada em 2021 pelo Escritório Nacional de Estatísticas e pelo Ministério da Agricultura, Alimentos e Questões Rurais da Coreia do Sul indicou que 515.434 pessoas abandonaram Seul naquele ano e se mudaram para vilarejos de agricultores ou pescadores - 4,2% a mais que no ano anterior. Especificamente com relação aos jovens, 235.904 pessoas com menos de 30 anos de idade se mudaram para a zona rural. Elas representam 45,8% do total e este é o maior número já registrado no país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Recentemente, muitos jovens de Seul encerraram suas carreiras e, descontentes com seu trabalho e suas perspectivas, decidiram se mudar para tentar a sorte no campo. E parece que muitos estão gostando", explica Ramón Pacheco Pardo, professor de relações internacionais e especialista em assuntos coreanos e do leste asiático do King's College de Londres. O descontentamento com o trabalho se une a outros motivos de reclamações de moradores de outras grandes cidades do mundo, como os altos preços da moradia, o estresse urbano e a forte competitividade. A Coreia do Sul tem uma das taxas de suicídio mais altas do mundo. Estatísticas do governo indicam que esta é a maior causa de mortalidade entre jovens e adolescentes. Psicólogos atribuem esses níveis de depressão e suicídio à intensa pressão imposta aos jovens para que tenham sucesso acadêmico. Mas cada vez mais jovens consideram esse sucesso inalcançável, pois o excesso de estudos e o ritmo da cidade consomem suas energias, sem oferecer a recompensa esperada. Na segunda metade do século 20, a Coreia do Sul passou por décadas de progresso e crescimento econômico acelerado. Por muitos anos, antes da divisão entre Coreia do Norte e do Sul na década de 1940 e da Guerra da Coreia entre 1950 e 1953, a grande maioria dos coreanos se dedicava à agricultura. Mas, a partir dos anos 1960, começou uma migração maciça do campo para a cidade - em grande parte, para fugir da pobreza. Essa explosão urbana foi um dos grandes fatores para o crescimento econômico e a criação de riqueza e oportunidades. Ocorre que , hoje em dia, muitos jovens enfrentam uma série de obstáculos para aproveitar essas oportunidades, em comparação com as gerações passadas. Neste contexto, não é de se estranhar que famílias com adolescentes, como Sihu, e outros jovens profissionais abandonem seu trabalho e experimentem a vida rural, retornando ao ambiente tradicional de muitos coreanos no passado. Diversos governos sul-coreanos tentaram buscar uma forma de solucionar o desequilíbrio populacional e econômico entre a região metropolitana de Seul e a zona rural. Por décadas, a escassez de investimentos em setores como a agricultura e a pesca deixou o campo sul-coreano em declínio econômico. "A zona rural estava ficando despovoada porque os jovens e, sobretudo, as mulheres se mudaram para a cidade em busca de oportunidades", segundo Pacheco. Aliado a isso, a Coreia do Sul possui uma das taxas de natalidade mais baixas do mundo, o que é um duro golpe para o ambiente rural. O êxodo rural foi se agravando até o ponto de ameaçar a segurança alimentar. Os agricultores eram idosos, em sua maioria, e muitos começaram a se aposentar ou morrer sem que houvesse jovens para substituí-los. Por isso, as autoridades oferecem facilidades para os cidadãos que querem se mudar para o campo. "O governo incentiva treinamentos e programas educativos sobre a vida no campo. Existem programas para aprender a colher e alguns governos locais oferecem ajuda econômica e acesso à moradia", afirma Pacheco Pardo. Apoios indiretos, como maior investimento em infraestrutura, também vêm impulsionando o bom momento do kwichon. "Em um país pequeno, a possibilidade de transporte barato graças à nova infraestrutura ajuda mais pessoas a realizarem essa mudança de vida", afirma o professor. O aumento do kwichon é um fenômeno relativamente recente. Por isso, parece que ainda é cedo para avaliar seus efeitos e os resultados da ajuda do governo. Mas alguns avanços já começam a surgir. Antes da pandemia, por exemplo, muitas escolas rurais estavam a ponto de fechar. E, durante uma visita a Suncheon em 2021, a BBC entrevistou a professora da escola de Sihu, Shin Youngmi. Ela havia lecionado anteriormente na região metropolitana de Seul. Depois da sua experiência no campo, Shin acredita que as escolas rurais podem oferecer uma oportunidade real aos coreanos para enfrentar os altos níveis de estresse e depressão dos jovens. Em 2021, graças em parte aos subsídios oferecidos às famílias dispostas a se mudar de Seul, a escola de Sihu recebeu sete novos alunos - e a professora Shin afirma que toda a comunidade se beneficiou com seus novos moradores. Resta saber se as jovens gerações de migrantes rurais decidirão permanecer em meio à natureza ou se serão atraídas de volta à agitação da cidade grande. * Com reportagem adicional de Julie Yoonnyung Lee, do Serviço Coreano da BBC.
2022-09-28
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63033739
sociedade
Como era a vida das mulheres no Irã antes da Revolução Islâmica
"Vi muitas fotos da minha avó usando véu ao lado da minha mãe com minissaia, as duas vivendo em harmonia, antes da revolução." Quem recorda é Rana Rahimpour, apresentadora iraniano-britânica do Serviço Persa da BBC. E esse tipo de lembrança não se restringe à sua família. No Irã, antes da Revolução Islâmica de 1979, não existia o rigoroso código de vestimenta que atualmente obriga as mulheres, por lei, a usar véu e roupas "islâmicas" modestas. "O Irã era um país liberal. As mulheres podiam usar a roupa que quisessem", conta Rahimpour. Seu testemunho é importante, principalmente depois dos protestos que vêm ocorrendo em dezenas de cidades iranianas, após a recente morte de uma jovem de 22 anos que havia sido detida pela "polícia da moralidade", encarregada de fazer cumprir o código de vestimenta islâmico. Fim do Matérias recomendadas Rahimpour nasceu depois da revolução, mas a experiência dos seus pais e familiares, aliada ao seu trabalho jornalístico, permitiu a ela aprofundar-se na transformação vivida pelo seu país após a queda do xá Mohamed Reza Pahlevi em 1979. Essa transformação, em seus primeiros anos, foi além das roupas, como conta a jornalista iraniana Feranak Amidi, repórter de assuntos das mulheres na região do Oriente Próximo do Serviço Mundial da BBC. "Nós não tínhamos segregação de gênero antes da revolução", segundo Amidi. "Mas, depois de 1979, as escolas foram segregadas e os homens e mulheres sem parentesco entre si eram presos se fossem surpreendidos socializando-se." "Quando era adolescente no Irã, a polícia da moralidade me prendeu porque eu estava em uma pizzaria com um grupo de amigos e amigas", ela conta. "Antes de 1979, havia discotecas e locais de entretenimento. Éramos livres para nos socializarmos como quiséssemos." Os filmes de antes da revolução também são o testemunho de uma época em que as mulheres podiam optar por vestir roupas ocidentais ou mais conservadoras. "Você via variedade na forma de vestir-se. Algumas mulheres usavam o véu negro ou xador, mas não da forma exigida pelo governo atual", afirma Amidi. Antes da revolução de 1979, o Irã era governado pela dinastia Pahlevi, que subiu ao poder após um golpe de Estado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 1926, o líder do golpe, Reza Khan, foi coroado Reza Xá Pahlevi. Seu filho, Mohamed Reza Pahlevi, foi proclamado príncipe herdeiro e viria a tornar-se o último xá em 1941. Em um artigo de 1997, o think tank (centro de pesquisa e debates) norte-americano Wilson Center reproduziu uma entrevista com Haleh Esfandiari, autora do livro Reconstructed Lives: Women and Iran's Islamic Revolution ("Vidas reconstruídas: as mulheres e a Revolução Islâmica do Irã", em tradução livre). Esfandiari saiu do Irã em 1978 e regressou 14 anos depois para pesquisar o impacto da revolução sobre as mulheres. Nessa entrevista, a jornalista contou que "o movimento de mulheres no Irã começou no final do século 19, quando elas saíram às ruas durante a revolução constitucional". Depois disso, muitas delas iniciaram projetos sociais, como abrir escolas para meninas e publicar revistas para mulheres. Essa rede começou na capital, Teerã, começou a espalhar-se para outras províncias e levou ao "desenvolvimento do movimento das mulheres". As roupas das mulheres foram incluídas na agenda da liderança do país no início do século 20. "O véu só foi abolido oficialmente no Irã em 1936, na era do Reza Xá Pahlevi, o pai do Irã moderno", conta Esfandiari. Anos antes, o líder havia incentivado as mulheres a não usar o véu em público ou "usar um cachecol no lugar do véu longo tradicional". "Quando o véu foi finalmente abolido oficialmente, sem dúvida, foi uma vitória para as mulheres — mas também uma tragédia, pois foi extinto seu direito à escolha, como ocorreu quando o véu foi oficialmente reintroduzido em 1979, durante a República Islâmica", explica ela. Com isso, "muitas mulheres se viram obrigadas a abandonar o véu e sair à rua sentindo-se humilhadas e expostas", segundo Esfandiari. Mas, mesmo assim, ela reconhece que o pai do último xá realizou mudanças que tiveram impacto positivo sobre as mulheres. Em 1941, o filho do Reza Xá, Mohamed Reza, assumiu o poder. E, durante seu reinado, ele "começou a modernização do país", segundo Amidi. Este processo ficou conhecido como a Revolução Branca, que concedeu às mulheres o direito ao voto em 1963 e os mesmos direitos políticos dos homens. O novo xá também tratou de ampliar o acesso à educação nas províncias periféricas. E, em seu reinado, foi aprovada a lei de proteção à família em diferentes áreas, incluindo o casamento e o divórcio. Amidi explica que a legislação expandiu os direitos das mulheres: "a lei de proteção à família aumentou a idade mínima para o casamento das meninas, de 13 para 18 anos, e também concedeu às mulheres mais influência para pedir o divórcio". A lei estabeleceu ainda que os homens só poderiam ter uma esposa. "Tudo isso foi muito progressista em comparação com outros países da região", afirma Amidi. Ocorre que o xá era autocrata, mas era um líder progressista e gostava da cultura ocidental. Por isso, ele formou um programa de secularização. Durante o governo do xá Mohamed Reza Pahlevi, as mulheres chegaram a ocupar posições de poder. "Tivemos mulheres ministras e juízas", relembra Rahimpour. Mas, mesmo com as promessas da Revolução Branca, "as mulheres ainda estavam confinadas aos papéis tradicionais", segundo Amidi. Embora "houvesse mulheres no Parlamento", ela considera que "as mulheres não tinham grande participação na esfera política. Mas precisamos levar em conta que isso foi há quase meio século e as mulheres de todo o mundo, naquele período, não tinham muito poder político." Mas Amidi reconhece que suas compatriotas estavam começando a desempenhar um papel cada vez mais social: "elas tinham presença vibrante na sociedade". Amidi destaca o "grande impacto" que teve a imperatriz Farah Pahlevi, esposa do xá Mohamed Reza Pahlevi, nas artes e na cultura. De fato, há um estudo de Maryam Ekhtiar e Julia Rooney, do Departamento de Arte Islâmica do Museu Metropolitano de Arte de Nova York, nos Estados Unidos, que aborda "o florescimento artístico do Irã", iniciado nos anos 1950 e que durou até os anos 1970. Segundo o estudo, "essas décadas presenciaram a abertura do Irã à cena artística internacional". Grande parte desse crescimento da atividade artística deveu-se à prosperidade econômica que vivia o país. O Irã tinha muito petróleo, mas a ampla maioria dos iranianos não se beneficiava dessa riqueza. Apesar do apoio do xá e sua esposa ao campo das artes, os artistas não ignoravam essa realidade, nem a repressão do regime contra seus opositores. As autoras do estudo indicam que a ilustradora Nahid Hagigat "foi uma das poucas artistas a expressar as preocupações das mulheres durante os anos que antecederam a revolução. Nas suas gravuras, ela capturou o sentimento de tensão e medo em uma sociedade dominada por homens sob o escrutínio do governo." Em 1971, Mohamed Reza Pahlevi — que havia se autodeclarado shahanshah, o "Rei dos Reis" — não só era um dos homens mais ricos do mundo, mas também o líder absoluto do Irã. Seu regime era cada vez mais repressivo contra os dissidentes políticos. "No regime anterior [à revolução], as pessoas tinham liberdades sociais, mas nenhuma liberdade política", relembra Rahimpour. "Foi um grande problema. Todos os partidos eram controlados pelo rei, era uma sociedade vigiada, não havia liberdade de imprensa e qualquer tipo de ativismo político poderia terminar em cadeia", segundo ela. O descontentamento social tomou as ruas e, em 1978, houve imensos protestos contra o regime do xá. Esfandiari explica que o progresso conseguido pelas mulheres durante o seu reinado se desestabilizou no final do regime. "Em reação aos elementos tradicionalistas cada vez mais expressos na sociedade, o xá retirou drasticamente seu apoio à maior participação das mulheres nos cargos de tomada de decisões", segundo ela. A Revolução Islâmica foi apoiada por muitos iranianos que "não eram necessariamente religiosos", afirma Rahimpour. Muitos só clamavam por uma "verdadeira democracia": "ela contou com o apoio de todos os grupos, liberais, comunistas e religiosos". As mulheres, independentemente do que quisessem vestir ou do seu grau de religiosidade, foram parte dessa força que acabou provocando a queda do xá em 1979. "Nas passeatas que levaram à revolução, havia mulheres profissionais sem cachecol e mulheres de origens conservadoras com o véu negro tradicional; havia mulheres de famílias de classe baixa e média com seus filhos", segundo Esfandiari. "Todas essas mulheres caminharam ombro a ombro, esperando que a revolução trouxesse melhorias para a sua posição econômica e social. E, sobretudo, melhorias para seu status legal", afirma ela. Amidi não acredita que as mulheres "se sentissem necessariamente mais independentes" antes da Revolução Islâmica. "O Irã ainda era uma sociedade religiosa muito conservadora", segundo ela. "Mas, naquela época, havia vontade política para romper esses moldes tradicionais e conservadores, permitindo que as mulheres florescessem e ocupassem mais espaços na sociedade." Amidi esclarece que esse florescimento nunca chegou a ocorrer completamente. Já para Rahimpour, existem ideias opostas sobre a sensação de independência e empoderamento das mulheres iranianas antes da Revolução Islâmica. "As mulheres religiosas diriam que se sentiam mais cômodas na hora de sair depois da revolução, mas as mulheres liberais não estariam de acordo", segundo ela. "É preciso não esquecer que uma parte da sociedade iraniana é muito religiosa", acrescenta Rahimpour. E, por isso, existem mulheres que estão de acordo com alguns aspectos do sistema. Observando fotos de arquivo de mulheres no Irã com roupas ocidentais e sem véu, uma senhora iraniana comentava que essas imagens não são representativas da vida das mulheres em geral antes da revolução. Muitas mulheres de diferentes idades preferiam usar o jihab ou véu e roupas mais conservadoras porque "a sociedade possivelmente era muito mais conservadora e religiosa em comparação com a atual", segundo ela. Muitos iranianos participaram da revolução com a ideia de ter liberdade, mas Rahimpour afirma que suas ilusões foram rapidamente frustradas. "Depois da revolução, percebemos que muitas pessoas religiosas sentiam-se incomodadas com as minissaias e as liberdades que tinham homens e mulheres", afirma ela. "Por isso, também estiveram de acordo com a revolução." Mas ela conta que muitas pessoas "profundamente religiosas" no Irã acreditam que usar o véu "precisa ser uma escolha. Deixa de ser religião quando é obrigatório." O Irã vive uma onda de protestos em todo o país após a morte, em custódia policial, de uma mulher de 22 anos, supostamente por não cumprir com as regras do hijab. As autoridades afirmam que Mahsa Amini morreu por problemas de saúde pré-existentes, mas sua família e muitos iranianos acreditam que ela tenha morrido depois de ter sido agredida. Os protestos parecem ser o desafio mais sério enfrentado pelos líderes iranianos nos últimos anos — e um novo capítulo no histórico de mobilizações populares no Irã.
2022-09-27
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63038853
sociedade
São Vicente de Paulo: quem foi o prisioneiro de piratas que se tornou patrono da caridade
De lares para idosos — tradicionalmente chamados de "asilos" — a abrigos para orfãos, passando por creches e outras instituições, não são poucos os equipamentos assistenciais no país batizados em homenagem a São Vicente de Paulo (1581-1660). O religioso que empresta seu nome a tantas obras de beneficência foi um padre nascido no interior na França, na região dos Pirineus, que acabou muito conhecido por seu empenho nos trabalhos sociais. Canonizado em 1737 pelo papa Clemente 12 (1652-1740), ele recebeu o título de patrono de todas as obras de caridade da Igreja Católica — honraria concedida pelo papa Leão 13 (1810-1903), em 1885. São Vicente é celebrado no dia 27 de setembro, data de sua morte. Conforme explica o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará, esse reconhecimento dado ao religioso por meio de homenagens nos nomes das instituições assistenciais é em decorrência da biografia do mesmo. "Por causa de seu acolhimento a todos os necessitados, muito especialmente aos idosos que eram largados nas ruas", frisa ele. Fim do Matérias recomendadas Esse ímpeto em atuar em prol dos mais pobres teria acontecido depois de um episódio importante em sua vida, já como sacerdote. "Ele atuava como missionário, anunciando o evangelho e pregando entre camponeses pobres. Em determinado momento, ele presenciou o morte de um camponês e foi quando percebeu que havia uma carência na sacramentalização da Igreja, pois nem todos morriam recebendo os cuidados devidos", contextualiza o estudioso de hagiologias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos. "Isso marcou uma reviravolta no pensamento de Vicente e mudou a forma como ele enxergaria o apostolado", acrescenta. A partir desse momento, já na segunda metade da década de 1610, o padre francês começou a reunir confrarias e diversos grupos de assistência. Em 1617, fundou a Damas da Caridade, hoje Associação Internacional de Caridades. No mesmo ano, criou as Confrarias da Caridade. Oito anos mais tarde, fundou a Congregação da Missão. Em 1633, a Filhas da Caridade. Maerki ressalta que, com essas organizações, Vicente de Paulo buscava soluções para dois pontos importantes no contexto francês da época. De um lado, as obras de caridade e o atendimento aos fiéis. De outro, a formação do clero — e para isso, sua intelectualidade era ferramenta basilar. "Essas duas ideias são os pilares que construíram sua santidade", pontua. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Havia uma carência de formação teórica e moral do clero. E ele entendia que os padres deveriam ser bem formados para poderem guiar o povo de Deus", comenta o pesquisador. "São Vicente se preocupou muito com isso. E ao longo de 60 anos de trabalhos, foi um evangelizador incansável, com uma atividade apostólica muito intensa." Durante seu pontificado, papa João Paulo 2º (1920-2005) definiu São Vicente como "homem de ação e de oração, de organização e de imaginação, de comando e de humildade, homem de ontem e de hoje". E afirmou que o religioso havia sido um camponês "convertido pela graça de Deus em gênio da caridade". Há uma famosa frase atribuída ao santo que sintetiza bem sua trajetória. "Não me basta amar a Deus se eu não amo o meu próximo. Os pobres são meu peso e minha dor", teria afirmado ele. Maerki analisa uma inovação vicentina, no contexto da época, a formação de um clero voltado às atividades mais pastorais. "Segundo a concepção da escola francesa de formação de padres, o sacerdote deveria em primeiro lugar estar ligado ao altar, celebrando missas, dedicando-se aos ritos e a aspectos próprios da Igreja", compara. "São Vicente propôs a interpretação de que, na verdade, o padre é um 'homem para os outros', alguém que deveria se doar para os necessitados. Este é um elemento fulcral dos ensinamentos dele." Nascido em uma pobre família de camponeses no ano de 1581, Vicente de Paulo teve uma infância em que se destacou pela inteligência. Decidiu se tornar padre, muito provavelmente, em busca de uma estabilidade de vida que não encontraria de outra forma, dadas as dificuldades de ascensão social. "Naquele início de século 17, o Estado eclesiástico significava uma espécie de afirmação social. Ser padre era questão de status", pontua Maerki. Foi ordenado com apenas 19 anos, o que indica, conforme explica Lira, que tenha havido alguma "autorização da Santa Sé, por conta da idade mínima". Sua facilidade de aprendizado e seu afinco aos estudos devem ter sido utilizados para fundamentar tal processo. Contudo, nunca negou suas origens humildes. "Ele se autodenominava 'porqueiro e andrajoso'", diz o pesquisador Maerki. Em 1605, foi surpreendido com uma herança. Uma viúva que admirava seu trabalho como pregador morreu e deixou a ele uma propriedade em Marselha, acreditando que Vicente saberia administrar tudo em favor dos pobres. Ele precisou viajar até lá por conta do inventário e, na volta, acabou vítima de uma emboscada. Piratas turcos o sequestraram, levaram-no a Túnis, onde ele foi escravizado. Foi vendido primeiro a um pescador, depois a um químico. Quando este morreu, acabou sendo obrigado a servir o sobrinho dele — que acabou vendendo-o para um fazendeiro. Ali sua sorte mudaria. O fazendeiro era um ex-católico, que havia se convertido ao islamismo com medo de ser perseguido. Vicente fazia os trabalhos que lhe ordenavam e, durante a labuta, costumava entoar cânticos religiosos cristãos. Uma das três esposas do fazendeiro encantou-se com isso e foi procurar saber o que era. Quando soube, teria dito ao marido. E este, recordando-se de seu passado como cristão, decidiu ajudar o escravizado. Planejaram o retorno do religioso à França — e o próprio fazendeiro teria se convertido novamente ao cristianismo. Cruzaram o Mediterrâneo juntos e se estabeleceram em Avignon. Vicente assumiu novamente suas funções como padre, estudou direito canônico e se tornou monge. Destacado por seu trabalho, acabou caindo nas graças até do rei francês, Henrique 4º. (1553-1610), que chegou a incumbi-lo como portador de documentos que precisava remeter ao papa, entre outras tarefas. Como agradecimento, Vicente foi nomeado capelão da rainha e tinha a prerrogativa de atuar como esmoleiro e cuidador de pobres e doentes em nome da coroa. "Para ele, a caridade era algo essencial. Ele poderia ter se tornado um bispo, com o prestígio que tinha, destacado na vida social e religiosa francesa", pontua Lira. "Mas preferiu servir aos menos favorecidos. Por isso ele fundou entidades religiosas masculina e feminina, para fazer caridade. Levava fé, conforto e apoio aos que mais necessitavam. Isso o fez um santo tão perfeito e mesmo mais de 360 anos de sua morte ainda é lembrado, reverenciado, amado." Em um momento marcado por conflitos religiosos mesmo dentro do cristianismo, com o advento de religiões protestantes e a perda da hegemonia da Igreja Católica, Vicente de Paulo preferia a conciliação. "Era um homem de consciência religiosa e humana extraordinárias", diz Maerki. "Ele não entrava nos embates com protestantes, preferia não entrar nesse tipo de debate, não alimentar polêmicas." Quando morreu, em 27 de setembro de 1660, já era reverenciado como um homem santo. Nas palavras do religioso Francisco de Sales (1567-1622), que o conheceu pessoalmente, aquele era "o homem mais santo do século". Vicente de Paulo foi sepultado em Paris. Seus restos mortais estão em uma capela que leva seu nome. Em fevereiro deste ano, em um trabalho idealizado por José Luís Lira e executado pelo designer brasileiro Cicero Moraes a partir de estudos de oito especialistas em medicina forense, teve seu rosto reconstituído de forma realista e tridimensional. Conforme conta Lira, tudo começou em 2015, quando em uma pesquisa de rotina para um artigo científico ele encontrou fotos do crânio do santo, "tomadas no reconhecimento de suas relíquias, em 1960". "Então pensei na possibilidade da reconstrução facial", relata. "Busquei o amigo Cicero Moraes, um dos maiores especialistas em reconstrução facial, e perguntei se aquelas imagens seriam suficientes." Moraes tem uma carreira marcada por trabalhos do tipo. Já reconstituiu faces de dezenas de personalidades, de Santo Antônio de Pádua (1195-1231) a dom Pedro 1º. (1798-1834). Para o uso das imagens, Lira solicitou autorização de padre Gregory George Gay, superior geral da congregação vicentina, e obteve os negativos das fotos, que estão sob a guarda da Universidade DePaul, em Chicago, nos Estados Unidos. "O resultado da reconstrução foi apresentado ao mundo em fevereiro deste ano, na Catedral da Diocese de Crato, no Ceará", relata. "Vimos, na imagem, o olhar, o envelhecimento, não presente nas imagens não-contemporâneas à morte do santo, que se deu aos 79 anos. A reconstrução está com essa idade e características." Lira destaca alguns aspectos da fisionomia de Vicente, principalmente a boca. "Seus dentes superiores eram mais para dentro que o normal e o queixo, mais avantajado. Havia uma retrusão e isso não ficou claro nas imagens anteriores. Eu fiquei muito feliz com o resultado e até refleti que Deus busca é a beleza interior."
2022-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62975709
sociedade
Os dois lados do voto útil, que pode definir eleição no 1º turno
Abrir mão de votar no seu candidato preferido e optar por outro para evitar um segundo turno — essa é uma definição possível para o "voto útil", termo que tem estado cada vez mais presente no debate político nesta reta final das eleições para presidente. "Em uma disputa como a que vemos agora, em determinado momento, o eleitor começa a decidir não quem ele quer que ganhe, mas quem ele quer que não ganhe — ele elenca quem representa o maior mal para ele. Então, ele abandona uma opção que havia feito, em um candidato no qual acreditava, mas que percebe que não vai ganhar, e vota com a expectativa de anular outro candidato", explica o cientista político Carlos Melo, professor do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa). Com Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e Jair Bolsonaro (PL) liderando as intenções de voto nas últimas pesquisas eleitorais, feitas por institutos como Ipec, DataFolha e Quaest, o apelo crescente pelo voto útil tem vindo principalmente dos eleitores do petista, que tentam convencer, por exemplo, o eleitorado de Ciro Gomes (PDT) a mudar de escolha para que um segundo turno com o candidato da direita não aconteça. Segundo pesquisa Datafolha divulgada na última quinta-feira (22/09), não é possível afirmar se a eleição será ou não decidida no primeiro turno. O levantamento mostra que o ex-presidente Lula tem 47% das intenções de voto no primeiro turno da eleição presidencial, seguido por Bolsonaro, com 33%. O terceiro mais bem cotado é Ciro, com 7%. Simone Tebet (MDB) ficou em quarto lugar, com 5%. Fim do Matérias recomendadas "Nas eleições de 2018, Ciro Gomes pedia o voto útil, e chegou a crescer bastante na reta final", lembra Melo. "Ele dizia que não tinha resistência tão grande quanto o PT, que enfrentava uma onda de desaprovação, e que seria capaz de vencer Jair Bolsonaro. Mas neste ano, o jogo se inverteu, e agora ele usa argumentos contra o voto útil." O professor explica que um dos argumentos usados em oposição ao voto útil é a ideia de que o apelo não seria democrático. "Na minha visão, isso não é verdade, porque a decisão final ainda é do eleitor. Ninguém pode votar pelo outro. Agora, é legítimo pedir o voto útil? Considero que faz parte do jogo." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outra questão levantada por quem defende o voto ideológico e está fiel a seu candidato de escolha é o possível enfraquecimento da corrente de ideias desse político caso o seu percentual de votos não seja representativo. Seria, na visão do grupo, uma forma de fazer com o que o presidente eleito, quem quer que seja, olhe para as pautas daquele que foi derrotado. Para Eduardo Miranda, doutor em ciência política e professor da Escola de Educação e Humanidades da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), o argumento faz sentido. "Essa é exatamente a ideia que permeia a criação de um segundo turno eleitoral — para que no primeiro, todos os candidatos tenham a chance de lançar suas ideias em um país tão complexo e enorme quanto o Brasil. O segundo turno seria o momento de alinhar parcerias com as ideias que foram apresentadas no primeiro e consolidar as alianças que vão sustentar o governo." A professora Maria do Socorro Braga, que leciona Ciência Política na UFSCar, também enxerga o movimento como positivo. "O eleitorado brasileiro foi, por muito tempo, avaliado como um grupo que não cria vinculações programáticas no sentido de identidade partidária ou de ideologias, e hoje o que a gente está observando é que existem grupos mais fiéis e de diferentes correntes, o que é de extrema importância para a democracia." Braga avalia que o maior grupo consistente em adotar uma determinada ala política é o que apoia o ex-presidente Lula, uma construção de identificação com o eleitorado que vem de anos de campanhas políticas e do PT no poder. "Mas existe também eleitores que não deixam de apoiar Jair Bolsonaro por nada, e em menor escala, os 'ciristas', que escolhem fazer o contrário do voto útil: é um setor que prefere apoiar as ideias programáticas do candidato [sem considerar as pesquisas eleitorais]." Já entre os argumentos dos que lutam para converter votos de candidatos com menos chances ao pleito em voto útil, está o de que um voto em Ciro Gomes ou Simone Tebet, por exemplo, que têm menos chances de ganhar as eleições, seria "jogar o voto no lixo''. "Se olharmos para as teorias da ciência política, o argumento da escolha racional talvez explique melhor o que está acontecendo. A interpretação da teoria seria a leitura de que somos ambiciosos, então queremos aproveitar o máximo possível o nosso voto, e assim dá-lo a alguém que é capaz de vencer a eleição. Então a tendência seria, nessa eleição tão apertada, deixar de votar em quem tem menos chance", aponta Braga. Na avaliação dos especialistas, uma eventual vitória de Lula no primeiro turno daria a Bolsonaro menos razões para gerar dúvidas sobre as urnas, já que a escolha do presidente aconteceria junto com a eleição de milhares de parlamentares pelo país, enquanto em um eventual segundo turno, a decisão seria apenas entre dois candidatos — com exceção de algumas das disputas estaduais. "Mas, ainda mais forte do que isso, acho que está relacionado aos posicionamentos do atual presidente, que não só desclassifica as urnas, que são reconhecidas internacionalmente e que foram ferramenta presente em toda sua carreira política, mas o processo democrático como um todo", avalia Eduardo Miranda, professor dá PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná). De acordo com os especialistas consultados pela BBC News Brasil, o voto útil tem o poder, nesta reta final, de definir as eleições. "Historicamente, o voto útil teve um papel importante, mas de coadjuvante, ajudando mais os candidatos que estavam em segundo lugar, como nas eleições de 1989, no qual Lula ultrapassou (Leonel) Brizola e ficou em segundo lugar, mas perdeu para Fernando Collor, e de 2014, quando Marina (Silva) perdeu parte do seu eleitorado para Aécio Neves. Agora, pela primeira vez, o voto útil pode ajudar a determinar as eleições em primeiro turno." Um dos fatores que ajudam o voto útil a ganhar importância, na visão do especialista, é o fato de ser uma disputa mais acirrada entre dois candidatos que já ocuparam a Presidência. "Essas candidaturas fortes fazem com que o primeiro turno seja quase como um desenho do segundo, já que eles são, desde o começo da eleição, os candidatos que todos apostavam que realmente disputariam o cargo." Na avaliação de Miranda, o ex-presidente Lula é quem tende a receber a vantagem dos possíveis votos úteis decididos a poucos dias das eleições, já que as pesquisas indicam que falta um percentual menor para que ele consiga vencer em primeiro turno. "Ele é quem consegue abocanhar a maior parte do eleitorado tanto de Ciro Gomes quanto de Simone Tebet, e por isso deve sair na frente de Bolsonaro na hora de conseguir esses votos."
2022-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62999026
sociedade
Mensagens pelo WhatsApp não bastam para conter solidão de idosos, diz especialista em ciência da felicidade
A pandemia da covid-19 levou governos em todo o mundo a adotarem medidas rígidas de restrição e isolamento social para evitar a disseminação da doença. Os idosos faziam parte do grupo de risco e passaram a ser evitados pela própria família e amigos para reduzir a chance de transmissão. Denize Savi, especialista em ciência da felicidade e coordenadora da organização Doe Sentimentos Positivos, disse que os idosos sofreram ainda mais na pandemia porque eles não adquiriram o hábito de lidar com as novas tecnologias de comunicação como os mais jovens. "Eles acabaram ficando isolados. Isso agravou a tristeza, aumentou muito o número de depressão e ansiedade. É preciso que a gente olhe para esse cenário com empatia, com cuidado, porque eles estão precisando de atenção, principalmente agora nesse pós-pandemia", afirmou a especialista. Denize diz que estudos recentes apontam que esse isolamento da população em geral pode refletir numa futura epidemia de saúde mental neste período pós-pandemia. E para evitar que doenças psicológicas atinjam a sociedade de maneira massificada, ela diz ser necessário criar uma rede de apoio em torno das pessoas, principalmente as mais vulneráveis, como os mais velhos. Fim do Matérias recomendadas "A família precisa se reaproximar dessas pessoas. Porque o contato físico é extremamente importante, fundamental", diz. Outra orientação da psicóloga é evitar enviar notícias ruins para os mais velhos. "Às vezes, por exemplo, você soube que uma pessoa do seu convívio, mais de idade, faleceu (...) [É necessário] minimizar essas questões. Realmente levar notícias boas e trazer para a roda de conversa algo que seja frutífero, que vai deixar essa pessoa feliz", diz. Mas ela também dá um puxão de orelha nos idosos que não procuram a família. "Da mesma forma que os filhos e os netos precisam procurar os idosos para que haja esse convívio, os idosos também têm que fazer isso. Eles também têm que mandar um recadinho: 'Poxa, vamos fazer um almoço neste fim de semana?'", afirma a especialista. Quando nenhuma dessas técnicas resolver, os idosos, segundo ela, devem procurar alguma ocupação por conta própria. Algo, de preferência, que tenha um impacto social por meio da solidariedade. "Às vezes, a idosa tem um talento para tricô. Ela pode fazer blusinhas e casaquinhos para crianças de creches. O maior segredo de tudo não é saber o que tem que ser feito. É ter disciplina. Ter disciplina é o mais difícil. Isso vale para todas as idades, mas em especial para os idosos", diz Denize. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A psicóloga reforça que, segundo estudos, o contato exclusivamente telefônico ou via WhatsApp e redes sociais não é suficiente para aumentar a sensação de felicidade e bem-estar. "É o contato físico, o afeto, principalmente o abraço e o olho no olho e o carinho, que fazem com que o ser humano floresça para uma vida com mais bem-estar. Então não adianta o familiar ligar para saber como o pai ou a mãe está se ele não fizer uma visita presencial. É extremamente importante estar junto de verdade. Muitas vezes é muito difícil porque mora em cidades distantes, mas é necessário se organizar para, pelo menos em algum momento, estar junto. Porque isso é fundamental", afirma ela. Esse contato físico, segundo Denize, é essencial para evitar que os idosos fiquem doentes. "[Essa distância] pode levar a doenças como Alzheimer, Parkinson, depressão, ansiedade, esquizofrenia e tantas outras doenças mentais", diz a psicóloga. A especialista em ciência da felicidade diz que uma pesquisa desenvolvida pela Universidade de Harvard, que já dura mais de 80 anos, revelou que as pessoas que chegam na terceira idade com uma rede social pequena, com poucos amigos, têm uma tendência muito maior à depressão. "A solidão, cientificamente falando, nos deixa infelizes. Então, a gente precisa olhar para as nossas amizades como algo extremamente importante para o nosso bem estar. Desde cedo, a gente já precisa cultivar essas relações porque essa pesquisa mostra que uma vida feliz é uma vida compartilhada", diz. "Essa pesquisa inclusive mostra que as pessoas que têm mais ligações sociais, além de serem mais felizes, são mais saudáveis. Elas vivem mais. A gente percebe que entre as pessoas na terceira idade, sem amigos, a tendência é elas adoecerem e virem a óbito antes", afirmou a especialista. A psicóloga afirmou ainda que é importante que as pessoas ao redor desses idosos levem carinho e afeto para eles. Ela ressalta que também são necessárias políticas públicas para que os idosos que vivem sozinhos tenham espaços para interagir entre si. "O acolhimento é fundamental porque as pessoas deixam de sentir esse isolamento, essa solidão, e passam a sentir-se importantes. Então perceba que o contato físico, o encontro, promove isso." Além de ser insuficiente para evitar quadros de doenças mentais, mandar mensagens a idosos por meio de aplicativos pode causar ainda mais ansiedade neles. "O que a gente vê hoje é muita notícia negativa. Isso vai nos deixando cada vez mais preocupados, ansiosos e introspectivos. Precisamos promover o contrário. Falar de coisas que vão impulsionar esse reencontro entre as pessoas. Essa esperança de que as coisas estão mudando. O que acontece é que o ser humano tem uma tendência natural ao negativo." "O pesquisador americano Rick Hanson diz que o cérebro humano é teflon para o positivo e velcro para o negativo. E o que acontece quando a gente vê uma notícia ruim? Aquela notícia não fica na nossa mente apenas nos segundos que nós vemos na televisão ou no jornal. Ela reverbera durante todo o dia. E se a gente passa uma hora tendo só notícia ruim ou ao longo do dia, tendo contato com muitas notícias, a nossa visão de mundo vai ser totalmente negativa, o que vai nos deixando cada vez menos confiantes pela vida." Denize Savi afirma que devemos sim nos manter informados, mas que também é necessário se policiar para não se expor tanto a essa "tendência natural ao negativo". Entre as iniciativas, a psicóloga diz ser crucial a construção de espaços de convivência para os idosos. Ela defende que esses locais sirvam não só de pontos de encontro, mas que também ofereçam cursos profissionalizantes, aulas de dança e esportes. "Isso precisa ser retomado, porque teve uma pausa na pandemia e agora sim é um momento de chamado dessas pessoas. Muitos têm medo de sair porque a pandemia nos deixou muito inseguros. Isso é fundamental para que elas voltem a ter esse brilho pela vida", afirma. Depois da pandemia, a psicóloga diz que o combate à solidão tem sido um dos maiores desafios da psicologia. A psicóloga ressalta que cultivar amizades desde a infância é essencial para ter uma vida adulta mais feliz. "É a partir dessa convivência com outras crianças que ela vai aprender empatia, desenvolver a criatividade, o senso de responsabilidade e que ela vai saber o que é compartilhar, dividir, aprender e negociar", diz a psicóloga. Ela afirma ainda que a amizade colabora na adolescência com a construção da identidade e que nesse momento você começa a encontrar os maiores amigos. Essas companhias, segundo ela, são o alicerce da vida adulta na resolução de problemas. "Quando a gente compartilha os nossos problemas, eles ficam menores. Quando a gente é acolhido por um amigo, a gente ganha forças para encarar o dia a dia e os desafios. Muitas vezes você não se dá bem com as pessoas da sua família, mas você se dá bem com os seus amigos. Essa é a família que a gente escolhe, como diz o ditado popular."
2022-09-25
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62958723
sociedade
A 'ilusão do conhecimento' que deixa as pessoas com excesso de confiança
Se você se considera razoavelmente inteligente e instruído, talvez acredite que tenha uma boa compreensão das principais formas como o mundo funciona — conhecimento sobre as invenções conhecidas e os fenômenos naturais à nossa volta. Agora, pense no seguinte: como se forma um arco-íris? Por que os dias de Sol podem ser mais frios que os nublados? Como um helicóptero voa? Como funciona a descarga do vaso sanitário? Você consegue dar uma resposta detalhada a uma ou mais destas perguntas? Ou você tem apenas uma vaga ideia do que acontece em cada uma destas situações? Se você for como grande parte das pessoas que participaram de estudos psicológicos sobre este tema, sua primeira impressão pode ser de que se sairia muito bem. Mas, quando se pede uma resposta detalhada para cada questão, a maioria das pessoas fica totalmente desorientada — como você também pode ter ficado. Fim do Matérias recomendadas Este fenômeno é chamado de "ilusão do conhecimento". Você pode achar que estes exemplos específicos são triviais — afinal, são o tipo de pergunta que uma criança curiosa pode fazer, e a pior consequência poderia ser ficar com o rosto corado na frente da família. Mas as ilusões de conhecimento podem prejudicar nosso julgamento em muitos campos. No ambiente de trabalho, por exemplo, podem nos levar a superestimar nosso conhecimento em uma entrevista, menosprezar as contribuições dos nossos colegas e assumir tarefas que somos totalmente incapazes de realizar. Muitos de nós atravessamos a vida totalmente alheios a essa arrogância intelectual e suas consequências. A boa notícia é que alguns psicólogos indicam que pode haver formas extraordinariamente simples de evitar essa obscura armadilha do pensamento. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A ilusão do conhecimento — também chamada de "ilusão da profundidade de explicação" — foi mencionada pela primeira vez em 2002. Em uma série de estudos inéditos, os pesquisadores Leonid Rozenblit e Frank Keil, da Universidade Yale, nos Estados Unidos, começaram fornecendo aos participantes exemplos de explicações de fenômenos científicos e mecanismos tecnológicos que foram avaliados em uma escala de 1 (muito vagos) a 7 (muito completos). Este método permitiu que todos os participantes formassem o mesmo conceito do que significava a compreensão "vaga" ou "completa" de um tema. Em seguida, veio o teste. Quando confrontados com outras questões técnicas e científicas, os participantes precisavam avaliar o quanto eles achavam que poderiam responder a cada uma delas, usando aquela mesma escala, antes de escrever sua explicação da forma mais detalhada possível. Rozenblit e Keil descobriram que as avaliações iniciais dos participantes sobre sua própria compreensão eram, muitas vezes, dramaticamente otimistas. Eles acreditavam que poderiam escrever parágrafos inteiros sobre cada assunto, mas muitas vezes forneciam respostas mínimas — e, depois, muitos ficavam surpresos com o pouco que sabiam sobre os temas questionados. Os pesquisadores suspeitavam que o excesso de confiança era consequência da capacidade dos participantes de visualizar os conceitos em questão. Não é difícil imaginar o voo de um helicóptero, por exemplo. E a facilidade com que essa imagem vem à mente leva os participantes a sentir mais confiança para explicar a mecânica dos seus movimentos. Desde este estudo original, diversos psicólogos vêm desvendando ilusões de conhecimento em vários contextos diferentes. O professor de marketing Matthew Fisher, da Universidade Metodista do Sul, no Texas, Estados Unidos, por exemplo, descobriu que muitos universitários formados superestimam amplamente o alcance da sua formação depois que terminam seus estudos. Da mesma forma que no primeiro experimento, solicitou-se aos participantes que avaliassem sua compreensão sobre diferentes conceitos antes que fornecessem explicações detalhadas do seu significado. Mas, desta vez, as questões vieram da matéria que eles próprios haviam estudado anos antes. Uma pessoa formada em Física, por exemplo, precisaria explicar as leis da termodinâmica. Devido ao desgaste natural das suas memórias, os participantes pareciam ter esquecido muitos detalhes importantes, mas não haviam percebido o quanto de conhecimento haviam perdido — o que os levava a ser excessivamente confiantes nas suas previsões iniciais. Ao julgarem seu conhecimento, eles acreditavam que detinham o mesmo nível de informação de quando estavam totalmente mergulhados no assunto. Outras pesquisas demonstraram que a disponibilidade de recursos online pode alimentar nosso excesso de confiança, uma vez que nós confundimos a quantidade de conhecimento disponível na internet com nossas próprias memórias. Fisher pediu para um grupo de participantes responder perguntas — "como funciona um zíper?", por exemplo — com o auxílio de uma ferramenta de busca, enquanto outro grupo foi simplesmente solicitado a avaliar sua compreensão do tema sem usar fontes adicionais. Em seguida, os dois grupos foram submetidos ao teste original de ilusão do conhecimento sobre quatro questões adicionais ("como se formam os tornados?" e "por que as noites nubladas são mais quentes?", por exemplo). Fisher concluiu que as pessoas que haviam usado a internet para responder a pergunta inicial demonstraram maior excesso de confiança na tarefa seguinte. Mas a consequência mais séria talvez seja que a maioria de nós superestima o quanto aprende observando os demais. Isso resulta na "ilusão da aquisição de habilidades". Michael Kardas, que cursa pós-doutorado em administração e marketing na Northwestern University, nos EUA, pediu aos participantes de um estudo para assistirem a vídeos repetidos sobre diversas técnicas, como lançar dardos ou fazer o passo de dança moonwalk, até 20 vezes. Em seguida, eles precisaram estimar suas habilidades, antes de tentar realizar a tarefa sozinhos. A maioria dos participantes acreditou que a simples observação, ao assistir aos vídeos, os teria ajudado a aprender as técnicas. E, quanto mais eles assistiam, maior era sua confiança inicial. Mas a realidade foi uma grande decepção. "As pessoas acreditavam que se sairiam melhor se assistissem ao vídeo 20 vezes, em comparação com assistir apenas uma", afirma Kardas. "Mas seu desempenho real não demonstrou nenhuma evidência de aprendizado." E, surpreendentemente, a observação passiva pode até aumentar a confiança das pessoas em sua capacidade de realizar tarefas complexas de vida ou morte, como pousar um avião. Kayla Jordan, estudante de doutorado da Universidade de Waikato, na Nova Zelândia, liderou um estudo inspirado diretamente na pesquisa de Kardas. "Nós quisemos testar os limites do fenômeno e se ele poderia ser aplicado a técnicas altamente especializadas", diz Jordan. Ela explica que pilotar exige centenas de horas de treinamento e profundo conhecimento de física, meteorologia e engenharia, que as pessoas são incapazes de aprender em um vídeo curto. A primeira instrução para os participantes foi: "Imagine que você está em um avião de pequeno porte. Há uma emergência, o piloto está indisponível, e você é a única pessoa que pode fazer o avião pousar." Metade dos participantes assistiu a um vídeo de quatro minutos de um piloto aterrissando um avião, e os demais não viram o vídeo. Mas o vídeo não mostrava nem sequer o que as mãos do piloto estavam fazendo durante o procedimento — e, portanto, não tinha nenhuma serventia como instrução. Mas muitas das pessoas que assistiram ao vídeo ficaram muito mais otimistas sobre sua capacidade de fazer pousar um avião com segurança. "Elas tinham cerca de 30% mais confiança, em comparação com as pessoas que não assistiram àquele vídeo", afirma Jordan. Essas ilusões de conhecimento podem trazer consequências significativas. O excesso de confiança no próprio conhecimento pode fazer com que você se prepare menos para uma entrevista ou apresentação, por exemplo, deixando você constrangido quando é pressionado a demonstrar seus conhecimentos. O excesso de confiança pode ser um problema específico quando você busca uma promoção. Ao observar as pessoas à distância, você pode acreditar que já sabe o que é preciso para o trabalho e que já aprendeu todas as técnicas necessárias. Mas, ao iniciar o trabalho, você pode descobrir que precisava saber muito mais do que parecia. A ilusão do conhecimento também pode nos levar a menosprezar nossos colegas. Da mesma forma que confundimos o conhecimento obtido pelo Google com o nosso próprio, podemos não perceber o quanto dependemos do conhecimento e da capacidade das pessoas à nossa volta. "Ao observar as habilidades e a base de conhecimento dos demais, as pessoas às vezes podem acreditar erroneamente que elas são uma extensão do conhecimento delas próprias", afirma Jordan. E, se começarmos a acreditar que o conhecimento dos colegas é nosso, podemos ficar menos dispostos a lembrar e demonstrar gratidão por suas contribuições — uma forma de arrogância muito comum no ambiente de trabalho. E superestimar nosso conhecimento, esquecendo o apoio que recebemos dos demais, também pode criar sérios problemas quando tentarmos seguir sozinhos, com um projeto solo. O que as pessoas podem fazer para evitar essas armadilhas? Uma solução é simples: teste a si próprio. Se você estiver avaliando sua capacidade de realizar uma tarefa que não é familiar, por exemplo, não confie apenas em uma ideia vaga e resumida do que essa tarefa envolveria. Em vez disso, analise com mais tempo e cuidado as etapas que você precisaria realizar para atingir esse objetivo. Você pode concluir que há enormes lacunas de conhecimento que você precisará preencher antes de começar o trabalho. E, ainda melhor, você pode consultar um especialista no tema e perguntar o que ele está fazendo — uma conversa que servirá para analisar qualquer pressuposto arrogante de sua parte. Como as muletas tecnológicas têm o potencial de amplificar a confiança no seu conhecimento, você também pode verificar seus hábitos online. Fisher sugere que você faça uma breve pausa e tente ao máximo se lembrar de um fato antes de recorrer a uma busca na internet. Ao reconhecer conscientemente que "deu branco", você pode começar a avaliar de forma mais realista a sua memória e os seus limites. "É preciso ter a disposição de se sentir desorientado", diz ele. "Você precisa sentir sua ignorância, o que pode ser desconfortável." O objetivo de tudo isso é cultivar um pouco mais de humildade — uma das "virtudes intelectuais" clássicas celebradas pelos filósofos. Ao reconhecer nossas ilusões de conhecimento e admitir os limites da nossa compreensão, todos nós podemos evitar as inconvenientes armadilhas do pensamento. E podemos pensar e tomar decisões com mais sabedoria.
2022-09-25
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-62985145
sociedade
O que é a ditadura da felicidade e como podemos escapar dela
Foi em um daqueles momentos obscuros em que as coisas parecem não ir nada bem que o psicólogo espanhol David Salinas percebeu que estava cansado da imposição social de ter que estar sempre bem, especialmente quando boa parte do seu trabalho está relacionada ao bem-estar das pessoas. Dali surgiu a ideia de escrever o livro La Dictadura de la Felicidad ("A ditadura da felicidade", em tradução livre), que o levou a dizer: "estou triste... e me alegro com isso!" À primeira vista, alguém poderia descartar a ideia de ler um livro que defende a tese de que está certo "se alegrar por estar triste", ou de estar satisfeito por ter uma vida desafortunada. Mas o autor adverte, é claro, que o livro não segue esse caminho. O que ele critica é a "imposição" de ter que "ser feliz" a todo custo, no contexto de uma indústria da felicidade crescente que se potencializou com uma avalanche de livros de autoajuda, com receitas para alcançar esse suposto bem-estar permanente. Cansado de precisar "ser feliz" (uma construção mental que, a seu ver, é falsa, já que a felicidade não é um objetivo a ser alcançado, mas sim um estado transitório), Salinas, com 42 anos de idade, analisa suas experiências profissionais em seu consultório em Málaga, na Espanha, e aborda os principais mitos sobre a ideia da felicidade, nesta entrevista concedida à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC). Fim do Matérias recomendadas Ele acredita que, destruindo estes mitos, é possível desfrutar mais da vida. BBC: Você é um profissional que trabalha com a vertente da terapia cognitivo-comportamental. Por que você optou por este caminho e não pelas outras escolas existentes na psicologia para tratar seus pacientes? David Salinas: Porque é um tipo de terapia mais centralizado no passado, como a psicanálise. Eu tento ser eclético e acho que o que o trabalho desempenhado pelas outras escolas de terapia também é muito importante. Mas, às vezes, as pessoas vêm para a terapia procurando recursos, soluções e ajuda, em busca de ferramentas que permitam que elas enfrentem melhor o dia a dia. BBC: Com esse enfoque terapêutico, você também escreveu seu livro, A Ditadura da Felicidade. O que é essa ditadura? Salinas: Cada um pode entender a ditadura da felicidade como algo distinto. Eu entendo como uma imposição sociocultural, segundo a qual parece que é preciso sempre estar bem e não se permite que as pessoas fiquem mal. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E não é só isso. Não se trata apenas de precisar estar sempre bem, mas de precisar estar sempre procurando a felicidade. Com isso, é preciso estar sempre procurando um estímulo que nos dê felicidade. Por isso, as pessoas se sentem muito pressionadas e, paradoxalmente, quando uma pessoa se sente pressionada, ela não se sente feliz. Parece que vivemos em um mundo onde não é permitido se sentir mal. Se você se sente mal, parece que você fracassou como indivíduo. BBC: Mas, se olharmos de outra forma, as pessoas têm necessidade constante de se sentir melhor, é uma aspiração humana quase universal. Ou seja, não é só uma imposição externa. Antes desta entrevista, por exemplo, um colega me disse: "oh, não, outro escritor que vai dizer que não há problema em ser infeliz — chega, eu quero ser feliz!" Salinas: Sim, tenho recebido críticas como esta, mas a maioria dos comentários foi na direção oposta — pessoas que dizem: "pare de me dizer o que preciso fazer para me sentir feliz". Estamos cansados de mensagens positivas, da literatura que diz o que você precisa fazer para se sentir feliz. E o que conseguimos com isso é fazer com que as pessoas concentrem demais o foco em si mesmas e na busca do seu bem-estar. Mas, ao colocar o foco em si mesmo, você também vai percebendo suas carências, suas limitações, seus complexos e seus traumas, pois não podemos ser perfeitos. É normal ter tudo isso. É claro que eu também quero ser feliz, mas quero ser feliz com a consciência de que não vou alcançar a felicidade absoluta, nem uma felicidade que seja permanente, pois isso não existe. Nós compramos a mensagem de que, se seguirmos um determinado roteiro de vida, se seguirmos alguns conselhos, vamos alcançar a felicidade eterna. BBC: Você diz que esta ideia de felicidade é imposta. Por quem? Salinas: A felicidade virou um negócio. Livros, conferências e congressos observam a felicidade como um negócio. E acredito que não isso não é de todo ruim, porque, se são vendidas outras coisas menos importantes, por que não vender a felicidade? A questão é que não se deve enganar as pessoas, não se deve vender às pessoas um modelo de vida idealista que seja irreal. Você pode dizer às pessoas que está certo fazer coisas para se sentir bem e aprender a crescer como pessoa, mas nem tudo é baseado na felicidade. Tenho a certeza de que, para sermos felizes, precisamos aprender a ser infelizes, precisamos aprender a nos mover nos pântanos da infelicidade. Nem tudo é bonito, nem simples, mas não há problema. Se você se permitir ficar mal, ficar frustrado e ter incertezas, poderá se mover por esses pântanos da infelicidade e alcançar estados de felicidade. Porque a felicidade é isso, um estado. BBC: Você diz que, em alguns momentos, fica alegre por ser infeliz. Esta frase não pode parecer um contrassenso? Salinas: Isso me veio à cabeça em um momento de crise na minha vida — porque nós, psicólogos, também temos nossas crises, como todo mundo — em um momento em que eu não estava bem. Foi nesse momento que pensei: estou triste... e me alegro com isso! A verdade é que me senti muito bem, pois o que realmente estava dizendo para mim mesmo é que o meu estado de ânimo não constitui a minha identidade. Temos a tendência de construir nossa identidade em função das coisas que acontecem conosco e como nos sentimos com elas. Por isso, se estou triste, é porque sou infeliz. Se fracasso, é porque sou um perdedor. Isso é totalmente prejudicial. Eu posso fracassar e isso não significa que eu seja um fracassado. E, claro, eu posso me sentir mal e isso não significa que sou um infeliz. São simplesmente momentos ou etapas da vida e podemos superá-las. Para mim, a felicidade é um estado e, por isso, é transitória. É um estado de ânimo subjetivo, no qual a pessoa se sente mais ou menos feliz, conforme a avaliação que esteja fazendo da sua vida no momento. Por isso, a felicidade não é algo imutável e é importante ter isso em conta. Sentir-me triste em um momento não me torna uma pessoa infeliz. Isso me torna um ser humano e, como ser humano, também sinto infelicidade. BBC: Mas os pacientes vão ao seu consultório procurando bem-estar, buscando sentir-se mais felizes. O que você faz na sua consulta? Salinas: Depende de cada caso. Eu trabalho especialmente com problemas de ansiedade e depressão, mas existem pessoas que me procuram porque se sentem mal e querem se sentir melhor. Um dos mantras que melhor funciona com meus pacientes é que eles se permitam ficar mal. Às vezes, temos problemas de estresse e ficamos com medo do próprio medo, pois não nos permitimos sentir as emoções. Ficar nervoso, por exemplo, é normal, pois precisamos enfrentar desafios na nossa vida diária e ficamos nervosos. O mesmo acontece com a tristeza. Nós temos muita raiva da tristeza, como se ficar triste fosse para pessoas deprimidas, mas é algo humano. BBC: Mas, quando as pessoas aceitam que têm o direito de se sentir mal e que se sentir mal é humano, não se trata necessariamente de uma patologia. Que tipo de recursos você usa para que elas se sintam melhor? Salinas: Depende muito da pessoa. É muito importante, por exemplo, a questão de ter atividade, fazer exercício e movimentar-se. Às vezes, entramos muito na nossa mente e é preciso sair dela, perceber que também temos corpo e que é muito importante movimentar o corpo, devido ao impacto que isso tem sobre o sistema nervoso. A outra questão é socializar-se, falar, estar com outras pessoas, o que também é muito importante. E, dependendo do caso, também ensino técnicas de relaxamento, mindfulness [atenção plena] e como colocar total atenção no momento presente. Da mesma forma que é importante deixar espaço para sentir-se mal, também é importante gerar emoções como a alegria e buscar recursos que nos ajudem a sentir mais alegria. Eu também tento ajudar as pessoas a se sentir mais felizes, mas de forma que a pessoa se pergunte o que pode ajudá-la a se sentir melhor e o que ela pode fazer para lidar com o que a faz se sentir pior. Para falar de felicidade, é preciso também falar de infelicidade, ou seja, sobre o que fazemos com o lado obscuro da vida. Acredito que, quando damos tanta importância à felicidade, colocando a felicidade em um altar, estamos gerando muita frustração e muito sentimento de culpa. Eu digo aos meus pacientes que tirem da cabeça a ideia de que a felicidade é um objetivo que eles precisam alcançar, porque não funciona desta forma.
