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sociedade
A pianista que trocou fama mundial para preservar cultura da Ilha de Páscoa
Conforme o nível do mar sobe e o clima muda, a ilha que Mahani Teave chama de lar e sua cultura estão cada vez mais ameaçadas. A Ilha de Páscoa, ou Rapa Nui, é uma das ilhas habitadas mais remotas do mundo, um pequeno território de 164 km quadrados no sul do Pacífico. A terra mais próxima é a Ilha Pitcairn, um Território Ultramarino Britânico, a 2 mil km de distância; e o Chile, que tem jurisdição sobre Rapa Nui desde 1888, que fica 3,8 mil km a leste. Os campos ondulados que se estendem desde a crista vulcânica são pontilhados com mais de 900 moai, as figuras de pedra monolíticas pelas quais a ilha se tornou famosa em todo o mundo. Mas a pianista Mahani Teave, que triunfou no circuito internacional da música clássica, faz parte de uma cultura vibrante que abrange muito mais do que as famosas estátuas esculpidas por seus ancestrais. "Sinto que as crianças Rapanui aprendem a andar só para dançar e falar para poder cantar", diz Teave, de 37 anos. Em 2016, ela foi uma dos 11 Rapanui que fundaram a Fundação Toki, uma organização cultural que mistura educação clássica, tradicional e ambiental para oferecer oportunidades aos jovens da ilha em uma sociedade fortemente dependente do turismo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Crianças de até dois anos fazem aulas preliminares e as mais velhas aprendem piano, violoncelo, violino, trompete e teoria musical. Algumas aulas são ministradas na língua Rapanui, e os alunos também aprendem ukulele, re'o riu (um canto antigo) e takona (pintura corporal), além de ori e hoko, duas danças tradicionais. Teave nasceu no Havaí, depois que sua mãe americana viajou para Rapa Nui, onde conheceu seu pai, que era músico. A família mudou-se para Rapa Nui quando ela era criança. "Nunca me senti isolada", diz Teave. "Quando você cresce em um lugar como aquele, ele se torna o seu mundo e parece tão grande. Ainda há lugares na ilha que não conheço." Aos seis anos, Teave teve aulas de balé e se encantou com as partituras clássicas que ouvia enquanto praticava seus movimentos. As aulas terminaram abruptamente com a mudança da professora de balé para o exterior. Mas determinada, Teave convenceu uma pianista aposentada a ensiná-la, praticando por horas depois da escola e temendo que a professora pudesse encerrar as aulas e retornar à paz da aposentadoria. Aos nove anos, Teave mudou-se para Valdivia, no sul do Chile. "Sair da ilha foi uma experiência amarga e senti muita saudade", lembra ela. "Não conseguia entender por que alguém tinha que deixar sua casa e seu povo para fazer algo tão natural como tocar música." Depois disso, Teave foi para os EUA estudar com o pianista armênio-americano Sergei Babayan, antes de se mudar para a Alemanha. Embora ao longo da carreira tenha tocado em algumas das mais famosas salas de concerto do mundo, foi a vulnerabilidade da sua cultura e a falta de oportunidades na ilha que a levaram a regressar a Rapa Nui em 2012 para fundar uma escola de música. "Enquanto estive no exterior, pensei muito sobre o alcoolismo, o uso de drogas e outros problemas sociais que existem em Rapa Nui, e como tudo isso tinha muito a ver com a falta de oportunidades", diz ela. "Na minha cabeça, pertencia a uma cultura em vias de extinção e sempre achei que deveria haver uma escola de música na ilha." Um dos alunos de Teave foi Rolly Parra, que se mudou para a ilha aos seis anos de idade com seu pai, um oficial da Marinha chilena que trabalhava lá. Ele começou a aprender piano na escola antes de ganhar o cobiçado Prêmio Claudio Arau no Chile em janeiro de 2017. "Mahani me inspirou e copiei tudo o que ela fez", diz Parra. "Se ela tocava uma sinfonia de Chopin, tentava fazer o mesmo." A carreira de Teave deu uma guinada inesperada em 2018, quando David Fulton, um colecionador de instrumentos raros, visitou Rapa Nui durante uma turnê mundial e ficou surpreso ao saber que ela nunca havia gravado um álbum próprio. Fulton se ofereceu para financiar uma gravação e foi assim que "Odyssey Rapa Nui" foi lançado em janeiro, chegando ao topo da lista de clássicos da Billboard dos EUA. O álbum percorre algumas de suas faixas favoritas de Bach, Liszt, Handel e Chopin, e termina com uma poderosa interpretação de "I He a Hotumatu'a", o hino de Rapa Nui. Todo o faturamento do disco é destinado à Fundação Toki. De volta à ilha, Teava e seus colegas contribuem para os esforços de Rapa Nui para se tornar sustentável e sem resíduos até 2030. "A visão ancestral do mundo Rapanui enfatiza nossa conexão com a Terra, da qual pertencemos e pela qual somos responsáveis", explica. Voluntários de todo o mundo levaram um ano e meio para construir a escola, com dejetos deixados por turistas ou com o que era trazido para a ilha pelo mar, como toneladas de papelão, latas, garrafas e pneus. A escola é autossuficiente com seus próprios painéis solares e coletores de água da chuva. O trabalho ambiental da fundação ganhou importância especial durante a pandemia do coronavírus, que revelou a faceta sombria de uma ilha extremamente dependente do turismo e da importação de alimentos: quando os voos de Santiago foram suspensos em março do ano passado, o desemprego disparou e as reservas de alimentos se esgotaram. Além das atividades culturais e iniciativas de coleta de lixo, a líder do projeto ecológico da fundação ajudou a coordenar 500 lotes comunitários e encorajar o uso de jardins de pedra tradicionais que protegem as plantações da erosão e conservam a umidade para aliviar a escassez de alimentos. "Já enfrentamos muitos dos desafios que afetarão o mundo na próxima década", diz Teave. "Se conseguirmos tornar esta ilha 100% sustentável, Rapa Nui pode se tornar um exemplo a ser seguido pelo mundo."
2021-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57796417
sociedade
'Povo cansou e não aguenta mais', diz rapper cubano que liderou protesto
Essa reportagem foi feita em abril de 2021 e a entrevista e fatos relatados nela ocorreram naquele mês em Cuba. Uma das vozes mais críticas ao governo cubano, o rapper Maykel Obsorbo acredita que "há coisas que estão mudando" no país. Ele foi o protagonista de uma onda de protestos no país em abril, que, como agora, questionam a legitimidade do regime e pedem por democracia. Há três meses, moradores de San Isidro, em Havana Velha, centro histórico da capital cubana, impediram a polícia de algemar e deter o artista, em uma inusitada afronta às autoridades, segundo vídeos veiculados em redes sociais. Dezenas de pessoas seguiram o rapper até a sede do Movimiento San Isidro, grupo de jovens artistas ao qual ele pertence, e iniciaram um protesto de rua em que gritavam palavras de ordem por mudança e contra o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel. Mas essa não foi a única manifestação de desobediência civil ocorrida recentemente. Em Santiago de Cuba, dezenas de pessoas, lideradas pelo veterano opositor José Daniel Ferrer, lançaram uma greve de fome há algumas semanas que chamou a atenção de diferentes personalidades, governos e instituições, incluindo a União Europeia. A greve já somou 44 pessoas, algumas no exterior, segundo dados da oposição União Patriótica de Cuba (Unpacu), e é vista como uma das maiores já realizadas na ilha nas últimas décadas. Um artigo publicado no jornal oficial Granma na época acusou os que estavam em greve de fome de tentarem protagonizar uma "farsa" e "dar um show midiático". Sobre os jovens de San Isidro, a televisão cubana frequentemente os acusou de organizar provocações e de estar a serviço da "máfia anticubana" dos Estados Unidos. O cantor e ativista, que no ano passado costurou a boca em protesto contra as autoridades, nasceu em Havana em 1983. Osorbo, cujo nome de nascimento é Maykel Castillo, tornou-se não apenas uma referência da música rebelde na ilha, mas também uma das vozes mais críticas ao governo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sua história pessoal, diz ele, é também uma amostra do que a arte pode fazer: cresceu sem pais, só chegou à quarta série, passou por centros de reeducação para menores e depois se encontrou na música e na luta pelos direitos humanos em seu país uma "razão para continuar lutando, para continuar vivendo". À época, ele conversou com a BBC sobre as transformações pelas quais ele afirma que seu pais está passado e que parecem mais uma vez ter levado muitos cubanos às ruas para protestar. BBC News Mundo - Dezenas de pessoas evitaram sua prisão em Havana, o que gerou um raro protesto na ilha. Como chegou a esse ponto? Maykel Osorbo - O regime efetuava prisões naquele dia. Eles prenderam (a artista) Tania Bruguera e duas outras pessoas, e eu tinha ido visitar alguns amigos. Quando estava lá, um policial chegou em uma viatura e pediu documentos a um deles, pois supostamente tinham visto ele tirar a máscara um pouco antes. Disse a ele (policial) que o que estava fazendo era uma violação do estado de direito e eles me pediram minha identificação. Falei que não tenho carteira de identidade — como não tenho o documento, toda vez que me pedem, acabo preso. Não queria que me algemassem, porque na véspera também me algemaram, me bateram muito e depois me soltaram no parque como se nada tivesse acontecido. Não queria que a história se repetisse. Eles algemaram uma das minhas mãos, mas não conseguiram algemar a outra. Foi quando as pessoas começaram a sair às ruas e impediram minha prisão. Cada vez que eles vinham para cima de mim, as pessoas ficavam no caminho e gritavam para eles me deixarem ir. Foram as pessoas que me defenderam. Disseram para a polícia: 'vocês não vão levá-lo' e bloquearam o caminho da patrulha ... e assim foi por um tempo, até que apareceu alguém e me deu uma bicicleta. Quando cheguei à casa de Luís (Manuel Otero Alcántara, líder do Movimento San Isidro) de bicicleta, ele ficou surpreso, porque viu como cheguei e com a algema na mão. Mas aí também nos demos conta de que muita gente tinha vindo atrás de mim, estavam cuidando de mim, e foi aí que Luis e eu começamos esse protesto. Começamos a cantar Pátria y vida e todos cantaram. BBC News Mundo - Por falar em Pátria y vida, o senhor é um dos participantes do vídeo da música, que teve milhões de visualizações no YouTube e tem incomodado o governo cubano. A que você acha que se deve esse sucesso? Osorbo - A música despertou muita gente, tornou-se um símbolo, um hino. Ali, no domingo, as pessoas a cantaram ao vivo. Aqui, até multam por ouvir aquela música, mas mesmo assim as pessoas a escutam. Acho que é porque as pessoas estão conectadas com o que diz Pátria y vida, porque isso reflete não apenas o que nós sentimos, mas também o que essas pessoas sentem. E isso tem mostrado o que a música, quando se conecta com os sentimentos das pessoas, pode gerar. BBC News Mundo - Um dos momentos polêmicos de domingo ocorreu quando os manifestantes começam a entoar um rap polêmico que menciona o nome do presidente Díaz-Canel e muitos gritaram uma palavra considerada ofensiva em Cuba. Osorbo - É uma música que fala de protesto, com a linguagem e as formas do bairro. Onde você mora, você pode dizer ao presidente daquele país o que você quer, que o presidente certamente não ficará chateado porque você canta as mil canções que deseja cantar. Coloquei a música e o regime depois veio e perguntou por que eu coloquei. Eles me bateram, eles me maltrataram, eles me colocaram na prisão e me perguntam por que eu coloco uma música ... porque a música é a minha forma de protestar, de expressar o que penso. Eles podem me reprimir com golpes, mas eu os reprimirei com minha arte livre. Meu corpo está rendido, meu corpo está aí, disponível quando você quiser me bater. Mas meu pensamento e minha arte são meus. BBC News Mundo - Uma das situações que ocorreram paralelamente ao protesto foi a greve de fome de dezenas de opositores. Como vê esse protesto do Movimento San Isidro, o senhor que também fez uma greve de fome em novembro do ano passado? Osorbo - É uma situação extremamente triste. É uma greve de fome que já dura vários dias, e há pessoas que podem perder a vida. O que mais me entristece é que a população não tem as informações necessárias sobre esse protesto e não sabe por que essa gente está em greve de fome. E é triste porque a situação lá é delicada. Eles vão morrer. Qualquer um pode morrer a qualquer momento. Eles são políticos, não são artistas, o que significa que não têm os mesmos seguidores e apoio que nós temos. É por isso que a situação deles não é tão conhecida, também porque estão longe, menos ligados, em Santiago de Cuba. Então, o regime está jogando com isso para distorcer a informação. Como sabem que somos mais conhecidos, um dia pegam Otero Alcántara preso e todos vão protestar por ele, assim sabem que se deixa de olhar por um tempo para o que se passa em Unpacu. Eles me pegam amanhã e é outro dia que não falam sobre eles. Isso é triste. E estou mais triste porque Michelle Bachelet (Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos) não comentou sobre esta situação. BBC News Mundo - O governo cubano já havia acusado o MSI e a Unpacu de estarem a serviço dos Estados Unidos e disse que são "mercenários" que recebem dinheiro e que seguem os manuais da CIA, além de protagonizarem "farsas" e "show midiático" para chamar atenção. Osorbo - Ando pesquisando na internet quanto pagam a um agente da CIA, porque se me pagassem cada vez que me acusassem de ser agente aqui, eu já deveria ser bilionário... Na verdade, é tão tosco... é sempre o mesmo padrão de denúncia, tudo o que fazemos é orquestrado pela "máfia de Miami" e pela CIA. Só quero que me digam o que fiz com o dinheiro. Não viram como eu vivo, como vive o Luis Manuel? Eu pego ônibus, vivo como qualquer cubano. Não sou Sandro Castro (neto de Fidel Castro que causou rebuliço na ilha depois de postar recentemente um vídeo dirigindo um Mercedes-Benz que ele chama de seu "brinquedo"). Se eles tivessem provas, por menores que fossem, de que somos agentes da CIA, já estaríamos na prisão há muito tempo. E que ninguém me diga que somos mercenários. Mercenário é o governo que forma agentes de inteligência e depois os exporta para países como Nicarágua ou Venezuela. Somos artistas e o contrário não será provado. Se para eles a arte é uma provocação, o problema não somos nós. BBC News Mundo - Os protestos que vocês realizaram, tanto em novembro como no domingo, geraram mobilizações populares de uma forma que provavelmente não se viu em Cuba nos últimos 60 anos. Por que você acha que as pessoas estão indo para as ruas agora? Osorbo - O que está acontecendo em Cuba agora é o sinal de que esse povo se cansou, que não aguenta mais. A realidade que vivemos mudou. Eles não podem mais cobrir o sol com a peneira. As pessoas estão passando por momentos muito difíceis, elas sentem quando não têm comida, quando você tem que fazer fila para tudo, quando você tem que fazer um processo e não consegue, ou te fazem mal ou colocam obstáculos em seu caminho para tudo. Para que veja como estão as coisas, no dia seguinte ao protesto, Luís Manuel foi levado preso porque tinha preparado uma comemoração de um aniversário para dar doces às crianças. Porque hoje, para comprar bala para seus filhos, os pais precisam ter dólares, moeda que ninguém aqui ganha. Assim, a ação de Luís Manuel buscou abrir os olhos, a consciência, sobre por qual razão as crianças cubanas não podem comer doces. E eles o levaram preso. E assim levamos 60 anos, suportando, mas não mais. Isso tem que parar. Mas não é só isso. Não pode ser correto que não tenha sido a lei, que nos tratem assim... A gente se cansa de ser algemado, espancado e preso por pensar diferente. Talvez eu esteja morto, talvez não seja comigo, talvez não seja com Luís Manuel, mas as pessoas estão se dando conta de que já chega de tanto aguentar.
2021-07-12
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57802941
sociedade
‘Como perdi emprego e transformei minha vida após xingar chefe durante bebedeira’
"Mandei um email xingando o diretor da empresa." É assim que o tecnólogo Danilo Perossi, de 34 anos, começa a contar como conseguiu largar o álcool e outras drogas há um ano, quatro meses, dezenove dias e contando... A resposta à mensagem, enviada em fevereiro de 2020 a todos os chefes dele ("desde o supervisor até o diretor"), foi a demissão. "Por incrível que pareça, sou bastante grato. Se não fosse isso, acho que não estaria mais vivo", conta à BBC News Brasil. Àquela altura, Perossi, que vive em Santo André, na região metropolitana de São Paulo, conta que gastava de R$ 300 a R$ 400 só com bebidas alcoólicas a cada ida ao bar. "Os garçons já ficavam me rodeando, porque eles me conheciam. Era mais ou menos umas 15, 16 canecas de chope, além dos drinques e doses depois." Ele conta que não bebia ou consumia outras drogas durante o expediente, mas era a primeira coisa que fazia quando terminava o trabalho. "Em menos de dois minutos, eu já estava bebendo, todos os dias. Era pisar na escada fora do trabalho e eu já passava no bar em frente para comprar duas garrafas de cerveja." Embora ele aponte que o consumo de álcool ou outras drogas não foi o motivo direto da demissão, foi sob efeito dessas substâncias que mandou o email, durante suas férias. "Achei que a empresa tomou uma atitude completamente equivocada e acabei, por conta disso, nominando as pessoas que tomaram essa decisão", diz. "Quando escrevi o email, eu estava só bêbado. O que me deu coragem para apertar o enviar foi o uso de droga." Foi depois da demissão que Perossi foi internado e diz que teve oportunidade de fazer um balanço. "Precisou dessa perda gritante na minha vida, que era a única coisa que me dava alguma segurança. Até então, como eu trabalhava, achava que não tinha problema. Mas todo o restante da minha vida estava em frangalhos — relação com a minha família, com meus amigos, com o dinheiro." A empreitada de Perossi começou em 2020, junto com a pandemia do coronavírus — momento em que, para muitos, significou o aumento do consumo de álcool. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Consumo de álcool e a pandemia de coronavírus Além de ser usado para socialização, o álcool é buscado por algumas pessoas para lidar com emoções difíceis, aponta a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). Segundo a pesquisa, 35% dos entrevistados de 30 a 39 anos responderam que aumentaram a frequência do "beber pesado episódico" (consumo de mais de 60 gramas de álcool puro em pelo menos uma ocasião durante os últimos 30 dias) na pandemia, enquanto menos de 30% disseram que diminuíram. A pesquisa mostra que o crescimento na frequência do consumo de bebidas alcoólicas foi mais comum entre pessoas de rendas mais altas. Além disso, a presença de quadros graves de ansiedade aumentou em 73% a chance de maior frequência no consumo de álcool. "Apesar dos altos níveis de beber pesado episódico e dos riscos de saúde associados, a maioria das pessoas não procuram ajuda, e uma pequena proporção tenta parar por conta própria", diz a Opas. Perossi, no entanto, diz que, na experiência dele, o isolamento gerado pela pandemia inicialmente ajudou no processo de recuperação. "Assim que eu saí da internação, em abril de 2020, parecia uma distopia, tudo fechado. Nesse ponto, a pandemia me ajudou bastante a conseguir me afastar daquilo que, naquele momento, logo após a internação, seria muito difícil." Ele diz que seguiu o tratamento com foco em terapia, exercícios e apoio de amigos e família. Além de banir o consumo de álcool e outras drogas, também perdeu 60kg — depois de anos lidando com a obesidade e tendo chegado a pesar 147kg. Em agosto de 2020, Perossi conseguiu ser recontratado na mesma empresa, com a mesma função. E esta foi, segundo ele, peça fundamental no processo de recuperação. "Eu me coloquei em risco, porque saí quase todo dia para ir trabalhar, pegando o transporte público — ônibus, trem, metrô. Apesar disso, foi algo que me ajudou porque sabia que eu não estava preso dentro de casa", diz. "Quando retornei para o trabalho, as coisas ficaram mais tranquilas". E o chefe? "As coisas no trabalho mudaram completamente — hoje, sou muito bem visto. O próprio diretor que me demitiu depois me elogiou." Perossi tinha 16 anos na primeira vez que bebeu, em uma festa durante o ensino médio, e diz que entrou em coma alcoólico. "Sempre gostei muito de perder o controle. Desde a primeira vez, toda vez que eu bebia, eu já não gostava só de ficar bebendo um pouco." As drogas, ele diz, eram uma forma de "preencher um vazio". "O álcool me abriu a porta para sentir coisas que eu não sentia, até então, que me fizeram muito bem, porque eu gostava de ficar daquele jeito, alterado. Mas depois fui buscando cada vez mais outras sensações, que aí foram nas drogas ilícitas que encontrei." "O álcool me dava uma sensação de felicidade que normalmente eu não sentia. Mas o que eu pude perceber, agora que estou sem álcool e sem drogas, é que esse estado de felicidade a gente pode construir — com meditações, terapia, conversa. Só que o álcool e as drogas trazem uma coisa que é imediata. Hoje, vejo que era falso, porque eu estava tentando modificar minha realidade a partir de algo externo, e não de algo interno." O mais difícil, ele diz, foi aceitar que tinha perdido o controle. "Isto que é o louco da dependência química: você precisa estar sóbrio para conseguir perceber essas coisas." Um dos motivos, ele diz, é a crença de que existe um perfil de dependente do álcool. "Aquele senhor que abre a porta do bar, que tem o bigode amarelo, que só anda cambaleando, sujo, que tá com o pé inchado." "Na verdade, tem mulheres, homens, tem jovens, tem velhos, tem gordo, tem magro, tem rico, tem pobre — é uma doença que não escolhe. Tem pessoas que vão ter predisposição para ser dependente químico. Tem pessoas que vão continuar bebendo todos os dias aquela latinha de cerveja depois que sai do trabalho e aquilo lá tá perfeito pra ela." "Isto é algo que seria bom as pessoas saberem: a dependência não tem rosto, não tem cor, não tem classe social. Ela ocorre para qualquer pessoa." Foi só depois de entender que tinha uma "doença progressiva, incurável e fatal" que Perossi conseguiu recomeçar. "Agora, eu quero mostrar para outras pessoas que é possível, com ajuda e com esforço. Tenho estado muito, muito feliz nesse período de recuperação." "Às vezes, não acredito que tá acontecendo tudo isso na minha vida. Antes, meu único interesse era morrer", diz. "Durante muito tempo, quando eu acordava, eu falava: 'não acredito, tô vivo'. Não queria estar vivo." Por isso, ele aponta que dependência química "não é caso de polícia, é caso de saúde pública". "E a sociedade, infelizmente, vê o alcoolismo e o uso de drogas como coisa de vagabundo, como coisa de quem não tem o que fazer. E eu sou prova que não é doença de vagabundo, porque eu estava trabalhando", diz. "Provavelmente, se eu tivesse sido preso por qualquer coisa que eu fiz, como dirigir bêbado, ou com droga no carro, não estaria sóbrio hoje." Agora, Perossi diz que enfim "a vida está boa". "Tô numa sensação meio que de plenitude — óbvio que tem um monte de problema, um monte de coisa que ainda me afeta, mas pelo fato de estar sóbrio, de estar vivendo uma vida completamente diferente daquilo que eu vivi até então, apesar dos problemas, eu estou conseguindo lidar com eles, entendeu? Eu não preciso mais me entorpecer para lidar com os problemas." "Vale a pena estar tá vivo, tá gostoso, eu tô muito feliz. É bem da hora." No Brasil, os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) AD (Álcool e Drogas) promovem atendimento a pessoas de todas as faixas etárias e são especializados em transtornos pelo uso de álcool e outras drogas. Os Caps geralmente trabalham com atendimentos sem necessidade de agendamento prévio ou encaminhamento, com acolhimento e tratamento multiprofissional aos usuários. O usuário que procura o Caps é acolhido e participa da elaboração de um projeto terapêutico singular específico para suas necessidades e demandas, segundo o governo. Também existem, no Brasil e em outros países, os chamados grupos de ajuda mútua, em que pessoas que vivem situações em comum se reúnem em grupos anônimos para refletir sobre suas dificuldades e encontrar formas de resolvê-las.
2021-07-09
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57771040
sociedade
'Intoxicação alimentar nas férias me deixou paralisado'
O escocês Malcolm Brown achou que estava apenas desidratado quando suas pernas pararam de funcionar após uma intoxicação alimentar durante um feriado na Turquia. Mas quando suas mãos e braços também ficaram dormentes e sua visão turva, ele soube que havia algo muito errado com ele. Brown então ficou completamente paralisado do pescoço para baixo. O engenheiro aposentado foi levado a um hospital em Edimburgo, onde foi diagnosticado com síndrome de Guillain-Barré, uma rara doença auto-imune. Ele falou com a BBC de sua cama de hospital usando viva voz, porque ele não pode segurar um telefone. Malcolm, que tem 71 anos, e sua esposa Janis voaram para a Turquia para um feriado de duas semanas em Kusadasi, no oeste do país, em 19 de setembro do ano passado. No entanto, Malcolm teve uma intoxicação alimentar e passou uma semana de cama. O casal acredita que a causa foi um queijo que compraram no supermercado. Malcolm adoeceu depois de comer o queijo, mas Janis não havia comido nada. Um amigo que comeu o queijo no dia seguinte também sofreu uma intoxicação alimentar. Quando voltaram para Edimburgo, Malcolm começou a "se sentir esquisito", com formigamento nos dedos e pernas fracas. "Eu saí do carro, caí de costas na garagem e não consegui me levantar", disse ele. "Janis conseguiu me virar e eu rastejei de bruços. Então não consegui colocar a roupa e Janis teve que me vestir." "Eu não conseguia levar uma colher à boca ou segurar uma chaleira, e foi aí que pensei que era algo mais do que desidratação. Eu estava me deteriorando rapidamente e era assustador não saber o que havia de errado." Malcolm disse que um dia ele estava em forma e ativo, e no dia seguinte não conseguia fazer nada. "Nunca pensei que algo pudesse fazer isso comigo", disse ele. "A parte mais difícil foi aceitar a ajuda da equipe do hospital e da Janis. Não quero ser um fardo para a Janis." "Ela acabou de passar 10 anos cuidando de seus pais, então não quero que ela tenha outro inválido. Não estou preocupado comigo mesmo, é ficar dependendo de Janis que me preocupa." Janis disse que era "horrível" ver Malcolm paralisado do pescoço para baixo. "Ele simplesmente caía como um bebê gigante indefeso e teria que ser içado para fora da cama", disse ela. "Nossas duas filhas não tiveram permissão para vê-lo por quase nove meses. Foi um pesadelo. Não pude ver Malcolm por cinco meses no Natal devido às restrições de covid." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Janis entrou em contato com a Gain, ONG dedicada a ajudar pessoas afetadas pela síndrome de Guillain-Barré, para saber se ela poderia comprar alguma tecnologia que permitisse ao marido fazer ligações sem usar as mãos. "Foi quando eles se ofereceram para pagar um sistema de ativação por voz". "Eu acabei pagando do meu próprio bolso, mas isso me fez pensar que é ótimo que uma ONG consiga pagar por coisas assim para ajudar as pessoas, então eu quis arrecadar dinheiro para ela." Como resultado, Janis, de 69 anos, está correndo 874 milhas (1.406 km) — para levantar recursos para Gain. A condição de Malcolm significa que seu sistema imunológico está atacando seu próprio sistema nervoso. O sistema imunológico normalmente ataca quaisquer germes que entrem em nosso corpo, mas em pessoas com síndrome de Guillain-Barré algo errado acontece e o sistema nervoso acaba sendo alvo desse ataque. Não está claro por que isso acontece, mas a condição geralmente surge após uma infecção das vias respiratórias, como uma gripe, ou uma infecção do sistema digestivo, como uma intoxicação alimentar ou um problema estomacal. Os médicos disseram que, embora não esteja clara a extensão dos danos ao sistema nervoso de Malcolm, ele poderia ser reparado entre 12 e 18 meses. Os nervos crescem um milímetro por dia. Malcolm melhorou e agora consegue ficar de pé e sentar em uma cadeira de rodas. "Ainda não consigo mover meus pulsos, então minhas mãos caem nas pontas dos meus braços", disse ele. "Não pensei que demoraria tanto para me recuperar, mas sou uma pessoa positiva e não me senti deprimido ou com pena de mim mesmo." Malcolm ainda precisa de ajuda para comer e com a higiene pessoal, mas diz que "compartimentalizou" sua vida. "Estou aceitando que não posso fazer nada enquanto estiver no hospital e, com uma certa dose de otimismo, sei que vou melhorar", disse ele. "Penso às vezes que se tivesse apenas pegado um pacote diferente de queijo, não estaria aqui, mas você tem que aceitar as coisas como elas são." Sua família espera que ele possa voltar para casa no mês que vem, assim que uma rampa para cadeiras de rodas for instalada em sua residência. Antes de ficar paralisado, Malcolm jogava golfe três vezes por semana. Ele diz: "Posso nunca voltar a ser tão ativo como era, mas nunca vou parar de tentar melhorar e não vou desistir."
2021-07-08
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57766839
sociedade
Como seu nome pode afetar sua personalidade
Você já pode ter refletido sobre as diferentes maneiras como foi sua criação: se seus pais foram acolhedores ou rigorosos, generosos ou agressivos. Mas talvez você não tenha pensado muito sobre as consequências de algo particularmente importante que eles deram a você — seu nome. Os pais muitas vezes ficam angustiados na hora de escolher o nome dos filhos. Pode parecer um teste de criatividade ou uma forma de expressar suas próprias personalidades ou identidades por meio da criança. Mas o que muitos pais podem não perceber completamente — eu, certamente, não percebi — é que a escolha do nome pode influenciar a forma como os outros veem seu filho e, portanto, em última análise, o tipo de pessoa na qual seu filho se torna. "Como um nome é usado para identificar um indivíduo e se comunicar com ele diariamente, serve como base da autoconcepção de alguém, especialmente em relação aos outros", diz David Zhu, professor de Administração e Empreendedorismo na Universidade do Arizona, nos EUA, que pesquisa a psicologia dos nomes. É claro que vários fatores moldam nossa personalidade. Parte dela é influenciada por nossos genes. As experiências formativas também desempenham um papel importante, assim como as pessoas com quem nos relacionamos e, em última análise, os papéis que assumimos na vida, seja no trabalho ou na família. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em meio a todas essas dinâmicas, é fácil esquecer o papel desempenhado por nossos nomes — uma influência altamente pessoal imposta a nós desde o nascimento e que geralmente permanece conosco por toda a vida (a menos que nos demos ao trabalho de mudá-lo). Como Gordon Allport, um dos fundadores da psicologia da personalidade, afirmou em 1961, "o ponto de ancoragem mais importante para nossa identidade pessoal ao longo da vida continua sendo nosso próprio nome". Em um nível básico, nossos nomes podem revelar detalhes sobre nossa etnia ou outros aspectos de nossa origem, o que em um mundo de preconceitos sociais traz consequências inevitáveis. Por exemplo, uma pesquisa americana conduzida na sequência dos ataques terroristas de 11 de setembro mostrou que currículos exatamente iguais eram menos propensos a conseguir entrevistas de emprego quando atribuídos a uma pessoa com um nome que soava árabe, em comparação com um nome "branco". Isso é injusto em vários níveis, principalmente porque os nomes podem ser um indicador não confiável de nossa origem. Essas consequências não devem ser menosprezadas, mas não é aí que termina a influência dos nomes. Mesmo dentro de uma só cultura, os nomes podem ser comuns ou raros, podem ter certas conotações positivas ou negativas em termos de significado e podem ser vistos como atraentes ou antiquados e detestados (e essas opiniões podem mudar com o passar do tempo de acordo com as tendências também). Por sua vez, essas características relacionadas aos nossos nomes afetam inevitavelmente a maneira como os outros nos tratam e como nos sentimos a respeito de nós mesmos. Já um estudo da década de 2000, liderado pela psicóloga americana Jean Twenge, descobriu que, mesmo depois de feito o controle sobre fatores como contexto familiar e insatisfação geral com a vida, as pessoas que não gostavam do nome tendiam a ter um ajuste psicológico mais precário. Provavelmente, isso aconteceu porque sua falta de confiança e autoestima fizeram com que não gostassem do nome ou porque o fato de não gostar do nome contribuiu para sua falta de confiança — "o nome se torna um símbolo de si mesmo", escreveram Twenge e sua coautora. Em termos de como os nomes afetam a maneira como somos tratados pelos outros, vejamos um estudo alemão publicado em 2011, no qual os usuários de um site de relacionamento foram questionados se gostariam de dar sequência a potenciais encontros com base no nome das pessoas. Jochen Gebauer, agora baseado na Universidade de Mannheim, na Alemanha, e seus colegas, incluindo Wiebke Neberich, descobriram que pessoas com nomes considerados antiquados na época (como Kevin) tinham maior probabilidade de serem rejeitadas, em comparação com aquelas com nomes da moda (como Alexander). Se a situação do site de relacionamento for amplamente representativa de como esses indivíduos foram tratados ao longo da vida, é fácil ver como seus nomes podem ter moldado a forma como os outros os tratavam de maneira mais geral e, por sua vez, o tipo de pessoa na qual eles próprios se tornaram. Na verdade, uma nova pesquisa que ainda não foi publicada, também conduzida na Alemanha, mostrou que os participantes eram menos propensos a ajudar um estranho com um nome avaliado negativamente (Cindy e Chantal foram os dois nomes com pior avaliação), em comparação com estranhos com nomes avaliados positivamente (Sophie e Marie foram os mais bem avaliados). Dá para imaginar que deve ser difícil ser uma pessoa afetuosa e confiante (tendo alta "agradabilidade" em termos de traços de personalidade) se você enfrenta repetidas rejeições na vida por causa do nome. Outra parte do estudo do site de relacionamento reforçou isso: os candidatos com nomes fora de moda que foram rejeitados com mais frequência também tendiam a ter um grau menor de escolaridade e baixa autoestima — quase como se a rejeição que sofreram na plataforma de relacionamento fosse um reflexo de como eles tinham se saído na vida de forma mais ampla. Outro trabalho recente também sugeriu as consequências prejudiciais de um nome impopular ou que soa negativo. Huajian Cai e seus colegas do Instituto de Psicologia de Pequim, na China, cruzaram recentemente os nomes de centenas de milhares de pessoas com o risco de terem sido condenadas por crimes. Eles descobriram que mesmo depois de feito o controle sobre a influência de fatores de contextos demográficos, as pessoas com nomes vistos como menos populares ou com conotações mais negativas (por exemplo, avaliados em média como menos "calorosos" ou "morais") eram mais propensas a estarem envolvidos em crimes. Você pode ver essa tendência em relação ao comportamento criminoso como um indicador de uma pessoa com baixa agradabilidade. Novamente, isso é consistente com a noção de que ter um nome que soe negativo ou impopular leva a pessoa à rejeição social e aumenta o risco de desenvolver uma personalidade desagradável. Nossos nomes podem ter essas consequências, diz Cai, porque podem afetar a forma como nos sentimos em relação a nós mesmos e como os outros nos tratam. "Já que um nome bom ou ruim tem o potencial… de produzir resultados bons ou ruins, sugiro que os pais devem tentar de todas as maneiras dar um bom nome ao bebê em relação a sua própria cultura", diz ele. Até agora, esses estudos apontam para as consequências aparentemente prejudiciais de se ter um nome negativo ou impopular. Mas algumas descobertas recentes também indicam as possíveis consequências benéficas que seu nome pode ter. Por exemplo, se você tem um nome mais "sonoro" que flui facilmente, como Marla (em comparação com nomes que soam abruptos, como Eric ou Kirk), então é provável que as pessoas o julguem como sendo mais agradável, com todas as vantagens que isso pode trazer. Além disso, embora um nome menos comum possa ser desvantajoso no curto prazo (aumentando o risco de rejeição e diminuindo sua simpatia), ele pode ter vantagens no longo prazo ao gerar em você um senso maior de sua singularidade pessoal. Um novo estudo de Cai e sua equipe no Instituto de Psicologia de Pequim descobriu — mesmo depois de feito o controle de fatores como a origem familiar e socioeconômica — que ter um nome mais raro estava associado a maiores oportunidades de ter uma carreira mais incomum, como diretor de cinema ou juiz. "No início da vida, algumas pessoas podem extrair um senso de identidade única de seus nomes relativamente únicos", dizem os pesquisadores, propondo que esse sentido alimenta uma "motivação de distinção" que os leva a encontrar uma carreira incomum que corresponda à sua identidade. Isso parece ser uma reminiscência do chamado "determinismo nominativo" — a ideia de que o significado de nossos nomes influencia nossas decisões de vida (explicando aparentemente a abundância de neurologistas chamados Dr. Brain, que significa "cérebro", e ocorrências divertidas semelhantes). Ter um nome incomum pode até nos moldar para sermos mais criativos e mais abertos, de acordo com uma pesquisa de Zhu e seus colegas na Universidade do Arizona. A equipe de Zhu cruzou os nomes dos principais executivos de mais de mil empresas e descobriu que quanto mais raros seus nomes, mais distintas as estratégias de negócios que eles tendiam a seguir, especialmente se também fossem mais confiantes por natureza. Zhu invoca uma explicação semelhante à de Cai e seus colegas. "CEOs com um nome incomum tendem a desenvolver uma autoconcepção de serem diferentes dos colegas, motivando-os a buscar estratégias não convencionais", afirma. Se você é um futuro pai, deve estar se perguntando se deve escolher um nome comum e popular, talvez aumentando a popularidade e a simpatia de seu filho, ou dar-lhe um nome original, ajudando-o a se sentir especial e a agir mais criativamente. "Nomes comuns e incomuns estão associados a vantagens e desvantagens, então os futuros pais devem estar cientes dos prós e contras, não importa que tipo de nome eles deem aos filhos", diz Zhu. Talvez o segredo seja encontrar uma maneira de ter o melhor dos dois mundos, escolhendo um nome comum que seja facilmente modificado em algo mais diferenciado. "Se [você] der a uma criança um nome muito comum, ela provavelmente terá mais facilidade em ser aceita e querida por outras pessoas no curto prazo", observa Zhu. "Mas os pais precisam encontrar maneiras de ajudar a criança a valorizar sua singularidade, talvez dando-lhe um apelido especial ou afirmando frequentemente as características únicas da criança."
2021-07-08
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-57564726
sociedade
O escândalo de abusos e mortes em acampamentos para adolescentes rebeldes nos EUA
As pessoas pensam que conhecem a história de Paris Hilton, um dos rostos mais famosos dos anos 2000. No entanto, quando ela lançou um documentário no YouTube sobre sua vida no ano passado, muitos ficaram chocados ao saber sobre sua luta de décadas contra um trauma. Hilton, em lágrimas, contou como ela foi acordada por estranhos em seu quarto no meio da noite quando era adolescente e levada à força para atravessar o país. Ela disse que seus repetidos gritos de pedido de ajuda não atendidos se transformam em pesadelos que atrapalham seu sono. A história dela, embora chocante, não é única. Hilton é uma das milhares de crianças dos Estados Unidos enviadas todos os anos por seus pais para uma rede privada de programas de residência "amor com rigidez" e escolas que dizem promover mudanças no comportamento dessas crianças. Ninguém sabe ao certo quantas são, porque ninguém está acompanhando. "Meus pais me sequestraram e me deixaram no meio das montanhas", disse Daniel, de 21 anos, em um vídeo do TikTok assistido mais de 1 milhão de vezes. Quando era adolescente, ele sofreu de ansiedade e depressão. Tinha 15 anos e havia se declarado gay pouco tempo antes, quando feriu a si mesmo de forma tão grave que precisou ir para o hospital. Foi lá que ele foi acordado no meio da noite por dois homens. Disseram que o processo poderia ser fácil ou difícil — dependendo de quanto ele resistisse. Com pouca força restando nele, Daniel foi com a dupla. Mas, quando perguntou a um estranho se poderia usar um telefone para ligar para seus pais em uma breve parada para comer, ele disse que ameaçaram usar algemas. Daniel foi enviado para um programa em áreas remotas na Geórgia, onde passou 77 dias morando ao ar livre, caminhando quilômetros por dia. Ele se lembra vividamente de sentir frio e fome e de ficar sujo por semanas e de testemunhar outras pessoas tentando fugir ou se suicidar. Como muitos outros jovens enviados para programas na natureza, ele foi então matriculado diretamente em uma instituição de longa permanência, desta vez em Montana, onde passaria mais 15 meses. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A indústria de serviços para adolescentes considerados problemáticos, conhecida em inglês pela sigla TTI, abrange uma ampla gama de programas residenciais privados como estes, que visam modificar o comportamento dos jovens. O tamanho da indústria e sua rotatividade anual de adolescentes nos Estados Unidos permanecem indefinidas porque não há uma regulação federal que a monitore. De campos de treinamento a internatos, essas instalações são comercializadas como tratamento para uma ampla gama de problemas, incluindo transtornos mentais, alimentares e de uso de drogas. As pessoas que pegaram Hilton e Daniel eram de empresas com serviços comercializados especialmente para famílias preocupadas com a reação de seus filhos ao serem inscritos em um programa assim. Os pais normalmente pagam alguns milhares de dólares para que seus filhos sejam deixados com segurança nesse locais, em todo o país. Às vezes, os pais são apresentados a essa indústria por terceiros, depois de sentirem que esgotaram os outros meios de obter ajuda para seus filhos. Os programas se vendem a partir de histórias familiares, com depoimentos em seus materiais de marketing e em avaliações online que os descrevem como transformadores e capazes de salvar vidas. Mas, durante anos, outros ex-residentes pintaram um quadro muito diferente de suas experiências dentro dessas instalações, incluindo processos judiciais e reclamações criminais, alegando abusos emocionais e físicos. A BBC conversou com 20 pessoas que se identificaram como "adolescentes problemáticos" que sobreviveram a esses programas, com idades entre 20 e 40 anos, sobre suas experiências nessa indústria nas últimas décadas. Embora suas origens e as razões para serem mandados sejam diferentes, há padrões em seus relatos e nas centenas de casos compartilhados nas redes online de apoio a sobreviventes da TTI. O Government Accountability Office (órgão do Legislativo dos Estados Unidos responsável por investigações e auditorias) foi encarregado de investigar alegações de negligência e abuso em toda essa indústria em 2007, mas achou difícil traçar um quadro nacional devido à falta de padrão entre as regras de licenciamento em nível estadual e à ambiguidade em torno dos rótulos que as instalações usam para se descreverem — como campos de treinamento ou internatos terapêuticos. Os investigadores encontraram milhares de alegações de abuso e examinaram várias mortes em programas comportamentais nos Estados Unidos e em empresas americanas que operam no exterior. Seus relatórios levantaram preocupações sobre o nível de treinamento exigido da equipe, bem como o que eles descreveram como práticas de marketing enganosas e questionáveis ​​destinadas aos pais. Audiências subsequentes no Congresso ouviram depoimentos de pais cujos filhos morreram na indústria. Cynthia Clark Harvey foi uma delas. Sua filha Erica tinha apenas 15 anos quando foi vítima de insolação e desidratação em seu primeiro dia inteiro em um programa em Nevada, em 2002. Cynthia se lembra de sua filha como uma jovem inteligente, atenciosa e atlética que sempre se saiu bem academicamente até começar a sofrer de problemas de saúde mental aos 14 anos. Seus sofrimentos a levaram a ter pensamentos suicidas e começar a experimentar drogas ilegais. Quando Erica foi internada no hospital e saiu da escola, a família ficou assustada e sem saber como agir. Na época, a situação parecia drástica. Erica estava melhor, mas o psiquiatra dela disse que o tratamento poderia ajudá-la no caminho de recuperação. O programa que sua família escolheu era bem conhecido e credenciado. Eles se sentiram seguros de que Erica estava em boas mãos. Após semanas de decisão e planejamento, eles viajaram para Nevada sob o pretexto de uma viagem em família com sua irmã mais nova. Quando o plano foi revelado, Erica ficou com medo e com raiva e se recusou a sair do carro. Depois de uma turbulenta sessão de terapia em grupo de horas com outras famílias, ela e as outras crianças foram levadas embora. Esta foi a última vez que Cynthia e seu marido viram sua filha viva. Quando eles voltaram para casa no Arizona na noite seguinte, já havia uma mensagem esperando na secretária eletrônica dizendo-lhes para ligar. Eles foram informados de que Erica havia sofrido um acidente e que uma equipe estava realizando reanimação cardiopulmonar. "Naquele ponto ela provavelmente já estava morta há algum tempo", diz Cynthia. O obituário de Erica só dizia que ela morreu durante uma caminhada. Seus pais não descobririam a causa da morte por semanas — e levou anos e um processo para que eles conseguissem os registros e descobrissem a verdade sobre o que aconteceu naquele dia. Cynthia diz que eles acabaram firmando um acordo com o programa por um valor não revelado, com a condição de que pudessem falar livremente sobre as circunstâncias da morte de sua filha. Ela soube que Erica havia sido pressionada a continuar caminhando enquanto sua condição piorava ao longo do dia. Mais tarde, ela disse ao Congresso que a angústia de sua filha havia sido confundida com agressividade adolescente pelos funcionários. Mesmo depois que Erica caiu da trilha no meio de arbustos e pedras, ela não recebeu ajuda médica por quase uma hora. Devido à localização remota e uma série de erros ao chamar ajuda para o local, demorou horas para um helicóptero de emergência chegar e levá-la ao hospital, onde ela foi oficialmente declarada morta, muito depois do momento em que sua vida poderia ter sido salva. Cynthia continua a lutar com o arrependimento e a tristeza pelo que aconteceu e se conectou com outros pais que se encontram na mesma inimaginável posição. Nenhuma acusação criminal foi feita em relação à morte de sua filha, mas 19 anos depois Cynthia continua a falar publicamente a favor da reforma em toda a indústria. A Associação Nacional de Escolas e Programas Terapêuticos (Natsap, na sigla em inglês) foi a representante dessa indústria nas audiências do Congresso, onde foi questionada por parlamentares sobre proteções e controles em vigor. O site da Natsap hoje fala sobre isso, e a indústria mudou com o tempo. A associação enfatiza que há padrões éticos em vigor e que exige que os membros sejam licenciados por sua agência estadual ou um órgão de credenciamento nacional e que tenham serviços terapêuticos supervisionados por um clínico qualificado, embora eles mesmo não façam esse trabalho de credenciar as instalações. Os ativistas argumentam que os níveis atuais de supervisão não são suficientes. Eles afirmam que a falta de monitoramento nacional coeso permitiu que os malfeitores agissem e que instalações trocassem seus nomes para se distanciar das reclamações. Nas redes online que construíram, as pessoas que se identificam como sobreviventes se conectam e oferecem suporte em todo o país, reunindo informações e recursos para rastrear supostos abusos e as mudanças cíclicas de programas e funcionários. Um fórum do Reddit sobre o assunto tem mais de 20 mil membros. Embora vários programas e organizações mais controversos tenham sido encerrados nos últimos anos, as reclamações continuam a atormentar a indústria. Muitas das histórias e experiências de ex-residentes contadas à BBC tinham muito em comum - tenham elas ocorrido há décadas ou nos últimos dois anos. Muitos descreveram processos de chegada que os deixaram se sentindo degradados e desumanizados. Aqueles levados por empresas de transporte descreveram o processo como desorientador e assustador. Alguns, incluindo vítimas de abuso sexual, reclamaram de revistas e exames invasivos. Uma pessoa que foi enviada devido a dificuldades com depressão decorrente por caisa de uma disforia de gênero relatou ter sido submetida a um exame cervical quando era virgem, aos 14 anos. Outros descreveram que tiveram suas cabeças raspadas e fizeram exames de sangue e drogas, apesar de não terem histórico de uso dessas substâncias. Alguns afirmam ter testemunhado e experimentado práticas como isolamento e dizem que também eram orientados a punir e deter outras pessoas. Muitos descreveram sessões de "terapia de ataque" em que se esperava que os membros do grupo se confrontassem e criticassem uns aos outros e outras ações semelhantes que seriam exigidas para progredir e obter privilégios básicos. Outros descreveram trabalho físico arbitrário, punições coletivas e períodos de silêncio obrigatório que poderiam durar semanas. Todos eles descreveram ambientes repressivos com limites extremos e censura de seu contato com o mundo exterior. Muitos acreditam que seus pais foram enganados sobre a realidade dos programas nos quais os matricularam e descrevem regras que plantaram desconfiança entre eles e suas famílias. Alguns relataram danos contínuos aos relacionamentos e medos persistentes de se abrirem sobre suas experiências, mesmo depois de partir, por medo de serem mandados de volta ou serem desacreditados. Alguns disseram à BBC que testemunharam violência física, autoagressão e tentativas de suicídio, e muitos conhecem outros residentes que tiraram a própria vida depois de partir. Outros foram posteriormente diagnosticados com condições como transtorno de estresse pós-traumático e dizem que continuam a sofrer dificuldades sociais de longo prazo, incluindo a dificuldade de confiar em outras pessoas, por causa da experiência. Em 2006, a jornalista Maia Szalavitz escreveu um livro que estimulava os pais a buscar tratamento baseado em evidências para as crianças, em vez de recorrer a instituições de modificação comportamental. Seu livro traça as origens de muitos dos métodos usados ​​nessa indústria, incluindo terapia de grupo de confronto, a programas controversos e desacreditados de décadas atrás. Defensores de mudanças dizem que a indústria do "amor com rigidez", que começou a decolar na década de 1980, tem sido capaz de suportar décadas de controvérsia em parte por causa do estigma social em torno das questões pelas quais os pais procuram ajuda. Não é incomum que os adolescentes passem anos dentro do sistema, e as mensalidades, às vezes na casa dos milhares de dólares, podem aumentar rapidamente. Muitos, incluindo Szalavitz, acreditam que essas famílias podem explorar ou exagerar o medo de que as crianças acabem mortas ou encarceradas por causa de questões como o abuso de drogas. Ela e Kate Truitt, psicóloga clínica e neurocientista que trabalha com ex-residentes, dizem que o trauma vivenciado nessas instalações pode realmente perpetuar ou levar a batalhas de longo prazo contra o vício e relacionamentos abusivos. Muitos ex-residentes, incluindo alguns com quem a BBC falou, dizem que inicialmente viram seu tratamento como justificado e até defenderam que outros enviassem seus filhos. Alguns demoraram anos para mudar de opinião sobre o programa, depois de refletirem sobre suas experiências. Truitt compara o trauma que ela viu em alguns ex-residentes ao vivido por ex-membros de seitas ou prisioneiros de guerra. Ela ressalta que suas experiências podem ser particularmente prejudiciais, visto que a adolescência é um período crítico para o desenvolvimento. "E, por causa do tipo de trauma específico que suportaram, a maioria dos sobreviventes não se sente segura em procurar tratamento", disse ela à BBC. Paris Hilton revelou que já havia fugido de vários outros lugares antes de ser levada para Provo Canyon, em Utah, e mantida por quase um ano antes de completar 18 anos. O documentário This is Paris (Esta é Paris) mostra ela se reunindo com colegas de classe quando eles revelam seu trauma contínuo por supostas experiências de abuso emocional e físico naquele local. A empresa Provo Canyon permanece aberta. Um comunicado no topo de seu site diz que ela foi vendida para novos proprietários em 2000 e não pode comentar sobre as operações ou experiências de pacientes antes dessa época. Também afirma que não usa métodos como isolamento ou contenção física agora. O documentário de Hilton foi assistido quase 30 milhões de vezes, e ela continua a falar do assunto desde o lançamento. Isso marca um afastamento drástico da personalidade com a qual ela construiu sua marca de celebridade e império de negócios. Embora sua história de adolescente já fosse conhecida entre aqueles que passaram pelos mesmos sistemas, eles dizem que ter alguém tão conhecido falando sobre o tema ajuda a dar credibilidade e na conscientização do problema. Pessoas dentro da comunidade dizem que o documentário estimulou alguns a falar sobre sua experiência pela primeira vez ou foi útil para ajudar outros, incluindo pais, a entender o que eles passaram. Alguns ex-residentes se uniram sob a ideia de #BreakingCodeSilence (quebrando o código de silêncio, em inglês), em referência aos períodos de isolamento social obrigatório usados ​​como punição e como método de controle em algumas instituições. O termo "code silence", segundo os organizadores, é o nome dado a punições usadas em algumas dessas instalações para controlar crianças por meio do silêncio forçado, com o objetivo de isolá-las socialmente. "Uma das regras em muitos desses programas é que você não pode anotar o número de telefone ou nome de ninguém quando sai. Portanto, nunca foi feito para nos conectarmos", disse Katherine McNamara, que foi para Provo com Hilton, sobre os grupos que surgiram nas redes sociais. Ela e outras pessoas estão trabalhando juntas em uma organização sem fins lucrativos para ajudar a aumentar a conscientização, apoiar aqueles que se identificam como sobreviventes e defender mudança. Outras celebridades, incluindo Paris Jackson e a tatuadora Kat von D, foram inspiradas pelo documentário a falar sobre suas experiências. A rapper Bhad Bhabie, cujo nome verdadeiro é Danielle Bregoli, pediu que o apresentador Dr. Phil se desculpasse por mandar ela e outros adolescentes para instalações para adolescentes problemáticas em seu popular programa nos Estados Unidos. Isso aconteceu depois que outra ex-convidada entrou com um processo alegando que ela havia sido punida por relatar uma suposta agressão sexual por um membro da equipe do mesmo internato terapêutico para o qual Bregoli foi enviada. A instituição, que a BBC contatou para obter uma resposta, negou anteriormente as acusações contra ela e contestou seus relatos. Phil McGraw disse em uma entrevista que estava triste ao saber da suposta má experiência de Bregoli, mas distanciou a si mesmo e seu programa das alegações. Pessoas mais jovens, antes isoladas de seus pares adolescentes por causa de sua experiência, estão usando as redes sociais para tentar quebrar o estigma. Alguns ganharam muitos seguidores em plataformas como o TikTok contando suas histórias. Mas nada disso é isento de riscos pessoais — a BBC viu cartas de advogados enviadas a um criador de conteúdo depois que ele falou publicamente sobre o tema. Daniel ganhou mais de 240 mil seguidores e milhões de curtidas desde que começou a contar a história dele e de outras pessoas no ano passado. Ele agora recebe dezenas de mensagens todos os dias de outras pessoas que passaram por situações semelhantes e já recebeu mensagens de pais que escreveram para dizer que reconsideraram os planos de mandar seus filhos para esses lugares depois de ver os vídeos dele. "Se aos 15 anos eu soubesse que há pessoas lutando por mim, eu teria me sentido muito aliviado", diz ele sobre o movimento. Em alguns casos, as redes sociais têm sido uma ferramenta para mudanças tangíveis. Uma mulher chamada Amanda Householder usou o TikTok para espalhar conscientização sobre alegações a respeito do tratamento que seus pais deram a meninas em um rancho religioso que administravam no Missouri. Milhões de pessoas viram seus vídeos, e os funcionários fecharam a escola. Posteriormente, promotores entraram com mais de cem acusações de abuso físico e sexual contra o casal, as quais eles negaram. Toda essa atenção coincidiu com uma série de reformas legislativas estaduais. Householder deu declarações para acabar com as isenções religiosas no Missouri que impediam até mesmo a supervisão básica das condições em instituições religiosas privadas, como a que seus pais administravam. Ela descreveu a experiência para a BBC como "muito catártica... sabendo que talvez no futuro as crianças não tenham que passar pelo que passamos" e diz que espera dar evidências em seu processo criminal. Hilton fez parte de um grupo que falou em uma audiência para convencer os legisladores a introduzir melhores proteções em Utah — o Estado que se acredita ter a maior quantidade de instalações para "adolescentes problemáticos" dos Estados Unidos. "Eu não sei se meus pesadelos irão embora, mas eu sei que existem centenas de milhares de crianças passando por isso e, talvez, se eu ajudar a parar com os pesadelos delas, isso me ajudará a parar com os meus", disse. Mas para ela e outras pessoas, o verdadeiro objetivo final é promover uma mudança nacional. Tentativas anteriores de pressionar por supervisão e regulamentação federais falharam repetidamente no Congresso. Mas um porta-voz do gabinete do democrata Adam Schiff confirmou à BBC que ele está trabalhando para atualizar e reintroduzir a legislação destinada a proibir e acabar com o abuso em centros de tratamento residencial e aumentar a supervisão dessas instalações. Hoje, Erica Harvey deveria estar na casa dos 30 anos. "Não fica melhor com o passar dos anos", reflete Cynthia. Já tem mais de uma década que ela participa de audiências que pressionam por regulamentação federal. Mesmo contra todas as probabilidades, ela continua esperançosa. "Quando comecei a fazer meu trabalho após a morte de Erica, havia sobreviventes lá fora, mas eles não estavam sendo ouvidos. E, agora, eles estão começando a ser ouvidos". Imagens de Paris Hilton são de autoria de Kevin Ostajewski. Outras imagens foram fornecidas por entrevistados ou são do Getty Stock. Todas estão sujeitas a direitos autorais.