2022-09-25
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62922036
sociedade
Quem escreveu a Bíblia?
Para os católicos, são 73 livros. Para os protestantes, 66. A Igreja Ortodoxa considera 78. E os judeus apenas 39, da parte conhecida como Antigo Testamento pelos cristãos. Estamos falando do maior best-seller da história da humanidade, a Bíblia Sagrada, um compilado de textos com tradução para quase 3 mil idiomas — e, segundo estimativas da Sociedade Bíblica do Brasil, com mais de 3,9 bilhões de exemplares já vendidos no mundo. Mas quem foram os autores que escreveram esses textos? Considerando que são documentos muito antigos, anteriores inclusive à noção contemporânea de autoria, é difícil cravar com precisão. O ponto de partida para esta discussão é delimitar se o debate se restringirá a critérios religiosos ou partirá de princípios acadêmicos e científicos. "É uma temática bastante espinhosa porque há duas visões. Prevalece ainda uma visão até certo ponto romantizada porque temos um tipo de teologia que é muito eclesial, com a pessoa estudando teologia porque quer ser pastor dentro de uma determinada comunidade, uma visão tradicional", analisa o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Fim do Matérias recomendadas Segundo ele, a teologia voltada para o sacerdócio precisa "garantir que o texto é inspirado, ou seja, é dito pelo próprio Deus, através do Espírito Santo". "Por outro lado, uma teologia acadêmica não está preocupada com isso e procura analisar o aparecimento desses documentos dentro do tempo histórico", pontua. Neste sentido, podemos entender os primeiros livros da Bíblia, aqueles que compõem o chamado Pentateuco ou a Torá judaica, como um compilado de textos que começaram a ser escritos por volta de 1 mil anos antes da era Cristã. São eles: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio — os textos que narram desde a criação do mundo até a morte de Moisés. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pela tradição religiosa, estes cinco livros teriam sido escritos por um único homem, Moisés. "Lendo e interagindo com o [poeta e tradutor] Haroldo de Campos (1929-2003), eu aprendi que há duas abordagens possíveis. A da sinagoga diz que quem escreveu a Torá foi Moisés e ponto final. A gente trata como se estivesse 'ouvindo' Moisés toda semana [com as leituras], e isso tem um valor moral dentro da comunidade", afirma o estudioso José Luiz Goldfarb, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e diretor de cultura judaica do clube A Hebraica. O viés científico, contudo, descarta a ideia de uma autoria única para estes livros. "Do ponto de vista do estudo bíblico, estamos falando de mais de 600 anos de redação", contextualiza Goldfarb. "Esta é a conclusão de análises do próprio Haroldo em cima de pesquisas bíblicas, arqueológicas, filológicas e poéticas." Ele conta que uma análise minuciosa dos documentos permite agrupá-los pelo estilo, pelo vocabulário e pelas concepções em blocos associados a diferentes redatores em diferentes momentos históricos. É uma ideia bem aceita. "Sobre épocas e autores é muito complicado falar porque isso se perde no tempo. Investigações acadêmicas concluem que esses textos têm de 2,7 mil a 3 mil anos e, eventualmente, mais do que isso, já que eram transmitidos de maneira oral", diz o rabino Uri Lam, da congregação israelita Templo Beth-El, de São Paulo. Segundo ele, estes textos foram canonizados — ou seja, reunidos e considerados integrantes da Bíblia hebraica — por volta do século 4 a.C. "Mas mesmo aí há muitas discussões, e não dá para fechar o assunto", admite Lam. Goldfarb vê uma vantagem neste aspecto coletivo e tão extenso de sedimentação dos textos. "Se são 600 anos de escrita, isso é bom para quem gosta do mundo interpretativo. Quantas pessoas podem ter mexido no texto, criado pedaços em uma região, pedaços em outra?", indaga. Em um tempo em que a própria noção de autoria era completamente diferente, este mesmo padrão de dificuldade de legitimar quem realmente escreve prossegue nos demais livros da Bíblia hebraica — conjunto que forma o Antigo Testamento da versão cristã. "Por exemplo, os Salmos de Davi. É um livrinho que a gente usa muito nas orações diárias e traz os cânticos que Davi fazia no templo. Ele compunha, dizem que era músico e essas orações eram cantadas. Temos certeza? É uma boa pergunta: pelo que eu já estudei e li, eu não poria a mão no fogo…", afirma Goldfarb. "Evidentemente que foram vários os autores dos textos bíblicos", diz Moraes. "Muito provavelmente as histórias que hoje compõem o texto escrito, antes eram transmitidas de geração em geração de maneira oral. E aquilo permanecia como um tesouro cultural religioso daquele povo." "Precisamos ainda observar que a noção de autoria na Antiguidade não é a mesma que temos hoje em dia. Naquela época, era comum atribuir um texto a uma grande liderança, a um líder carismático, a uma pessoa muito importante. Isso acabaria dando relevância ao escrito", completa o professor. Neste sentido, seguidores de determinadas doutrinas, quando transformavam o conhecimento em documentos, costumavam sistematizá-los como se fossem algo escrito diretamente por seus mestres. "No caso da Torá, quer dizer que esses textos foram escritos por Moisés? Muito provavelmente não. Talvez ele tenha tido alguma participação. Alguns acreditam que não teve participação nenhuma", acrescenta Moraes. "Mas são textos atribuídos a Moisés." Para ele, a importância disso é que os textos sagrados acabariam assumindo um aspecto identitário das religiões. Moraes acredita que faz muito mais sentido que os livros sagrados tenham sido escritos, por exemplo, depois do estabelecimento do Estado de Israel do que durante os episódios ali narrados, como a fuga do povo hebreu do Egito, sob o comando de Moisés. "Imagina um grupo de pessoas perambulando pelo deserto. O que eles menos vão se preocupar é sentar para escrever. Quem está andando no deserto quer, na verdade, sobreviver. Em tantos anos, eles precisavam criar uma estrutura bélica para poder tomar a terra… Ninguém estava preocupado em ficar escrevendo texto", comenta. "Muito provavelmente isso só foi ocorrer depois do estabelecimento de uma sociedade mais organizada", diz o pesquisador. Mas eram ainda histórias soltas, de gêneros literários diversos, que depois acabaram sendo amarradas, costuradas, por um ou mais redatores. Estudioso de textos sagrados, Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos, é entusiasta da ideia de usar conhecimentos contemporâneos da literatura para procurar montar o quebra-cabeças dos documentos que compõem a Bíblia. Segundo ele, autores como o professor americano Robert Alter, que leciona na Universidade da Califórnia, "acerta em cheio" quando propõe "o emprego de certas ferramentas da teoria literária para analisar o texto bíblico". "Ele pensa na engenhosidade do texto, nas figuras de linguagem, nas variações do jogo de ideias, nas convenções que são usadas por cada gênero bíblico, por cada autor", afirma Maerki. "Sempre com a preocupação de não cometer anacronismos." A literatura também pode ser aplicada na análise dos evangelhos, os quatro livros que narram a vida de Jesus e são atribuídos a Mateus, Marcos, Lucas e João. Pesquisadora de história do cristianismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a vaticanista Mirticeli Medeiros defende que, sim, os autores foram mesmo esses quatro homens. "No caso dos Evangelhos, não se contesta [a autoria], pelo menos nos estudos recentes. Lembrando que dois de seus autores, Mateus e João, foram apóstolos de Jesus. Os outros dois, Marcos e Lucas, por sua vez, construíram a narrativa colhendo os testemunhos dos apóstolos", explica. Maerki vê diferenças estilísticas fundamentais nestes quatro textos. "Marcos é considerado um autor com estilo mais pedestre, com linguagem direta, mais simples. João tem uma linguagem complexa, mais figurada, cheia de simbolismos. Lucas tem uma linguagem mais aprimorada, mais sofisticada", ele pontua. Se no Antigo Testamento há mais interrogações do que certezas no campo das autorias, os textos do Novo Testamento, embora mais recentes e com "autorias" descritas na maior parte deles, também despertam questionamentos. É certo que todos esses textos começaram a ser produzidos cerca de 30 ou 40 anos após a morte de Jesus. Moraes diz que "muito provavelmente, todos esses nomes [dos quatro evangelistas] foram estabelecidos pela tradição". "Não há nos documentos mais antigos o título nem o nome do autor", ressalta. O que parece inquestionável é que o primeiro dos evangelhos é o de Marcos. "No momento em que há uma geração, aquela que acompanhou pessoalmente a vida de Jesus, morrendo, há a necessidade de preservar de maneira escrita o que aconteceu. Então ele começa um gênero literário novo que é o evangelho", explica. Coletando tradições e relatos orais, este evangelista sistematiza a narrativa de Jesus. Mas só usa a parte que naquele momento interessava: ou seja, não se preocupa em falar do nascimento ou da infância de Jesus; foca em sua missão, em sua morte, em sua mensagem de Páscoa. "Ele é muito objetivo e produz um evangelho muito enxuto", comenta Moraes. Quem era esse Marcos? O teólogo aponta para indícios de que era um seguidor do apóstolo Pedro. "Mas outros vão dizer que era discípulo de Paulo. De qualquer forma, o que sabemos é que não foi um apóstolo de Jesus, direto", observa. O evangelho de João também suscita dúvidas. Isto porque o texto fala em um "discípulo amado", e a tradição diz que este era João. "Mas há teólogos que afirmam que talvez seja Lázaro, porque no evangelho há uma pista [na narrativa da morte de Lázaro] que diz que Jesus chorou 'e veja como ele o amava'", afirma Moraes. Só no segundo século é que os cristãos passam a atribuir a autoria deste texto a João. "A tradição consagrou, e até hoje chamamos de João. Mas não é fácil saber quem escreveu, talvez até tenha sido uma obra coletiva", diz Moraes. Para o teólogo, o melhor é assumir a ideia de que se trata de "evangelhos segundo" cada um destes nomes, em vez de encará-los como autores, no sentido contemporâneo do termo. Mas se o assunto é o Novo Testamento, é preciso ressaltar o papel de Paulo, o apóstolo que escreveu diversas cartas para as primeiras comunidades cristãs. "As cartas de Paulo, como o nome já evidencia, [foram escritas] por Paulo e seguidores de Paulo. A carta a Timóteo, por exemplo, muito provavelmente é posterior a Paulo, por isso é considerada por alguns estudiosos como sendo deuteropaulina", afirma Medeiros. "Há, porém, controvérsias em relação às cartas atribuídas a Pedro que, ao que tudo indica, não foram escritas diretamente por ele. E a de Paulo aos Hebreus, que muito provavelmente foi completada por um de seus discípulos." Entende-se que Paulo tenha sido o primeiro a escrever sobre Jesus, a partir do ano 57 ou 58. "A grande questão é saber se ele tinha consciência de que estava escrevendo um texto sagrado. Provavelmente, não", avalia Moraes. "Ele estava usando de um recurso para se comunicar com igrejas e deixa suas epístolas. Algumas se perderam, algumas que hoje chamamos de suas epístolas podem ter sido escritas por discípulos dele, mas fazem parte de um círculo paulino." "Quando falamos das cartas de Pedro, muito provavelmente é do círculo petrino, até porque Pedro não sabia escrever, e ele deixa isso claro em sua [primeira] carta. Ele usa um redator para escrever. Provavelmente ditou a um auxiliar, chamado Silvano", explica o teólogo.
2022-09-25
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62962698
sociedade
O apelo a moral e bons costumes que torna notícias enganosas mais 'compartilháveis' na eleição
"Cidadãos de bem" versus "jihadistas", "patriotismo e decência" versus "perversão" e "princípios e valores" versus "declínio nacional". Expressões e palavras parecidas a essas, com forte cunho moral e apelo à identidade social do público, apareceram com frequência em 92 mil textos de língua inglesa analisados pelo pesquisador espanhol Carlos Carrasco-Farré. Em seguida, Carrasco-Farré comparou as palavras desses textos com as de 3 mil reportagens de veículos jornalísticos em inglês, como The New York Times, The Wall Street Journal, The Guardian e BBC. Fim do Matérias recomendadas Palavras e expressões com algum tipo de apelo à moralidade — "honra", "infidelidade", "patriotismo", "demônio" — apareceram 37% a mais nos textos classificados como desinformação do que nos jornalísticos convencionais. "Ou seja, eles tentam influenciar psicologicamente o usuário por intermédio de ideias que expressam um ataque à identidade social individual do leitor", conclui o estudo. Algo que, com base em pesquisas e observações empíricas, estudiosos dizem ocorrer também no Brasil, sobretudo em período eleitoral (leia mais abaixo). Embora o uso da moralidade como arma de desinformação já fosse conhecido, Carrasco-Farré diz que essa é a primeira vez que o emprego desse palavreado moral foi medido em tantos detalhes. "Isso foi o mais surpreendente da pesquisa, porque o apelo à moralidade é a variável [entre todas as estudadas] com mais diferença em relação às notícias reais, que têm de seguir um código deontológico [normas] e jornalístico", diz à BBC News Brasil Carrasco-Farré, atualmente professor na Toulouse Business School, na França. Classificar automaticamente textos falsos unicamente pelo tipo de palavreado tem limitações. Dalby Dienstbach, linguista da Escola de Comunicação, Mídia e Informação da FGV, lembra que a moralidade é um conceito relativo, e a própria escolha de quais palavras serão tratadas como "de cunho moral" exige um juízo de valor prévio, que pode gerar discordâncias. No estudo, Carrasco-Farré explica que usou como referência um dicionário acadêmico previamente empregado para mensurar discursos em assuntos polarizados nos EUA, como controle de armas, casamento homossexual e mudanças climáticas. Ele calculou quantas das palavras contidas no dicionário apareciam nos textos de desinformação e mediu sua frequência (número de palavras de cunho moral a cada 500 palavras de texto). Além da moralidade, ele mensurou a complexidade léxica dos textos e a evocação de emoções negativas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Dos 92 mil textos em inglês analisados, 16 mil eram especificamente "fake news" — ou seja, seu conteúdo era totalmente fabricado. Segundo os cálculos de Carrasco-Farré, esse conteúdo falso tinha 18 vezes mais ênfase em emoções negativas do que as notícias veiculadas pela grande imprensa. Soma-se a isso o fato de que eram mais fáceis de ler, porque tinham menos diversidade léxica — ou seja, menos palavras difíceis. Com isso e uma estrutura gramatical mais simples, eles exigiam, em geral, menos esforço cognitivo do leitor. Essas características dão à desinformação vantagens competitivas para serem mais compartilhadas nas redes sociais do que as notícias com padrões jornalísticos, explica Carrasco-Farré. "Em geral, conteúdo que evoca emoções intensas é mais viral, o que explica por que redes sociais são uma fonte de contágio emocional em grande escala", escreve. Ao ler ou assistir ao conteúdo com forte carga moral, o leitor que acredita no discurso de desinformação conclui que seu grupo social está sob ataque, aponta o pesquisador. "Isso cria uma espécie de conflito, na maioria das vezes falso, de que alguém externo está atacando o grupo ao qual você pertence, e portanto atacando você pessoalmente", explica ele à BBC News Brasil. Algumas das palavras encontradas em grande volume pelo pesquisador espanhol — como "decência", "cidadão de bem", "perversão" — são vistas diariamente pela equipe do coletivo jornalístico Bereia, dedicado à checagem de informações que circulam no meio religioso cristão brasileiro, de sites e blogs gospel às redes sociais de influenciadores. No momento, o coletivo está voltado à checagem de informações ligadas às eleições. "O conteúdo de pânico moral é muito utilizado", diz à BBC News Brasil Magali Cunha, editora-geral do Bereia e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião (Iser). Nestas eleições, a maior parte da desinformação de cunho moral nos grupos religiosos tem sido de falsas ameaças à liberdade religiosa e ao funcionamento de igrejas, prossegue a pesquisadora. Embora identifique também conteúdo de desinformação em discursos da direita e da esquerda tradicionais, Cunha observa que, no meio religioso, a maior parte do material de "pânico moral" vem do que ela classifica como extrema direita. "São materiais mais enganosos do que falsos — têm algum elemento verdadeiro que trazem alguma credibilidade, mas são manipulados", explica Cunha. E ganham muita relevância porque, assim como as notícias de cunho moral em língua inglesa, afetam as emoções do público. "Sensibilizam muito as pessoas porque mexem com suas crenças. Se você diz que é algo que está sob ameaça, as pessoas se mobilizam e se tornam propagadoras. É uma estratégia antiga de desinformação que tem muito impacto no público religioso. (...) E tem efeitos fortíssimos em temas eleitorais, por isso passou a ser estratégico." Mesmo antes das eleições, conteúdos enganosos com alguma referência à "moralidade sexual" foram os mais volumosos entre os checados pelo Bereia até o ano passado, atrás apenas da desinformação ligada à covid-19. Cunha classifica como desinformação de "moralidade sexual" notícias enganosas sobre sexualidade nas escolas, por exemplo. "E sempre com essa ideia do pânico — de colocar medo nas pessoas de que possa haver destruição da família, erotização das crianças, 'imposição do gayzismo'", diz Cunha. Mesmo para o público em geral (e não apenas o religioso), estratégias de apelo moral são usadas com frequência no Brasil, explica Raquel Recuero, coordenadora do Laboratório de Mídia, Discurso e Análise de Redes Sociais (MIDIARS) da Universidade Federal de Pelotas. O objetivo é fazer com que o leitor que se enxergue como "pessoa de bem" reaja contra os que "estão prejudicando a sociedade", ela explica. "É uma das principais estratégias da desinformação — feita para (apelar para) as pessoas 'valorosas', para o 'bem contra o mal'", diz Recuero à BBC News Brasil. É um método com potencial impacto na decisão de uma parcela dos eleitores, avalia Jacqueline Moraes Teixeira, professora do Departamento de Sociologia da UnB, pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e do Iser. "As pessoas sempre percebem a política como um espaço de corrupção e da lógica de que 'vou ter que escolher o menos pior' [na eleição]. Nesse processo, esses princípios morais acabam sendo significativos", diz Teixeira. "E isso sustenta muito a circulação e o engajamento de voto ao [presidente Jair] Bolsonaro", agrega Teixeira — uma vez que o presidente se apresenta como um defensor da moral e da família. Nos textos de língua inglesa avaliados pelo pesquisador Carrasco-Farré, se sobressaíram temas como a imigração (ligada, sobretudo, à ideia de ataque à civilização ocidental) e feminismo ("apelando à população masculina de medo ao grupo social sendo atacado por outro gênero", detalha o pesquisador). "O mais importante é se dar conta que, quando um conteúdo nos gera emoções fortes, é preciso ativar os sinais de alerta. Porque a intenção desse tipo de conteúdo é nos afastar da racionalidade e nos levar ao campo da emoção, onde as decisões que tomamos já não são tão corretas", diz ele. "Não somos computadores. Quando nosso cérebro está mais cansado, não consegue se concentrar, é muito mais fácil cair em um conteúdo que seja mais fácil de se processar. (...) E o mesmo ocorre com o tema da identidade social: a emoção torna mais provável que compartilhemos esse conteúdo nas redes, no grupo de WhatsApp da família, e que ajudemos a difundir desinformação — isso no melhor dos casos. No pior, mais extremo, nos leva a agir, com consequências não muito boas para o resto da sociedade", afirma Carrasco-Farré. Embora alguns dos exemplos estudados pelo pesquisador sejam bastante extremos de discurso de ódio, teorias da conspiração ou fake news, ele se preocupa também com os casos mais sutis. "Alguns textos fazem soar todos os alarmes [por serem claramente falsos ou conspiratórios], exceto pelas pessoas que estão muito convencidas de que essas conspirações existem. Os casos mais sutis são mais perigosos porque não são tão facilmente detectáveis. E há evidência científica de que quando as pessoas são submetidas a eles por muito tempo, começam a se acostumar a esse tipo de conteúdo. Isso faz com que seja menos provável que ela perceba que os casos extremos são falsos, porque começam a ter dúvidas." Por isso, o pesquisador espanhol acha problemático quando meios jornalísticos profissionais também recorrem a táticas como "caça-cliques" — com manchetes exageradas ou dúbias para atrair audiência e publicidade. "Isso é perigoso não pelo caça-clique em si, mas sim porque faz o público se aclimatar e se acostumar a esse tipo de conteúdo. E gente que talvez fosse muito boa a identificar pseudociência ou teoria da conspiração terá mais dificuldade", avalia Carrasco-Farré. No estudo, o pesquisador reconhece que classificar um texto por seu palavreado tem limitações. Mas ele argumenta que o método pode servir de parâmetro inicial para ajudar os algoritmos das redes sociais e as agências de checagem a identificar quais textos e vídeos têm mais potencial para viralizar. Com essa informação em mãos, argumenta ele, seria possível checá-los, hierarquizá-los ou contextualizá-los nas redes sociais com mais rapidez, antes que uma informação potencialmente enganosa de fato viralize.
2022-09-25
https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-62933317
sociedade
Como corte de verba ameaça atendimento à saúde de moradores de rua
Um morador de rua que chega a uma unidade básica de saúde pública pode ter dificuldade de conseguir atendimento por falta de documentação ou até por questões referentes às condições relacionadas à falta de moradia. "Às vezes o exame de sangue só é feito às 7 da manhã naquela unidade, e essa pessoa não consegue chegar. Ou, se espera ali, pode ser retirado por agentes da prefeitura por não poder ficar em determinada calçada ou banco. Também há a questão de vestimenta, alguns são impedidos de entrar sem camisa, por exemplo, e até a crença da própria pessoa em achar que ela não pode entrar ali", diz Daniel de Souza, articulador nacional dos consultórios na rua, e parte do programa desde seu início, em 2012. Foi com a intenção de fazer uma ponte entre agentes de saúde, assistentes sociais e outros serviços públicos que surgiu o Consultório na Rua, uma estratégia criada pela Política Nacional de Atenção Primária para ampliar o acesso da população em situação de rua aos serviços de saúde. O serviço é composto por equipes multiprofissionais que desenvolvem ações integrais de saúde de acordo com as necessidades dessa população. Em cinco anos, no período entre 2015 e 2020, estima-se que a população de brasileiros em situação de rua mais do que dobrou, passando de cerca de 102 mil para 222 mil, segundo estimativa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Fim do Matérias recomendadas Apesar disso, dados de um estudo feito pelo Ieps e pelo Instituto Cactus, ao qual a BBC News Brasil teve acesso exclusivo, indicam que houve uma queda no investimento destinado ao programa Consultório na Rua. Em 2019, o investimento foi de R$ 580.470. Pouco depois, em 2021, o investimento do Ministério da Saúde na área caiu para R$ 490.436, uma redução de cerca de R$ 90 mil. A BBC News Brasil questionou o Ministério da Saúde sobre o investimento reduzido, mas não recebeu resposta até a publicação desta matéria. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O programa é extremante importante e necessário para o atendimento da população de rua, e esse desmonte de investimentos, que também vemos no SUS (Sistema Único de Saúde) e na Farmácia Popular, tende a deixar esse grupo em uma situação de vulnerabilidade ainda maior", analisa Nilza Rogeria Nunes, professora da PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e pesquisadora na área de políticas sociais. Na avaliação de Dayana Rosa, pesquisadora do Ieps, o número do contingente deve ser maior do que o notificado. "Sabemos que não há metodologias capazes de estimar com precisão quantas são as pessoas sem moradia. O dinheiro disponível para essa política pública não acompanha a necessidade de quem está na rua." Nilza Nunes acrescenta, ainda, que os censos deixam de fora pessoas em situação de pobreza como catadores de recicláveis que passam a semana dormindo nas ruas, mas periodicamente voltam às suas casas longe das cidades onde ficam na maior parte do tempo. As políticas públicas focadas na população de rua ainda são recentes. Os avanços mais significativos começaram em 2009, com a instituição da Política Nacional para a População em Situação de Rua e do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento. No âmbito da saúde, o Plano Operativo de Saúde para a população em situação de rua, implementado no mesmo ano, e a criação do Programa Consultório na Rua, de 2012, são considerados os avanços mais relevantes. Há cerca de 180 consultórios de rua no Brasil. O trabalho das equipes é percorrer as cidades, sobretudo os locais conhecidos por maiores aglomerações de pessoas desabrigadas, e oferecer atendimento. O projeto faz parte do atendimento do SUS, financiado pelo Ministério da Saúde. Em alguns municípios, os consultórios têm parceria com instituições sem fins lucrativos, como é o caso de São Paulo, que fez parceira com o Centro Social Nossa Senhora do Bom Parto. Há três tipos de composições diferentes para as equipes, que podem ser formada com quatro a sete profissionais a depender do censo da população de rua naquela determinada cidade ou região. Entre os agentes, podem estar enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais, agentes sociais, técnicos ou auxiliares de enfermagem, médicos, técnicos em saúde bucal, cirurgiões dentistas, profissionais de educação física e profissionais com formação em arte e educação. "O trabalho é ir até essas pessoas e perguntar se estão precisando de alguma coisa, se têm queixas relacionadas à saúde. Se o paciente responde que tem tossido, por exemplo, perguntamos há quanto tempo, se tem experimentado outros sintomas... Vamos ouvindo e tentamos solucionar o problema. Também fazemos curativos, aplicamos vacinas, fazemos atendimentos psicológicos...", diz o articulador nacional dos consultórios de rua, Daniel de Souza. "Para chegar até essas pessoas, toda equipe tem, ou pelo menos deveria ter, um carro ou uma van com os insumos necessários, já que o atendimento é in loco. Algumas equipes têm um 'quartel general' em alguma unidade de saúde, mas ao abordar um paciente que precisa de um atendimento mais complexo, podemos levá-lo para qualquer unidade", completa. Em vídeo veiculado pela Fiocruz no YouTube, uma idosa no Rio de Janeiro aparece recebendo atendimento odontológico. "Eles que me acharam, eu tive essa surpresa. Eu ficava sentada lá, amuada. Eles perguntaram se eu queria ajuda, disseram que iam cuidar de mim. Eu não tinha água para escovar os dentes, não tinha recursos." O articulador Daniel de Souza reforça que, para atender a uma população tão ampla, com características diferentes, é necessário pensar de uma forma ampla e que abrace a questão da cidadania além das necessidades urgentes da saúde. "Temos parcerias com a Secretaria de Desenvolvimento Social e com a Defensoria Pública. Essa galera às vezes tem desejo de sair da rua, mas não querem ir para qualquer abrigo, não tem documentos, tem baixa escolaridade e pouca ou nenhuma experiência profissional. Com a parceria podemos oferecer soluções mais completas para essas pessoas", aponta. Em alguns municípios, como é o caso de São Paulo, moradores de rua que tenham o ensino fundamental completo (ou consigam completar com a ajuda do próprio programa), podem ser empregados na própria equipe do consultório da rua. É o caso, por exemplo, de Samira Alves Matos, transexual que viveu um período difícil nas ruas e teve a oportunidade de entrar na equipe como agente de saúde. Com a ajuda de uma ONG focada na população LGBTQIA+, se formou na faculdade e hoje é assistente social. "Hoje tenho a oportunidade de atender pessoas para quem conto minha história, e posso inspirá-las que é possível conseguir condições melhores", diz Samira. Um dos empecilhos do atendimento à população de rua, especialmente para tratamentos mais longos, como para tuberculose (de duração de cerca de seis meses), ou até para doenças crônicas, como hipertensão, diabetes e para pessoas que convivem com o vírus HIV, é o fato de que muitos são itinerantes, e portanto, é difícil para os agentes de saúde encontrá-los. "Mesmo que consigam os remédios, podem pegar chuva, serem roubados, e não conseguir no mês seguinte se perderem os documentos, por exemplo", exemplifica a pesquisadora Nilza Nunes. Em relação à falta de investimento, Daniel afirma que São Paulo e Rio de Janeiro sentiram menos impactos sobretudo por conta de um dinheiro destinado especificamente durante o período da pandemia da covid-19. "Mas equipes em outras cidades perderam trabalhadores e insumos", diz. "Já existem políticas nacionais voltadas à população de rua desde 2009. A gente precisa mostrar que há pessoas comprometidas com essa luta, e o que falta realmente é investimento. Teríamos condições de atuar de forma muito mais humanizada e ampla se isso virasse uma pauta política, mas há falta de interesse politico, e isso inclusive reverbera no olhar que a sociedade tem: quem desconhece, criminaliza", conclui Nilza.
2022-09-21
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62810753
sociedade
Claudia Raia anuncia gravidez aos 55: por que é tão rara a gestação nessa idade?
A atriz Claudia Raia, de 55 anos, anunciou que está grávida do terceiro filho. Ao lado do marido, o também ator e cantor Jarbas Homem de Mello, de 53 anos, ela compartilhou um vídeo no Instagram dando a notícia aos fãs e explicando que a gravidez foi uma surpresa. Nos conteúdos compartilhados na rede social, ela diz ter ficado desconfiada quando sua médica pediu exames para confirmar a gravidez. "Quando a médica me pediu um beta, exame de sangue de gravidez. Eu falei: 'amor, você está bem louca. De onde você tirou isso? Eu tenho 55 anos de idade'. Ai ela falou: 'mas eu preciso investigar porque todas as suas taxas estão diferentes, estão estranhas'", afirmou a atriz. O resultado do teste apontou que ela já estaria com uma gestação com mais de três semanas. Mas por que o anúncio de uma gestação aos 55 anos surpreendeu a tanta gente? Fim do Matérias recomendadas De acordo com o ginecologista e obstetra Caio Parente Barbosa, as chances de acontecer uma gravidez naturalmente após a menopausa são quase nulas. Isso porque no período de menopausa, que acontece entre os 45 e 55 anos, os ovários entram em falência e o estrogênio e progesterona, hormônios femininos, caem irreversivelmente. A mulher produz um número limitado de óvulos que vão diminuindo durante a vida — e sem a produção adequada dos hormônios, a gravidez se torna praticamente inviável. "Nada é impossível, mas todas as gestações que acompanhei na minha prática clínica dentro dessa faixa etária contaram ou com óvulos congelados [de uma época em que a mulher era mais jovem], ou com óvulos doados por outra mulher em idade fértil. Após os 43 anos, mesmo em tratamento de fertilização a chance de gravidez gira em torno de 5%", explica o médico, que faz parte do Instituto Ideia Fértil de Reprodução Humana e é pró-reitor de pós-graduação, pesquisa e inovação da Faculdade de Medicina do ABC. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em óvulos de mulheres acima de 40 anos, que são considerados de menor qualidade, há maior risco de abortamento natural. Além disso, o bebê também tem risco aumentado de má formação fetal, alterações cromossômicas que resultam em síndromes genéticas como síndrome de Down, parto prematuro e restrição de crescimento intrauterino (o que faz com que o bebê nasça menor do que deveria). Mas, se a mulher usa um óvulo mais jovem, os riscos diminuem consideravelmente. "Há um alerta maior para diabetes gestacional e hipertensão na mãe, mas nada que um bom pré-natal não possa contornar", esclarece Barbosa. "As complicações maternas mais graves, como hemorragia e necessidade de internação em UTI, são raras, mas aumentam proporcionalmente com a idade materna (acima de 40 ou 45 anos)", diz o obstetra Marcelo Luís Nomura, especialista em gestação de alto risco do Vera Cruz Hospital. De acordo com Nomura, embora a idade materna seja um fator relevante para considerarmos a gestação como sendo de alto risco, as condições de saúde da mãe e a presença de doenças prévias como hipertensão e diabetes são fatores que devem ser discutidos com o médico ao se planejar uma gravidez tardia. "Algumas doenças maternas presente antes da gravidez podem aumentar substancialmente os riscos de complicações graves." A idade do homem também importa. Aqueles que se tornam pais depois dos 35 anos apresentam um risco maior de ter filhos prematuros. Além disso, a cada ano que passa, há menos espermatozoides e com menor qualidade, o que pode dificultar as tentativas de gravidez.
2022-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62972107
sociedade
Condenação por assassinato retratado no podcast 'Serial' é anulada após 22 anos
Um juiz anulou a condenação por assassinato de um homem de Baltimore, nos EUA, em um caso retratado no podcast americano de crimes reais Serial. Adnan Syed tinha 19 anos quando foi condenado à prisão perpétua pela morte de sua ex-namorada, Hae Min Lee, cujo corpo foi encontrado enterrado em uma floresta em 1999. Na semana passada, os promotores pediram ao tribunal para anular sua condenação, dizendo que uma revisão, que levou um ano, do caso havia encontrado dois "suspeitos alternativos". Syed será colocado em prisão domiciliar. Agora com 41 anos, suas algemas foram retiradas no tribunal na segunda-feira (19/09) depois de quase 23 anos atrás das grades. Fim do Matérias recomendadas A juíza da região de Baltimore, Melissa Phinn, disse que estava anulando sua condenação "no interesse da equidade e da justiça", acrescentando que o Estado não compartilhou evidências que poderiam ter ajudado sua defesa no julgamento. A decisão não significa que Syed seja inocente. A juíza Phinn ordenou um novo julgamento. Um júri considerou Syed culpado em 2000 de assassinato premeditado, sequestro, roubo e cárcere privado. Os promotores argumentaram que ele havia sido desprezado por Lee, sua colega de classe na Woodlawn High School, e que — com a ajuda de um amigo — a estrangulou e escondeu seu corpo no Leakin Park, em Baltimore. Eles se basearam na época em dados de localização de telefones celulares, que posteriormente se mostraram não confiáveis. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Todos os recursos que Syed apresentou nas últimas duas décadas foram negados, incluindo sua tentativa mais recente em 2019. Foi o podcast Serial, de 2014, que concentrou a atenção mundial no caso e lançou dúvidas sobre a culpa de Syed. Os episódios do programa foram baixados mais de 340 milhões de vezes. O caso também gerou outros trabalhos, incluindo uma série de documentários da HBO em 2019. A Procuradoria do Estado de Baltimore, que estudou o caso no ano passado ao lado do mais recente advogado de defesa de Syed, disse que ele "merece um novo julgamento". Os promotores disseram que não tinham "confiança na integridade da condenação" e identificaram dois novos suspeitos em potencial que eram conhecidos da polícia desde o assassinato de 1999. Nenhum dos suspeitos foi nomeado, mas as autoridades disseram que ambos tinham registros documentados de violência contra mulheres, incluindo condenações que ocorreram após o julgamento de Syed. Um suspeito foi absolvido da investigação sobre a morte de Lee depois de falhar em um teste de detector de mentiras, um método que não é mais admissível em muitos tribunais dos EUA. "Nossos promotores juraram não apenas para defender ferozmente em nome das vítimas do crime, mas, quando existem evidências, para exonerar aqueles que foram falsamente acusados ​​e condenados", disse a promotora Marilyn Mosby do lado de fora do tribunal. Ela foi interrompida por aplausos altos quando Syed saiu do prédio através de uma multidão de câmeras e apoiadores. Na segunda-feira, antes da decisão, o irmão da vítima havia dito ao tribunal, entre lágrimas, que "não era contra a investigação", mas que foi pego de surpresa pelos promotores. "Todos os dias, quando penso que acabou... tudo sempre volta. Isso está me matando", disse Young Lee. "Para mim, isso aqui não é um podcast. Isso é a minha vida real — um pesadelo sem fim por mais de 20 anos." Steve Kelly, advogado da família, disse que os Lee foram "excluídos do processo legal" e estavam "profundamente decepcionados" com a forma como foram tratados. "Tudo o que eles querem é informação", disse Kelly. "Se a verdade é que outra pessoa matou sua filha, eles querem saber disso mais do que ninguém." A Serial Productions, que produziu o podcast, escreveu no Twitter que lançaria um novo episódio sobre o ocorrido recentemente na saga legal.
2022-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62966974
sociedade
'Nos casamos 20 anos depois de termos sido trocados quando bebês'
Alguns acreditam que encontrar a cara metade é algo que está escrito nas estrelas. Mas o casal Jim e Margaret Mitchell tem mais motivos do que a maioria para acreditar no destino. Seus caminhos se cruzaram pela primeira vez em um incidente logo após o nascimento — e um encontro casual quase duas décadas depois fez deles companheiros de vida. Eles acabaram de completar 50 anos de casados — e celebram a série de coincidências que levaram a esta união. As mães de Jim e Margaret Mitchell perceberam que havia algo diferente em seus filhos recém-nascidos logo de cara. Fim do Matérias recomendadas Os dois nasceram no Lennox Castle Hospital, na cidade escocesa de Lennoxtown, no norte do Reino Unido, com um intervalo de um dia — em 17 e 15 de setembro de 1952, respectivamente. Na época, a maternidade cometeu um erro: as enfermeiras entregaram brevemente os bebês às mães erradas. "Ambas as mães se chamavam Margaret. Daí a confusão das parteiras que trocaram os bebês", conta a filha Margaret, que completou 70 anos na última quinta-feira (15/09). Isso aconteceu pouco antes de os bebês começarem a usar uma pulseira com o nome, mas as mães se deram conta do erro em poucos minutos. Jim foi morar com os pais em Arden, no sul de Glasgow, e Margaret foi viver com a família em Knightswood, a noroeste. Pouco tempo depois, os pais de Margaret compraram uma casa a apenas 30 minutos a pé de onde Jim morava. Quando o casal completou 18 anos, o destino interveio novamente. "Um amigo ia se casar e fez uma recepção no apartamento dele, em Queen's Park, em Glasgow", conta Jim, um engenheiro aposentado. "A amiga de Margaret, Pat, se casou com meu amigo David. Foi quando nos conhecemos." "Nós conversamos na recepção. Achei que ela estava maravilhosa naquele vestido lindo, então criei coragem para convidá-la para sair." "Fiquei tão feliz que ela aceitou, porque ela era a garota mais bonita do salão." Após dois meses de namoro, as mães começaram a suspeitar que havia algo familiar na história. "Foi a mãe de Jim quem se lembrou do episódio no hospital. Ela juntou vários detalhes e se deu conta: nossos aniversários eram muito próximos, meu sobrenome era Rafferty e meu pai era policial", explica Margaret. As duas mães finalmente se encontraram pela primeira vez desde a troca de bebês na maternidade — e ficaram maravilhadas com o romance dos filhos. Jim e Margaret se casaram em 1972 — e agora moram em East Kilbride, nos arredores de Glasgow. Estão aposentados, com dois filhos, uma neta e um neto adolescentes. Na última sexta-feira (16/09), na data entre o aniversário dos dois, eles comemoraram 50 anos de casados. Margaret, uma ex-executiva de vendas, acredita que, se não fosse pelo destino, talvez nunca tivesse escolhido sair com Jim. "Ele era diferente dos caras com quem eu saía. Ele tinha o cabelo muito comprido, mas era gentil, atencioso e totalmente diferente", recorda. Começando o dia com um café da manhã na cama, eles contaram ao programa de rádio Good Morning Scotland, da BBC, seus segredos para um casamento longo e feliz. "Trata-se apenas de se dar bem e aproveitar cada dia como ele chega", afirma Margaret. "Sabe, tem seus altos e baixos, mas a melhor coisa de se apaixonar é se apaixonar novamente", acrescenta Jim.
2022-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62953135
sociedade
A piada ofensiva que gerou primeira censura na internet e mudou a rede para sempre
Esta é a história de uma guerra travada logo nos primórdios da internet. E o que estava em jogo era crucial: quem era o dono desse novo mundo, quem fazia as regras e quais elas seriam. Tudo começa quando Brad Templeton, um designer de software, publicou, em 1988, uma piada tida por ofensiva por pessoas em um fórum de discussões na internet — e se torna a primeira pessoa a ser denunciada publicamente (ou "cancelada") por algo que fez online. No terceiro episódio (chamado A piada do judeu e do escocês), Ronson entrevista Brad Templeton e outros personagens que estiveram diretamente envolvidos nas batalhas desta guerra cultural para mostrar como a mesma viria a mudar a internet para sempre. Na década de 1980, antes da invenção da World Wide Web, havia uma rede de comunicação por computador chamada Usenet. Era uma plataforma que permitia a troca de mensagens em fóruns agrupados por assunto, usada pelo relativamente pequeno número de pessoas que tinham acesso a computadores em instituições acadêmicas e tecnológicas - e que sabiam de sua existência. Gente como Brad Templeton, que até então usava o computador apenas para jogar e fazer planilhas. Fim do Matérias recomendadas "A Usenet foi uma epifania para mim. Entendi que o objetivo real, o uso mais importante dos computadores, era conversar com outras pessoas", contou Brad Templeton a Jon Ronson no podcast. Havia páginas na Usenet dedicadas a conversas sobre ateísmo, sexo, vinhos ou tecnologia. "Era como uma praça. Todas as noites, seu computador ligava para outros computadores e ligava tudo de novo com eles, e então você podia conversar com pessoas de todo o mundo." Templeton acessou a Usenet por meio da Universidade de Waterloo, no Canadá, onde havia estudado, pois não era algo que alguém pudesse se conectar de casa. Normalmente, um computador era necessário em um laboratório, empresa de informática ou universidade. "Portanto, o público era altamente educado, geralmente bem de vida, provavelmente não tão etnicamente diverso e com conhecimento de tecnologia. Uma elite." Eles foram pioneiros. Para se ter uma ideia de quanto, certo dia, em 1982, Brad postou uma mensagem sugerindo que os e-mails seriam mais fáceis de ler se tivessem um ponto. Outros concordaram, e é por isso que nossos endereços de e-mail agora terminam em ".com". Mas Templeton queria que seu legado da Usenet fosse "mais divertido" do que isso, então ele criou seu próprio quadro de mensagens dedicado ao humor, chamado rec.humor.funny (RHF), que rapidamente conquistou milhares de assinantes. As pessoas lhe mandavam piadas e as que ele achava mais engraçadas passavam a fazer parte de uma coleção da qual seu computador escolhia aleatoriamente uma e publicava todas as manhãs. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E um dia, uma delas fez dele um tipo diferente de pioneiro - a primeira pessoa na história a ser publicamente denunciada por algo que fizera online. "Era uma piada baseada em estereótipos judeus e escoceses. E a aleatoriedade do computador optou por lançá-la em um dos aniversários da Kristallnacht, a Noite dos Cristais." Na noite de 9 para 10 de novembro de 1938, nazistas e simpatizantes vandalizaram ou destruíram lojas pertencentes a judeus na Alemanha e na Áustria. Por causa do intenso barulho de janelas sendo quebradas, essa noite passou para a história como Noite dos Cristais. E como era piada? Brad Templeton: "Era assim: um escocês e um judeu estão jantando juntos e na hora que chega a conta, há uma certa surpresa quando o escocês diz, 'eu pago'. E daí ele paga. No dia seguinte, sai no jornal uma notícia dizendo que um ventríloquo judeu foi encontrado estrangulado num beco". "O fato é que, quando a piada foi divulgada, ela enfureceu um colega judeu do MIT (Massachusetts Institute of Technology)", disse Templeton. Esse judeu era um britânico chamado Jonathan Richmond. Ele morava no MIT com outro britânico que se lembra bem do incidente. Ele é hoje é um executivo bem-sucedido e não quis ser identificado no podcast - onde foi chamado pelo pseudônimo de "Amir". "Éramos ambos sensíveis ao racismo e ao antissemitismo, por isso não era incomum sermos incomodados por esse tipo de coisa. Mas essa piada em particular nos afetou pessoalmente. Além disso, havia algo muito importante na data, pela Kristallnacht", contou Amir. É por isso que Jonathan e Amir também se tornaram pioneiros - ninguém jamais havia tentado disciplinar o mundo online antes. Jonathan fez um apelo à comunidade da Usenet, escrevendo que geralmente gostava de piadas que o faziam rir de si mesmo, mas que não podia tolerar o humor preconceituoso associado a perseguição e assassinato. Mas as pessoas da Usenet reagiram chamando ele de um nerd que deveria aprender a "rir de si mesmo" e quase ninguém ficou do lado dele. Bobo? Amir, entretanto, explicou por que ficou ofendido pela piada. "Meus pais vieram da África Oriental para o Reino Unido na década de 1960, quando havia placas nas janelas de casas e empresas anunciando que asiáticos e negros não eram aceitos. Fui atacado várias vezes nas ruas. Finalmente nos mudamos para o Canadá na década de 1980, em parte porque estávamos fartos dos abusos racistas." Coincidentemente, antes de ir para o MIT, Amir frequentou a mesma universidade onde Brad Templeton postava suas piadas. A Universidade de Waterloo costumava ser um banco de talentos. "Além disso, era responsável por enviar mais graduados para a Microsoft - que era a maior empresa da época - do que qualquer outra universidade do planeta", disse Amir. Assim, pareceu a Amir e Jonathan que a coisa toda era um mau presságio. Um tom estava sendo estabelecido naquele novo mundo que poderia afetar as gerações futuras. "Eu sabia que minha universidade tinha um grande papel em todo o espaço da tecnologia da informação e que se algo assim não fosse controlado, teria um grande impacto negativo também, então teve que ser cortado pela raiz", diz Amir. Mas suas tentativas tinham falhado até agora. Que recurso eles ainda tinham? Eles tiveram a ideia de aproveitar a visita de Amir à namorada em Waterloo para conversar com o jornal local. "Lembro que quando li essas piadas fiquei com o estômago embrulhado", contou a repórter Luisa D'Amato, que trabalhava no jornal Waterloo Region Record, ao podcast. Ela tinha vasculhado o fórum de discussões do Brad e achou outras piadas que a deixaram bem abaladas. "Tinha uma piada sobre um homem afro-americano que estava saindo com uma gorila e queria entrar em um bar, mas não conseguia levar a gorila com ele. Então ele a depilou, colocou um vestido nela e aí todo mundo achou que ele estava saindo com uma mulher italiana." "Apesar de eu estar abordando isso como repórter, dando a atenção devida a todos os lados da história, me fez sentir marginalizada e depreciada." "E lembro de pensar 'Meu Deus, não tem ninguém no comando. Se você não gosta de algo que um jornal escreve, por exemplo, é possível entrar em contato com uma entidade maior que regula a mídia. Mas nesse caso não havia nada parecido. Era como no Velho Oeste." Depois de investigar, Luisa publicou um artigo intitulado "Sistema de computador da Universidade de Waterloo é usado para enviar piadas racistas". Brad contou que "foi constrangedor para a universidade. Eles não gostavam de estar na primeira página do jornal como envolvidos em racismo horrível e antissemitismo". Mesmo assim, ele foi inundado com mensagens de apoio de usuários da Usenet. Recebeu, também, uma carta de um homem que dizia ser um nazista que havia lutado por Hitler e vivia no Canadá, e que disse "achar ótimo" que as pessoas estavam fazendo piadas sobre judeus. "A universidade anunciou quase imediatamente que não toleraria ser um centro para esse tipo de material ofensivo e suspendeu a conta de Brad Templeton", diz Luisa. "Eu estava atormentado, não conseguia dormir bem", diz Templeton. Mas a vitória de Jonathan e Amir durou pouco. "Essa foi a primeira vez que vi alguém em uma posição de autoridade tentando banir algo na Usenet, e lembro-me de ter pensado: 'Que idiotas! Eles acham que podem banir. Não vai funcionar'", disse o pioneiro da Usenet e cientista da computação Brian Reed, que na época era professor assistente de engenharia elétrica na Universidade de Stanford, no coração do emergente Vale do Silício. "Todos os tecnólogos entenderam que a internet não tinha censura. Foi projetada para ser assim. Se você fosse proibido de fazer algo, nada mudaria porque outras cem pessoas continuariam com a tarefa." Vários usuários da Usenet se ofereceram para hospedar o site de Templeton, que ele reativou imediatamente. Mas a batalha não tinha acabado. O destino da piada antissemita estava prestes a ser alvo de nova disputa, desta vez na Universidade de Stanford, onde o veredicto afetaria a vida de todos que já usaram as redes sociais. Na década de 1980, o campus de Stanford era um lugar bastante progressista. Mas havia um pequeno número de estudantes conservadores com um meio poderoso para fazer suas vozes serem ouvidas: o jornal universitário Stanford Review. Seu editor foi Peter Thiel, mais tarde fundador do PayPal, e também um dos primeiros investidores no Facebook, Airbnb, LinkedIn, Yelp e Spotify, que por décadas personificaria a cultura libertária do Vale do Silício. Nas páginas do jornal, ele e sua equipe lamentavam o politicamente correto, em meio a um clima tenso, de constante confronto de opiniões. Erik Charles, estudante da universidade que também era fuzileiro naval e colaborava com o Stanford Review, conta no As Estranhas Origens das Guerras Culturais um caso que ilustra a polarização em voga no campus. "Havia essa conversa no campus sobre se Beethoven tinha ancestralidade africana. E havia um estudante negro que era categórico sobre isso e dois outros estudantes que achavam que isso era ridículo. Havia um folheto de um concerto da música de Beethoven que estava para acontecer. Então eles adulteraram o folheto com todo tipo de estereótipo negro - um cabelo black power, lábios, não sei se fizeram o nariz também, e colocaram esse flyer perto da porta do dormitório da pessoa que tinha sido categórica dizendo que Beethoven era negro." Os dois alunos foram expulsos da residência universitária. O caso levou vários estudantes a protestarem, pedindo a introdução de códigos de expressão, regras que proibissem o uso de determinadas expressões, para coibir racismo no campus. Erik Charles e Peter Thiel, no entanto, não achavam que o folheto justificava a expulsão de seus autores. "Isso é o bastante para que te expulsem dos dormitórios?", disse Charles. "Você poderia ter rasgado o folheto e jogado fora. Essas são as nossas novas regras? Esse é o nosso novo jogo? Você acredita ou não em liberdade de expressão?" Em meio a essa atmosfera tensa, uma usuária da Usenet chamada June Janice, que trabalhava no Centro de Computação da Universidade de Stanford, se conectou à plataforma para ver a piada do dia de Brad Templeton. Foi a piada antissemita. "Achei ela engraçada e então começou todo o alvoroço para saber se aquele tipo de material deveria estar ali", disse June. Para ela, o fechamento do site de Brad por causa da piada era "ridículo", e ela contou isso a seu chefe John Sack, o diretor do Centro Computacional da Stanford, pensando que ele provavelmente também acharia aquilo uma tempestade em um copo d'água. Mas Sack achou que o caso era sério, e que caberia a ele pensar em como a universidade deveria reagir à piada. Ela deveria mantê-la ou bani-la? O que pôs John Sack - dado que estávamos em Stanford no fim dos anos 1980 - em um momento chave da história. "Stanford era pioneira em unir acadêmicos com a cidade da instituição", contou Sack. "A ideia de que uma faculdade poderia criar empresas que se tornariam centros de excelência empresarial. Isso é de fato o nascimento do Vale do Silício. O poder intelectual de engenharia localizado em Stanford poderia essencialmente se tornar uma força da economia e dos negócios, não apenas uma força intelectual." Além do que, segundo Sack, "o uso de computadores estava começando em um contexto social, então estávamos navegando nas áreas cinzentas de quanto permitir que o computador fizesse por e para as pessoas". A piada de Brad Templeton seria o caso piloto perfeito. Os engenheiros de computação - os arquitetos da emergente internet - estavam assistindo. "O curso não estava claro. Eventualmente, teríamos que tomar uma decisão." Após semanas de deliberação, foi anunciado que a página de Brad também seria banida em Stanford. O motivo foi explicado em um ensaio detalhado. Resumindo, ele dizia que "o amor de Stanford pela liberdade de expressão" importava menos que "a busca coletiva por uma maneira melhor de reconhecer cada pessoa um indivíduo, não uma caricatura". A decisão, entretanto, causou grande indignação em um professor titular de Stanford, John McCarthy, acadêmico tido como um dos maiores nomes da computação na época e um dos fundadores do conceito de inteligência artificial. McCarthy estava horrorizado com a ideia de que normas regulando a expressão se tornassem a regra na internet. Ele publicou uma réplica feroz ao banimento, chamando John Sack de "lacaio" que havia passado aquelas semanas não deliberando, "mas perdendo tempo". Ele também lançou um abaixo-assinado online - um dos primeiros na história da internet - juntando 100 assinaturas na faculdade. Na época, assim como em muitas casos hoje, o abaixo-assinado online teve um efeito formidável. O banimento da página de piadas de Brad foi rapidamente revertido. O argumento de John McCarthy, acredita John Sack, podia ser resumido assim: "Estamos explorando a vanguarda da computação aqui. Vamos continuar explorando, não tente interromper isso. Basicamente, precisamos descobrir as fronteiras da livre expressão trombando com elas ou as atravessando". Jon Ronson, que também é autor de livros como de Os homens que encaravam cabras, O teste do psicopata e Humilhado - Como a era da internet mudou o julgamento público, fecha essa história contada no podcast Things Fell Apart dizendo que "essa foi a internet com a qual vivemos pelas décadas seguintes - uma utopia de engenheiros libertários onde a liberdade de expressão floresce sem amarras, sem considerar os perigos que isso poderia causar à sociedade". "E por perigos eu me refiro não apenas a discursos ofensivos, mas também a fake news. E pelo fato de que liberdade de expressão sem restrições conduz a conflito, o que mantém as pessoas online por mais tempo do que harmonia, é uma ideologia lucrativa para as empresas de tecnologia." "E daquele dia em diante", finaliza Ronson, "a internet, a seu modo terrivelmente particular, iria influenciar a ferocidade com a qual cada guerra cultural seria enfrentada dali em diante".
2022-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59644303
sociedade
Como consegui fugir de mosteiro onde vivi por 12 anos como freira enclausurada
Numa manhã de domingo, sem pedir permissão, Florencia Luce pegou o telefone e ligou para os irmãos. "Esperem por mim em casa. Preciso falar com vocês", disse a eles. Ela juntou os poucos pertences que tinha, atravessou o portão e saiu para a rua. A ideia de tomar essa atitude estava na cabeça dela há meses, ou anos. Mas foi só em um dia de dezembro de 1982 que Luce reuniu coragem suficiente para fugir do mosteiro contemplativo onde havia passado os últimos 12 anos de sua vida como freira enclausurada. Não que ela estivesse forçosamente isolada e privada de liberdade por lá. Mas o controle e a manipulação psicológica por trás das portas da instituição religiosa impossibilitaram que ela pensasse em sair de outra forma. De longe, Luce — que cresceu em uma típica família argentina de classe média em um bairro tradicional — vê a experiência que teve como resultado de uma confusão interna, da necessidade de encontrar uma voz em meio a uma família numerosa e do esmagador peso das influências do ambiente em que circulava. Fim do Matérias recomendadas O idealismo, o desejo de mudar o mundo e os conselhos errados que recebeu de um guia espiritual a levaram a um caminho completamente errado para sua vida. Embora reconheça ter passado belos momentos ("Gostava do canto gregoriano, do estudo, do carinho das minhas companheiras"), a vida monástica foi marcada pela pequena mesquinhez do dia a dia em confinamento, pela hipocrisia, pelo sigilo e pelo acúmulo de preocupações triviais longe da vida espiritual que ela tanto ansiava quando entrou na instituição. Mesmo assim, ela levou mais de uma década para conseguir sair. "É como quando estar em um casamento ruim e não entender o porquê está em um culto", explica, refletindo sobre a própria experiência, que capturou no romance El Canto de las Horas ("A Canção das Horas", em tradução livre), inspirado nas experiências que teve. De Nova Jersey, nos Estados Unidos, onde trabalha e mora com o marido e a filha, Luce conversou com a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC para a América Latina. A seguir, você confere um resumo da história que ela conta em primeira pessoa. Eu cresci em Buenos Aires em uma família de classe média de cinco irmãos. Embora na minha infância fôssemos à missa, a religião estava ausente em nossa casa. Mas as aulas do Ensino Médio tinham um forte componente religioso. Foi nesse ambiente, e por meio dos meus amigos, que absorvi esse espírito. Aos 19 anos, comecei a pensar na minha vocação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Já como estudante de agronomia na Universidade Católica, senti o "chamado". Foi repentino. Lembro-me perfeitamente do momento em que tive a sensação de que Deus me convocava. Era algo físico. Nessa época, comecei a ter um conselheiro espiritual, um padre que me falava do mosteiro e dizia que eu era a pessoa ideal para aquele lugar de vida contemplativa. Quando penso em tudo isso agora, não concordo mais com aquilo tudo. Acho que aquele "chamado religioso" fazia parte dos meus delírios e questionamentos. Digo sempre que isso me foi apresentado de fora para dentro, e não de dentro para fora. Hoje em dia, vejo como algo que encontrei e tentei aceitar, porque senti necessidade de sair de casa. Assim como meus amigos — em um ambiente tradicional e conservador — se casaram aos 20 anos por causa da necessidade de sair da casa dos pais, me foi apresentada a possibilidade de ir para um mosteiro. Embora não existissem grandes conflitos na minha família, havia muita gente na minha casa, muito barulho, e eu precisava encontrar um espaço próprio. Foi um erro, um impulso. Eu era muito idealista e precisava encontrar algo transcendental, queria fazer algo pelo mundo. Poderia ter ido em missão para outros lugares se meu conselheiro espiritual tivesse sugerido. Mas ele me guiou até aquele mosteiro contemplativo. Tirando meus pais, nunca ninguém me disse que aquilo não era algo para mim. Quando lhes contei da minha decisão, eles reagiram mal, não conseguiram entender. Meus irmãos me disseram que eu era louca. À época, antes de entrar na clausura, eu tinha muitos amigos, era uma pessoa sociável, atleta, tinha namorado, ia dançar... Porém, quando fui falar com a abadessa do mosteiro, não pensei em mais nada. Fiquei fanática e decidi entrar. Eles me aceitaram de imediato, nunca me disseram para esperar, pensar direito, terminar a faculdade primeiro. Nem questionaram minha fé frágil. E quando me contaram sobre a vida monástica, tudo parecia perfeito. Ao entrar no mosteiro, você corta o vínculo com o mundo exterior. Peguei uma bolsa com roupas bem simples. Não se pode levar livros, rádio ou qualquer coisa pessoal. Fui encaminhada para uma jovem, que me mostrou o lugar e explicou as rotinas e as regras — porque você entra em um mundo onde terá que obedecer muitas regras. A do silêncio, por exemplo: enquanto cozinha, limpa ou vai à aula, não pode falar nada. Há apenas um recesso onde é possível conversar livremente. Você se levanta antes do amanhecer e o dia é marcado por orações litúrgicas — que na vida contemplativa são cantadas em conjunto —, meditação, estudo, trabalho e mais orações. Você ora pela família ou pelos conflitos que eles indicam a você. Hoje em dia, por exemplo, um dos motivos das preces sem dúvida seria a guerra na Ucrânia. A abadessa é quem decide tudo. Ela recebia o jornal todos os dias, recortava as páginas que considerava de interesse geral e as deixava em uma sala onde todas podíamos ler. Todas as informações eram filtradas e censuradas. Não havia acesso a outras notícias: a fonte era a superiora ou o que a família dizia se porventura viesse vê-la, em visitas cada vez mais espaçadas. A ideia era que todas essas atividades a levassem a um estado de meditação e adoração a Deus. Eu me afeiçoei muito às irmãs que estavam lá. Eram pessoas que se tornaram uma família para mim. Mas, pensando bem, agora vejo que havia muito conflito ali. Era um ambiente extremamente fechado com muitas regras a respeitar — mas que também eram constantemente quebradas. O que se espera de você é que alcance a pureza espiritual, que se entregue a Deus. Mas é uma meta tão alta que poucas conseguem alcançá-la, e dá pra ver que há muita gente que não deveria estar ali. Você descobre que, na realidade, vive num mundo de inveja e competição, onde há grupos e pessoas que querem mandar, como se estivéssemos numa empresa. Trata-se de uma organização vertical onde a madre superiora é a guia espiritual de cada uma das outras mulheres. Ela é a única com quem você tem permissão de falar sobre os conflitos — e muitas vezes ela mesma está no centro deles. Aos poucos, você começa a se sentir atraída e a competir por afetos e favores que só ela pode oferecer. A mesma coisa acontece com os outras oportunidades que aparecem vez ou outra, por meio das demais freiras. São gerados laços que não são nada saudáveis. Você começa a viver por isso, para que essas pessoas prestem atenção em você. Aos poucos, é como se deixássemos de viver para Deus e passássemos a viver para a madre superiora. Em relação ao desejo físico, cada uma vivia de uma maneira diferente e encontrava formas de sublimá-lo. Mas tudo isso era deslocado para a parte psicológica — e por isso persistia aquele desejo de que a superiora ou outra freira olhasse ou prestasse atenção em você. Tudo isso foi a causa de muitos transtornos mentais que se traduziam em sintomas físicos. Eu vi garotas com muita dor de cabeça, que foram medicadas. Muitas irmãs sofriam de problemas estomacais e dores. Quando um médico as examinava, nunca encontravam nada. Ao meu ver, tudo tinha a ver com o confinamento. Éramos um grupo de mulheres trancadas sempre no mesmo lugar, sem distrações, onde se via cada pequeno problema amplificado com uma lupa. Quando se está em silêncio e não se pode falar, você fica presa pensando nas pequenas coisas em vez de se concentrar no transcendental. Além disso, não nos exercitávamos. Era possível ver muitas jovens confusas. Aquele ambiente era mental e emocionalmente muito desgastante, e isso me fez começar a questionar o que eu realmente estava fazendo lá. Comecei a questionar se tinha ou não vocação religiosa desde o primeiro ano. Mas, no início, gostava da vida comunitária. Além disso, adorava o estudo e a música. Mas eu tinha crises vocacionais muito regulares e a abadessa sempre me dizia que isso acontecia com todas, que era apenas algo passageiro, que eu havia me adaptado muito bem e tinha uma verdadeira vocação. Fui vê-la algumas vezes. Tinha vontade de chorar, mas sempre me segurava. Sinceramente, não acho que houve má intenção, mas acho que ela estava tentando fazer com que as garotas que tinham uma certa formação intelectual ficassem. Ela nos colocou "sob a asa" e nos favoreceu, porque pensou que poderia nos moldar para o futuro. Como eu sabia dirigir, a abadessa me levava para ver a mãe dela, ir almoçar, tomar chá, fazer compras... Todas as coisas que eu não podia fazer por conta própria e sobre as quais não devia falar nada. No começo, eu gostava de tudo isso. Mas foi justamente isso o que causou a crise. Chegou um momento em que percebi que, embora você entre pensando que vai se transformar e ajudar a mudar o mundo, a vida ali envolve cuidar de coisas muito pequenas. Rezei bastante, mas, no final das contas, o mais importante eram outras coisas — como estar bem com as outras pessoas dali, que podiam gostar de mim e acabavam me colocando numa tarefa melhor do que lavar os banheiros. É algo paradoxal, porque em vez de esquecer de si mesmo e pensar em Deus, você acaba olhando para o próprio umbigo. Mas o gatilho foi uma viagem que fiz a um mosteiro na França, onde fui enviada para ajudar. A distância me permitiu ver as coisas de outra perspectiva. Quando voltei, senti que tinha sido deslocada (algo que eu deveria aceitar porque era a vontade de Deus) e, para acabar de vez com a situação, minha avó morreu. Eu tinha uma relação muito próxima com ela, e a direção do mosteiro não permitiu que eu fosse ao seu funeral, embora eu tivesse permissão para ir tomar chá com a mãe da abadessa. Isso me ajudou a ver tudo com mais clareza e comecei a questionar ainda mais a minha vocação. O mais grave foi que percebi que estava ficando doente e com a saúde mental abalada. Então, depois de 12 anos, consegui tomar a decisão. Tentei muitas vezes sair, mas a superiora sempre me convencia a ficar. Por isso, parei de falar com ela e, um dia quando ela estava fora, deixei uma carta na mesa em que explicava que ia embora porque não podia seguir por outro caminho. Peguei minhas coisas e, sem dizer nada a ninguém, pedi que abrissem a porta para mim. Não considero a minha decisão como uma fuga. Era a única maneira de ter 100% de certeza de que poderia sair dessa escravidão psicológica e afetiva. Mas soube que depois, no mosteiro, fui duramente criticada por isso. Saí sem planejar, mas sabia que precisava deixar o local e que teria o apoio da minha família. Chegar em casa resultou em um encontro emocionante. Muitos anos se passaram e eles não tinham noção dos meus conflitos internos. Conversamos, choramos e minha família ficou feliz. Quando saí, estava pálida, quase transparente de tão magra. Estava comendo muito pouco, consumida pela angústia. Demorou semanas para me reconstruir fisicamente. Aos poucos, comecei a estudar, consegui um emprego, fui morar no centro, conheci o meu marido, que é americano, e o resto é história. A terapia me ajudou a sair dessa, assim como o apoio da família e dos amigos. Tive muita sorte. Ao retornar ao mundo real, minha mente voltou praticamente para onde estava antes de eu entrar. Eu estava curiosa sobre tudo. Me adaptei com facilidade, era como se fosse um peixe voltando à água. O que me custou foi questionar por que fiquei presa tantos anos. Isso ainda é uma grande pergunta para mim. Gostava da vida em comunidade, de ter tempo para estudar e ler, mas acho que a maior força foi a influência da abadessa, uma mulher carismática e com muito poder sobre todos. É como quando você se pergunta por que as pessoas permanecem em um culto ou por que alguns insistem em um casamento disfuncional. Não considero um erro ter entrado no mosteiro, porque foi uma experiência muito rica. Mas me arrependo de ter ficado tanto tempo por lá. A minha experiência não me fez perder a fé em Deus ou na vida espiritual, mas agora a encontro muito mais nos textos literários, ou ao ouvir um concerto. Não percebo mais o mesmo na instituição da Igreja, cujas contradições, hipocrisias e mandatos ainda me provocam uma grande rejeição. Aconselharia a quem pensa iniciar uma vida monástica a não tomar decisões abruptas, a ter antes outras experiências e a não desistir de uma carreira. Aos sacerdotes, que são guias espirituais, pediria que não convençam imediatamente as jovens a entrar no mosteiro. Peça que elas esperem um pouco. No momento em que estão vulneráveis, elas acreditam 100% que a palavra de um líder religioso é sempre a palavra de Deus.
2022-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62926103
sociedade
Quem foi São Longuinho, o santo baixinho que 'ajuda' a encontrar coisas perdidas
Para quem fala português, parece até piada que um santo de nome Longuinho tenha sido um homem reconhecido como de baixa estatura. E com dificuldade de locomoção. É o que se acredita a respeito de São Longuinho, aquele para o qual a tradição popular dedica o ato de dar três pulinhos e — surpresa! — ele ajuda a se encontrar um objeto perdido. Mas sua identidade, contudo, é bastante controversa. Longinus, seu nome latino, provavelmente seja uma referência à lança comprida que, segundo relatos bíblicos, o soldado romano teria utilizado para perfurar o peito de Jesus na cruz, para ter a certeza de que ele estava morto. "São Longuinho é dos santos mais populares da Igreja, e sua devoção remonta aos tempos da igreja primitiva. O nome 'Longuinho' é um derivação de 'Longinus', termo latino que designa um tipo de lança romana", explica o escritor e teólogo J. Alves, pesquisador de histórias de santos. "Existem poucos relatos históricos sobre a vida desse personagem, mas é interessante pensar em seu nome como, lendariamente, essa associação à lança", pontua o estudioso de hagiologias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos. Segundo o Evangelho de João, os judeus não queriam que os corpos dos executados ficassem expostos na cruz durante o sábado, por conta da Páscoa. "Pilatos ordenou, então, que os soldados lhes quebrassem as pernas e os retirassem da cruz. Como Jesus já estava morto, um dos soldados abriu-lhe o lado com um golpe de lança", diz Alves. Fim do Matérias recomendadas "A tradição popular identifica São Longuinho como esse soldado romano, o centurião Cássio, que teria traspassado o lado de Jesus com a lança, de onde saiu sangue e água", completa o pesquisador Alves. Nos evangelhos canônicos, não há menção ao nome do soldado. "Mas há uma referência a Longuinho no livro apócrifo dos Atos de Pilatos, que foi produzido por volta do século 6 ou 7 depois de Cristo", diz Maerki. "Concretamente o que se sabe originalmente dele é o registro no Martirológio [o livro com o nome dos santos católicos]: 'Em Jerusalém, a comemoração de São Longino, venerado como o soldado que abriu com a lança o lado do Senhor pregado na cruz'", pontua José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará. Lira ressalta que a Bíblia, "o texto sagrado, não lhe atribui nome, nem seus feitos, mas a tradição o registra". Na Legenda Áurea, conjunto de narrativas hagiográficas reunidas por volta de 1260 pelo arcebispo de Gênova, Jacopo de Varazze (1229-1298) há a menção de que Longuinho tenha sido "um dos centuriões que vigiavam a cruz do Senhor por ordem de Pilatos" e que teria sido ele "quem perfurou o flanco do Senhor com a lança, mas vendo os prodígios que então aconteceram" teria se convertido. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pela tradição, quando o soldado acertou Jesus com a lança, o sangue teria espirrado nos olhos de Longuinho, curando-o de uma doença ocular que o deixava quase cego. "Dizem que isso se deveu ao fato de algumas gotas do sangue de Cristo terem escorrido pela lança e caído em seus olhos, até então turvados por doença ou por velhice, e que imediatamente passaram a ver com nitidez", diz Lira. Segundo Alves, "diante desse fato miraculoso e vendo os acontecimento que sucederam com a morte de Jesus", o soldado se converteu, deixou o exército romano e teria fugido para a Capadócia, onde acabou sendo preso e martirizado. Maerki analisa essa cura da cegueira como algo metafórico. "Significa que naquele momento, os olhos dele, físicos, carnais, se abriram para uma verdade de fé. Que ele conseguiu abrir seus olhos e enxergar por meio de uma fé cristã", comenta. No livro apócrifo, a sina de Longuinho é narrada. "Ele teria sofrido uma perseguição muito grande por ter transpassado o corpo de Jesus, condenado a ficar em uma caverna onde, todas as noites, um leão aparecia e o despedaçava até o amanhecer. Depois, seu corpo se regenerava e ele voltava ao normal, em uma espécie de padrão que se repetiria até o fim dos tempos", narra Maerki. "É uma tradição lendária. São tradições construídas na Idade Média." E é também lendária a narrativa sobre seu martírio. Acredita-se que Longuinho tenha feito um trabalho de evangelização na Capadócia e isso veio a incomodar os judeus ali assentados. "Autoridades então relataram o problema a sacerdotes de Jerusalém que, por sua vez, avisaram Pilatos [o governador romano que, pela tradição, teria sido o juiz da condenação de Jesus]. Longuinho teria sido então, condenado à morte por traição", diz Maerki. Dois soldados foram então enviados para encontrá-lo, com a missão de trazerem para Pilatos a cabeça dele. Quando chegaram a Capadócia, foram pedir informações em uma casa. Era a casa do próprio Longuinho que, como não foi reconhecido, recebeu seus algozes e ofereceu hospedagem. Na hora da despedida, os encarregados da execução disseram que não teriam como agradecer por tamanha hospitalidade. "E ele teria revelado. Sou Longuinho, a quem vocês estão procurando. E estou pronto para morrer. O maior presente que vocês podem me dar é cumprir as ordens de quem os enviou", diz Maerki. Outra versão é a que consta da Legenda Áurea. Conforme conta Lira, ali diz que Longuinho renunciou à carreira militar, foi instruído pelos apóstolos de Jesus e passou 28 anos de vida monástica em Cesareia da Capadócia — atual Caiseri, na Turquia. "Converteu muita gente à fé por sua palavra e seus exemplos", diz o pesquisador. De acordo com essa versão, ele foi aprisionado e teve os dentes e a língua arrancados, mas mesmo assim conseguia seguir falando. E que quando ele foi condenado à morte, o governador que o sentenciava, estava cego. Longuinho teria dito que logo após a sua morte, ele intercederia pela sua cura de "corpo e alma". "No mesmo instante o governador mandou cortar sua cabeça. Imediatamente recuperou a vista e a saúde e até o fim da vida praticou boas obras", conta Lira. Em um tempo em que não havia processos de canonizações como hoje, ele acabou se tornando santo por conta do martírio relatado. "A tradição uniu-se ao registro bíblico e isso facilitou seu reconhecimento num tempo em que não haviam beatificações, mas, canonizações diretas pelo registro das atas dos martírios que deu origem ao Martirológio", explica Lira. A oficialização de sua santidade foi feita pelo papa Silvestre 2o (950-1003) no ano de 999. "Ele é daqueles santos mártires que viveram nos primórdios do cristianismo e deram testemunho da fé, derramando o próprio sangue em nome de Jesus", argumenta Alves. "O testemunho da radicalidade do Evangelho, que, em nome de Jesus, não teme a morte, como uma lança, afeta o coração do sistema político e religioso do Império Romano e, aos poucos, põe em questão o culto divino ao imperador. É nesse contexto sociopolítico e religioso de uma mudança de era, que devemos situar a vida de São Longuinho, que é tido, pela tradição popular, como testemunha ocular da crucifixão de Jesus." "No Brasil, há essa camada interpretativa muito comum entre o povo mais simples que se tornou algo forte: os três pulinhos para São Longuinho", comenta Maerki. E de onde vem a ideia de ele ser aquele que ajuda a encontrar objetos perdidos? Segundo Alves, tudo começou porque Longuinho era um soldado baixinho. "Tal crença estaria relacionada à baixa estatura dele que, antes da conversão, servia a alta corte romana, durante os banquetes e festas. O fato de ser baixinho lhe permitia uma visão privilegiada dos objetos caídos ao chão, por baixo das mesas, os quais eram recolhidos por ele e entregues a seus donos", conta o pesquisador. E há uma outra explicação, que é relacionada à sua própria canonização, formalizada quase mil anos após sua morte, pelo papa Silvestre 2o. (950-1003). "Parte da documentação do processo havia sido desviada e o papa teria pedido ajuda ao santo para encontrar tais documentos. Logo, tudo foi reencontrado", afirma Alves. Ele relata também que há outra tradição que aponta que São Longuinho tinha dificuldade de locomoção. "Daí a origem dos três pulinhos. Lenda ou não, nada mais atual e necessitante do que a mensagem de São Longuinho, que intercede a Deus pelo resgate de nossa perdas físicas, morais e espirituais, sofridas tanto no âmbito individual e familiar como no âmbito social", diz Alves. Há ainda uma outra curiosidade a respeito do personagem cristão, segundo uma vertente do espiritismo. No livro Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho, publicado em 1938 pelo médium Chico Xavier (1910-2002) — em alegada psicografia atribuída ao jornalista e escritor Humberto de Campos (1886-1934) —, há a tese de que o imperador dom Pedro 2º (1825-1891) teria sido a reencarnação de São Longuinho.
2022-09-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62904563
sociedade
Por que a geração Z evita rotular relações amorosas
Já se foi o tempo em que assistir a um filme ou tomar um sorvete era tudo o que um casal precisava para se firmar como casal. O namoro moderno mudou ao longo do tempo, até tornar-se uma série delicada (e, às vezes, complicada) de "primeiros passos" para pessoas jovens. Pesquisas demonstram que a postura da geração Z (os nascidos entre 1995 e 2010; os anos são aproximados, porque não há um consenso claro desta classificação) frente ao namoro e ao sexo evoluiu com relação às gerações anteriores. Eles adotam uma abordagem bastante pragmática sobre amor e sexo e, por isso, não priorizam compromissos românticos da mesma forma que as gerações anteriores. Mas isso não quer dizer que eles não tenham interesse em romance e relacionamentos íntimos. Na verdade, eles estão descobrindo novas formas de satisfazer esses desejos e necessidades com formas que se encaixem melhor nas suas vidas. Esta mudança gerou um novo termo em inglês - situationship (algo como "estar em uma situação"), que descreve exatamente a área cinzenta entre a amizade e o relacionamento amoroso. E os especialistas afirmam que a popularidade deste estágio do namoro, que é difícil de definir e acabou designado pelo termo "situação", disparou entre a geração Z. Fim do Matérias recomendadas "Atualmente, esses acordos resolvem algum tipo de necessidade de sexo, intimidade, companheirismo - o que seja - mas não têm necessariamente um horizonte de longo prazo", segundo Elizabeth Armstrong, professora de Sociologia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. Suas pesquisas concentram-se especificamente na sexualidade e nas "situações". E as pessoas vêm adotando cada vez mais esta nova classificação de relacionamento. O termo situationship começou a ganhar força em inglês no final de 2020, até atingir recorde de pesquisas no Google em 2022. Segundo Armstrong, o interesse pelas "situações" é mundial e independe de etnias, gêneros e orientações sexuais. A criação e o crescimento contínuo dessa expressão, especialmente entre os jovens, revelam muito sobre como a geração Z está redefinindo o significado do amor e do sexo, de forma diferente das gerações que a antecederam. Uma "situação" é um acordo informal, tipicamente entre duas pessoas que compartilham conexões físicas e emocionais, fora da ideia convencional de um relacionamento comprometido e exclusivo. Em alguns casos, as "situações" são restritas a um certo tempo e pela ideia de que um acordo casual é a melhor opção naquele momento. Pode ser o caso de dois universitários cursando o último ano, por exemplo, que não querem progredir para um relacionamento comprometido, já que novos empregos podem levá-los para cidades diferentes após a formatura. Armstrong defende que as "situações" são populares porque elas desafiam o "elevador do relacionamento": a ideia de que as parcerias íntimas precisam ter uma estrutura linear com o objetivo de atingir marcos convencionais, como morar juntos, o noivado e o casamento. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O conceito da "situação" contraria "essa noção de que estar com alguém em algo que não dará em nada é 'perda de tempo'", afirma a professora - um sentimento que, segundo ela, a geração Z vem abraçando cada vez mais. As pessoas que adotam esses acordos decidem voluntariamente entrar na área cinzenta dos relacionamentos indefinidos. Segundo Armstrong, eles acreditam que "a 'situação', por alguma razão, funciona no momento. E, no momento, não vou me preocupar em ter algo que 'dê em alguma coisa'." Pesquisas confirmam essas observações. Em entrevistas com 150 estudantes de graduação, a professora de Sociologia Lisa Wade, da Universidade Tulane, nos Estados Unidos, observou que a geração Z é mais relutante a definir o relacionamento ou mesmo admitir que deseja seu progresso. Wade afirma que sua pesquisa demonstrou que "esconder as cartas não é algo exclusivo dos jovens de hoje em dia", mas a geração Z está mais disposta a ocultar seus sentimentos. Nas redes sociais TikTok e Twitter, os participantes - especialmente os da geração Z - compartilham muitas histórias de "situações". No TikTok, vídeos com a hashtag #situationship foram vistos mais de 839 milhões de vezes. Existem também muitas referências na cultura pop. O termo "situationship" aparece em programas populares de namoro na TV como o britânico Love Island UK e em músicas como Situationship, da cantora millennial sueca Snoh Aalegra. "Nós brincamos, eu e meus amigos, que estamos todos vivendo a mesma vida", afirma Amanda Huhman, do Texas, nos Estados Unidos, sempre que ela e seus amigos comparam as observações sobre suas "situações". Com 26 anos de idade, Huhman documentou no TikTok sua experiência em uma "situação". Pelas suas próprias interações e pelo engajamento que vem observando, ela acredita que esse tipo de acordo seja comum. "Acho que está se tornando uma parte muito popular da cultura do namoro, pelo menos para a geração Z e para os millennials (nascidos entre 1981 e 1995) mais jovens." Huhman está há mais de um ano no que ela descreve como uma "situação". E, quando postou sua experiência no TikTok, ela conseguiu cerca de 8 milhões de visualizações e dezenas de milhares de comentários - muitos deles, de pessoas compartilhando suas próprias situações. Huhman é consultora de saúde e seu trabalho é remoto. Ela viaja muito e se muda para novas cidades onde mora por alguns meses de cada vez. Ela afirma que estar em uma "situação" oferece mais liberdade e autonomia. "Nossa cultura de namoro hoje em dia é muito caótica e confusa", acredita Huhman. "[A geração Z] vive este... estilo de vida atribulado e acho que meio que adaptamos o namoro a isso." Encontrar o amor nos tempos atuais traz uma série de desafios. A pandemia, por exemplo, mudou completamente a forma como as pessoas conhecem parceiros e namoram. E a mudança em larga escala para o namoro online também traz suas próprias dificuldades. Além disso, muitos jovens simplesmente não estão enfatizando intencionalmente o namoro como no passado. A crise climática, a economia instável com inflação crescente e a atual convulsão política e social fizeram com que os jovens ficassem mais envolvidos com o ativismo e buscassem sua estabilidade pessoal, profissional e financeira em primeiro lugar. "Os jovens diriam que os relacionamentos os distraem dos seus objetivos educacionais e profissionais - e que é melhor não se comprometerem demais, para não sacrificar sua própria trajetória de vida por outra pessoa", afirma Wade. Por isso, as "situações" podem ser a melhor opção para os jovens da geração Z que desejam explorar suas identidades românticas e sexuais sem prejudicar outros compromissos. Este fenômeno "diversifica as opções disponíveis para uma pessoa", segundo Armstrong, e tornou cada vez mais normal optar por essa área cinzenta, em vez de evitá-la. Mas é claro que este acordo - obscuro, por definição - traz certa precariedade e até algum grau de risco. Teoricamente, as "situações" podem funcionar como um abrigo de "honestidade radical", segundo Wade, quando duas pessoas se abrem sobre o que realmente querem e concordam com os termos de uma situação transparente. Mas, na prática, pode ser difícil alinhar as prioridades das duas pessoas e as "situações" podem acabar mal quando as duas partes estão fora de sintonia sobre o que querem da situação. O mais comum, segundo ela, é que isso aconteça quando uma pessoa está pronta para progredir para um compromisso, mas o medo da mudança pode impedir que os dois cheguem até mesmo a discutir esta possibilidade. De qualquer forma, no mundo atual do namoro, o interesse crescente pelas "situações" indica uma mudança da forma em que os jovens podem redefinir o progresso do amor e do sexo - aceitando que o seu sentimento é um campo intermediário satisfatório que muitas pessoas das gerações anteriores costumavam evitar. Com relação a Huhman, ela está perfeitamente satisfeita em viver na zona cinzenta. "A escolha é minha, é uma decisão que tomei e estou feliz. Está funcionando para mim", ela conta. "Se as pessoas estiverem confortáveis e se para elas parecer certo, não se preocupem com as expectativas."
2022-09-18
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sociedade
Como discriminação por altura pode afetar a carreira
É difícil identificar a discriminação das pessoas pela sua altura. Mas existem evidências de que nosso viés sobre a estatura das pessoas influencia as carreiras de muitos profissionais. Em 2010, Iram encontrou uma oportunidade de trabalho como segurança em uma universidade particular em Karachi, no Paquistão. E ele a abraçou com plena dedicação. Trabalhando no turno da madrugada, ele se empenhou em projetar firmeza no que fazia, protegendo o local contra roubos e vandalismo. E ainda era simpático com as pessoas, já que era o primeiro ponto de contato com os visitantes no início da manhã. Mas nem tudo foi um mar de rosas. Com 1,57 m de altura, ele está apenas alguns centímetros abaixo da estatura média do homem paquistanês. Mesmo assim, os colegas à sua volta davam apelidos a Imran. "Munna bhai!", exclamou um deles - uma expressão afetiva local para um irmão menor. "Bona", chamou outro - anão ou pigmeu, em idioma urdu. Fim do Matérias recomendadas Imran, cujo nome completo é omitido por motivos de segurança no trabalho, afirma que tem orgulho de quem é e consegue lidar com os pontos positivos e negativos relacionados à sua altura. Mas ele suspeita que existe uma área em que sua estatura causa impacto particularmente negativo: o salário. "Quando chega a hora do aumento salarial, sou comparado com os novos seguranças. Eu sirvo a esta instituição há muito tempo; eu não deveria estar na mesma [faixa salarial] deles", desabafa Imran. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ninguém declarou que há uma relação direta entre as duas questões e até Imran às vezes se pergunta se não estaria exagerando ao achar que sua estatura seria responsável por ele não ser promovido. Mas, quando se viu, no ano seguinte, novamente na mesma faixa salarial dos seguranças recém-contratados, Imran só pôde imaginar que as avaliações baseadas na sua altura - e não no seu trabalho - estavam impedindo seu progresso. A discriminação contra altura é um dos preconceitos menos conhecidos e discutidos e um dos mais difíceis de serem confirmados. Como Imran, muitos acham que seria absurdo imaginar uma coisa dessas, e questionam se faria sentido associar baixa estatura a qualidades negativas. Mesmo as pessoas com estatura "normal" ou acima da média acham difícil acreditar que algum dia já discriminaram alguém com base na altura ou se beneficiaram da própria estatura. Mas pesquisas indicam que, profissionalmente falando, a altura afeta homens e mulheres de forma clara, mas levemente diferente. Estudos demonstram que a renda dos profissionais é proporcional à sua estatura - os recrutadores favorecem candidatos mais altos e a estatura influencia oportunidades de promoção. E as pesquisas também demonstram que nós consideramos que homens e mulheres mais altos são mais aptos a liderar, acreditando que eles são mais dominantes, inteligentes e saudáveis. Os homens altos têm maior probabilidade de assumir cargos de chefia. Mas a discriminação pela altura é um viés implícito, que podemos manter no subconsciente ou até internalizar, sem percebermos. E é por essa dissimulação que ela é particularmente difícil de ser erradicada. Sabemos que existem diversas formas de discriminação relacionadas à nossa aparência, como a discriminação pelo peso ou por ter aparência jovem. Mas nós também discriminamos pessoas com base na altura, pois vemos certas estaturas como se fossem melhores que outras. O professor Omer Kimhi, da Faculdade de Direito da Universidade de Haifa, em Israel, pesquisou sobre a discriminação pela altura. Ele acredita que esse preconceito tem raízes evolutivas, devido à importância da força e da estatura no reino animal. Ele afirma que, "se você for maior, você é o chefe do grupo. Parte disso permanece enraizada... e nós percebemos a estatura como ligada a autoridade, a força e a posições superiores". Nossa admiração pela altura pode até ser instintiva - uma reminiscência das formas primitivas com que mapeamos as hierarquias sociais no passado. Nas sociedades ancestrais, a boa forma e a imposição física eram características importantes da liderança. Mas Erin Pritchard, professora de Estudos das Deficiências e integrante do Centro de Estudos das Deficiências e Cultura da Universidade Hope de Liverpool, no Reino Unido, afirma que nós preservamos a discriminação pela altura de diversas formas na sociedade moderna. "Cada país tem a sua própria altura ideal, e ela se torna o que todos 'deveriam' ser. Se você estiver abaixo, nós nos perguntamos [se algo está] errado - enquanto reverenciamos as pessoas altas", afirma ela. A discriminação por altura chega a se infiltrar na linguagem, que é repleta de expressões que salientam as virtudes de ser alto e associam qualidades negativas à baixa estatura. "Estar por baixo", por exemplo, quer dizer "fracassar", enquanto "ficar por cima" significa "vencer". Subconscientemente, formamos crenças sobre as pessoas, relacionando a altura a qualidades físicas e cognitivas. Subliminarmente, nós consideramos que as pessoas mais altas são mais capazes, tolerantes a riscos, dominantes, extraordinariamente talentosas e até carismáticas. Por outro lado, "pessoas mais baixas não são tomadas com tanta seriedade", explica Pritchard. "[Elas] não são respeitadas e podem ser o alvo das brincadeiras." Mesmo assim, as pessoas geralmente não reconhecem seu próprio preconceito contra altura ou não consideram que esta seja uma forma de discriminação. Isso acontece porque este tipo de preconceito é um viés implícito e não se enquadra no nosso modelo mental de discriminação como ato intencional e prejudicial. Gerentes, por exemplo, podem não suspeitar que a forma como observam um funcionário específico - e suas perspectivas profissionais - é relacionada, de alguma forma, à sua estatura, o que dificulta muito o combate a esta questão. No caso de Imran, por exemplo, ele não sabia nem mesmo como perguntar aos seus superiores se a sua altura era um fator que impedia seus aumentos salariais. "Vou falar com quem? Sou grato por ter um trabalho tão importante [e] o que eu diria? Como começo sem estragar tudo?", comenta ele. Apesar das dificuldades para identificar esta forma de discriminação, o preconceito contra altura causa impactos profundos ao sucesso dos profissionais. E esses impactos já foram medidos. Pesquisas sobre a discriminação sistêmica em decisões de contratação demonstraram que os empregadores podem rejeitar candidatos mais baixos, mesmo se o seu currículo for similar a um candidato mais alto - e eles associam subjetivamente características profissionais positivas, como confiança, competência e capacidade física, à alta estatura. Após a contratação, meta-análises exibem percentuais de promoção proporcionais à estatura dos funcionários. Kimhi indica a pesquisa amplamente mencionada do jornalista Malcolm Gladwell, realizada entre 500 presidentes de empresas relacionadas pela revista Fortune. Gladwell publicou a pesquisa no seu livro Blink, de 2005 (publicado no Brasil pela Editora Sextante). "Na população norte-americana, cerca de 14,5% de todos os homens têm 1,80 m de altura ou mais. Dentre os presidentes das 500 empresas da Fortune, o percentual é de 58%", segundo Gladwell. A altura pode também contribuir para a diferença salarial. Estudos do Reino Unido, da China e dos Estados Unidos demonstram correlação entre maior estatura e maiores salários, embora os números exatos variem. E existe também um componente de gênero. Uma pesquisa realizada por Inas R. Kelly, professora de Economia da Universidade Loyola Marymount, na Califórnia (Estados Unidos), revelou sensíveis diferenças no efeito da estatura sobre a renda média por gênero. Ela afirma que "os homens brancos recebem uma diferença muito maior para cada 10 cm adicionais do que as mulheres brancas" e essa diferença é ainda mais pronunciada entre os afro-americanos. Isso também está relacionado à ideia de que mulheres podem ser "altas demais" - e que mulheres altas acabam enfrentando um tipo de discriminação que não existe para homens. Um estudo entre mulheres estudantes universitárias altas concluiu que sua altura acima da média resultou em "intimidação não intencional". "Se uma mulher é mais alta que as outras, ela pode ser considerada uma ameaça", afirma Pritchard. "Como mulher, se você mostrar dominância, é considerada agressiva. Pode ser problemático." Por outro lado, os homens são mais vulneráveis à discriminação por altura. As conclusões de Kelly indicam que homens mais altos têm mais a ganhar do que mulheres por serem altos, mas as mulheres mais baixas têm menos a perder por serem baixas. A diferença salarial com mulheres altas será menor, talvez porque uma mulher um pouco mais baixa que a média pode ainda ser considerada "pequena" ou "mignon", segundo Pritchard. É claro que o preconceito por altura não se manifesta apenas nos julgamentos externos de um indivíduo. Pesquisas indicam que existem outros fatores relacionados à altura que moldam o comportamento das pessoas e, por sua vez, podem afetar os resultados no trabalho. Kelly salienta que muitos especialistas argumentam que a altura é associada positivamente à capacidade cognitiva e, por isso, a alta estatura é bem-vista - e melhor recompensada - no mercado de trabalho. Ela também sugere que a questão mais ampla é se os indivíduos mais baixos podem ter enfrentado discriminação que tenha afetado sua autoestima, sua saúde mental e estabilidade emocional, o que pode ter consequências sobre possíveis promoções e salários. Crianças mais altas, por exemplo, podem ter maior autoestima porque têm mais oportunidades de participar de equipes esportivas na escola, enquanto os estudantes mais baixos podem ter sofrido bullying, prejudicando o desenvolvimento de suas habilidades interpessoais e sua autoconfiança. Da mesma forma, ser alto pode também alimentar outros sucessos - como no campo do romance ou da capacidade de atração - que criam mais confiança e geram uma expectativa de autorrealização. "É difícil descartar a discriminação em alguma etapa [da vida] - se não com o empregador, então em uma etapa anterior", afirma ela. Considerando como a discriminação por altura é enraizada e, ainda assim, dissimulada, pode ser difícil encontrar formas concretas de combatê-la. A legislação sobre o assunto existe apenas em algumas jurisdições, como a abrangente Lei Elliot Larsen dos Direitos Civis, do Estado americano de Michigan. Ela proíbe os empregadores de discriminar os profissionais com base na altura no momento da contratação e da definição de salários. Existem leis que proíbem que a altura seja relacionada como pré-requisito para a contratação, exceto por qualificações ocupacionais necessárias para a realização normal do trabalho. Mas, mesmo nos lugares onde a legislação existe, muito poucos casos são denunciados. Omer Kimhi indica que, como é muito difícil identificar a discriminação por altura, são necessários dados. Muitas empresas já mantêm dados sobre gênero e etnia, para poderem rastrear progressos no campo da inclusão. Pode parecer algo distante, mas Kimhi acredita que a inclusão da altura nesses dados, forçando a publicação das variações salariais de acordo com a estatura dos funcionários, ajudará as empresas a acompanhar a possível ocorrência dessa discriminação. "E, se eles observarem isso, as coisas irão mudar", acredita ele. Erin Pritchard espera que as contratações remotas por videoconferência ou currículos em vídeo possam reduzir o viés que surge durante a contratação. "Quando você está online, você vê apenas a cabeça e os ombros [do candidato] e não pode fazer julgamentos subliminares", afirma ela. "E, se eles contratarem alguém que acabe sendo uma pessoa ótima (para o cargo), quando [os empregadores] descobrirem que a pessoa que faz aquele trabalho fantástico tem apenas 1,57 m de altura, o funcionário já terá construído uma reputação sólida." De forma mais ampla, os especialistas indicam que pode também ser o momento de reconsiderar nossa glorificação evolutiva da estatura, avaliando criticamente as diferenças entre os ambientes ancestrais e modernos. E que precisamos também questionar se as qualidades que antes considerávamos vitais para o sucesso realmente são relevantes para a realização profissional no ambiente de trabalho atual. Mas, considerando a natureza profundamente arraigada das nossas convicções, pode ser pedir demais. Afinal, enquanto as pessoas ainda acreditarem que o sucesso e a liderança - e até a discriminação - têm uma aparência específica, o problema não irá desaparecer. A mudança, por mais clichê que possa soar, precisa vir de dentro, questionando preconceitos implícitos e nos autocorrigindo quando percebermos que estamos dando importância demais à estatura das pessoas. Combater a discriminação por altura será uma longa jornada. Ou, nas palavras de Pritchard, "como a maioria das discriminações, será um processo contínuo".
2022-09-18
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sociedade
‘Me demiti em crise de ansiedade’: os relatos de assédio e pressão dos estagiários de Direito
Uma tentativa de suicídio durante o expediente chocou o mundo do Direito e disparou um alerta sobre o tratamento dado a estagiários do ramo. Em agosto, um jovem estagiário de um dos escritórios de advocacia mais renomados do país se feriu durante a tentativa, mas foi atendido no local e encaminhado ao hospital com vida. Apesar das lesões, ele passa bem. O escritório afirmou por meio de um comunicado à imprensa que "lamenta o incidente" e que ofereceu toda a assistência ao jovem, seus familiares e colegas de trabalho. O ocorrido causou revolta. Nas redes sociais, inúmeros relatos passaram a denunciar condições abusivas de trabalho que muitos estagiários de Direito têm de enfrentar em suas primeiras experiências profissionais. O perfil do Instagram "Escritórios expostos" (@escritoriosexpostos) surgiu como uma página que recolhe e expõe relatos de assédio moral e sexual vividos em escritórios de advocacia. Fim do Matérias recomendadas Com mais de 50 mil seguidores, as histórias publicadas pelo perfil revelam um mundo de cobranças absurdas, prazos irreais e tratamento interpessoal grosseiro e abusivo. O estagiário de Direito Thiago*, de 24 anos, conta que viveu essa cultura de trabalho tóxica em alguns dos maiores escritórios da capital paulista e relata jornadas de trabalho exaustivas e incompatíveis com as diretrizes de um estágio. "Cansei de ficar mais de 12 horas no escritório. Era comum trabalhar até 22h ou no final de semana", diz. Segundo o estudante, a lógica dos locais onde trabalhou indicava que sair no horário correto era sinal de que o funcionário estava sem trabalho. "Se você não ficasse até mais tarde, era pressionado. Eles diziam que você não estava rendendo o esperado." Além disso, as metas estabelecidas pelos chefes não eram condizentes com a realidade, diz Thiago. "Eles dobravam a meta todo mês. Diziam que, se você conseguiu atingir a meta anterior, conseguiria atingir a nova." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A pressão também era um fator constante. Ele relata que, em um dos escritórios onde trabalhou, reuniões eram marcadas caso não conseguisse entregar tudo o que lhe foi pedido. "A reunião era feita aos gritos, e você era ofendido de inúmeras maneiras." Tiago diz que não foram poucas as vezes que viu colegas de estágio terem crises de choro durante o expediente. Em certa ocasião, ele conta, uma estagiária saiu no meio do almoço em prantos, e uma das sócias do escritório olhou para aquela situação e afirmou que chorar no ambiente profissional era como um rito de passagem para trabalhar ali. "Eu me demiti de um dos escritórios porque não conseguia mais ficar lá", relata o estudante. "Estava no meio de uma crise de ansiedade e só queria sair daquele lugar. Saí dali aos prantos e quase fui atropelado, queria me jogar do primeiro local que encontrasse." Desde esse incidente, Thiago passou a fazer acompanhamento psicológico, psiquiátrico e a tomar remédios. "O assédio moral no mundo da advocacia contra funcionários temporários existe de forma sistemática em escritórios de grande e médio porte", afirma Roberto Heloani. Com formação em Direito e Psicologia, ele é professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista sobre assédio moral no trabalho. O pesquisador define o assédio moral como um produto de uma rede de violências estabelecidas em um ambiente profissional. Em um local onde pessoas são obrigadas a cumprir metas abusivas, cria-se uma rede de violência. Engana-se, no entanto, quem caracteriza o assédio moral como uma prática individual. Para o pesquisador, ele é uma reflexo da pressão vivida em um ambiente. "Quando a lógica de trabalho obriga alguém a cumprir metas a todo custo, isso cobra um preço na saúde mental. O profissional acaba descontando essa pressão em quem está mais próximo." Essa violência, segundo o pesquisador, costuma ser legitimada por uma estrutura hierárquica. "O assédio é caracterizado por uma assimetria de poder. Alguém tem um poder muito maior e o exerce de forma abusiva." "Por ser o elo mais fraco da corrente, é o estagiário quem muitas vezes sofre as pressões, estresses, cobranças e violências", relata o pesquisador. "O autoritarismo é a grande ferramenta daqueles que não sabem comandar." Segundo ele, houve na última década um grande número de casos de assédio moral contra funcionários temporários. Como não tem vínculo empregatício, o estagiário é entendido como um empregado deste tipo. Em 2022, a Organização Internacional do Trabalho incluiu em sua convenção sobre violência e o assédio o estagiário como categoria que deve ser protegida. O pesquisador entende que esse é um sinal do quão alarmante e real é a situação dos estudantes de Direito. Para Paulo Eduardo Vieira de Oliveira, professor da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito do Trabalho, a relação de subordinação entre empregado e empregador faz com que assédios morais se desenvolvam com maior frequência nesses casos. "O estagiário se encontra em uma posição de fragilidade, porque ele sabe que está sendo avaliado todos os dias. Com isso, ele está mais suscetível a sofrer pressões profissionais", afirma Oliveira. Quanto mais baixa a posição de um funcionário na hierarquia de uma empresa, maior o medo de ser demitido. "O sonho de qualquer estudante é ser contratado. Logo, eles vão sentir maior pressão para ter uma conduta perfeita no emprego", diz Oliveira. O mundo jurídico tem dois fatores que o torna particularmente propenso à prática do assédio moral. "É um ambiente de pessoas estressadas", relata Heloani. "Há uma quantidade de processos e uma demanda de trabalho muito alta. É também um mundo muito hierárquico, que envolve muito poder. A lógica da violência do assédio acaba sendo facilitada em um ambiente como esse." Heloani garante que isso não justifica uma conduta abusiva, mas que é importante entender como surge. Em um ambiente que trabalha com advogados, promotores, procuradores, juízes e outras formas de autoridades, quem não consegue distinguir autoridade de autoritarismo acaba cometendo assédio moral. "Não há como fazer justiça em um ambiente onde as pessoas estão angustiadas", reitera o pesquisador. Além de todas as questões citadas acima, um problema enfrentado por estagiários no Direito é a forma com que a posição foi sendo distorcida ao longo do tempo. O estágio deveria ser uma oportunidade de aprendizado, mas se tornou na prática uma forma de mão de obra barata. "Onde trabalhei, os estagiários tinham demandas de advogados", afirma Thiago. "Muitas vezes, cuidávamos de processos sozinhos. Se tivéssemos dúvidas, éramos tratados com rispidez." O estudante afirma que aqueles que não rendessem o que era esperado ou questionassem o trabalho exaustivo eram demitidos. "Sem direitos, os estagiários saiam com uma mão na frente e outra atrás", relata Thiago. Heloani diz que as empresas de advocacia contratam "escraviários". "Com isso, a prática de assédio se intensifica." Como a mão de obra é descartável, no primeiro sinal de rebeldia, a convivência profissional se torna conflituosa. "É a forma de colocar aquele sujeito para fora", relata Heloani. Natália*, de 31 anos, conta que viveu uma situação parecida. A advogada estava há alguns anos na posição de estagiária. "Um professor me ofereceu uma vaga. Ele me falou que eu poderia estudar no escritório, então, aceitei", diz. A vaga, no entanto, era de oito horas por dia, não de seis como manda a lei. Natália afirma que não era instruída por seu chefe e que, em diversos momentos, se sentia perdida, sem o conhecimento necessário para as tarefas. "Se ninguém te ensina, não tem como você saber o que é errado." Em certa ocasião, ela diz que trabalhou por dias em uma liminar que acabou sendo indeferida. Natália recorda que seu chefe a chamou na frente de todo o escritório e a humilhou, afirmando que ela não era capaz de fazer algo simples - apesar de ainda haver possibilidade de recurso. "Ele só não me chamou de burra porque não quis. Chorei copiosamente naquele dia." No dia seguinte, segundo Natália, o chefe a chamou no escritório e disse que seria possível recorrer. A fundamentação utilizada pela estagiária estava correta. "Quando foi pra me diminuir, a pessoa fez em frente a todo o escritório. Para pedir desculpas, foi no privado." Mesmo formada há mais de dois anos, Natália ainda se sente insegura quando trabalha. "Eu me lembro daquela situação e me pergunto se sou capaz. Quando esse tipo de assédio ocorre, você perde a esperança. Começa a imaginar que está no lugar errado, que fez o curso errado." De acordo com a advogada, após o ocorrido, ela optou por sair do escritório e ficar sem trabalhar até se recuperar. "Moro com meus pais e não tinha que me submeter a esse tipo de tratamento para sobreviver. Infelizmente, conheço muitas pessoas que não tiveram essa opção." Heloisa Toledo, diretora do XI de Agosto, centro acadêmico de Direito da USP, diz que muitos alunos enxergam o estágio não só como uma oportunidade de aprender, mas uma fonte de renda que possibilita manter-se na faculdade. "O estudante de baixa renda muitas vezes recebe um salário no setor privado que é alto para seus parâmetros", pondera. Filha de uma costureira com um gari, ela aponta que qualquer estágio que ela faça no setor privado vai lhe pagar mais do que os salários dos pais combinados. "O estudante acaba encarando o estágio como um emprego e tem medo de perder a vaga e não conseguir continuar na faculdade", diz. A contrapartida é que, apesar do salário maior, os estagiários não são trabalhadores formais amparados pela CLT. Isso cria uma brecha jurídica que possibilita inúmeros abusos. "Os estagiários são cobrados como se fossem advogados formados, quando a maioria ainda está no terceiro ano da universidade", diz Heloisa. Além da renda que o estágio proporciona, ela diz que uma "cultura do medo" faz com que os estudantes se submetam a situações de assédio e abuso. "Os escritórios conversam. Há um medo de denunciar, se expor e isso interferir na sua carreira jurídica." Thiago concorda: "O estagiário sabe que, se denunciar o que sofreu, dificilmente vai arranjar outro emprego. Denunciar assédio moral é manchar sua carreira". "O estágio é uma experiência que toda pessoa que faz Direito deve ter", afirma Heloani. Ele vê com muita tristeza o fato de que jovens tenham seus sonhos profissionais destruídos por conta do assédio moral. "O estagiário geralmente é alguém que está entrando na vida adulta, eles ainda não estão formados. As agressões sistêmicas abalam de forma grave a saúde mental de alguém, podendo produzir ou agravar transtornos mentais." Tanto Thiago quanto Natália apresentaram sintomas de doenças mentais após suas experiências. Ambos consideram que estão melhores, graças a tratamento médico, medicação e ao passar do tempo, mas são categóricos ao afirmar que as experiências traumáticas deixaram marcas. "Já perdemos jovens com potenciais brilhantes por conta dessa violência", relembra Heloani. O pesquisador entende que, para evitar que isso continue ocorrendo, é necessário o engajamento de todas as esferas do mundo do Direito. "É dever também da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] averiguar os casos e, se comprovados, punir os escritórios que praticam assédio", diz Heloani. Em nota à BBC News Brasil, a OAB afirmou que a entidade "acompanha com preocupação casos de suposto assédio moral contra estagiários e advogados". "O combate aos diversos tipos de assédio é tema de uma ampla campanha nacional patrocinada pela OAB desde o primeiro semestre. Além disso, o assunto está na pauta da próxima reunião, no início de setembro, do Colégio de Presidentes, instância que reúne todos os presidentes de seccionais das OABs nos Estados além da direção nacional da entidade." *Os nomes dos entrevistados foram alterados para preservar suas identidades.
2022-09-17
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sociedade
'A Yakuza virou minha família': a artista que viveu no submundo da máfia japonesa para retratar suas mulheres
Tudo começou em uma noite de embriaguez, 15 anos atrás, em um bar de Paris. "Minha amiga e eu estávamos desoladas porque havíamos rompido com nossos namorados. Bebemos muito vinho e dissemos 'vamos para longe, para o Japão', mas poderia ter sido para qualquer outro lugar", conta a fotógrafa Chloé Jafé, nascida em Lyon, na França, em 1984. E ela foi. Um mês de viagem a levou da total indiferença à fascinação pela cultura japonesa. E ela decidiu repetir a experiência. "Na minha segunda viagem, pensei 'na próxima vez, fico por aqui'. Eu sentia que tinha algo a fazer aqui, mas não sabia o quê", relembra ela. Enquanto mergulhava na cultura japonesa, desde filmes antigos sobre samurais até séries, romances e quadrinhos, Jafé começou a ser atraída pelo submundo do crime organizado, representado no Japão pela Yakuza - a máfia. Fim do Matérias recomendadas "De certa forma, é atraente", afirmou ela à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Dividida em grupos ou sindicatos, nos moldes da máfia italiana, a Yakuza opera em todo tipo de negócios ilegais, que incluem desde jogos de azar, drogas e prostituição até agiotagem, redes de extorsão e crimes do colarinho branco. Seu nome tem origem nos números 8, 9 e 3 (em japonês, ya, ku e sa). Esses números compõem a pior jogada possível de cartas de baralho no Japão. Por isso, seus membros consideram o termo pejorativo. Eles preferem as denominações gokudo ("o caminho extremo") ou ninkyo dantai ("organização honrada ou cavalheiresca"). As origens da Yakuza remontam ao século 17, mas seu auge foi na segunda metade do século 20, com o florescimento do submundo causado pelo vertiginoso desenvolvimento econômico japonês após a Segunda Guerra Mundial. Mas a modernização da sociedade japonesa e a perseguição policial dizimaram a Yakuza. Ela chegou a ter mais de 200 mil membros na década de 1960, mas em 2021 eram pouco mais de 12 mil, segundo estimam as forças de segurança. E esses membros têm uma característica em comum: todos são homens. "Percebi que não havia mulheres e me perguntava por quê", relembra Jafé. "'Certamente deve haver mulheres, apenas não se fala sobre elas', pensei." Até que Chloé Jafé descobriu o romance autobiográfico Yakuza Moon, de Shoko Tendo, que relata a adolescência difícil da autora como filha de um gângster japonês. "Eu me senti muito próxima dessa realidade e pensei: 'este é o meu trabalho, preciso encontrar essas mulheres e fazer alguma obra visual com elas'", ela conta. Quando terminou o livro, Jafé decidiu viajar novamente para o Japão - desta vez, para instalar-se no país e retratar as mulheres da Yakuza. No início de 2013, Jafé passou a morar na capital japonesa, Tóquio, sem ter nenhum contato, nem conhecimento do idioma japonês - que é de difícil aprendizado, em parte porque sua escrita combina três alfabetos totalmente distintos. "Era o meu projeto e sou muito teimosa", relembra ela. "Não sabia como, mas tinha que fazer aquilo. Eu sabia que não seria rápido, mas estava feliz por me dedicar a isso sem contar os dias." Dois anos se passaram até que, já com conhecimento razoável da língua japonesa, ela conseguiu um emprego de anfitriã. As anfitriãs (ou kyabajo, "meninas de cabaré") entretêm os clientes de clubes noturnos, normalmente homens de meia idade ou mais idosos, com quem conversam, cantam músicas no karaokê, servem bebidas e acendem cigarros. Chloé define as anfitriãs como "uma espécie de geishas modernas". "Eu me envolvi totalmente com essas mulheres", ela conta. "Algumas tinham o namorado ou o pai na Yakuza e esses clubes costumam também ser dirigidos por essa máfia. Foi um bom ponto de partida para ingressar nesse mundo." Mas sua oportunidade definitiva veio de dia, no meio da rua e por acaso, durante o festival xintoísta Sanja Matsuri, no tradicional bairro de Asakusa, em Tóquio. "Sem saber como, acabei na rua de um chefe da Yakuza", afirma Jafé. "Eu estava sentada e ele surgiu vestido com um quimono e dois guarda-costas. Eu não sabia quem era, mas parecia importante." Ele era um oyabun, o capo da máfia japonesa. Ele a convidou a sentar-se à sua mesa e Jafé ficou com seu número de telefone, com a desculpa de enviar-lhe fotos do festival. "Eu enviei as fotos e o convidei para jantar alguns dias depois. Para ele, foi uma surpresa e eu, sinceramente, estava aterrorizada." Rompendo com a tradição japonesa que atribui todas as iniciativas ao homem, ela escolheu o restaurante ("perto de uma delegacia de polícia e de uma estação de metrô, para o caso de eu precisar correr") e ali o encontrou com seus guarda-costas. Ela já falava bem o japonês, mas preferiu confessar suas intenções em uma folha de papel: "Sou uma fotógrafa francesa e quero fazer imagens de mulheres da máfia do seu país, de forma respeitosa e levando o tempo que for necessário. Preciso de sua ajuda para isso." A resposta foi positiva. "Ele me disse: 'veja, posso apresentar você a pessoas desde Hokkaido [no norte] até Okinawa [no sul]", relembra Jafé. Mas primeiro a artista precisou ganhar a confiança do chefe e das pessoas à sua volta. "Ele brincou comigo por um tempo. Viu que eu era jovem e bonita e pensava se poderia ou não me usar para alguma coisa, comprovar quais eram minhas intenções... definitivamente, colocar-me à prova", segundo Jafé. Pouco a pouco, as pessoas começaram a convidá-la para eventos e reuniões da Yakuza. "Seus guarda-costas vinham me buscar e eu não sabia onde iríamos nos encontrar. Era como em um filme. No começo, eu fazia perguntas, mas ele não respondia. Havia momentos tensos", relembra ela. A princípio, a esposa do oyabun desconfiava dela, mas acabou acolhendo Jafé e a convidou a passar as festas de Ano Novo com a família. Ela conheceu a esposa de outro chefe, que foi a primeira retratada pelo projeto, e ampliou seus contatos com outras mulheres da Yakuza para fotografá-las. "É horrível, mas... suspeito que algumas pessoas que talvez não quisessem ser fotografadas acabaram obrigadas a posar para mim, porque eu era amiga do chefe", confessa Jafé. Depois das primeiras sessões de fotografia em Tóquio, seguiram-se muitas outras em diversos lugares do Japão, como Osaka e no arquipélago subtropical de Okinawa. E foi exatamente em Okinawa, onde o submundo do crime prosperou no século 20 em volta da maior base aérea dos Estados Unidos na região, que se desenvolveu uma das séries da trilogia de Chloé Jafé, Okinawa mon amour ("Okinawa, meu amor", em tradução livre), que mostra o lado mais sombrio e marginal daquelas ilhas. A artista concentrou suas lentes especialmente nas tatuagens das mulheres da Yakuza. "A máfia japonesa é interessante porque está muito vinculada à cultura tradicional do Japão, como no caso das tatuagens, que são relacionadas à mitologia. É quase uma máfia cultural", afirma ela. E, embora hoje não seja incomum ver pessoas com um dragão ou uma cobra na pele em qualquer lugar do mundo, no Japão a cultura das tatuagens e sua percepção é completamente diferente. "Lá as tatuagens não são feitas para mostrar", explica Chloé. A sociedade japonesa desaprova as tatuagens por relacioná-las ao crime e à marginalidade. No Japão, é proibido exibir tatuagens em piscinas e em certos lugares públicos. Para a Yakuza, elas simbolizam lealdade ao grupo e resistência à dor, já que elas costumam ser feitas com o método tradicional, com varas de madeira e agulhas, que é mais lento e doloroso. A primeira série da trilogia de Chloé Jafé chama-se "Dou a você minha vida", que faz referência à devoção declarada aos homens pelas mulheres da Yakuza. "Elas sabem que esses homens não são pessoas corretas e, se elas se unirem a eles, ficarão isoladas da sociedade para sempre, pois ninguém quer ter nenhuma relação com a máfia no Japão", explica Jafé. "Mesmo assim, elas se envolvem com eles porque se apaixonam." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E, embora não sejam membros oficiais, as mulheres desempenham papéis específicos, especialmente nos altos níveis da Yakuza. "Quando você se casa com um capo, deve cuidar dos membros da máfia, conhecer seus dados pessoais, suas histórias e estar a par de tudo porque, se acontecer alguma coisa com seu marido, você precisa assumir o papel dele até que chegue o chefe seguinte", explica Jafé. Segundo sua experiência, a esposa de um oyabun "é a primeira-ministra da máfia, mas faz tudo pelas sombras, sempre por trás de tudo". A Yakuza é também um caminho de difícil retorno, especialmente para as mulheres. "As mulheres que se divorciam dos membros da Yakuza ficam em uma posição difícil, porque nunca poderão sair de verdade", afirma a fotógrafa. "Elas perdem o apoio da máfia, mas, ao mesmo tempo, é quase impossível reconstruir suas vidas e reinserir-se na sociedade japonesa. Elas nunca podem sair do submundo." Muitas delas também se ocupam da administração dos clubes de anfitriãs, das contas e de outros negócios, legais ou ilegais, operados pela máfia japonesa. Terminado seu projeto, Chloé Jafé regressou à França no final de 2019. E acredita que, depois de quase sete anos imersa nos porões da sociedade japonesa, não é mais a mesma pessoa de antes. "Passei muito tempo com eles e nunca mais podia ser uma estrangeira no Japão. Sinto-me parte deles. Eu me sentia parte do grupo, queria honrar o chefe e sua esposa. Eles me acolheram como se fosse sua filha, de forma que se tornaram minha família no Japão", conclui a fotógrafa.