2021-07-06
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57722467
sociedade
De imagens sensuais a sexo explícito: brasileiros contam como ganham dinheiro no OnlyFans
Cezar Augusto, de 27 anos, queria comprar um carro novo. Porém, ele diz que com o salário de coordenador de projetos de uma agência de eventos, em uma cidade do interior, teria que abrir mão de muita coisa para isso. Foi assim que ele começou a ganhar dinheiro compartilhando fotos e vídeos sensuais na internet. Cezar criou um perfil no OnlyFans, plataforma na qual pessoas vendem conteúdos de diversos temas, mas que se popularizou pelo material erótico. Em três meses, ele diz que conseguiu ganhar o suficiente para comprar o carro. "O dinheiro veio mais rápido do que eu imaginei." Mas ele preferiu adiar seu plano e investir o valor em aplicações financeiras. Muitos outros brasileiros recorreram ao serviço para ganhar dinheiro no último ano. Criado em 2016 pelo britânico Tim Stokely, o OnlyFans tem criadores de conteúdo de todos os gêneros, corpos e nacionalidades. Os usuários se exibem de formas que vão de simples fotos sensuais a cenas de sexo explícito. Ganham ao vender materiais exclusivos ou conquistando assinantes — os pagamentos são em dólar. Os criadores ficam com 80% dos valores, e o OnlyFans, 20%. Durante a pandemia de covid-19, muita gente viu no site uma salvação financeira em meio à crise, e o número de usuários cresceu exponencialmente. O OnlyFans afirma ter hoje mais de 130 milhões de membros no mundo — eram 20 milhões antes do coronavírus —, e mais de 1,25 milhão deles são criadores de conteúdo. Atualmente, 500 mil novos usuários se inscrevem diariamente, diz a empresa à BBC News Brasil. Há criadores que conseguem ganhar muito dinheiro, segundo o OnlyFans. O site estima que mais de 300 pessoas já receberam mais de US$ 1 milhão (cerca de R$ 5 milhões). Mas, por trás da ilusão de dinheiro fácil, há uma rotina de trabalho intenso, na busca por formas para agradar os assinantes, além do risco do vazamento indevido de imagens pessoais. Isso demanda uma atenção extra com as políticas da plataforma e às mudanças que ela pode fazer no modelo de negócios, o que pode afetar quanto dinheiro entra na conta de quem divulga conteúdo por lá. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esse sucesso é uma convergência entre exibicionismo, transformação do corpo em mercadoria e consequências da crise econômica na pandemia, diz Clotilde Perez, professora da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP). "Muitos quiseram unir o útil ao agradável: exponho meu corpo por meio de uma expressão fetichista, transformando o corpo em mercadoria sem julgamento, e ainda ganho dinheiro com isso durante a pandemia", diz Perez à BBC News Brasil. Foi justamente na pandemia que Cezar passou a usar a plataforma, enquanto continuou no emprego. Ele diz que vislumbrou a possibilidade de ganhar dinheiro dessa forma quando passou a publicar fotos sensuais em sua conta no Twitter e viu o número de seguidores quadruplicar em um ano. "Eu não ganhava dinheiro (no Twitter), era só 'biscoitagem' (exibição) e nada muito explícito. Mas vi que o pessoal gostou. Muitos fãs pediram para criar um perfil no OnlyFans. Eu tinha um pouco de preconceito. Relutei muito", diz Cezar. Ele conta que mudou de ideia ao ver famosos aderindo ao OnlyFans e, em novembro passado, passou a produzir imagens para o site com a ajuda de um fotógrafo e alguns conteúdos com nudez explícita. Com o tempo, passou a planejar publicações conforme os pedidos dos fãs e diz que isso ajudou também a atrair novos assinantes. "Eu postava uma prévia no Twitter, e o pessoal acabava assinando", lembra. Cezar diz que chegou a ter 150 assinantes. As mensalidades variavam de US$ 10 (cerca de R$50) a US$ 13 (cerca de R$ 65), além das eventuais gorjetas. Ele conta que seus relatos sobre o OnlyFans no Twitter incentivaram alguns de seus seguidores a criar seus próprios perfis. "Muitos vieram pedir informação, perguntar como funcionava, como se inscrevia. Até meninas, mas para muitas delas acaba sendo mais complicado pelo machismo", conta Cezar. Ele diz ter ouvido alguns comentários sobre esse seu trabalho na cidade onde mora, Umuarama, no interior do Paraná. "As pessoas pensavam: nossa, ele está no OnlyFans. Mas, depois viram que deu certo, que estava rendendo dinheiro, e entenderam e apoiaram", comenta. Para evitar comentários de conhecidos, há criadores que não falam abertamente sobre o assunto, como a escritora Lara, de 28 anos, que começou na plataforma em janeiro deste ano. Ela assumiu esse nome para esse trabalho. Sua família não sabe de nada. "Meus amigos e parceiros sabem. Minha namorada é quem tira 90% das minhas fotos, mas não quero ter essa conversa (com a família) se não precisar", diz. Lara tem emprego fixo em São Paulo e usa o OnlyFans para complementar a renda. "Ganho entre R$ 1 mil e R$ 2 mil por mês (com o site)", afirma. Hoje, ela conta que dedica de três a quatro horas diárias à criação de conteúdo e interação com centenas de fãs. Ela ficou desempregada durante alguns meses no último ano. Mas, ao contrário de muitos que recorreram ao OnlyFans por dificuldades financeiras na pandemia, preferiu se restabelecer profissionalmente. "Eu pensava: se fizer só porque estou precisando do dinheiro, talvez faça do jeito errado. Então, amadureci a ideia, fiquei pensando para entender o tipo de conteúdo que se produzia e o que eu poderia fazer", conta. Militante dos movimentos pela celebração de corpos diversos e LGBT, Lara afirma que já estava acostumada a se expor na internet. Logo que criou o perfil no OnlyFans, compartilhou fotos de lingerie e praticando pole dance, como fazia em outras redes. Conforme ganhou experiência, ajustou seu conteúdo de acordo com os pedidos dos assinantes. "Comecei a produzir algumas coisas mais explícitas sob demanda, para fidelizar os clientes", conta. Ela criou uma tabela de preços em seu perfil: uma foto sensual custa US$ 5, e um vídeo personalizado de strip tease, o item mais caro, US$ 12. "Estou constantemente perguntando para a audiência o que procuram, para ver o que posso oferecer que está dentro dos meus limites", diz. Lara acredita que o contato com os assinantes é uma das partes mais importantes do trabalho. "Mantenho o OnlyFans sempre aberto no meu celular para ir checando para ver se tem gente nova. Mando mensagem para quem se inscreve, agradeço comentários, troco ideia." Ela busca por novos assinantes dentro do próprio OnlyFans, por meio de outras criadoras de conteúdo. Elas fazem acordos e divulgam umas as outras para seus fãs. Enquanto muitos optam por manter o perfil apenas para assinantes, Lara permanece por enquanto com sua página gratuita e ganha dinheiro com conteúdos personalizados. "Há fãs que compram tudo, e sei que se eu resolver focar num perfil fechado, que é meu plano, essas pessoas vão acompanhar", afirma Lara. "Estou apostando muito em melhorar o conteúdo e para crescer." Para Lara, uma das principais vantagens são os pagamentos em dólares. "Você pode cobrar baixo e mesmo assim ganhar bastante", diz. Ela conta que seu público é formado majoritariamente por usuários do exterior. "Acho que só tem esse movimento tão grande de brasileiras produzindo para o OnlyFans porque é um site gringo", diz. "Quando você está lidando com pessoas do Brasil, pensa: 'putz, essa pessoa pode pegar o carro e vir até minha casa'. Isso dá medo." Entre os que se exibem no OnlyFans, há pessoas que trabalham com conteúdo sexual na internet há anos e têm na plataforma uma nova oportunidade para faturar, como Emanuelly Raquel, que começou a fazer shows de webcam aos 18 anos. Na época, ela se exibia por meio do extinto programa de mensagens MSN. "Comecei porque é uma coisa que eu gosto, e me identifiquei desde o princípio. Para mim, é o trabalho perfeito", afirma ela, que hoje tem 31 anos. Emanuelly, que mora em Balneário Camboriú, em Santa Catarina, diz que criou esse nome fictício para manter sua privacidade. Ela relata que a família e os amigos sabem do trabalho erótico. "Tenho muita sorte, porque nunca sofri preconceito. Às vezes, leio algum comentário ruim na internet, mas lido de forma tranquila com isso", diz. No passado, ela diz que buscava clientes em salas de bate-papo. Quando alguém se interessava, acertava um show no MSN. Depois, migrou para outros sites, e, no fim de 2020, passou a focar no OnlyFans, após começar a ganhar menos com a plataforma à qual se dedicava. "De um dia para o outro, meu salário caiu pela metade. Por isso, decidi investir no OnlyFans, comecei a postar todos os dias, e se tornou a minha principal plataforma de trabalho", comenta. Ela diz ter atualmente mais de mil assinantes — muitos de outros países. Estima que ganha cerca de US$ 10 mil por mês no OnlyFans, o maior valor desde que começou a produzir conteúdo erótico na internet. "Estou entre os menos de 1% que conseguem esse valor", afirma. Ela cobra US$ 9,99 por assinatura, na qual a pessoa pode ver os vídeos e fotos que ela compartilha, e oferece conteúdos sob demanda. São fotos nua, vídeos de masturbação e cenas de sexo com um parceiro. A produção e a divulgação são feitas por ela própria. "Gravo três vezes por semana, umas 12 horas por dia. Nos outros dias, me dedico às minhas redes", explica. No Instagram, onde compartilha imagens sensuais e divulga intensamente seu perfil no OnlyFans, tem 424 mil seguidores. Emanuelly diz que o modo de faturar na internet com conteúdo adulto amador está se tornando cada vez mais profissional. "No começo, era complicado, porque não tinha sites como hoje. Atualmente, é mais fácil conseguir clientes, porque muitos estão esperando por esse tipo de conteúdo. No passado, a gente precisava ir atrás das pessoas até montar uma clientela", afirma. Com o que ganhou ao longo dos anos na carreira, diz ter comprado apartamentos e que está construindo duas casas. "Serão a minha aposentadoria", planeja. Emanuelly diz que viu muitas mulheres perderem empregos na pandemia e abrirem contas no site. "Os perfis das pessoas que ganham dinheiro nessas plataformas mudou. Antes, eram mais tímidas e tinham medo de se exibir, mas aí veio o boom do OnlyFans", comenta. Muitos dos que já se exibiam no site antes da pandemia viram seus ganhos saltarem nesse mesmo período. João Marcos, de 28 anos, diz que foi assim com ele. "Hoje, se souber fazer direito, pode ganhar até R$ 50 mil. Conheço gente que ganha nessa faixa, mas há outros que não conseguem nada. Muitos, quando filmam sexo, é algo mecânico. Isso não atrai assinantes, porque as pessoas querem ver um prazer real", afirma João. João conta que atualiza o perfil três vezes por semana com vídeos de sexo ao lado do companheiro ou de outros homens. "O conteúdo precisa ser espontâneo. As pessoas não gostam de sexo por obrigação", afirma. Ele começou no OnlyFans em maio de 2019. No ano anterior, tinha começado a compartilhar fotos eróticas no Twitter, após ver outros perfis que faziam isso. Na época, diz ele, era por puro prazer, sem receber nada. A decisão de criar um perfil no Onlyfans, diz João, veio após vários pedidos de pessoas de diferentes países no Twitter, onde tem mais de 195 mil seguidores. "Quando criei, era bem mais difícil ganhar dinheiro e até de receber pagamentos aqui no Brasil", diz. Ele avalia que a situação melhorou no ano passado, com o aumento de usuários da plataforma. Para João, esse trabalho mudou sua vida. Foi no OnlyFans que ele conheceu seu companheiro e conseguiu dinheiro para se mudar do interior do Rio de Janeiro para a capital. "Toda a mobília da minha casa foi comprada com dinheiro do OnlyFans", diz. Ele afirma que faz os vídeos pelo prazer de se exibir e porque precisa ter um meio de ganhar dinheiro. Estima que fatura aproximadamente R$ 10 mil por mês — cada assinatura de seu perfil custa US$ 3 no primeiro mês e, depois, sobe para US$ 10. A repercussão nas redes chegou a familiares e conhecidos. "Vieram me falar que aquilo poderia sujar minha imagem e que não teria nenhum retorno. Isso não é sujar a minha imagem. Todo mundo faz sexo, só que entre quatro paredes. A diferença é que o que eu faço é exposto." Em meio aos perfis de sexo explícito e outros conteúdos eróticos, o OnlyFans atrai muitas pessoas por não se restringir a essa temática, diz a cientista social Lorena Rúbia Pereira Caminhas, que é doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e está desenvolvendo um projeto de pós-doutorado sobre o OnlyFans no país. "Como não é inicialmente uma plataforma voltada a esse tipo de trabalho e sim de financiamento, as pessoas se veem mais aceitas ao colocar seus conteúdos ali", explica. "Até a (cantora) Anitta está no OnlyFans, e ela não faz trabalho sexual." Mas muitos que estão na plataforma dizem que já ouviram propostas para fazer programa. Porém, muitos reforçam que suas atividades não vão além das telas — apesar de não verem problema com quem se prostitui. "Para mim, não tem nada a ver com prostituição. A pessoa está se exibindo, sem contato físico. Alguns homens confundem. Há meninas que se exibem nessas plataformas e também fazem programas, mas não são todas", comenta Emanuelly. Ela ressalta que não se incomoda quando pensam isso dela. "Cada um tem a sua opinião." João Marcos também diz que não faz programa, mas afirma que já foi associado a isso por causa dos vídeos. "Esse tipo de pensamento é mais incomum hoje, depois que se popularizou essa coisa de exibicionismo na internet. A galera viu que a gente quer ganhar dinheiro com a nossa imagem e transando com quem a gente sente prazer", afirma. Entre aqueles que assinam plataformas como o OnlyFans, há um "prazer voyeurista", pontua Clotilde Perez. Ela afirma que o site representa hoje, nas devidas proporções, algo como os shows eróticos do passado ou as seções de filmes pornográficos em videolocadoras. "A questão é que, agora, com a internet, a dimensão é gigantesca." Com os vídeos e fotografias compartilhados na rede, há também os riscos da exposição. "Isso pode transbordar e chegar a outros lugares. Como a pessoa está se exibindo para desconhecidos, alguém pode gravar a tela e reproduzir em outras redes. Quem entra na plataforma precisa estar ciente disso", declara Perez. A "dimensão gigantesca" da internet fez com que vídeos de Cezar fossem compartilhados com conhecidos que não tinham acesso à plataforma. "Fui alertado por amigos", diz. Enquanto há criadores de conteúdo no OnlyFans que afirmam não se importar, Cezar se incomodou com a situação. "Já sabia que poderia acontecer e não impactou minha vida profissional, mas meio que coloquei tudo na balança e preferi dar um tempo", comenta. Quando o episódio ocorreu, ele já havia atingido a meta de cerca de R$ 20 mil e parou de atualizar seu perfil. "Estava consumindo minha energia, por mais que o dinheiro seja atrativo", relata. À BBC News Brasil, o OnlyFans diz que proíbe a cópia, duplicação ou gravação de conteúdos sem a devida permissão e frisa que isso é proibido por lei. Também afirma ter uma equipe antipirataria que cuida dos direitos dos conteúdos produzidos na plataforma para que sejam removidos de outros lugares da rede, caso sejam compartilhados indevidamente. "A taxa de sucesso dos pedidos de remoção de conteúdos compartilhados indevidamente é de mais de 75%", diz. A cientista social Lorena Rúbia Caminhas faz ainda outro um alerta, especialmente para quem não está acostumado ao trabalho sexual ou não pretende adotá-lo a longo prazo: é preciso estar atento aos termos de uso dos sites. "As plataformas mudam os termos o tempo todo, então, se você não tiver ciência das mudanças, pode acabar perdendo esse conteúdo ou sendo impedido de publica-lo em outro lugar", aponta. "Quem já faz camming (transmissão erótica pela internet) ou pornô entende mais ou menos (a dinâmica), mas pessoas que estão entrando agora para fazer por seis meses e sair podem não estar atentas", diz. De acordo com a política de privacidade do OnlyFans, o criador de conteúdo concorda em ceder à empresa o direito de uso, reprodução, modificação e distribuição de suas imagens e permite que a empresa as compartilhe com terceiros. O site afirma que a cláusula existe apenas para que possa fazer operações rotineiras, como a aplicação de marcas d'água para proteção das imagens, e que jamais venderá o conteúdo para outras companhias. Especialistas afirmam que também é preciso observar com cuidado a evolução do modelo de negócios dessas plataformas. Priscila M., pesquisadora e fundadora de projeto que oferece treinamento para mulheres com esse tipo de atividade com foco na defesa dos interesses das profissionais, diz que a publicidade do setor confunde, propositalmente, sobrevivência financeira com empreendedorismo. Segundo ela, o Brasil não está protegido de uma possível "evolução problemática" do mercado. De acordo com a pesquisadora, com o surgimento e popularização de novas plataformas e de modelos nos quais trabalhadores são pagos por meio de gorjetas durante exibições gratuitas, houve uma precarização do trabalho sexual virtual. "Quando esse mercado começou, na Romênia — berço do camming —, tudo acontecia em sessões privadas e pagas, você só podia ver a foto se pagasse", conta a pesquisadora. "Hoje, você tem mulheres recebendo 12% de comissão por gorjetas para fazer coisas muito extremas em salas abertas ao público." Lorena Rúbia Caminhas também chama a atenção para a dicotomia entre a suposta liberdade do criador de conteúdo e a dependência das decisões da empresa. "Se amanhã o OnlyFans aumentar a taxa para você publicar seu conteúdo, você não tem muita opção para onde ir. Então, você fica confinada aos critérios da plataforma", reforça. Priscila M. diz ser preocupante que os criadores estejam desamparados nessa profissão e que a única informação que se tenha (a respeito do trabalho sexual virtual) seja o marketing das próprias plataformas. "A pessoa muitas vezes não pensa que o objetivo é gerar lucro ao proprietário da plataforma, não cuidar do futuro ou da saúde de alguém." Esta reportagem foi alterada para modificar a identificação de uma das pessoas entrevistadas.
2021-07-06
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57673831
sociedade
Por que os holandeses são os mais altos do mundo
Uma terra de gigantes. Essa é a Holanda. Ali, homens com cerca de 20 anos têm uma altura média de 1,84 m. A dos brasileiros na mesma faixa etária é de 1,75 m. Mas nem sempre foi assim. Uma revisão dos registros militares holandeses para um estudo publicado pela Royal Society of London, instituição destinada à promoção do conhecimento científico, descobriu que em meados do século 19, os homens na Holanda estavam entre as pessoas mais baixas da Europa. "Em 1860, os militares holandeses tinham cerca de 1,65 m de altura", diz a professora Louise Barrett, da Universidade de Lethbridge, no Canadá, que participou do estudo, em entrevista à BBC. "Naquela época, os homens nos Estados Unidos eram cerca de 5 cm mais altos", e essa diferença os tornava as pessoas mais altas do mundo. Mas 160 anos depois, o estudo de altura e peso de 65 milhões de pessoas em 200 países publicado pela revista médica The Lancet revelou que em 2019, a altura média de jovens de 19 anos na Holanda era de 1,838 m. Os americanos ficaram para trás, com 1,771 m em média. A medida para mulheres holandesas da mesma idade é 1,704 m. A altura é mais bem compreendida quando comparada. Neste estudo, a diferença entre os países com a maior e a menor altura média é de 20 cm ou mais. Entre os mais altos e os mais baixos do mundo, há uma diferença de oito anos de crescimento para as meninas e de seis anos para os meninos. Ou seja, as meninas guatemaltecas (as mais baixas) têm aos 19 anos a mesma altura média que as meninas holandesas aos 11. Da mesma forma, "meninos de 19 anos de 11 países da Ásia, América Latina e África Subsaariana tinham a mesma altura média que holandeses de 13 anos". No entanto, todos nós crescemos. "Os humanos ficaram mais altos em uma velocidade recorde nos últimos dois séculos", diz Eirini Marouli, professora de Biologia Computacional da Universidade de Londres. "E isso é um fato em todo o mundo. Os homens cresceram de cerca de 1,60 m para 1,70 m, as mulheres de 1,50 m para cerca de 1,60 m", explica ela à BBC. "Em geral, podemos dizer que o adulto médio hoje é cerca de 5% mais alto do que seus ancestrais eram há 100 anos." Os cientistas continuam a debater as causas desse crescimento acelerado: acredita-se que melhor nutrição, democratização da riqueza, fatores genéticos e seleção natural de homens altos tiveram um papel na mudança. Mas na Holanda, onde houve um aumento de 20 centímetros nos últimos 200 anos, e onde mesmo os imigrantes geralmente acabam sendo mais altos do que as pessoas que permanecem em seus países de origem, parece que algo mais está acontecendo. Há uma discordância entre especialistas. Para Marouli, trata-se de pura genética em ação. Mas Barrett desconfia que tudo aconteceu rápido demais para a mudança ter sido provocada apenas pela genética. "O crescimento holandês é um bom exemplo da evolução humana em ação", diz Marouli. Na verdade, um estudo de Barrett descobriu que os casais mais férteis na Holanda, aqueles com mais filhos, eram homens altos e mulheres de estatura média. E os casais americanos mais férteis? Mulheres de baixa estatura e homens de média estatura. Fatores ambientais também teriam influído no crescimento dos holandeses, acrescenta Barrett, citando os bons sistemas de saúde e bem-estar social e os baixos níveis de desigualdade de renda. "[Na Holanda] tudo é voltado para a geração de bebês que não sofrem com nenhum dos problemas que reduzem a altura", disse ele. Outro fator que provavelmente contribui para seu crescimento é o apetite voraz por laticínios, já que "o cálcio constrói os ossos e o crescimento depende de um bom suprimento disso", explicou Barrett. Isso significa que eles continuarão crescendo em estatura para sempre? "Eles podem estar atingindo o limite que os humanos conseguem alcançar", diz Marouli. "Temos que esperar para ver... só o tempo dirá." Tudo isso pode ser muito interessante, mas, além do óbvio, por que os cientistas estão tão interessados ​​em estudar a altura das pessoas? "A altura é um traço padrão para todos os outros traços genéticos complexos, porque é muito fácil de medir", explica Marouli. "Portanto, se pudéssemos dominar a genética de uma característica complexa como a altura, isso poderia nos ajudar em um plano para estudar outras doenças multifatoriais, como diabetes, doenças cardíacas e assim por diante." "No estudo mais recente publicado pelo consórcio GIANT (em inglês 'gigante', mas também a sigla para Genetic Investigation of Anthropometric Traits, ou investigação genética de características antropométricas) identificamos mais de 3 mil variações genéticas, mudanças no DNA, que afetam a altura humana. Se você tem [essas variações], sua altura pode aumentar em até 2 centímetros." Muitas dessas mudanças no DNA também são encontradas perto de genes que estão envolvidos na biologia óssea e no crescimento do esqueleto. "Algumas mudanças também lançam luz sobre os processos biológicos que afetam a altura; seria mais que interessante saber como passamos de bebês a adultos com o aumento da altura. Essa é uma das questões complexas que ainda não respondemos totalmente." "E a identificação de um gene que determina, por exemplo, fatores de crescimento no sangue pode render muitos novos insights sobre estratégias terapêuticas para tratar a deficiência de crescimento — que afeta de 3 a 5% da população — e sobre tratamentos para outras doenças comuns. É por isso que é tão importante."
2021-07-05
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57719290
sociedade
'Meu pai não me reconheceu após anos usando creme para clarear pele'
Moradora da cidade de Bradford, na Inglaterra, Grazia, uma mulher negra, usou clareadores de pele por tantos anos que seu pai não a reconheceu mais. Hoje com 29 anos, ela contou à BBC que começou a usar um corticosteroide muito potente aos 18 anos — e só interrompeu o uso no ano passado. Por morar no exterior há muitos anos, ela sempre passou longos períodos sem ver a família. "Meu pai uma vez disse que não me reconheceu porque não nos víamos havia dois anos", relata Grazia. "Quando ele me viu, ficou chocado, porque eu estava com a cor muito clara." "Ele ficou decepcionado, triste e me implorou para parar [de usar os cremes]." As pomadas usadas pela mulher servem na verdade como tratamento curto para certas doenças de pele, como o eczema. Por serem muito potentes, elas devem ser usadas por no máximo uma semana, segundo recomendação de autoridades de saúde britânicas. Um efeito colateral destes cremes é que eles podem clarear a pele, então algumas pessoas os aplicam com fins estéticos — uso não recomendado por autoridades e dermatologistas, segundo quem este uso a longo prazo e sem acompanhamento pode causar uma série de problemas na pele, como enfraquecimento da pele, maior vulnerabilidade a machucados e hematomas, mudanças na pigmentação, estrias e problemas de visão (com risco aumentado de catarata e glaucoma). Entretanto, de acordo com Heather Nelson, representante da organização Black Health Iniciative (Iniciativa pela Saúde das Pessoas Negras) em Leeds, a escala de uso destes cremes na Inglaterra é "enorme". "Não conseguimos quantificar isso porque as pessoas não dizem ou admitem prontamente que usam esses cremes clareadores. Por que elas usam?", indaga Heather. "Porque elas estão tentando alcançar o ideal de beleza eurocêntrico. Se elas querem progedir em certas carreiras, acreditam que precisam ter uma determinada aparência." A reportagem encontrou produtos que deveriam ser vendidos mediante prescrição médica expostos indevidamente em balcões de algumas lojas no condado de Yorkshire. Jornalistas disfarçados conseguiram comprar os cremes com facilidade em seis dos sete salões de beleza visitados — no estabelecimento em que isso não foi possível, o produto não estava disponível no estoque. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Grazia diz que, comparada a hoje, sua pele tinha uma "cor totalmente diferente" até os 18 anos. "Antes, eu achava que era feia." "Hoje, me chateia ter usado (os cremes) por tanto tempo. Acho que começar a gostar de si mesma é um processo." O dermatologista Walayat Hussain começou a atender Grazia para avaliar os efeitos de seu longo uso de corticosteroides. Quando viu uma foto dela aos 18 anos, com seu tom de pele natural, o médico olhou duas vezes para a imagem e perguntou: "Essa é realmente uma foto sua?" Hussain diz ser "muito, muito preocupante" que estes cremes estejam disponíveis com tanta facilidade. "Não deveria ser possível simplesmente comprá-los no balcão, pois (estes medicamentos) podem ter consequências graves para os pacientes." Os cremes que clareiam a pele estão no "degrau mais alto na escada dos esteroides", acrescenta o médico, quando comparados com os cremes para eczema com hidrocortisona, relativamente fracos, vendidos sem necessidade de receita médica. "Então imagine usar isso sem qualquer conhecimento do que você está fazendo com sua pele. É realmente preocupante." Binti Asumani mudou-se da Tanzânia para o Reino Unido em 2013 com seu marido e filho. Dois anos depois, ela começou a usar cremes que clareiam a pele. "Queria mudar minha cor porque via minhas amigas claras e pensava: 'Por que não posso ficar mais bonita?'" Binti começou a procurar esses produtos e seus amigos a direcionaram a um mercado local, onde ela conseguiu comprar um creme forte. Depois de usar os cremes por dois anos, começou a sentir efeitos colaterais desagradáveis. "Comecei a ficar com manchas no rosto e meus olhos sempre lacrimejavam e ardiam quando abria o pote do creme", conta. Depois de ir ao médico, Binti foi orientada a parar de usar o creme imediatamente. Parar não foi fácil, e ela diz que sentiu danos a sua autoimagem. "Para interromper (o processo de clareamento), não leva tempo. Voltei à minha cor natural em cerca de dois meses." "Me senti mal, fiquei dentro de casa por dois meses porque estava mais escura do que antes." Binti diz que adoraria que a valorização da beleza negra se fortalecesse antes que sua filha tenha desejo de fazer o mesmo que ela, clarear a pele. "Qual é o sentido de se machucar em troco da estética?", questiona. "Espero que minha filha entenda os efeitos colaterais que tive com o uso desses produtos químicos."
2021-07-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57703422
sociedade
Pais de crianças chamadas Alexa protestam contra Amazon
Pais de crianças chamadas Alexa dizem que suas filhas estão sofrendo bullying por ter o mesmo nome que a Amazon usa para sua assistente virtual. Alguns chegaram a mudar o nome das filhas porque dizem que a enxurrada de piadas relacionadas ao nome Alexa é "implacável". Eles pedem que a Amazon mude a palavra de ativação padrão para seus dispositivos para um nome não humano. A Amazon diz que está "entristecida" com esses relatos, e que palavras alternativas para chamar a assistente virtual estão disponíveis. A palavra Alexa se popularizou nos últimos anos, à medida que mais famílias usam alto-falantes inteligentes ativados por voz. Os aparelhos Echo e Echo Dot da Amazon usam Alexa como o comando que você diz antes de dar instruções ou fazer uma pergunta. No entanto, isso está causando problemas para pessoas chamadas Alexa, que frequentemente são vítimas de piadas: as pessoas gritam seu nome e emitem um comando. A filha adolescente de Heather (nome fictício), Alexa, ouviu piadas de outras crianças, e até por professores, por causa de seu nome, assim que ela começou o Ensino Médio. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Ela começou a não querer se apresentar por causa das piadas e da reação. Ela era e ainda é uma criança, mas os adultos achavam que não havia problema em brincar com ela. É devastador. A escola não ajudou e disse que ela precisava ficar mais resiliente." 'Alexa é uma humana' Heather diz que a situação afetou muito a saúde mental de sua filha. No final, elas decidiram mudar legalmente o nome de Alexa. "Ela está em uma situação muito melhor agora. Cortamos amigos e a mudamos para uma nova escola para permitir um novo começo. A injustiça nunca vai deixá-la, ou a nós. A Amazon deve mudar a palavra padrão em seus dispositivos. Claramente não há pesquisas éticas suficientes sobre o uso de Alexa." Existem mais de 4.000 pessoas chamadas Alexa com menos de 25 anos no Reino Unido, e os pais de algumas delas contaram à BBC histórias semelhantes às de Heather. Charlotte (também nome fictício) diz que sua filha Alexa tem apenas seis anos, mas já está sendo perseguida. "Tudo começou na escola. As crianças mais velhas diziam coisas como 'Alexa, toca música disco'. Outros meninos gritavam comandos para ela. "Nós estávamos no parque outro dia e todos os garotos estavam dizendo isso para ela constantemente. Ela começou a se calar. Acho que está afetando a confiança dela. Os adultos também riem dela." "Ela me disse: 'Gostaria que as pessoas não soubessem meu nome'. As pessoas que compram esses dispositivos estão inadvertidamente aumentando o problema." Charlotte acrescentou que a Amazon "não anuncia o fato" de que a palavra de ativação pode ser alterada. Em resposta, a Amazon disse em um comunicado: "Projetamos nosso assistente de voz para refletir as qualidades que valorizamos nas pessoas - ser inteligente, atencioso, empático e inclusivo." "Estamos tristes com as experiências que você compartilhou e queremos ser muito claros: bullying de qualquer tipo é inaceitável e nós o condenamos das formas mais fortes possíveis." O problema, que atraiu reclamações desde o lançamento de Alexa em 2014, não se limita ao Reino Unido. Lauren Johnson, de Massachusetts, nos Estados Unidos, iniciou uma campanha chamada Alexa is a Human (Alexa é uma humana). "Minha filha Alexa está com 9 anos agora. A coisa toda é um passo além das provocações e intimidações 'normais'. É o apagamento de identidade. A palavra Alexa se tornou sinônimo de serva ou escrava. Ela dá às pessoas a licença para tratá-las com o nome Alexa de maneira subserviente", disse. Lauren acrescentou que, para crianças mais velhas, muitas das piadas envolvendo o nome Alexa podem ser de natureza sexual. O problema também afeta adultos. Alexa mora em Hamburgo, na Alemanha, e sofre com piadas tanto na vida privada quanto profissional. "Se faço uma apresentação no trabalho, assim que digo meu nome, alguém sempre faz um comentário", disse ela à BBC. "Acho que é eticamente inaceitável que uma marca possa sequestrar um nome humano e mudar totalmente seu significado. Meu nome é minha identidade. Eu encorajaria todos que se chamam Alexa a lutar por seu nome. É a Amazon que tem que dar um passo atrás." Desde que os dispositivos Alexa da Amazon foram introduzidos no Reino Unido, em 2016, a popularidade do nome caiu drasticamente. Na época, era o 167º nome do bebê mais popular na Inglaterra e no País de Gales, mas em 2019 já era o 920º. No Brasil, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que há 1.493 pessoas com esse nome, o que o coloca na posição 6.282º no ranking de popularidade. Amazon respondeu: "Como alternativa ao Alexa, também oferecemos várias outras palavras de alerta que os clientes podem escolher, incluindo Echo, Computer e Amazon. Valorizamos o feedback dos clientes e, como em tudo o que fazemos, continuaremos procurando maneiras para oferecer a eles mais opções nesta área." Alexa não é a única assistente de voz a ter um nome também usado por pessoas reais. Siri, o nome do assistente de voz da Apple, é uma abreviação de Sigrid e é usado na Noruega, Suécia e nas Ilhas Faroe. No entanto, sua pronúncia em norueguês é diferente. Uma adulta chamada Siri, residente no Reino Unido, disse anteriormente à BBC que recebeu muitas piadas de pessoas sobre seu nome, incluindo uma de um funcionário do helpdesk da Apple. A ONG NSPCC, que trabalha com ações para crianças, recomenda a crianças vítimas de bullying (online ou pessoalmente): procurar um adulto de confiança, como um professor ou pai/mãe, não enfrente os agressores sozinho ou retaliar, pois isso pode causar problemas, evitar situações de conflito, ficando acompanhado por amigos, cuidar da saúde mental (sair, ler um livro, ouvir música, encontrar um amigo). Se houver intimidação nas redes sociais, a recomendação é denunciar e, se for necessário, passar um tempo longe delas.