2022-09-16
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62909960
sociedade
10 anos do Tinder: o futuro do app que transformou o amor, o sexo e as relações
"Casei com o amor da minha vida... Obrigado, Tinder", tuitou Alexis Gutierrez, um jovem de 24 anos de Tacoma, nos Estados Unidos. O cupido móvel do casal foi o aplicativo que criou o icônico sistema de paquera baseado na ideia de deslizar para a direita (se você estiver interessado) ou para a esquerda (se não) que — acredite ou não — comemora seu aniversário de 10 anos. Uma década após a sua criação, o Tinder lidera um mercado de namoro online em expansão, com mais de 1.500 aplicativos semelhantes e uma receita projetada de US$ 2,85 bilhões (R$ 14,77 bilhões) em 2022, de acordo com o site de dados alemão Statista. Mas como o aplicativo impactou o amor, o sexo e os relacionamentos? E o que virá pela frente? Apresentamos uma análise da evolução da paquera virtual. Acredita-se que um dos primeiros anúncios de namoro foi publicado em 1727. Fim do Matérias recomendadas Ele supostamente apareceu no Manchester Weekly Journal e foi escrito por uma mulher inglesa que estava procurando por alguém com quem pudesse "compartilhar a vida". Mas o resultado estava longe de ser uma história de amor. Helen Morrison foi aparentemente punida por seu anúncio e enviada para um manicômio por quatro semanas pelo prefeito, de acordo com a revista literária Lapham's Quarterly. Quase três séculos depois, acredita-se que mais de 300 milhões de pessoas em todo o mundo estejam usando anúncios pessoais, aplicativos de namoro e tecnologia em geral, na busca de relacionamentos casuais e românticos. Antes de namorar, muitas pessoas costumavam enviar anúncios no que muitas vezes era apelidado de "coluna dos corações solitários" de jornais. Agora, o estigma de usar o namoro virtual não existe da mesma maneira que há uma década e definitivamente percorreu um longo caminho desde o tempo de Helen. Alexis Gutierrez não estava otimista quando conheceu o Tinder quatro anos atrás, depois de ver um homem interessante nas proximidades. Após "uma ou duas semanas" de bate-papos virtuais, eles decidiram se encontrar pessoalmente. "Ele me pegou em casa e percebi que estava muito nervoso. Felizmente, eu não estava", ela lembra agora, nove dias depois de dizer "sim" ao mesmo homem, usando um longo vestido branco bordado. "Eu não esperava encontrar um amor ou um marido porque, na verdade, a maioria dos homens, especialmente os jovens adultos, estão apenas procurando por relações casuais", disse Gutierrez, recém-casada, à BBC. Mas nem todo mundo é fã. "Não tenho certeza se tenho algo positivo a dizer sobre o Tinder", diz a contadora Amy Marie, de 30 anos, que mora no Texas, EUA. Ela diz que "inúmeros homens" enviam mensagens vulgares ou até agressivas pelo aplicativo. Ela me mostra uma captura de tela de uma dessas mensagens enviadas por um homem imediatamente depois que ela disse "Oi". "É definitivamente uma relação de amor e ódio (com o aplicativo). Mais ênfase no ódio, no entanto." Chelsea Stirling, uma mulher de 35 anos de Nottingham, no Reino Unido, também teve uma experiência frustrante com o Tinder. "As pessoas estão mais interessadas na minha aparência do que sobre o que penso ou digo", diz ela. "A gente dá match e depois começamos a conversar. Então eles leem meu perfil e desconectam", ela continua. "Ou eles desconectam imediatamente antes de falar." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O ódio de Amy Marie pelo aplicativo não é isolado — e se você é mulher, as chances de ter uma experiência ruim com aplicativos de namoro são ainda maiores. Um estudo feito pelo Pew Research Center, em 2020, mostra como as mulheres são desproporcionalmente afetadas pelo assédio. Na faixa etária de 18 a 34 anos, 57% receberam mensagens ou imagens sexualmente explícitas que não pediram. O grupo também relatou altas ocorrências de ameaças físicas: 19% (em comparação com 9% dos homens). Marie Bergström, socióloga e pesquisadora do Instituto Francês de Estudos Demográficos (Ined, na sigla em francês), em Paris, estuda o que chama de "privatização do namoro" em aplicativos como o Tinder. "Esses aplicativos são muito isolados no sentido de que estão completamente desconectados de sua vida social. É diferente de locais de encontro tradicionais como amigos, família, trabalho, escola, onde você compartilha algo - amigos, colegas, lugares - com as pessoas", diz Bergström. "Mostrar seus genitais em um bar é mostrar seus genitais para o mundo inteiro." Mas esse não é o caso em uma tela, onde você pode simplesmente desaparecer apenas apertando um botão, então esse ambiente "extremamente privado e isolado" se torna um terreno perigoso para comportamentos violentos e isso provavelmente não mudará no futuro, diz ela. O Tinder diz que manter as mulheres seguras agora está "no centro das prioridades" do maior aplicativo de namoro do mundo. A empresa de tecnologia lançou uma parceria em julho de 2022 com o grupo de campanha No More, com o objetivo de acabar com a violência doméstica. Mas a primeira executiva-chefe da empresa, Renate Nyborg, reconheceu o desafio que enfrentava para proteger as mulheres no aplicativo, dizendo à BBC na época: " Nosso trabalho de segurança nunca termina." No entanto, Bergström diz que "menos controle social" também pode ter um lado positivo. "As mulheres são julgadas muito mais duramente por seus comportamentos sexuais e ainda existe esse estigma social em torno de serem sexualmente ativas demais." "O que realmente vemos é que as plataformas de paquera virtual permitem que as mulheres se envolvam mais facilmente em um relacionamento de curto prazo, tenham encontros etc. Porque é possível fazer isso sem ser julgada e ter todo mundo falando de você", explica ela. "Portanto, essa desconexão não é apenas negativa - é, na verdade, um grande fator para explicar por que as plataformas são populares." Mas como será o futuro do namoro online? Você provavelmente já deve ter ouvido falar que, no futuro, suas reuniões de trabalho acontecerão no Metaverso - um ambiente de realidade virtual onde seu avatar poderá sentar em volta de uma mesa e interagir com seus colegas como se estivessem juntos pessoalmente. Bem, isso também se aplica ao futuro dos aplicativos de namoro. "Com a realidade virtual, você pode simular o beijo. Você pode simular o toque no corpo", diz Douglas Zytko, professor assistente de interação humano-computador da Oakland University, nos Estados Unidos. "Paqueradores virtuais muitas vezes valorizam esse tipo de experiência como parte da compatibilidade (de casais)", explica ele. Mas isso também é arriscado. "Há uma boa chance de que a experiência negativa que alguns usuários estão tendo agora seja amplificada na realidade virtual pela imersão que ela proporciona", diz Zytko. Imagine um caso em que você esteja rejeitando uma investida romântica ou sexual de alguém em um aplicativo de namoro. "Na realidade virtual, um criminoso não apenas seria capaz de transmitir verbalmente um comentário muito negativo, mas também usaria seu avatar para isso." Mas o que isso significa na prática? Zytko responde: "Eles podem tocar o avatar de outra pessoa de forma negativa. Ou desenhar imagens fálicas ao redor do ambiente virtual. E o que algumas das primeiras pesquisas estão descobrindo é que esses tipos de experiências de toque indesejado através do avatar e da realidade virtual podem ter um efeito psicológico muito semelhante ao que realmente acontece no mundo real." Das partes do metaverso que existem atualmente, apenas algumas - como a Horizon Worlds - são de propriedade da Meta. No entanto, a empresa iniciou novas formas de se proteger. O Personal Boundary, por exemplo, impede que os avatares cheguem a uma distância definida um do outro, tornando mais fácil evitar interações indesejadas, e a empresa diz que também oferece várias maneiras de bloquear e denunciar usuários. "Vimos tendências irem e virem nos últimos anos", diz Zytko. "Então, acho que é muito cedo para dizer se a tendência do metaverso vai se manter." Uma das características mais atraentes dos aplicativos de namoro é a possibilidade de conhecer alguém sentado na outra esquina de um restaurante, de uma rua ou do seu bairro. Alguns aplicativos já estão explorando isso. Por exemplo o Single Town, um aplicativo de namoro que consiste em uma cidade do Metaverso onde os avatares de pessoas reais "andam, escolhem para onde querem ir e com quem conversar". Ao tocar um avatar, é possível ver as fotos reais do usuário, iniciar uma conversa e interagir em um mundo virtual. "Esses tipos de aplicativos estão proporcionando um encontro virtual que ficaria entre a descoberta e o encontro físico." "Esses aplicativos não estão presumindo que você nunca mais vai querer se encontrar cara a cara, o objetivo ainda parece ser possibilitar um eventual encontro pessoal em um relacionamento real." E Zytko acha que isso poderia até reduzir o assédio na vida real. "Ao acrescentar a realidade virtual no meio, você quase pode ter a experiência do primeiro encontro online, antes de se aventurar no mundo real, onde todos esses riscos e danos potenciais se revelam." À medida que a realidade virtual abre novas possibilidades para os desenvolvedores e o número de usuários deve chegar a mais de 672 milhões nos próximos cinco anos, de acordo com a Statista, os aplicativos de namoro tendem a se estabelecer como os lugares essenciais para pessoas que procuram sexo ou relacionamento. "Minha hipótese é que as plataformas de namoro serão cada vez mais importantes para encontrar parceiros", diz Bergström, autor de The New Laws of Love: Online Dating and the Privatization of Intimacy (As novas leis do amor: namoro virtual e a privatização da intimidade, em tradução livre). "E está se tornando menos aceito se envolver sexual e romanticamente em outros contextos. Esse já é o caso do local de trabalho. Está ficando menos aceito se envolver sexualmente com colegas", diz ela. Para a especialista, isso pode ser expandido para outros contextos. "Seria menos aceito ir até alguém em um bar e começar a flertar, ou menos aceito começar a flertar com pessoas na festa de um amigo, com a ideia de que existem plataformas para isso. Como eu disse, isso é uma hipótese: gostaríamos de separar cada vez mais as coisas e ter cada vez menos sobreposições. Portanto, há um lugar para trabalhar. Há um lugar para ir e praticar esportes. Há um lugar para encontrar amigos. E um lugar para flertar." "Uma compartimentalização da vida social", argumenta.
2022-09-15
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62917732
sociedade
Por que prefeitura mapeia, mas não acolhe 760 crianças que vivem sozinhas nas ruas de SP?
Duas crianças caminham perto de uma estação de metrô na zona norte de São Paulo com mochila nas costas. Não há nenhum adulto perto delas. Alguns minutos se passam, elas se separam e entram em barracas de camping distintas, encostadas em um paredão. O Censo divulgado há menos de um mês pela Prefeitura de São Paulo, aponta que há 760 crianças e adolescentes vivendo sozinhos nas ruas. Outras 423 estão acompanhadas de outras crianças e 1566 são acompanhadas de pais ou responsáveis. De 2007 a 2022, o número de menores de idade vivendo nas ruas dobrou, passando de 1842 para 3759, um aumento de 104%, de acordo com o Censo de Crianças em Situação de Rua. Aquelas que vivem sozinhas precisam pensar em como conseguir se alimentar, estudar e manter os cuidados de saúde sem a supervisão de um adulto. Sem pais ou responsáveis, as pessoas ouvidas pela reportagem dizem que os principais motivos para esse isolamento são crimes, prisões, mortes, abandono ou fuga de casa. Fim do Matérias recomendadas Mas por que centenas de crianças circulam sozinhas diariamente, muitas vezes passando frio e fome, pelas ruas da maior e mais rica cidade da América Latina? O poder público pode retirar essas crianças e levá-las a um abrigo? A BBC News Brasil ouviu o secretário de Desenvolvimento Social da Prefeitura de São Paulo, promotores de Justiça, conselheiros tutelares, o presidente da Comissão de Adoção e Convivência Familiar de Crianças e Adolescentes da OAB de SP e associações que defendem os direitos das pessoas menores de idade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A intenção é entender de quem é a responsabilidade por essas crianças, já que elas não têm a supervisão de um adulto. "Estão nas ruas por omissão da sociedade e do Estado, e pela negligência dos pais ou responsáveis. E, nas ruas, ficam em risco em razão das omissões da família, Estado e sociedade, e em razão das próprias condutas, como uso de drogas, cometimento de furtos e roubos, entre outras situações", afirmou Ariel de Castro Alves, presidente da Comissão de Adoção e Convivência Familiar de Crianças e Adolescentes da OAB de SP. Segundo o advogado, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que a prioridade é que essas crianças e adolescentes sejam encaminhados de volta ao convívio dos pais e responsáveis. Caso não seja possível, o poder público deve agir como tutor, dando apoio, orientando e oferecendo acompanhamento temporário. Também deve matriculá-lo em uma instituição de ensino fundamental e incluí-lo em um programa comunitário ou de auxílio à família. "Precisa providenciar proteção integral e intervenção precoce das autoridades, assim que uma situação de perigo seja verificada. Fazer uma oitiva obrigatória com participação das próprias crianças e adolescentes, que devem ser ouvidas, além de ter responsabilidade parental e reintegração familiar", afirma Ariel de Castro Alves. O Artigo 100 do ECA, segundo o advogado, afirma que o poder público, ONGs e demais instituições devem atuar, caso sejam desrespeitadas essas previsões. Entre as medidas de proteção aplicadas a crianças que estão em risco, como aquelas que estão em situação de rua, segundo Ariel de Castro Alves, estão a inclusão da família das crianças em programas de apoio social e geração de renda; encaminhamento para tratamentos médicos, psicológicos e psiquiátricos; ou inclusão em serviço de acolhimento institucional ou familiar. O secretário municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, Carlos Bezerra, afirma que é possível que nem todas essas crianças estejam realmente sozinhas. "Estar sozinha não significa que não tem um adulto perto, mas na hora que foi feita a abordagem, ela estava sem o adulto. E o adulto pode, inclusive, estar se escondendo", afirma. Ele disse em entrevista à BBC News Brasil que a cidade enfrenta a questão dos moradores de rua de maneira "corajosa, prioritária e qualificada" e que foi a única do país que fez o censo para crianças e adolescentes em situação de rua. A intenção, segundo ele, é ter dados que possibilitem a destinação de políticas públicas para regiões prioritárias e de acordo com a necessidade de cada uma delas. Ele cita que há diversos fatores que provocam a presença de crianças nas ruas. O primeiro, é a crise econômica, o segundo é a alta concentração de recursos e empregos, que atrai pessoas de todo o país e, por último, o desemprego, que faz com que essas pessoas percam a renda e, consequentemente, a moradia. "A crise econômica causada pela pandemia jogou famílias nas ruas e esse aumento do número de famílias tem um impacto direto no aumento do número de crianças em situação de rua, sejam acompanhadas ou desacompanhadas", diz. O secretário afirma que o Censo pode ter contabilizado crianças em situações que poderiam não estar sozinhas. "Você pode ter uma criança que mora numa casa ou ocupação com a família, que está na escola, mas duas horas por dia está na rua vendendo balas, com algum adulto a utilizando como escudo, entre aspas. Para isso, essa criança é considerada uma criança em situação de rua, porque ela permanece um tempo do seu dia na situação de rua", afirmou. É responsabilidade do Conselho Tutelar solicitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança quando identificar uma criança ou adolescente necessitado, segundo o advogado. Quando essas necessidades não forem atendidas, os conselheiros devem acionar a Justiça e encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente. Os conselheiros devem encaminhar à Justiça os casos que necessitem intervenção para que sejam respeitados todos os direitos previstos no ECA e na Constituição, inclusive o direito à moradia e estudos. Segundo Ariel, isso divide a responsabilidade de acolhimento e encaminhamento dessas crianças e adolescentes entre as esferas municipal e estadual por meio do Conselho Tutelar, Ministério Público, Tribunal de Justiça e a prefeitura. "O poder público precisa ter equipes com educadores sociais para abordagens e educação social nas ruas visando o restabelecimento dos vínculos familiares das crianças em situação de rua com suas famílias. Mas na prática, em São Paulo, os órgãos, instituições e programas têm dificuldade de atuar conjuntamente", afirma. Segundo o advogado, o conselho tutelar pode encaminhar menores de idade para abrigos "em casos graves de violência por parte dos responsáveis e em casos graves e urgentes de abandono. Sempre verificando, na impossibilidade de a criança ficar com os pais, em razão do abandono e violência, se não tem avós ou tios para ficarem com ela". Conselheiros ouvidos pela BBC News Brasil que pediram para não ser identificados dizem que não têm condições de atender a tantos casos com uma "equipe reduzida, como a atual". "São cinco conselheiros. Quando a gente recebe uma denúncia, a gente tem que ligar para o 156 e fazer essa denúncia porque quem deve atender é o Serviço Especial de Abordagem Social (Seas). Também não sabemos como resolver porque nem mesmo fica claro de quem é essa responsabilidade pelas crianças nas ruas", afirma uma conselheira que trabalha em uma unidade da zona oeste de São Paulo. Em meio a esse imbróglio, as crianças permanecem abandonadas e em situação de rua. Os especialistas entrevistados pela reportagem afirmam que, sozinhas, diariamente essas crianças e adolescentes sofrem pressões para usar drogas e entrar para o mundo do crime. De acordo com o Censo, 104 delas são usuárias de álcool ou outras drogas. O secretário de Desenvolvimento e Assistência Social foi questionado três vezes sobre quais ações a prefeitura vai tomar, já que hoje ela tem conhecimento, e inclusive a localização, de todas as crianças que vivem nas ruas. "Nós temos que ter um senso de urgência com relação a isso. Estamos trabalhando com essa questão de forma prioritária. Agora, não adianta sair de forma atabalhoada, sem ter os dados quantificados, senão esse senso de urgência nos transforma e faz com que a gente aja de maneira desumana, desordenada", afirma o secretário. Ele diz que a administração municipal está acelerando as ações para abordar essas crianças e adolescentes para que elas sejam encaminhadas aos serviços especializados. "O fato é que a gente precisa alinhar o nosso senso de urgência com a capacidade que nós temos de enfrentar, com planejamento. Queremos oferecer a resposta mais qualificada possível, no menor tempo, porque cada dia a mais que uma criança está na rua, aumenta a possibilidade de violação de direito dessa criança. É tudo o que a gente não quer", diz. Ele disse que a prefeitura está ampliando a capacidade de acolhimento nas regiões com as maiores concentrações de crianças vivendo nas ruas, principalmente no centro. Ele não descarta uma internação compulsória em alguns casos. Porém, ressalta que essa é uma decisão muito delicada e que deve respeitar uma série de processos. "Normalmente, eles (agentes sociais) fazem a abordagem, identificam e encaminham, por exemplo, a um serviço de acolhimento. Aí são acionados todos os serviços de política social, como Ministério Público, os vários serviços do Judiciário e o suporte para que aquela criança possa ter todo esse respaldo necessário", afirma. Ele explica que o próprio espaço de acolhimento aciona os órgãos para que esse abrigado regularize sua documentação, seja capacitado, tenha acesso a serviços de saúde, educação etc. Ariel de Castro Alves diz que as famílias que quiserem adotar uma criança ou adolescente deve procurar as varas da infância e da juventude e seguir os procedimentos para se habilitar no Cadastro Nacional de Adoção. "Ela também pode se inscrever em programas de família acolhedora, se quiserem acolher provisoriamente uma criança em situação de risco e abandono, sem a finalidade de adotar", afirmou. Se a criança tiver desaparecido e a família feito um boletim de ocorrência, por exemplo, uma pessoa que leve para casa uma criança ou adolescente pode inclusive responder pelo crime de sequestro ou cárcere privado, com pena prevista de um a três anos de prisão. Ou ainda o crime de subtração de incapaz, que prevê pena de dois meses a dois anos.
2022-09-13
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62683074
sociedade
Ator de James Bond pede desculpas por apresentação 'nojenta'
O ator George Lazenby, que já viveu James Bond no cinema, pediu desculpas depois de ser acusado de fazer comentários "assustadores" e "nojentos" em um evento sobre a franquia do agente secreto britânico. O ator, que interpretou o papel no filme 007 - A Serviço de Sua Majestade, de 1969, era um dos participantes de uma turnê australiana chamada The Music of James Bond, focada nos filmes do famoso personagem da literatura e do cinema. Os membros do público da cidade de Perth se ofenderam com os comentários "homofóbicos" e "misóginos" do ator, segundo a imprensa local. Depois das críticas, Lazenby disse que ficou "triste ao ouvir" que suas histórias ofenderam os fãs. "Nunca foi minha intenção fazer comentários ofensivos ou homofóbicos e sinto muito se minhas histórias que compartilhei muitas vezes foram interpretadas dessa maneira", escreveu ele em um comunicado. Fim do Matérias recomendadas O ator australiano de 83 anos foi removido de todas as apresentações futuras da turnê. A produtora de teatro Concertworks disse estar "extremamente entristecida e desapontada" com a "linguagem, comentários e lembranças" de Lazenby durante o show de sábado em Perth. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Estas foram opiniões pessoais e não há desculpa para isso na sociedade de hoje. Elas não refletem as opiniões da Concertworks", disse Aaron Kernaghan, advogado da empresa. A empresa entrou em contato com os espectadores para emitir um reembolso para quem pagou ingresso, acrescentou. Enquanto isso, a companhia "escolheu interromper seu relacionamento com Lazenby" e iniciou "uma revisão completa do assunto". De acordo com uma mulher que assistiu à apresentação, Lazenby passou a entrevista "falando basicamente sobre suas conquistas sexuais". "Ele foi homofóbico e certamente não estava falando sobre seu filme como James Bond", disse ela à emissora de rádio 6PR, de Perth. "Ele também subestimou a rainha Elizabeth um dia depois que ela morreu", acrescentou. "Foi absolutamente inacreditável... A certa altura, ele citou um jogador de críquete australiano em cuja filha ele estava 'interessado'. E ele contou que arrastou a mulher para fora de um pub e a colocou em um carro em Londres, o que novamente é horrível. Não foi encantador nem engraçado. Foi assustador, foi ofensivo... Ele foi nojento, não há duas maneiras para falar sobre isso." Outro participante descreveu a apresentação como "histórias misóginas sobre as proezas sexuais de George Lazenby, detalhes íntimos de diarreia e objetificação de mulheres". "Foi só quando um espectador gritou 'com licença, isso é ofensivo' que a tensão ficou evidente e George foi retirado do palco e a música salvou o dia", relatou um espectador ao jornal The West Australian. Já Joseph McCormack, que também assistiu ao show, disse no Twitter que pelo menos um membro da plateia "gritou que a fala de Lazenby era uma ofensa". Uma segunda pessoa, que ligou para a emissora 6PR, defendeu o ator, dizendo que suas histórias eram um "exagero" deliberado para causar um efeito cômico. "Ele não sequestrou [ninguém], não houve estupro. As pessoas ficaram alarmadas. [O show] foi muito divertido até que as pessoas começaram a gritar e vaiar." A BBC não conseguiu verificar de forma independente a natureza dos comentários de Lazenby na apresentação. A West Australian Symphony Orchestra (WASO), que também se apresentou no show, criticou o ator em comunicado divulgado no fim de semana. "Suas lembranças eram visões pessoais que podem ter refletido uma época em que tal comportamento era tolerado, mas nunca foi aceitável", escreveu a orquestra, em nota. "Os comentários eram dele e não refletem nossa sociedade atual. Suas opiniões não são compartilhadas ou endossadas pela WASO ou pelo Perth Concert Hall." O ministro da cultura da Austrália, David Templeman, acrescentou: "Entendo que o público deixou suas opiniões claras sobre o conteúdo do que ele disse". Lazenby foi catapultado à fama em 1969, quando foi escalado para substituir Sean Connery na franquia James Bond. Ex-modelo e sem experiência anterior em atuação, ele estrelou apenas um filme - alegando ter recusado US$ 1 milhão para revisitar o papel em longa posterior. "Bond é um bruto... Eu já o deixei para trás. Nunca vou atuar como ele novamente. Paz. Essa é a mensagem agora", disse ele, na época.
2022-09-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62883669
sociedade
Os benefícios do exercício físico para as 'bactérias boas' do seu intestino
Sabemos que a atividade física melhora a nossa saúde - mas a rica microbiota escondida dentro de nós pode ajudar muito mais do que pensávamos. O nosso intestino está repleto de vida. Cerca de 100 trilhões de bactérias, vírus, fungos e outros organismos unicelulares, como arqueobactérias e protozoários, disputam espaço e alimento no nosso trato gastrointestinal. Suas funções vão desde ajudar a fermentar fibras alimentares das nossas refeições até a regulagem do metabolismo da gordura e a síntese de vitaminas. Eles também ajudam a nos proteger contra invasores indesejados, interagindo com o nosso sistema imunológico e influenciando a extensão das inflamações no nosso intestino e em outras partes do corpo. Estudos já demonstraram que a diversidade desses inquilinos intestinais é menor em pacientes que sofrem de obesidade, doenças cardiometabólicas e condições autoimunes. E existem doenças que foram associadas a quantidades muito grandes ou muito pequenas de certas espécies de bactérias no nosso intestino. Níveis abaixo do normal de uma das bactérias mais abundantes no intestino de adultos saudáveis (uma bactéria em forma de bastão chamada Faecalibacterium prausnitzii) foram associados a doenças inflamatórias. Fim do Matérias recomendadas Diversos fatores - incluindo nossos genes, os tipos de medicação que tomamos, o estresse que vivenciamos, nossa alimentação e os efeitos causados pelo fumo - podem se associar para alterar o equilíbrio dos micro-organismos no nosso intestino. A composição dessa comunidade interna é, de fato, muito dinâmica. Mas, da mesma forma que simples escolhas de estilo de vida podem prejudicar nossos micróbios intestinais, também existem decisões que os ajudarão a florescer de forma mais saudável. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Manter alimentação diversificada, incluindo mais de 30 alimentos vegetais diferentes por semana, pode ajudar. Também pode ser benéfico ter uma boa noite de sono e reduzir os níveis de estresse. E, surpreendentemente, passar algum tempo na natureza pode trazer efeitos positivos. Mas o mais surpreendente é que os exercícios físicos também podem influenciar nossas bactérias intestinais. Todos nós sabemos que os exercícios trazem benefícios para a nossa saúde física e mental, mas uma corrida após o trabalho pode fazer com que os nossos micróbios do intestino também fiquem em forma? "O exercício parece afetar nossos micróbios intestinais, aumentando as comunidades bacterianas que produzem ácidos graxos de cadeia curta [SCFAs, na sigla em inglês]", segundo Jeffrey Woods, professor de cinesiologia e saúde comunitária da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign, nos Estados Unidos, que estuda os efeitos dos exercícios físicos sobre o corpo humano. "Os ácidos graxos de cadeia curta são um tipo de ácido graxo produzido principalmente por micróbios e sabe-se que eles modificam nosso metabolismo, imunidade e outros processos fisiológicos", acrescenta Jacob Allen, professor de fisiologia do exercício da Universidade de Illinois, colega de trabalho de Woods. Ao longo dos últimos 10 anos, pesquisas voltadas para os animais e os seres humanos ajudaram a revelar como é poderosa essa ligação entre os exercícios físicos e as mudanças da comunidade dos micróbios intestinais. E, o mais importante, elas vêm destacando como esse equilíbrio pode ser benéfico. Algumas das primeiras indicações podem ser encontradas em estudos sobre os animais. Camundongos que puderam andar voluntariamente em uma roda quando quisessem, por exemplo, desenvolveram quantidades significativamente menores de uma bactéria específica chamada Turicibacter. A presença desta bactéria é associada ao aumento do risco de doenças intestinais, segundo Woods e Allen, que conduziram o estudo. Já os camundongos sedentários ou que foram suavemente cutucados para incentivá-los a correr apresentaram números muito mais altos da bactéria. Acredita-se que forçar os camundongos a correr tenha causado estresse crônico entre os animais, o que pode anular os efeitos benéficos do exercício. Os micróbios intestinais nos ratos também parecem ser beneficiados quando eles correm voluntariamente em uma roda. Pesquisadores descobriram que o exercício também parece aumentar os níveis de um ácido graxo de cadeia curta específico chamado butirato, que as bactérias intestinais produzem pela fermentação de fibras e é relacionado a diversos benefícios à saúde. O butirato tem diversas funções no corpo: é o principal combustível para as nossas células intestinais, ajuda a controlar a função de barreira intestinal e regula inflamações e as células imunológicas do intestino. O micróbio intestinal Faecalibacterium prausnitzii é considerado uma das principais bactérias responsáveis pela produção de butirato. Bactérias produtoras de butirato foram associadas a efeitos benéficos sobre o metabolismo em camundongos e seres humanos. Particularmente, quantidades reduzidas de Faecalibacterium prausnitzii foram relacionadas a doenças inflamatórias intestinais, pois sua presença é necessária para que o intestino tome ações anti-inflamatórias. Diversos estudos recentes com animais indicaram que o exercício físico pode aumentar a quantidade dessas bactérias no intestino dos camundongos. Em 2018, pesquisadores norte-americanos também concluíram que o transplante de micróbios intestinais de camundongos treinados com exercícios em camundongos livres de germes reduziu o volume de inflamação intestinal nos camundongos que receberam os micróbios. Os estudos em animais indicam como os exercícios físicos podem melhorar o equilíbrio dos micróbios do intestino de camundongos. E o que nos dizem os estudos com seres humanos? Existem certamente muitos estudos em seres humanos que demonstram que exercícios moderados a vigorosos, como correr, andar de bicicleta e exercícios de resistência podem aumentar a diversidade das bactérias intestinais, o que foi relacionado à melhora da saúde física e mental. Sessões de exercícios aeróbicos de até 18-32 minutos aliadas a exercícios de resistência, três vezes por semana por um total de oito semanas, podem fazer a diferença, segundo indicam os estudos. Os atletas também costumam ter maior diversidade de micróbios intestinais, em comparação com as pessoas sedentárias. Isso pode também se dever, em parte, às dietas especializadas que os competidores costumam adotar. Mas diversos estudos demonstraram que a combinação de exercícios e alimentação pode aumentar a população de Faecalibacterium prausnitzii e a produção de butirato em mulheres ativas, muitas vezes com aumento da função intestinal. "Alguns estudos, mas não todos, demonstraram que o exercício físico aumenta [os níveis de] Faecalibacterium", segundo Woods. Ele acrescenta que pessoas com baixos níveis deste tipo de bactéria parecem ter mais risco de sofrer doença inflamatória intestinal, obesidade e depressão. Os estudos de Woods e Allen destacaram que sair para correr por 30 a 60 minutos ou um breve exercício na esteira da academia pode trazer impactos sobre a quantidade de bactérias produtoras de butirato no intestino, como Faecalibacterium. Em um estudo que envolveu 20 mulheres e 12 homens com diversos índices de massa corporal (IMC), Woods e seus colegas tentaram determinar se exercícios aeróbicos por seis semanas poderiam alterar os micróbios intestinais de seres humanos adultos que antes eram sedentários. Eles pediram aos participantes que fizessem três sessões de exercícios aeróbicos com intensidade moderada a vigorosa por semana, seja correndo na esteira ou andando de bicicleta, por 30-60 minutos. Amostras de sangue e fezes foram coletadas ao longo de todo o estudo. A alimentação dos participantes foi controlada a cada três dias para garantir sua consistência antes de cada coleta, assim limitando as mudanças causadas pela alimentação sobre os micróbios intestinais. Suas conclusões demonstraram que a quantidade de "produtores de butirato" aumentou muito com os exercícios, independentemente do índice de massa corporal. E, acompanhando as mudanças na comunidade microbiana, os participantes magros tiveram aumento dos ácidos graxos de cadeia curta, como butirato, nos seus exames de fezes. É interessante observar que, quando as pessoas que participaram do estudo retornaram ao seu estilo de vida sedentário nas seis semanas seguintes, os pesquisadores descobriram que os micróbios intestinais dos participantes haviam retornado ao seu estado inicial. Esta conclusão indica que, embora o exercício possa melhorar a saúde da comunidade bacteriana no intestino, as mudanças são transitórias e reversíveis. Outro pequeno estudo, publicado em 2019 por uma equipe liderada pela professora Jarna Hannukainen, do Departamento de Clínica Médica da Universidade de Turku, na Finlândia, observou mudanças mais específicas nos micro-organismos intestinais de 18 participantes sedentários, que haviam sido diagnosticados com diabetes tipo 2 ou pré-diabetes. Os participantes praticaram exercícios de alta intensidade com intervalos (pedalar por 30 segundos, com quatro minutos de recuperação a cada quatro, cinco e depois seis períodos curtos) ou treinamento contínuo moderado (andar de bicicleta por 40-60 minutos), três vezes por semana, por duas semanas. Os pesquisadores observaram que as duas formas de exercício aumentaram a quantidade de bactérias Bacteroidetes - um grupo fundamental de bactérias intestinais que participam da decomposição de açúcares e proteínas e induzem o sistema imunológico a produzir moléculas anti-inflamatórias no interior do intestino. Níveis reduzidos dessas bactérias foram associados à obesidade e à síndrome do intestino irritável. Os exercícios também reduziram os níveis de bactérias Clostridium e Blautia. Acredita-se que estas bactérias, em altos níveis, prejudiquem parte do sistema imunológico, aumentando as inflamações. De fato, Hannukainen e sua equipe observaram níveis significativamente menores de moléculas indicadoras de inflamações no sangue e no intestino, em participantes que haviam praticado exercícios. Particularmente, havia níveis mais baixos de marcadores inflamatórios conhecidos por se ligarem a lipopolissacarídeos - componentes encontrados nas paredes celulares das bactérias intestinais. Sabe-se que os lipopolissacarídeos causam inflamações em baixo grau em todo o corpo e também influenciam a resistência à insulina e o desenvolvimento de arteriosclerose - que, por sua vez, aumenta o risco de ataque cardíaco e derrame cerebral. Hannukainen e seus colegas afirmam que seu trabalho também demonstrou que os exercícios físicos reduziram especificamente as bactérias intestinais associadas à obesidade. Woods afirma que ainda não está claro como os exercícios promovem mudanças na comunidade de micro-organismos intestinais, embora haja diversas teorias. "Quando nos exercitamos, nosso corpo produz lactato, que pode servir de combustível para certas espécies de bactérias", segundo ele. Woods explica que outro possível mecanismo podem ser as alterações induzidas pelos exercícios no sistema imunológico, especialmente o sistema imunológico intestinal, pois nossos micróbios intestinais estão em contato direto com as células imunológicas do intestino. Os exercícios físicos também causam mudanças no fluxo sanguíneo para o intestino, que pode afetar as células que revestem as paredes intestinais e, por sua vez, gerar mudanças nos micróbios. Alterações hormonais causadas pelos exercícios também podem causar mudanças nas bactérias intestinais. Mas nenhum desses possíveis mecanismos "foi definitivamente testado", segundo Woods. Alguns atletas de elite costumam sofrer estresse induzido por exercícios físicos, devido à alta intensidade dos seus treinamentos. Estimativas indicam que até 20-60% dos atletas sofrem de estresse devido ao excesso de treinamento e recuperação inadequada. Mas as bactérias intestinais podem ajudar a controlar a liberação de hormônios acionada pelo estresse relacionado aos exercícios e também ajudar a liberar moléculas que melhoram o humor. Elas podem ainda ajudar os atletas a lidar com certos problemas intestinais, mas são necessárias mais pesquisas neste campo. Ainda existe muito mais que podemos aprender sobre como nossa atividade física afeta as criaturas que vivem dentro do nosso intestino, como os tipos e a duração dos exercícios que podem alterar a comunidade microbiana. Essa influência pode também variar de um indivíduo para outro, dependendo do IMC, dos micróbios que moram no intestino de cada um e de outros fatores de estilo de vida, como a alimentação e os níveis de estresse e sono. À medida que os cientistas continuarem a desvendar os segredos escondidos no nosso trato gastrointestinal, poderemos encontrar novas formas de melhorar nossa saúde com as vibrantes e diversificadas comunidades de organismos que habitam o nosso corpo.
2022-09-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62826557
sociedade
'Ela mostrou que você podia ser gay e cristão': a emocionante entrevista de televangelista no auge da Aids
É início dos anos 1980, e a epidemia de Aids começa a se alastrar pelos Estados Unidos. No fim de 1981, 130 americanos haviam morrido em decorrência da doença. Quatro anos depois, os óbitos passavam de 12 mil. A princípio, a doença foi fortemente associada a homens homossexuais, sendo referida pejorativamente como "peste gay" — o que levou a um forte estigma em relação a este grupo. E os líderes evangélicos da época estavam fazendo de tudo para que o mundo virasse as costas para as vítimas. "Acredito que herpes e Aids geralmente causadas pela promiscuidade homossexual são uma violação das leis de Deus, leis da natureza e da decência. E, como resultado, pagamos o preço quando violamos as leis de Deus", declarou uma vez Jerry Falwell, um proeminente líder evangélico americano. Mas uma voz dissonante emergiu no meio evangélico. Tammy Faye Bakker, uma televangelista extremamente popular na época, decidiu acolher a comunidade gay. E, na contramão de seus colegas, convidou um entrevistado inesperado para seu programa de TV: Steve Pieters, um jovem pastor homossexual com Aids. A entrevista que viria a ser realizada ao vivo pode ter sido um dos momentos mais notáveis da televisão americana dos anos 1980. Pode-se até dizer que colaborou para dar um desfecho harmonioso a uma guerra cultural brutal. Fim do Matérias recomendadas No segundo episódio (chamado Um Milagre), Ronson entrevista Jay Bakker, filho de Tammy (falecida em 2007), e Steve Pieters para contar como, no auge da epidemia de Aids nos EUA, a entrevista comandada pela líder evangélica deu voz à comunidade gay — e promoveu a aceitação de homens homossexuais por suas famílias cristãs. Nas décadas de 1970 e 1980, com o advento da televisão via satélite, os televangelistas, líderes religiosos que usam a televisão para difundir suas mensagens, tiveram acesso a uma vasta audiência nos EUA — e acabaram ganhando status de celebridade. Entre eles, estavam os pastores evangélicos Jimmy Swaggart e Jerry Falwell, fundador do movimento conservador Moral Majority, que prega contra a homossexualidade. Mas nenhum deles tinha o brilho de Tammy Faye Bakker. Com seu estilo extravagante, ela conseguiu conquistar o coração público como nenhum outro televangelista da época — e construiu ao lado do então marido, Jim Bakker, um verdadeiro império religioso. Em 1974, o casal de pastores que começou pregando em tendas e igrejas de beira de estrada pelo país, lançou sua própria rede de televisão, a PTL (sigla em inglês para "Louvemos o Senhor"), com o programa Jim e Tammy . Diferentemente de Swaggart e Falwell, eles estavam ligados nas tendências do momento — e exploraram todo o potencial de entretenimento da televisão: "Meu pai usava colete de lã e calça cáqui, e minha mãe usava joias divertidas. E todos os outros caras usavam ternos pretos. Jimmy Swaggart e Jerry Falwell diziam: 'Se você não está com a gente, está contra a gente'. Jerry Falwell queria dominar o mundo. E meus pais queriam entreter o mundo. E parecia que todo mundo queria participar do programa deles", conta Jay Bakker em depoimento no podcast As Estranhas Origens das Guerras Culturais. "Eles estavam no ar o tempo todo. Meu pai fazia seis transmissões por semana sozinho. Minha mãe fazia provavelmente 10 ou 11 porque ela tinha um programa chamado 'Tammy's House Party'." Por meio de maratonas de arrecadação de fundos, eles chegaram a construir até um parque temático cristão — o Heritage USA. "Era tipo uma Disneylândia cristã...", diz Jay. A maneira como Jim e Tammy abraçavam a cultura popular causava indignação entre os demais televangelistas da época. Mas o que esses líderes religiosos não sabiam é que, apesar do enorme sucesso, Tammy passava por maus momentos na vida pessoal. "Ataques de pânico, depressão, ela realmente teve problemas com remédios controlados, havia muita escuridão e lutas na vida dela", afirma o filho. A relação dela com o marido tampouco ia bem — workaholic, Jim quase nunca estava por perto, e quando estava, maltratava Tammy, dizendo que a maquiagem (uma de suas marcas registradas) fazia ela se parecer com uma "prostituta francesa". Ela reagia então passando ainda mais maquiagem. "Acho que ela sempre batalhou com esse sentimento de não ser boa o suficiente, não ser amada, nunca se sentiu bonita, então ela colocava toda essa maquiagem", avalia Jay. "Era meio que a armadura dela", completa. Se sentindo desconectada dos colegas televangelistas, Tammy começou a se identificar menos com eles — e mais com os objetos do desprezo deles. E quando começaram a pregar que a Aids era resultado do julgamento divino contra a promiscuidade homossexual, ela decidiu fazer algo a respeito. "Minha mãe decidiu que queria entrevistar alguém com Aids. Eles procuraram alguém até que encontraram Steve Pieters", revela Jay. Foi assim que, em 15 de novembro de 1985, Steve Pieters, um pastor gay, foi parar no programa Tammy House Party, na rede PTL. Nascido em 1952 em meio a uma família cristã, Steve virou pastor antes de completar 30 anos, como membro da Igreja da Comunidade Metropolitana em Connecticut — uma denominação para pessoas LGBT que, segundo ele, parecia uma ilha cercada por tubarões televangelistas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Os piores eram Jerry Falwell e Jimmy Swaggart. Eles eram todos veementemente antigay. Pessoas como Jerry Falwell falavam sobre como pessoas gays iriam tentar recrutar seus filhos. Eles vão molestar seus filhos. Falavam de homossexuais como sendo pedófilos", lembra Steve em depoimento no podcast As Estranhas Origens das Guerras Culturais. Ele conta que começou a adoecer em 1982 — e, em abril de 1984, foi diagnosticado com Aids (e informado que tinha dois tipos de câncer associados à doença: sarcoma de Kaposi e linfoma). "Eu estava dormindo 22 horas por dia, estava muito magro e não conseguia comer. Parecia que estava prestes a morrer. Então eles me levaram ao hospital e, depois de uma experiência de quase morte, conseguiram me trazer de volta à vida", revela. Após ser ressuscitado pelos médicos, ele foi submetido a um tratamento que passou a surtir efeito. E quando recebeu alta do hospital, soube que os produtores do programa de Tammy tinham solicitado uma entrevista com ele. "Pensei que seria uma grande oportunidade de atingir um novo público. Mas insisti que fosse ao vivo. Porque eu não queria que eles editassem o que tinha para dizer", afirma. Inicialmente, a entrevista seria realizada ao vivo no estúdio, em Charlotte — e a produção do programa de Tammy chegou a enviar as passagens de avião para Steve, que estava em Los Angeles. Mas acabaram cancelando em cima da hora, alegando que a apresentadora estava doente. Era mentira — ela estava, na verdade, com receio de que sua equipe não reagisse bem à presença de Steve. Por isso, inventou uma desculpa. "Depois eu fiquei sabendo que eles estavam com medo de como eu iria ser tratado em Heritage USA, que a equipe de filmagem talvez se recusasse a trabalhar se eu entrasse no estúdio", diz ele. Para evitar qualquer mal-estar, a solução encontrada foi realizar a entrevista remotamente. Foi feita então uma transmissão ao vivo via satélite — a primeira da rede PTL. E, para justificar a ausência de Steve no estúdio, Tammy disse ao público logo no início do programa que ele estava fazendo quimioterapia — e que a viagem de avião teria sido "muito difícil" para ele. A primeira parte da entrevista, que durou cerca de 24 minutos, foi marcada por perguntas bem diretas sobre sua orientação sexual — desde que em que momento ele soube que era gay a até se ele já havia tido alguma experiência sexual com uma mulher. "As pessoas que assistiram costumavam me perguntar: 'Aquelas perguntas eram bem idiotas, não eram'? E eu dizia: 'Não, eram as perguntas certas para o público dela'", avalia Steve. "Acho que vieram do coração; outros televangelistas provavelmente falariam comigo de uma posição arrogante, julgadora", completa. O diagnóstico de Aids — e o medo de morrer em decorrência de uma doença até então pouco compreendida — foram abordados na sequência. "Quando ela começa a falar comigo sobre Aids, e sobre como é ter Aids, e se as pessoas têm medo de mim ou não… me pareceu muito humano. E eu me senti como se estivéssemos realmente nos conectando", lembra Steve. Durante a entrevista, ele desabafou com Tammy sobre o estigma em relação à doença e compartilhou a discriminação que sofria: "Me pediram para não usar o banheiro na casa de uma pessoa. Lembro de ter ido a uma festa em que cada vez que eu terminava meu refrigerante, o anfitrião pegava o copo, levava até a cozinha e limpava com vapor. Todas as vezes. Fui servido em pratos de papel muitas vezes no último ano e meio. E, sim, as pessoas têm medo." A reação de Tammy é extraordinária: "Que triste que nós enquanto cristãos, que temos de ser o sal da terra, que supostamente temos de amar todo mundo, estamos tão apavorados com um paciente com Aids que não conseguimos ir até ele dar um abraço, e dizer a ele que nos importamos." "Mas eu quero te falar, tem muitos cristãos aqui que te amam, e que não teriam medo de te dar um abraço e dizer que nós te amamos, e que nós nos importamos", ela completou. Jay, que tinha por volta de 10 anos na época, conta que sabia que a mãe estava fazendo algo radical. "Lembro de ter ficado muito impressionado." "Acho que as Assembleias de Deus, a denominação dos meu pais, estavam muito bravas com ela. Mas ela não estava nem aí", acrescenta. Steve, por sua vez, voltou para casa e esqueceu da entrevista por alguns meses, até o dia da conferência anual da sua denominação, a Igreja da Comunidade Metropolitana, apresentada por seu fundador, Troy Perry. "Troy Perry abriu a conferência com minha entrevista com Tammy Faye. Botei as mãos na cara e pensei: 'Ah não, ele vai me envergonhar na frente de todas essas pessoas'", lembra Steve. "As pessoas começaram com os risinhos logo que a entrevista começou. Elas diziam: 'Ai meu Deus, é o Steve ali. A gente conhece o Steve, ele está falando com a Tammy Faye'. E aí, à medida que a entrevista avançava, o silêncio tomou conta do público, as pessoas ficaram ligadas em cada palavra. No fim do vídeo, as pessoas se levantaram e aplaudiram. Veja, tinha mil pessoas de público ali. E todos pularam, vibraram e aplaudiram. E eu pensei: Uau, foi melhor do que eu tinha pensado." Ele também soube pela equipe da Tammy que a entrevista havia tido um impacto no público dela. "Parece que uma pessoa ligou para o estúdio para contar que tinha um filho com Aids, e que estava preocupada que ele iria para o inferno, mas depois de ouvir essa entrevista comigo, ela tinha entendido que seu filho iria para o céu", conta. Durante a entrevista com Steve, os espectadores de Tammy testemunharam algo raro em uma guerra cultural. Eles tiveram a oportunidade de ouvir o "inimigo" falar em um ambiente tranquilo e sem controvérsias. "As pessoas daquele público tiveram a chance de ver um ser humano de verdade. E a Tammy conseguiu mostrar que eu era um cristão, e que você podia ser gay e cristão. Isso era inédito em círculos televangelistas", avalia o pastor. Steve e Tammy nunca mais se falaram — e não chegaram a se conhecer pessoalmente. Mas Tammy mandou um presente para ele como forma de agradecimento pela entrevista. "Ela me mandou fitas cassete dela cantando", relembra. Mas para ele, aquilo teve um significado muito maior: "Nos meses seguintes à entrevista, fiquei muito, muito doente outra vez, fiquei cego e definhei até ser só um esqueleto com pele. E todo mundo pensou mais uma vez que eu estava morrendo. E ela tinha me mandado esse álbum que se chamava Don't give up on the brink a miracle ("Não desista às vésperas de um milagre", em tradução livre) com uma música com o mesmo nome." "E isso me inspirou tanto. Eu ficava cantando junto com ela, muitas e muitas vezes. E eu consegui um milagre. Recuperei minha visão e voltei a ganhar peso. Consegui meu milagre. Eu estava cego. E agora consigo ver. Com a graça de Deus." Tammy acabou partindo antes de Steve — ela morreu de câncer no pulmão em julho de 2007. "Eu lembro dela dizer, no fim da nossa entrevista: 'A gente quer que você vença essa coisa...' E para todos os efeitos, eu venci, e ela não está mais aqui. Ela morreu. Como é irônico que ela foi a primeira a morrer de nós dois." Dois anos depois de Tammy entrevistar Steve, o império PTL desmoronou. Jim Bakker foi preso por fraude financeira, e Tammy foi deixada em meio às ruínas. Conforme ela mais tarde escreveria em seu livro de memórias I Will Survive and You Will Too ("Vou sobreviver e você também", em tradução livre), "eu estava completamente sozinha, me senti abandonada por todos, às vezes até por Deus. Mas aí uma coisa maravilhosa aconteceu: a comunidade gay!". "O Jay (filho de Tammy) me contou que aquela entrevista comigo mudou a família dele. Ela começou a levar o Jay para lares e hospitais para visitar pessoas com Aids e para as paradas de orgulho gay", conta Steve. "Sei que muita gente LGBT simplesmente ama Tammy Baker porque ela se tornou um ícone na comunidade gay, essa pessoa excêntrica e amorosa. Acho que muita gente se identificou com ela porque ela era diferente", avalia. "Sua bondade amorosa, sua compaixão comigo, acho que foi extraordinariamente útil para muitas pessoas LGBT que não achavam que podiam ser cristãs ou que podiam ser amadas por suas famílias cristãs." Com o casamento entre pessoas do mesmo sexo hoje legalizado nos Estados Unidos, no Reino Unido e em 27 outros países, a sensação é de que essa guerra cultural foi vencida pelo menos nesses lugares, afirma Ronson no podcast. E talvez a entrevista de Tammy com Steve tenha algum crédito nisso.
2022-09-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62792798
sociedade
'É preciso resistir ao ódio e cinismo que Bolsonaro representa', diz diretor de filme escolhido pelo Brasil para Oscar
"A gente dá um jeito." A fala que encerra Marte Um poderia ser dita por milhões de brasileiros que enfrentam problemas para sobreviver em 2022. Mas o longa, escolhido para representar o Brasil no Oscar, se passa quatro anos antes, após a vitória de Jair Bolsonaro (PL) na eleição presidencial. O filme conta a história de uma família preta e periférica que, apesar das suas diferenças e contratempos, se apoia e sonha com dias melhores. Uma mensagem que cabe bem nos dias de hoje, diz o diretor Gabriel Martins. "O Brasil está muito debilitado, foi muito maltratado pela pandemia e por esse governo. Espero que Marte Um faça ressurgir um fio de esperança", diz Martins. Fim do Matérias recomendadas "Que mostre que é preciso resistir ao cinismo e ao ódio que esse governo representa. Que é preciso ter afeto e cuidado com o outro. Pensar nas outras pessoas não pode ser uma atitude fora de moda." Marte Um estreou no Brasil no Festival de Gramado, a mais importante premiação no país, onde venceu como melhor trilha sonora, melhor roteiro (assinado pelo diretor), melhor filme pelo júri popular e o Prêmio Especial do Júri. Antes disso, percorreu o circuito de festivais internacionais, sendo premiado em alguns deles, com elogios da crítica especializada. "É um exemplo emocionante - e um argumento apaixonado - do tipo de realismo humano que mantém os filmes vivos e que nunca sai de moda", disse o jornal americano The New York Times. Para o site ScreenDaily, "é um filme vívido, com atuações brilhantes" e que "amplia o escopo de representação da cultura preta brasileira". Já a revista Variety destacou ser um "filme de bom coração, otimista e estranhamente antiquado" que "para o bem e para o mal" não se debruça sobre as injustiças e privações que seus protagonistas enfrentam. Marte Um é de fato um filme político que não fala de política. A eleição de Bolsonaro abre o longa, mas não sabemos o que os protagonistas pensam sobre o presidente. A desigualdade social fica escancarada no dia-a-dia do porteiro Wellington (Carlos Francisco) em um edifício de alto padrão e nas faxinas que sua mulher, a diarista Tércia (Rejane Faria), faz na cobertura de uma subcelebridade. Mas o longa não é sobre luta de classes. Não há militância à vista na trajetória da filha do casal, Nina (Camilla Damião), que estuda Direito em uma universidade federal e se envolve com outra mulher com uma condição econômica melhor. Seu irmão, Devinho (Cícero Lucas), quer se tornar astrofísico, mas seu sonho é mais sobre participar da primeira missão para Marte (daí o título do filme) do que sobre ter uma vida mais confortável. "É claro que o filme dialoga com a política, porque tudo é política, e convida a refletir sobre a visão e postura de um governo que não quer que a gente pense sobre essas questões", diz Martins. Mas o contexto social e político atual serve apenas como pano de fundo para as situações cotidianas e os conflitos que seus personagens enfrentam. O enredo é guiado pela luta dessa família para pagar suas contas, o alcoolismo de Wellington e a superstição de Térsia após ficar traumatizada por uma pegadinha. O dilema de Nina em revelar aos pais que tem uma namorada e que vai sair de casa para morar com ela. O conflito do Devinho com as expectativas do pai, que quer ver ele se tornar jogador de futebol - a "grande oportunidade da nossa vida", segundo Wellington. "Quem chega para assistir com a expectativa de ver um filme com carga política é rapidamente desarmado, porque a história que quero contar é a dessa família, que é um pouco a história da minha família e das pessoas próximas de mim", diz Martins. "Essa noção do impossível pode ser interpretada como uma ideia que o ser humano precisa para seguir de cabeça erguida, porque é fácil desistir da vida, especialmente quem faz parte de um grupo marginalizado." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O diretor de 34 anos cresceu na periferia de Contagem (MG), onde o filme se passa, e sonhou com o "impossível" quando criança: queria se tornar cineasta. Ele mesmo chegou a treinar na escolinha do Cruzeiro. Sua mãe o levava toda semana e, depois, iam para a Toca da Raposa para ver Ronaldo jogar. "Ela tinha o desejo que eu jogasse, mas não cheguei a ser uma promessa, não", diz Martins. Entretanto, ele reforça que Marte Um não é um filme autobiográfico. "Não estou contando a minha história, mas uma que é inspirada também na observação de pessoas que conheço e nos relatos que os próprios atores trouxeram. É um filme que trafega na memória afetiva de todos nós", diz Martins. O desejo de se tornar cineasta ganhou outra dimensão quando ele assistiu, aos 12 anos, ao seu primeiro filme brasileiro "sério", Bicho de Sete Cebeças, de Laís Bodansky. A mesma Laís Bodansky com quem ele disputou agora a chance de representar o Brasil no Oscar. "Ela me parabenizou no meu Instagram e fiquei com vontade de escrever para ela para contar como Bicho de Sete Cabeças foi importante para mim", diz Martins. "Já tinha visto filmes da Xuxa, dos Trapalhões, mas aquilo foi muito potente para mim, porque não sabia que era possível fazer um filme que falasse de questões densas, de coisas pesadas, mas de uma forma muito bonita, com humor." Bárbara Cariry, presidente da comissão que selecionou Marte Um, disse que a escolha é "importante" porque "sintetiza bem o cinema brasileiro, com qualidade narrativa e técnica, que vem sendo realizado hoje, representando a diversidade do país". "O filme trata de afeto e de esperança, da possibilidade de seguir sonhando em meio a tantas dificuldades econômicas e políticas", afirmou Cariry. Marte Um levou oito anos para chegar aos cinemas. Martins começou a escrevê-lo em 2014, e as filmagens tiveram início quatro anos depois. Parte dos recursos do longa da Filmes de Plástico, produtora fundada por Martins e mais três sócios, vieram da seleção em 2016 em um edital do governo federal para filmes dirigidos por cineastas negros. A produção também teve o apoio do Canal Brasil e do Projeto Paradiso, iniciativa de incentivo ao audiovisual brasileiro do Instituto Olga Rabinovich. Marte Um agora concorrerá com os representantes de outros países para ser um dos indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional. O último longa brasileiro a concorrer nessa categoria foi Central do Brasil, em 1999. O diretor diz que a escolha em si já é muito significativa: "Nem sempre o mercado olhou para fora do eixo Rio-São Paulo. É o primeiro filme mineiro selecionado e o primeiro de um diretor preto, só isso já diz muita coisa". No entanto, ele quer chegar mais longe. De certa forma, o Oscar agora virou a missão para Marte de Gabriel Martins. "Querendo ou não, é isso", diz ele. "Aconteça o que acontecer, já é uma vitória chegar aos cinemas em um país onde o governo não quer que a gente faça filmes, mas preciso acreditar que dá para ganhar. Temos que trabalhar com toda a garra para conseguir algo que pode parecer impossível."
2022-09-12
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62827954
sociedade
'Tenho saudade de sentir o sol': as pessoas que seguem em lockdown desde o início da pandemia de covid
Rafael A.* lembra das três últimas vezes que saiu de casa como se fosse hoje. "Eu passeei com o cachorro na quadra do meu condomínio, fui tirar cópias de documentos numa lojinha e tive que ir até um shopping center", conta. Esses episódios ocorreram em março de 2020. Desde então, ele nunca mais deixou o apartamento de 45 metros quadrados em que mora na Zona Norte do Rio de Janeiro. Para Rafael, a necessidade de ficar em lockdown por causa da pandemia de covid-19 fez com que a própria casa se transformasse numa prisão, da qual ele não consegue sair até hoje, pelo medo de se infectar com o coronavírus e desenvolver as formas mais graves da doença. "Eu tenho muita saudade de sentir o sol, de passar no supermercado, de ir ao shopping…", diz. Fim do Matérias recomendadas Ele guarda até hoje várias garrafas de álcool que comprou para higienizar os alimentos ou os objetos — e mantém uma bolsa onde acumula a maioria dos fios de cabelo que começaram a cair da cabeça com muita frequência durante este período. Ao procurar a BBC News Brasil para contar sua história, Rafael esperava fazer uma espécie de desabafo, além de ajudar outros indivíduos espalhados pelo mundo, que estão em situações parecidas. "Quantas pessoas podem estar presas em casa nesse momento, se sentem sozinhas e não têm o apoio necessário para sair desta?", questiona. Aos 38 anos, Rafael relata que já fazia acompanhamento psicológico muito tempo antes de a pandemia estourar — e conseguia sair de casa normalmente. Outras crises sanitárias recentes — como a gripe H1N1 em 2009 e a zika em 2015 — não chegaram a impactar tanto a rotina ou a mudar hábitos dele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Rafael trabalha como freelancer: dá assistência e suporte a um indivíduo com autismo, a quem ajuda em questões burocráticas e nos afazeres do dia a dia. Com a pandemia, todas as tarefas passaram a ser feitas por meio remoto, com trocas de mensagens e ligações. Aliás, com a necessidade de lockdown a partir do espalhamento do vírus, o próprio indivíduo com autismo passou a ajudar bastante o próprio Rafael, ao dar suporte emocional e auxiliá-lo com tarefas básicas, como na entrega de algumas compras de supermercado. Antes do espalhamento da covid, Rafael dividia o apartamento com a mãe e dois sobrinhos. Porém, o agravamento da pandemia, a necessidade de ficar em casa e as exigências de redobrar os cuidados com a higiene geraram alguns conflitos entre eles, o que fez os outros três familiares eventualmente mudarem de endereço ainda em 2020. No período, Rafael desenvolveu todo um sistema para adaptar o dia a dia. No hall de entrada do apartamento, que dá acesso à sala, ele colocou um pequeno baú que delimita até onde entregadores e familiares podem entrar. Ao lado do baú, ele instalou uma mesa. É ali que as encomendas do mercado e da farmácia são deixadas. No local, também ficam os sacos de lixo reciclável que se acumulam e só são descartados quando algum conhecido passa pelo local. No momento dessas visitas, porém, Rafael nunca fica no mesmo ambiente. Ao saber que alguém está chegando, ele deixa a porta de entrada aberta e se tranca no quarto até a pessoa ir embora. No início, a preocupação com a higiene era tão grande que ele até pedia refeições por aplicativos de entrega, mas, com medo do coronavírus, colocava a comida no forno novamente. "Várias vezes comi lanches e batatas fritas queimadas porque deixava a temperatura muito alta ou por tempo demais", relata. "Hoje, já melhorei um pouquinho e não sinto mais necessidade de chegar nesse ponto", complementa. Ao longo desses dois anos e meio de pandemia, alguns episódios reforçaram ainda mais os temores de Rafael. Um dos principais foi a morte por covid-19 do humorista Paulo Gustavo, em maio de 2021. "Eu sempre fui muito fã do trabalho dele e pensei: 'Se um cara rico desses morreu, imagina o que pode acontecer comigo, que não tenho dinheiro?'", se recorda. Outro momento decisivo teve a ver com a vacinação contra a covid-19. Quando as doses estavam disponíveis para a faixa etária dele, Rafael passou por um verdadeiro dilema: por um lado, ele sabia que os imunizantes garantiriam uma melhor proteção contra o coronavírus; por outro, não se sentia nada confortável em sair de casa, se expor e ir até um posto de saúde. Teve início, então, uma verdadeira epopeia, em que tanto Rafael quanto colegas e familiares tentaram convencer algum profissional de saúde a ir até o apartamento e aplicar a vacina lá mesmo. Depois de muita procura, em dezembro de 2021, duas enfermeiras de uma clínica de saúde da família do bairro finalmente foram até a moradia de Rafael, que as recebeu vestido com uma roupa especial, daquelas usadas por cientistas em situações emergenciais e com alto risco de contágio. O processo se repetiu algumas semanas depois, em janeiro de 2022, quando ele precisava tomar a segunda dose. "Fiquei com medo de ter alguma reação e precisar ir a um hospital, mas felizmente não senti nada", conta. E é justamente pelo medo de eventos adversos — somado à dificuldade de convencer a equipe de algum posto de saúde a ir até o apartamento — que Rafael ainda não tomou a terceira dose do imunizante que protege contra a covid. Rafael se sente agoniado ao ver que as pessoas estão retomando a vida e abandonando todas as restrições que marcaram os últimos dois anos, como o uso de máscara, a higiene das mãos e o distanciamento físico. "A pandemia não acabou", constata. "No carnaval, eu via de longe, pela janela do apartamento, as pessoas festejando, todas muito alegres. Não consigo entender", admite. Questionado em que situação ele acha que fará sentido sair de casa e retomar a rotina, Rafael diz que checa as notícias e os gráficos sobre as mortes por covid registradas no Brasil todos os dias. "Para mim, o número ideal seria zero. Mas acho que talvez me sinta um pouco mais confortável para sair quando ver entre cinco e dez mortes por covid", estima. Além do acompanhamento psicológico semanal, ele conta que também chegou a fazer consultas com o psiquiatra, que recomendou o uso de remédios para aplacar a ansiedade. Mas o medo de sofrer algum efeito colateral — e precisar ir ao pronto-socorro — fez com que ele desistisse da ideia de iniciar um tratamento medicamentoso. Apesar de chamar a atenção, a história de Rafael se repete, em maior ou menor grau, com outras pessoas, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil. Embora não exista uma estatística oficial de quantos sentem dificuldade de sair de casa e retomar a rotina num "novo normal", o psiquiatra Rodolfo Furlan Damiano, que não lida diretamente com Rafael, admite que "essas narrativas aparecem no dia a dia do consultório". "São casos muito individuais, ligados a um aumento da prevalência de transtornos mentais ao longo dos últimos anos", contextualiza o médico, que faz doutorado no Instituto de Psiquiatria (IPq) da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Damiano explica que, nos primeiros meses da pandemia, houve até uma diminuição de quadros como ansiedade e depressão. "Quando a gente está diante de um grande problema coletivo, a tendência inicial é esquecermos das demais dificuldades da vida e focarmos só naquilo. Isso de certa maneira agrega e gera uma sensação de pertencimento." "Só que, conforme a pandemia vai passando, acontece outro fenômeno. Nós resgatamos as dificuldades anteriores, que ficaram dormentes, e adicionamos todos os dilemas extras relacionados àquele momento", acrescenta. E, para indivíduos que já têm algum tipo de vulnerabilidade, isso tudo representa uma carga emocional muito alta, explica Damiano. "Algumas pessoas podem enfrentar uma dificuldade de se adaptar novamente e desenvolvem quadros como ansiedade, depressão ou fobias", conclui. O professor Paul Crawford, do Instituto de Saúde Mental da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, que também não tem nenhum contato com Rafael, concorda que o confinamento prolongado e o isolamento social têm diversos efeitos deletérios no bem-estar — mas existem antídotos que ajudam lidar com essa condição. Na obra, ele descreve os momentos que vivemos nos últimos dois anos e meio como "o maior confinamento da história". "Para alguns, ficar em casa foi bem-vindo e deu uma oportunidade para aprofundar relacionamentos com pessoas próximas, como parceiros e filhos. Para outros, a falta de contato físico e a comunicação digital sem fim tiveram um impacto emocional muito negativo", compara. Ao lembrar de situações e episódios em que as pessoas também ficam isoladas — como em prisões, sequestros, viagens ao redor do mundo ou voos espaciais —, Crawford cita algumas estratégias que podem funcionar e fazem bem à mente. "Nesses contextos, ter uma estrutura, estabelecer metas e criar propósitos para cada dia são fatores cruciais", diz à BBC News Brasil. "Também é importante ter acesso a áreas verdes, aceitar psicologicamente o 'novo normal', ajustar as necessidades à realidade, se conectar com outras pessoas, mesmo que nos meios digitais, perceber a própria casa como um santuário — e não como uma prisão —, prestar atenção à saúde, principalmente à alimentação e à prática de exercício físico, e se engajar em atividades criativas e artísticas", completa. Sobre o alívio das restrições e o retorno às ruas, Crawford compreende a dificuldade que alguns podem sentir. "Muitos permanecerão tensos com a possibilidade de ter contato com o vírus, seja por alguma vulnerabilidade de saúde ou pela morte traumática de conhecidos, amigos ou familiares", descreve. "Outros, por sua vez, transformaram o lar num santuário tão confortável e duradouro que, talvez, prefiram continuar a viver ali dentro." O pesquisador acredita que a "ainda não está estabelecida uma linha clara de quando um comportamento desses, baseado num lockdown voluntário, é compreensível ou patológico". "O que a pandemia e 'o maior confinamento da história' fizeram foi intensificar e tornar mais palpáveis as maneiras pelas quais o isolamento social pode levar ao declínio mental e à calamidade, e como o sofrimento e os desafios mentais geralmente levam as pessoas a se isolarem ou a se esconderem socialmente", conclui o especialista. Para Rodolfo Damiano, que faz doutorado na Faculdade de Medicina da USP, diante de uma dificuldade de retomar a rotina, o limiar entre saúde e doença é definido pela perda de liberdade. "Quando a pessoa não consegue mais tomar as próprias decisões e o contexto em que ela vive é fonte de sofrimento e aflição, chegou a hora de buscar um profissional de saúde", indica. A consulta com o psiquiatra e com o psicólogo é essencial para diagnosticar o transtorno, investigar as origens do problema e, claro, iniciar o tratamento mais efetivo. Em alguns casos, a psicoterapia dá conta do recado. O método envolve sessões estruturadas de conversas com um especialista, que vai analisar os comportamentos, as emoções e os pensamentos para modificar aquilo que foge do ideal. Em outros, a medicação também é primordial para complementar esse processo e estabilizar o quadro. Damiano reforça que, assim como acontece com qualquer outra doença, os transtornos mentais precisam ser tratados com respeito — ter depressão ou ansiedade não é "só coisa da cabeça" ou "algo que passa com força de vontade", como alguns insistem em dizer de forma absolutamente equivocada. "São problemas que qualquer um pode ter, e é importante que as pessoas busquem ajuda quando sentirem necessidade", pontua. Entre medos e adaptações, Rafael segue tocando a vida, com a esperança de um dia voltar a sentir o sol. "Eu não sou louco. Não rasgo dinheiro. Não faço mal às pessoas. Sei conversar direito", afirma. "Mas minha situação sempre me faz pensar nas outras pessoas que podem estar numa situação parecida, ou nos portadores de ansiedade, bipolaridade ou esquizofrenia, que podem não ter apoio de ninguém", finaliza. *O sobrenome de Rafael foi ocultado para preservar a sua identidade.
2022-09-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62834973
sociedade
Como religião dominou política nos EUA, mesmo com menor crença em Deus em 8 décadas
Os Estados Unidos costumam ter uma imagem de país profundamente religioso, mas uma pesquisa Gallup divulgada recentemente revelou que o número de americanos que acreditam em Deus, apesar de ainda alto, vem caindo — e é o menor já registrado em pelo menos 78 anos. Diante da pergunta "você acredita em Deus?", 81% dos adultos entrevistados em maio deste ano responderam "sim", e 17% disseram que "não". O restante afirmou não ter opinião. A pesquisa não menciona nenhuma religião especificamente e, nesse contexto, acreditar em "Deus" pode ser interpretado como crer em um poder superior. Em 1944, quando o instituto fez essa pergunta pela primeira vez, 96% responderam acreditar em Deus. O percentual chegou a 98% em 1953 e se manteve acima de 90% durante as seis décadas seguintes. Em 2013, caiu para 87%, resultado repetido em 2017. Mesmo com o declínio mais recente, a vasta maioria da população ainda diz acreditar em Deus. "Pesquisas vêm mostrando que a crença em Deus está, lentamente, caindo nos Estados Unidos", diz à BBC News Brasil o sociólogo Paul Froese, professor da Universidade Baylor, no Texas, onde também é diretor de pesquisas sobre religião. Fim do Matérias recomendadas "Mas ela ainda é a norma." O resultado da pesquisa Gallup chama a atenção, no entanto, em um momento em que a religiosidade está cada vez mais ligada à identidade política dos americanos — e que decisões da Suprema Corte, a mais alta instância da Justiça no país, vêm ampliando o papel da religião na vida pública. Segundo o Gallup, na comparação desses últimos resultados com a média entre quatro pesquisas feitas entre 2013 e 2017, houve declínio em todos os grupos demográficos. Mas a redução foi mais acentuada entre jovens e aqueles que se identificam como progressistas ou democratas, com queda de pelo menos 10 pontos percentuais. Enquanto 62% dos progressistas afirmaram acreditar em Deus, entre os conservadores o percentual foi de 94%, queda de apenas um ponto. Entre os que se identificam como democratas, 72% responderam crer em Deus, uma diferença de 20 pontos em relação aos 92% dos republicanos que disseram o mesmo. "A religiosidade é um dos principais fatores determinantes de divisões políticas nos Estados Unidos", diz o instituto de pesquisa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É preciso ter em mente como o Gallup fez a pergunta", diz à BBC News Brasil o sociólogo Ryan Cragun, professor da Universidade de Tampa, na Flórida, e especialista no estudo dos não-religiosos. A pesquisa Gallup perguntou "você acredita em Deus?", e ofereceu apenas duas opções de resposta: "sim" ou "não". Os que optaram pelo "sim" responderam a uma segunda pergunta, para aprofundar que tipo de visão têm sobre Deus. "Cerca de metade dos que acreditam em Deus — o equivalente a 42% de todos os americanos — diz que Deus ouve suas preces e intervém quando as pessoas rezam", afirma o instituto. "E 28% de todos os americanos dizem que Deus ouve as preces, mas não pode intervir." Mas Cragun ressalta que, quando outras pesquisas oferecem opções de resposta mais complexas, em que os entrevistados podem expressar o que pensam em maiores detalhes, o percentual de americanos que revelam acreditar em Deus é ainda menor. "Se você olhar para o percentual que diz 'não sei se existe um Deus', ou 'talvez às vezes acredite' (ou outras respostas do tipo), é na verdade cerca de 45% dos americanos", afirma. Cragun destaca que, pelos menos nos últimos 40 anos, o número daqueles que acreditam no Deus bíblico vem caindo nos Estados Unidos. "Nem todos passam imediatamente a dizer 'não acredito em um Deus'. Muitos agora acreditam em um poder superior, e não está claro como (esse poder superior) é definido", observa. "Mas também cada vez mais pessoas estão dizendo 'não acredito em um Deus', e também 'não sei (afirmar com certeza se existe ou não)', o que é o rótulo de agnóstico", afirma. Em uma pesquisa Gallup de 2016, que oferecia mais opções de resposta além de "sim"ou "não", 11% responderam não acreditar em Deus. Mas outros 10% disseram que era "um assunto sobre o qual não têm certeza". Os 79% que afirmaram ser "algo em que acreditam", representam uma queda de 11 pontos percentuais em relação a 2004. Em 2017, outra pesquisa Gallup revelou que 64% dos adultos americanos estavam "convencidos de que Deus existe", uma queda de 15 pontos em relação a 2005. Outros 21% achavam que Deus provavelmente existia, mas tinham dúvidas; 6% achavam que provavelmente não existia; e 7% estavam convencidos de que não existia. No mesmo ano, uma pesquisa de outra organização, o Pew Research Center, revelou que, enquanto 80% diziam crer em Deus, somente 56% acreditavam no Deus bíblico. Os outros acreditavam em um poder maior ou força espiritual. Entre os 19% que não acreditavam em Deus, metade acreditava em um poder superior. A queda no percentual da população que diz acreditar em Deus ocorre ao mesmo tempo em que se observa declínio em vários outros indicadores relacionados à religião nos Estados Unidos. Segundo o Gallup, o percentual de americanos que são membros de uma igreja, sinagoga ou mesquita caiu de 70% para 47% de 1999 a 2020. Todas as faixas etárias registraram queda nesse período, mas o instituto afirma que o declínio "parece estar amplamente ligado a mudanças na população", com grandes diferenças entre as gerações. Enquanto 66% dos nascidos antes de 1946 disseram pertencer a uma igreja, somente 36% dos nascidos após 1981 responderam o mesmo. O percentual vem diminuindo mesmo entre os que se definem como religiosos, com queda de 13 pontos desde a virada do milênio. Mas a queda também acompanha um aumento daqueles que dizem não se identificar com nenhuma religião, que passaram de 8% para 21% nas últimas duas décadas, com crescimento em todas as faixas etárias. No ano passado, o Pew analisou a composição religiosa da população e revelou que o percentual de americanos sem religião passou de 16% em 2007 para 29% em 2021. Neste grupo, estão os que se descrevem como ateus, agnósticos ou "sem religião em particular". No mesmo período, o percentual dos que se identificam como cristãos caiu de 78% para 63%. Esse declínio se concentra entre os protestantes, que passaram de 52% para 40% da população, segundo o Pew. A queda entre os católicos foi menor, de 24% para 21%. Números divulgados pelo Gallup no ano passado, levando em conta uma média entre diferentes pesquisas, indicam tendência semelhante: 69% dos americanos se identificavam como cristãos, sendo 35% protestantes e 22% católicos. Outros 21% diziam não ter preferência religiosa. Segundo essa análise Gallup, 49% dos americanos consideram a religião "muito importante" em suas vidas. Em 1965, quando o instituto fez a pergunta pela primeira vez, 70% diziam que era muito importante. Conforme o estudo Pew, de 2007 a 2021, o percentual de americanos que consideram a religião "muito importante" em suas vidas caiu de 56% para 41%, e o dos que rezam todos os dias oscilou de 58% para 45%. "As mudanças em direção à secularização, evidentes na sociedade americana até o momento no século 21, não dão sinais de desaceleração", disse o Pew na divulgação da pesquisa. "Talvez essas mudanças não representem uma grande modificação na maneira de pensar das pessoas — mas, sim, em como se tornou culturalmente aceitável não ir à igreja", afirma Froese, da Universidade Baylor. O sociólogo lembra que, historicamente, nos Estados Unidos, sempre houve muita pressão social para pertencer a uma igreja, mas isso enfraqueceu com o tempo. "Talvez os que (agora) estão dizendo que não creem em Deus já não acreditassem, mas apenas não dissessem isso abertamente." Froese observa que os esforços de parte da sociedade para ampliar o papel da religião na vida pública também podem ser uma reação à tendência de secularização. "Há um certo paradoxo no fato de que, à medida que o secularismo se torna mais culturalmente aceitável, há uma reação a isso entre pessoas religiosas muito conservadoras", afirma. Segundo Froese, há uma politização da religião nos Estados Unidos, e a identidade religiosa adquiriu uma conotação política que não costumava ter. Pessoas com comportamentos religiosos semelhantes se descrevem de maneira oposta, de acordo com sua inclinação política. "Digamos que duas pessoas nos Estados Unidos pertencem a uma igreja, vão à missa três vezes por ano e dizem em pesquisas que acreditam firmemente em Deus. Quando você pergunta o quão religiosas elas são, a conservadora vai dizer que é muito religiosa, e a liberal vai responder que não é nem um pouco religiosa", afirma Froese. "Nos Estados Unidos, um conservador sempre irá dizer que é muito religioso, porque isso é considerado uma parte integral de ser conservador. E progressistas vão dizer que não são religiosos, mesmo que sejam, simplesmente porque não querem que (os outros) pensem que são conservadores." Cragun, da Universidade de Tampa, lembra que, desde a década de 1990, se tornou mais aceitável nos Estados Unidos para uma pessoa admitir que não é religiosa ou que é ateia. "Durante a Guerra Fria, você não podia fazer isso, porque imediatamente as pessoas iriam perguntar: 'Você é um comunista?'", lembra Cragun. "Então, as pessoas não admitiam, apesar de eu acreditar que esses números (dos que não acreditam em Deus) já vinham aumentando." Para Cragun, o aumento no percentual dos que agora admitem abertamente não crer em Deus pode ser uma resposta aos sucessos políticos e legais do nacionalismo cristão, encabeçados pelos que acreditam que os Estados Unidos devem ser um país cristão. "Acho que os nacionalistas cristãos nos Estados Unidos, que são muito vocais e estão promovendo sua agenda, estão finalmente forçando aqueles que não são religiosos, que não acreditam, a dizer: 'Sou ateu há 40 anos, e apenas não dizia. Mas agora vou dizer'", afirma. "Vários juízes da Suprema Corte não são apenas conservadores, mas conservadores cristãos", afirma Cragun. "E muitos casos estão sendo decididos em favor de uma ideologia que está sendo rotulada cada vez mais como nacionalismo cristão." A decisão abriu caminho para que os Estados possam proibir completamente a interrupção da gravidez, e provocou protestos em todo o país por parte de grupos que defendem direitos reprodutivos. Mas também foi comemorada por ativistas contrários ao aborto, muitos deles religiosos e que há décadas lutavam pela revogação da decisão do caso "Roe x Wade". No mesmo mês, a Corte emitiu decisão favorável a um técnico de futebol americano de uma escola pública de Ensino Médio que brigava na Justiça pelo direito de rezar no meio do gramado depois de cada jogo. O caso colocava, de um lado, a proibição de que o governo endosse uma religião, prevista na Constituição americana, e, de outro, o direito à liberdade religiosa e de expressão. Em outro caso recente, a maioria decidiu que o Estado do Maine não pode excluir escolas religiosas de programas de assistência financeira para o pagamento de mensalidades. A decisão foi criticada por afetar a capacidade dos Estados de se recusarem a financiar educação religiosa. Apesar das mudanças na sociedade, os Estados Unidos continuam a ser descritos como um país muito religioso em comparação com outras nações, especialmente na Europa Ocidental. Segundo pesquisa Pew de 2018, somente 27% dos europeus dizem acreditar no Deus bíblico, e 38% afirmam crer em um poder superior. Mas Cragun, da Universidade de Tampa, diz não concordar com essa descrição e salienta que, em termos de comportamento real, os americanos não são tão mais religiosos que os moradores de outros países. "Se você tem 70% (da população) dizendo que é religiosa, mas somente cerca de 20% realmente participando (de cultos, missas e outras celebrações), isso significa que 50% dos americanos dizem que pertencem a uma religião, mas não vão à Igreja", afirma Cragun. "O quão religiosos são eles realmente, se não estão envolvidos?" Ele está finalizando o livro Beyond Doubt: the Secularization of Society ("Sem Sombra de Dúvida: a Secularização da Sociedade", em tradução livre), com publicação prevista para 2023, em que analisa o declínio de crença e comportamento religioso ao redor do mundo, com dados de mais de 100 países. "Não somos tão religiosos como as pessoas pensam. Ainda somos mais religiosos que muitos países desenvolvidos, mas eu não diria que somos um país altamente religioso", observa. "Compare (os Estados Unidos) com, digamos, a Arábia Saudita. No momento em que fizer isso, as pessoas irão dizer: 'Ah, claramente não somos tão religiosos'."
2022-09-10
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62760987
sociedade
Como a população do Brasil cresceu 45 vezes em 200 anos - e agora envelhece em 'ritmo asiático'
Duzentos anos atrás, quando o Brasil declarava sua separação de Portugal e iniciava sua história como país independente, um brasileiro nascia com a expectativa de viver, em média, só até os 25 anos. O enorme território brasileiro era ocupado por estimados 4,7 milhões de pessoas — menos do que tem hoje a cidade do Rio de Janeiro. A estimativa era provavelmente conservadora — o primeiro censo oficial só ocorreria em 1872 e não contabilizou a maioria dos povos indígenas, por exemplo. Mesmo assim, o Brasil da época não estava nem entre os 20 países mais populosos do mundo. E quase toda a sua população era analfabeta. Hoje, a nação que comemorou no dia 7 de setembro o bicentenário da Independência tem uma população 45 vezes maior e é a sétima mais populosa do mundo, segundo a ONU. Fim do Matérias recomendadas Esse crescimento deve continuar até pelo menos 2050, quando se estima que o número de brasileiros vá alcançar um pico de 231 milhões, 16 milhões a mais do que hoje. Depois, a expectativa é que a população brasileira comece a diminuir. Essa é uma tendência que se repete em grande parte do mundo, mas que, no Brasil, tem ocorrido em um ritmo particularmente rápido e mais semelhante ao de países asiáticos do que o de europeus. (leia mais abaixo) Essa jornada da população brasileira é descrita pelo demógrafo José Eustáquio Diniz Alves no livro recém-lançado Demografia nos 200 Anos da Independência do Brasil e cenários para o século 21. "A mudança mais impactante é o aumento da esperança de vida, que em 200 anos multiplicou por três, para os (atuais) 75 anos", diz Diniz Alves à BBC News Brasil. Esse salto reflete décadas de avanço no combate à mortalidade infantil e materna e nas condições de saúde e saneamento, apesar das mazelas do Brasil e da pobreza agora em curva ascendente. "Em 1900, a expectativa de vida era de 29 anos no Brasil e 49 anos nos Estados Unidos (70% mais alta). Em 2019, os números se aproximaram bastante, com 75,9 anos no Brasil e 78,9 anos nos EUA (apenas 4% mais alta)", escreve Diniz Alves no livro. E essa expectativa poderia ter sido ainda mais alta se não fossem as perdas de vida causadas pela pandemia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A composição étnica da população também sofreu grandes mudanças nesses 200 anos. O Brasil é apontado como o país das Américas que mais recebeu africanos escravizados: 4,8 milhões de pessoas ao longo de quase três séculos. Assim, um território que até 1500 era totalmente indígena começou a mudar, explica Diniz Alves. Por volta de 1800, duas décadas antes da Independência, as primeiras estimativas indicavam que os indígenas eram apenas 8% da população total, de 3,3 milhões de habitantes. Essas contagens, no entanto, ignoravam muitas comunidades indígenas e são consideradas conservadoras. Na mesma época, pessoas de origem europeia, mais concentradas nos centros urbanos, representavam 31% e a população de origem africana, fosse livre ou escravizada, era 61% do total. A porcentagem de europeus aumentaria nas décadas seguintes para quase 40%, com a chegada da Corte Portuguesa ao Brasil e o início de uma migração mais acentuada de europeus de outras nacionalidades nas décadas seguintes — algo que, segundo historiadores, tinha por objetivo "branquear a população" após a abolição da escravidão. Apesar disso, o censo de 1872, o primeiro da história brasileira, indicou que, dos quase 10 milhões de habitantes do Brasil, pessoas de origem africana continuavam sendo majoritárias: 42,8% da população era de pessoas africanas livres e 15,2%, de escravizadas. Foi nessa época, também, que o ritmo de crescimento da população brasileira começou a se acelerar até o século 20, explica Diniz Alves. "As taxas de mortalidade na virada do século começaram a cair, mesmo que modestamente, contribuindo para o maior incremento demográfico", escreve o demógrafo. Desse modo, a população brasileira foi tendo progressivos aumentos de tamanho: o censo de 1890, pouco depois da Proclamação da República, contabilizou 14,3 milhões de habitantes. O grande salto, porém, viria em meados do século 20, explica Diniz Alves. "O período de maior crescimento demográfico da história brasileira ocorreu nas décadas de 1950 e 1960, com média de 3% ao ano, não em função do afluxo de estrangeiros, mas, sim, por conta da queda das taxas de mortalidade — especialmente infantil — que propiciou grande aumento do crescimento vegetativo em um quadro de taxas de fecundidade ainda em altos patamares." Naquela época, as mulheres tinham, em média, 6,3 filhos cada uma. Uma taxa que caiu vertiginosamente até chegar à média de 1,7 atual. A combinação de aumento na expectativa de vida com a queda no número de filhos por mulher resultou numa rápida mudança na estrutura etária do Brasil a partir dos anos 1970, de acordo com o demógrafo. Mais rápida, inclusive do que a de muitos países europeus e dos Estados Unidos. A França foi o primeiro país em que, segundo Diniz Alves, os idosos viraram 7% da população, ainda em 1870. O índice francês dobrou para 14% em 1980 — mais de um século depois. Já o Brasil, com uma estrutura demográfica mais jovem, só chegou a 7% de idosos recentemente, em 2012. Mas deve dobrar esse índice em 2031 — apenas 19 anos depois. Tal ritmo de envelhecimento é visto também em países asiáticos como Japão, Coreia do Sul, Tailândia e China, que também tinham taxas de fecundidade altas até a década de 1960 e desde então vêm reduzindo rapidamente o número médio de filhos por mulher. "O interessante é que, no caso do Brasil, não houve uma política populacional (como a China, com sua "política do filho único"). A fecundidade caiu por mudanças econômicas e culturais", diz Diniz Alves à BBC News Brasil. O Japão foi o país que chegou mais rapidamente à proporção de 14% de idosos na população (em apenas 23 anos, de 7% em 1971 para 14% em 1994) — já que a queda das taxas de fecundidade japonesas ocorreu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial e a expectativa de vida ao nascer do país é alta. Mas ele foi a exceção entre os países desenvolvidos a ter um envelhecimento da população tão rápido. De um modo geral, os países em desenvolvimento tiveram uma transição demográfica mais veloz, segundo diz Diniz Alves. Mas o que isso significa? "Eles dispõem de menos tempo para se adaptar à nova realidade demográfica. O Japão e a Coreia do Sul já conseguiram enriquecer antes de envelhecer. A China e a Tailândia já estão a caminho de uma renda per capita alta", escreve o demógrafo. Já o Brasil, depois de anos de crise econômica, "possui a renda estagnada e está a caminho de envelhecer antes de enriquecer. Em outras palavras, o Brasil ainda não resolveu os problemas típicos de uma sociedade jovem, como saneamento básico, educação básica, e precisará lidar com os problemas de uma sociedade superenvelhecida até os meados do século 21. (...) Será necessária muita criatividade". Em outros países da América Latina também se observa o mesmo fenômeno. "Não somos uma jabuticaba nesse aspecto. A fecundidade caiu na Costa Rica até um pouco mais rápido do que no Brasil. E, em Cuba, a população deve cair pela metade no restante do século, por causa da baixa fecundidade e de haver mais gente saindo do que entrando no país", explica. Segundo as previsões da ONU, o Brasil provavelmente ainda tem algumas décadas no atual primeiro bônus demográfico — ou seja, de um contingente grande de população jovem e economicamente ativa em relação ao grupo etário com mais inativos (como crianças e idosos). Por volta da década de 2040, o grupo de pessoas de 15 a 64 anos alcançará seu pico e começará a cair. A partir daí, quem vai crescer proporcionalmente é a faixa de brasileiros com mais de 60 anos. O bônus demográfico dá a um país a oportunidade de aumentar a produção de bens e serviços. No entanto, essa janela de oportunidade só ocorre uma vez na história de cada país, e dura entre 50 e 70 anos. Segundo Diniz Alves, todos os países com altos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) conseguiram aproveitar essa janela para aumentar as taxas de riqueza e elevar seu padrão de bem-estar geral, melhorando os níveis educacionais da população e da tecnologia que permite o aumento da produtividade. O Brasil deve chegar ao final do século 21 com uma proporção maior de pessoas dependentes em relação às que estão em idade produtiva. Isso deve ter um impacto importante na Previdência social, no sistema de saúde e no mercado de trabalho. O fenômeno será mundial: em 2100, segundo as projeções da ONU, o mundo terá apenas 1,7 adulto de 20 a 59 anos para cada idoso de 60 anos ou mais, na média. No Brasil, essa taxa deve ser ainda menor, de 1,1 adulto para cada idoso. De um modo geral, o número de pessoas em cada grupo de idade do Brasil nas últimas décadas foi aumentando e diminuindo em ondas bem marcadas, que determinaram o bônus demográfico (veja no gráfico abaixo). - O grupo de 0 a 19 anos foi de 51,6% da população brasileira em 1950 para 40,8% em 1999 e deve chegar a 2100 perfazendo apenas 17,6% da população do país. - As pessoas entre 20 e 39 anos eram 29% da população em 1950, 32,5% em 2019 e serão 19,8% em 2100. - O grupo de 40 a 59 anos correspondia a 14,5% da população em 1950, e deve chegar a seu pico em 2040, quando corresponderá a 28,5% do total do país. Em 2100, serão 22,6%. - Já os idosos de 60 anos ou mais, que eram menos de 5% da população em 1950, vão crescer até 2075, quando serão 37,6% da população, ou 79,2 milhões de pessoas. "A partir de 2076, o grupo de idosos começará a diminuir em termos absolutos para 72,4 milhões de pessoas em 2100. Ainda assim, em termos relativos, será o único grupo que continuará crescendo proporcionalmente, tornando-se 40,1% da população total em 2100", explica Diniz Alves. Enquanto isso, o primeiro bônus demográfico, iniciado em 1970, deve se encerrar por volta de 2040, ou talvez um pouco mais cedo. "A fase em que a demografia oferece um estímulo à economia aproxima-se de seu fim", diz o demógrafo. Esse fenômeno demográfico traz consigo a urgência de que o Brasil aproveite ao máximo as décadas restantes de alto contingente de jovens em idade produtiva. Mas, se o país não conseguir usar essa janela para enriquecer e melhorar a qualidade de vida dos brasileiros, o que é possível fazer? Segundo Diniz Alves, existem as possiblidades de um 2º e um 3º bônus, que acontecem de maneira independente das mudanças na estrutura etária da população. Para conseguir o chamado 2º bônus, seria preciso elevar as taxas de poupança e investimento dos cidadãos para aumentar a produtividade econômica. É, por exemplo, algo que a China fez, desde os anos 1980, quando sua renda per capita era 17 vezes menor do que a do Brasil. "Com altas taxas de poupança e investimento, a China garantiu um expressivo crescimento econômico nos últimos 40 anos. (…) Com uma renda per capita US$ 22,6 mil em 2022, a China já tem um rendimento médio 25% superior ao brasileiro e mantém taxas de poupança e investimento, respectivamente, acima de 40% do PIB (Produto Interno Bruto) na década de 2020", escreve o demógrafo. "O Brasil, ao contrário, não conseguiu superar as baixas taxas de poupança e investimento prevalecentes na década de 1980 (...) e chegou em 2022 com taxa de poupança de somente 17,4% do PIB e taxa de investimento de 18,7% do PIB", compara. "Não é de se estranhar que a renda per capita tenha apresentado variação muito pequena nos últimos 42 anos e que esteja estagnada na última década." Em casos em que o 1º e o 2º bônus não sejam bem aproveitados, um 3º bônus demográfico envolveria inserir a população idosa no mercado de trabalho, caso haja condições justas e favoráveis para fazê-lo.
2022-09-08
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62633843
sociedade
'Vivemos em sistema econômico desumano', diz economista britânico defensor da renda mínima
Para o economista britânico Guy Standing, já não devemos falar mais em "economia de livre mercado" e nem "esquerda" versus "direita". Em entrevista à BBC News Mundo (serviço da BBC em espanhol), Standing afirmou que a extrema concentração de renda e o monopólio de grandes empresas já configuram algo muito diferente da economia de livre mercado. E, segundo ele, a solução para esse "sistema econômico desumano" é uma "política progressista que não seja ao antigo estilo direita ou esquerda". "Precisamos nos assegurar de que todas as pessoas tenham um nível de liberdade e de segurança básico para se desenvolver", diz Standing, pesquisador associado ao Departamento de Estudos de Desenvolvimento da SOAS University of London e fundador da Basic Income Earth Network (BIEN), organização não-governamental que defende a renda mínima como um direito universal. Ex-diretor do Programa de Segurança Socioeconômica da Organização Internacional do Trabalho, Standing defende, além da redistribuição de renda, o fortalecimento da previdência social para setores mais vulneráveis. Confira os principais trechos da entrevista. Fim do Matérias recomendadas BBC News Mundo - No seu livro O precariado: a nova classe perigosa, você analisa a situação de um grande setor da população que vive com empregos precários e altamente instáveis. Você diria que vivemos em um sistema econômico desumano? Guy Standing - O maior problema que temos atualmente é que o sistema econômico global foi distorcido, muitas vezes por políticos que realmente não apreciam a natureza da economia capitalista atual. A economia capitalista que temos hoje não é uma economia de livre mercado. Muito da retórica corrente fala em "livre mercado", mas o que aconteceu nos últimos 30 anos é que os grandes grupos financeiros e rentistas criaram um sistema muito distante do que é uma economia de mercado. Nesse sistema, a renda flui cada vez mais em direção aos proprietários, seja donos de propriedades financeiras, físicas ou intelectuais. Ao mesmo tempo, eles construíram um sistema que gera altos níveis de inflação, principalmente porque as finanças se comportam de forma especulativa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Mundo - Por que você diz que esses problemas não são gerados por uma economia de livre mercado? Standing - O livre mercado tem seus próprios problemas, mas é um erro dizer que o sistema econômico atual é um sistema de livre mercado, quando temos milhões de agricultores que garantem a grandes grupos empresariais lucros monopolistas. Isso permite a essas empresas aumentar os preços sem qualquer concorrência real. Esse tipo de situação possibilita que grandes corporações comprem outras corporações e criem monopólios no mercado. Vivemos em um sistema econômico muito desumano. BBC News Mundo - Como esses monopólios que você descreve afetam o cidadão comum? Standing - Nós, pessoas comuns, estamos perdendo porque pagamos preços muito mais altos do que os custos de produção e, ao mesmo tempo, as grandes empresas não pagam o custo total dos problemas que geram. Elas não pagam, por exemplo, os custos ecológicos gerados por suas atividades. O sistema financeiro busca altos lucros a curto prazo à custa de esgotar, por exemplo, os recursos que vêm do mar e de afetar comunidades em diferentes partes do mundo. BBC News Mundo - Mas as desigualdades sempre existiram ao longo da história em diferentes sistemas econômicos. Não é um fenômeno típico do capitalismo nem um fenômeno recente... Standing - Nos últimos 30 ou 40 anos, os donos de propriedades e das finanças se tornaram mais poderosos. Se olharmos para os Estados Unidos, por exemplo, os ativos financeiros têm um valor equivalente a 500% da renda nacional. No meu próprio país, a Grã-Bretanha, o valor é maior que 1.000%. Isso é diferente de tudo que já vimos no passado. O mesmo ocorre com as patentes e os direitos intelectuais. Eles tampouco existiam na mesma medida que hoje. O mesmo com a concentração de corporações que geram oligopólios. BBC News Mundo - Muitos economistas argumentam exatamente o contrário — dizendo que, graças ao sistema econômico predominante no mundo, mais pessoas saíram da pobreza e as classes médias cresceram. Isso teria feito com que um número maior de pessoas tivessem acesso a melhores condições de vida e a bens e serviços que nem seus pais nem avós tinham... Standing - Esse argumento não está errado. Mas também vimos que, em países como os Estados Unidos, a expectativa de vida diminuiu. Isso é algo inédito. As taxas de suicídio aumentaram, a morbidade aumentou, as taxas de câncer, o estresse, as doenças mentais tornaram-se epidemias... Estamos em uma era na qual vemos crises financeiras atrás de crises financeiras. Temos uma situação em que, materialmente, pode parecer que somos mais ricos do que jamais fomos na história, mas os níveis de desigualdade tornaram a vida muito insegura. BBC News Mundo - Que efeitos essa insegurança causa? Standing - A insegurança gera problemas sociais, populismo e tensões geopolíticas. Após a Segunda Guerra Mundial, iniciou-se um período em que a vida melhorou nos países desenvolvidos. Mas, com o passar do tempo, o padrão de vida das pessoas que vivem do trabalho estagnou e o emprego tornou-se mais precário. BBC News Mundo - Você mencionou que temos visto muitas crises financeiras. No entanto, alguns economistas argumentam que isso faz parte dos ciclos pelos quais o sistema econômico passa, que são de alguma forma inerentes ao modo como nossa economia global funciona. Standing - O que temos visto nas últimas décadas — especialmente em relação ao que conhecemos como a revolução econômica neoliberal sob os governos de Margaret Thatcher (no Reino Unido) ou Ronald Reagan (EUA) na década de 1980 — é que o número de crises financeiras aumentou enormemente, assim como sua gravidade. Temos níveis gigantescos de endividamento das famílias, corporações e governos, o que torna nosso sistema economicamente instável, com grandes fluxos de dinheiro concentrados em uma minoria. Não apenas os Jeff Bezos ou Elon Musk, estou falando dos 20% donos da riqueza. De fato, a desigualdade de riqueza cresceu dramaticamente. O que acontece é que o sistema econômico deixou de recompensar o trabalho para recompensar a propriedade da riqueza. E os políticos não estão fazendo nada para enfrentar os desafios estruturais. BBC News Mundo - Que alternativa você propõe? Standing - Precisamos exercer pressão política para criar um sistema de vida que valorize a natureza e que dê às pessoas uma sensação de segurança. É preciso uma política progressista que não seja ao antigo estilo direita ou esquerda. Uma política progressista que una as pessoas, em vez de criar divisões. Creio que essa política progressista está surgindo entre os jovens instruídos que fazem parte do precariado. Acho que virá um novo tipo de renascimento, um novo tipo de liberdade, fraternidade e solidariedade, e que estamos no limiar da transformação. BBC News Mundo - Mas o que você propõe de concreto? Standing - Há três décadas venho propondo que toda pessoa tenha uma renda básica — o direito de receber a cada mês uma modesta quantia em dinheiro que lhe dê alguma segurança básica. Fizemos experimentos em diferentes partes do mundo e os resultados foram ótimos. Eles mostram que a saúde mental das pessoas melhora, que as pessoas trabalham mais, não menos, que o status das mulheres melhora... Vimos também que os níveis de tolerância e solidariedade aumentam. E isso é factível, acessível. Podemos criar fundos tributando os combustíveis fósseis, cobrando um imposto sobre a riqueza. BBC News Mundo - Então você é a favor de melhorar o capitalismo, e não de uma mudança de sistema? Standing - Acho que não é muito sensato pensar em uma revolução ou em uma mudança radical. O sensato é dizer que é preciso uma economia de mercado adequada, com incentivos adequados para as pessoas que trabalham duro, que investem, que assumem riscos. Precisamos disso. Mas, ao mesmo tempo, precisamos nos assegurar de que todas as pessoas tenham um nível de liberdade e de segurança básico para se desenvolver. Isso é compatível com uma economia de livre mercado. O problema é que o tipo de capitalismo que temos hoje é uma abominação, porque dá todo o poder a uma minoria. BBC News Mundo - Essas ideias de redução da desigualdade, de fim dos oligopólios e dos privilégios das minorias, são bastante semelhantes ao discurso que a velha esquerda propõe há anos. No caso da América Latina, posso citar pelo menos três países — Venezuela, Nicarágua e Cuba — onde essas ideias deram lugar a governos que permaneceram no poder por décadas, que foram denunciados por violações de direitos humanos e onde a maioria da população vive na pobreza. Standing - Pode-se pensar em muitos exemplos ao redor do mundo onde os políticos assumiram o poder e coisas assim aconteceram. Mas também acho que a agenda mudou. Estou muito esperançoso com a ideia de que Lula vença as eleições no Brasil e se torne presidente. Quando o conheci, ele me disse que, se chegasse novamente ao governo, criaria uma renda básica no país. BBC News Mundo - No entanto, na Venezuela, Nicarágua ou Cuba, a situação é muito diferente… Standing - Qualquer país — seja Cuba, Venezuela ou Estados Unidos — que não respeita os direitos humanos está fazendo algo deplorável. Os direitos humanos são fundamentais e a liberdade é fundamental, assim como os valores democráticos. O que precisamos fazer é tornar as pessoas economicamente seguras para que sejam menos propensas a apoiar qualquer tipo de política extremista, seja de direita ou de esquerda. Quando as pessoas se sentem inseguras, tendem a ouvir populistas, como, digamos, Donald Trump ou Bolsonaro, ou qualquer um dos governos que você mencionou. Uma boa sociedade exige que todas as pessoas tenham sensação de segurança e de liberdade. Qualquer governo que não respeite esses valores não está seguindo o caminho que precisamos.
2022-09-08
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62828769
sociedade
Peppa Pig traz primeiro casal de personagens do mesmo sexo no programa infantil
Famosa mundialmente, a personagem Peppa Pig conheceu em um novo episódio exibido na terça-feira (6/9) um casal homoafetivo, o primeiro a aparecer no programa infantil britânico em seus 18 anos de exibição. No episódio intitulado Families, exibido no Canal 5 no Reino Unido, Peppa Pig conheceu as mães da personagem Penny Polar Bear. Enquanto desenhava um retrato da família, Penny Polar Bear explicou: "Eu moro com minha mamãe e com minha outra mamãe. Uma mamãe é médica e outra mamãe cozinha espaguete." O programa Peppa Pig, criado pelos animadores britânicos Mark Baker e Neville Astley, está no ar desde 2004. O novo episódio foi exibido dois anos depois que uma petição online foi criada pedindo que fosse exibida uma "família de pais do mesmo sexo na Peppa Pig". A petição teve mais de 24 mil assinaturas. Fim do Matérias recomendadas "As crianças que assistem Peppa Pig estão em uma idade influenciável", escreveram os criadores da petição. "Excluir famílias do mesmo sexo vai ensiná-las que apenas famílias com um pai ou mãe ou dois dois pais de sexos diferentes são normais." Robbie de Santos, diretor de comunicações e assuntos externos da organização de direitos LGBT Stonewall, disse que ver uma família homoafetiva na ficcional cidade de Peppatown foi "fantástico". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Muitos daqueles que assistem ao programa têm duas mães ou dois pais. Será muito significativo para esses pais e filhos que suas experiências sejam representadas em um programa infantil tão icônico", disse Santos à BBC. Peppa Pig não é de forma alguma o primeiro programa infantil a apresentar um casal homoafetivo. O desenho animado americano Arthur, destinado a crianças de quatro a oito anos, ganhou elogios em 2019 depois de mostrar um casamento gay durante sua 22ª temporada. Na época, Maria Vera Whelan, da rede PBS KIDS, disse em um comunicado que a marca acreditava ser "importante representar uma grande variedade de adultos na vida das crianças". Outros programas infantis populares que incluíram relacionamentos LGBT em seus episódios incluem Hora de Aventura e Steven Universo — ambos americanos, mas voltados para o público com mais de 10 anos de idade. Após o mais recente episódio de Peppa Pig, o Twitter ficou agitado com o debate sobre a família de Penny Polar Bear. "Lésbicas em Peppa Pig... os shows infantis não podem ser apenas para crianças?" um homem escreveu. Outro discordou, dizendo : "Bem, quer saber? Meus filhos viram o primeiro casal homossexual em Peppa Pig e o mundo não acabou".
2022-09-07
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62828777
sociedade
'Não sou independente. Somos escravizados pelo sistema', diz morador de rua no 7 de Setembro
No ponto de vista de José, não só ele, mas toda a população brasileira é escravizada de maneiras diferentes. "A independência que você tem é a mesma que eu tenho. Infelizmente, nós somos escravizados pelo sistema cruel. Eu, do meu jeito, sofrendo. A natureza, o frio, a chuva. Eu estou todo molhado. Eu não durmo. Eu sento numa calçada e cochilo um pouco. Você é escravizado dentro da sua casa. Você paga pelo pão, você paga pelo litro de leite e não é pouco. Um litro de leite chegar a custar dez reais. Isso não é o Brasil. É o militarismo querendo expor o que eles querem, não o que você necessita", afirmou à BBC News Brasil na praça da Sé, no centro de SP. Ele diz que o sonho dele é conhecer o neto de 5 anos e reencontrar a família, que mora em Cabrobó, no sertão de Pernambuco. "Por isso, eu estou aqui, passando por cima de veneno, por cima de tudo. Eu não os vejo há anos. Não sei nem onde moram mais. Tenho saudade. Eu queria sim ter uma casa para voltar. Ter minha mãe para dar um abraço", diz com os olhos marejados. Fim do Matérias recomendadas José conta que ainda não voltou para a terra natal porque foi "fraco perante as drogas". "Infelizmente, eu me aprofundei nessa porcaria chamada cocaína. Minha vida, meu sangue, meu organismo só se dá bem com química e eu estou lutando contra isso", conta. Durante a comemoração dos 200 anos da Independência do Brasil, movimentos sociais foram até a praça da Sé, região de grande concentração de pessoas em situação de rua, para distribuir comida e roupas a moradores na ação conhecida como Grito dos Excluídos. Iniciada em 1995, o movimento que distribuiu ao menos 3 mil kits de alimentação na Sé, visa se contrapor ao Grito do Ipiranga, de Dom Pedro 1º. A intenção, segundo os idealizadores, é dar voz a quem quase nunca é ouvido. Ao ser questionado sobre o que espera do próximo presidente, José gostaria que houvesse um maior investimento nas crianças. "Eu espero que Deus abençoe a mente deles, porque não é para mim. É para as crianças. Eles têm que ter um futuro. Isso aqui (aponta para pão com presunto) está sendo o meu almoço. Não comi nada. Estou comendo devagarzinho para não acabar logo. Quero que eles tenham um almoço, com arroz e feijão", diz. José diz que, se pudesse fazer um pedido direto ao presidente, seria para cuidar dos mais necessitados. "Divida essa renda. É muita grana investida em algo que muitas vezes nem precisa. Dê moradia, dê emprego. Eu passei a noite só de camisa, todo molhado, o tênis furou. Tô nem aí. Eu sou calejado", diz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast José conta que o sonho de voltar para a terra natal está mais próximo, após a promessa de uma passagem para Pernambuco que recebeu depois de ajudar um motorista. "Eu fui com um galão daqui (praça da Sé) até um posto de combustíveis para o dono de um Honda Fit. Abasteci e fiz o carro dele funcionar porque eu sou mecânico profissional. Ele falou: 'Aqui estão meus dois números de telefone. Mês que vem, eu estou aqui e vou te levar na rodoviária'", conta. Ao ser perguntado sobre o que fará assim que chegar em Pernambuco, ele responde rapidamente. "Pegar meu filho, que agora está com 2,02 metro de altura, no colo porque faz cinco anos que não tenho esse direito. Não quero mais nada. Pode vir com uma carreta de euro ou dólar que eu taco fogo em tudo, mas me leve lá. Desculpa, eu estou meio emocionado. Mas eu sei o quanto a saudade dói. Ela mata devagarzinho", diz chorando.