2021-07-02
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57695563
sociedade
'A gente se esquenta com os cachorros': a rotina dos moradores de rua nos dias mais frios do ano em SP
Três cobertores formam uma manta no chão. Por cima, apenas um cobertor para se cobrir. É assim que Osvaldo Pereira, de 57 anos, se protege das baixas temperaturas nos dias mais frios do ano em São Paulo. Ele dorme com amigos ao lado da igreja Nossa Senhora da Boa Morte, na Sé, marco zero de São Paulo. A reportagem da BBC News Brasil conversou com diversos moradores de rua que vivem na região para entender como eles enfrentam a temporada de inverno. Nesta semana, o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) registrou 6,3ºC, a temperatura mais baixa dos últimos cinco anos na cidade de São Paulo. Além das mantas, Osvaldo disse que coloca um papelão no chão antes de dormir sob uma estreita marquise, mas exposto ao vento cortante na madrugada. "Quando acordo, está tudo molhado. O chão tem muita umidade e se a gente dormir direto nele o frio é maior. Tem pessoas que passam e dão sopa, e a gente vai se aquecendo. Mas, quando está ventando, a gente sofre muito", afirma. Há mais de 30 anos nas ruas, Claudinei França Cruz, de 52 anos, conta que soube de dois moradores de rua que morreram de frio nesta semana a poucos metros de onde ele dorme. "Eu conhecia um deles. A gente fica com medo", conta sem muitos detalhes. A Secretaria da Segurança Pública afirmou que não registrou nenhum caso de morte suspeita de frio nesta semana em São Paulo. O padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, afirmou à reportagem que percorreu IMLs, delegacias e também não encontrou nenhum caso de morte suspeita por frio. No entanto, mesmo sob o risco de ter uma hipotermia e morrer de frio, o companheiro dele de rua, Osvaldo Pereira disse que prefere dormir na rua a pernoitar num abrigo oferecido pela prefeitura. "Lá (abrigo) é muita treta. Essa molecada de hoje é muito desenfreada e eu evito. Prefiro ficar na calçada porque lá você não dorme direito, é muita bagunça. Molecada folgada que não deixa dormir direito", afirmou. O chuveiro é aberto, a contagem regressiva é acionada e, cinco minutos depois, a água gelada despenca sobre a cabeça de quem está tomando banho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Claudinei da Cruz afirma que um dos momentos mais incômodos durante no inverno é tomar banho. Ele conta que há locais na região onde os moradores de rua conseguem fazer a higiene diária, como o conhecido Chá do Padre, no centro, e as tendas erguidas pela prefeitura. "No Chá do Padre, eles dão uma senha. Na tenda, tem um tempo de cinco minutos e o chuveiro esfria quando ele acaba", afirmou. Na rua, ele diz que ameniza o frio bebendo "umas cachaças" e com a ajuda de "umas cobertinhas". Osvaldo Pereira disse que passou por momentos difíceis, como quando a filha dele morreu, e ele disse ter "se jogado" nas ruas. Desde então, ele prefere ficar sozinho. Ele conta que tem familiares que moram em Atibaia, no interior de São Paulo. "Mas não vou ficar na casa dos outros. Eles (irmãos) querem que eu fique lá, mas eu não quero. Sabe por que? Na hora que você entra em casa, no banheiro, já tem gente batendo. Você senta no sofá e ele diz que aquele é o lugar dele. Você tira a privacidade das pessoas e eu não quero dar trabalho pra ninguém", conta chorando. Ao ser questionado sobre seus sonhos, ele diz que não sabe responder. "Eu não sei responder essa pergunta. Querer sair dessa situação, todo mundo quer. Estou com as costas todas machucadas porque dói. Olha esse chão duro, mas eu não tenho casa para morar. Vou fazer o quê?". Cobertores, mochilas e sacolas fazem as vezes de travesseiros para Irani Benedita de Araújo, de 59 anos. Vinda do Mato Grosso do Sul há cinco meses, ela divide um espaço de cerca de 2 metros quadrados na praça da Sé com o marido, que morava em Santana de Parnaíba antes de ir para as ruas. "Estou passando por um momento difícil. Eu morava de aluguel, hoje estou dormindo na rua, procurando uma melhora, um emprego, uma oportunidade. É muito sofrimento, de verdade. É muita friagem e minha idade também não ajuda. O que a gente tem é o que as pessoas doam. Sacos plásticos. Não tem banheiro e eu sendo mulher para mim é mais dificultoso. Preciso de ajuda para sair da rua", conta. Ela conta que o sonho dela é conseguir uma oportunidade de trabalho para sair das ruas e ser independente. "Eu cuido de idosos, sei cozinhar, trabalhei em restaurante, mas não tem emprego. Mataram um filho meu, tenho um filho preso e um filho nas drogas. É uma família destruída e eu acabei sem nada e sem ninguém. Se eu ficar muito tempo, não vou resistir às ruas", conta. Ela conta que não gosta de pedir esmolas, mesmo com a necessidade constante de comprar remédios para tratar de problemas respiratórios e até mesmo doenças mais comuns, como dor de cabeça. "Meu rosto fica doendo de friagem. Me deu muita dor de cabeça essa noite. Eu queria ter uma casa, uma cama e um travesseiro onde eu pudesse descansar fora desse sofrimento. Eu não sei pedir. Isso é muito humilhante. A gente dá bom dia e os outros viram a cara", relata. Natália, de 34 anos, e Paula, de 30, são trans e dividem uma barraca com ao menos dez cães na frente da Catedral da Sé. Elas contam à reportagem que não conseguem dormir nas noites mais frias e que se aquecem com o calor gerado pelos cães. "A pessoa quando está com frio, ela não dorme. A gente passa a noite toda acordada. A gente não morre porque tem os cachorros. A gente dorme com os cachorros. A gente se esquenta com os cachorros. Todos os dias a gente vê alguns morrendo aí, amanhece morto de frio. Falta cobertor para as pessoas. Uma barraca já ajudaria bastante essas pessoas", diz Paula. Ela conta que escolheram ficar no centro, pois é uma região mais segura, com policiamento e com um sistema de monitoramento com câmeras. Elas dizem que os cães são os melhores amigos delas. "O cachorro não vê como uma pessoa vê a gente. O cachorro não te julga, não te trapaceira, não te rouba. Ele é a companhia mais segura para você passar a noite na rua", afirma Paula. Ela sonha em conseguir um emprego, ter uma casa e conquistar autonomia para realizar seus desejos. Ao serem questionadas sobre como foram parar nas ruas, elas dizem que são alvo de preconceito por diversos motivos. "Deixa eu te explicar. Tem o marginal, não tem? A gente é a margem da margem do marginal. Nós somos pretas, trans e índias. Já tem essa resistência na gente. Aqui no Brasil, a maioria das pessoas são aculturadas com TV e conversa fiada. A música só fala de sacanagem, só traição, e a gente não se enquadra nisso. A gente está na sarjeta, mas prefere ter a consciência tranquila do que estar por aí por dentro e ser forçado a tomar algumas atitudes que não compensam".
2021-07-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57688983
sociedade
Por que Justiça decidiu manter Britney Spears tutelada pelo pai
A Justiça dos Estados Unidos negou o pedido de Britney Spears para remover seu pai da função de controlar sua tutela. Essa decisão se refere a um pedido da defesa da cantora, feito em novembro do ano passado a um tribunal de Los Angeles, para que acabasse com o controle de Jamie Spears sobre o patrimônio dela. Dizia que ela estava "com medo de seu pai" e queria que ele fosse removido como seu único tutor - um papel que ele desempenha desde 2008. Em um depoimento de 23 minutos, a estrela disse que foi drogada, forçada a atuar contra sua vontade e impedida de ter filhos. "Eu só quero minha vida de volta", disse ela, por telefone, ao pedir ao tribunal o fim de sua tutela. No entanto, a Justiça não pode proferir uma decisão com base em sua declaração até que ela entre com uma petição formal para rescindir o acordo. Os documentos apresentados na quarta-feira referem-se apenas ao pedido de novembro, no qual Spears pediu que a empresa privada de gestão de fortunas Bessemer Trust fosse indicada como "única tutora" dos bens da cantora. Em outra iniciativa, os advogados de Jamie Spears pediram ao tribunal para investigar as alegações de abuso da cantora. O sistema judiciário de Los Angeles também encerrou um esquema que permite que membros da imprensa ouçam os processos judiciais remotamente, depois que o áudio do testemunho de Spears foi gravado e vazado online. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A mudança ocorre uma semana depois que a cantora de Baby One More Time fez um forte ataque à tutela "abusiva" que controlou sua vida por 13 anos. Ela disse a um juiz que estava traumatizada e chorava todos os dias, acrescentando: "Eu mereço ter uma vida." A cantora também disse que lhe foi negado o direito de ter mais filhos e foi colocada sob a droga psiquiátrica lítio contra sua vontade. Spears, mãe de dois filhos, disse que queria se casar com o namorado e ter outro filho, mas a tutela não permitiu. Ela alegou que foi impedida de remover um dispositivo anticoncepcional intrauterino (DIU) para que pudesse engravidar. Dezenas de fãs se reuniram do lado de fora do tribunal, segurando cartazes que diziam "Liberte a Britney agora!" e "Saia da vida de Britney!" Depois, a artista se desculpou com eles por "fingir que eu estava bem", mas disse que o orgulho e a vergonha a impediram de admitir a verdade. Os advogados de Spears negaram que ele fosse responsável pelas restrições aparentemente impostas à vida privada de sua filha. Embora o homem de 68 anos tenha supervisionado a propriedade dela por 13 anos, ele não está realmente encarregado de seus assuntos pessoais desde setembro de 2019, quando deixou a função devido a problemas de saúde. Ele foi substituído temporariamente por Jodi Montgomery, cuidadora da cantora. Na terça-feira, os advogados de Spears solicitaram uma investigação sobre o testemunho de sua filha. "Ou as alegações serão comprovadas como verdadeiras, caso em que ações corretivas devem ser tomadas, ou serão comprovadas como falsas, caso em que a tutela pode continuar seu curso", escreveram eles em um processo judicial. "Não é aceitável que os tutores ou o tribunal não façam nada em resposta ao testemunho de Spears." Os advogados de Spears disseram que ele não tinha intenção de voltar como tutor pessoal de sua filha, mas disseram que estava "preocupado" com o bem-estar dela. Eles acrescentaram: "Spears é incapaz de ouvir e abordar as preocupações de sua filha diretamente porque ele foi impedido de se comunicar com ela". Na semana passada, Jamie Lynn, irmã de Britney Spears, falou publicamente pela primeira vez sobre a polêmica da tutela da cantora. "Estou muito orgulhosa dela por usar sua voz", disse Jamie Lynn Spears em publicação no Instagram. "Se acabar com a tutela... ou qualquer outra coisa que ela queira fazer para ser feliz - eu apoio isso." Ela acrescentou: "Não sou minha família, sou minha própria pessoa. Estou falando por mim mesma."
2021-07-01
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57680875
sociedade
Os seres humanos são capazes de destruir toda a vida na Terra?
Entre os vários riscos de catástrofes globais conhecidos pelos seres humanos, alguns aparecem mais na mídia do que outros. Impactos de asteroides, erupções de supervulcões e as mudanças climáticas já protagonizaram filmes de Hollywood. E cada um deles teve um impacto devastador na vida do nosso planeta no passado. No entanto, uma nova ameaça global capaz de destruir a vida na Terra — desconhecida para muitas pessoas — está se formando nas sombras da nossa vida cotidiana. Ela é movida pelo imenso desejo humano de consumo material. E, paradoxalmente, uma consequência da própria vida humana. Basta olhar em volta — você está inseparavelmente cercado por objetos materiais —, sejam eles necessários em sua vida ou não. Para cada objeto que usamos, existe uma crescente rede de ações globais que está lentamente destruindo a saúde emocional humana, esgotando os recursos da Terra e degradando os habitats do nosso planeta. Se não for controlado, existe o risco de o consumo humano acabar transformando a Terra em um mundo inabitável? Será que devemos parar antes que seja tarde demais? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma equipe de pesquisadores do Instituto de Ciências Weizmann, em Israel, publicou recentemente um estudo que comparou a massa produzida pelo homem — também conhecida como massa antropogênica — com toda a massa viva, ou biomassa, do planeta. Pela primeira vez na história da humanidade, o primeiro ou ultrapassou o segundo ou está perto de ultrapassar nos próximos anos. O estudo estima que, em média, cada pessoa no planeta produz agora mais massa antropogênica do que seu peso corporal por semana. "A descoberta de que a massa antropogênica — coisas feitas pelo homem — agora pesa tanto quanto todas as coisas vivas, e o fato de que continua a se acumular rapidamente, oferece outra perspectiva clara de como a humanidade é agora um ator importante na formação da face do planeta", diz o professor Ron Milo, do Instituto de Ciências Weizmann. "A vida na Terra é afetada de forma quantitativa importante pelas ações dos humanos." Esta revelação não é surpresa para muitos que consideram que os humanos já deram início a uma nova época geológica chamada Antropoceno — a era dos humanos, termo popularizado pelo químico ganhador do Prêmio Nobel Paul Crutzen. Embora o início exato desta era seja discutível, não há como negar que os humanos se tornaram uma força dominante neste planeta, alterando todas as outras formas de vida por meio de suas ações. A escala e o tamanho da massa antropogênica são alarmantes. Veja o caso do plástico — o surgimento da era dos plásticos modernos ocorreu apenas em 1907, mas hoje produzimos 300 milhões de toneladas de plástico todos os anos. Além disso, a percepção de que, depois da água, o concreto é a substância mais usada na Terra está além da compreensão. O gigantesco processo de geoengenharia iniciado pelos humanos teve um aumento acelerado quando materiais como concreto e agregados se tornaram amplamente disponíveis. Estes dois materiais constituem um dos principais componentes do crescimento da massa antropogênica. Até mesmo as relativamente recentes aventuras humanas de exploração espacial, que começaram há cerca de 60 anos, estão desencadeando um problema desastroso de lixo espacial. Paralelamente a isso, observamos o derretimento das calotas polares, o degelo do permafrost e o aumento das temperaturas no planeta. Mas por que isso aconteceu? Os humanos são geneticamente inclinados a ser materialistas ao ponto de causar sua própria destruição? O acúmulo de massa antropogênica é apenas uma medida da taxa de aniquilação dos humanos? Ou a natureza vai preparar os humanos para lidar com esse problema? Todas essas questões são altamente incertas. Embora haja evidências de que o materialismo é aprendido e influenciado pela cultura, alguns argumentam que a seleção natural pode ter predisposto nossa espécie ao desejo de acumular coisas. Nossos pertences podem nos oferecer uma sensação de segurança e status que, sem dúvida, desempenhou um papel mais relevante no início da história humana. De alguma forma, criar coisas novas se tornou uma palavra divina na psique humana coletiva. Está desagradavelmente presente em todos os nossos empreendimentos, desde histórias antigas até laboratórios de pesquisa e desenvolvimento modernos. "No princípio, Deus criou o céu e a Terra..." diz a história do Gênesis na Bíblia. Os humanos foram condicionados a acreditar que criar algo novo é um propósito significativo de vida — e a única maneira de promover suas ambições. No entanto, esquecemos de colocar um limite de uso. Os limites da ciência nunca foram tão evidentes ao tentar resolver esse enigma. Depender apenas de soluções tecnológicas verdes é equivocado porque o foco ainda é baseado em coisas novas e mais uso — e não em mudar o estilo de vida ou modelos de negócios que originaram esse problema em primeiro lugar. Mesmo que a gente consiga substituir todos os veículos movidos a combustíveis fósseis por equivalentes elétricos, por exemplo, as cidades já estão com dificuldade de tirar espaço dos carros nas ruas, e os veículos elétricos têm seu próprio impacto nos recursos mundiais devido aos materiais necessários para fabricá-los. "O acúmulo de massa antropogênica também está relacionado ao desenvolvimento urbano, junto com suas implicações ambientais associadas, já testemunhadas em todo o mundo", diz Emily Elhacham, uma das autoras do estudo do Instituto de Ciências Weizmann. "Espero que a conscientização promova uma mudança de comportamento que permita encontrar um ponto de equilíbrio melhor. Cada passo nessa direção terá um efeito positivo." Veja a pegada de carbono de nossos gadgets, da internet e dos sistemas de suporte. Ela é responsável por cerca de 3,7% das emissões globais de gases do efeito estufa — e a previsão é de que este percentual dobre até 2025. É possível reduzir as emissões com um e-mail a menos ou evitar um compartilhamento desnecessário de fotos nas redes sociais — pode parecer uma redução insignificante por parte de um indivíduo, mas podemos somar bilhões dessas pequenas ações. As grandes empresas de tecnologia afirmam que estão se tornando verdes ou definindo metas para a neutralidade de carbono, mas raramente incentivam as pessoas a gastar menos tempo nas redes sociais ou a comprar menos produtos. Em vez disso, os modelos de publicidade e marketing transmitem mensagens poderosas que reforçam o lema: criar e consumir mais. Esse materialismo selvagem irracional também está profundamente enraizado nas tradições e nos símbolos culturais. Nos Estados Unidos, o Dia de Ação de Graças é seguido por outra celebração, a Black Friday. Durante este ritual, longas filas de consumidores se formam nos shoppings, muitas vezes há quem saia machucado ou pisoteado — mas as pessoas estão convencidas de que é um esforço que vale a pena. Na era do Antropoceno, os humanos podem se sentir no direito de depositar esperança na tecnologia para consertar qualquer problema, de modo que possam continuar a fazer o que estão fazendo. Diante do acúmulo de plástico no meio ambiente, por exemplo, um surto de inovação resultou em copos de café biodegradáveis, sacolas ecológicas e canudos reutilizáveis. Mas embora seja verdade que um modelo de crescimento sustentável que inclui nosso meio ambiente tenha um potencial muito maior para perseverar, precisamos de uma abordagem diferente para a sustentabilidade que trate do nosso consumismo desenfreado. A covid-19 nos lembrou como a civilização humana é frágil e despreparada quando se trata de casos como uma pandemia. Também nos ensinou que o comportamento humano pode ser modificado com pequenas ações, como usar máscara para mitigar a intensidade das tragédias globais. A abordagem passiva da proliferação da massa antropogênica não se deve apenas à falta de conhecimento sobre seu impacto, mas, em geral, também tem a ver com a tendência humana de rejeitar fatos que não se enquadram em sua visão de mundo. O ser humano está naturalmente disposto a desconsiderar as questões que não desafiam seu cotidiano ou que diluem sua conveniência. Além disso, podem encontrar consolo no pensamento de que a natureza pode capacitar os organismos para sobreviver, não importa o que façamos. É verdade que a evolução lenta e gradual, ao estilo Darwiniano, por meio da seleção natural é muitas vezes surpreende em certos ambientes extremamente poluídos. Em 2016, uma equipe de cientistas no Japão encontrou uma cepa de bactéria em uma unidade de reciclagem de garrafas capaz de decompor e metabolizar plástico. Por outro lado, esta descoberta mostra as maneiras sutis e poderosas pelas quais as ações humanas estão mudando a vida neste planeta. A adaptação dos organismos em resposta aos poluentes é um fenômeno complexo. "No longo prazo, um aumento sustentado da massa antropogênica levaria à perda de habitats por meio de deslocamento físico e alteração de habitats, como contaminação por poluentes resultantes da produção e descarte de massa antropogênica", diz Alessandra Loria, bióloga da Universidade McGill, no Canadá, autora principal deste estudo. A pesquisa indica que os efeitos negativos induzidos pela poluição geralmente pioram ao longo de várias gerações, embora o mecanismo de enfrentamento varie em diferentes espécies. O rápido esgotamento dos recursos naturais e da biodiversidade não é uma corrida evolutiva normal à qual a natureza está acostumada. Embora algumas espécies possam certamente se adaptar às mudanças que ocorrem em nosso meio ambiente, os humanos não são mais uma mera espécie que segue a evolução de Darwin, mas uma força muito maior que veio para conduzir a evolução neste planeta. Estudos mostram que, para a maioria das espécies, não se espera que a adaptação evolutiva seja suficientemente rápida para amortecer os efeitos das mudanças ambientais causadas pela atividade humana. E nossa própria espécie não será uma exceção. Embora não esteja provado que iremos nos destruir, há indicações claras de que ignoramos os efeitos por nossa própria conta e risco. Por exemplo, algumas das extinções em massa na história da Terra estão relacionadas à acidificação dos oceanos. Os oceanos absorvem cerca de 30% do dióxido de carbono liberado na atmosfera, o que por sua vez aumenta sua acidez. Os oceanos podem estar se acidificando mais rápido hoje do que nos últimos 300 milhões de anos, sobretudo em decorrência das atividades humanas. "A vida humana será afetada negativamente por causa da perda de vários benefícios e serviços ecossistêmicos fornecidos pela diversidade biológica", diz Loria. "Por exemplo, a poluição da água pode afetar os serviços de abastecimento, como de água e alimentos, causando uma redução na diversidade alimentar e/ou na sua qualidade e segurança. A degradação generalizada dos ecossistemas ameaça as condições de vida na Terra, em particular a sobrevivência a longo prazo da nossa própria espécie." Nosso impacto no planeta é muito mais profundo do que as pegadas de carbono ou o aquecimento global. Ele aponta para um futuro em que os efeitos da massa antropogênica vão assumir — se é que já não assumiram — a identidade da Terra e sua vida. Diante disso, os próprios humanos podem sair perdendo na corrida evolutiva. Eliminar materiais como concreto ou plástico, ou substituí-los por alternativas não resolverá o problema fundamental das atitudes humanas e nosso apetite sem precedentes por mais. É exatamente aqui que o materialismo pode se transformar facilmente em um conhecido desconhecido fator de risco para uma catástrofe global. A infinidade de maneiras pelas quais ele pode transformar este planeta em um mundo mundano é algo que nossa civilização nunca vivenciou antes. Na ausência de um escudo evolutivo totalmente seguro, poderíamos depender de nossa inteligência para sobreviver. No entanto, como afirma Abraham Loeb, professor de ciências da Universidade de Harvard, nos EUA, e astrônomo em busca de civilizações cósmicas mortas, "a marca da inteligência é a capacidade de promover um futuro melhor". "Se continuarmos a nos comportar dessa forma, podemos não sobreviver por muito tempo", diz ele. "Por outro lado, nossas ações podem ser uma fonte de orgulho para nossos descendentes se eles sustentarem uma civilização inteligente o suficiente para perdurar por muitos séculos." A história de Bhasmasura na mitologia hindu oferece um paralelo sombrio do impacto do materialismo. Devoto do deus Shiva, ele obtém uma bênção de Shiva, que concede a ele o poder de transformar qualquer um em cinzas com um simples toque na cabeça. Logo após ganhar esta habilidade mágica, ele tenta testá-la no próprio Shiva. Shiva consegue escapar, reza a lenda. Mas os humanos podem não ter sorte o suficiente para fugir de suas próprias ações. A menos que a gente adote uma visão diferente enraizada na redução do consumo, as chamas do nosso próprio materialismo podem consumir a nós mesmos e ao nosso planeta. * Santhosh Mathew é professor de física e astronomia do Regis College, em Boston, e autor de dois livros científicos.
2021-07-01
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-57333671
sociedade
Prédio desaba em Miami: quem são as vítimas já identificadas
O único consolo para o filho é que a morte dos pais foi rápida e que eles estavam juntos. Sergio Lozano jantou na quarta-feira (23/06) à noite com seus pais, Gladys e Antonio Lozano, pouco antes do desabamento de parte do edifício Champlain Towers em Surfside, no condado de Miami Dade, na madrugada de 24/06. O casal de 79 e 83 anos, respectivamente, que morava no apartamento 903, foi identificado pela polícia no domingo (27/06) como sendo duas das 18 vítimas fatais do desmoronamento confirmadas até agora. A polícia identificou oficialmente algumas das vítimas. Entre elas estavam Stacie Dawn Fang, de 54 anos, e Manuel LaFont, que também tinha 54 anos. Na noite de domingo foram divulgadas algumas informações de outros quatro nomes de pessoas mortas no desabamento: Luis Bermúdez, de 26 anos; Anna Ortiz, de 46; e os venezuelanos Leon Oliwkowicz, de 80, e Christina Beatriz Elvira, de 74. Na lista de mortos também estão Marcus Joseph Guara, 52; Frank Kleiman, 55; e Michael David Altman, 50. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sergio Lozano vive em uma das torres do complexo Champlain Towers e conseguia ver dali o apartamento dos pais. O ruído estrondoso do desabamento o fez acordar na hora. Ele e sua esposa pensaram que havia sido um trovão. O casal se levantou e foi à varanda enquanto tentava entender o que havia acontecido. "Olhei para minha esposa e disse: 'Não está lá'. E ela gritava: 'O que você quer dizer?'. 'O apartamento dos meus pais não está mais lá, desapareceu'. E aí eu desci correndo", contou Lozano na sexta (25/06) a jornalistas no local onde familiares dos desaparecidos dão amostras de DNA para ajudar na identificação. Lozano disse que seus pais iam celebrar no dia 21 de julho o aniversário de 59 anos de casamento. Os dois se conheciam havia mais de 60 anos. O filho falou que os pais brincavam sobre quem preferiria morrer primeiro, para não ficar sozinho. Antes da confirmação oficial da morte, Lozano acrescentou que seu único consolo era que eles "foram juntos e foi rápido". Uma das poucas cenas de esperança desde o desabamento ocorrido na quinta (24/06) foi o resgate, nas primeiras horas, de Jonah Handler, um adolescente de 15 anos. Stacie Fang, mãe de Jonah, é uma das outras vítimas identificadas. Na própria sexta (25), a família revelou a identidade de Fang. "Não há palavras para descrever a trágica perda da nossa amada Stacie. Os membros da família Fang-Handler querem expressar o mais profundo agradecimento pela grande quantidade de solidariedade, apoio e compaixão que tem recebido", disse a família num comunicado. Jonah Handler, o adolescente resgatado dos escombros, continua internado em um hospital. Por sua vez, Adriana LaFont, ex-mulher de Manuel LaFont, outra vítima identificada, disse que ele deveria estar com Santiago, filho dos dois, de 10 anos, no momento do desabamento. Pai e filho sairiam no dia seguinte para pescar. O menino passou a sexta-feira na casa do pai e Manuel LaFont chegou a pedir a Adriana que ele dormisse lá. "Manny (Manuel) me ligou para dizer que gostaria que Santi passasse a noite na casa dele, porque iriam pescar (no dia seguinte)", disse. Mas ela, sem saber ao certo por que, disse que não. Adriana LaFont explicou que perguntou ao filho se ele queria ficar com o pai, mas o menino não respondeu. Por isso, presumiu que a criança ficou com pena de dizer na frente do pai que não queria passar a noite na casa dele. "Então, disse a Manny, 'por favor, traga ele de volta para casa'. E ele me trouxe Santi às 22:00 da noite", lembra. "Meu filho voltou a nascer e eu também voltei a nascer", diz Adriana sobre Santiago, que por pouco não teve o mesmo destino que o pai. Um menino brasileiro de cinco anos, que estava no prédio com o pai, o italiano Alfredo Leone, segue desaparecido. A mãe, a brasileira Raquel Oliveira, estava visitando familiares em outra cidade no momento do desabamento. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, ela informou que deixou amostras de DNA para ajudar nas identificações. Os pais do marido dela teriam feito o mesmo para ajudar na identificação de Alfredo Leone. "Obrigada por tudo que cada um está fazendo, sinto-me muito apoiada. Nesse momento, realmente não preciso de nada, só saber deles. Toda a minha vida estava naquele apartamento", escreveu a Raquel Oliveira no seu perfil no Facebook. Uma outra família de brasileiros conseguiu escapar praticamente ilesa do desabamento. Em entrevista ao G1, Célia Rocha disse que a filha, o genro e os dois netos chegaram à sua casa andando a pé, "cheios de pó, poeira e arranhões". "Mas nada quebrado e nenhuma ferida, graças a Deus." Eles moravam na parte do edifício que não desabou. O Champlain Towers tinha 136 apartamentos, dos quais 55 não desmoronaram com o restante da estrutura. Recuerda que puedes recibir notificaciones de BBC Mundo. Descarga nuestra app y actívalas para no perderte nuestro mejor contenido.