2022-09-07
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62813306
sociedade
Cidade holandesa é a primeira do mundo a proibir propaganda de carne
Haarlem, na Holanda, está prestes a banir a maioria dos anúncios de carne em espaços públicos por causa do impacto climático desta proteína animal. A proibição será aplicada a partir de 2024 — e acredita-se que Haarlem seja a primeira cidade no mundo a tomar este tipo de iniciativa. A proposta elaborada pelo GroenLinks — um partido político verde — enfrentou oposição da indústria de carnes e daqueles que alegam que reprime a liberdade de expressão. A Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que a pecuária gera mais de 14% de todos os gases de efeito estufa produzidos pelo homem, incluindo o metano. "A carne é muito prejudicial ao meio ambiente. Não podemos dizer às pessoas que há uma crise climática e incentivá-las a comprar produtos que fazem parte dela", disse Ziggy Klazes, vereadora do GroenLinks que redigiu a proposta, ao jornal Trouw. Fim do Matérias recomendadas O governo da cidade de 160 mil habitantes informou que ainda não foi decidido se a carne produzida de forma sustentável será incluída na proibição de anúncios. A proposta também foi apoiada por parlamentares do partido Christian Democratic Challenge. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A reação da indústria da carne foi rápida. "As autoridades estão indo longe demais ao dizer às pessoas o que é melhor para elas", afirmou um porta-voz da Organização Central do Setor de Carnes. Já o partido de direita BVNL classificou a medida como uma "violação inaceitável da liberdade empresarial" — e disse que "seria fatal para os suinocultores". "Proibir propaganda por motivos de origem política é quase ditatorial", declarou o vereador Joey Rademaker, do BVNL. Herman Bröring, professor de direito da Universidade de Groningen, na Holanda, adverte que a proibição pode infringir a liberdade de expressão e levar a ações judiciais por parte dos distribuidores. Cerca de 95% das pessoas na Holanda comem carne, mas mais da metade não come todos os dias, de acordo com a Statistics Netherlands. Amsterdã e Haia já proibiram anúncios para as indústrias de aviação e combustíveis fósseis. A carne bovina produz a maior parte das emissões de gases de efeito estufa, que incluem metano. O cordeiro tem a segunda maior pegada ambiental, mas essas emissões são 50% menores do que a carne bovina.
2022-09-07
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62818821
sociedade
O que é o estímulo supranormal, o fenômeno que engana nossos próprios instintos
Por gostamos do que gostamos e como nossos desejos mais básicos às vezes nos levam na direção equivocada? No final da década de 1940, dois grandes cientistas - o zoólogo austríaco Konrad Lorenz (1903-1989) e o biólogo holandês Nikolaas "Niko" Tinbergen (1907-1988), ambos ganhadores do prêmio Nobel e cocriadores do campo da etologia (a biologia do comportamento) - estavam interessados em estudar como funcionam os instintos. Seus experimentos revelaram algo inesperado: que os instintos evoluíram para ajudar os animais a viver melhor, mas podem ser manipulados em laboratório. Se o fator desencadeante do comportamento for alterado, o próprio comportamento dos animais adquire características estranhas. As gaivotas-prateadas, por exemplo, têm uma pequena mancha vermelha no bico. Seus filhotes bicam instintivamente essa mancha para que a mãe regurgite a comida e os alimente. Mas Tinbergen e Lorenz descobriram que os filhotes bicavam ainda mais quando observavam uma agulha de madeira pintada de vermelho. A agulha não podia dar comida aos filhotes, mas eles a preferiam em vez da mãe. Fim do Matérias recomendadas E a situação pode ficar ainda mais estranha. Algumas aves que incubam instintivamente seus pequenos ovos de tom azul-acinzentado com pintas os abandonavam quando os cientistas ofereciam um ovo de gesso, duas vezes maior que o tamanho normal, com cor azul fluorescente e manchas pretas. E as aves se sentavam para chocar esse enorme ovo falso que elas nunca poderiam ter posto. Outros experimentos se seguiram, até que ficou claro que Tinbergen e Lorenz haviam descoberto um fenômeno incomum. Se um comportamento instintivo ocorre em resposta a um estímulo específico - como manchas vermelhas no bico ou um ovo azul com pintas -, exagerar esse estímulo faz com que a reação dos animais também se amplie, às vezes em prejuízo deles próprios. Os pesquisadores chamaram este fenômeno de "estímulo supranormal". Os experimentos de Tinbergen e Lorenz eram interessantes, mas artificiais: a maioria dos animais nunca teria encontrado esses estímulos exagerados fora do laboratório. Mas existem estímulos supranormais no mundo real que descontrolam os instintos dos animais, afinados com precisão pela natureza. E um mestre dessas artimanhas é outra ave: o cuco. O cuco é um famoso malandro que não cria seus filhotes. As fêmeas põem seus ovos em ninhos de outras aves de espécies menores, deixando o futuro bebê para que seja cuidado por outra ave desprevenida... e os pais nunca mais voltam a ver seus filhotes. Assim que nasce, em um verdadeiro ato de crueldade, o filhote de cuco mata as demais crias e retira seus restos do ninho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As aves progenitoras ficam então com esse único filhote enorme e faminto e de uma espécie totalmente diferente. Mas, em vez de expulsá-lo, elas começam a alimentá-lo. "Muitas vezes, o filhote é 8 a 10 vezes maior que as aves que o criam e alimentam. Mas como o filhote de cuco consegue comida crescendo no ninho de uma ave muito menor do que ele?", questiona Rebecca Kilner, professora de biologia evolutiva da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. É aqui que entra em jogo o estímulo supranormal. A maior parte dos filhotes de todas as espécies de aves tem uma boca larga e vermelha que estimula os pais a alimentá-los - mas a boca do cuco é supranormal. "Ele tem uma boca enorme e muito brilhante, muito mais vermelha que a dos filhotes das aves que os recebem, que ele agita em frente à ave mãe", afirmou Kilner ao programa NatureBang, da BBC Rádio 4. Além disso, seu chamado pedindo alimento é muito forte e rápido - muito mais do que teriam tido os filhotes da mãe enganada. "É supranormal", afirma a professora. "Ele se aproveita do sistema nervoso da ave mãe, de forma que ela simplesmente não consiga resistir. E o impostor, que não tem nada a ver com sua própria descendência e não tem nenhum interesse genético pela dona do ninho, acaba escravizando-a." É curioso... e um tanto assustador. Com apenas uma cor e um som, o filhote de cuco tem o poder de enganar os instintos das aves mães de outra espécie, aperfeiçoados por milhões de anos de evolução, levando-as a agir contra seus próprios interesses. Mas nós, seres humanos, certamente não cairíamos nessas armadilhas. Nós não nos sentaríamos em uma enorme bola de praia, nem alimentaríamos enormes bebês alienígenas contra a nossa vontade, não é mesmo? Antes fosse assim! Nós não só caímos nesses golpes, desde muito antes que Tinbergen e Lorenz começassem a pintar ovos, mas também criamos as nossas próprias trapaças! Os seres humanos provavelmente são a única espécie que cria seus próprios estímulos supranormais - imitações falsas e exageradas para respondermos com mais força que às originais, enganando nossos próprios instintos, às vezes prejudicialmente. "O melhor exemplo, na minha opinião, é o algodão-doce", afirma a psicóloga evolutiva Becky Burch, do Departamento de Desenvolvimento Humano da Universidade do Estado de Nova York em Oswego, nos Estados Unidos. "O estímulo normal é o açúcar. Nós gostamos de alimentos doces, mas insisto na palavra 'alimentos' - que têm valor nutritivo para nós." Nossos instintos evoluíram há milhões de anos, para que pudéssemos caçar e coletar na savana africana. A grande maioria de nós agora vive em um mundo muito diferente, mas nossos instintos seguem sintonizados para buscar recompensas excepcionais em um mundo de escassez. Nós nos sentimos atraídos pelo sal, pelo açúcar e pela gordura, que são fundamentais para a nossa sobrevivência. As frutas, por exemplo, são uma fonte de calorias, nutrientes, fibras e energia. E o seu sabor doce é uma recompensa pelo longo e incessante trabalho de conseguir alimento. Hoje, o açúcar costuma estar sempre disponível e "nos fascina", segundo Burch. Mas "o algodão-doce exagerou esse gosto ao ponto de que nem parece ser alimento. É uma lufada de penugem." E o mesmo pode ser dito de muitas guloseimas, que são tão difíceis de resistir que precisamos adotar uma dieta. Burch não é especialista em algodão-doce, mas sim em cultura pop, especificamente em histórias em quadrinhos. E sabemos que, nos quadrinhos, o corpo dos super-heróis costuma ter dimensões pouco realistas. Seria um estímulo supranormal? Burch e seus colegas conduziram um estudo e suas conclusões foram incluídas em um artigo chamado "O Capitão Doritos e a bomba". "A grande maioria dos personagens masculinos das histórias em quadrinhos, especialmente os heróis, tem uma relação absurda entre a cintura e as costas: os ombros são mais que o dobro da largura da cintura", afirma o estudo. "Para as personagens femininas, as cinturas são 60% mais estreitas que os quadris." Alguém poderia perguntar "afinal, se são desenhos, qual é o problema?" Mas, quanto mais você analisa, menos sentido isso faz. Por que seria atraente uma mulher que não tivesse espaço para todos os seus órgãos internos ou um homem cujo esqueleto não pudesse suportar o peso dos próprios ombros? Eles não seriam seres humanos, mas é assim que funciona o estímulo supranormal. Nossos instintos são enganados, levando-nos a consumir alimentos sem valor nutricional ou atraindo-nos a pessoas que não têm formato humano - e não apenas nas histórias em quadrinhos. Existe a boneca Barbie com suas dimensões fora do comum, os personagens de Pokémon com seus enormes olhos de bebê que invocam nosso instinto protetor... Existe a pornografia mostrando idealizações sexuais impossíveis, sem falar nas drogas, nos jogos de azar, na moda e nos esportes. Há também os vídeo games, que nos convidam a mergulhar em outros mundos, e programas de televisão, como a série popular Friends, com sua versão supranormal dos estímulos sociais que somos condicionados a buscar: gente atraente com expressões amigáveis efusivas e amáveis, que riem e sorriem sem parar. E existem as telas de televisão brilhantes que distraem toda a nossa atenção, as notificações coloridas no telefone celular que causam dependência, as redes sociais, a publicidade... tudo isso é um tanto assustador. Neste mundo cheio de estímulos supranormais, podemos ser felizes com o que é normal? "Este é o problema dos estímulos supranormais. Eles atraem você para algo que é desejado, mas impossível", destaca Burch. "Sabemos os problemas que temos, por exemplo, com o açúcar, mas nós o queremos, colocamos em tudo e sofremos suas consequências para a saúde." "Quando o assunto são corpos similares aos das revistas em quadrinhos, nós gostamos deles e queremos tê-los, mas eles estão além do alcance humano. O que isso causa para nossas expectativas e nossa imagem corporal?", questiona Burch. No fundo, somos como as pobres aves que criam os filhotes de cucos - somos impulsionados para coisas que nos fazem mal. Mas a diferença é que nós mesmos as criamos. Burch afirma que, às vezes, basta simplesmente prestar um pouco mais de atenção para interromper os efeitos psicológicos. "Quanto mais tempo você olhar esses corpos idealizados, mais absurdos eles se tornam. É como comer muito algodão-doce: você enjoa. E começa a pensar: 'este corpo é estranho'." Até as aves conseguem fazer isso. Rebecca Kilner conta que existe um pequeno pássaro cantor que consegue lutar contra o estímulo supranormal: a fadinha-soberba, na Austrália. "Às vezes, você vê que elas subitamente deixam de alimentar o filhote de cuco, ignoram seus chamados desesperados e começam até a destruir o ninho", segundo ela. E, se a fadinha-soberba pode resistir, nós certamente também podemos. "É preciso olhar para além dos estímulos supranormais", aconselha Becky Burch. "Eles são, por definição, algo bom demais e é preciso manter limites saudáveis... mesmo que não haja nada de errado em um pouco de açúcar de vez em quando."
2022-09-06
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62806487
sociedade
Como comportamento sexual compulsivo descontrola quem sofre com o problema
Passamos anos ouvindo expressões como "ninfomania", "dependência de sexo" e "hipersexualidade". Estas e outras expressões definem pessoas que sofrem de desejo sexual "excessivo ou exacerbado", ou não têm controle sobre seus comportamentos sexuais. Embora estes termos tenham cumprido sua função por certo tempo, atualmente são ultrapassados. Depois de muitos estudos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu em 2018 o rótulo "Transtorno do Comportamento Sexual Compulsivo (TCSC)" para denominar a doença que afeta os pacientes que procuram seus médicos devido a um descontrole na sua conduta sexual que não conseguem impedir. Os critérios de classificação incluem pessoas que: - Perderam o controle das suas condutas. Fim do Matérias recomendadas - Esforçam-se para abandonar os comportamentos sexuais, mas não conseguem. - Não têm prazer nessas experiências. - Enfrentam consequências graves em diferentes áreas da vida por mais de seis meses. A OMS indica que este problema não pode ser explicado por julgamento moral, ou seja, que o simples fato de que algo não pareça apropriado ou moralmente aceitável para uma pessoa não explicaria que existe uma patologia clínica, passível de diagnóstico. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O sexo se tornou um ansiolítico para mim. Cada vez que sofro e não consigo mais, a sexualidade se converte no meu refúgio", comentou-me um paciente com 45 anos de idade. É comum observar como os pacientes usam os comportamentos sexuais (como pornografia, prostituição, bate-papos ou webcams sexuais) para regular seu mundo afetivo. Quando os pacientes com dificuldades não conseguem gerenciar suas emoções, eles procuram o sexo para buscar serenidade. Ainda são necessárias mais pesquisas, mas o TCSC afeta cerca de 10,3% dos homens e 7% das mulheres na população em geral, segundo o livro espanhol Conducta Sexual Compulsiva: una Mirada Integral - Guía para Profesionales ("Conduta sexual compulsiva: uma visão integral - guia para profissionais", em tradução livre), do psiquiatra Carlos Chiclana Actis e do psicólogo Alejandro Villena Moya. Cerca de 87% dos pacientes têm dificuldades com o controle do uso de pornografia e 15-20% realizam práticas sexuais como prostituição e infidelidade. As pessoas que sofrem essas dificuldades podem ser afetadas em diferentes setores da vida. - Vida pessoal: o modo de pensar e entender a sexualidade é distorcido e surge a perda de autoestima e confiança em si próprio, além de sentimentos de incapacidade, alteração do bem-estar espiritual, mal-estar pessoal, humilhações ou desprezo, vergonha, culpa e falta de desenvolvimento da identidade pessoal. - Vida econômica: perda de emprego, gastos excessivos ou desnecessários, chantagens e fraudes. - Relações interpessoais: rupturas amorosas, perda de confiança das outras pessoas, alterações ou dificuldades nas relações interpessoais, danos emocionais a outras pessoas, isolamento social, falhas no cuidado de uma pessoa querida, rompimentos matrimoniais e perda de amizades. - Questões médicas: doenças sexualmente transmissíveis, relações sexuais fisicamente não saudáveis, distúrbios cognitivos, psicopatologias, disfunções sexuais e piora da saúde. - Outras questões: problemas legais (denúncias e detenções), comportamentos irresponsáveis, renúncia a metas ou objetivos importantes, expulsão de organizações, associações etc. e deterioração da imagem pública. Os estudos neurobiológicos mais importantes concluíram que o transtorno por comportamento sexual compulsivo exibe alterações no cérebro, similares às que provocam dependência de substâncias e/ou outros comportamentos. Os centros cerebrais relativos à recompensa e à dopamina podem deteriorar-se devido a este descontrole sexual. Além disso, as áreas do cérebro que regulam o autocontrole, o planejamento, a atenção e a empatia podem ser alteradas, segundo observado em estudos mais recentes. Alguns indícios que podem nos ajudar a suspeitar que uma pessoa sofre deste transtorno são os seguintes: - Rasgos de impulsividade, incapacidade de retardar a gratificação ou falta de controle inibitório. - Mudanças de estado de ânimo, como irritabilidade, sintomas depressivos, ansiedade ou instabilidade. - Presença de doenças sexualmente transmissíveis. - Dependência da tecnologia. - Baixo rendimento acadêmico ou profissional e absenteísmo frequente. - Consumo de drogas (álcool, fumo, maconha e outras substâncias). - Dificuldade de regulação emocional. - Forte inclinação a buscar novidades ou sensações novas. - Dificuldade de expressão emocional. - Linguagem excessivamente sexualizada. - Problemas de estabilidade no relacionamento, infidelidade etc. - Pouco interesse nas relações sexuais com o próprio parceiro. - Baixa ou nenhuma formação sexual ou grande culpa com relação aos seus atos sexuais. Mas existem soluções. O caminho é longo e exige consciência, motivação, força, apoio, paciência, carinho, ajuda e dedicação, mas a saída existe. Nos últimos anos, surgiram diversos tratamentos eficazes para ajudar essas pessoas, incluindo a terapia individual (de diversas correntes, destacando-se a eficácia da terapia cognitivo-comportamental), terapia de grupo e, em alguns casos, a terapia farmacológica. Estes tratamentos ajudam a regular o comportamento, controlar os impulsos, reaprender a sexualidade sadia e viver uma vida mais livre. E existem também cursos que podem ajudar a orientar sobre qual a abordagem adequada para esta condição, ainda uma grande desconhecida entre muitos profissionais da saúde. *Alejandro Villena Moya é pesquisador das consequências do consumo de pornografia da Universidade Internacional de La Rioja, na Espanha.
2022-09-06
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62757771
sociedade
Câncer de próstata: conheça os sintomas e saiba como é o tratamento
Um conhecido apresentador britânico que dedicou os últimos anos de sua vida fazendo campanha para motivar homens a realizarem exames de próstata disse ter sentido "raiva de si mesmo" por passar 4 anos sem ir ao médico. Bill Turnbull, que durante 15 anos apresentou o programa matutino de TV BBC Breakfast, morreu de câncer de próstata no final de agosto. Ele tinha sido diagnosticado em novembro de 2017, durante as gravações de uma edição especial beneficente do programa The Great British Bake Off, um dos mais populares da TV britânica. Turnbull era um das celebridades que competiram no programa, que levantou fundos para a entidade Stand Up to Cancer. Ele vinha sofrendo de dores nas pernas, mas não queria "incomodar" o seu médico. Foi convencido pelo filho a fazer um teste de sangue. No final do programa, Turbull declarou que estava com câncer de próstata terminal, que tinha se espalhado para os ossos. Fim do Matérias recomendadas "Se tivesse realizado o exame alguns anos antes, teria batido esse câncer", declarou. Depois disso, em um espaço de poucos meses, a procura de homens por testes para a doença aumentou 250% no Reino Unido. O ator Stephen Fry também havia anunciado, na mesma época, que estava com o mesmo câncer, por isso, o aumento na procura por exames ficou conhecida no país como o "efeito Fry e Turnbull". Em 2021, Fry disse ter tido "sorte", por ter sido diagnosticado em um estágio inicial da doença. Turbull chegou a dizer que ter inspirado homens a realizarem o exame fora a "única coisa útil" que fez na vida - e que lamenta ter sentido "orgulho" por não ter visitado um clínico geral em quatro anos. Segundo dados da American Cancer Society, um em cada 8 homens é diagnosticado com câncer de próstata. Cerca de 6 de cada 10 diagnósticos são em homens com 65 anos ou mais. A seguir, algumas perguntas e respostas sobre o câncer de próstata. Os sintomas mais comuns da doença são: Esses sintomas também podem ser causados ​​por outras doenças - mas é importante que qualquer alteração seja verificada por um médico. Parte do sistema reprodutor masculino, a próstata, do tamanho de uma noz, fica na pélvis, abaixo da bexiga. Ela cerca a uretra - o tubo que leva a urina para fora do corpo através do pênis. O câncer é o crescimento celular anormal e descontrolado. Mas na próstata, geralmente se desenvolve lentamente. Os sinais ou sintomas podem não se manifestar por anos. E alguns pacientes nunca desenvolvem nenhum problema. Em outros, o câncer pode ser agressivo e mortal. O diagnóstico e o tratamento precoces são fundamentais. As chances de desenvolver câncer de próstata aumentam com a idade. Casos com menos de 50 anos são raros. Homens cujo pai ou irmão tiveram câncer de próstata têm um risco ligeiramente aumentado. Também é mais comum em homens negros. Não existe um teste único para detectar o câncer de próstata. Os médicos fazem um diagnóstico com base em vários fatores. Isso pode incluir um exame de sangue do antígeno específico da próstata (PSA), um exame de toque retal (para checar o tamanho da próstata), um exame de ressonância magnética e uma biópsia, que envolve a coleta de uma pequena amostra de tecido para ser examinado no laboratório. Os resultados dos testes de PSA podem não ser confiáveis. Um PSA alto nem sempre significa câncer. Um grande estudo no Reino Unido está verificando se os exames de ressonância magnética podem ser uma maneira eficaz de rastrear o câncer de próstata em homens, de maneira semelhante às mamografias oferecidas às mulheres para verificar o câncer de mama. Diferentes opções estão disponíveis e seu médico poderá aconselhar qual pode ser a mais adequada. Se o câncer estiver em um estágio inicial e não estiver causando sintomas ou crescendo rapidamente, pode ser possível mantê-lo sob observação ou "observar e esperar". Alguns cânceres de próstata podem ser curados com tratamentos como cirurgia e radioterapia. A terapia hormonal também pode retardar o crescimento do câncer. Também pode ser possível destruir as células cancerígenas usando frio extremo (crioterapia) ou ultrassom focalizado de alta intensidade.
2022-09-05
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62774860
sociedade
'Todas as crianças carregam em si a semente da genialidade', diz educadora
Para a educadora mexicana Elisa Guerra, o planeta não passa apenas por uma pandemia de coronavírus, mas também por uma situação de "emergência educativa" — e por isso ela, coautora de um relatório recente da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), tem se empenhado em imaginar as escolas do futuro. "Estamos em uma crise mundial de deficiências do aprendizado segundo o Banco Mundial, a Unesco e a Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância). Se isto não é uma emergência educativa, eu não sei o que é", diz Guerra à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). "Todas, inclusive aquelas com necessidades educacionais especiais ou alguma condição de aprendizagem, todas as crianças carregam em si a semente da genialidade e possuem um enorme potencial. Seu primeiro direito é ter um ambiente ideal para que essa semente possa se desenvolver. " Professora e fundadora de uma escola, Guerra já foi premiada como a melhor educadora da América Latina e Caribe pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) em 2015 e foi duas vezes finalista do prêmio internacional Global Teacher Prize. O relatório da Unesco do qual ela é coautora, intitulado "Reimaginar nossos futuros juntos: um novo contrato social para a educação", projeta "uma educação que repare as injustiças" e que se sustente "nos direitos humanos e nos princípios de não discriminação". Fim do Matérias recomendadas Confira trechos da entrevista de Elisa Guerra à BBC News Mundo. BBC News Mundo - O ponto de partida do relatório (da Unesco) é o alerta para um futuro de incertezas, guerras, crises migratórias e mudanças climáticas. Como transmitir isso aos alunos sem deixá-los desanimados ou indignados? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Elisa Guerra - Espero que eles sintam um toque de esperança. Não queríamos que o documento fosse alarmista, fatalista, mas que criasse consciência, ao mesmo tempo inspirando ações. É dizer que temos problemas, mas também soluções. Cidadania global tem a ver com ter o conhecimento, as habilidades e o fazer — aí vem a parte ativa, o ativismo. Já não basta saber, temos que fazer algo a respeito. BBC News Mundo - Como se projeta a escola do futuro? Guerra - Há um modelo de escola, de organização, uma arquitetura e uma gramática escolar que têm pelo menos 150 anos e estão defasados. Quando falamos da necessidade de uma transformação, não é uma metamorfose completa, mas vai além de uma reforma. Gosto de dizer aos professores que imaginem que chegamos às nossas escolas vazias e temos que reinventá-las. Já fizemos isso antes, porque o nosso modelo vem da Revolução Industrial, quando muitas famílias migraram para as cidades para trabalhar, e as escolas responderam às necessidades daquela sociedade. Teríamos que começar do zero, como se estivéssemos no pós-guerra, chegando às ruínas e nos perguntando: reconstruímos o prédio exatamente igual? Ou vamos reaproveitar o cimento mas fazer algo mais adaptado à nossa realidade? BBC News Mundo - Até hoje, os alunos estão sentados em uma sala de aula fechada, um atrás do outro, olhando para um quadro-negro. Como seria esse novo desenho? Guerra - Não existe um modelo perfeito e único para todos. O relatório fala em construir juntos nossos futuros, no plural, porque não há um único futuro, nem um único caminho. Teríamos que pensar sobre o que precisamos. Por exemplo, uma maior colaboração entre os professores. Isso não é possível se ficarmos presos em um cubo de concreto o dia todo e nos vermos apenas por alguns minutos na sala dos professores entre as aulas. De um modo geral, acho que precisamos que as paredes da escola sejam muito mais permeáveis — para sair mais à comunidade e deixar a comunidade entrar, e também para que haja maior flexibilidade dentro das escolas. BBC News Mundo - Você poderia dar um exemplo dessa flexibilidade? Guerra - Temos uma semana por ano onde as crianças de todas as turmas se misturam e escolhem fazer uma oficina. Um grupo cria um restaurante: elabora o menu, aprende a cozinhar, a precificar os pratos. Outros vão para a produção de um programa de televisão. Outros escolhem a medicina, aprendem primeiros socorros, visitam hospitais, conversam com médicos. Os alunos querem mais projetos como este. Mas nós professores às vezes esbarramos com obstáculos: essas inovações não são viáveis, não estão na agenda, não têm respaldo na ciência. Quando as primeiras vacinas de coronavírus foram desenvolvidas, elas receberam autorização emergencial para que fossem usadas até que os estudos fossem concluídos. Estamos em uma crise mundial de deficiências do aprendizado segundo o Banco Mundial, a Unesco e a Unicef. Se isto não é uma emergência educativa, eu não sei o que é. Em nenhum momento da história as escolas estiveram tão ameaçadas, sofridas e sob tanto retrocesso. Uma crise em cima da outra. Se temos ideias e queremos aplicá-las, não podemos dar uma autorização de emergência? BBC News Mundo - Durante a pandemia, a sala foi transformada em aula virtual. O relatório do qual você participou alerta para os riscos de a educação ter vínculos com empresas lucrativas, que usam nossos dados, e propõe um sistema público digital para ensino. Qual é sua opinião sobre isso? Guerra - Eu não discordo do uso de plataformas, que no nosso caso nos ajudaram muito. Temos que parar de vê-las com determinismo: se gostamos, está ótimo, se não, não vamos usá-las. Podemos pensar em maneiras de sermos inclusivos sem que haja violação dos nossos direitos. Também critica-se o solucionismo tecnológico, a ideia de que o digital vai eliminar todos os problemas. A tecnologia tem que estar a serviço da pedagogia, e não o contrário. BBC News Mundo - Como cativar as crianças atualmente? Guerra - Subestimamos a capacidade e o potencial cognitivo dos nossos filhos, embora tenhamos avançado na aplicação de descobertas da neurociência à sala de aula. As crianças têm um tremendo potencial linguístico que não foi traduzido em leitura. Nós as ensinamos a ler aos seis anos, porque nos convém melhor como sistema: elas podem sentar em uma sala, ficar quietas por mais tempo, ficar longe dos pais sem chorar e prestar atenção em grandes grupos sob os cuidados de um único professor. Mas as crianças podem aprender a ler mais cedo. Não da maneira que ensinamos aos seis anos, só que estamos tão acostumados com um padrão que continuamos a fazê-lo, mesmo que não seja mais o ideal. BBC News Mundo - Os deveres de casa são um tema controverso. Uma reclamação é sobre o tempo exigido: depois de algumas sete horas na escola, o que é mais ou menos equivalente a um dia de trabalho, as crianças ainda têm deveres em casa. Qual é sua visão sobre isso? Guerra - Se o objetivo é criar o hábito de estudo no período da tarde, isso não deve passar de uma hora. Muitas vezes essas tarefas não são usadas para fortalecer o conhecimento, mas para cobrir o que não foi alcançado em sala de aula, o que não é culpa do aluno nem do professor. Pode ser da organização escolar, da sobrecarga curricular. BBC News Mundo - E as penalidades? Guerra - Primeiro, vamos mudar o nome, talvez para "consequências". Vamos nos concentrar em reparar o dano. Em cada comunidade deve haver regras de convivência, mas também alguma flexibilidade para considerar as situações únicas de cada aluno. As consequências não podem ser fazer mais lição de casa, ler por mais tempo ou não ter recreio. Isso é contraproducente, porque estudar ou ler se torna um castigo, algo horrível que você só faz quando exigem de você. E como damos a oportunidade de enfrentar as consequências e reparar os danos? Quando alguém está em alta velocidade e um guarda de trânsito o para, uma multa é emitida e é preciso pagá-la. Fim da situação. O guarda não começa a esbravejar conosco, mas muitas vezes fazemos isso com as crianças. Se elas já estão emocionalmente abaladas e nós reagimos de forma exacerbada, estamos aumentando o problema. É preciso investigar o que está acontecendo com a criança e dar apoio. BBC News Mundo - Quais devem ser os direitos das crianças até 2050, nesse futuro que tentamos visualizar? Guerra - Todas, inclusive aquelas com necessidades educacionais especiais ou alguma condição de aprendizagem, todas as crianças carregam em si a semente da genialidade e possuem um enorme potencial. Seu primeiro direito é ter um ambiente ideal para que essa semente possa se desenvolver. Esse potencial é diferente para cada um, mas nossa responsabilidade enquanto educadores e pais é criar um ambiente que os alimente e que também permita, como adultos, nos desenvolver. Não podemos pensar na educação como um período da vida que termina quando você sai da escola com um diploma. É algo que segue para toda a vida. Outro direito das crianças é que tanto seus pais quanto seus professores continuem aprendendo, que fiquem melhores para orientá-las e apoiá-las. Há também o direito de acesso à escola, a tecnologias que favoreçam a aprendizagem, o direito de encontrar tanto em casa quanto na escola um ambiente livre de violência — um ambiente acolhedor.
2022-09-02
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62760501
sociedade
Maior produtor de arroz orgânico do Brasil, MST vive dificuldades para comercializar o grão
Durante sabatina no Jornal Nacional, o ex-presidente e atual candidato Luiz Inácio Lula da Silva (PT) comentou que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina. A informação foi mencionada pelo petista no telejornal para defender o movimento como um importante meio de produção rural no país. Nos últimos dias, a afirmação passou a ser posta em dúvida por muitas pessoas, principalmente defensores do presidente Jair Bolsonaro (PL). Durante um programa da Jovem Pan, por exemplo, uma das comentaristas duvidou que o MST seja o maior produtor do grão orgânico no país. O Irga, vinculado ao governo do Rio Grande do Sul, é considerado referência para esse levantamento porque o estado detém a maior produção geral de arroz do Brasil — correspondendo a, segundo o instituto, cerca de 70% de todo o grão produzido nacionalmente. Fim do Matérias recomendadas Mas o Irga ressalta que a produção de arroz orgânico no Brasil é extremamente baixa quando comparada ao tipo mais comum nos pratos dos brasileiros — que é produzido com insumos como aditivos químicos. Para a próxima safra no Rio Grande do Sul, de janeiro a abril de 2023, a estimativa é de colheita de 865 mil hectares de arroz de todos os tipos. Desse total, somente 5 mil hectares correspondem ao grão orgânico. Desse tamanho destinado ao orgânico, 4 mil hectares pertencem ao MST, em áreas de assentamentos da reforma agrária. O restante, pouco mais de mil hectares, pertence a outros produtores da região, que não são ligados ao movimento. No atual período, o MST enfrenta dificuldades relacionadas ao escoamento da produção do grão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O discurso da agroecologia — antagônico ao agronegócio por não envolver insumos como adubo químico e agrotóxicos — passou a ser adotado pelo MST por volta do início dos anos 2000, segundo estudos acadêmicos. Foi justamente nesse período que famílias assentadas do MST começaram a plantar arroz orgânico. O Irga estima que o movimento passou a liderar a produção desse tipo de grão no país por volta de 2010 — mas não há dados concretos que apontem exatamente quando isso ocorreu. "Eram áreas da reforma agrária que não tinham nenhuma função social anteriormente e hoje estão nas mãos dos assentados, fruto da luta do MST", diz o dirigente nacional do MST do Rio Grande do Sul, Ildo Pereira. "Havia a necessidade de produzir um produto de qualidade para o consumidor, sem o uso de produtos químicos. Não é só um projeto do MST, mas também um projeto de sociedade", afirma Pereira. Segundo o Irga, as áreas de assentamentos do MST destinadas ao plantio de arroz orgânico foram se expandindo até por volta de 2017. "Não temos segmentação por instituição como do MST. Mas podemos dizer, com certeza, que as maiores áreas que a gente conhece (de plantio de arroz orgânico) estão dentro de assentamentos do MST. São aproximadamente 4 mil hectares. Não há sequer registros superiores a isso na América Latina", destaca o técnico do Irga Edivane Portela, coordenador do programa estadual de produção de arroz de base ecológica. "Fora do MST, essas áreas de produção (de arroz orgânico) são bem menores, cerca de 600 a 700 hectares por produtores", acrescenta Portela. Sobre a pouca quantidade produzida no Brasil, em comparação ao arroz com cultivo considerado tradicional, Portela argumenta que isso ocorre porque há pouco investimento em desenvolvimento de iniciativas para a produção desses grãos, assim como outros produtos orgânicos. "Outro ponto que me parece importante se refere ao aspecto cultural, a geração atual de agricultores ainda olha com uma certa insegurança para este sistema já que também o apoio técnico é deficiente", afirma o especialista. Mas ele diz que há uma demanda crescente pelo consumidor por produtos orgânicos e isso tem feito com que cada vez mais sejam desenvolvidas pesquisas sobre o tema. Ele avalia que essa produção deve crescer cada vez mais no país. "Acredito que o caminho se dará por esse lado", diz. Entidades brasileiras relacionadas à produção rural afirmam não ter dados específicos sobre a produção de arroz orgânico relacionada ao MST. A reportagem procurou instituições como a Confederação da Agricultura e da Pecuária do Brasil (CNA) e a Associação Brasileira da Indústria do Arroz (Abiarroz), que afirmaram não ter informações sobre o tema. Instituições relacionadas ao governo federal, como a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) dizem que não possuem levantamentos sobre o tema. Já o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) afirmou à BBC News Brasil que há 1,1 mil produtores de arroz registrados no Cadastro Nacional de Produtores Orgânicos (CNPO). No entanto, nesse sistema somente é possível acessar o nome do produtor e a sua localização, não há como detalhar quais estão em áreas de assentamento do MST. Em grande escala, os assentamentos do MST produzem arroz agulhinha longo fino, nas versões polido, integral e parboilizado. Em menor escala, também produzem arroz cateto, vermelho, arbóreo e negro. Nos últimos anos, muitos produtores ficaram desestimulados diante das dificuldades para comercializar os grãos. Grande parte desse arroz costumava ser vendida por meio de iniciativas do poder público, como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), da Conab. O MST estima que nos últimos anos houve redução de até 40% nas compras de arroz orgânico por parte de entes públicos para alimentação escolar, área que prevê que no mínimo 30% das compras sejam feitas por meio da agricultura familiar - na qual a produção do movimento se enquadra. Um fator que dificultou a venda nos últimos anos foi o auge da pandemia de covid-19, que manteve as escolas fechadas. Mas outro ponto, segundo o movimento, seria uma falta de incentivo do governo Bolsonaro à agricultura familiar. "O governo federal é um grande comprador e, por meio da Conab, sempre auxiliou levando alimento a quem mais necessita. Hoje a Conab não tem efetuado compras da agricultura familiar (como antes)", afirma Guilherme Vivian, integrante do setor de produção do MST e um dos responsáveis pela comercialização da Cootap (Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região Porto Alegre). "As prefeituras e governos estaduais também não têm efetuado compras no período recente", acrescenta. Em nota à BBC News Brasil, a Conab argumenta que nos últimos quatro anos adquiriu cerca de 36,105 mil toneladas de arroz para a formação de cestas de alimentos que foram distribuídas a povos e comunidades tradicionais em todo o país. "Essas aquisições foram realizadas por meio de leilões públicos e aberta a todos os interessados. Tanto os editais com as regras para participação nos leilões como os preços de compra e os resultados com os arrematantes estão disponíveis no site da Companhia", diz a nota. A Conab ainda afirma que por meio do Programa Alimenta Brasil, um dos seus principais projetos, busca promover o acesso à alimentação e incentivar a agricultura familiar. "Para o alcance desses objetivos, o programa compra alimentos produzidos pela agricultura familiar, com dispensa de licitação, e os destina às pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional atendidas pela rede socioassistencial, pelos equipamentos públicos de segurança alimentar e nutricional e pela rede pública e filantrópica de ensino", diz comunicado da Conab. "O programa é executado pela Conab e por estados e municípios sob a gestão do Ministério da Cidadania", acrescenta a nota, que destaca que o programa "prevê a aquisição de produtos da agricultura familiar, e não apenas o arroz". Ainda na nota, a Conab afirma que não possui nenhuma ação de compra anual de arroz em nenhum lugar do país. Além dos programas do poder público, o MST também comercializa o arroz orgânico para mercados ou vende diretamente aos consumidores de diferentes regiões do país. O movimento também exporta o produto, com o apoio de empresas que levam o grão a outros países. "Mas isso diminuiu bastante no último período, principalmente pelo custo, que mais que quadruplicou, por causa do transporte. Não há contêiner e quando tem é um custo absurdo, eleva muito o valor e não compensa. Neste ano só exportamos para a Itália e a Alemanha, mas nos anos anteriores era para muito mais países", diz Vivian. Em meio às dificuldades para a comercialização, surgiu outro problema no período recente: a intensa seca que atinge o Rio Grande do Sul desde o fim do ano passado. Esse fator atrapalha a produtividade do grão, segundo o MST. O atual cenário de dificuldades e incertezas tem afetado, principalmente, as famílias assentadas que são responsáveis pela produção do grão e que têm a comercialização dele como parte da renda. "É uma atividade lucrativa, mas essas famílias não trabalham só com o arroz", minimiza Vivian. Essas famílias também possuem outros cultivos para complementar a renda, como o de hortaliças, frutas ou gado de corte. "São pessoas que lá atrás se organizaram em grupos, formaram acampamentos e lutaram por um pedaço de chão para produzir e viver dignamente", afirma Vivian. Apesar dos problemas no atual cenário, o MST estima que na safra de 2021/2022 devem ser colhidas mais de 15 mil toneladas de arroz orgânico. É um volume maior do que o da safra anterior, período considerado extremamente difícil, quando foram colhidas 12 mil toneladas. E para essas famílias, a comercialização de todo esse arroz orgânico da safra é um grande desafio pela frente.
2022-09-01
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62746336
sociedade
Sexo de dez minutos com agenda marcada: a recomendação de escritora feminista a mulheres ocupadas
Nas páginas de seu último livro, More than a Woman (Mais que uma mulher, em tradução livre; sem edição brasileira), a escritora Caitlin Moran, agora na casa dos 40 anos, se encontra com seu eu futuro, uma idosa que a alerta para o que está por vir: "Eles vão te pedir para sustentar o tecido da sociedade. E de graça. É isso que significa ser uma mulher madura". E sugere que, se ela conseguiu se tornar uma mulher com esforço ao longo dos últimos anos, no futuro breve ela terá que ser mais do que isso. "Mais que uma mulher?", ela responde, desconsolada. "Eu tenho que me tornar mais do que uma mulher? Em quê? Em duas mulheres? Bem, olhe, pode ser útil. Porque de agora em diante as coisas ficam feias." Após essa advertência, Moran se dedica a relatar com ironia, lucidez e autoconfiança as diversas realidades das mulheres mais velhas, suas intermináveis ​​listas de tarefas pendentes, suas batalhas, seus cansaços e suas belezas. Em entrevista à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC), ela abordou a realidade das mulheres maduras — que diante de tantas obrigações têm pouco tempo até mesmo para fazer sexo. Moran tem na sua agenda um compromisso semanal, sempre às sextas-feiras às 9h: fazer sexo com o marido. Fim do Matérias recomendadas "Quando você é mais velha, o sexo espontâneo é mais difícil porque está muito ocupada, então você precisa colocá-lo na programação", diz Moran. "Não subestime a clássica sessão de dez minutos de sexo. É um clássico por uma razão." Dez anos antes, ela havia revolucionado o mercado editorial com o best-seller Como Ser Mulher, no qual relatava sua transição da adolescência para a vida adulta e proclamava que "feminismo é ser tão livre quanto os homens" e que todas as mulheres estão convidadas a se tornarem feministas "por mais loucas, estúpidas, ingênuas, malvestidas, gordas, diminuídas, preguiçosas e vaidosas que sejam". Ela escreveu esse livro poucos anos antes de suas filhas virarem adolescentes. Existia um pavor sobre o mundo em que elas cresceriam e da maneira hostil com que as mulheres eram tratadas — sem humor, sem gentileza: "Você mesma tem que se arrumar, se depilar, comprar uma bolsa de grife e fazer um sexo oral perfeito". Como Ser Mulher foi um fenômeno social e editorial. Caitlin Moran havia decidido que falaria de uma nova maneira e que o livro faria tanto sucesso que mudaria o mundo. A BBC News Mundo conversou com a escritora, que participa do Hay Festival Querétaro, evento que acontece entre 1° e 4 de setembro no México. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC: Como Ser Mulher não mudou o mundo no final. É por isso que você teve que escrever More than a Woman? Caitlin Moran: Mais ou menos isso. Quando minhas filhas tinham 13 anos, vivíamos uma utopia feminista, mas obviamente isso não aconteceu, então tive que escrever More than a Woman dez anos depois. Mais irmãs, inspiradoras, lindas, divertidas. Mas também notei que era uma mulher mais jovem, solteira e festeira que sai, faz sexo, bebe e descobre quem ela é. E minha geração não falava nada sobre envelhecer, quando você não pode mais ficar só na farra, quando existem pessoas que você tem que cuidar. Vi que há batalhas que não estão sendo vencidas, queria abordá-las e também celebrar ser uma mulher mais velha, porque, sem modelos de mulheres mais velhas, continuaremos com o mesmo problema: quando você passar a ter uma certa idade somos vistas como inferiores e descartáveis. Há muito a ser dito sobre se tornar mais sábia, saber exatamente quem você é. Se nossas mães e avós não forem heroínas, com voz no mundo, o feminismo estará preso apenas às jovens que lutam as batalhas. Vamos começar entusiasmando as meninas sobre a ideia de envelhecer e vamos fazer isso juntas, celebrar a idade que cada uma tem e mudar esse mundo ferrado. BBC: Por que você diz que as mulheres passam a vida como num pêndulo: ou não somos suficientes ou somos demais? Moran: A insegurança das mulheres passa pela ideia de que não somos inteligentes o suficiente. Sou convidada para vários programas na BBC e eles me pedem para falar sobre algo e eu digo, "bem, não sou especialista nesse assunto, então não vou". Pesquisas dizem que, quando os homens são chamados, eles falam: "Não sou de fato um especialista, mas eu vou". Nós só fazemos as coisas apenas se somos superqualificadas. E, no outro extremo, parece que ocupamos muito espaço, falando demais, exigindo demais. Queremos mais para nossas vidas e isso está deixando os outros com raiva, então sentimos que devemos nos tornar menores, mais humildes, mais educadas e não pedir tanto. Esses parecem ser os dois extremos entre os quais as mulheres se movem. E o centro é saber com calma quem você é. É a nossa aspiração. BBC: Em Como Ser Mulher você diz que uma das vantagens que temos é curtir a sexualidade. Porém, você alerta que a pornografia está passando uma ideia errada para os jovens sobre sexo... Moran: Em nosso desenvolvimento, desde o final da infância até a adolescência, há uma janela de 5 a 10 anos na qual adquirimos nossas fantasias e preferências sexuais. Se 94% dos jovens veem a pornografia de hoje, essa se torna sua ideia de sexo. É tão limitado e tão focado no prazer masculino que você quase nunca vê um orgasmo feminino. Não estamos falando de consentimento, pois sexo é algo que acontece com a mulher, algo que o homem fará com ela. É muito destrutivo, não é divertido, não é alegre, não é sobre duas pessoas fazendo algo juntas. Acho que essa é outra razão pela qual tantas meninas têm medo de se tornarem adultas, porque a sexualidade é uma grande parte disso. E se o sexo que as jovens assistem é pornografia, violência, ser esbofeteado, mordido e estrangulado, por que elas iriam querer fazer sexo e por que elas iriam querer crescer? Se é o que você gosta, tudo bem, mas me parece que a variedade que vemos não é suficiente, não é o que eu quero para minhas filhas. Isso não é sexo, é pornografia e precisamos ter essa conversa. BBC: Você também diz que a pornografia entrou dentro da nossa calcinha e impôs vaginas totalmente depiladas. Por que você defende os pelos pubianos e se define como uma "retrovaginal"? Moran: Acho suspeito que quase todas as jovens estejam tirando os pelos pubianos, coisa que só é vista nos vídeos pornôs, para que a câmera pudesse mostrar o que está acontecendo. Eu sou uma mulher da classe trabalhadora e a questão do dinheiro me deixa com raiva. As mulheres não deveriam pagar para ter uma vagina que você tem que depilar todos os meses. Vira um trabalho, um gasto e uma imposição. Há um programa no Reino Unido chamado Naked Attraction (Atração Nua) onde as pessoas têm encontros nuas. Quando os homens veem vaginas sem pelos, gostam dos pequenos lábios. Essa é a vagina considerada correta, limpa. Se uma mulher tem lábios mais longos ou lábios internos salientes, eles não vão sair com ela. A natureza nos deu pelos para cobrir nossas vaginas. Não quero que as meninas façam cirurgia para ter a vagina perfeita, é muito dinheiro e muita dor. Não gosto de nada que custe dinheiro às mulheres ou cause dor às mulheres. BBC: Unhas, cremes, depilação, tintura de cabelo, botox, tudo custa dinheiro... Moran: E eu odeio isso. Uma das melhores coisas que aconteceu é a mídia social, apesar da parte negativa, de ameaças e abusos. As contas do Instagram com mais seguidores são as de moças de todas as cores e tamanhos, tirando fotos de positividade do corpo, exibindo suas estrias e partes flácidas, suas axilas peludas e dizendo "ei, eu sou linda!". Dez anos atrás, havia a ideia de que o governo tinha que interferir nas redes sociais porque havia muitas meninas loiras, brancas e magras que estavam levando à anorexia outras jovens, que víamos como indefesas. Mas as mulheres resolvem seus próprios problemas se a elas é permitido que se comuniquem umas com as outras. BBC: É o que você tenta fazer quando conta que uma de suas filhas se sentia feia e depois enfrentou um distúrbio alimentar. Você acha que o problema estava relacionado justamente à "obrigação de ser bonita"? Moran: Uma das coisas que você tristemente aprende como mãe é que não importa o quão feminista ou positiva você seja, e o quanto você ame suas filhas, você é apenas uma voz e elas vivem no mundo. Você não pode protegê-las de uma idealização existente; neste caso, ser bonita e magra. Quando há um distúrbio alimentar, automutilação ou overdose de pílulas, as pessoas expõem fisicamente o quanto estão infelizes, porque não podem mais falar sobre isso. E dão o próximo passo, que é mostrar com suas cicatrizes a ansiedade e depressão. Eu não tinha percebido que minha fraqueza como mãe era ser brilhante em muitas coisas, mas sem tocar na tristeza. Eu tinha medo dela, porque meus pais nunca falavam dela, você tinha que se animar e continuar, sempre. Isso funcionou para mim, mas não para minha filha. Então eu tive que aprender a dizer a ela que não há problema em ficar triste, que podemos conversar sobre isso. E a resposta foi milhares de pais dizendo "obrigado por me mostrar como posso falar sobre isso". BBC: Você também muda o foco da sua filha sobre a beleza e diz para ela: "Não precisamos alcançar a beleza, precisamos admirar a beleza". Como você chegou a essa ideia? Moran: Quando me ocorreu aquela frase sobre a beleza estar nos olhos de quem vê e você é quem está olhando, fiquei tão feliz que fumei um cigarro e tirei o resto do dia de folga porque era a solução perfeita. Se você ainda pensa em si mesma como algo a ser observado para as pessoas determinarem se você é boa ou não, provavelmente se sentirá mal pelo resto da vida, porque não pode controlar isso. Você precisa encontrar uma maneira de estar no controle e poder dizer: o que é bonito? O que estou admirando? É por isso que as paredes dos quartos dos adolescentes, principalmente os das meninas, são tão interessantes. Coloque tudo o que você acha bonito nessas paredes, seja o responsável, faça seu próprio museu. O que os outros pensam você não pode mudar, é isso que você pensa, você é o diretor, não a estrela. BBC: Voltando às mulheres maduras, por que você diz a elas para expandir o corpo: "Levante-se! Não se desculpe! Relaxe a barriga", e as incentiva a usar todo o espaço que merecem? Moran: Nós literalmente precisamos estar orgulhosas. À medida que envelhecem, as mulheres se curvam, pedem desculpas e dizem "oh, eu sou tão chata". Então, quando você fala com elas e descobre o que elas fazem, elas são rainhas! Mas o mundo não vem para as mulheres de meia-idade e diz: vou fazer você feliz e se sentir bem consigo mesma. Se você começou a pensar que você é chata, que você é feia ou gorda, que seu corpo está errado, eu não vou deixar você pensar isso. Nós vamos nos apoiar, porque ninguém mais vai. Temos que concordar em ajudar umas às outras na comunidade feminina e apenas dizer uma à outra que você é incrível! BBC: Você também fala sobre a importância do sexo conjugal, ou sexo de manutenção, que no seu caso é toda sexta-feira às 9h. Por que tem que estar na agenda? Moran: Porque é uma das poucas coisas que você pode fazer que não custa dinheiro, não engorda e realmente relaxa; é uma coisa incrível e deliciosa que os adultos podem fazer. E quando você perde isso, está perdendo uma maneira muito eficaz de se sentir bem consigo mesma e de amar seu parceiro. Mas temos que agendar, porque estamos acostumados com o sexo jovem acontecendo espontaneamente. Quando você é mais velha, o sexo espontâneo é mais difícil porque está muito ocupada, então você precisa colocá-lo na programação. BBC: E depois de muita experimentação, por que você elogia o sexo clássico nessa fase? Moran: Se você quiser experimentar, é perfeito. Mas acho que muitas mulheres pensam "ah, não vou fazer sexo com meu marido porque vou levar duas horas e teremos que balançar nos lustres e usar roupas incríveis e criar um diálogo de filme". Mas não, não subestime a clássica sessão de dez minutos de sexo. É um clássico por uma razão. Se é o tempo que você tem, isso vai resolver. BBC: Por que seu próximo livro será sobre homens? Como eles podem ser convidados ao feminismo? Moran: As mulheres sabem o que o feminismo tem a oferecer. Se você tiver um problema em algum lugar, haverá uma feminista que lidará com isso e terá uma solução para você. Ao longo dos anos percebi que os homens não têm nada parecido. Não há rede que eles possam acessar. Os únicos que dão conselhos aos mais jovens costumam ser ativistas de extrema-direita, que dizem: você precisa ser mais masculino, as mulheres fazem você se sentir impotente, você tem que se afirmar e exercer poder sobre elas. Em vez de dizer a eles: você será mais poderoso se conversar melhor, se estiver confortável consigo mesmo, se obtiver as qualificações educacionais de que precisa, se conseguir o emprego que deseja. Muitos rapazes me dizem que é mais fácil ser uma moça do que um rapaz. E quando você pergunta por que, tudo se resume ao fato de que hoje as mulheres são retratadas como incríveis, como o futuro. Está ficando melhor ser mulher, porque as mulheres melhoraram, estão comemorando, se ajudam. O livro que quero escrever explica aos homens que eles precisam aprender a conversar uns com os outros sobre seus problemas. Se há coisas que você inveja nas mulheres, como compartilhar suas emoções, ser apegado aos seus filhos, vestir o que você quer, ser sexy e se celebrar, então faça isso, as mulheres não podem fazer isso por você. A primeira coisa que os homens devem ter em sua lista de tarefas é serem mais parecidos com as mulheres. Se você tem inveja das mulheres modernas, seja mais como elas. É o que fizemos há 150 anos. Olhamos para os homens e queremos ser como eles: queremos votar, obter educação, aproveitar o sexo e ser líderes mundiais. Nós roubamos todas essas coisas dos homens, venha roubar algumas coisas das mulheres, vamos lá!
2022-09-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62732985
sociedade
'Temos uma escolha': a jovem que disputará a final do Miss Inglaterra sem maquiagem
Em quase cem anos de história, o concurso de beleza Miss Inglaterra terá pela primeira vez em sua final uma competidora que se apresentará sem maquiagem: a estudante Melisa Raouf, de 20 anos. Ela quer usar a oportunidade para mostrar às garotas que elas não precisam usar maquiagem para se sentirem bonitas. Raouf, que vive no sul de Londres, venceu na semana passada uma recém-criada rodada do concurso em que as participantes não devem usar maquiagem. Ela garantiu seu lugar entre as 40 competidoras que disputarão a final em 17 de outubro e decidiu manter o rosto lavado também na etapa decisiva. Caso ela vença a final, seguirá para a competição de Miss Mundo e diz que pretende não usar maquiagem. "Eu queria mostrar que temos uma escolha", disse Raouf à BBC. "Não temos que usar maquiagem se não quisermos." Raouf está no segundo ano da graduação em política no King's College London e quer entrar para a diplomacia depois de se formar. Fim do Matérias recomendadas Ela diz que as mulheres que competem ao seu lado têm uma gama mais variada de interesses e origens do que é frequentemente retratado. "Cada uma tem sua própria história", defende. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Como muitas de suas colegas, Raouf começou a usar maquiagem na adolescência. Ela conta que era "significativamente insegura" e descobriu que se comparar ao "padrão irreal de beleza" mostrado nas redes sociais tinha um impacto negativo em sua saúde mental. "Eu nunca me senti confortável com quem eu era, nunca me senti confortável na minha pele", diz a jovem. Mas à medida que crescia, Raouf ganhou confiança e acredita que ter entrado em concursos de beleza — embora estes sejam uma experiência "muito assustadora" por vezes — aumentou essa confiança. Desde que participou de uma etapa do Miss Inglaterra sem maquiagem na semana passada, ela conta que foi inundada por mensagens de apoio nas redes sociais. "Eu ouvi de garotas de todas as idades e de mulheres na faixa dos 40 e 50 anos que elas passaram a se sentir mais confortáveis em sua própria pele", relata. Raouf não se opõe totalmente a usar maquiagem e continuará a fazê-lo em outras ocasiões. Na etapa do concurso em que as candidatas precisaram ficar com o rosto sem maquiagem, ela pôde usar poucos produtos permitidos, como tônico facial, hidratante e protetor labial. "Eu aprecio a maquiagem como uma forma de arte e criatividade", diz ela. "Não há problema em usar maquiagem para melhorar sua aparência ou para ocasiões especiais, mas isso não deve nos definir. É sobre ter escolha. Eu queria mostrar que não precisamos usar maquiagem se não quisermos." Raouf quer que as meninas deem mais valor à sua "beleza interior" em vez de se compararem com as outras. "Quando você usa uma grande quantidade de maquiagem, você está apenas se escondendo. Tire essas camadas e você verá quem você realmente é", sugere. O Miss Inglaterra, de propriedade da competição Miss Mundo, é um dos quatro concursos de beleza de cada uma das nações do Reino Unido que envia uma concorrente para o evento internacional a cada ano. O Miss Mundo foi criado e organizado pela primeira vez no Reino Unido em 1951 pelo apresentador de televisão Eric Morley. Sua viúva, Julia Morley, tornou-se diretora da organização após a morte dele em 2000. A franquia há tempos enfrenta críticas de que objetifica as mulheres. Em 1970, integrantes do Movimento de Libertação das Mulheres usaram farinha para atrapalhar a final do Miss Mundo no Royal Albert Hall de Londres. Também houve manifestações de vários grupos, incluindo a London Feminist Network e UK Feminista, quando a final da competição foi realizada na capital britânica em 2011 e 2014. Algumas das regras para entrar na competição continuam as mesmas desde 1951. As candidatas a Miss Inglaterra não podem ter mais de 27 anos quando entram no concurso e não podem ser casadas ou ter filhos. Em 2018, Veronika Didusenko, que foi coroada Miss Ucrânia, disse que as regras precisavam mudar depois que o título foi retirado dela por ser mãe. Julia Morley disse mais tarde que era difícil mudar as regras, já que as competições locais são realizadas em muitos países diferentes. Apesar das críticas, Raouf acredita que esses eventos têm uma influência "positiva e inspiradora". "As competidoras usam a plataforma (do evento) para fazer algo de bom no mundo."
2022-08-31
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62733645
sociedade
Vídeo, As histórias de recomeço de mulheres que sofreram amputaçãoDuration, 6,27
Amanda Rebouças dos Santos tem 29 anos, é enfermeira e faz residência na área de oncologia. Jéssica Araújo Reolon, de 26 anos, é fisioterapeuta e adora esportes. A dona de casa Adriana de Souza Carvalho, de 57 anos, foi bailarina, pinta telas, ama dirigir e atua em projetos sociais. Milena Nenemann, de 22 anos, é recém-formada em nutrição e viaja bastante, gosta de ir à balada e praia. Em comum, elas tiveram de recomeçar suas vidas após sofrerem, seja por causa de acidentes ou problemas de saúde, uma ou mais amputações em membros. Todas celebram a independência, a conquista de projetos de vida e rejeitam os esteriótipos muitas vezes atribuídos, erroneamente, a pessoas com deficiência. Assista e confira seus relatos. Reportagem em texto: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62430496
2022-08-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62724057
sociedade
A professora que perdeu emprego por postar fotos de biquíni no Instagram
Uma universidade privada na cidade de Calcutá, no leste da Índia, envolveu-se em uma polêmica nos últimos meses. Uma ex-professora assistente da Universidade de St. Xavier disse à BBC que foi obrigada a deixar seu emprego por ter compartilhado fotos suas de biquíni no Instagram. A universidade nega que esse tenha sido o motivo da sua demissão. A mulher, que pediu para não ser identificada, acusou funcionários da universidade de "assédio sexual" e disse que "foi intimidada e submetida à vigilância moral". Ela também apresentou uma queixa na polícia e enviou uma notificação legal à instituição, que respondeu acusando-a de difamação e exigindo 990 milhões de rúpias (cerca de R$ 12 milhões) em indenização. A professora assistente conta que ingressou no corpo docente em 9 de agosto de 2021 para lecionar inglês em cursos de graduação e pós-graduação. Fim do Matérias recomendadas Dois meses depois, ela foi chamada ao escritório do reitor para uma reunião. Ela foi "conduzida a uma sala de interrogatório", onde foi interrogada por um comitê composto pelo vice-reitor Felix Raj, um secretário e cinco mulheres. Ela foi informada de que havia uma queixa contra ela feita por um pai de um aluno homem do primeiro ano de graduação. "O reitor disse que esse pai encontrou seu filho olhando minhas fotos no Instagram, onde eu estava apenas de calcinha. Ele disse que as fotos eram sexualmente explícitas e pediu à universidade que preservasse seu filho de tal vulgaridade." Os membros do conselho circularam um papel com "cinco ou seis fotos" e pediram que ela confirmasse que eram mesmo dela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As fotos, nas quais ela na verdade vestia um biquíni, eram selfies tiradas em seu quarto, diz ela. Ela as compartilhou como "stories" do Instagram, o que significa que eles desapareceram depois de 24 horas. O conselho da universidade não aceitou sua explicação: as fotos foram publicadas em 13 de junho de 2021, quase dois meses antes de ela ingressar na universidade e antes de aceitar pedidos de seus alunos para seguir sua conta, que é privada. "Fiquei chocada. Quando vi as fotos, tive um ataque de pânico. Me pareceu surreal que minhas fotos pessoais fossem compartilhadas sem meu consentimento", disse a professora. "Eu não aguentava olhar minhas próprias fotos e a forma como elas me foram apresentadas. A conversa em torno delas me fez pensar que eram vulgares. Percebi que estava sofrendo gaslightning (termo em inglês para um tipo de assédio emocional), comecei a me sentir sabotada." "Eles me perguntaram por que eu fiz isso. Se, como mulher, eu não achava que aquilo era questionável. Se, como professora, eu não achava que era meu dever para com a sociedade me comportar adequadamente." "Eles me disseram que eu estava trazendo desprestígio e vergonha para a universidade. Eles me perguntaram se meus pais estavam no Instagram e se eles tinham visto aquelas fotos. Eu senti náuseas e fiquei em choque." Ela foi orientada a retornar no dia seguinte com um relatório sobre o assunto. A professora voltou ao gabinete do reitor no dia seguinte e apresentou um pedido de desculpas "escrito sob conselho de alguns docentes que incluíam a diretora da unidade de gênero", uma ex-colega e professora assistente que também integrara o comitê. "Se minhas imagens foram interpretadas de uma forma que poderia manchar a reputação da universidade, então sinto muito", escreveu ela. Foi "uma experiência muito desagradável", disse a professora. Ela esperava que o assunto terminasse ali, mas o reitor disse que o conselho "recomendara de forma unânime sua demissão". "Ele disse que as fotos já haviam viralizado, que a maioria dos alunos as tinha visto, que não me levariam a sério e que os pais iriam reclamar. E que seria melhor se eu me demitisse voluntariamente." Caso contrário, o reitor disse que ela "iria para a prisão, porque o pai (do aluno que viu a foto) queria registrar uma queixa na polícia". "Me senti encurralada e pedi demissão", diz ela. "Mas também fiquei com muita raiva e procurei orientação jurídica. Eles fizeram download das minhas fotos, tiraram prints de tela e compartilharam sem meu consentimento. Meu advogado sugeriu que eu registrasse uma queixa de assédio sexual na polícia de crimes cibernéticos", disse ela. O padre Felix Raj, vice-reitor da universidade, se recusou a comentar se o comitê havia recomendado sua demissão, mas negou todas as acusações contra ele e a universidade. "Somos uma instituição sagrada de aprendizado e conhecimento. Como decano e diretor da universidade, eu disse a ela que ela não deveria ter exposto essas fotos." O vice-reitor diz que não a forçou a se demitir e que ela saiu por vontade própria. "Ela entregou uma carta de desculpas em 8 de outubro de 2021. Nós a aceitamos. Achei um gesto bom. Mas então ela pediu demissão em 25 de outubro." Ela acrescenta que "eles não guardam rancor dela" e que na universidade eles eram "muito bons com ela". Quando perguntado sobre a alegação da professora de que suas fotos não estavam disponíveis em sua conta do Instagram depois que ela ingressou na universidade e que um integrante do corpo docente a estaria sabotando, o padre Feliz Raj disse não ser "perito em tecnologia". A ação contra a professora foi criticada por muitos alunos e ex-alunos por ser "retrógada". Uma petição no site change.org, iniciada pelo ex-aluno universitário Gaurav Banerjee e dirigida ao Ministro da Educação do Estado de Bengala Ocidental, recebeu mais de 25 mil assinaturas. Banerjee disse à BBC que quer que a universidade peça desculpas à professora e peça ao governo que tome medidas disciplinares contra o comitê por seu comportamento prepotente. "Estou feliz que, como eu, muitas pessoas estão horrorizadas que a universidade possa fazer algo assim", disse ele. Recentemente, dezenas de estudantes universitários realizaram um protesto silencioso. "Ficamos sabendo sobre essa forma selvagem de vigilância moral a que uma de nossas professoras foi submetida", disse um manifestante. "É completamente inaceitável. Por que alguém deveria se importar com o que estou fazendo em meu espaço privado? Nosso espaço pessoal deve ser inviolável", disse. "É assustador que os membros do comitê, que incluiu cinco mulheres, não tenham pensado que isso era vigilância moral." A professora disse estar "comovida com todo o apoio e agradecida". "Depois de meses me sentindo mal, sinto que as pessoas veem como tudo isso foi ridículo." O direito à privacidade e à autoexpressão, ela argumenta, é inviolável e concedido pela Constituição indiana e essa "vigilância" se estendeu além do local de trabalho. "Minha firme convicção é que não fiz nada de errado. Posso não vencer esse caso, mas para mim é uma luta importante", disse ela.
2022-08-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62713275
sociedade
Por que decidi parar de falar por 17 anos
O americano John Francis tomou uma decisão que mudou sua vida quando era um jovem hippie: parar de falar. Ele ficou em silêncio por 17 anos até perceber que tinha algo que realmente precisava dizer. Tudo começou com um desastre ambiental. Uma colisão entre dois petroleiros em 1971 que contaminou a Baía de San Francisco, na Califórnia (EUA), com mais de meio milhão de galões de petróleo. "Fiquei sabendo e quis ver, fui então da minha pequena cidade de Inverness para San Francisco. Vi pessoas na praia em pequenos grupos limpando. Elas entravam na água e saíam com aves marinhas — pelicanos , gaivotas e biguás — cobertos de óleo." Aquela cena das pessoas tentando salvar as aves o impactou tanto que ele sentiu que precisava fazer alguma coisa. "Pensei: 'Não quero mais dirigir automóveis'. Isso foi na época dos hippies, e eu certamente era meio hippie, e decidi que era isso que ia fazer." Fim do Matérias recomendadas Vale lembrar que isso aconteceu na década de 1970, na Califórnia. Todo mundo ia dirigindo para todo canto, então abrir mão por completo dos veículos motorizados foi um passo ousado. John se viu caminhando sozinho. "Achei que todo mundo caminharia comigo, porque o derramamento de óleo impactou as pessoas com tanta força que elas diziam coisas como 'vou parar de andar de carro'. Por isso, não era estranho eu dizer isso." "No entanto, quando eu cumpri (o que dizia), me falaram: 'Para que você está fazendo isso? É loucura! Nada vai mudar.'" "Mas, como minha mãe dizia, sou teimoso e continuei andando." "Enquanto estava fazendo isso, algo começou a acontecer. Comecei a gostar. Comecei a gostar de viver onde vivia, e de não ter que pegar meu carro e ir para a cidade ou fazer compras nas lojas... Me tornei parte do lugar onde vivia." Aos poucos, John percebeu que, em vez do seu mundo encolher por se tornar tão local, ele estava se expandindo. "Não é incrível? Como eu me deslocava tão rápido antes, tinha muito pouco tempo para me dar conta do que estava ao meu redor; sair do carro foi uma oportunidade para eu experimentar meu entorno em um ritmo humano." Mas sua decisão causou polêmica. "As pessoas discutiam comigo sobre se um indivíduo poderia fazer a diferença." Os motoristas o criticavam por fazê-los se sentir mal ou por querer que se sentissem mal, e John se defendia... até se cansar do som de sua própria voz. Na véspera de seu aniversário de 27 anos, John estava lendo O Hobbit, de J. R. R. Tolkien, e teve uma ideia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Aqueles que leram sabem que quando os hobbits fazem aniversário, eles não esperam receber presentes, eles dão (presentes)." Como falava pelos cotovelos, ele decidiu qual poderia ser seu presente para os outros: "Vou parar de falar nesse dia". "Me levantei então naquela manhã e fiquei em silêncio." Mas com tantas trocas em um dia normal... como será que ele resistiu a falar? "Foi muito interessante, porque as pessoas tinham muito a dizer e, para sua surpresa e deleite, eu só escutava." "Para mim, foi revelador porque ouvi o que as pessoas tinham a dizer, talvez pela primeira vez." "Até este dia, o que eu costumava fazer quando começavam a falar comigo, era pensar no que eu ia responder, em como ia dizer que estavam equivocados e eu tinha razão." "Durante esse voto de silêncio de 24 horas, percebi que não escutava ninguém e que, agora que estava escutando, poderia aprender alguma coisa." "Pensei: 'Vou ficar calado outro dia', que se transformou em outro dia e depois em uma semana." Mas o que será que seus amigos diziam: o encorajavam ou dissuadiam? "Minha namorada ficou muito feliz no começo, mas depois de uma semana mais ou menos ela queria saber quando eu ia parar. E muita gente achava que eu era um pouco louco... eu mesmo me perguntava se não era." E por que então não voltou a falar? "Porque me senti bem, porque percebi que estava aprendendo. E quando estava andando na natureza, sentia que era realmente um lugar que precisava explorar. Era algo que precisava fazer." "Nas primeiras semanas, havia muitas conversas na minha mente sobre o que eu deveria dizer e quando começaria a falar, até que finalmente cheguei à conclusão de que continuaria assim por um ano". "E uma vez que tomei a decisão, tudo se acalmou, e me acomodei no silêncio, e o silêncio se instalou em mim." Esta é uma frase encantadora: "O silêncio se instalou em mim". Qual é a sensação? "Ah, é maravilhoso! É quase como se tivessem me escolhido para ser esta pessoa, e estava muito agradecido. É como um presente. Comecei pensando que estava dando um presente para minha comunidade e acabou sendo um presente para mim também." John havia estabelecido que ficaria um ano sem falar — e começou a caminhar pelos Estados Unidos. Ele levava o saco de dormir nas costas e acampava sob as estrelas, pegando empregos ocasionais pelo caminho. Ele improvisou uma linguagem de sinais e usou muita mímica para se fazer entender. Mais tarde, quando os jornais começaram a escrever sobre ele, recortava os artigos para usar como cartão de visita. Além de caminhar, John pintava e tocava um banjo que era seu fiel companheiro. Quando seu aniversário seguinte chegou, ela reavaliou a decisão e permaneceu em silêncio por mais um ano... e virou mais um ano, e mais outro... Passaram-se 17 anos, nos quais ele fez "muita exploração, caminhando da Califórnia até o Oregon e por áreas selvagens". Ele também voltou a estudar, para poder se formar, em silêncio. "Lembro que fui ao gabinete do responsável pelas matrículas (da Universidade do Sul do Oregon, em Ashland) e tentei fazer com que ele entendesse que eu não falava e que queria estudar." "Sentei na frente dele e abaixei minha cabeça como O pensador, de Rodin, e depois juntei as palmas das minhas mãos e as abri como se fosse um livro e fiz como se estivesse lendo." John repetiu a sequência até que o funcionário da universidade perguntou: "Então você quer estudar aqui e aprender a pensar?" "Eu assenti." Ele obteve um diploma de graduação, e entrou em contato com a Universidade de Montana para se candidatar a uma vaga no programa de mestrado em estudos ambientais. "Posso chegar em dois anos", escreveu ele, e começou a caminhar. Quando chegou, não tinha dinheiro. "O diretor do programa disse: 'John, você está pronto para estudar?' Eu esvaziei os bolsos, e ele disse: 'Ah, você não tem dinheiro!' Balancei a cabeça, e ele falou: 'Volte amanhã'." No dia seguinte, "ele me deu US$ 150 e disse: 'Se cadastra para um crédito', o que eu fiz. E ele falou: 'Todos os professores disseram que deixariam você fazer as aulas de graça'." Ele concluiu o mestrado com a tese "Peregrinação e mudança: guerra, paz e meio ambiente" (1986). "Essas coisas se tornaram a quintessência dos meus pensamentos enquanto terminava minha caminhada pelos EUA." Ao longo do caminho, ele fez um doutorado em recursos terrestres na Universidade de Wisconsin, em Madison. Sua dissertação foi sobre aquilo que havia motivado sua caminhada silenciosa: os derramamentos de óleo. As portas começaram a se abrir. Ele foi convidado a assessorar o governo americano sobre derramamentos de óleo e redigiu regulamentações para os mesmos. As Nações Unidas o queriam como embaixador do meio ambiente... nada mal para um hippie que um dia decidiu abrir mão dos veículos motorizados e depois parou de falar! "É muito surpreendente." Três diplomas e quase duas décadas depois, John sentiu que tinha algo a dizer e colocou uma data em seu diário para começar a falar novamente: 2 de janeiro de 1990. "Escolhi o Dia da Terra porque queria falar sobre o meio ambiente, algo que para mim tinha deixado de ser sobre o que tradicionalmente pensamos — mudanças climáticas, derramamentos de óleo, poluição e coisas assim — para incluir como tratamos uns aos outros." "Isso é algo que eu não ouvi nos meus estudos, mas foi o que aprendi caminhando e convivendo com pessoas de todo o país." E qual foi a conexão entre cuidar do meio ambiente e o cuidado mútuo que ele encontrou? "A conexão foi que, como fazemos parte do meio ambiente, a forma como tratamos uns aos outros é nossa primeira oportunidade de tratar o meio ambiente de maneira sustentável ou até mesmo descobrir ou entender o que queremos dizer com sustentabilidade." "O meio ambiente para mim se tornou direitos humanos, direitos civis, igualdade de gênero e todas as formas com que nos relacionamos, porque isso se manifesta no ambiente físico que nos rodeia." "Pense, por exemplo, em como poluímos a água sem pensar nas pessoas rio abaixo que precisam limpá-la." Em outras palavras, se explorarmos uns aos outros, é mais provável que exploremos o meio ambiente, e se explorarmos o meio ambiente, é mais provável que exploremos uns aos outros. Esta era a mensagem que John queria tanto transmitir que estava disposto a quebrar seu silêncio de 17 anos. E como foi a experiência de falar novamente pela primeira vez em tanto tempo e diante de uma audiência que incluía amigos e familiares com quem não falava há tantos anos? "Fiz isso em Washington DC, em um hotel que se ofereceu para sediar um pequeno evento para mim, e convidei alguns amigos e familiares. Também vieram alguns meios de comunicação — National Geographic, Los Angeles Times." "Toquei um pouco de banjo e disse: 'Obrigado por estarem aqui'. E minha mãe pulou da cadeira e disse: 'Aleluia, Johnny está falando! E pensei: 'Que coisa incrível, ver minha mãe tão feliz'." "Mas como eu não ouvia minha voz há tanto tempo, não entendi direito de onde vinha. Olhei para trás para ver quem estava dizendo o que eu estava pensando." "Fiquei tão surpreso que comecei a rir, e vi meu pai olhar para mim pensando: 'Sim, ele é realmente louco'." Foi assim que as palavras faladas voltaram à sua vida... e os carros? "Eu caminhava para todos os lugares, independentemente de qualquer coisa, e percebi que havia me tornado um prisioneiro e que tinha as chaves desta prisão, e poderia me libertar a qualquer momento." "Agora dirijo um híbrido." Será que ele sente falta do tempo em que não falava e simplesmente caminhava? "Bem, eu ainda ando. Na verdade, a partir de agosto, estarei caminhando na África. E também, às vezes, eu não falo por um dia. De qualquer forma, estes 17 anos de silêncio e 22 anos de caminhada simplesmente não desaparecem." Aconselharia então outras pessoas a fazer o mesmo? "Aconselharia escutarmos uns aos outros."
2022-08-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62712184
sociedade
Como dormir pouco pode nos tornar menos generosos
A pesquisa descobriu que privação do sono acarreta uma redução da generosidade. Para isso, os pesquisadores testaram o nível de gentileza dos participantes quando estavam cansados. No primeiro estudo, privaram 21 voluntários de sono por 24 horas e, em seguida, lhes perguntaram o quanto estariam dispostos a ajudar em várias situações, como ajudar estranhos a carregar suas sacolas de compras. Então, pediram aos participantes que repetissem o questionário de altruísmo após uma noite normal de sono. Os pesquisadores também estudaram os níveis de atividade cerebral dos 21 participantes usando imagens de fMRI (ressonância magnética funcional). Fim do Matérias recomendadas Em seguida, 171 voluntários recrutados online mantiveram um diário de seu sono antes de fazer o mesmo questionário. Para ambos os experimentos, os pesquisadores descobriram que os participantes cansados marcaram menos pontos no questionário de altruísmo. Esse foi o caso independentemente dos traços de empatia dos participantes e de se a pessoa a ser ajudada era conhecida ou estranha. Finalmente, os pesquisadores analisaram mais de 3,8 milhões de doações beneficentes nos EUA antes e depois da mudança para o horário de verão, que geralmente leva à perda de uma hora de sono. As doações diminuíram 10% nos dias após a mudança dos relógios em comparação com as semanas anteriores e posteriores à transição. A análise de ressonância magnética mostrou que a privação do sono parece estar ligada à atividade reduzida na área do cérebro ligada à cognição social, que regula nossas interações sociais com os outros. A mudança na atividade cerebral não foi relacionada à qualidade do sono, apenas à quantidade. A boa notícia é que esse efeito é de curta duração e desaparece quando retornamos ao nosso padrão normal de sono. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há muito tempo foi estabelecido que o sono é fundamental para muitos aspectos de nossa saúde e bem-estar. Isso foi demonstrado em 1959, quando o DJ americano Peter Tripp ficou acordado para uma transmissão ao vivo da Time Square de Nova York por 201 horas seguidas. O recorde de Peter foi batido em 1964 por Randy Gardner, um adolescente que ficou acordado por 260 horas (quase 11 dias) para um projeto de feira de ciências da escola. Randy e Peter pareceram bem ao longo de suas experiências. Mas, à medida que o desafio avançava, eles começaram a falar de forma inarticulada, às vezes ficavam confusos e lutavam para concluir tarefas simples, como falar o alfabeto. Ambos também tiveram alucinações vívidas. Peter viu teias de aranha em seus sapatos e acreditou que uma gaveta da escrivaninha havia pegado fogo. Agora sabemos que a privação do sono está ligada a problemas de saúde mental, incluindo alucinações e psicose. Peter e Randy pareciam se recuperar de suas provações, mas pesquisas mostram que a privação grave do sono a longo prazo pode levar a problemas neurológicos duradouros. Desde as experiências de Peter e Randy, pesquisas apontaram que a privação do sono afeta a maioria dos aspectos do nosso comportamento, principalmente nossas habilidades básicas de pensamento, como memória e tomada de decisão. Em 1988, a Associação das Sociedades de Sono Profissionais publicou um relatório na revista científica Sleep, alertando que um sono ruim leva a um risco aumentado de acidente, como uma colisão na estrada ou um acidente de tarefas feitas em casa. Os psicólogos acreditam que bondade e generosidade fazem parte de nossa cognição social, um conjunto complexo de processos que controlam como interagimos com os outros e como tomamos decisões sobre nosso comportamento em relação a eles. Essas decisões são baseadas em muitos fatores. Cada um desses fatores é afetado pela qualidade do sono; nossa memória, todos os aspectos da memória de situações anteriores, a qualidade de nossas decisões, nosso nível de impulsividade e principalmente nossa capacidade de controlar as emoções. É de se esperar que a quantidade de dinheiro que estamos dispostos a doar também seja influenciada pelo sono. Então, da próxima vez que um amigo pedir algum favor, pense se você teve uma boa noite de sono na noite anterior. *Laura Boubert é professora de Psicologia na Universidade de Westminster (Reino Unido)
2022-08-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62672792
sociedade
Como o quimono se tornou um símbolo de opressão em algumas partes da Ásia
Uma mulher em Suzhou, na China, foi recentemente detida por "provocar problemas", segundo a imprensa do país. O suposto crime que ela cometeu foi ser vista usando um quimono. A mulher estava vestida como uma personagem de mangá (um quadrinho japonês). Prendê-la pode parecer dramático, mas há mais em jogo aqui do que um simples erro de moda. A roupa é um identificador cultural e, para muitos, um símbolo de identidade e orgulho nacional. Quando você pensa em quimono, pode lembrar do Japão. No entanto, a vestimenta raramente é usada no Japão atualmente, exceto em festivais ou celebrações tradicionais. Como resultado, a indústria de quimonos, que cresceu na década de 1980, está passando por uma grande desaceleração. No entanto, o quimono usado hoje não é uma invenção dos japoneses. Ele remonta ao século 7, quando a corte imperial começou a usar roupas adaptadas com estilo chinês. Fim do Matérias recomendadas Apesar dessa origem chinesa, o quimono é um importante símbolo cultural do Japão globalmente. E, em muitos países asiáticos, especialmente naqueles que foram brutalmente colonizados pelo Japão, ele continua sendo um símbolo de opressão. Há uma longa história de semelhanças na moda entre o Japão e a China. Exploradores chineses das áreas do sul do Japão antigo, por volta do século 3 a.C., encontraram pessoas vestindo túnicas simples, vestimentas tipo poncho, e uma espécie de calça e blusa plissados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Elas eram semelhantes às roupas usadas em partes da China na época. As imagens de rainhas sacerdotisas e chefes tribais no século 4 d.C. no Japão também mostram figuras com roupas como as usadas pela dinastia Han da China. O primeiro ancestral do quimono surgiu no Japão no período Heian (794-1185). Mas ele muitas vezes usava a vestimenta com hakama de estilo chinês (calças plissadas ou saias longas). Essa roupa era feita de pedaços retos de pano presos com uma faixa estreita nos quadris. No período Edo (1603-1868), todos usavam uma vestimenta unissex conhecida como kosode, feita de pedaços retos de tecido costurados como o quimono conhecido hoje. No início de 1600, o Japão foi unificado por Xogum Tokugawa em um xogunato feudal (uma espécie de ditadura militar), com Edo (agora Tóquio) como sua capital. A cultura japonesa se desenvolveu durante esse período quase sem influência externa, e o kosode, como precursor do quimono, passou a representar o que simbolizava ser japonês. As roupas folclóricas e de trabalho também se baseavam na faixa frontal (da esquerda para a direita), blusas com mangas caídas e amarradas com cordões ou cadarços seguindo um padrão básico de quimono. O papel do fabricante de quimonos se desenvolveu e o valor de algumas peças aumentou exponencialmente, como se fossem obras de arte de valor inestimável. Após épocas de um Japão "fechado", a era Meiji (1868-1912) marcou um período de rápida modernização e influência estrangeira. O quimono, que significa "o que vestir", tinha nome próprio e nasceu oficialmente. Isso aconteceu mesmo apesar de um novo édito imperial que rejeitou a vestimenta antiga por ser "efeminada" e "não-japonesa". Como resultado, homens, funcionários do governo e militares foram incentivados a usar roupas ocidentais, o yōfuku, em vez do tradicional wafuku. Mas como o Japão estava passando por uma mudança fundamental em vários níveis, a visão das mulheres vestindo quimonos era reconfortante e um símbolo popular nipônico. As mulheres começaram a usar mais roupas de estilo ocidental, especificamente as peças íntimas, após o Grande Terremoto de Kanto em 1923, pois muitas delas se sentiam constrangidas por serem expostas e isso as impedia de pular ou ser resgatadas de andares altos em prédios. A possibilidade de que menos mulheres pudessem ter perdido suas vidas no desastre se estivessem usando um yōfuku ou pelo menos uma calcinha sob seus quimonos foi um catalisador para a ocidentalização generalizada. A era Showa do Japão começou em 1926, quando o imperador Hirohito chegou ao trono. Esse período abrangeu duas guerras mundiais e a ascensão de um ultranacionalismo cultural estridente e foi descrito como o período mais importante, calamitoso, bem-sucedido e glamoroso da história recente do Japão. Para aqueles que acreditavam na ideia da singularidade japonesa (Nihonjin-ron), que se tornou especialmente popular após a Segunda Guerra Mundial, o quimono (junto com outros aspectos da cultura nipônica) era considerado superior à alternativa ocidental. Enquanto o uso real da roupa diminuiu, o status simbólico do quimono no Japão aumentou. Na década de 1930, o Japão era uma grande potência colonial, tendo se transformado de uma fraca sociedade feudal em uma potência militar moderna e independente na década de 1980. Como tal, a nação havia lançado conquistas territoriais nos países vizinhos. Então, enquanto as pessoas no Japão "se vestiam como correspondem" em uma tentativa ousada de parecerem poderosas para o Ocidente, os ocupantes japoneses em Taiwan e na Coreia encorajavam ativamente as mulheres locais a usar quimono para mostrar o papel superior do Japão e "a grande prosperidade compartilhada com o leste da Ásia" na região. Um estudo de como o quimono foi percebido em Taiwan e na Coreia durante o período colonial japonês, de 1895 a 1945, mostrou que o quimono nipônico está claramente relacionado ao controle colonial do Japão e às responsabilidades de guerra do país. O uso de uma peça de roupa tão bonita e elegante como arma deixou claramente sua marca. Como a mulher presa na China foi recentemente advertida. "Se você estivesse vestindo um Hanfu (roupa tradicional chinesa), eu nunca teria dito isso. Mas você está vestindo um quimono. Você é chinesa!", diziam os relatórios. O quimono continua sendo um símbolo da tradição japonesa e um lembrete dos perigos do nacionalismo para os países que foram ocupados durante a guerra e sofreram atrocidades. Mas enquanto o Japão se prepara para dobrar seu orçamento de defesa, levantando questões sobre sua identidade pacifista desde o período pós-guerra, e a China flexiona sua força em Hong Kong e Taiwan, as autoridades devem se preocupar com mais do que apenas uma mulher vestida de quimono. *Ella Tennant é professora de Línguas e Cultura na Keele University, Reino Unido. *Este artigo foi publicado originalmente no The Conversation e reproduzido aqui sob uma licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original.
2022-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62709508
sociedade
'Só o sim é sim': por que lei de consentimento sexual causa polêmica na Espanha
O nome oficial é Lei da Garantia Integral da Liberdade Sexual, embora seja mais conhecida apenas como como Lei da Liberdade Sexual e, sobretudo, como Lei do "só o sim é sim". Ela foi aprovada na quinta-feira (25/8) pelo Congresso dos Deputados na Espanha, após mais de um ano de burocracia. Foram 205 votos a favor e 141 contra. Após ser assinada pelo rei, será registrada no Diário Oficial do Estado e provavelmente entrará em vigor em questão de semanas. A coalizão de esquerda que governa a Espanha garante que é uma das leis mais vanguardistas do mundo em favor dos direitos das mulheres. Seus críticos, no entanto, acreditam que ela viola a presunção de inocência e igualdade perante a lei. Fim do Matérias recomendadas Abaixo, entenda os pontos principais da Lei da Liberdade Sexual. A lei tem suas raízes no polêmico caso "La Manada". Esse era o nome do grupo de WhatsApp em que interagiam os cinco homens que estupraram uma jovem de 18 anos durante as festividades de San Fermín em Pamplona, na Espanha, em 2016. A justiça espanhola os condenou somente por abuso sexual por entender que não houve violência ou intimidação, mas depois isso foi retificado e a Suprema Corte acabou elevando as penas de 9 para 15 anos de prisão por estupro. O caso gerou manifestações em todo o país e a exigência da sociedade espanhola de reformar as leis para proteger as mulheres de agressões sexuais e endurecer as punições para quem as comete. O atual governo espanhol, declarado abertamente feminista, começou então a desenhar a nova lei, que implica mudanças importantes no tratamento dos crimes sexuais e no atendimento às vítimas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Só o sim é sim" refere-se ao mais importante e também o mais polêmico dos postulados dessa lei: o consentimento antes de qualquer interação sexual. "Só se entenderá que há consentimento quando este tiver sido livremente expresso por meio de atos que, diante das circunstâncias do caso, expressem claramente a vontade da pessoa", afirma o texto da Lei. Assim, as condutas sexuais sem consentimento serão consideradas agressões e serão punidas com penas diferentes, dependendo das circunstâncias e dos agravantes do caso. Isso pressupõe que uma agressão sexual não implique necessariamente o uso da força ou que a vítima tenha tentado resistir, pois, por exemplo, sua passividade pode ser condicionada pela intimidação ou pela ingestão de álcool ou outras substâncias. "Nenhuma mulher terá que provar que houve violência ou intimidação em uma agressão para que seja considerada uma agressão. Reconhecemos todas as agressões como violências machistas", disse à imprensa a ministra espanhola da Igualdade, Irene Montero. A nova lei remove a atual distinção entre abuso sexual e agressão sexual. Assim, qualquer interação sexual sem o consentimento da outra pessoa será uma agressão e será punida com pena de 1 a 4 anos de prisão. Também há um agravante por submissão química. Isso significa que usar remédios ou drogas para diminuir ou anular a vontade da vítima, algo que é considerado abuso até agora, se tornará agressão. Sobre homicídios por violência sexual, a nova lei busca diferenciar o homicídio de mulheres vinculado à violência sexual de outros tipos de crimes com morte. O "feminicídio sexual" será considerado "a mais grave violação dos direitos humanos ligada à violência sexual, que deve ter visibilidade e à qual deve ser dada uma resposta específica". O assédio na rua passa a ser punido como um delito leve e a justiça pode aplicar sanções a quem praticar isso, caso a vítima denuncie o caso. Este tipo de atitude será punido com 5 a 30 dias de prisão domiciliar, trabalho comunitário durante o mesmo período ou multa. A violência sexual digital, que se refere à extorsão sexual por meio de redes ou pornografia não consensual, também será processada. Também prevê a proibição da publicidade pornográfica, que consiste em vetar propagandas que apresentem uma imagem humilhante ou discriminatória de mulheres usando seu corpo ou partes dele, ou associadas a comportamentos estereotipados e considerados ofensivos. Esse ponto servirá também para proibir anúncios que promovam a prostituição ou que possam ser considerados racistas, homofóbicos ou discriminatórios. Para as vítimas de agressão sexual que ganham menos do que o salário mínimo local (atualmente 14.000 euros por ano, cerca de R$ 70 mil ao ano), a lei prevê ajuda financeira generosa e acesso prioritário à habitação pública. Também planeja estabelecer pelo menos 50 centros de crise 24 horas em toda a Espanha, onde vítimas, familiares e amigos próximos possam receber assistência psicológica, jurídica e social. Atualmente já existem dois - um em Madrid e outro nas Astúrias, no norte do país - e o governo espanhol já destinou 66 milhões de euros (aproximadamente R$ 330 milhões) a esse projeto. Com a nova Lei da Liberdade Sexual, a educação sexual será obrigatória em todas as etapas do ensino, bem como nas carreiras universitárias ligadas ao ensino, à saúde e ao judiciário. Além disso, os criminosos sexuais também terão de receber educação sexual de modo obrigatório. Desde que começou a ser discutida, há mais de um ano, a lei tem recebido críticas da direita, assim como de juízes e de parte da sociedade por meio das redes. Os 21 magistrados do Conselho Geral da Magistratura (CGPJ), órgão da justiça espanhola, aprovaram por unanimidade um relatório em 2021 que questionava aspectos fundamentais da lei. Os juízes consideraram que o princípio da presunção de inocência pode estar em perigo: definir o que é o consentimento - em vez do que não é - obriga o acusado a demonstrar que a vítima disse "sim" antes do encontro sexual. Essa é a mesma preocupação expressa pelo principal partido da oposição, o Partido Popular (PP), que votou contra no Congresso. Enquanto isso, o partido de extrema-direita Vox considera a lei "ideológica e sectária" e acredita que ela "abre a porta para o uso de falsas acusações" para obter benefícios, como a regularização no caso de imigrantes ilegais.
2022-08-27
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62703308
sociedade
Vacina e remédio contra varíola dos macacos são aprovados no Brasil; entenda como vai funcionar
A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou a liberação da vacina Jynneos/Imvanex contra a varíola dos macacos (monkeypox) e o uso emergencial do medicamento tecovirimat, um antiviral, no Brasil. Para as aprovações, a agência analisou dados disponibilizados pela EMA (Agência Europeia de Medicamentos) e da FDA, a agência americana que regula medicamentos e alimentos. "Tanto a vacina quanto o remédio foram criados a princípio para combater a varíola, que tem um vírus da mesma família da 'varíola dos macacos'", explica a infectologista Melissa Valentini, do Grupo Pardini. Entre os mais de 45 mil casos no mundo, foram registradas cerca de dez mortes pelo vírus. No Brasil, são mais de 4 mil casos confirmados, e até o momento, uma morte. A maioria dos casos da doença é leve. A OMS (Organização Mundial da Saúde) estima que quadros graves ocorram somente entre 7% e 10% dos casos. Fim do Matérias recomendadas A vacina deve chegar ao Brasil a partir de setembro, segundo o Ministério da Saúde. A princípio, serão priorizados no recebimento de doses os profissionais de saúde que estão mais expostos ao vírus, ou seja, aqueles que atendem pacientes diagnosticados ou atuam na manipulação de amostras do vírus. O imunizante é feito com versões atenuadas do vírus vaccinia modificado da cepa Ankara, que está relacionado ao vírus da varíola. As doses foram feitas para adultos com 18 anos ou mais, e o esquema recomendado é de duas aplicações a serem administradas com quatro semanas de intervalo. A vacina possui prazo de até 60 meses de validade quando conservada entre -60 e -40°C. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), dos Estados Unidos, afirmam que atualmente não há dados disponíveis sobre a eficácia clínica da vacina. A infectologista Melissa Valentini, afirma, no entanto, que a expectativa é que a eficácia seja de cerca de 85%. "O tecovirimat é um antiviral inibidor de envelope Vp37, e por isso age impedindo a replicação do vírus. O potencial benefício é evitar a disseminação no corpo, e ele é usado para diminuir a gravidade das lesões e o tempo de, assim como evitar que o quadro se agrave ao ponto de levar o paciente a óbito", diz Alexandre Naime Barbosa, professor da Unesp (Universidade Estadual de São Paulo) e vice-presidente da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia). O medicamento ficará sob supervisão do Ministério da Saúde e será distribuído somente pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Seu uso é limitado, até este momento, para pacientes com casos mais graves, já que para a maioria dos infectados a doença não causa manifestações perigosas. Exemplos de casos em que o tecovirimat é recomendado: Na avaliação do infectologista Alexandre Naime, o medicamento chega em um momento tardio no Brasil. "O Ministério da Saúde já tinha que ter feito esforços para trazer essa medicação precocemente. Para o paciente que veio a óbito, todas as possibilidades de conseguir o medicamento foram tentadas ostensivamente, e se o Ministério da Saúde tivesse declarado estado de emergência de saúde pública, poderíamos ter tido uma chance melhor de salvar uma vida."
2022-08-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62695029
sociedade
O 'terremoto demográfico' da Coreia do Sul, onde morrem mais pessoas do que nascem
A Coreia do Sul caminha para uma crise sem precedentes. A razão? Sua população não está crescendo no ritmo que deveria. Em 2021, o país asiático voltou a registrar a menor taxa de natalidade do mundo: o Escritório Nacional de Estatística registrou o nascimento de 260.600 crianças, 11.800 a menos do que 2020. Desde 2018, a taxa de natalidade na Coreia do Sul é inferior a um filho por mulher. Os últimos números oficiais mostram que essa tendência, longe de se reverter, deve se acentuar. Nos últimos 12 meses, as mulheres tiveram em média 0,81 filhos — um decréscimo pelo sexto ano consecutivo. Essa queda na taxa de natalidade ameaça complicar os problemas que atravessa a economia do país, que mal cresce. Nas economias mais avançadas do mundo, o número médio de filhos por casal é de 1,6 — ou seja, duas vezes mais do que no país asiático. No Brasil, de 1,72. Nos últimos anos, a pressão econômica e questões profissionais foram fundamentais na decisão de ter ou não filhos, dizem os especialistas. Fim do Matérias recomendadas Considerando dados de 2021, os analistas apontam para um custo de vida cada vez mais elevado, a subida dos preços de imóveis e o impacto da pandemia de coronavírus como fatores que desencorajam a população a ter filhos. No caso específico das carreiras, as mulheres sul-coreanas têm uma ótima educação, explica o correspondente da BBC em Seul, Jean Mackenzie. Mas elas estão longe de ter alcançado igualdade de condições de trabalho em relação aos homens. "O país tem a maior diferença salarial entre homens e mulheres de todos os países ricos", diz Mackenzie. Além disso, o fato de o trabalho doméstico e o cuidado com os filhos continuarem a recair mais sobre elas torna frequente a situação em que as mulheres param de trabalhar depois de ter filhos ou que suas carreiras estacionem. Em essência, aponta o correspondente da BBC, muitas mulheres ainda são obrigadas a escolher entre ter uma carreira ou uma família. Cada vez mais, elas decidem pela primeira opção. Como disse uma mulher ao jornalista, "estamos em greve de ter bebês". "Não tenho planos de ter um filho. Não quero sofrer a dor física de dar à luz ou minha carreira sendo prejudicada", explicou a sul-coreana Jang Yun-hwa em entrevista à BBC em 2018. "Prefiro viver sozinha e seguir meus sonhos do que fazer parte de uma família", acrescentou a jovem na ocasião. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nas últimas seis décadas, as taxas de natalidade "diminuíram acentuadamente" nas mais avançadas economias, segundo dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Países como a Espanha também enfrentam problemas demográficos semelhantes, embora as ondas migratórias registradas nas últimas décadas, especialmente vindas da África e da América Latina, tenham atenuado seus efeitos. No entanto, o caso da Coreia do Sul é particular porque o tamanho das famílias diminuiu consideravelmente em apenas algumas gerações. No início da década de 1970, as mulheres do país tinham em média quatro filhos. Essa diminuição tem causado um envelhecimento da população e o consequente aumento da taxa de mortalidade. Desde 2020, a Coreia do Sul viu sua população diminuir, pois o número de mortes está superando o de recém-nascidos. Só em maio deste ano, o país registrou 28.859 óbitos contra 20.007 nascimentos. Especialistas alertam que a Coreia do Sul pode enfrentar um "terremoto demográfico" a partir de 2030, devido ao declínio e rápido envelhecimento de sua população. Eles sustentam que os países precisam de pelo menos dois filhos por casal — uma taxa de 2,1 — para manter a população no mesmo tamanho, não considerando a imigração. A diminuição da população pode trazer muitos problemas econômicos. Por um lado, exige mais gastos públicos para responder ao aumento da demanda por sistemas de saúde e previdência e, por outro, o declínio da população jovem causa escassez de mão de obra. Estudos do próprio governo sul-coreano citados pela agência Yonhap afirmam que, se a situação no país não for revertida, a população em idade ativa cairá 35% nos próximos 30 anos.
2022-08-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62682446
sociedade
Como legalização da maconha na África do Sul está excluindo produtores tradicionais
Por gerações, moradores de uma província da África do Sul ganharam a vida cultivando cannabis. Agora, à medida que o país avança na direção da legalização da maconha, esses pequenos produtores poderiam ter vantagens no horizonte. Mas não é bem assim que as coisas vêm acontecendo. A viagem de Umthatha até a vila de Dikidikini, na província do Cabo Oriental, na África do Sul, é uma jornada pitoresca repleta de vistas infinitas, propriedades isoladas e estradas sinuosas que cortam colinas verdes ondulantes que podem ser facilmente confundidas com campos de milho - mas não são. "Isso é maconha", diz meu guia local e ativista da cannabis Greek Zueni. "Todo mundo aqui cultiva. É assim que eles ganham a vida." A cannabis, coloquialmente conhecida como "umthunzi wez'nkukhu", ou "sombra de galinha", é uma parte intrínseca de muitas comunidades rurais em Pondoland do Cabo Oriental e uma fonte vital de renda. Em um conjunto de casas perto da margem do rio, encontramos alguns homens, mulheres e crianças cuidando de uma nova colheita. As mãos deles estão manchadas de verde por arrancarem as flores de maconha o dia todo. Fim do Matérias recomendadas O cheiro pungente de cannabis paira pesado no ar. Eles fazem piadas enquanto trabalham — a colheita é um esforço em grupo. Uma pilha enorme de plantas verdes está ao lado deles, secando ao sol do meio-dia. Para a integrante da comunidade Nontobeko, que pediu para omitir seu nome verdadeiro, cultivar cannabis é tudo o que ela sabe fazer. "Aprendi a cultivá-la aos 8 anos de idade", diz ela com orgulho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "A cannabis é muito importante para nós porque é nosso meio de vida e fonte de renda. Tudo o que conseguimos é por meio da venda de cannabis. Não há empregos, nossos filhos estão sentados aqui conosco." Embora a cannabis possa ser um modo de vida para essa comunidade, cultivá-la nessa escala é ilegal. Existem mais de 900 mil pequenos agricultores nas províncias de Cabo Oriental e KwaZulu-Natal que cultivam cannabis há gerações. Esses plantadores estavam muitas vezes contra a lei, mas a postura dura do governo em relação à cannabis parece prestes a mudar. Tudo começou com uma decisão judicial histórica em 2018 que descriminalizou o uso privado, posse e cultivo de cannabis. No início deste ano, durante seu discurso sobre o Estado da Nação, o presidente Cyril Ramaphosa disse que a África do Sul deveria explorar a indústria multibilionária global de cânhamo e cannabis, que ele disse ter potencial para criar 130 mil empregos muito necessários. Embora isso possa ser uma boa notícia para as empresas comerciais, os produtores tradicionais de Cabo Oriental se sentem deixados para trás. O custo de obter uma licença para cultivar cannabis é muito caro para muitos. "O governo precisa mudar sua abordagem e criar leis que sejam favoráveis ​​aos produtores e aos cidadãos. Neste momento, as pessoas que têm licenças (para cultivar cannabis) são ricas", diz Zueni. "Deveriam estar ajudando as comunidades a crescer para que possam competir com o mercado mundial. Aqui temos uma commodity crescendo tão fácil e organicamente. Não temos inveja, os ricos também devem entrar, mas, por favor, acomode os mais pobres", diz Zueni. No ano passado, o governo divulgou um plano central para a industrialização e comercialização da planta de cannabis. Ela valoriza a indústria local, que tem operado em grande parte nas sombras, em quase US$ 2 bilhões (R$ 10 bilhões). O governo está buscando tornar a indústria de cannabis da África do Sul globalmente competitiva e produzir produtos de cannabis para o mercado internacional e doméstico. A chave para o lançamento é a Lei de Cannabis para Fins Privados, que deve ser assinada durante o ano fiscal de 2022-23, que fornece diretrizes e regras para consumidores e para aqueles que desejam cultivar cannabis em suas próprias casas. A lei prevê a legalização do cultivo de cânhamo e cannabis para fins medicinais, abrindo assim a indústria para investimentos e crescimento sérios. Espera-se também que esclareça as áreas legais ainda obscuras e, assim, forneça aos potenciais investidores clareza sobre o futuro do mercado sul-africano de cannabis. Embora muito ainda não esteja claro, parece que o governo está comprometido em abrir o setor, porque as oportunidades econômicas são atraentes demais para serem ignoradas. Os planos têm amplo apoio público, com poucas vozes discordantes. Embora a estrutura legal ainda esteja tentando acompanhar um mercado em rápida evolução, muitas empresas estão avançando na expectativa de que a lei termine por abrir o setor. Tal como está, embora o uso privado tenha sido descriminalizado, ainda é ilegal comprar e vender cannabis e vários produtos derivados da planta. No entanto, a julgar pela proliferação de lojas que vendem produtos de cannabis em todo o país, as autoridades já estão fazendo "vista grossa" para esse tipo de comércio. Além desse mercado interno, empresas privadas podem cultivar cannabis medicinal com destino à exportação. Uma empresa que está buscando capitalizar a cannabis medicinal é a Labat Africa Group. A empresa listada na Bolsa de Valores de Joanesburgo recentemente adquiriu o produtor de cannabis Eastern Cape Sweetwater Aquaponics. O diretor da Labat, Herschel Maasdorp, diz que a empresa está passando por um crescimento significativo tanto na Europa quanto na África. A empresa também foi listada na bolsa em Frankfurt, porque "a Alemanha é o maior mercado da Europa para distribuição de cannabis medicinal", diz ele. "As oportunidades de distribuição na Europa são muito grandes. Além disso, é preciso levar em conta outros mercados. Há uma proposta que consolidamos em vários países diferentes, desde Quênia, Zâmbia, Uganda, Ruanda, Tanzânia, assim como no Zimbábue." O comércio legal de cannabis no continente deve aumentar para US$ 7 bilhões (R$ 35,7 bilhões), à medida que a regulamentação e as condições do mercado melhorarem, diz o analista da Prohibition Partners, com sede em Londres. Ele diz que os principais produtores da África até 2023 serão a Nigéria com US$ 3,7 bilhões (R$ 18,9 bilhões), a África do Sul com US$ 1,7 bilhão (R$ 8,7 bilhões), Marrocos com US$ 900 milhões (R$ 4,6 bilhões), Lesoto com US$ 90 milhões (R$ 460 milhões) e Zimbábue com US$ 80 milhões (R$ 409 milhões). Em seu Relatório Global de Cannabis, a Prohibition Partners prevê um crescimento exponencial da indústria em todo o mundo. "As vendas globais combinadas de CBD, cannabis medicinal e de uso adulto atingiram US$ 37,4 bilhões (R$ 190 bilhões) em 2021 e podem chegar a US$ 105 bilhões (R$ 536 bilhões) até 2026." Considerando a economia estagnada da África do Sul e o desemprego recorde, explorar a indústria da cannabis pode trazer grandes recompensas. Para Wayne Gallow, da Sweetwater Aquaponics, incorporar produtores tradicionais na indústria é crucial para o desenvolvimento econômico no Cabo Oriental. "O que queríamos alcançar com nossa licença não é apenas cultivar cannabis medicinal, mas usar essa licença para beneficiar todos no Cabo Oriental", disse ele à BBC. Ele admite que os produtores mais tradicionais foram deixados para trás, à medida em que a legislação sobre cannabis progredia. "A área de Pondoland era sinônimo de fornecimento de cannabis em toda a África do Sul", diz ele. No entanto, as mudanças na lei tiveram um efeito "prejudicial" sobre os agricultores de Pondoland, porque significa que qualquer pessoa agora pode cultivar e consumir sua própria cannabis, de modo que eles não têm mais mercado para uma cultura anteriormente muito lucrativa. Mesmo o cultivo de cannabis para exportação para medicamentos não é viável para pequenos agricultores, por causa dos custos exorbitantes. Requer uma licença da Autoridade Reguladora de Produtos de Saúde da África do Sul (SAHPRA), que custa US$ 1.465 (R$ 7.480). Além da taxa de licença, para montar uma instalação de cannabis medicinal, você precisa de cerca de US$ 182 mil (R$ 930 mil) a US$ 304 mil (R$ 1,5 milhão), o que está além do alcance de muitos produtores tradicionais. No entanto, há algumas notícias promissoras para os agricultores do Cabo Oriental. A variedade Pondoland ou Landrace da planta, que cresce tão abundantemente na região, mostrou alguns resultados preliminares encorajadores no apoio ao tratamento do câncer de mama. A Sweetwater Aquaponics e o Conselho de Pesquisa Científica e Industrial (CSIR) estão atualmente realizando um estudo, e os cientistas estão otimistas de que a cepa produzirá bons resultados. Ainda é cedo, mas se a variedade Pondoland for eficaz, isso pode ser o divisor de águas que os produtores tradicionais estão buscando desesperadamente.