2021-06-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57635630
sociedade
Assexualidade: como orientação sexual 'invisível' saiu do armário
Em uma transmissão ao vivo de vídeo em 6 de abril, a modelo britânica e ativista assexual Yasmin Benoit moderou um painel com participantes da Bélgica, Brasil, Vietnã, Paquistão, Nepal e Nigéria. Todos eles se identificavam dentro do espectro assexual ("ace") e/ou arromântico ("aro"). E debateram sobre o engajamento da comunidade assexual em seus respectivos países, como parte de um evento em homenagem ao primeiro Dia Internacional da Assexualidade. As experiências deles variavam. Na Bélgica, Martine contou que encontrou demonstrações de apoio e inclusão por parte do governo e da organização LGBTQIA+ mais ampla; por outro lado, Jan, na Nigéria, observou que as leis "criminalizam os encontros queer". Mas, independentemente da localização global, a questão da visibilidade estava no centro de quase todas as respostas. De fato, a assexualidade — não sentir atração sexual por outras pessoas, como costuma ser definida — tem sido chamada de "orientação invisível". Ela tende a ser mal interpretada e pouco discutida; muitos costumam não acreditar que alguém possa realmente ser assexual ou ignoram totalmente a assexualidade. Equívocos comuns sobre a assexualidade incluem que essa orientação sexual equivale ao celibato (não é verdade), ou que é uma escolha (é uma orientação), explica Michael Doré, membro da equipe do projeto global Asexual Visibility and Education Network (AVEN). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Alguns também acreditam erroneamente que alguém só é assexual se nunca sentiu atração sexual ou praticou sexo. Mas a assexualidade é um espectro, em que alguns podem se identificar como demissexual, por exemplo, o que significa que não sentem atração sexual até formar um vínculo emocional com alguém. Também não é sinônimo de arromantismo, o que se aplica a quem não sente atração romântica. Apesar da confusão e 'invisibilidade', as vozes assexuadas têm se tornado mais altas e exigido reconhecimento na última década. Indivíduos, ativistas e grupos começaram a contar suas histórias para um público mais amplo e a desfilar em paradas do Orgulho LGBTQIA+ ao redor do mundo. Agora, os esforços dos ativistas assexuais estão em manter esse trabalho e amplificar as vozes assexuais fora dos países ocidentais de língua inglesa, de onde vem a maior parte das histórias e do ativismo assexual. Como resultado, junto ao novo dia internacional, estão surgindo iniciativas para tirar a assexualidade das sombras — tornando mais fácil para as pessoas se declararem assexuais em todo o mundo. Uma consciência limitada da assexualidade tornou mais difícil para as gerações passadas de jovens perceberem suas identidades — até mesmo os millennials. Anahí Charles, de 34 anos, que mora no México, começou a ver que era diferente de suas colegas no ensino médio. Enquanto todas babavam pelos integrantes da banda americana Backstreet Boys, Charles não conseguia entender aquele fascínio. Eles pareciam "esteticamente bonitos", diz ela, o que não era suficiente para compreender o que fazia suas amigas serem tão loucas por eles. Charles levou vários anos — bem depois desse episódio na juventude — para aprender sobre sua orientação e encontrar seu lugar no espectro ace/aro. Sem acesso a fontes sobre a assexualidade, Charles diz que estava "em negação" por não sentir atração sexual por ninguém. Mesmo depois de ficar sabendo sobre a assexualidade por meio de um post na página Have a Gay Day no Facebook, em 2013, ela ainda questionava se havia algo "errado" com ela. Charles fez exames médicos e testes hormonais para tentar descobrir o que estava acontecendo. E estava completamente saudável. O atestado de boa saúde serviu de catalisador para a autoaceitação. Ela encontrou mais informações sobre assexualidade no Facebook e percebeu o quanto ela se relacionava com aquilo. Um ano depois, virou administradora de um grupo assexual do Facebook no México. Da mesma forma, nos Estados Unidos, Marisa Manuel, de 28 anos, lutou para denominar sua orientação. Ela ouviu o termo "assexual" pela primeira vez quando estava no colégio, mas diz que estava "mal informada" sobre seu significado. "Alguém me disse que eram pessoas que queriam ficar sozinhas", relembra. "Gosto de estar perto das pessoas." Na faculdade, ela conheceu alguém que se identificava como ace, o que a levou a aprender mais sobre o que isso realmente significava. Ela percebeu o quanto se identificava com o que descobriu e, desde então, abraçou totalmente sua identidade — passou a escrever artigos sobre sua identificação como ace, assim como resenhas de livros de autores ace. Felizmente, as gerações mais jovens podem ter acesso agora a mais informações sobre a assexualidade — e também ser mais empoderadas a expressar suas identidades. A representatividade e os recursos aumentaram significativamente desde que Charles e Manuel estavam na escola. Paralelamente ao aumento das informações disponíveis em larga escala, as pessoas também se identificam prontamente como ace nas plataformas de rede social e fazem questão de compartilhar detalhes sobre suas experiências com outros usuários. Uma representatividade maior é fundamental para permitir que as pessoas reconheçam e entendam a assexualidade, assim como normalizem essa orientação. "A representatividade é um recurso", diz Manuel. E embora alguns recursos tenham aumentado, a representatividade — sobretudo na mídia convencional — ainda não é satisfatória, ela acrescenta. No entanto, há outros meios em que a visibilidade está aumentando. Pessoas com plataformas maiores, como a modelo britânica Benoit e a drag queen Venus Envy, falam abertamente sobre sua identificação como aces para grandes bases de fãs em vários canais de rede social. Há também uma representatividade cada vez maior na literatura; autores no espectro ace, incluem Darcie Little Badger, Akemi Dawn Bowman e Maia Kobabe. Personagens de ficção também ajudam, como Todd Chavez do livro Bojack Horseman, de quem Manuel tem uma estatueta de plástico. Ela está tentando aumentar esta lista cada vez maior de representatividade. Antes do Dia Internacional da Assexualidade, Manuel criou o AceChat, uma conta no Instagram em que compartilha regularmente histórias de diferentes pessoas que se identificam como ace. A recepção foi positiva, e ela continua ouvindo indivíduos que querem contar suas histórias. Há agora cerca de 100 pessoas envolvidas. Manuel diz que o próximo passo é expandir o alcance do AceChat. Pessoas da França, Rússia, Vietnã, Reino Unido e Canadá já começaram a entrar em contato, e tradutores também se juntaram à causa. A tradução pode ser fundamental, já que alguns lugares têm comunidades ace menores do que outros, o que significa que geralmente têm menos recursos e menos informações disponíveis para pessoas que buscam aprender sobre a assexualidade em seu idioma. Em Moscou, Daniel, de 20 anos, que está omitindo seu sobrenome por questões de segurança, conta que a comunidade ace/aro da qual faz parte tem apenas cerca de 50 membros. "Poucas pessoas conhecem termos como 'assexual'", diz ele, talvez em parte por causa da intolerância às comunidades LGBTQ+ no país. Como muitas histórias e materiais ace estão em inglês, Daniel tem se empenhado em traduzi-los para russo. Ele diz estar otimista que a assexualidade terá mais reconhecimento nos próximos anos, mesmo em seu país de origem. Junto às lutas históricas das comunidades ace para ganhar mais visibilidade, elas também tiveram que trabalhar para serem vistas dentro dos grupos LGBTQIA+. Isso pode causar surpresa, uma vez que a identidade assexual também é frequentemente incluída quando nos referimos a comunidades queer (por exemplo, no acrônimo de inclusão 'LGBTQIA', em que 'A' significa 'assexual'.) Charles, que organizou encontros assexuais na Cidade do México, sentiu isso na pele. Ela diz que seu grupo desfilou pela primeira vez como um coletivo na Parada do orgulho LGBTQIA+ em 2015, mas a grande comunidade LGBTQIA+ de lá ainda não tinha aceitado as pessoas que se identificam como ace de braços abertos. "Tinha até gente da comunidade LGBTQIA+ com pena de nós, dizendo: 'Não queria estar no seu lugar'", relembra. "Mas não desistimos." Grupos como o de Charles e suas iniciativas educacionais subsequentes realmente ajudaram a fazer a diferença. Ela conta que quando voltou à Parada do orgulho LGBTQIA+ com um grupo maior no ano seguinte, "fomos mais bem recebidos porque havia mais informações". "Não foi como, olha lá aqueles esquisitos, estão desfilando de novo", diz ela. "Foi mais como, olha os assexuais, estão desfilando de novo." Nessa luta pela aceitação, os grupos de assexuais têm crescido e prosperado. Um dos grupos assexuais internacionais mais proeminentes é o AVEN, fundado em 2001 pelo ativista assexual David Jay. Michael Doré, que se juntou à organização em 2009 no Reino Unido, diz que a AVEN surgiu com dois objetivos principais: "construir uma comunidade e... legitimar a assexualidade como orientação sexual". Seu número crescente de membros chega atualmente a 135.539, de acordo com Doré. Agora, a oportunidade de educar e aumentar a visibilidade expandiu ainda mais. A AVEN, que recentemente completou 20 anos, aproveitou o aumento das comunicações virtuais durante a pandemia para fortalecer suas conexões globais. Esses bate-papos virtuais internacionais acabaram estabelecendo um dia único dedicado à celebração da assexualidade em todo o mundo: o Dia Internacional da Assexualidade. "Sentimos que este dia era necessário", diz Doré, que deixa claro que a data não é propriedade da AVEN ou de nenhuma organização. "É uma coisa genuinamente internacional." A criação da data não só estabelece um dia anual de visibilidade, como também marca o surgimento de um intenso esforço internacional para reunir uma comunidade pouco reconhecida, ajudando indivíduos e grupos assexuais em países onde falta informação e representatividade a obter acesso a esses recursos. Atualmente, diz Doré, há uma consciência cada vez maior da assexualidade em países da Ásia — sobretudo na Índia, ele observa, onde o grupo Indian Aces está prosperando no Facebook. Novos grupos dedicados à assexualidade também surgiram em toda a África nos últimos anos, acrescenta ele. Mas, embora haja bons sinais de avanço, as pessoas continuam a interpretar mal a assexualidade. Manuel conta que escreveu um artigo sobre relacionamento assexual para o site Huffington Post há dois anos, que teve boa acolhida. No entanto, quando o artigo foi compartilhado de novo recentemente, "houve muito mais reações negativas" na seção de comentários, diz ela As pessoas escreveram que ela estava confusa, insistindo que ela não estava à procura de um namorado — mas, sim, de amigos. "Isso me fez perceber que, por mais que a gente tenha avançado na questão da representatividade e visibilidade, ainda não chegamos lá", conclui.
2021-06-30
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-57268281
sociedade
As 4 palavras mais polêmicas e bem sucedidas da história da publicidade
Em 1916, na Filadélfia, nos Estados Unidos, nasceu uma das maiores personalidades da publicidade. Uma redatora que ganhou espaço nos elevados escalões da propaganda por conta de quatro palavras, que se tornaram uma das peças mais influentes e brilhantes da psicologia comportamental humana da história. Ela se chamava Frances Gerety. "Francis Gerety sonhava em escrever o grande romance americano e, de certa forma, conseguiu, pois criou a tradição moderna do comprometimento", disse J. Courtney Sullivan, autora do aclamado romance The Engagements ou "Tempo de Promessas", no qual ela explora a mudança de atitudes em relação ao amor, namoro e casamento nos Estados Unidos no século 20. "No final da década de 1930, a empresa De Beers, produtora de diamantes, procurou a NW Ayer, a agência de publicidade mais proeminente dos Estados Unidos na época, porque tinha um problema: as mulheres nos Estados Unidos não se interessavam há algum tempo em usar anéis de diamante", afirmou Sullivan. "A maioria disse que preferia ter algo prático como uma máquina de lavar. "Não há realmente nenhum valor intrínseco em um diamante, e eles tiveram que convencer as mulheres (embora, na verdade, os homens ainda mais) de que o diamante era algo que legitimava o compromisso em si." Uma simples atividade econômica humana está baseada em algo que poderíamos chamar de 'utilidade': com 2 mil calorias por dia, um pouco de água e um lugar quente e seco para se abrigar, sua sobrevivência está praticamente garantida. O restante seria o que chamamos de supérfluo ou não essencial. Então, em que você gasta seu dinheiro e esforço extra? Como todas as grandes empresas do planeta, você, como indivíduo, tem seu próprio orçamento de marketing e os gastos serão direcionados de acordo com suas prioridades. "Assim que os animais puderam escolher seletivamente seus parceiros com base na ornamentação visual, se tornaram anúncios vivos das roupas que vestiam", explica o psicólogo evolucionista do Novo México Jeffrey Miller. O especialista passou grande parte de sua carreira explorando os paralelos entre a maneira como nossos ancestrais primitivos escolheram seus companheiros e a forma como os humanos modernos selecionam produtos de consumo. "Em um nível intuitivo, eles pegaram um pedaço inútil de carbono comprimido, aliado à teoria dos sinais, e criaram uma norma social que é difícil de resistir, pois diz: 'Você tem que comprar isto ou então realmente não valoriza quem você ama.' Então, qual a ligação disso com Frances Gerety, a aspirante a romancista da Filadélfia? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Quando ela chegou na N.W. Ayer, seus chefes disseram que era o momento perfeito porque a agência tinha acabado de perder um redator naquele dia e na época pensava-se que apenas mulheres poderiam escrever para certas campanhas femininas", diz Courtney Sullivan. "Ela era um pouco procrastinadora, então assim que se deitou para dormir, esqueceu que deveria escrever um slogan de um anúncio. Então, ela acordou às 3 da manhã e rabiscou algo em um pedaço de papel." Um bilhete escrito no meio da noite com as quatro melhores palavras da história da publicidade... embora os colegas dela não tenham pensado assim quando ela mostrou o que tinha escrito. "Foi em uma reunião cheia de homens. Eles disseram que não era gramaticalmente correto, que realmente não fazia sentido... foi quase totalmente derrubado", observa Courtney Sullivan. Era 1947 e a frase que os homens de terno quase rejeitaram foi esta: A diamond is forever ou "Um diamante é para sempre". Como precisavam de um gancho atraente, a agência aceitou, com relutância, o slogan gramaticalmente incorreto de Frances e o associou à pioneira guru de marketing Dorothy Dignam. A dupla se propôs a submeter os diamantes à consciência pública. "Dorothy tinha uma coluna de fofocas sobre celebridades que falava sobre quem tinha pedido quem em casamento. Mas se você olhar bem, ela sempre mencionava um diamante", diz Courtney Sullivan. "O curioso sobre a teoria da sinalização é que todos a entendem em um nível muito intuitivo. E é por isso que o consumo conspícuo funciona tão bem", diz Miller. "A campanha da De Beers foi fundamental para colocar diamantes nos filmes de Hollywood. "Na época do lançamento do filme Gentlemen Prefer Blondes ("Os homens preferem as loiras", de 1953), que inclui a música Diamonds are girl's best friend (Diamantes são os melhores amigos de uma garota), Dorothy Dignam trouxe repórteres de todo o país e convenceu os responsáveis pelo filme a colocar diamantes de verdade em Marilyn Monroe em vez de bijouterias", disse Courtney Sullivan. Ressalte-se que os diamantes não eram parte fundamental da trama do filme e sim um mero acessório. "Passados ​​apenas dois anos após o lançamento da campanha, a venda de diamantes nos Estados Unidos aumentou 55%." Portanto, se você pensa que selar a promessa de amor eterno com um anel de diamante é uma tradição, não está totalmente errado. Mas é uma tradição que começou a ganhar corpo em meados do século passado e com o anúncio de joias. De forma frustrante, para os historiadores da arte da publicidade, Frances revelou muito pouco sobre seu mundo privado e não temos ideia de quais pesquisas ou dados ela usou para acertar o alvo. "Quando estava escrevendo o livro, ouvi dizer que havia esses memorandos da empresa, grandes livros encadernados em couro que continham toda a avaliação psicológica que eles sempre faziam dos clientes para tentar encontrar a melhor maneira de atraí-los emocionalmente. Procurei por dois anos, mas não consegui encontrá-los", diz Courtney Sullivan. E há uma ironia fascinante: a mulher cujas palavras flutuam poderosamente em tantos casamentos ao redor do mundo nunca experimentou o que foi capaz de imaginar de forma tão sedutora para os outros. "Frances não encarnava, de acordo com seus colegas de trabalho, o espírito tradicionalmente feminino. Ela gostava que a mãe dela a chamasse de Frank em vez de Frances, e nas fotos de seu filho ela aparecia vestida como um menino. "Ela morava em uma linda casa em um subúrbio, tinha cachorros, mas aparentemente nunca teve interesse em se casar." A frase icônica de Frances Geraghty Um diamante é para sempre não apenas chama a atenção de maneira sutil e atraente para o fato de que um anel é lindo e um símbolo de status, mas também é um sinal de boas intenções de longo prazo por parte do comprador. E isso nos leva a uma área interessante: comprar o anel é um presente apenas para quem recebe ou também é um símbolo de status para o comprador? "Acho que há uma percepção absoluta de que as mulheres são as que impulsionam o desejo por anéis de diamante, mas, na verdade, muitos dos anúncios ao longo das décadas foram direcionados aos homens", observa Courtney Sullivan. Antes e depois de adotar o slogan "um diamante é para sempre", a De Beers havia usado outra frase famosa na publicidade: "um mês de salário" (o custo de um anel de noivado). Na década de 1980, se tornou "o salário de dois meses", em anúncios que diziam, por exemplo: "Como você faz o salário de dois meses durar para sempre?". "Foi uma abordagem muito inteligente e bem-sucedida." Mas, a partir de 1947, essa abordagem e todas as outras foram acompanhadas por essas quatro palavras de Frances Gerety, tão brilhantemente vagas que se adequavam à cultura predominante de cada época. "Na década de 1970, o anúncio mostrava um casal descalço, no campo, dizendo: 'minha igreja pode ser apenas um roçado e meu casamento não será como o da minha mãe, mas um diamante é para sempre.' "Nos anos 80, o casal se vestia de couro preto e sentava em uma moto dizendo: 'Eu sei que você ama rock & roll, então eu tenho uma ótima rock (pedra). Um diamante é para sempre'", disse Courtney Sullivan. Francis Geraghty aposentou-se da N.W. Ayer, na década de 1970, depois de ter escrito todos os comerciais da De Beer durante um quarto de século. Duas semanas antes de morrer, em 1999, aos 83 anos, a influente revista da indústria Ad Age declarou que seu slogan era o "O melhor slogan do século 20". *Rory Sutherland é um dos maiores profissionais de publicidade do mundo e este artigo foi adaptado do quarto episódio de sua série da BBC "Marketing: Hacking the Unconscious".
2021-06-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57656537
sociedade
Os países onde é ilegal ser homossexual
Existem 69 países no mundo que têm leis que criminalizam a homossexualidade — e quase metade deles está na África. No entanto, em algumas dessas nações, houve movimentos para descriminalizar as uniões do mesmo sexo. Em fevereiro deste ano, o presidente de Angola, João Lourenço, sancionou uma revisão do Código Penal para permitir relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo e proibir a discriminação com base na orientação sexual. Em junho do ano passado, o Gabão reverteu uma lei que criminalizava a homossexualidade e tornava o sexo gay punível com seis meses de prisão e multa. O Tribunal Superior de Botswana também decidiu a favor da descriminalização da homossexualidade em 2019. Moçambique e Seychelles também aboliram leis anti-homossexualidade nos últimos anos. Em Trinidad e Tobago, um tribunal em 2018 decidiu que as leis que proíbem o sexo gay eram inconstitucionais. Mas há países onde as leis vigentes que proíbem a homossexualidade foram endurecidas, incluindo Nigéria e Uganda. E em outros, esforços para remover leis assim fracassaram. No início do ano passado, um tribunal em Cingapura rejeitou uma tentativa de derrubar uma lei que proíbe o sexo gay. Em maio de 2019, o tribunal superior do Quênia decidiu pela manutenção das leis que criminalizam atos homossexuais. Muitas das leis que criminalizam as relações homossexuais têm origem na época colonial. E em muitos lugares, a infração dessas leis pode gerar longas penas de prisão. Dos 53 países da Commonwealth — uma associação livre de países, a maioria deles ex-colônias britânicas — 36 têm leis que criminalizam a homossexualidade. Os países que criminalizam a homossexualidade também têm penas criminais contra mulheres que fazem sexo com mulheres, embora as leis britânicas originais se aplicassem apenas a homens. A Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais (Ilga) monitora o progresso das leis relacionadas à homossexualidade em todo o mundo. Segundo a entidade, a pena de morte é a punição prevista para atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo em Brunei, Irã, Mauritânia, Arábia Saudita, Iêmen e em Estados do norte da Nigéria. O Sudão revogou a pena de morte para atos sexuais consensuais entre pessoas do mesmo sexo no ano passado. Alguns analistas dizem que o risco real de processo em alguns lugares é mínimo. Por exemplo, um relatório de 2017 do governo britânico sobre a Jamaica mostrou que o país era considerado uma sociedade homofóbica, mas que as "autoridades não buscam ativamente processar pessoas LGBT". Grupos de ativistas dizem que a capacidade de organizações lésbicas, gays, bissexuais e trans (LGBT) de realizar trabalho de defesa de direitos está sendo restringida. Há uma tendência global de descriminalização de atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo. Até agora, 28 países no mundo reconhecem os casamentos entre pessoas do mesmo sexo e 34 outros oferecem algum reconhecimento de parceria para casais do mesmo sexo, diz a Ilga. O Brasil reconhece a união estável de casais homoafetivos desde maio de 2011. Em dezembro de 2020, 81 países tinham leis contra discriminação no local de trabalho com base na orientação sexual. Vinte anos atrás, eram apenas 15. Afeganistão Arábia Saudita Argélia Antigua e Barbuda Bangladesh Barbados Butão Brunei Burundi Camarões Catar Chade Cingapura Comores Dominica Egito Eritreia Etiópia Gâmbia Gana Granada Guiné Guiana Iêmen Ilhas Cook Ilhas Salomão Irã Jamaica Kiribati Kuwait Líbano Libéria Líbia Maláui Malásia Maldivas Mauritânia Ilhas Maurício Marrocos Mianmar Namibia Nigéria Território Palestino Ocupado (Faixa de Gaza) Omã Paquistão Papua Nova Guiné Quênia São Cristóvão e Neves Santa Lúcia São Vicente e Granadinas Samoa Senegal Serra Leoa Síria Somália Sri Lanka Suazilândia Sudão Sudão do Sul Tanzânia Togo Tonga Tunísia Turcomenistão Tuvalu Uganda Uzbequistão Zâmbia Zimbábue
2021-06-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57641679
sociedade
A megalópole perdida que 'bombava' com festas mil anos atrás nos EUA
Mil anos atrás, o assentamento Cahokia, às margens do Rio Mississipi — próximo à atual cidade americana de St Louis, no Missouri — era conhecido pelas festas que duravam dias. Multidões se acotovelavam por espaço em praças enormes. Bebidas energizadas com cafeína passavam de mão em mão. As pessoas gritavam suas apostas enquanto atletas arremessavam lanças e pedras. E os cahokianos faziam um verdadeiro banquete: ao escavar seus antigos depósitos de lixo, arqueólogos encontraram 2 mil carcaças de veados de um único evento social. A logística deve ter sido impressionante. As coisas estão mais calmas atualmente em Cahokia, um plácido sítio arqueológico da Unesco. Mas os imponentes montes de terra lembram o legado da maior cidade pré-colombiana ao norte do México. Cahokia era um centro cosmopolita de linguagem, arte e espiritualidade. E sua população pode ter chegado a 30 mil habitantes em 1050 d.C. durante seu apogeu — sendo maior do que Paris na época. No entanto, o que Cahokia não tinha é o que a torna surpreendente, escreve Annalee Newitz em seu recente livro Four Lost Cities: A Secret History of the Urban Age ("Quatro cidades perdidas: a história secreta da era urbana", em tradução livre). A enorme cidade carecia de um mercado permanente, desconstruindo as velhas suposições de que o comércio é o princípio organizador por trás de toda urbanização. "Cahokia era realmente um centro cultural, em vez de um centro comercial. Ainda fico surpresa, me perguntando: 'Onde eles comercializavam? Quem estava ganhando dinheiro?'". "A resposta é que não estavam. Não foi por isso que construíram esse espaço", explica Newitz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Newitz não é a única que se surpreende. A suposição de que o comércio é a chave para a vida urbana definiu por muito tempo a visão ocidental do passado, explica o arqueólogo Timothy Pauketat, que estudou Cahokia por décadas. "É definitivamente um viés que influenciou os primeiros arqueólogos", diz ele. Ao escavar cidades na Mesopotâmia, pesquisadores encontraram evidências de que o comércio era o princípio organizador por trás de seu desenvolvimento e, em seguida, usaram o mesmo critério para cidades antigas em todo o mundo. "As pessoas achavam que essa era a base de todas as cidades primitivas. Isso levou a gerações de arqueólogos buscando por esse tipo de coisa em todos os lugares", acrescenta. Mas eles não encontraram isso em Cahokia, que Pauketat acredita ter sido concebida como um lugar para unir os mundos dos vivos e dos mortos. Para muitas culturas com raízes na antiga Cahokia, "a água é a barreira entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos". Localizada em uma paisagem que combina terra firme com pântano, Cahokia pode ter servido como uma espécie de encruzilhada espiritual. "É uma cidade construída entre a água e a terra seca", diz Pauketat. Os moradores vivos se estabeleciam nos locais mais secos, enquanto os túmulos eram reservados aos locais mais úmidos. O mapeamento a laser do local revelou calçadas elevadas que ligam as "vizinhanças" dos vivos e dos mortos, passarelas físicas que literalmente unem os dois reinos. E se viver no limiar dos dois mundos soa hoje um tanto quanto sombrio, os cahokianos pareciam ver sua cidade natal como um lugar festivo. Em seu livro, Newitz escreve que os planejadores urbanos de Cahokia criaram estruturas e espaços públicos dedicados inteiramente a reuniões de massa, lugares em que as pessoas eram arrebatadas pela alegria das experiências coletivas. A mais espetacular de todas era a praça principal de 20 hectares, onde pelo menos 10 mil pessoas podiam se juntar para celebrações em um espaço monumental rodeado por pirâmides de terra. "É difícil capturar a intensidade, a grandiosidade, a multidimensionalidade de um evento como esse", diz Pauketat. Por dias, comidas e bebidas eram transportadas para a cidade, onde um exército de cozinheiros alimentava as pessoas que chegavam para as festividades. Os arsenais de animais caçados, frutas, verduras e legumes se transformavam em um banquete compartilhado. Os visitantes dormiam em alojamentos temporários ou em casas de amigos, indo para a praça para bailes, bênçãos e outros eventos. Na praça, a energia vibrante da multidão se transformava em um rugido coletivo quando os espectadores apostavam em competições de chunkey. A disputa começava quando um jogador rolava um disco de pedra pela superfície lisa do solo. Concentrados, centenas de atletas arremessavam suas lanças enquanto a pedra ainda quicava e rolava. O vencedor era aquele cuja lança pousava mais perto da pedra, como numa partida de bocha gigante jogada com projéteis mortais. Os elevados postes presentes na praça principal podem ter proporcionado outro espetáculo atlético, conta Pauketat. Ele imagina que os homens subiam nos postes ou se amarravam neles para dançar no ar, um ritual ainda praticado em algumas regiões maias da Mesoamérica. "Na cerimônia mesoamericana, você tem esses postes grandes e altos de cipreste, e quatro caras que se vestem como homens-pássaros e 'voam' ao redor deles", revela. "Havia esses postes em Cahokia." Pingentes de concha, penas e couro fino faziam parte dos trajes mais elaborados para tais eventos, explica Pauketat. Os cahokianos adoravam vermelho, branco e preto; as pessoas enfeitavam o cabelo com coques, moicanos e plumas. Tatuagens adornavam alguns corpos e rostos. Quando as festas terminavam, os cahokianos jogavam o lixo em fossas que hoje servem como registro do que comiam e bebiam juntos. Uma década atrás, análises de peças de cerâmica encontradas por arqueólogos em Cahokia revelaram biomarcadores para uma espécie de azevinho, conhecida como yaupon, que é a única planta nativa da América do Norte que contém cafeína . Os cahokianos, ao que parece, mantinham as festividades acontecendo em parte por causa do efeito da cafeína. E como a área nativa de yaupon fica a centenas de quilômetros do local da cidade, sabemos que eles faziam um esforço significativo para obtê-la. Isso, por sua vez, pode ter consolidado o uso da planta em rituais. "Parte do valor dela está na dificuldade de ser adquirida", diz a antropóloga Patricia Crown, que conduziu a análise das peças de cerâmica. "Você tinha que ter as conexões para poder obter a substância se fosse realmente importante para o seu sistema religioso." Setenta dos montes de terra originais ainda se encontram protegidos na região, e uma longa escadaria leva ao cume do Monte dos Monges, com vista para a praça principal. Com audioguias, os visitantes atuais percorrem um trajeto de 10 km que serpenteia por pastagens, florestas e pântanos. Mais uma vez, como nos tempos antigos, uma constelação de postes altos se alinha com o sol nascente para marcar a passagem das estações. O centro turístico no local apresenta cenas recriadas da vida na cidade, junto com exibições de ferramentas de pedra e cerâmica moldadas há milhares de anos por habilidosas mãos cahokianas. A vida moderna não está longe: Cahokia está cercada por um trecho de rodovias interestaduais e subúrbios americanos. Mas não foi o desenvolvimento moderno que colocou um fim à história emocionante de Cahokia. Os cahokianos acabaram simplesmente optando por abandonar a cidade, impelidos aparentemente por uma mistura de fatores ambientais e humanos, como a mudança no clima que paralisou a agricultura, a violência ou enchentes desastrosas. Por volta de 1400, as praças e montes já estavam silenciosos. Quando os europeus se depararam pela primeira vez com os notáveis montes ​​em Cahokia, eles viram uma civilização perdida, explica Newitz em seu livro. Eles se perguntaram se um povo antigo havia construído Cahokia e depois desaparecido, levando consigo a cultura brilhante e a sofisticação que outrora floresciam no solo das terras baixas do Rio Mississippi, onde a terra é enriquecida por inundações ribeirinhas. Mas o povo de Cahokia, é claro, não desapareceu. Eles simplesmente partiram, e com eles a influência de Cahokia se espalhou para lugares remotos, onde alguns de seus passatempos mais amados são apreciados até hoje. O yaupon que eles adoravam beber está voltando à moda como um chá local sustentável que pode ser colhido na floresta. O chunkey — o jogo favorito de Cahokia — também nunca saiu de cena. Em algumas comunidades indígenas, atraiu uma nova geração de jovens atletas e está na lista de jogos da comunidade Cherokee. Mas vai muito além disso. Os cahokianos adoravam relaxar fazendo um bom churrasco e eventos esportivos, uma combinação que, observa Newitz, é visivelmente familiar a quase todos os americanos modernos. "Nós festejamos assim por todo Estados Unidos", diz ela. "Eles se encaixam perfeitamente na história americana."
2021-06-26
https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-57145835
sociedade
A pequena cidade brasileira que tinha maconha plantada até na praça principal
O caso ganhou repercussão em todo o país e até hoje é alvo de comentários dos moradores da cidade de 8 mil habitantes. Entre os mais novos, alguns têm dificuldade para acreditar que o caso tenha acontecido no pacato município. Nas redes sociais, uma reportagem de um telejornal sobre as plantações em Cruzeta, na época em que elas foram descobertas, constantemente volta a repercutir. No YouTube, um vídeo sobre o assunto tem mais de 200 mil visualizações. Os moradores que consumiam a planta alegaram à polícia, logo que o caso veio à tona, que utilizavam a erva somente para fins medicinais. Eles afirmaram que ficaram surpresos com a descoberta de que se tratava de maconha. Na época, eles tiveram medo de ser presos, pois o ato de plantar a erva, mesmo que em pouca quantidade, poderia ser considerado crime. Por mais de um mês, a BBC News Brasil apurou o caso. Falando com especialistas, profissionais que participaram da situação, relatos de moradores e acesso ao inquérito policial sobre o assunto, a reportagem descobriu os detalhes sobre a história mais famosa da pequena Cruzeta. Era noite de sábado, no início de junho de 1996, quando a delegacia de polícia de Cruzeta recebeu uma denúncia anônima sobre um suspeito que estaria vendendo maconha em um bar, em uma região próxima à saída da cidade. Os policiais foram ao local e encontraram um rapaz com uma pequena quantidade da droga. Eles descobriram que, minutos antes, o jovem havia jogado uma sacola de plástico por cima de um muro, em um terreno vizinho ao bar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Conforme relatos dos policiais, na sacola foram encontradas diversas folhas de uma planta de cor verde, aparentemente recém-colhida, semelhante à maconha. O suspeito foi preso e encaminhado à delegacia, onde declarou ter conseguido a erva no quintal de um idoso de Cruzeta. Na segunda-feira seguinte, a polícia do município obteve um mandado de busca e apreensão, expedido pela Justiça, que permitiu que fossem até a residência de João*, o idoso apontado pelo rapaz, na época com 63 anos. No muro da casa dele encontraram uma planta de três metros de altura. Segundo a polícia, João pediu para que não cortassem a planta. "Ele tinha vários tambores com a erva curtida em água, consumia diariamente e tratava aquilo como um líquido santo", relata a professora Renilda Medeiro, de 54 anos, que mora em Cruzeta desde a infância. Segundo ela, o idoso tinha câncer e acreditava que o líquido o ajudava na luta contra a doença. "Ele dizia que essa planta aliviava todas as dores que sentia e impedia que a doença avançasse." De acordo com Renilda, muitos moradores de Cruzeta, ao saber dos benefícios que João afirmava conseguir com a erva, haviam pedido mudas ao idoso. "Várias pessoas quiseram plantar em casa", conta. Logo que encontrou a plantação na casa do idoso, a polícia de Cruzeta cortou a erva e a levou para a delegacia da cidade. Em depoimento, prestado em setembro de 96, João declarou que a planta estava na sua casa havia oito anos, desde que sua mulher trouxera a erva da casa de uma irmã, em Natal (RN). O idoso afirmou que a utilizava para curar doenças. "Ele (João) disse que várias pessoas pediam galhos para fazer remédios. João nunca soube se alguém usava a mesma como entorpecente", narra parte do inquérito policial sobre o caso, ao qual a BBC News Brasil teve acesso. Foram encontradas plantas em, ao menos, seis residências de Cruzeta e em locais como a praça principal perto da prefeitura, em um cemitério e em frente a uma igreja. "Algumas chegavam a seis metros de altura", relata o escrivão do cartório de Cruzeta na década de 90, Pedro George de Brito. "As praças de Cruzeta eram bastante arborizadas, então, era comum que as pessoas plantassem por ali. Em uma dessas, acabaram plantando maconha também", comenta Renilda. Nas residências em que foram encontradas as plantas, viviam pessoas acima de 50 anos, que acreditavam nos benefícios trazidos pela erva para a saúde. Elas a utilizavam para diversos tipos de mazelas: dor de cabeça, problemas respiratórios, epilepsia, reumatismo, enxaqueca, entre outras dificuldades. "Tudo era tratado com o chá da planta. Bastava a notícia de que alguém estava padecendo com algum problema de saúde que chegava a notícia do chá milagroso", declara Brito. Os que plantavam, doavam galhos a outros que sentiam algum mal-estar. A planta era usada de duas formas: curtida em água ou álcool, ou em um chá feito com as folhas. Lúcia*, na época com 30 anos, em depoimento à polícia de Cruzeta, relatou que plantou a erva em sua residência. "Ela disse ter chegado a usá-la como medicação, pois estava sentindo uma dor na coluna e ficou curada, por meio da referida planta. Ela não sabia que era maconha", relata trecho do inquérito policial. Conforme Renilda, que afirma nunca ter utilizado a erva, era comum os idosos recorrerem à planta. "Eles sentiam muitas dores musculares e tomavam esse chá para melhorar", conta. Ela ressalta que os mais jovens também usavam para fins medicinais. "Muitos sentiram melhoras na saúde como em problemas de resfriados, asma e cansaço." "Até onde temos conhecimento, ninguém nunca chegou a usar para fins recreativos ou algo assim. As pessoas que utilizavam não sabiam dessa finalidade da planta. Ela foi usada somente para fins benéficos para a saúde", acrescenta. Meses depois de retirarem a erva da residência de João, Renilda relata que o idoso morreu. "O pessoal diz que o que o mantinha vivo e controlava o câncer dele era a planta", afirma. Segundo ela, outra idosa, que também consumia o chá e tinha uma plantação em casa também teve problemas depois de a erva ser apreendida. "As pessoas acreditam que a saúde dela piorou depois que ficou sem consumir a bebida, que aliviava as suas dores." Apesar de muitos moradores acreditarem que as plantas mantinham os idosos bem de saúde, não houve nenhuma comprovação médica sobre o fato. A Justiça determinou que fossem cortadas e apreendidas todas as plantações de maconha da cidade. O caso repercutiu na região e diversos moradores foram à delegacia somente para conhecer a famosa planta apreendida no município. "Na época, existiam duas correntes, uma a favor e outra contra a planta. Muita gente achava um absurdo mandar cortar aquilo, porque não fazia mal a ninguém. Mas havia outros que eram a favor de retirar as plantas da cidade. O certo é que a polícia fez o que deveria ser feito", declara o juiz Sérgio Dantas, que na época era o responsável pela comarca de Cruzeta. Logo após ser apreendido e permanecer em observação por dias, o material foi incinerado em fornos das indústrias cerâmicas da cidade. Parte dos itens, em vez da incineração, foi encaminhada ao Instituto Técnico-Científico de Perícia do Rio Grande do Norte (ITEP-RN), para análise. O laudo identificou a erva como liamba. "É uma planta Cannabis sativa, uma das formas como é popularmente conhecida a maconha", explica Renato Filev, pesquisador do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (Cebrid), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Entre os moradores de Cruzeta, houve relatos de pessoas que chegaram a tentar fumar a planta, como foi o caso de Francisca*, na época com 37 anos. "Ela disse que já fumou, mas não sentiu nenhum efeito. Não sabe dizer se alguém usava como droga. A mulher sabe que se misturada com uísque, a erva tem efeito entorpecente", relata trecho do inquérito policial. Segundo Filev, a liamba pode ser menos alucinógena que a maconha utilizada para fins recreativos. Isso porque esta última costuma apresentar teor de canabinoides - o princípio ativo - em maior quantidade, em razão de motivos genéticos. O estudioso pontua que a liamba tem função terapêutica, assim como relatado pelos moradores de Cruzeta. Diversos medicamentos à base de canabidiol, um dos princípios ativos da Cannabis sativa, são desenvolvidos em todo o mundo para inúmeras finalidades medicinais. No Brasil, plantar maconha é crime. Conforme a Lei das Drogas, de 2006, a pessoa que tiver uma plantação considerada pequena poderá sofrer penalidades semelhantes àquelas aplicadas aos que se enquadram como usuários. Nesse caso, podem ser determinadas punições como advertência, prestação de serviços à comunidade e multa. Em caso de grandes plantações, a situação é equiparada ao tráfico e a pessoa pode ser condenada à reclusão de cinco a 15 anos, além da aplicação de multa. No Supremo Tribunal Federal (STF), tramita um processo que trata sobre a descriminalização do uso de drogas. O placar atual é de três votos a favor da medida - proferidos pelo relator Gilmar Mendes e pelos ministros Edson Fachin e Luis Roberto Barroso - e nenhuma manifestação contrária. A votação está interrompida desde setembro de 2015, quando o ministro Teori Zavascki pediu vista do processo. O sucessor dele, ministro Alexandre Moraes, é o próximo a votar. Ao menos por ora, não há prazo para que o procedimento seja retomado. "Caso a descriminalização seja aprovada, é provável que as plantações para consumo próprio também deixem de ser crime", explica o advogado criminalista Marcelo Valdir Monteiro, mestre em Direito Penal pela USP. Segundo ele, será, nesse caso, necessário estabelecer a quantidade considerada como consumo próprio. No caso de Cruzeta, a legislação em vigor em 1976 determinava que usuários e pessoas que tinham pequenas plantações de maconha poderiam receber penas de reclusão de seis meses a dois anos. O medo da prisão era o maior temor entre os moradores da cidade do Rio Grande do Norte. "Isso gerou um terror muito grande, ainda mais porque eram pessoas de idade. O pessoal ficou com medo de ser preso", relata o juiz Sérgio Dantas. Logo após concluir as investigações sobre o caso, o delegado apontou que não havia indícios de que os moradores da cidade usassem a planta como entorpecente. "Eles cultivavam a referida para curar doenças e para cicatrizar cortes", concluiu o inquérito, arquivado sem que ninguém fosse indiciado. Depois que o caso foi encerrado, Pedro George de Brito conta que a cidade recebeu ações de conscientização sobre as plantas. "Foram feitas palestras em escolas e em outros locais da cidade, para orientar sobre os riscos de ter a liamba em casa, nas calçadas ou nas praças. Os moradores foram informados sobre os riscos de uma eventual apreensão de novas ervas e da consequente criminalização, caso houvesse alguma planta que não foi podada", diz. De acordo com a Polícia Civil da região, desde então não houve mais nenhum registro de plantação de liamba em Cruzeta. Para Renilda, que se diz favorável à descriminalização das drogas, Cruzeta foi pioneira no tema no Brasil. No entanto, segundo ela, "há muitos moradores que não concordam" com isso. A professora ressalta que as plantações se tornaram um fato histórico para o município. "No começo, foi algo tenso, mas depois as pessoas começaram a achar engraçado, porque envolveu muita gente acima de qualquer suspeita", declara. Segundo ela, apesar da surpresa dos moradores ao descobrir que havia diversas plantações de maconha na cidade, o que mais impactou foi o fato de Cruzeta ter sido mencionada em rede nacional. "A questão das ervas foi uma coisa até que corriqueira, apesar de ter sido muito comentada. Mas a notícia que mais surpreendeu a todos foi assistir a Cruzeta no Fantástico. Ninguém nunca imaginou que a nossa cidadezinha pacata, do interior, fosse aparecer para todo o Brasil, ainda mais dessa forma", comenta. *Os nomes verdadeiros dos moradores da cidade foram alterados
2018-09-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45475933
sociedade
Como nasceu o KKKKKKKK da geração Z e por que emoji de risada é coisa de velho
Se você usa emoji de risada para rir, você é velho. E "cringe". Cringe, caso você já não saiba, significa sentir vergonha alheia, uma adaptação do sentido original em inglês. A guerra geracional entre os Z e os millennials que bombou entre os americanos no início do ano chegou à internet brasileira na semana passada, depois de um tuíte sobre o assunto viralizar. Os nascidos após 1996 deixaram claro o que acham dos adultos dos anos de 1981 a 1996: se tomam café da manhã, reclamam dos boletos a pagar, usam calça skinny e emoji genérico para rir, a vergonha é grande. Disclaimer: esta repórter, recém-cumpridos 30 anos, é millenial e, aparentemente, cringe. Separa o cabelo de lado, adora um café da manhã e riu bastante com o "vídeo da Pfaizer". Se também tivessem gargalhado, os adolescentes de agora teriam rido apenas KKKKKKKKKKK. Ou teriam recorrido a outra forma corrente do riso: LIWAHDFIWAKHDWQ. Sim, isso mesmo. Ligue a caixa alta e sente a mão no teclado. O que sair é jogo. Esse tipo de risada altamente aleatória - uma subversão da onomatopeia, por que não? - denota mais graça ainda. Emoji de risada, por outro lado, é coisa de gente velha. Mais ou menos quando o "nariz" em emoticons denunciava a idade do interlocutor. :-) Tendência ou não, o "KKKKKKKK" não é novo. Aliás, é velhíssimo. Essa gargalhada - que quando lida em voz alta, deve soar como um gostoso "kakakakaka" - é usada pelo brasileiro há pelo menos 150 anos. Mas era algo mais para os vagarosos "cá cá cá", "quiá quiá quiá" ou "quá quá quá". Temos algumas evidências disso. A primeira está em Til, romance regionalista de José de Alencar (1829-1877) publicado em 1872 que se passa em uma fazenda no interior de São Paulo. O livro conta a história de Berta, uma menina acolhida pela viúva Nhá Tudinha. Em um trecho, Nhá Tudinha aparece "debulhando-se em uma risada gostosa". "Não fazia a menina um trejeito, nem dizia uma facécia, que a viúva não se desfizesse em gargalhadas." "— Ai, menina!... Quiá!... quiá!... quiá!... Já se viu, que ladroninha?...", diz um trecho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma rápida busca no acervo de jornais mostra a gargalhada na "Secção Livre", onde eram publicados comentários, discussões religiosas ou políticas e casos pessoais em A Província de São Paulo, jornal que antecedeu o Estado de S. Paulo. O texto é do dia 20 de fevereiro de 1884: "O mió de tudo nhô dotô é mecê se calá e não buli n'essas vergonha (...) Quiá, quiá, quiá, cá, cá, cá!!!", diz o comentário que faz troça de um caso polêmico com uma advogado no interior paulista. No mesmo ano, Machado de Assis (1839-1908) registrava o riso "cá cá cá" no conto A Segunda Vida: "Então, o Diabo, escancarando uma formidável gargalhada: 'José Maria, são os teus vinte anos.' Era uma gargalhada assim: — cá, cá, cá, cá, cá... José Maria ria à solta, ria de um modo estridente e diabólico." Monteiro Lobato (1882-1948) também colocou a onomatopeia na boca de personagens em dois contos de Urupês. O livro, de 1918, é notório por ter dado origem ao icônico Jeca Tatu. "Toda gente gozou do caso, entre espirros de riso e galhofa", diz um trecho do conto Um Suplício Moderno, sobre o personagem Izé Biriba, um pobre estafeta (espécie de carteiro), que fazia correspondência entre cidades não conectadas por ferrovia. Biriba se lamenta por haver transportado um bode para só depois descobrir que era para um inimigo seu, e é alvo de risos. "Trazer o bode da oposição! Quiá! quiá! quiá!", ele ouve de interlocutores. Na Folha da Manhã, uma crônica chamada Um Homem que Ri, publicada em 1926, diz o seguinte: "Quem foi o tolo que afirmou que a humanidade deve meditar e crer, chorar e sonhar? Que patetice é essa, em pleno século XX? A humanidade só deve rir. A vida, no fundo, não passa de uma grossa piada. Quá, quá quá!" Ok, já deu para entender. O "quá quá quá" era a maneira corrente de expressar riso. E um dos espaços onde estava presente é terreno fértil para onomatopeias no Brasil e no mundo: as histórias em quadrinho. "Os quadrinhos têm o visual e o textual ao mesmo tempo. Como há uma tentativa de representar a fala, trazem gargalhadas, variantes, gírias, expressões do cotidiano e erros do ponto de vista da gramática. É escrito, mas ao mesmo tempo, representa a fala", explica Nataniel Gomes, professor de linguística da Universidade Estadual de Mato Grosso de Sul (UEMS) e líder do núcleo de pesquisa em quadrinhos da instituição (NuPeQ). E a internet tem essas mesmas características da linguagem de quadrinhos. "Online, você tem uma rapidez muito grande para escrever, então a tendência é escrever mais ou menos como se fala, como nos quadrinhos." As HQs são repletas de onomatopeias (pense no "pow", "crash", "bang" do Batman), e as risadas online são justamente isso, onomatopeias - uma tentativa de reproduzir som e ruídos usando letras ou palavras. E elas se popularizaram a partir do momento em que os quadrinhos passam a ganhar balões de fala (literalmente aqueles balõezinhos onde ficam os diálogos) no início do século 20, diz Gomes. É assim que o "quá quá quá", já presente pelo menos em alguns textos, como vimos acima, começa a se popularizar de fato no Brasil nos anos 1960 e 1970, sugere o jornalista e pesquisador de histórias em quadrinhos Gonçalo Junior. Isso porque foi nessa época que os gibis da Disney, traduzidos para o português, foram publicados no Brasil. E neles havia um importante personagem que ria "quá quá quá". Em 1931, o famoso Mickey Mouse ganha um amigo: Pato Donald, uma criação de Walt Disney. Na década seguinte, essa criação se desdobraria em todo um maravilhoso universo de patos criados pelo talentoso ilustrador Carl Barks. Seus quadrinhos dão origem a Patópolis, no Estado fictício de Calisota (uma junção de Califórnia com Minnesota), onde viviam Pato Donald, o sovina tio Patinhas, o primo sortudo Gastão, os Irmãos Metralha, os sobrinhos trigêmeos Huguinho, Zezinho e Luisinho, entre outros. Em inglês, esses patos riem apenas "ha ha ha". E havia também o "quack", a típica onomatopeia para o grasnar de pato na língua inglesa que nos gibis americanos representava espanto, equivalente a um "uau" ou "puxa" em português. Na tradução para português, você já imagina: "ha ha ha" virou "quá quá quá". "A gente puxou a risada para o quá quá quá, que é muito divertido, que é ao mesmo tempo o som do pato e o som da risada", diverte-se Marcelo Alencar, jornalista, editor e tradutor de quadrinhos Disney. "O quá quá quá era um jeito 'patoso' de adaptar o 'quiá, quiá, quiá' dos nossos velhinhos, aquela proto gargalhada." Ou seja, naquele mundo dos patos, que chegaram a vender 200 mil exemplares por edição nos anos 1970 e 1980 no Brasil, segundo Alencar, todos riam "quá quá quá". "O quá quá quá acabou pegando por causa disso, é aquela risada que você não segura, dá vontade de rir alto. Que é o mesmo som do kkkk", afirma. E pegou mesmo. Nas décadas seguintes, textos de jornais são repletos de "quá quá quá", principalmente os humorísticos. Elis Regina gargalha e canta "quaquaraquaqua, quem riu?, quaquaquaraquaqua, fui eu" em Vou Deitar e Rolar (Qua Qua Ra Qua Qua) composta por Baden Powell e Paulo César Pinheiro em 1970. O "quá quá quá" ainda resiste e aparece forte nos anos 1980, 1990 e no início dos anos 2000. E é bem aí, no final dos anos 1990 para a virada do século, quando o "quá quá quá" começa a desaparecer, que o "kkkkk" dá as caras. Na internet, claro. Especialista em redes sociais e professora da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), Raquel Recuero lembra que, nos anos 1990, as onomatopeias de riso tinham "o estilo dos quadrinhos como hahaah ou hahahHAHAHAHAahaha ou HCIAUHRIUEHIUEHFIUHEIUFHAIUHIUEF (digitando várias letras com hahhahaha)". "E bem no início, muita gente usava o RS RS RS", lembra ela. "O kkkk começou a aparecer mais depois", no início dos 2000. E como ocorre o pulo entre "quá quá quá" e "kkkkk"? "No chat, escrevemos com muita rapidez, comemos acento, reduzimos tudo o que podemos para ganhar tempo", observa Gomes, da UEMS. Se um k representa um quá, por que não? "Qual é mais fácil ou mais rápido: escrever q-u-a, q-u-a, q-u-a, ainda com acento, ou escrever só kkkk? É só botar o dedo que a letra corre", diz Gonçalo Junior. Naquela época, o kkkk surgiu primeiro como risada normal entre os adultos que a adotaram. Nos anos seguintes, parte dos jovens, no entanto, passou a considerar essa risada cringe (ou constrangedora). Mas logo se apropriou dela, passando a fazer um uso irônico. E, bem, isso acabou naturalizando o "kkkkkk", que hoje, com mais de 20 anos, já completa um ciclo e não é mais visto necessariamente com ironia. Corta para os adolescentes de agora, de 2021. Rir só "kkkkkkkk", para eles, não é o suficiente, e pode ofender o interlocutor por ser "sutil" demais. Para demonstrar riso mesmo, gargalhada, e não ironia, tem que ser "KKKKKKKKKKKK", em caixa alta. E nunca, jamais, o emoji "Face with Tears of Joy" (😂), conhecido informalmente como laughing crying emoji (emoji chorando de rir). Esse é totalmente cringe e entrou em desuso entre os adolescentes. Aqui, uma curiosidade: os emojis, diz o jornalista Gonçalo Junior, também têm origem nos quadrinhos. São praticamente "rosto de quadrinhos", afirma. "As expressões de raiva, de olho fechado, piscadela, a sobrancelha levantada... Isso tudo foi desenvolvido para representar expressões de sentimento nos gibis", diz ele. Voltando ao emoji chorando de rir: essa expressão se tornou seu próprio algoz. Ela foi a mais popular no Twitter entre todos os emojis durante vários anos monitorados pelo Emojipedia, um site que documenta o significado de emojis. Mas atingiu seu pico em junho de 2019, e desde então vinha caindo lentamente em popularidade. "O emoji virou o novo 'rs'. Foi tão onipresente, espalhado por todas as partes, que perdeu o sentido e saiu de moda", diz à BBC News Brasil Keith Broni, pesquisador e tradutor de emojis do Emojipedia. "Ele perdeu seu poder como uma expressão emocional genuína." E, assim, a geração Z decidiu que seus dias estavam contados. "Em março de 2021, pela primeira vez, em anos e anos de uso de emojis na cultura ocidental, o chorando de rir ficou fora do pódio", diz Broni. E quem subiu para ocupar seu lugar foi o loudly crying face emoji 😭, o chorando alto. Claro, porque há mais de um ano vivemos uma pandemia e estamos todos muito tristes, não? Não. Surpreendentemente (ao menos para os velhos não geração Z), o choro alto se tornou a nova gargalhada. "O emoji de choro alto, com cachoeiras de lágrimas, está sendo usado não porque as pessoas estão tristes, mas porque passou a representar a risada", diz Broni. A geração Z adotou esse emoji para expressar algo positivo - fazendo uso, novamente, do drama exacerbado. É o equivalente à caixa alta no KKKKKKK. Enquanto isso, se for usado pelos Z, o emoji chorando de rir tem mais um tom de ironia. Há outra alternativa - esta, surgida em comentários no TikTok. O emoji da caveira 💀 virou uma versão visual da expressão "estou morto" ou "morri", dito quando algo é muito engraçado. Basicamente, a geração Z se apropriou do emoji e lhe deu um novo significado. "Eles usam emojis de maneira mais frívola e irônica, para definir sua geração e separá-la da que veio antes", diz o pesquisador de emojis. Entre o quá quá quá, os subsequentes kkkkk e KKKKK e a ascensão e queda de emojis, o que estamos vendo, simplesmente, é a "velha passagem da tocha entre gerações", segundo Broni. "O que é legal para uma geração não é legal para a próxima, e isso é natural." Pelo menos, estamos todos rindo.
2021-06-25
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57612393
sociedade
Vídeo, Canadá: os chocantes relatos sobre internatos onde morreram 6 mil crianças indígenasDuration, 3,56
Geraldine Lee Shingoose é uma das sobreviventes dos internatos para indígenas no Canadá, escolas obrigatórias administrados pelo governo e autoridades religiosas entre 1874 e 1996. O objetivo dessas instituições era incorporar crianças indígenas à cultura europeia, destruindo suas línguas e culturas durante o processo. Shingoose viveu por nove anos na unidade da província de Saskatchewan, uma das mais de 130 que existiram no país, onde relata ter sofrido agressões físicas e psicológicas. "Passamos por todo tipo de abuso. Éramos espancados se falássemos nossa língua", diz ela. Em 2008, o governo canadense se desculpou formalmente pelo sistema. O primeiro-ministro do país, Justin Trudeau, disse que esta era uma "dolorosa lembrança" de um "capítulo vergonhoso da história de nosso país". Estima-se que 6 mil crianças tenham sido mortas nas instituições. Em maio de 2021, os restos mortais de 215 crianças foram encontrados em uma vala comum na província da Colúmbia Britânica, no oeste canadense. Elas eram alunas da escola residencial de Kamloops, que fechou em 1978. Os sobreviventes ainda esperam pedidos de desculpas da Igreja Católica, que participava da administração das escolas. "Em 2016, enviei uma mensagem para o papa Francisco. Ela foi enviada, e nunca recebemos uma resposta", relata Shingoose, que conta sua história neste vídeo. Confira.
2021-06-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57598696
sociedade
Pandemia 'não é hora de ser supermãe ou superpai', diz especialista em 'burnout parental'
Em 2018, as psicólogas Isabelle Roskam e Moïra Mikolajczak, da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, começaram o maior estudo global já feito sobre um tema das quais são pioneiras em pesquisar — o parental burnout, ou "burnout parental", um adoecimento decorrente dos desafios de ser mãe ou pai. Para falar do burnout parental, Roskam costuma fazer a analogia da balança: esse esgotamento acontece quando o lado "fatores de estresse" pesa mais do que o lado "recursos", um desequilíbrio que costuma afetar o adulto ao longo de um tempo considerável. "Na pandemia, o problema é que a balança de muitos pais ficou desequilibrada, com mais estresse: você não tinha as escolas (presenciais), mas também em alguns casos precisou fazer trabalho remoto; não pôde mais ter a ajuda dos avós em algum dia da semana; não teve mais atividades de lazer e extracurriculares que ajudavam a dar conta da criança", diz a pesquisadora, mãe de cinco filhos e professora de psicologia na Universidade de Louvain, em entrevista à BBC News Brasil por teleconferência. Ela argumenta que já há evidências de que o burnout parental aumentou na pandemia, inclusive em uma nova rodada de pesquisa que ela e colegas realizaram pelo mundo e cujos resultados devem ser publicados nos próximos meses. Usando índices sobre valores culturais — por exemplo, se um país é mais ou menos machista, ou permissivo ao ócio e ao lazer —, as autoras concluíram que países com culturas individualistas são mais propensos a levarem ao burnout de mães e pais. O individualismo se mostrou mais prejudicial do que desigualdades entre países ou o número e a idade de crianças em uma família. Por isso, segundo a pesquisa, países ocidentais apresentaram a maior prevalência deste burnout no mundo. No topo do ranking, apareceram Estados Unidos, Bélgica e Polônia (acima de 7%). O Brasil aparece com prevalência de 1,3% — mas Roskam reconhece que, internamente em um país, pode haver muitas particularidades e a variações por trás deste valor nacional. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com a colega Moïra Mikolajczak, Roskam fundou um centro de pesquisa e um instituto de treinamento sobre o burnout parental, além de ter publicado livros sobre o tema (nos títulos originais, sem tradução e versão em português: Le Burn-out parental: L'éviter et s'en sortir e Comment traiter le burn-out parental - Manuel d'intervention clinique). Confira os principais trechos da entrevista à BBC News Brasil. BBC News Brasil - Escolas fechadas parecem ter sido um dos principais problemas para pais durante a pandemia. A falta que elas estão fazendo mostra que as escolas se tornaram muito importantes, talvez até demais, na gestão do tempo e do cuidado das crianças na vida moderna? Isabelle Roskam - As escolas fechadas foram um grande problema, mas para mim, o problema foi mais geral. Se sentir realizado como uma mãe ou pai significa que você tem menos fatores estressantes do que recursos para encará-los. Quando você está realizado no seu papel parental, é porque você tem alegrias e prazer com suas crianças, e muito mais recursos do que fatores estressantes. Na pandemia, o problema é que a balança de muitos pais ficou desequilibrada, com mais estresse: você não tinha as escolas (presenciais), mas também em alguns casos precisou fazer trabalho remoto; não pôde mais ter a ajuda dos avós em algum dia da semana; não teve mais atividades de lazer e extracurriculares que ajudavam a dar conta da criança. Foi preciso gerir o tempo dos filhos todos os dias, todas as semanas; ser mãe ou pai, mas também um trabalhador e um professor. Há também os casos de famílias com questões particulares, por exemplo uma criança com necessidades especiais. Normalmente, há instituições, serviços que ajudam a lidar com uma criança com hiperatividade ou autismo, por exemplo, mas na pandemia as soluções sumiram. Então sim, para muitos pais, foi uma fase muito difícil — e acho que isso explica por que observamos em tantos países um aumento na violência dentro das famílias. Não só entre os casais, mas entre pais e filhos, e filhos contra os pais. BBC News Brasil - Pelo que li, a violência é um sintoma do burnout parental, certo? Roskam - É uma consequência, não um sintoma. Uma das explicações é que, quando você está passando por esse esgotamento, você fica com um alto nível de cortisona (um hormônio) no corpo. É possível verificar isso através da cortisona detectada nos fios de cabelo. Vemos que pais com burnout chegam a ter cortisona duas vezes mais alta do que aqueles que se sentem bem neste papel. Uma das consequências do alto nível da cortisona são os problemas somáticos. Por exemplo, se você já tem problemas de digestão, ou dor de cabeça, quando a cortisona está alta, a probabilidade é que estes problemas piorem. A cortisona também aumenta a irritabilidade — então uma vez que você é confrontado com uma situação estressante, terá uma reação muito grande ou inapropriada. Uma vez que as crianças são a fonte do estresse no burnout parental, uma consequência é os pais se tornarem violentos contra elas. BBC News Brasil - Já há evidências de que o burnout parental cresceu na pandemia? Roskam - Sim. Havíamos coletado dados em 42 países antes da pandemia, então tínhamos uma boa ideia da prevalência do burnout parental em muitos países. Durante a pandemia, coletamos novos dados em 22 países, então pudemos observar algumas mudanças. Observamos algo interessante. Em Burundi houve o maior aumento do burnout nesse período, e o que eu e colegas temos discutido é que esse país tem uma cultura muito coletiva. Então foi muito difícil para as famílias ficarem sozinhas com suas crianças em casa, sem a comunidade ajudando na criação dos filhos. BBC News Brasil - Existe uma diferença entre estresse e burnout, certo? Roskam - O burnout é um adoecimento pelo estresse. O estresse é normal no papel de ser mãe ou pai. Ele é necessário para que estejamos prontos para agir. Quando seu filho está em perigo, ou há alguma emergência, é preciso estar preparado para protegê-lo, mas o estresse nunca se tornará um burnout se for compensado pelos recursos. BBC News Brasil - Já escutei muitos relatos de pais expressando culpa por, neste período, terem deixado as crianças usarem mais celulares, tablets… Os pais ainda devem ficar de olho no controle do uso de telas? E como os aconselharia para lidar com essa culpa? Roskam - No primeiro lockdown, lançamos um guia para que os pais controlassem os fatores estressantes, porque vimos que a violência estava aumentando e etc. Queríamos ajudar a diminuir a pressão sobre eles. E uma forma de fazer isso é dizendo: "Este é um período muito muito difícil para todo mundo, e simplesmente não é a hora para ser uma mãe ou um pai perfeito, uma supermãe ou um superpai. Por favor, esteja seguro de que você está sendo bom o suficiente como mãe ou um pai." Isso significa aceitar que, nesta situação muito difícil, as crianças talvez vão usar mais as telas do que o normal. Os pais podem aceitar que, ok, as telas não são uma solução em uma situação normal — mas no lockdown, é importante abaixar padrões para você e para seus filhos. Também tem sido um período muito desafiador para estes. Para os adolescentes, por exemplo, os celulares foram a única forma de manter contato com os amigos. É muito importante para a vida social deles. BBC News Brasil - Apesar do aumento do estresse para muitas famílias durante a pandemia, para aquelas que têm essa opção e condições, o home office pode finalmente ter representado uma possibilidade de melhor conciliação entre trabalho e criação dos filhos? Roskam - Sim, nossos dados da Bélgica mostram que esse período foi um pesadelo para muitos, mas também uma ótima oportunidade para outros. Alguns passavam, antes da pandemia, horas no carro indo ao trabalho, conseguindo apenas 2 a 3 horas com os filhos por dia. Alguns nunca conseguiam fazer refeições com os filhos. Então, para alguns pais, o lockdown foi uma oportunidade de perceber que eles não querem voltar àquele ritmo de vida. Sua qualidade de vida aumentou muito e eles não querem voltar à situação anterior à pandemia. Alguns fizeram planos para mudar definitivamente para o modelo remoto de trabalho, outros passaram a diminuir o número de atividades extracurriculares que os filhos fazem. BBC News Brasil - Quais condições, quais fatores de risco podem explicar esta diferença — a pandemia sendo um pesadelo ou uma nova oportunidade? Roskam - Primeiro, pensamos que pudesse ser algo relacionado a fatores sociodemográficos. Porque, você sabe, ter um jardim é importante, mas na pandemia, talvez se torne muito mais importante. Ou poderia ter a ver com o número de filhos — não é a mesma coisa estar em lockdown com uma criança ou com cinco, que é a minha situação. Testamos essas hipóteses dos fatores sociodemográficos ou contextuais, e descobrimos que nenhum deles explicava por que para alguns o período foi um pesadelo, e para outros uma oportunidade. Descobrimos que o principal fator para explicar essa diferença pode ser o que chamamos na psicologia de appraisals (avaliação cognitiva). Trata-se de como uma pessoa vai tratar cognitivamente uma informação. Você apreende cognitivamente a pandemia e o lockdown como uma ameaça para você e seus filhos, ou como uma oportunidade para ganhar mudanças positivas? Ou seja, os fatores objetivos não se mostraram tão prevalentes, mas sim a forma com que os pais trataram a informação da pandemia. Isso é interessante porque significa que não existe uma população específica em risco. É uma boa notícia para nós porque, se fosse por conta de fatores sociodemográficos… Eu não posso mudar o fato de você ter cinco filhos e nenhum jardim. Mas se for uma questão de avaliação cognitiva, talvez como psicóloga eu consiga te ajudar a ver a situação de outra forma. BBC News Brasil - Mas fatores objetivos também podem ser importantes, certo? Digo isso não necessariamente sobre o contexto de pandemia. Imagino que ser uma mulher, uma mãe, seja um fator de risco para o burnout parental. Estou certa em pensar isso? Roskam - Sim e não… O mais importante é ter em mente que o burnout não acontece por conta de um fator. Como na balança, não há um fator de estresse e um recurso. Dependendo da pessoa, o fator de risco pode ser ser mãe solo, viver em condições precárias, ou ter muitos filhos… Para outros, pode ser um alto nível de perfeccionismo, a discordância com o parceiro sobre valores na educação, ter um filho com necessidades especiais. Ou ainda ter uma história pessoal difícil com seus próprios pais, ou ter um comportamento inconsistente com os filhos — um dia você diz sim, outro diz não... Os fatores de risco podem ser muito diferentes, mas o modelo é o mesmo: um desequilíbrio entre fatores de estresse e recursos. Sendo assim, ser mulher pode ser um tipo de fator de risco, mas o burnout parental também ocorre com homens. Para um pai que é envolvido (na criação dos filhos) na mesma medida que a mulher, a chance de entrar em burnout é exatamente a mesma. Não é uma questão de gênero, é uma questão de envolvimento na criação dos filhos. Evidentemente, se você é um pai que só trabalha, que não está envolvido na vida do seu filho, você não tem chances de estar em burnout porque não está em contato com os fatores estressantes. O risco de entrar em burnout é na prática maior para as mães porque elas estão muito mais envolvidas no cuidado dos filhos. BBC News Brasil - Sei que é controverso na sua área categorizar distúrbios mentais e doenças em compêndios como a Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID). Entretanto, uma classificação do tipo seria algo desejável para o burnout parental? Roskam - Acho que seria importante por alguns motivos. O primeiro é que, com nossa pesquisa, mostramos evidências de que o burnout é diferente da depressão, por exemplo. É importante fazer um bom diagnóstico para fornecer um bom tratamento. Se você pensa que um burnout parental é depressão, você nunca vai buscar prevenir a negligência ou o comportamento violento — porque essas consequências não são altamente relacionadas à depressão. E o burnout parental não exige o tratamento medicamentoso que a depressão pode exigir. O burnout parental, como o burnout por trabalho, é um problema contextual — trata-se de uma esfera da vida do indivíduo. Mas uma classificação dessas pode custar muito tempo. A pesquisa sobre o burnout por trabalho, por exemplo, começou nos anos 70, mas ele não é reconhecido em todos os sistemas de classificação. Então não sei o quanto tempo precisaremos para o reconhecimento do burnout parental. Nos aproximamos disso com nossas atividades de pesquisa, com a relação que temos com a Associação Americana de Psicologia, entre outros. BBC News Brasil - Apesar de o estudo global que você conduziu ter mostrado que o dinheiro pode não ser tão determinante para o burnout parental como os valores culturais, ter tempo e dinheiro me parece ser muito importante para tratar este esgotamento — com atendimentos psicológicos, por exemplo. Roskam - Acho que não ter problemas financeiros é sempre melhor do que ter uma baixa renda, claro. Se você tem renda suficiente, as soluções são mais numerosas. Então eu sei que adversidades econômicas são sempre um problema, um fator de risco entre outros. Mas também trabalhamos com famílias em situação precária e percebo que há soluções que não exigem dinheiro. Acredito que podemos adaptar os tratamentos à realidade financeira dos pais. Um dos sintomas do burnout parental é não ter qualquer prazer em estar com os filhos. No tratamento, tentamos ajustar isso, fazer com que os pais tenham prazer com as crianças. O mais importante não é fazer atividades de lazer maravilhosas. Não. É simplesmente ter momentos bons, especiais com a criança. Pode simplesmente caminhar com ela, ou ver um bom programa de TV. BBC News Brasil - Mesmo que um país como o Brasil apresente uma prevalência baixa de burnout parental, como mostrou o estudo global, é possível que este número esconda nuances internas, como variações por classe social? Roskam - A situação pode ser diferente de um país para outro, e dentro do país também, claro. O que acontece na vida das famílias pode ser bem diferente, e como psicóloga é preciso adaptar o tratamento para a realidade daquela situação. BBC News Brasil - Há novas tendências que te dão esperança nessa busca em tornar o papel de ser mãe ou pai mais harmonioso? Vêm a minha cabeça exemplos como o coparenting (quando pais de diferentes famílias, por exemplo amigos, se juntam para fazer rodízios no cuidado das crianças) e até mesmo o home office. Roskam - Uma coisa que aprendemos no nosso estudo global é que uma das consequências do individualismo é que ele isola os pais. Porque segundo esta cultura, você tem que ser autosuficiente, pedir ajuda seria como admitir que não é capaz de criar os filhos. Em contraste, em alguns países africanos, diz-se que é preciso um vilarejo inteiro para criar crianças. Então algo que tiramos desta pesquisa internacional é que precisamos reconstruir as comunidades — o que consideramos criar os filhos em uma dimensão maior, indo além da mãe e do pai, incluindo também os amigos, a família em graus mais distantes, e assim em diante. Acredito que uma forma de evitar o burnout parental é confiando na comunidade dos pais. Então sim, acho que precisamos ir em direção a uma criação de filhos muito mais comunitária.