2022-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62655850
sociedade
Como o bullying no trabalho migrou para o ambiente remoto
Joyce trabalha no setor de comunicações de uma empresa no leste da Inglaterra. Ela demorou para identificar que estava sendo vítima de bullying no seu local de trabalho. A maior parte do trabalho na companhia já era feito remotamente muito antes da pandemia e ela não se sentia atacada por colegas. "Eu realmente não pensava nisso", afirma Joyce — cujo sobrenome é omitido por questão de privacidade. "Eu ainda tinha em mente a ideia tradicional do bullying como alguém me desrespeitando pessoalmente." Até que, ao longo do tempo, aumentou a sensação de que a sua chefe (que tinha pouco tempo de empresa) a estava isolando constantemente e de formas desconfortáveis. "Era um e-mail em grupo em que eu dizia uma coisa e ela respondia com outra, ou ela começava a falar sobre mim em uma reunião no Zoom sem me avisar com antecedência", ela conta. Isoladamente, muitos daqueles incidentes pareciam pequenos. Em um dia, a chefe mudava todas as senhas das redes sociais do trabalho e Joyce não tinha mais acesso às contas. Em outro, Joyce recebia um e-mail a repreendendo por "resistir" às ideias da chefia. Fim do Matérias recomendadas Os incidentes se acumulavam. E, mesmo depois de trabalhar na empresa há anos, seis meses foram suficientes para fazer com que Joyce deixasse de amar o seu trabalho e chegasse ao ponto de querer pedir demissão. "Foi uma experiência traumática", ela conta. "Isso me abalou muito e fiquei muito triste." É claro que o bullying é um problema no ambiente de trabalho há muito tempo. Ele engloba um amplo espectro de comportamento e é tipicamente associado ao trabalho presencial. Um cenário conhecido ocorre quando um chefe dominador desvaloriza um funcionário em público para humilhá-lo ou quando um grupo sai do escritório para almoçar juntos, deixando deliberadamente um colega para trás. Para alguns funcionários, o trabalho remoto forneceu alívio e distância da tensão diária de ter que lidar com esses incidentes. Mas ainda há evidências de que, à medida que as empresas adotam cada vez mais modelos de trabalho remoto e híbrido, o bullying no ambiente de trabalho não só permaneceu, mas desenvolveu-se, muitas vezes de formas mais sutis — especialmente porque a tecnologia abriu novos caminhos para a falta de gentileza. O bullying remoto não é um fenômeno totalmente novo. Existem dados que indicam que ele já vinha crescendo antes mesmo da mudança generalizada para o trabalho remoto. Um estudo de janeiro de 2020, conduzido pela associação de recursos humanos Chartered Institute of Personnel and Development (CIPD), com sede em Londres, demonstrou que 10% dos profissionais relatavam sofrer bullying por e-mail, telefone ou redes sociais. "Nós já vínhamos observando casos de bullying acontecendo fora do ambiente físico de trabalho", afirma Rachel Suff, consultora de políticas sobre relações do trabalho do CIPD. Por isso, a expansão do bullying remoto com a chegada da pandemia não foi surpreendente para Suff. Ela acredita que a enorme quantidade de canais digitais disponíveis "fornece mais caminhos para que as pessoas sofram bullying ou sintam que estão sendo tratadas de forma inadequada". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De fato, em muitos casos, esses novos caminhos deram início aos incidentes de bullying na era da pandemia. Uma pesquisa da entidade americana Workplace Bullying Institute demonstrou em 2021 que, de 1.215 trabalhadores remotos americanos consultados, 43% relataram que foram objeto de bullying no ambiente de trabalho, a maior parte por chamadas de vídeo e por e-mail. E um quarto dos participantes concluiu que o trabalho remoto durante a pandemia de covid-19 fez com que os colegas ficassem mais propensos a maltratar os demais. Em 2022, o número de casos de bullying apresentados à Justiça do Trabalho do Reino Unido bateu o recorde anual de todos os tempos — um aumento de 44% em relação ao ano anterior. Os incidentes mais comuns incluíram comentários maldosos durante chamadas de vídeo, exclusão deliberada de colegas em reuniões remotas e o uso de aplicativos de mensagens para fofocas durante apresentações de colegas. No caso de Joyce, as ferramentas de colaboração digital possibilitaram parte do bullying que ela recebeu da sua chefe. Uma noite, após o horário de trabalho, Joyce recebeu uma mensagem perguntando se ela poderia entrar em uma chamada de vídeo naquele momento. Na chamada, a chefe pediu que ela abrisse um novo e-mail que, para surpresa de Joyce, era uma advertência formal, por escrito, da sua chefe — que a leu em voz alta. "Eu queria simplesmente sair da chamada", Joyce conta. "Por que ela precisava fazer aquilo de forma tão dramática e observar minha expressão?" Por mais que se sentisse mal, dados do Workplace Bullying Institute indicam que Joyce foi poupada de parte da humilhação, já que somente ela e a sua chefe estavam na chamada. Nas pesquisas do instituto, 35% dos participantes indicaram que seu bullying remoto aconteceu em chamadas de vídeo na frente de outras pessoas "em tempo real, com as expressões faciais sendo mais destacadas pela tecnologia". O bullying remoto em frente aos colegas pode não só ser humilhante, mas também intensificar o sentimento de desconexão da equipe como um todo. Presencialmente, os colegas podem intervir para interromper o bullying, demonstrando seu apoio pelo funcionário que é alvo da humilhação ou discordando do autor do bullying, segundo Kara Ng, professora de psicologia organizacional da Universidade de Manchester, no Reino Unido. Mas isso fica mais difícil em um ambiente virtual. De fato, pela via remota, alguns colegas podem nem mesmo perceber o problema. "É muito mais difícil identificar o comportamento de bullying no ambiente de trabalho digital", afirma Priyanka Sharma, psicóloga organizacional e fundadora da consultoria de aprendizado do ambiente de trabalho Mindtrail, com sede em Londres. "É muito mais fácil excluir alguém intencionalmente das reuniões importantes ou reter informações significativas e mais difícil perceber quando um colega está preocupado", afirma ela. A falta de intervenção pode deixar o funcionário alvo com o sentimento de que seus colegas aprovam o comportamento de bullying, mesmo se não for o caso. E, depois que há um incidente, os ambientes de trabalho remotos oferecem menos oportunidade de conversas informais com os colegas para discutir o que aconteceu. "Não ter a possibilidade de esclarecer socialmente a questão com alguém e compreender as normas do grupo pode ser muito prejudicial", afirma Ng. "Você acaba simplesmente se sentindo cada vez mais isolado." É possível que o isolamento do trabalho remoto possa também mudar a forma como os profissionais interpretam o comportamento dos seus colegas, aumentando sua propensão a sentir que estão sofrendo bullying. Um estudo de 2017 com 1.100 trabalhadores remotos demonstrou que esses funcionários tinham maior possibilidade de relatar que seus colegas os isolaram, fizeram fofocas sobre eles pelas costas e até influenciaram outros contra eles enquanto trabalhavam em casa. Eles também afirmaram que, quando surgia um conflito entre colegas, o trabalho remoto dificultava a sua resolução. Sem as indicações físicas e o contexto da comunicação presencial, o trabalho remoto realmente abre espaço para diferentes leituras de mensagens que, às vezes, são simples. "No contexto digital, muitas vezes nós precisamos interpretar o tom de voz, o que é difícil", afirma Sharma. "Por isso, as pessoas podem começar a questionar seu senso de pertencimento, se eles realmente estão sofrendo bullying e se é intencional." Essa zona cinzenta pode ser preocupante para os profissionais, mas também fornece um "álibi" plausível para os próprios praticantes de bullying. Com isso, o mau tratamento, de baixo nível, pode aumentar. Quando incidentes aparentemente pequenos, como comentários bruscos ou pequenos menosprezos, são ignorados, as consequências podem ser sérias para os funcionários individualmente e para a empresa como um todo. "O terreno fértil para os tipos mais sérios de assédio e bullying é o comportamento inadequado de baixo nível, que muitas vezes poderia ser simplesmente eliminado", afirma Suff. "E, se o bullying não for combatido, é como uma ferida que se alastra. Ele nunca fica restrito aos indivíduos que foram sua fonte original." "É importante que o bullying não seja considerado apenas uma questão entre o seu autor e a vítima; é um problema coletivo", acrescenta Ng. Estudos indicam que as pessoas que testemunham o bullying podem sofrer o mesmo impacto negativo sobre o seu bem-estar que as pessoas que sofrem o assédio. "Isso realmente afeta a motivação do grupo. As pessoas podem ter medo de compartilhar suas opiniões, sentir-se mais estressadas e isso pode gerar queda do desempenho e do comprometimento, o que acaba afetando a companhia", explica Ng. De forma geral, sabe-se que o bullying no ambiente de trabalho causa ansiedade, depressão e piora o desempenho profissional. E ainda "existem certas características do ciberbullying que o tornam mais prejudicial que o bullying presencial comum", segundo Ng. "Especialmente a disponibilidade 24 horas por dia, sete dias por semana, e a onipresença da tecnologia e das redes sociais. Antes, você podia sair do ambiente de trabalho e talvez sentir-se um pouco mais seguro, mas agora essa divisão não existe mais", afirma ela. Antes da pandemia, o grupo provavelmente mais responsável pelo bullying no ambiente de trabalho era o dos gerentes, que eram responsáveis por 40% dos incidentes, segundo o estudo do CIPD. E, em 2021, o Workplace Bullying Institute concluiu que o mesmo era válido para o trabalho remoto, com os gerentes responsáveis por 47% dos relatos de bullying. Os chefes de todos os níveis detêm enorme influência sobre o comportamento relativo ao bullying em todas as organizações. "Um dos principais pontos enfatizados pelas pesquisas é o papel do líder para modelar o que é o bom comportamento", afirma Ng. Sem um forte exemplo de liderança inclusiva, "os funcionários podem ter a sensação de que comportamentos de bullying podem passar impunes ou ser aceitáveis". Além dos gerentes, é obrigação das empresas garantir que tenham estruturas estabelecidas para lidar com o bullying remoto, incluindo processos claros para que os funcionários relatem incidentes com a garantia de que eles serão adequadamente tratados — especialmente quando os gerentes são os responsáveis pelo bullying. Isso exige abordagem proativa e, em muitos casos, compreensão mais profunda das formas sutis de manifestação do bullying remoto. Para os funcionários remotos presos em ambientes de trabalho onde o bullying é um problema, uma opção é levar a questão para o RH, especialmente se for cometido por um chefe. É preciso coragem para falar sobre o problema, mas Priyanka Sharma aconselha as pessoas a fazer isso o mais cedo possível, "para que os assuntos possam ser tratados com sentido de urgência, sem causar impacto ao seu bem-estar mental de longo prazo". E as pessoas que denunciam o bullying no trabalho remoto podem também fazer algo que as vítimas presenciais muitas vezes não conseguem: fornecer provas como mensagens, e-mails e logs de chamadas. "O bullying é um comportamento repetitivo e, se você puder mostrar que a experiência é frequente, você tem um argumento mais forte", afirma Kara Ng. "Uma das principais diferenças entre o ciberbullying e o bullying tradicional é que normalmente existe um rastro de provas."
2022-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-62644891
sociedade
'Como me perdoei por matar minha amiga acidentalmente'
No dia da tragédia, Lis Cashin acordou animada. Era 1983, ela tinha apenas 13 anos e havia sido escolhida como arremessadora de dardo em uma competição escolar. Ela parecia muito capaz de conseguir uma medalha. Mas aquela tarde mudou a sua vida para sempre. "Andei até a rampa de largada, peguei o dardo, respirei fundo e joguei o mais forte que pude", conta. No último momento da corrida, o dardo virou para a direita e seguiu em direção à sua amiga Sammy. "Eu vi o dardo acertar bem na cabeça dela, logo acima do olho esquerdo. Ela tropeçou para a frente e havia muito sangue." Fim do Matérias recomendadas Cashin faz uma pausa no relato. Ela engole em seco enquanto se lembra. "Caí de joelhos com a cabeça nas mãos. Não conseguia processar o que estava acontecendo." Sammy morreu quatro dias depois, em razão da lesões causadas pelo acidente. Por décadas, Lis Cashin se culpou duramente pela morte de sua amiga. Ela passou anos afetada pela tragédia e fingindo estar bem. Como aprender a se perdoar depois de uma experiência assim? Caso midiático O acidente virou notícia em todos os meios de comunicação. Enquanto isso, sua família tentou protegê-la de todo aquele barulho na mídia. Mas Lis confessa que ninguém sabia realmente o que fazer. Então, acabou sentindo que só poderia superar isso sozinha. Naquela época, Lis tinha um relacionamento complicado com o padrasto. No caminho para casa do funeral de Sammy, ele disse que o nome da vítima nunca mais seria mencionado em casa. Então, Lis não recebeu ajuda profissional e não conseguiu falar sobre o impacto disso em casa. Lis desenvolveu estresse pós-traumático, embora só tenha sido diagnosticada anos depois. O estresse pós-traumático é uma condição mental caracterizada pela lembrança de momentos passados ​​tempestuosos, insônia e estresse emocional severo. Além do choque imediato, Lis continuou se culpando por décadas, apesar de as investigações terem concluído que a morte de Sammy não foi culpa dela. Por muito tempo, ela fingiu estar bem quando na realidade estava passando por uma intensa turbulência emocional. Lis começou sua terapia de trauma aos 47 anos. Aos poucos, começou a perceber que a morte de Sammy não era sua culpa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Depois da terapia foi como tirar um peso dos meus ombros. No momento em que percebi que não tinha feito nada de errado, percebi também toda a dor e sofrimento que foram criados para mim", diz Lis. "Nunca senti tanta dor dentro de uma sala como quando converso com as pessoas sobre autoperdão", diz Marina Cantacuzino, jornalista e fundadora do The Forgiveness Project (O projeto do perdão), uma instituição de caridade sediada no Reino Unido que usa histórias reais de vítimas e perpetradores de crimes e violência para ajudar as pessoas a explorar ideias sobre perdão e alternativas à vingança. "É muito mais do que quando falo com as pessoas sobre perdoar os outros. O autoperdão nos corta no coração da nossa identidade", acrescenta Cantacuzino. "As pessoas muitas vezes fazem jornadas de autodescoberta, e Cashin é um exemplo muito bom. Demorou décadas para se perdoar e ir ainda mais longe, porque ela percebeu que era uma criança, que foi um acidente, que havia adultos que deve ter assumido total responsabilidade pelo que aconteceu", explica a jornalista. Cashin diz que ela mesma criou esses pensamentos destrutivos sobre si mesma, que ela era má e que deveria ser punida. Foi assim por muitos anos. "Quando descobri, meu coração se abriu, desenvolvi autocompaixão e precisei me perdoar por tudo que fiz comigo por tantos anos", descreve Cashin. Pesquisas mostram que o autoperdão pode reduzir os sintomas de ansiedade e depressão. E também pode melhorar a saúde física. Cantacuzino argumenta que a culpa e a vergonha atrapalham muito o autoperdão. É por isso que é muito importante aceitar quem somos e adotar uma perspectiva mais ampla da vida. Ele dá o exemplo de quando se trata de uma pessoa viciada em drogas. "Talvez você tenha causado muitos danos aos outros e a si mesmo. Você pode ampliar sua perspectiva e se perguntar por que isso aconteceu. Bem, porque é um vício, uma doença. Isso pode mudar a maneira como você se percebe e como sua vida segue adiante", diz Cantacuzino. Segundo o jornalista, empatia e compaixão são ingredientes fundamentais para perdoar a si mesmo. É possível conseguir isso explorando histórias semelhantes de outras pessoas. Então, algo fundamental é desenvolver a autoconsciência e se conhecer melhor. Segundo Cantacuzino, "se não nos conhecemos, muitas vezes nos enganamos e causamos grandes danos ao mundo". "Agora minha missão a cada dia é praticar o amor e o autocuidado. Medito todos os dias. Saio para me exercitar ou aproveitar a natureza", diz Cashin, que agora afirma ter apoio de uma grande rede de amigos e familiares. Também garante que procure ajuda profissional se precisar. "Algumas pessoas dizem que o autoperdão é egoísta, mas é sobre fazer as pazes com as coisas que você fez e não pode mudar. Aceitar que você é um humano que pode falhar como o resto da raça humana", conclui Cantacuzino.
2022-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62654309
sociedade
Minions: como China alterou fim do filme 'A Origem de Gru'
O último filme da franquia 'Meu Malvado Favorito' estreou na China na sexta-feira (19/8) — embora com um final diferente, como descobriram os espectadores locais. 'Minions 2: A Origem de Gru' retrata o anti-herói Gru em sua adolescência e acompanha sua evolução até ele se tornar um supervilão. Alerta: o texto a seguir contém spoilers do filme. Mas, ao contrário do filme original, a versão chinesa não termina com Gru e seu mentor Wild Knuckles cavalgando no pôr do sol. Em vez disso, Wild Knuckles é preso enquanto Gru "se torna um dos mocinhos". Postagens e capturas de tela do filme, compartilhadas no site de microblog chinês Weibo, mostraram que censores adicionaram uma série de imagens estáticas legendadas na sequência de créditos. Fim do Matérias recomendadas Nele, eles explicam que Wild Knuckles foi capturado e preso por 20 anos após um assalto fracassado. Ele também descobre um "amor por atuar" e monta um grupo teatral. Gru, por sua vez, "retornou para sua família" e ser pai de suas três filhas tornou-se sua "maior realização". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A mudança foi ridicularizada por muitas pessoas na China. "A história real está em um universo paralelo", escreveu uma pessoa. Outros disseram que o final alternativo de Gru promoveu convenientemente a política de três filhos da China, enquanto o país tenta aumentar sua taxa de natalidade. A qualidade das fotos legendadas também foram amplamente comparadas a slides de apresentação do PowerPoint. DuSir, um popular blogueiro de cinema com mais de 14 milhões de seguidores no Weibo, chamou as mudanças de "ultrajantes". Em um artigo, ele questionou por que apenas os chineses precisavam de "orientação e cuidados especiais". "Quão fracos e sem discernimento eles acham que nosso público é?", perguntou. Apesar disso, o filme — a quinta parte da série — teve sucesso nas bilheterias, arrecadando um recorde durante a pandemia de cerca de 21,74 milhões de yuans (US$ 3,2 milhões; ou R$ 16,5 milhões) em seu dia de estreia na China, segundo o site de entretenimento Deadline. Não é a primeira vez que um filme estrangeiro popular tem seu final alterado na China, com algumas das regras de censura mais rígidas do mundo. No início deste ano, uma versão do filme cult americano 'Clube da Luta', de 1999, lançado na plataforma chinesa de streaming Tencent Video teve seu final original — em que o protagonista explode vários arranha-céus — removido e substituído por uma mensagem dizendo que as autoridades venceram e salvaram o dia. As mudanças provocaram uma reação negativa, com críticas do diretor David Fincher e do autor Chuck Palahniuk (que escreveu o romance de 1996 do qual o filme foi adaptado). A ONG Human Rights Watch descreveu o novo final como "distópico". Mais tarde, a Tencent reverteu a maioria das mudanças, mantendo apenas cortes de cenas com nudez.
2022-08-23
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62644882
sociedade
Morar em 'república' aos 66 anos: como alta dos aluguéis empurra mais britânicos para imóveis compartilhados
Cada vez mais pessoas acima dos 50 anos vivem em apartamentos ou casas compartilhadas no Reino Unido em razão do aumento dos preços dos aluguéis. Segundo o maior site de aluguéis compartilhados no país, o SpareRoom, desde 2011 houve um aumento de 239% entre as pessoas na faixa de 55 e 64 anos que procuram um lugar compartilhado para morar. Já entre adultos de 45 a 54 anos houve um aumento de 114% nessa mesma busca. Mas a maioria das pessoas que procuram esse tipo de habitação tem entre 25 e 34 anos. Há cinco anos, Karen Miles, de 66 anos, se mudou para uma casa com 13 pessoas para economizar. Antes, ela morava em um apartamento de dois quartos nos arredores da cidade de Eastbourne, no sudeste da Inglaterra, mas começou a ter dificuldades para pagar o aluguel e as contas do imóvel. Fim do Matérias recomendadas Hoje, ela divide uma casa com pessoas que têm de 20 a 50 anos. Embora ela se dê bem com todos, eles não tendem a socializar juntos e Karen, que trabalha meio período como governanta, diz que conviver com pessoas mais jovens pode ser problemático. Anteriormente, ela teve problemas com alguns colegas de quarto por causa do barulho que faziam e porque a cozinha e o banheiro compartilhados costumavam ficar sujos rapidamente. Porém, ela reconhece que viver com outras pessoas também tem seus benefícios, como ter alguém por perto para conversar. "Se eu me mudasse para algum lugar sozinha, acredito que provavelmente me sentiria um pouco solitária", disse à BBC. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Karen está tentando encontrar um apartamento de um quarto para alugar, mas com o aumento dos preços, ela teve problemas para encontrar algo acessível. Ela também queria compartilhar moradia com amigos, mas diz que pode ser difícil para as pessoas mais velhas encontrar alguém da mesma idade para dividir o aluguel. "Minha amigas têm maridos e famílias, então é difícil", explicou. Diretor de comunicação da SpareRoom, Matt Hutchinson afirmou que a principal razão pela qual mais idosos estão compartilhando a casa é a situação financeira. Segundo ele disse à BBC, o aumento no custo para alugar ou comprar uma casa significa que mais pessoas compartilham por mais tempo. Por exemplo, pessoas que terminaram um relacionamento longo poderiam, anteriormente, comprar ou alugar um apartamento de um quarto, mas isso acaba se tornando mais difícil no atual cenário. Hutchinson acredita que a tendência continuará à medida que os valores de habitação e outros custos aumentarem ainda mais. Sarah Coles, analista de finanças pessoais da empresa financeira Hargreaves Lansdown, disse que os números oficiais também indicam que os inquilinos estão envelhecendo. E ela acrescentou que os números do Escritório de Estatísticas Nacionais (ONS) apontam que a crise do custo de vida é sentida mais pelos inquilinos do que por aqueles que são donos dos seus próprios imóveis, pois os locatários gastam uma proporção maior de sua renda em moradia. Além das dificuldades para encontrar outras pessoas da mesma idade para dividir a casa, muitos sofrem com o fato de ainda existir o estigma de morar em um local compartilhado a partir de uma certa idade. Susan Laybourn, uma mulher de 58 anos que se mudou para uma moradia compartilhada para economizar dinheiro em março de 2020, diz que inicialmente se sentiu "quase envergonhada" por não poder pagar o aluguel sozinha. "Agora eu aceitei e tento ver o que há de positivo nisso, em vez de negativo", disse ela.
2022-08-22
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62640121
sociedade
O povoado que foi evacuado por engano e se tornou cidade-fantasma na Espanha
A cidade medieval de Granadilla é uma cidade-fantasma. Turistas podem podem visitar as casas vazias, caminhar pelas ruas muradas e ver a cidade do alto do castelo. Mas ninguém mora lá — desde que todos os moradores foram removidos na década de 1960. Fundada por muçulmanos no século 9, Granadilla, localizada na província de Cáceres, no oeste de Espanha e na fronteira com Portugal, ocupava uma localização estratégica e permitia aos seus ocupantes vigiar a Ruta de la Plata, uma antiga rota de comércio e viagens que atravessava, de norte a sul, parte do que são hoje as regiões de Andaluzia, Extremadura, Castilla y León e Astúrias. Ao longo dos anos, o domínio da cidade mudou de mãos, e hoje é uma das poucas cidades-fortaleza espanholas onde as antigas muralhas ainda estão intactas. Mas a comunidade que lá viveu até bem depois da metade do século 20 não existe mais. A derrocada de Granadilla começou na década de 1950, durante a ditadura do general Francisco Franco (1936-1975), quando a Espanha embarcou em um grande projeto de construção de barragens como forma de impulsionar a economia durante o período de isolamento internacional. Fim do Matérias recomendadas Um desses esforços foi o reservatório Gabriel y Galán, no rio Alagón. Em 1955, as autoridades decretaram que Granadilla estava na planície que ia ser inundada pela obra e, portanto, teve de ser evacuada. Ao longo de 10 anos, de 1959 a 1969, os mil moradores foram despejados à força, muitos deles realocados para assentamentos de colonização próximos à cidade. Quando a água começou a subir em 1963, cobriu todas as vias de acesso à cidade, exceto uma, transformando-a em uma península. Mas a cidade em si nunca foi inundada. No entanto, os moradores não foram autorizados a retornar. A experiência foi traumática para eles, muitos dos quais ainda se sentem frustrados. "Foi uma piada", diz Eugenio Jiménez, presidente da Associação Filhos de Granadilla. "Eles nos expulsaram alegando que a barragem ia inundar a cidade, o que era impossível, porque a cidade é mais alta que a barragem. Mas era época de ditadura e não tínhamos direitos. Mas o que realmente me frustra é que, em tempos democráticos, tenho lutado pela recuperação de Granadilla com a antiga associação e nenhum governo nos ouviu", lamentou. Purificación Jiménez, ex-residente, também relembrou a dificuldade daqueles anos. "Lembro que toda vez que uma família saía da cidade, todos saíam de casa para se despedir e chorar", disse ele. Ainda hoje, os antigos moradores da cidade não podem recuperar suas casas, porque o governo mantém o decreto de inundação assinado por Franco. No entanto, o local pode ser visitado. A cidade foi designada Sítio Histórico-Artístico em 1980 e agora funciona como um museu gratuito ao ar livre. Quanto aos habitantes, eles e seus descendentes se reúnem duas vezes por ano em Granadilla, no Dia de Todos os Santos (1º de novembro) e no dia da Assunção de Maria (15 de agosto).
2022-08-22
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62627833
sociedade
'Como descobri que meu filho é superdotado': os indícios precoces de altas habilidades
O conceito de superdotação é polêmico. Por um lado, neurocientistas, neuropsicólogos e afins afirmam que apenas crianças com QI (quociente de inteligência) acima da média são superdotadas. Do outro, psicopedagogas e treinadores de esportes, por exemplo, dizem que a superdotação é mais ampla e que crianças com altas habilidades em diversas áreas também são superdotadas. A discussão vai longe. Contudo, há um consenso de que crianças que realizam um teste de QI, métrica que mensura a inteligência, e alcançam um percentil acima de 97, o equivalente a 130 pontos em testes utilizados no Brasil, são superdotadas. O paulistano Theo Costa Ribeiro, de seis anos, é superdotado. Ele pronunciou suas primeiras palavras aos seis meses e com um ano e meio já formava frases tranquilamente, época em que começou a frequentar uma escolinha. "Ele via uma palavra e pedia para a gente explicar o que era cada letra, e depois continuava perguntando, mas não eram perguntas bobinhas", conta à BBC News Brasil, Ygor Ribeiro, de 33 anos, pai de Theo, ressaltando que a família não forçou o menino a nada, mas também nunca ignorou suas curiosidades. Na pandemia, enquanto as crianças estavam aprendendo as letras, Theo, então com três anos, já lia, escrevia e fazia cálculos. Em julho do ano passado, ele voltou para a escola e em agosto os pais foram chamados para uma reunião. Nessa conversa, eles foram informados que o desempenho do menino era muito acima da média e sugeriram que ele fizesse um teste de inteligência. Fim do Matérias recomendadas "Em seguida nós fomos atrás de uma neuropsicóloga, que fez testes de inteligência e também da parte emocional e motora. Depois, ela deu um laudo que nos surpreendeu um pouco dizendo que o nível dele vai além de superdotação. E nós perguntamos: tá, mais e o que a gente faz com esse menino?", recorda-se Ribeiro, aos risos. O laudo de Theo, tanto intelectual quando emocional, apontou um nível de inteligência equivalente ao de uma pessoa entre 14 e 15 anos, sendo que ele tinha cinco. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Atualmente, Theo está cursando o 2º ano em uma escola particular. "Ele pulou o primeiro ano e agora nós estamos vendo com a escola para no ano que vem ele ir para o 4º ano, invés do 3º", diz Ribeiro. "Em alguns momentos ele é uma criança de seis anos que gosta de brincar com os dinossauros, assistir a desenhos animados e jogar videogame, mas, em outros, ele ativa esse "módulo" adolescente, e daí você consegue ter uma discussão filosófica", diz o pai. "Nós já tivemos que explicar como acontece a reprodução humana, o que é o código genético, porque uma criança é loira e outra é morena. Ele é uma mistura de criança e adolescente", define o pai. E as surpresas não pararam por aí: em fevereiro desse ano Theo foi o brasileiro mais novo a entrar para a Mensa internacional — sociedade que reúne pessoas de alto QI. Hoje, além de frequentar a escola, ele faz aulas de futebol e de música. "O que está faltando são estímulos do governo e das nossas escolas para dar a essas crianças o que elas precisam para que sejam "usadas" da melhor maneira possível. Nós, por exemplo, tivemos que entrar com um recurso judicial para conseguir adiantar o Theo do 1º ano. Mas, na verdade, nós teríamos que ter um incentivo para que isso fosse feito, não ao contrário. Então, é como se o governo educacional estivesse segurando essas crianças intencionalmente para elas não avançarem", lamenta Ribeiro. O Ministério da Educação (MEC) foi contatado diversas vezes por e-mail e telefone para explicar o motivo de os pais terem que entrar na justiça para que essas crianças avancem na escola. No entanto, até a publicação desta reportagem, não tivemos resposta desse e nem de outros questionamentos. Nicolle é uma criança superdotada apaixonada por matemática, mas sonha em se tornar médica Nicolle de Paula Peixoto, de oito anos, pronunciou sua primeira palavra aos seis meses: papai. "Com um ano, eu comprava bonecas, mas a brincadeira dela era lápis e papel. E as pessoas diziam que ela era diferente, mas eu achava que era sentimento de mãe", conta Jéssica Verônica de Paula Peixoto, 32 anos, mãe da Nicolle. Mas os indícios não paravam. Com dois anos, ela cantava músicas e frequentava uma creche. "Nessa época, eu recebi uma ficha apontando que ela já se destacava das demais crianças", diz a mãe. No ano passado, através de um sorteio que contou com a inscrição de 2.500 crianças, Nicolle, então com sete anos, foi contemplada ao lado de outras 149 para ingressar numa escola federal no Rio de Janeiro. E foi lá que os pais receberam a indicação de realizar um teste de QI na menina. "Até aí nós não sabíamos que ela era superdotada", diz Peixoto. Atualmente, Nicolle está no 3º ano do Ensino Fundamental. "E agora nós vamos tentar pular de série porque temos um laudo respaldando isso", explica a mãe. Nicolle é muito curiosa e já sonha em ser médica, embora sua paixão seja matemática. "Um dia, nós estávamos num culto na igreja e ela sentou ao lado de uma colega que levou um livro de matemática do 6º ano. A menina estava fazendo cálculos de mínimo múltiplo comum (mmc), e a Nicolle observando. Quando chegou em casa, ela reproduziu tudo e acertou", comenta a mãe, lembrando que em outra ocasião a menina pediu ao pai para ensiná-la a raiz quadrada. "Essa curiosidade e vontade de aprender está dentro dela", argumenta Peixoto. Quando Nicolle tinha seis anos, ela também pediu ao pai para ensiná-la a tocar teclado, e ele apenas lhe explicou o básico. "Daí quando nós olhamos ela sentou no banco e começou a tocar uma música sozinha", lembra a mãe. A menina também não apresenta nenhuma dificuldade de relacionamento, ao contrário. "Eu não sei o que ela tem, mas ela tem muita facilidade para fazer amizade e consegue se adaptar bem a qualquer ambiente", afirma a mãe. Agora, ela faz parte da Mensa Brasil (sociedade de alto QI) onde integra a equipe de jovens brilhantes, e segue com os estudos normalmente. "Ela diz para mim que nada mudou na vida dela e que ela continua sendo a mesma Nicolle de sempre, porque eu tento ensiná-la que ela não é melhor do que ninguém", conclui Peixoto. Para começar, apesar de ser um bom indício, sinais de precocidade não define superdotação — que só pode ser considerada conclusiva após uma bateria de testes, especialmente de QI, que visam entender a capacidade de processamento intelectual. A avaliação é feita por psicólogos, neuropsicólogos e/ou psicopedagogos e especialistas no assunto. Dito isto, algumas características apontadas pela Secretaria da Educação Especial do MEC (2006) podem indicar uma eventual superdotação. Estas são: Em contrapartida, crianças que não são identificadas precocemente mostram-se desinteressadas pela escola e podem ter problemas de conduta. "Há muitos superdotados que não tiram boas notas na escola por falta de interesse nos estudos, falta de estímulo. Às vezes, o método de ensino repetitivo e o contexto da sala de aula irrita muito o superdotado e ele não desenvolve suas habilidades", assinala Fabiano de Abreu, PhD em neurociências e biólogo. No Brasil, não existe um sistema de identificação para pessoas superdotadas. Elas são "descobertas" pelos próprios familiares, escola ou amigos. Frente a isso, pesquisadores estimam que o número de crianças identificadas seja muito menor do que a realidade. É frequente na imprensa, em publicações governamentais e até em artigos científicos a menção ao que seria uma estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS), de que cerca de 5% da população de todo o mundo teria superdotação. Mas a OMS disse à BBC News Brasil que não reconhece esse dado e que não tem estimativas sobre o percentual de superdotados. De acordo com o Censo Escolar do Brasil, realizado em 2020, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apenas 24.424 estudantes identificados com perfil de altas habilidades/superdotação estavam matriculados na educação especial. "Então esse número não chega nem perto dos 5% que os especialistas dizem que temos", comenta Priscila Zaia, supervisora nacional de psicologia da Mensa Brasil. Muitos superdotados fazem parte de sociedades de alto QI. As mais renomadas são: Para entrar na Mensa, a criança precisa tirar acima de 131 pontos em um teste de QI, na Intertel acima de 135 e na Triple Nine Society, que é a mais restrita, mais de 155. "É importante ressaltar que as sociedades não aceitam os mesmos testes. As mais restritas não aceitam os testes das demais", pontua Abreu, o neurocientista. De acordo com o Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD), em geral, podemos classificar os superdotados em dois grandes grupos. "O primeiro é aquele dos superdotados acadêmicos-- que tiram boas notas e são muito bons em aprender os conhecimentos científicos. O segundo grande grupo são chamados de produtivos e/ou criativos", disse a entidade em nota enviada à BBC News Brasil. Para a supervisora de psicologia da Mensa Brasil, a inteligência e as habilidades muito elevadas são uma parte da superdotação. "Porém, para ser considerado superdotado, o indivíduo também deve apresentar outras características associadas aos aspectos emocionais e sociais. É uma pessoa mais sensível e com mais empatia, tem um senso de justiça muito aguçado, é mais observadora, atenta aos detalhes. E a gente tem também habilidades que se apresentam além da área intelectual, que vão aparecer na música, nos esportes, nas artes, na dança", avalia Zaia. Patrícia Gonçalves, neuropsicopedagoga, doutora em cognição e especialista em superdotação concorda e ressalta que a lei diz que o conceito de superdotação se refere àqueles que apresentam um potencial elevado nas mais variadas áreas do conhecimento, sejam eles isolados ou combinados. Mas o assunto é polêmico. "Não há um consenso na literatura científica, mas, para mim, a corrente que faz mais sentido separa a superdotação que, necessariamente, é intelectual", defende Patrícia Rzezak, neuropsicóloga, doutora em Ciência pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Segundo a especialista, que é sócia do Instituto Brasileiro de Superdotação e Dupla Excepcionalidade, além da superdotação, há pessoas que têm altas habilidades e, essas sim, podem ser específicas. "Posso ter uma criança com uma habilidade artística ou atlética extremamente desenvolvida, ou um potencial específico voltado para área de exatas. Mas eu não chamo isso de superdotação, mas sim de altas habilidades. Mas cada especialidade tem um conceito", pondera Rzezak. Segundo os especialistas, crianças superdotadas têm um volume maior de massa cinzenta em algumas regiões cerebrais, e isso faz com que as sinapses (conexões) ajam mais rápido do que o normal. Isso ocorre porque a matéria cinzenta influencia o córtex frontal, bem como certas estruturas que afetam o pensamento. "O cérebro de pessoas superdotadas é diferente, por isso realmente elas são mais desenvolvidas intelectualmente. Elas têm os neurônios maiores, mais robustos e com maior alcance, e as conexões sinápticas são mais intensas e duradouras fazendo com que o cérebro (não a cabeça!) seja maior. E tudo isso envolve o córtex pré-frontal, que responde pela tomada de decisões, lógica, prevenção, memória e atenção", explica Abreu, o neurocientista. A supervisora de psicologia da Mensa Brasil, Priscila Zaia, lembra que a superdotação não é um quadro médico. "Ela não se constitui como um transtorno do neurodesenvolvimento, mas sim como um funcionamento do indivíduo. Nós entendemos a superdotação como um constructo, um aspecto psicológico", diz. No Brasil, as crianças superdotadas têm o direito assegurado por lei de entrarem em um programa de inclusão educacional, a chamada educação especial, voltada a todos os indivíduos que possuem qualquer tipo de dificuldade (auditiva, visual, cognitiva) ou facilidade de aprendizagem (altas habilidades/superdotação), em todas as fases de ensino. "É uma educação diferenciada para aqueles que precisam de algo que não consta no currículo regular", explica Zaia. A educação especial é mandatória para a rede pública e privada de ensino, mas ela só pode ser concretizada se houver recursos. No caso das escolas públicas, esse atendimento também pode ser feito através de núcleos e centros especializados ou parcerias com instituições de ensino superior. "Não nos faltam leis para assegurar esse direito, mas tanto a escola pública quanto a particular, ainda tem práticas muito embrionárias no sentido de desenvolver os respectivos potenciais dos superdotados", conclui Gonçalves, neuropsicopedagoga e especialista em superdotação.
2022-08-22
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62611143
sociedade
A fuga 'milagrosa' da menina sequestrada há 9 anos que conseguiu encontrar família
Depois de nove longos anos, Pooja Gaud pode finalmente descansar no colo de sua mãe. Pooja desapareceu em 22 de janeiro de 2013, quando tinha sete anos. Ela diz que um casal a pegou do lado de fora de sua escola na cidade de Mumbai, no estado indiano de Maharashtra, no oeste da Índia. Em 4 de agosto, ela foi encontrada após o episódio que sua mãe descreve como "uma fuga milagrosa". Agora ela tem 16 anos. "Perdi a esperança de encontrar minha filha. Mas os deuses foram gentis comigo", diz a mãe, Poonam Gaud. A polícia alegou que a menina foi sequestrada por Harry D'Souza e sua esposa, Soni D'Souza, porque o casal não tinha filhos. Fim do Matérias recomendadas Harry D'Souza foi preso. Antes de desaparecer, Pooja morava com seus dois irmãos e seus pais em uma pequena casa em uma favela suburbana. No dia em que ela desapareceu, ela tinha ido para a escola com seu irmão mais velho, mas eles brigaram e seu irmão entrou na escola e a deixou para trás porque estava atrasado. Foi quando o casal prometeu comprar um sorvete para ela e a levou embora. Desde que Pooja voltou para casa, seus vizinhos vêm visitá-la. Pooja diz que o casal inicialmente a levou para Goa e depois para Karnataka, estados no oeste e sul da Índia, e ameaçou machucá-la se ela chorasse ou chamasse atenção. Ela diz que foi autorizada a frequentar a escola por um curto período de tempo. No entanto, depois que o casal teve um filho, eles a tiraram e todos se mudaram para Mumbai. Pooja diz que o abuso piorou depois que o bebê nasceu. "Eles me batiamcom um cinto, me chutavam e davam socos. Uma vez me bateram com um rolo com tanta força que minhas costas começaram a sangrar. Também me obrigaram a fazer trabalhos domésticos e trabalhar de 12 a 24 horas fora de casa." A casa onde moravam os sequestradores era perto da família de Pooja, mas ela não conhecia as estradas, estava sempre sendo vigiada, não tinha dinheiro nem telefone, e por isso, pedir ajuda era difícil. Uma fuga milagrosa Um dia, Pooja pegou o celular do casal enquanto eles dormiam e escreveu seu nome no YouTube. Ela encontrou vídeos e pôsteres mencionando seu sequestro e números para os quais ela poderia pedir ajuda. "Foi quando decidi pedir ajuda e fugir", diz ela. Mas levou sete meses para ela criar coragem para discutir o assunto com Pramila Devendra, 35, uma empregada doméstica que trabalhava na mesma casa onde Pooja trabalhava como babá. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Devendra imediatamente concordou em ajudá-la. Um dos números no pôster desaparecido pertencia a Rafiq, um vizinho da mãe de Pooja. Primeiro, mãe e filha conversaram por videochamada e depois foi marcada uma reunião. Sua mãe diz que procurou uma marca de nascença que só ela sabia que existia em sua filha e, ao encontrá-la, se encheu de emoção. "Todas as minhas dúvidas desapareceram imediatamente. Eu sabia que havia encontrado minha filha", disse. Devendra está feliz por ter feito parte dessa reunião. "Toda mãe deve ajudar uma criança que vem pedir ajuda. Podemos não ser suas mães biológicas, mas ainda somos mães." Uma vez reunidos, Pooja, alguns parentes e Devendra foram à delegacia para registrar uma queixa. "Contei tudo à polícia. Até contei onde moravam meus sequestradores", disse a adolescente. Graças à sua história, a polícia conseguiu identificar e prender o acusado. Milind Kurde, inspetor-chefe da delegacia de polícia DN Nagar de Mumbai, disse à BBC que vários casos foram registrados contra os acusados - ​​de sequestro, ameaças, violência física e violação das leis de trabalho infantil. O retorno de Pooja para casa trouxe alegria não apenas para sua família, mas para todos que a conheciam. Os vizinhos que a viram quando ela era pequena agora vão visitá-la. Enquanto isso, sua mãe está tentando recuperar o tempo perdido com sua filha cozinhando sua refeição favorita e penteando seu cabelo. A família tenta passar o máximo de tempo possível juntos, mas a vida no momento é difícil para eles. O pai de Pooja, que era o único sustento da família, morreu por causa de um câncer há quatro meses. Então, sua mãe começou a vender sanduíches em uma estação de trem para sustentar seus três filhos. Mas os lucros são escassos e ela luta para sobreviver. "Agora também tenho despesas legais. Nossa condição é tão precária que se eu faltar um dia de trabalho, não teremos dinheiro para comer no dia seguinte." Pooja ainda está processando seu trauma. Ele tem pesadelos e se sente triste por nunca mais poder ver seu pai novamente. Para sua segurança, ela passa a maior parte do tempo em casa ou é acompanhada por um familiar quando sai. "Quero ajudar minha mãe financeiramente, mas eles não me deixam. Também quero estudar", diz. Apesar desses problemas, a mãe afirma que não poderia estar mais feliz. "O trabalho é exaustivo, mas cada vez que vejo Pooja, encontro forças novamente. Estou tão feliz que ela está de volta." Este texto foi originalmente publicado em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62627828
2022-08-21
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62627828
sociedade
O macabro mistério da morte de Geli Raubal, sobrinha de Hitler e ‘seu verdadeiro amor’
"Trevas misteriosas" envolvem a morte desta "beleza incomum", segundo noticiou o jornal alemão Fränkische Tagespost, dois dias depois que o corpo de Angela Maria Raubal foi descoberto no apartamento de Adolf Hitler em Munique, na Alemanha. Conhecida como Geli, Angela era meia-sobrinha de Hitler. E, segundo Joachim Fest, respeitado biógrafo alemão do líder nazista, "seu grande amor, um amor tabu". A natureza física exata desse "amor" é tema de um acalorado debate entre os historiadores, mas poucos duvidam de que ela tenha sido, como disse o historiador norte-americano William Shirer, "a única história de amor verdadeiramente profunda da sua vida". Em 19 de setembro de 1931, Raubal foi encontrada morta no seu quarto no apartamento de Hitler em Munique. Seu corpo estava em uma poça do seu próprio sangue, com um ferimento a bala no peito, ao lado da pistola do tio. O caso nunca foi investigado e nem mesmo foi feita uma autópsia - o que poderia ter sufocado os rumores existentes. A falta de investigação acabou por alimentar um enigma que permanece sem solução até hoje, nove décadas depois. Fim do Matérias recomendadas Não se sabe - e provavelmente nunca será descoberto - o grau de culpa de Hitler no ocorrido. Sabe-se apenas que o episódio o abalou profundamente. Após a morte da sobrinha, Hitler caiu em profunda depressão, entrando quase em estado de coma, segundo familiares próximos. Foi preciso vigiá-lo, pois ele falava em suicídio. Conta-se que foi ali que ele se tornou vegetariano, porque ver carne o fazia recordar-se do cadáver de Geli Raubal. E, quando se recuperou, ele ordenou que o quarto fosse lacrado e mantido como um santuário, que ele ornamentava com flores. "A morte de Geli teve um efeito tão devastador em Hitler que [...] mudou sua relação com todas as outras pessoas", declarou Hermann Göring, o segundo homem mais importante da Alemanha nazista, perante os tribunais de Nuremberg, que julgaram os crimes nazistas. E Heinrich Hoffmann, fotógrafo e amigo íntimo de Hitler, foi mais além. Para ele, se Raubal não tivesse morrido, tudo poderia ter sido diferente. Segundo Hoffmann, sua morte fez com que "as sementes da desumanidade começassem a brotar dentro de Hitler". Mas quem foi essa mulher que marcou tão profundamente um dos personagens mais infames da história? Geli Raubal entrou em cheio na vida de Hitler quando tinha 17 anos e ele, 36. A mãe de Raubal, Angela, trabalhava como governanta em Viena, na Áustria, e seu "tio Alf" a convidou para trabalhar na mesma função, na sua casa em Munique. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele já era líder do partido nacional-socialista e logo caiu aos pés da sobrinha, que descreveu como de uma "beleza incomum". Raubal o fazia comportar-se "como um homem apaixonado" que "a acompanhava muito de perto", como se fosse um "adolescente apaixonado", segundo o empresário Ernst Hanfstaengl, que, por muito tempo, foi amigo próximo e colaborador de Hitler. Já Konrad Heiden, um dos primeiros e mais respeitados jornalistas a escrever sobre Hitler, relatou que ele passeava com a sobrinha pelas cidades, "mostrando a ela como o 'tio Alf' conseguia encantar as massas". Mas ela não ficava para trás. "É uma adolescente alta e atraente, sempre alegre e tão inteligente com as palavras quanto seu tio", segundo Rudolf Hess, que se tornaria lugar-tenente de Hitler em 1927. "Ele mesmo dificilmente conseguia competir com sua inteligência." Em Munique, ele desfilava de braços dados com ela, levando-a a cafés, reuniões sociais e espetáculos. Também pagava aulas de canto, sonhando que, algum dia, chegaria a vê-la encenando uma das heroínas das óperas wagnerianas, suas preferidas. E, enquanto aumentava seu poder e fortuna, mais a relação se consolidava. Quando Hitler se mudou para seu luxuoso apartamento na elegante praça Prinzregentenplatz, em Munique, ele pediu para Angela mudar-se para sua casa maior, chamada Berghof, em Berchtesgaden, no sul da Alemanha, mas Geli ficou com ele, em um dos seus nove quartos. Na época, ela tinha 21 anos e havia deixado de ser a filha da governanta para ser rainha da corte do chamado "rei de Munique", provocando inveja e admiração. "Uma mulher era admitida no nosso círculo íntimo muito raramente", recorda Hoffmann, "mas nunca era permitido que ela ocupasse posição central. Ela tinha que permanecer vista, mas não ouvida. [...] Ocasionalmente, ela podia ter uma pequena participação na conversa, mas nunca lhe era permitido defender um ponto de vista ou contradizer Hitler." Nem mesmo Eva Braun - uma das funcionárias de Hoffmann que Hitler havia conhecido pela primeira vez no outono de 1929 - viria a ser exceção, apesar do seu longo relacionamento com o líder nazista. "Para ele", segundo o fotógrafo, "ela era apenas uma pequena coisa atraente, na qual, apesar dos seus pontos de vista inconsequentes e da pouca inteligência, ou talvez exatamente por causa disso, encontrou o tipo de relaxamento e descanso que procurava. [...] Mas ele nunca se comportou, no falar, olhares ou gestos, de forma que sugerisse um interesse mais profundo por ela." Mas, com a sobrinha, era muito diferente. "Quando Geli estava à mesa, tudo girava em torno dela", segundo Hoffmann, "e Hitler nunca tentava dominar a conversa." "Geli era mágica. Graças às suas maneiras naturais, totalmente livres de afetação, sua mera presença colocava todos os presentes no melhor dos estados de espírito. Todos falavam bem dela, sobretudo seu tio, Adolf Hitler", relata o fotógrafo. Na verdade, nem todos. Hanfstaengl chamou-a de "pequena prostituta de cabeça vazia, com o tipo de flor tosca de uma servente". E acrescentou que, embora vivesse "perfeitamente contente e asseada com suas roupas finas, certamente nunca demonstrou nenhuma impressão de reciprocidade à ternura retorcida de Hitler". Mas poucas pessoas do círculo pareciam sentir este tipo de aversão. A filha do fotógrafo de Hitler, Henriette Hoffmann, era amiga de Raubal. Para ela, Geli "era grosseira, provocadora e um pouco briguenta", mas também destacou que era "alta, alegre e segura de si mesma. As fotos não faziam justiça aos seus encantos. Nenhuma das fotos tiradas pelo meu pai a capturou." "Geli parecia mais uma criança", afirmou depois da guerra Patrick Hitler, filho do meio-irmão de Adolf, Alois Hitler. "Não se poderia dizer que fosse realmente bonita", segundo ele, "mas tinha um grande encanto natural. Ela costumava sair sem guarda-chuva e vestia roupas muito simples, saias plissadas e blusas brancas. Nenhuma joia, exceto por uma suástica de ouro que ganhou de presente do tio Adolf, que ela chamava de 'tio Alf'." Para o motorista de Hitler, Emil Maurice, Raubal era "uma princesa, seus grandes olhos eram um poema e ela tinha um cabelo magnífico. [...] As pessoas na rua se viravam [para vê-la]", segundo declarou ao escritor italiano Nerin E. Gun, autor do livro Eva Braun: a Amante de Hitler (Ed. Record). E é exatamente um episódio com Maurice que parece dar a chave de outro aspecto da sua relação. Várias fontes indicam que, embora Hitler gostasse de exibir sua sobrinha para que fosse admirada, seu primeiro biógrafo, Allan Bullock, indicou que ele era consumido pelo que chamou de "posse zelosa". Hoffmann cita Hitler no seu livro Hitler era meu Amigo (1955), dizendo: "estou tão preocupado com o futuro de Geli que sinto que devo zelar por ela". Ele prossegue: "amo Geli e poderia casar-me com ela. Mas você sabe qual é o meu ponto de vista. Quero permanecer solteiro. Assim, mantenho o direito de exercer influência sobre o seu círculo de amigos até que ela encontre o homem apropriado. O que Geli vê como compulsão é simplesmente prudência. Quero evitar que ela caia nas mãos de alguém inadequado." Segundo Henriette Hoffmann, Geli ficou cada vez mais indiferente a Hitler, enquanto ele se apaixonava cada vez mais por ela. E acabou se apaixonando por um desses "inadequados": Maurice, que chegou a admitir ter-se "apaixonado loucamente" por Geli. Ela contou que Geli não queria mais ser amada por Hitler e preferia sua relação com o motorista. "Ser amada não tem graça, mas amar um homem, você sabe, amá-lo, é para isso que serve a vida. E, quando você puder amar e ser amada ao mesmo tempo, é o paraíso." Quando Hitler ficou sabendo, rejeitou violentamente a ideia de um compromisso entre eles, pelo menos por um certo tempo, segundo uma carta de Geli de dezembro de 1928. "Tio Adolf insiste que devemos esperar dois anos", diz a carta. "Pense, Emil, por dois anos inteiros só poderemos nos beijar de vez em quando e sempre com a supervisão do tio Adolf. Só posso dar a você meu amor e ser incondicionalmente fiel. Eu te amo muito, infinitamente." Maurice foi despedido. Geli Raubal continuou recebendo afeto de Hitler, mas não se sabe qual a forma desse afeto na intimidade. Muitos parentes próximos concordam que cada vez era mais evidente que, para ela, nem o luxo, nem a celebridade pública, compensavam a opressão do seu confinamento. Até que, nos últimos meses de vida, Raubal estava tentando escapar desesperadamente. O dia 18 de setembro de 1931, uma sexta-feira, foi o último dia de vida de Geli Raubal. Separadamente, ela e seu tio Alf tinham planos de viajar. Hitler tinha um comício no sábado à noite em Hamburgo, na Alemanha, para iniciar sua próxima campanha presidencial. E Raubal queria ir a Viena - para sempre, segundo alguns. Quase todas as fontes, exceto Hitler, garantem que os dois tiveram uma briga séria, pois ele ordenou que ela ficasse em casa durante a sua ausência. Houve um momento em que ela se trancou no seu quarto. Seu último ato conhecido foi começar a escrever uma carta que dizia: "quando for a Viena, espero que muito em breve, iremos para Semmering e..." Não terminou a primeira frase. Aliás, não chegou sequer a completar a última palavra: "e", em alemão, é "und" - e ela conseguiu escrever apenas "un". Ela se tornou uma das peças de um quebra-cabeça que nunca foi completado. Geli Raubal foi encontrada morta e a informação divulgada era de que ela teria se suicidado. Mas por que parou de escrever naquele momento? E, sobretudo, por que alguém a ponto de tirar a vida escreveria algo tão otimista? Também se comentou que teria sido um acidente, conforme a versão dos fatos preferida por Hitler que, aterrorizado porque o escândalo poderia encerrar abruptamente suas aspirações ao poder, escreveu para o jornal Münchner Post: Mas existe uma quantidade vertiginosa de versões divergentes sobre o que aconteceu. Uma dessas versões afirma que Heinrich Himmler, o novo chefe da SS (a polícia nazista), visitou Raubal e a convenceu a suicidar-se por ter traído Hitler. Segundo outra, o próprio Hitler a levou a cometer suicídio porque ela estava grávida de um amante judeu, ou ele mesmo a teria assassinado. A única coisa que se sabe ao certo é que, em algum momento entre a tarde de 18 de setembro e a manhã do dia 19, Geli Raubal, com 23 anos de idade, recebeu um disparo. Um mês depois, Joseph Goebbels, que se tornaria Ministro da Propaganda do Terceiro Reich, comentou sobre uma conversa com Hitler em que ele "falou de Geli. Ele a amava muito. Tinha lágrimas nos olhos... Este homem, no ápice do sucesso, não tem nenhuma felicidade pessoal." Hitler também contou ao seu conselheiro e confidente Otto Wagener que sentia muito a falta dela. "Sua risada alegre sempre foi uma verdadeira alegria e suas conversas inofensivas eram muito divertidas", segundo ele. Mas acrescentou: "agora sou completamente livre, interna e externamente. Agora pertenço somente ao povo alemão e à minha missão". O que Goebbels e Wagener não sabiam era que, pouco depois da morte da sobrinha, Hitler havia intensificado suas relações com uma mulher que desempenharia o papel mais importante na sua vida, depois de sua mãe: Eva Braun. Este texto foi originalmente publicado em: https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62557155
2022-08-21
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62557155
sociedade
O mitológico relato de Aristófanes que deixou a todos procurando sua 'metade da laranja'
Você já encontrou sua "metade da laranja", sua "cara-metade", sua alma gêmea? A ideia de que, em algum lugar do mundo, existe uma pessoa que complementa você como nenhuma outra é parte de uma das explicações mais estranhas e encantadoras já inventadas sobre a razão pela qual nos apaixonamos. Esta ideia surgiu da boca do dramaturgo grego Aristófanes, que nasceu em Atenas, logo abaixo da Acrópole, por volta do ano 450 a.C. Em meados da década de 420 a.C., ele começou a encenar suas grandes comédias, bastante políticas ou fantásticas — incluindo animais que falavam e viagens ao céu e ao submundo. Mas sua visão do amor foi expressa em uma festa no ano 416 a.C. Com ele, estavam outros atenienses famosos, como o filósofo Sócrates e seu discípulo Platão, que escreveu o ocorrido em um diálogo maravilhoso chamado O Banquete, ou Simpósio. Fim do Matérias recomendadas Simpósio, ou O Banquete, é um texto grego célebre que examina a natureza do amor: o que é, de onde vem e o que significa estar apaixonado. Trata-se de um diálogo dramático em uma casa particular, que começa com os convidados concordando que é melhor não beber demais. Depois, eles decidem que sete pessoas farão um discurso enaltecendo o amor. O Banquete é considerado uma das obras-primas da filosofia ocidental e apresentou a ideia do amor platônico. Os convidados do banquete tentavam encontrar o que o amor tem de significativo. Sócrates, por exemplo, destacou que aprender a amar é um passo para descobrir a beleza e a verdade superior, como a que oferece a filosofia. Já Aristófanes estava decidido a ser o terceiro a falar, mas teve uma crise de soluços. Por isso, um médico chamado Erixímaco falou sobre a natureza médica do amor, enquanto Aristófanes se recuperava. E, quando chegou sua vez, em vez de apresentar um discurso intelectual, Aristófanes inventou um mito. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Aristófanes explica nossa sensação de carência, nossa sensação de solidão até encontrarmos nossa outra metade por meio de uma nova versão das origens da raça humana", explica Edith Hall, professora de estudos clássicos da Universidade King's College London, no Reino Unido, na série History of Ideas ("História das Ideias"), da BBC Rádio 4. "É preciso primeiro aprender a natureza humana e suas modificações. Nossa antiga natureza não era a mesma de agora", declarou Aristófanes, que prossegue afirmando que o homem primitivo tinha "o dorso redondo e os flancos em círculo"; ele tinha quatro mãos, quatro pés e uma cabeça com dois rostos, olhando em direções opostas". Dada sua forma, estes seres humanos primitivos podiam caminhar eretos, como fazemos hoje em dia. Mas Hall conta que, quando queriam andar mais rápido, eles "pulavam como bolas, podiam fazer acrobacias, viajavam constantemente e eram felizes". "Alguns eram totalmente mulher, outros totalmente homem e alguns, metade mulher e metade homem." Aristófanes afirmou também que tinham força e vigor extraordinários, além de imenso orgulho, ao ponto de conspirar contra os deuses. Hall explica que "este é um mito grego padrão — existe uma espécie que desafia os deuses e é derrotada". Quando esta espécie fictícia desafia os deuses, Zeus se dá conta de que precisa fazer algo para enfraquecê-la e torná-la menos insolente. Depois de muito pensar, ele ordena a Apolo que os corte pela metade, dividindo-os para sempre. Por isso, cada ser humano tem agora duas pernas, dois braços, uma cabeça e tenta constantemente encontrar, literalmente, sua outra metade. "É uma história muito, muito bonita, e Aristófanes acrescenta detalhes para ilustrar como foi dolorosa essa separação", diz a professora. Quando Apolo colocou os seres humanos na posição vertical e virou a cabeça deles para que pudessem ver sua outra metade de frente, eles trocavam fortes abraços, tentando desesperadamente se unir de novo, sem sucesso. Zeus se compadece então e tenta outro recurso, transferindo seus órgãos genitais para a parte frontal. Assim, durante o abraço, homem e mulher se encontrariam, e a espécie humana continuaria existindo. Mas, se dois homens se encontrassem, haveria pelo menos a satisfação do seu contato, eles descansariam, voltariam ao seu trabalho e se preocupariam com as outras coisas da vida, segundo conta Aristófanes. O dramaturgo grego explica até por que temos umbigo. Segundo seu relato, depois de realizar o corte, Apolo juntou toda a pele solta e a costurou no meio da barriga. "É então, de há tanto tempo, que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer de dois um só e assim curar a natureza humana", diz Aristófanes. Para a consultora de relacionamentos britânica Mary Balfour, a criação de Aristófanes "é, de certa forma, uma ideia muito moderna, pois sua história incorpora todos os aspectos da sexualidade atual". "Ela divide os seres humanos em três tipos diferentes: homens que amam homens, mulheres que amam mulheres, e mulheres e homens que se amam entre si", explica. "Isso não poderia ser mais século 21." Mas Balfour observa aspectos problemáticos. "Você não deveria estar procurando sua outra metade para se completar, mas sim ser autossuficiente", afirma. "E não deveria entrar em um relacionamento até que seja uma pessoa feliz e completa, pois são as pessoas felizes que fazem relacionamentos felizes." Além disso, a ideia de que só existe um amor verdadeiro, uma alma gêmea que talvez esteja do outro lado do mundo, impede muitas pessoas de encontrar um parceiro. "Talvez, no caminho para o trabalho, elas encontrassem diversas pessoas adequadas, que apenas não tiveram tempo de conhecê-las e se sentir bem na sua companhia, o que é a base para uma relação futura", afirma Balfour. Em resumo, não deveríamos esperar encontrar a pessoa ideal, mas sim procurar uma pessoa ideal. Assim, teremos mais chance de encontrar a nossa outra "metade da laranja". Este texto foi originalmente publicado em: https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62561284
2022-08-21
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62561284