2021-06-22
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57521876
sociedade
Vídeo, O agricultor aposentado que viralizou com vídeos que levam a 'orgasmo mental'Duration, 2,53
Milhares de seguidores em diversas partes do mundo buscam na voz e nas ideias do agricultor aposentado John Butler, de 84 anos, um forma de lidar com a ansiedade. Ele se tornou uma estrela do YouTube após o vídeo de uma entrevista que concedeu em 2016 viralizar entre adeptos da Resposta Sensorial Meridional Autônoma (ASMR, na sigla em inglês). Essa sensação, que ainda é estudada por cientistas, é uma espécie de formigamento causado por sons agradáveis, como o de sussurros e de mãos se esfregando. A voz suave de Butler e o conteúdo filosófico sobre a vida e meditação já atraíram milhares de visualizações e mais de 120 mil inscritos no canal do ex-fazendeiro no YouTube. Confira no vídeo.
2021-06-22
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57565970
sociedade
Quem está ganhando a histórica guerra de ideias entre os economistas
Se o teórico militar Carl von Clausewitz tivesse visto dois economistas discutindo, ele talvez tivesse pensado que a economia, e não a política, era a guerra por outros meios. Essa disciplina é para as ciências sociais o que o boxe é para o esporte. Os corpos não se chocam como nos esportes de contato, mas a veemência com que se debate sobre seus diversos princípios pode ser tão contundente quanto um gancho de esquerda, alguns diriam. Ou de direita, na visão de outros. Questionado sobre isso em um programa de entrevistas na televisão em 1978, o ganhador do Prêmio Nobel Milton Friedman garantiu que tal discrepância entre economistas não era verdadeira, que como acadêmicos eles concordavam sobre os fundamentos, e as diferenças eram, na verdade, muito restritas. "Não concordo", declarou outro economista sentado ao lado dele. E eles inevitavelmente tiveram uma longa discussão. Essa arena não parece um lugar para empates, e talvez a paixão acadêmica resulte de suas repercussões no mundo real: a influência que as ideias econômicas dominantes têm sobre os governos e suas políticas. As ideias dos economistas "estejam certas ou erradas, são mais poderosas do que [o homem comum] pode imaginar. Na verdade, pouca coisa mais rege o mundo", afirmou John Maynard Keynes, um de seus pensadores mais importantes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas antes de governá-lo, eles precisam conquistá-lo. Travar um embate entre elas para se tornar a narrativa dominante, o que em algum momento será considerado o "senso comum". Paradoxalmente, o consenso econômico não é alcançado por consenso, mas por assalto. E essa é sempre uma vitória que parece trazer consigo as sementes de sua própria decadência. Ou, pelo menos, é o que mostra uma pesquisa recente realizada por Reda Cherif, Marc Engher e Fuad Hasanov para o Fundo Monetário Internacional (FMI), na qual eles analisaram as ideias que predominaram em cada momento nas recomendações de acadêmicos a governos de todo o mundo por meio de quase 5 mil estudos que datam de 1975 até o presente. Como se fossem arqueólogos, os pesquisadores foram desencavando e tirando a poeira desses documentos antigos para classificar que ideias prevaleciam em cada década e como as recomendações dos especialistas mudaram. Eles testemunharam como cada ideia dominante gerava desequilíbrios que davam lugar a outras ideias para corrigi-los. O que vem a seguir é a história da ascensão e queda das narrativas econômicas do nosso tempo, uma competição interminável na qual uma nova corrente se candidata a moldar o mundo pós-pandemia, alertam os especialistas. São os defensores da política industrial. A batalha entre as diferentes correntes econômicas é quase tão antiga quanto a disciplina. Após a mãe de todas as diferenças (capitalismo versus comunismo) ser adormecida pela história com a queda da União Soviética, os economistas disputam o paradigma de governar as economias de mercado. Há mais de uma década, o Prêmio Nobel de Economia Paul Krugman os dividia entre economistas "de água doce" (liberais, neoclássicos, ortodoxos e, em geral, mais próximos das filosofias de direita) e "de água salgada" (keynesianos, social-democratas, progressistas... mais à esquerda). Os rótulos se referem às universidades americanas e sua localização, que por acaso simpatizavam com uma ou outra ideia se estivessem situadas na costa ou no interior do país, mas são uma boa síntese, levada à sua menor expressão, da discrepância entre as correntes econômicas. Há quem aposte numa maior intervenção do Estado na economia para regular as falhas do mercado, e quem deseje que o poder público interfira o menos possível para não romper com o que consideram ser o equilíbrio natural do mercado. E no meio, você sabe: gráficos incompreensíveis para os mortais, apostas em aumentar ou diminuir a arrecadação de impostos; fórmulas para o desemprego ou déficit; grau de regulação, taxa de inflação e todo tipo de matemática afiada que vai deixando vencedores e derrotados com o tempo. A jornada de Cherif, Engher e Hasanov começa precisamente com a queda de um império da ideologia econômica: o keynesianismo. E com sua derrota, a chegada de uma tendência que teve grande impacto na América Latina: as políticas do Consenso de Washington. As décadas que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial marcaram o grande "triunfo do keynesianismo", escreve o professor Francisco Comín no livro História econômica mundial. "O papel dos governos para corrigir as falhas do mercado foi intensificado, com a consequente consolidação do Estado de bem-estar." "Junto ao Estado fiscal surgiu o Estado empresário", na forma de nacionalizações e empresas públicas em todos os setores econômicos (de infraestrutura, indústria de base, mineração, bancário). Os impostos aumentaram, e o gasto público subiu 40% em países como o Reino Unido. O objetivo não era um déficit e dívida baixos, mas o "pleno emprego", analisa Comín. Mas, no fim dos anos 1970, algo mudou. As palavras "privatização" e "liberalização" começaram a aparecer nos estudos e recomendações dos economistas, observa a pesquisa do FMI. Como o início de uma tempestade: pequenas gotas primeiro; torrencialmente depois. Este conjunto de recomendações apostava em reduzir ao mínimo o peso do Estado e foi incluído sob o guarda-chuva do chamado "Consenso de Washington". "A crise dos anos 1970 é fundamental para entender essa mudança de narrativa", explica à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, Roy W. Cobby, professor assistente da universidade King's College London, no Reino Unido, e especialista em economia política e industrial. "Define tudo o que virá depois." Após 30 anos de prosperidade promovida pelo Estado, a radiografia mundial mostra agora um paciente doente: "Há uma queda dramática do crescimento em muitos países ocidentais, há um aumento da inflação, os Estados Unidos têm dificuldade em sustentar suas contas públicas e apresentam um déficit elevado... Chega uma crise por esgotamento", afirma. É assim que aparece um novo grupo de economistas que estava na marginalidade acadêmica. "Os mais bem preparados para assumir esse desafio naquele momento eram os monetaristas, que se reuniam em torno da figura de Milton Friedman", explica Cobby. "Eles vinham trabalhando com políticos disruptivos na época, como Margaret Thatcher e Ronald Reagan [...]. Achavam que um mercado com muita intervenção (sem um banco central independente, com grande destaque de empresas públicas e sindicatos) via distorcida sua capacidade de atribuir preços na economia", diz ele. E eles aproveitaram a oportunidade. "Essa narrativa foi marginal até meados da década de 1980, mas posteriormente se sobressaiu [em um grande número de estudos], atingindo seu auge na década de 1990, quando ocorreu a transição de muitas economias socialistas", conta a pesquisa do FMI. Assim, suas políticas foram transferidas não apenas para os países ricos, mas para organismos internacionais, como o próprio FMI e o Banco Mundial, que aplicaram suas fórmulas aos países em desenvolvimento. Um exemplo paradigmático é a América Latina. Estamos no ano de 1974. A América Latina vive um cenário econômico e político turbulento. Por uma década, seu crescimento econômico seria anêmico, abaixo de 1%, e um encadeamento de fatores faria com que suas economias deslizassem em uma "ladeira perigosa", escreve Comín. O boom do preço do petróleo fez com que os países produtores (México, Equador, Peru e Venezuela) se endividassem no exterior, confiando nesse maná; enquanto outros, como o Brasil, também se endividaram na esperança de que as taxas baixas de juros continuariam ao longo do tempo. Ao mesmo tempo, a inflação galopava como um cavalo puro-sangue e os "subsídios governamentais e o protecionismo" estagnavam a produtividade. Quando esse equilíbrio precário se rompeu, a região mergulhou na que mais tarde seria chamada de "década perdida", diz Comín. "Um país após o outro saiu dizendo: espere por mim, não posso pagar", explica à BBC News Mundo Víctor Mauricio Castañeda, pesquisador e professor de economia da Universidade Nacional da Colômbia. E como solução, as políticas do Consenso de Washington começaram a ser implementadas. "O nome pode sugerir que (as políticas) vieram unilateralmente dos Estados Unidos, mas já havia governos latino-americanos trabalhando nessa linha", afirma Castañeda. "Os objetivos dessas políticas eram promover o crescimento e a estabilidade macroeconômica, reduzir o déficit fiscal e conjurar a crise da dívida externa ao mesmo tempo que esperavam reduzir a pobreza." Como se fossem mandamentos bíblicos, o professor as resume em 10 pontos: - Disciplina fiscal e reorganização dos gastos públicos; - Reforma tributária para reduzir o imposto de renda (embora os impostos indiretos tenham aumentado); - Liberalização das taxas de juros e busca por taxas de câmbio competitivas; - Liberalização do comércio e do investimento estrangeiro; - Privatização, desregulamentação e propriedade privada acima de tudo. Ou seja, água doce. E sob pressão. "Com a perspectiva que o tempo dá, se pode dizer que tiveram sucesso em algumas áreas da esfera macroeconômica. Foi possível controlar a inflação e reduzir o déficit público, é verdade, mas geraram um conjunto de efeitos sociais negativos: o crescimento da pobreza e da desigualdade. E com eles, a chegada de um grande mal-estar social", explica Castañeda. "A região começou a se perguntar: tudo isso para quê? Se estamos mais pobres". A narrativa do Consenso de Washington começou a desaparecer em 1997, de acordo com a análise de Cherif e seus colegas para o FMI. O apelo às "privatizações" desapareceu do vocabulário dos especialistas, "caindo vertiginosamente" no ano 2000. Isso significava o fim da hegemonia da "água doce"? Não tão rápido. O que realmente aconteceu é que parte de seu modelo foi camuflado em outra narrativa. "Esse padrão [de declínio acentuado do termo nos estudos] pode sugerir que o conceito de privatização pode ter sido integrado a outros conceitos", observa o relatório do FMI. Assim, sem a pureza inicial, foram acrescentadas novas nuances ao discurso. Em seu lugar, passaram a ser utilizadas recomendações que falavam de "competitividade" e conceitos que estavam englobados nesse magma entendido como "reformas estruturais", adverte o estudo. E quais são? Fundamentalmente, "eliminar obstáculos à eficiência da produção de bens e serviços", tal como define o Banco Central Europeu, que cita a flexibilidade dos mercados de trabalho, a simplificação dos impostos e os procedimentos administrativos como forma de conseguir isso. "Levando também em consideração fatores como equidade e inclusão social", acrescenta. "Nesse período, surge o que alguns autores chamam de arte da manutenção do paradigma", explica Roy Cobby, do King's College. "Quando essas reformas não dão os resultados esperados, começam a incluir correções referentes à pobreza, à desigualdade, até mesmo menções ao meio ambiente, mas sempre a partir de um apriorismo: o preconceito contra a intervenção estatal. Se limita a corrigir as poucas, segundo eles, falhas do mercado", diz o especialista. No auge da globalização e do mundo das finanças, o longo reinado das "águas doces" caminhava para três décadas. E eles acreditavam que tinham tudo razoavelmente sob controle. "O problema central da prevenção da depressão [econômica] está resolvido", afirmou satisfeito Robert Lucas, ganhador do Prêmio Nobel da Universidade de Chicago, em seu discurso inaugural como presidente da American Economic Association em 2003. Não havia mais nada a dispersar, pois não havia mais nada para ver ali. Fim da história. Mas apenas cinco anos depois, a quebra do gigante financeiro Lehman Brothers desafiaria essa afirmação, desencadeando uma reação em cadeia que acabou no maior colapso econômico do mundo desde a Segunda Guerra Mundial. A fé na ortodoxia liberal começou a desmoronar. Alan Greenspan, um de seus gurus e presidente do Federal Reserve (Fed), o Banco Central americano, por quase duas décadas, afirmou estar "chocado" porque todo o seu "edifício intelectual havia desmoronado". A crise afetou particularmente a Europa, uma vez que a União Europeia estava obstinada em aplicar a fórmula da austeridade e reformas estruturais em troca de resgates que geraram grande sofrimento e protesto social nos países ao sul do bloco. E algumas publicações do FMI questionaram a submissão às fórmulas do "neoliberalismo": "Em vez de gerar crescimento, algumas políticas neoliberais aumentaram a desigualdade, colocando em risco" o desenvolvimento econômico, dizia um relatório de 2016. A crise de 2008 e os anos que se seguiram provocaram "uma ruptura estrutural" desse consenso dominante entre os analistas, explica Cherif em seu trabalho para o FMI. A partir de 2010, há então uma proliferação de "múltiplas narrativas" que ele define como uma "constelação de conceitos" em que já não predomina uma mensagem única. Estávamos, portanto, diante de um vácuo de poder intelectual. E enquanto o velho não acabava de morrer e o novo não terminava de nascer, o economista francês Thomas Piketty entrou em cena. Antes dele, economistas de prestígio como Joseph Stiglitz e Paul Krugman, entre outros, haviam tentado manter à tona a narrativa keynesiana, mas a publicação de seu livro O capital no século XXI impactou igualmente um grande número de acadêmicos e o público. Como se fosse um romance de aventura e não um tratado intelectual de economia de 700 páginas, a obra vendeu mais de 2,5 milhões de exemplares e colocou no centro do debate a questão da desigualdade e da intervenção estatal. "Piketty transformou nosso discurso econômico. Nunca falaremos sobre riqueza e desigualdade da mesma forma que antes", disse Krugman. No meio do ringue, havia um dado que abonava seu discurso: entre 1980 e 2015, o 1% mais rico do mundo recebeu uma proporção duas vezes maior do crescimento econômico do que os 50% da população com menor renda, segundo o relatório de desigualdade global do World Inequality Lab. E já não havia crescimento, mas sim as sequelas de uma longa crise. Esta subida da maré de "água salgada" proveniente da França imediatamente disparou o alerta entre os marinheiros de "água doce". Se o trabalho de Piketty "não for desafiado, se espalhará entre os intelectuais e reconfigurará o cenário político-econômico no qual todas as futuras batalhas de ideias políticas serão travadas. Já vimos esse filme", ​​advertiu sem rodeios em artigo de 2014 James Pethokoukis, consultor econômico do American Enterprise Institute, logo após a publicação do livro. A batalha, sempre a batalha. De fato, diversos autores tentaram reagir e desafiar seu trabalho, mas era tarde demais. A desigualdade era o tema principal nos jornais de economia e permeava vários trabalhos acadêmicos. Uma série de autores como Dani Rodrik, Mariana Mazzucato, Emmanuel Sáez e Gabriel Zucman começaram a receber a atenção da mídia com suas ideias de combate à pobreza e desigualdade, a aposta na regulação dos mercados, a participação do Estado na economia e o aumento de impostos e a luta contra a evasão fiscal. Inclusive a economista Esther Duflo, que foi assessora do ex-presidente dos Estados Unidos Barack Obama, ganhou o Prêmio Nobel de Economia junto a outros autores por "sua abordagem experimental para atenuar a pobreza global". "Os pesquisadores progressistas aprendem a lição que Friedman deixou nos anos 1970 e 1980", explica Roy Cobby à BBC News Mundo. "Eles aprendem a construir redes, a não trabalhar sozinhos, surgem centros e iniciativas para trabalhar em pesquisas que sirvam à política". "E desafiam", diz ele, o consenso econômico que "partidos progressistas e liberais haviam alcançado". Esse era o clima de contestação no fim de dezembro de 2019, quando começaram a chegar notícias de um estranho vírus em Wuhan, na China. Três meses depois, uma pandemia global assola o mundo e provoca a segunda crise histórica em uma década. É hora de recompor o mundo, e os governos precisam de conselhos para um cenário desconhecido e imprevisto. E neste momento entra em cena a volta da política industrial na agenda acadêmica e política. Quando os pesquisadores do FMI revisaram os artigos acadêmicos mais recentes, encontraram algo inesperado. Era uma nova presença; antiga, na realidade. Uma ideia considerada extinta há milhares de páginas atrás. Como se um dinossauro começasse a respirar em uma escavação. Aqui e ali, duas palavras começaram a se repetir juntas: política industrial. "Ainda é incipiente", afirmam, "mas o debate em torno da política industrial ressurgiu" na academia. Uma autêntica raridade: "A política industrial gozava de uma má reputação entre os formuladores de políticas e acadêmicos, e muitas vezes é vista como o caminho da perdição para as economias em desenvolvimento", escrevem Cherif e Hasanov em sua análise para o FMI, em que a consideram uma proposta que pode ser valiosa neste momento. Um bom exemplo dessa fama é esta frase: "A melhor política industrial é aquela que não existe", declarou Carlos Solchaga, um ministro da Indústria espanhol que pertencia à família social-democrata nos anos 1990. Quando seu adversário ideológico endossa suas ideias, pode ser um sinal de que elas estão se tornando o novo consenso. Mas, como alertam os pesquisadores, algo está mudando — como mostra a fala a seguir do presidente francês Emmanuel Macron, cujo partido se enquadra entre os liberais europeus, em teoria pouco propensos a se meter com o intervencionismo estatal. "Há bens e serviços que devem estar para além das leis do mercado (...). Devemos retomar o controle, construir uma França e uma Europa soberanas", proclamou Macron em discurso após estourar a crise do novo coronavírus. "A França deve recuperar a independência tecnológica, industrial e sanitária", exortou o presidente francês após anunciar um plano de incentivo de 100 bilhões de euros, dos quais destinaria 15 bilhões para a "inovação e relocalização industrial". "Devemos reduzir nossa dependência de grandes potências como a China", ressaltou também seu ministro das Finanças. A guinada foi rápida: apenas três anos antes, em uma visita a uma grande fábrica em Amiens, no norte da França, cujos operários estavam em greve porque a mesma seria transferida para a Polônia, o presidente francês pegou um microfone e deu um sermão aos trabalhadores: "A resposta para o que está acontecendo com vocês não é suprimir a globalização nem fechar as fronteiras. Aqueles que dizem isso estão mentindo para vocês." Ele não é o único mandatário que mudou de posição. A União Europeia manifestou sua intenção de "aumentar sua autonomia e resiliência" industrial, inclusive criando "uma estrutura de auxílios estatais que incentivem a inovação". A Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal) destacou "a importância da política industrial para reconstruir" a América Latina depois da pandemia de covid-19. E o novo presidente dos EUA, Joe Biden, assinou um decreto para impulsionar a indústria nacional americana. O que aconteceu? A pandemia é a única razão para esse revival? "Não, a China é o grande elefante na sala", responde Cobby. "Desde a primeira década do ano 2000, a China apresenta um contraexemplo para o mundo: mostra números formidáveis ​​de crescimento econômico e entra em mercados em que o Ocidente não esperava. Eles pensavam que ela ficaria eternamente limitada a produtos de baixo valor agregado, mas começa a desenvolver tecnologia e empresas nativas de ponta graças ao apoio público", analisa. "Parece que com esse emprego do Estado de forma mais ou menos agressiva, um país com níveis muito altos de pobreza extrema consegue elevar o status de muitos de seus cidadãos e, não só isso, passa a comprar empresas ocidentais ." Na opinião dele, isso exerce uma influência sobre o Ocidente, que "além disso vive uma instabilidade política (Brexit e Trump, por exemplo), que muitos associam à retirada do Estado quando se trata de proporcionar bem-estar e desenvolvimento econômico". "É preciso entendê-la de forma ampla", explica Cobby. "Não tem que ser apenas à maneira chinesa, tampouco se trata de nacionalizar por decreto, nem centralizar investimentos ou manter setores ineficientes, mas sim pensar onde essa intervenção estatal pode ser mais útil." Ele dá o exemplo da chegada do homem à Lua, em que o Estado colocou para funcionar uma infinidade de setores públicos e privados, que "envolviam elementos de computação, defesa, universidades, centros de pesquisa e outros que foram alinhados para atingir um objetivo " "Hoje, os Estados podem atuar como coordenadores de outros objetivos distintos, como a mudança climática ou o desenvolvimento tecnológico", afirma. E para isso, as estratégias que menciona são variadas: é possível criar empresas públicas, oferecer apoio ao setor privado com recursos que não possa obter ou até mesmo promover valores de sustentabilidade, exigindo como requisito para contratação na administração pública, entre outras. As opções parecem vastas, mas, seja como for, antes que estas ou outras ideias sejam implementadas no mundo que sai da pandemia, uma batalha dialética prévia terá que ser travada. Uma em que os economistas, mais uma vez, desconstróem suas fórmulas.
2021-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57190498
sociedade
Festa Junina: a origem da celebração pagã que virou religiosa e 'caipira' no Brasil
Para um brasileiro, pode ser difícil entender como as estações do ano são capazes de influenciar o imaginário e a própria organização da sociedade. Mas em países de clima temperado ou frio, onde primavera, verão, outono e inverno são mais demarcados, é contagiante a alegria com que o verão é celebrado, depois de meses de dias curtos, temperaturas frequentemente negativas e poucas possibilidades de interação social. É por isso que desde os tempos mais antigos, as primeiras civilizações europeias já tinham festas específicas para celebrar tanto a chegada da primavera — a volta da vida desabrochando — quanto o solstício de verão — o ápice do sol, o dia mais longo do ano. E, segundo pesquisadores, são esses dois tipos de celebração, depois abraçados pelo catolicismo, que explicam a origem das festas juninas, que no Brasil acabariam sendo reinventadas com um sotaque próprio. "As origens são mesmo as antigas festas pagãs das antigas civilizações, ligadas aos ciclos da natureza, às estações do ano. Sociedades antigas realizavam grandes festividades, com durações longas, até de um mês, sobretudo nos períodos de plantio e de colheita", contextualiza o pesquisador de culturas populares Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor da Universidade de São Paulo e consultor da cátedra Kaapora: da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). "A primavera era bastante comemorada, como o reingresso da vida mais dinâmica, o rebrotar da natureza e das atividades depois do período do inverno, sempre de muita dificuldade, luta pela sobrevivência e recolhimento", comenta ele. Se nessa época do ano o que se via era a explosão da natureza, a vida social espelhava isso. "Os grupos humanos realizavam grandes festividades dedicadas à própria natureza, muitas vezes rendendo homenagens aos antigos deuses relacionados à natureza, à vida animal, à vida vegetal de um modo geral. Eram festas comunitárias com muita alegria, muita alimentação e reunião de pessoas em grande número: foi o que deu origem às festas juninas que a gente conhece no Brasil e em outras partes do mundo." Autora do livro Festas Juninas: Origens, Tradições e História, a socióloga Lucia Helena Vitalli Rangel, professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), explica que a origem das festas juninas está nos "rituais de fertilidade agrícola" de diversos povos — da Europa, do Oriente Médio e do norte da África. "Os [mitológicos] casais férteis Afrodite e Adonis, Tamuz e Izta, Isis e Osíris eram homenageados nesses rituais, pois representavam a reprodução humana, numa época de evocação da colheita", afirma. "Eram rituais para que a colheita fosse farta e para abençoar o próximo período agrícola. Era período de congraçamento, de partilha e estabelecimento de alianças entre as comunidades. Eram rituais de fartura e abundância em todos os sentidos, no âmbito alimentar e na relação entre as famílias: casamentos, batizados e compadrio." "No hemisfério norte o solstício de verão era o auge do período ritual e do trabalho agrícola coroado pela colheita", acrescenta a socióloga. Vale ressaltar o óbvio, para que não fique um certo estranhamento ao leitor menos atento: no hemisfério norte, origem de tais celebrações, as estações do ano são invertidas em relação ao hemisfério sul, onde está o Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas onde então entram os santos nessa história? Na festa junina contemporânea, estão presentes algumas das figuras mais populares do catolicismo — e isso acabou impregnado de tal forma na celebração que a religiosidade se misturou ao folclore e às tradições populares, transcendendo os ritos normatizados pela Igreja Católica. O primeiro dos santos juninos é Antônio (? - 1231), frade franciscano de origem portuguesa que ficou conhecido pelo que fez na Itália no início do século 13. Com fama de milagreiro, foi canonizado pela Igreja onze meses depois de sua morte — trata-se de um recorde até hoje não superado na história do catolicismo. No imaginário popular, Antônio se tornou o bonachão santo das coisas perdidas, sobretudo nos países europeus, e o casamenteiro, principalmente em Portugal e no Brasil. Simpatias, promessas e orações específicas marcam a devoção a ele. E sua presença nos festejos juninos geralmente está ligada a essas tradições — a Igreja fixou o 13 de junho, data da morte dele, como dia consagrado ao santo. Em 24 de junho, o catolicismo celebra o nascimento de João Batista (2 a.C - 28 d.C.). É o santo máximo das comemorações juninas — há versões que apontam que originalmente eram "festas joaninas" e não festas juninas; e, sobretudo no nordeste brasileiro, a Festa de São João é um evento de dimensões impressionantes. Personagem de historicidade controversa, João Batista é apontado como primo de Jesus Cristo e aquele que o batizou. Em seu livro 'O Ramo de Ouro', o antropólogo escocês James Frazer (1854-1941) diz que ocorreu um processo histórico "de acomodação", deslocando para a figura de São João Batista a comemoração do solstício de verão. Por fim, o mês de junho ainda tem a data do martírio de São Pedro (? - 67 d.C) e São Paulo (5 d.C. - 67 d.C.), dois dos pioneiros do cristianismo. Pedro foi um dos 12 apóstolos de Jesus e acabou depois considerado o primeiro papa do catolicismo. Paulo de Tarso, por sua vez, é reputado como um dos mais influentes teólogos da história. Parte significativa dos textos que compõem o Novo Testamento da Bíblia é atribuída à sua pena. É dele, portanto, a autoria de parcela considerável da ressignificação de Jesus Cristo após sua morte na cruz — em outras palavras, é possível dizer que Paulo é responsável pela transformação de Jesus em um mito. Uma observação necessária: apesar de a Igreja celebrar em conjunto a memória do martírio de Pedro e de Paulo, por tradição este último nem sempre é associado aos festejos juninos. À medida que o catolicismo foi se transformando em religião do status quo, sobretudo a partir da cristianização do Império Romano, no ano de 380 d.C., diversos rituais tratados como pagãos acabaram sendo abraçados e apropriados pela Igreja. "A Igreja Católica não pôde desmanchar essas práticas", reconhece Rangel. Com os rituais de primavera e verão, não foi diferente. "Várias dessas festividades foram adaptadas", conclui Ikeda. "Aos poucos passaram a ser tratadas como festas em honra aos santos juninos." "Mas é importante notar que mesmo dentro do ciclo cristão, esses santos estão ligados tematicamente com aquelas mesmas ideias, os mesmos princípios das festividades [dessa época do ano] das antigas civilizações", pontua o pesquisador. Santo Antônio, por exemplo, é o casamenteiro — em uma leitura lato sensu, poderia ser encarado como o santo da família, da unidade familiar, da reprodução humana. "São João também está ligado, sobretudo nos interiores do Brasil, a essa questão dos relacionamentos afetivos. Tradicionalmente, faz-se muito casamento no Dia de São João", diz Ikeda. "Ele também traz a característica da fartura [que remete aos períodos de plantio e de colheita, em oposição aos rigorosos invernos], dos alimentos, das bebidas, aquilo que chamamos na antropologia de repasto ritual ou repasto cerimonial", afirma o pesquisador. De modo geral, na leitura proposta por ele, todos os santos juninos estão ligados aos ciclos da natureza — fogo, água, fertilidade, abundância. Está aí São Pedro e a ideia de que ele é quem controla o tempo. "Vejo uma relação entre eles e os antigos rituais, uma relação ainda presente. Embora a gente não perceba mais, eles têm essa ligação com os elementos fundamentais da existência humana", comenta. Nas festas populares essas forças da natureza se fazem representadas, muito além da mesa farta. Os mastros juninos que são erguidos representam a potência dos troncos, das árvores que resistem ao inverno. A fogueira é a luz: ilumina, aquece, afugenta animais ferozes, assa os alimentos. Na releitura contemporânea, portanto, as festas juninas "guardam as reminiscências das ancestrais aglomerações festivas", conforme frisa Ikeda. Paçoca, pamonha, pipoca, bolo de fubá, canjica, curau, pé de moleque, maçã do amor. Vinho quente e quentão. Brincadeiras de pular fogueira e dançar a quadrilha. Chapéu de palha, camisa xadrez, calça com remendos. Bombinhas e rojões, fogos de artifício. Bandeirinhas coloridas penduradas em varais de barbante. No Brasil, as festas juninas foram reinventadas e se tornaram uma exaltação das raízes caipiras. E muito além da religiosidade, tornou-se tradição, folclore. Como se o ciclo se fechasse: o que nasceu como ritual gregário, de celebração social, e depois foi apropriado por uma religião dominante, acabou na cultura popular sendo devolvido ao sentido original — ou seja, a festa pela alegria de festejar. Não à toa, a folclorista Laura Della Mônica registrou em seu livro 'Os Três Santos do Mês de Junho' que "respeitar as festas e orações dedicadas a cada um dos três santos do mês de junho, segundo a tradição, é obrigação e dever de todos nós, pelo menos culturalmente". O "todos nós" é o brasileiro. Porque mesmo nascida no Velho Mundo, as festas juninas assumiram uma identidade própria em território nacional. "A colonização da América colocou novamente a questão [da apropriação cultural] para os jesuítas e todos os religiosos que se instalaram no continente sul-americano", pontua a socióloga Rangel. "No caso do Brasil, houve uma coincidência do calendário. No inverno seco, o solstício de inverno marca o período dos trabalhos agrícolas mais importantes. Do mesmo modo que, para os povos do hemisfério norte é o período de rituais de fertilidade, [a festa por aqui também vem] com as mesmas características, congrega as famílias na evocação da abundância." As tradições regionais guardam suas especificidades, como era de se esperar em um país de dimensões continentais. "Sempre foram festas e rituais populares", salienta Rangel. "No Brasil temos expressões regionais muito fortes: o São João nordestino, o Boi Bumbá da região norte, o Boi de Mamão no sul, Cavalhadas no centro-oeste e as festas do Divino Espírito Santo e muitas regiões, particularmente no estado de São Paulo." A pesquisadora comenta que "conforme os padres vão chegando nas paróquias, começam a interferir nas comemorações". É quando vem o sincretismo: a festa popular também é festa católica, a quermesse organizada pela igreja também tem os rituais populares. "Até hoje as paróquias, as igrejas, realizam festas juninas. Só não estão realizando neste período em função da pandemia de covid. Mesmo que as maiores festas estejam predominantemente tendo somente o caráter festivo, mais comercial, de exploração pelo ganho financeiro, as igrejas continuam fazendo comemorações aos santos juninos", pontua Ikeda. "Embora muitas pessoas não católicas também participem das festas, embora predomine uma visão genérica que as festas juninas não guardam mais relação com a religiosidade, há ainda um relacionamento das igrejas com esses santos juninos." Para ele, a evolução da festividade consiste no fato de que "toda aglomeração possibilita o incentivo ao comércio". "E a alimentação está neste centro, na busca mesmo do repasto cerimonial e festividades, danças e músicas que sempre estiveram ligados aos antigos rituais." Ikeda lembra que a as festas populares têm uma importância antropológica por serem "práticas gregárias que ciclicamente comemoram a própria constituição, a própria existência das comunidades enquanto coletividade, a reunião de grupos humanos que preservam uma história comum". "No caso da feste junina, esse vestir-se de caipira, simbolicamente, é um instrumento de importância até emocional e psicológico para as pessoas se sentirem com a identidade ligada ao passado, aos pais e avós que praticavam aquilo, comemorando de forma parecida", analisa o pesquisador. "Assim, a prática possibilita a guarda de uma continuidade ao longo do tempo." Nunca é demais enfatizar: com a pandemia de covid-19 ainda fora de controle, seria uma péssima ideia realizar qualquer tipo de festa neste período — se quer comemorar, faça em casa somente com seu núcleo familiar. Então, 2021 será o segundo ano consecutivo em que o Brasil não terá, ao menos de modo ostensivo, a tradição das festividades com bandeirinhas coloridas. Doutora em História das Ciências da Saúde e autora do livro A Gripe Espanhola na Bahia, a historiadora Christiane Maria Cruz de Souza afirma que esse cancelamento não ocorreu nem na epidemia de 100 anos atrás. Isto porque a gripe chegou ao Brasil bem depois dos festejos de 1918. E, no ano seguinte, a epidemia estava controlada. "A gripe espanhola não teve nenhuma interferência no São João. Os primeiros registros da doença apareceram em setembro de 1918 e a doença foi se extinguindo aos poucos. Em Salvador, ele não avançou para o ano de 1919. Houve alguns surtos, em lugares mais remotos, até 1920, mas sem caráter epidêmico." É de se supor, inclusive, que as festividades de 1919 tenham sido ainda mais animadas. "Passada a epidemia de gripe espanhola, tudo o que as pessoas queriam eram esquecê-la", afirma Souza. Em 20 de junho de 1919, entretanto, surgiram os primeiros registros indicando uma epidemia de varíola na capital da Bahia. "Começaram a aparecer um caso aqui, outro ali, mas ainda sem a força suficiente para poucos dias depois interditar os festejos de São João", nota a pesquisadora. "As autoridades sanitárias demoraram muito para reconhecer que ocorria uma epidemia terrível de varíola. Autoridades públicas só costumam reconhecer a existência de uma epidemia quando se torna inevitável devido ao acúmulo de adoecimentos e mortes, quando o número de doentes e mortos ultrapassa a normalidade esperada para os casos da doença. Isso demora um tempo." Rangel ressalta, inclusive, que até a primeira metade do século 20, as festas juninas eram muito menores, restritas a familiares e pequenos grupos comunitários. Muito menos do que os eventos de hoje em dia. "Eram festas de arraial, de quintais, de quermesses", diz. "Elas só se transformaram em grandes espetáculos na segunda metade do século 20, na esteira da espetacularização do carnaval."
2021-06-18
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57521052
sociedade
Obesidade: 'Meus genes são programados para acumular gordura'
Profissionais de saúde dizem que é hora de a obesidade ser vista como uma doença causada pela genética, biologia e pela maneira como vivemos hoje. Uma nova pesquisa reforça a crescente opinião científica de que "obesidade saudável" não existe. O estudo mostra que quem está muito acima do peso tem 66% mais risco de desenvolver doença crônica dos rins. Muitas pessoas obesas dizem que não só têm que conviver com o preconceito e o estigma, mas também sofrem para encontrar tratamento. Sarah enfrentou a obesidade durante toda a sua vida adulta. Aos 39 anos, seu Índice de Massa Corporal (IMC) é superior a 40, o que significa que Sarah tem obesidade mórbida. E esse sobrepeso é um risco à sua saúde. "As pessoas acham que você não é inteligente, que você é preguiçosa, que come demais, que fez isso consigo mesma. Acham que é uma escolha", diz ela. "Só quero gritar e dizer que nada disso é verdade." Sarah passou grande parte da vida tentando controlar o peso com dietas e exercícios, e diz que pensa na sua obesidade todos os dias. Crescendo em Jersey, no Reino Unido, Sarah era uma "menina de tamanho normal", até que, na escola primária, começou a desenvolver corpo de adolescente mais cedo do que muitas colegas de sala. Quando estava na escola secundária, num colégio só para meninas, as mudanças da puberdade a faziam se sentir diferente da maioria das amigas. No início da adolescência, ela já sabia que sua mãe tinha dificuldades com a balança e que havia tentado diferentes dietas ao longo da vida. Por isso, quando começou a engordar, Sarah fez o mesmo. Aos 16 anos, ela decidiu iniciar uma dieta de 800 calorias que consistia em beber um tipo de milkshake o dia todo. No verão, antes de começar as provas de conclusão do Ensino Médio, ela havia passado do tamanho 42 para 38. Na época, o resultado a fez se sentir "ótima". Mas, internamente, sabia que isso também significava o início de anos e anos de dietas-sanfona. Sarah estava usando tamanho 40 quando começou a universidade. Mas quando se formou, três anos depois, tinha aumentado oito tamanhos. Seu estilo de vida, que consistia em beber e comer tarde da noite, a impediu de manter o peso sob controle. Mas, diferentemente de quando tinha 16 anos, as dietas não pareciam funcionar. Foi o início de uma batalha para controlar o peso. Cientistas descobriram que o peso muda de maneira diferente para cada pessoa, conforme suas características genéticas, ainda que elas comam a mesma quantidade de calorias. Depois da universidade, Sarah começou a trabalhar na indústria farmacêutica. Ela estava tendo um bom desempenho na área de vendas, vendendo remédios para diabetes, mas ficou abalada com um comentário que o chefe fez. Ele disse que, quando conheceu Sarah pela primeira vez, pensou: "É bom que você seja uma representante de vendas incrível, já que está tentando vender remédio contra diabetes com essa aparência." Sarah agora diz que deveria ser ilegal fazer comentários sobre o tamanho e o formato do corpo de alguém. Na época, aos 30 anos, ela tinha obesidade mórbida e estava desesperada para fazer algo a respeito disso, em prol da sua saúde fisica e mental. Ela embarcou num projeto de um ano com um personal trainer e completou uma prova de triatlon — nadando 1,5 km, pedalando 40km e correndo 10km. Perdeu 55kg. Nesse período, Sarah fez alguns testes para investigar suas características genéticas. Dois resultados importantes apareceram. Shaw Somers, médico especializado em cirurgia de perda de peso, trata pessoas com obesidade mórbida há muitos anos. Ele diz que pessoas como Sarah, que herdaram certos genes, têm muito mais chances de desenvolver obesidade. Mas obesidade não é só produto da genética, diz ele. Envolve também psicologia, desigualdades e o ambiente alimentar em que vivemos. Historicamente, diz Somers, as pessoas com essa genética lidariam bem num ambiente de falta de comida, mas com a alta oferta de alimentos calóricos da atualidade, elas vão engordar "se não tiverem forte apoio e determinação". Denise Ratcliffe, psicóloga clínica que acompanha pacientes que fazem cirurgia bariátrica, diz que as experiências passadas também desempenham um papel nisso. Ela conta que muitos dos seus pacientes tiveram traumas, passaram por abusos ou negligência, por exemplo. E isso pode levar a uma relação desfuncional com a comida. "Acho que há algo nas experiências psicológicas das pessoas e nos relacionamentos que elas desenvolvem com alimentos que provoca quase que uma tempestade perfeita." Tanto os componentes genéticos quanto psicológicos da obesidade podem ser amplificados diante do acesso fácil a comidas gordurosas e com muito açúcar, que costumam ser baratas e convenientes. Jed, amigo de Sarah, também tem obesidade. Ele diz que a cidade onde mora na Inglaterra tem grande efeito em sua saúde. No lado oposto à sua casa, há uma rua com cerca de 20 restaurantes de fast-food. "Tem fast-food de frango, de hambúrguer, de peixe frito, de kebab, um outro de kebab, um de batata frita, um chinês...", elenca. Jed diz que recentemente assinou uma petição para tentar impedir outro fast-food de abrir. "Se você olha para qualquer área da sua cidade que seja de baixo poder econômico, garanto que vai ter mais lojas de fast-food. Não precisamos disso." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Depois de treinar para a prova de triatlon e perder 55 kg, Sarah continuou se exercitando regularmente e seguindo uma alimentação saudável. Mas percebeu que começou a ganhar peso. Não importava o que fizesse, nada fazia diferença. Abd Tahrani, professor de Medicina para Obesidade na Universidade de Birmingham, diz que há muitas pessoas "biologicamente programadas para conservar energia", ou seja, para acumular e armazenar gordura. Ele explica que sinais do hipotálamo, a parte do cérebro que controla o apetite, bombardeia para a pessoa sensações de fome e desejo de comer que são praticamente impossíveis de combater. Portanto, mesmo que uma pessoa consiga perder vários quilos fazendo dieta, o corpo tem a memória do peso anterior e luta para voltar a ele. Pesquisas usando a base de dados do sistema público de saúde do Reino Unido mostram que a chance anual de uma pessoa com obesidade mórbida atingir o peso normal varia de 1 em 700 a 1 em mil. Após muitos anos se culpando por estar acima do peso, Sarah começou a pesquisar sobre obesidade e percebeu que o próprio corpo estava "agindo contra ela". Uma nova pesquisa feita por especialistas da Universidade de Birmingham, University Hospitals Birmingham e Escola de Medicina de Warwick, no Reino Unido, descobriu que pessoas com obesidade têm risco 66% maior de desenvolver doença crônica nos rins, mesmo que não tenham outras condições de saúde, como diabetes e pressão alta. O estudo acaba de ser publicado na revista científica American Journal of Kidney Disease, e envolveu dados de 4,5 milhões de pacientes tratados no Reino Unido ao longo de 20 anos. Esses achados reforçam o corpo de pesquisas científicas que demonstram que "obesidade saudável não existe", diz o professor Indranil Dasgupta, nefrologista da University Hospitals Birmingham e um dos autores da pesquisa. Estudos anteriores do mesmo time de pesquisadores mostraram que pessoas com obesidade também têm risco maior de desenvolver doenças cardiovasculares e derrames, mesmo sem outros problemas de saúde crônicos. Muitos profissionais com conhecimento sobre obesidade acreditam ser necessária uma mudança significativa na forma como essa condição é vista pela sociedade médica e o público em geral. "A percepção pública não entendeu bem que se trata de uma doença real", diz Shaw Somers. "A cada ano que falhamos em controlar a epidemia de obesidade, ela fica exponencialmente pior." Também precisa haver mudanças na compreensão sobre tratamentos, segundo Somers. Muitos programas de perda de peso para pessoas com obesidade começam com "se mexer mais e comer menos", o que é a prevenção da obesidade, não a cura. "O número de pessoas que encontrei nos meus 30 anos de carreira que conseguiram ir da obesidade mórbida para um peso normal, e manter isso apenas com dieta... Bom, acho que não conheci nenhuma. É muito difícil de alcançar isso", diz o cirurgião. Evidências indicam que pessoas como Sarah, cujos organismos são programados para ganhar e reter gordura, podem se esforçar ao máximo e mesmo assim não obter os resultados desejados. Isso pode se tornar um grande fardo psicológico. "Tive momentos muito difíceis, porque me sentia um fracasso", diz Sarah. A psicóloga Denise Ratcliffe diz que muitas pessoas aceitam a narrativa de que são culpadas pela obesidade. Isso e o julgamento da sociedade podem levar a situações em que a angústia mental e o ganho físico de peso se retroalimentam. "Obesidade é uma causa de problemas de saúde mental. Então, se você tem problemas de saúde mental, é mais provável que tenha obesidade. Mas, se você é obeso, isso também cria dificuldades de saúde mental." O sistema de saúde público britânico, o NHS (equivale ao SUS no Brasil), tem quatro estágios de recomendação para o tratamento do processo de obesidade. O primeiro promove a alimentação saudável e estilo de vida ativo, enquanto o segundo envolve financiamento para programas de emagrecimento. No terceiro, profissionais de saúde dão medicação e orientam mudanças no estilo de vida. O quarto e último estágio ocorre quando os pacientes passam por cirurgia bariátrica para perda de peso. No Brasil, o SUS também oferece cirurgia bariátrica e acompanhamento psicológico e medicamentoso para quem se enquadrar nos critérios para essa cirurgia, como ter mais de 16 anos e IMC de mais de 40 ( ou IMC de mais de 35 com doenças associadas). Sarah decidiu que não quer fazer cirurgia bariátrica. Ela argumenta que se fizer a operação e vier a ganhar peso no futuro, vai se sentir muito frustrada. A cirurgia bariátrica resulta em uma grande perda de peso. Embora pacientes tenham que fazer mudanças permanentes em seus estilos de vida após a operação para evitar ganho de peso, ela também acarreta mudanças hormonais que podem reduzir o apetite. E as evidências de custo-benefício e melhora da saúde têm sido mostradas em diferentes estudos pelo mundo. Shaw Somers fez cirurgias pelo NHS (SUS britânico) no Hospital Portsmouth. Ele também faz essa cirurgia particular em Londres, em pacientes que podem arcar com o serviço. "Muitas pessoas que lutam contra a obersidade mórbida têm uma série de condições de saúde que são mais difíceis de serem tratadas por causa da obesidade", diz ele. "Elas ficam presas num ciclo vicioso, no qual suas doenças favorecem o ganho de peso e a obesidade agrava as doenças." Uma de suas mais recentes cirurgias foi num paciente com doença crônica nos rins. Ele explica que a operação não foi apenas para melhorar a qualidade de vida, mas para salvar a vida daquele homem. A equipe de Somers conta com nutricionista, psicólogo, enfermeiras e anestesistas. Eles oferecem amplos cuidados pré e pós-operatórios. Todos os seus pacientes passaram por anos de dietas fracassadas, angústia psicológica ou doenças como diabetes e pressão alta, comuns entre quem tem obesidade. Para Sarah, a esperança está na ciência médica. Pesquisas sobre drogas que suprimem o apetite estão avançando, diz Abd Tahrani. Também há estudos para produção de drogas para pessoas que, como Sarah, têm mutação no receptor MC4. Tahrani diz que uma droga recentemente aprovada nos Estados Unidos pode alcançar de 15 a 17% de perda de peso. No futuro, ele espera ver remédios que resultem em perda de peso de 20 a 25%, que é o mesmo percentual alcançado com cirurgia bariátrica. Sarah está se esforçando para se manter o mais saudável possível e para aproveitar da melhor maneira a vida que tem. Ela é uma profissional bem-sucedida que vive num bonito vilarejo em Yorkshire, no norte da Inglaterra. Solteira e mãe de uma menina, ela diz que sua auto-confiança é boa em todas as áreas, menos na questão do peso. Apesar de todo o seu conhecimento sobre obesidade, Sarah ainda quer ser mais magra. E, de uma vez por todas, deixar de ser julgada por seus quilos a mais. Ser obesa significa pensar no que pode dar errado. Mesmo um encontro com um amigo num bar traz ansiedade. "Como serão as cadeiras? Será que podem quebrar se eu sentar nelas?". Mas, para algumas pessoas com obesidade, a confissão de Sarah de que não é feliz com o corpo que tem colide com o argumento de que é preciso rejeitar o estigma e a vergonha de ser obeso. É o que chamam de "positividade corporal". Sarah respeita esse pensamento, mas diz que não funciona para ela. "Tenho certa inveja do amor-próprio da comunidade da positividade corporal. Mas é uma comunidade pequena. A grande maioria se sente muito diferente disso." Levando em conta que os problemas de peso de Sarah são principalmente genéticos, ela não sabe qual será o impacto na sua filha de dois anos, Emily. "Quero que ela saiba que temos diferentes tamanhos e formas, diferentes cores de cabelo, altura e não importa nossa aparência. Só quero que ela seja ela mesma. Vou me esforçar para passar essa mensagem para ela", diz. Sarah está abrindo uma ONG para apoiar aqueles com obesidade que se sentem estigmatizados e incompreendidos. Ela quer ser a voz de uma comunidade que raramente é ouvida. Para vários cientistas e médicos que desenvolveram um conhecimento profundo sobre obesidade, trata-se de uma doença complexa, influenciada por diferentes fatores. Culpar uma pessoa por sofrer dessa doença vai contra as evidências científicas. "Se culpabilizar funcionasse, já teríamos uma sociedade magra. Todos que sofrem de obesidade foram culpabilizados diversas vezes, seja pelos médicos, pelos vizinhos, a família ou a sociedade em geral. Isso não funciona. Por favor, parem", diz Abd Tahrani. No Brasil, segundo dados do IBGE, seis em cada dez brasileiros estão acima do peso. A parcela de adultos com obesidade é de 26,8%, o dobro da taxa registrada em 2003.
2021-06-18
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57524886
sociedade
O que é o Juneteenth, novo feriado americano, criado após pressão do Black Lives Matter
Juneteenth é uma das celebrações mais antigas dos Estados Unidos, que marca o fim de mais de dois séculos de escravidão no país. Ela é comemorada no dia 19 de junho desde 1866 e organizações de direitos civis dos EUA, como a Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP, na sigla em inglês), há muito tempo fazem lobby para tornar a Juneteenth um feriado nacional oficial. Agora, a luta por esse reconhecimento está perto de terminar. Um projeto de lei para tornar o Juneteenth um feriado federal foi aprovado no Senado dos Estados Unidos (por unanimidade) e na Câmara dos Deputados (415 votos a favor, 14 contra). Nesta quarta-feira (17/6), o presidente americano Joe Biden transformou a proposta em lei, durante um evento da Casa Branca na tarde desta quinta-feira (17/06). "Só sou presidente há vários meses, mas acho que isso será considerado, para mim, uma das maiores honrarias que terei como presidente", disse Biden na cerimônia de assinatura. Embora o Texas tenha se tornado o primeiro Estado a tornar o Juneteenth um feriado oficial em 1980, levou mais de quatro décadas para que isso fosse replicado em nível nacional. A luta por essa medida ganhou força após a morte de George Floyd, com o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em português) e a eleição de Joe Biden como presidente. Floyd, um homem negro de 46 anos, foi sufocado até a morte por um policial branco, filmado ajoelhado sobre seu pescoço, enquanto ele agonizava. O episódio provocou uma onda de protestos globais contra o racismo e a violência policial, inclusive no Brasil. O nome vem de uma combinação, em inglês, de 'junho' e 'décimo nono', em referência à data em que finalmente foi declarado o fim da escravidão nos EUA. Também é conhecido como Dia da Emancipação e Dia da Liberdade. O presidente Abraham Lincoln havia emitido a Proclamação de Emancipação - que formalmente libertou todos os escravos - mais de dois anos antes. Mas precisou de tempo, e do fim da guerra civil americana (1861-1865), até isso virar uma realidade para todos. O Texas era um dos Estados confederados - um grupo de Estados que defendiam a escravidão e que lutaram contra a União na guerra civil. Foi o último Estado a se render ao Exército da União, e também o último onde os negros escravizados foram libertos. Quando o general da União Gordon Granger leu o documento na cidade de Galveston, a guerra havia terminado e Lincoln havia sido assassinado por um simpatizante confederado em um teatro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Atualmente, 46 dos 50 Estados e o Distrito de Columbia observam ou comemoram oficialmente o Juneteenth. Mas a data não é um feriado nacional, apesar dos anos de lobby das organizações de direitos civis. Nos últimos dias, várias empresas - incluindo Apple, Nike e Twitter - anunciaram que a data será um feriado remunerado para seus funcionários a partir de agora. Também nessa lista está o corpo diretor do futebol americano, a Liga Nacional de Futebol (NFL, em inglês). A NFL foi criticada nos últimos anos por excluir o ex-jogador do San Francisco 49ers Colin Kaepernick, que ajoelhou durante o hino nacional em apoio ao movimento Black Lives Matter. Nikola Hannah-Jones, jornalista do New York Times e autora de uma série premiada sobre a história da escravidão nos EUA, é uma das vozes que defendem o feriado nacional. "O fato de os EUA não terem um Dia de Emancipação para marcar a abolição de uma instituição contrária aos nossos ideais fundadores de liberdade demonstra uma negação contínua e nossa incapacidade de reconhecer o que fizemos e quem somos. Deveria ser um feriado nacional", escreveu ela em sua conta no Twitter em 11 de junho. Em 11 de junho, enquanto manifestantes contra o racismo estavam nas ruas de um grande número de cidades dos EUA, Trump anunciou que realizaria um comício de campanha, o primeiro desde março (devido a restrições relativas ao coronavírus), na cidade de Tulsa, em Oklahoma, em 19 de junho. Além da data em si, a escolha do local por Trump também causou furor: Tulsa é o local onde ocorreu um dos piores massacres de negros na história dos EUA, em 1921. Trump mudou de ideia alguns dias depois e mudou o evento para 20 de junho. Ele disse que a data não foi intencionalmente escolhida e que ele adiaria o evento "por respeito a este feriado". Mas o local foi mantido - Tulsa é uma das maiores cidades de Oklahoma, um Estado em que Trump conquistou mais de 65% dos votos nas eleições presidenciais de 2016. Ativistas têm se empenhado pela conscientização em relação à data nos últimos anos, inclusive com eventos nacionais promovidos pelo movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam). A campanha incluiu um episódio de Black-ish, uma série de comédia que mostra a vida de uma família americana negra de classe média alta, com o tema Juneteenth. O episódio, transmitido originalmente em outubro de 2017 e exibido novamente este ano, pede abertamente que Juneteenth seja reconhecido como feriado nacional. Os protestos em andamento e a crescente conscientização sobre o racismo sistêmico deram ao Juneteenth um novo destaque. Há eventos públicos planejados nos EUA na sexta-feira e no fim de semana. Durante uma viagem à África em 1998, o então presidente democrata Bill Clinton pediu desculpas pelo tráfico de escravizados. Dez anos depois, a Câmara dos Deputados dos EUA emitiu um pedido de desculpas pela escravidão e segregação. O movimento foi seguido no ano seguinte pelo Senado dos EUA. Mas, para muitos, essas desculpas não são suficientes. Há pedidos nos EUA por reparações a descendentes de escravizados, mas a questão divide opiniões: em uma pesquisa realizada no ano passado, 74% dos negros americanos mostraram apoio a esse tipo de indenização, enquanto 85% dos brancos se opuseram a eles. Este texto foi publicado originalmente no dia 18 de junho de 2020 e atualizado às 10h do dia 18 de junho de 2021.
2021-06-18
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53091577
sociedade
'Tive transtorno pós-traumático após minha filha nascer', diz britânico
Por mais de um ano, o britânico Elliott Rae guardou dentro de si uma angústia que nasceu junto com o tumultuado e cheio de imprevistos parto de sua filha. Agora, ele batalha para que homens como ele coloquem para fora seu problemas e emoções — e evitem a agonia pela qual ele passou. Ele estava no lotado metrô de Londres, quando começou a chorar sem saber por quê. "Senti uma enorme tristeza", diz, lembrando-se daquela noite de verão há cinco anos. Nada em particular acontecera naquele dia para provocar tamanha emoção. Ele havia se levantado com a filha de nove meses, como de costume, e tomou café da manhã com a esposa, Soneni. Em seguida, partiu para trabalhar em Westminster, como funcionário no departamento de transportes local. Para familiares, amigos e colegas, parecia que Elliott estava bem. Ele dizia: "estou apenas cansado, me tornei pai recentemente", e isso seria o suficiente. Mas a realidade é que, desde o nascimento da filha, ele era atormentado por lembranças dos dias assustadores em que a esposa e a bebê tiveram vários problemas de saúde logo após o parto. Esse passado era suficiente para tirar uma noite de sono ou deixá-lo atordoado em um bate-papo leve com os colegas. "Não me sentia nem um pouco como eu mesmo", lembra. Quando finalmente conseguiu ajuda, Elliott foi diagnosticado com Transtorno de estresse Pós-Traumático (TEPT) e publicou um livro, Dad ('Pai', em português), no qual relata suas experiências de paternidade, junto com outros 19 pais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O homem de 38 anos nunca se viu como alguém que pudesse desenvolver problemas de saúde mental ou precisar de terapia. Ainda mais em relação à paternidade: quando Soneni engravidou em 2015, ele ficou radiante. O trabalho de parto no hospital começou com relativa tranquilidade. O nascimento seria na água e as avós estavam lá para dar apoio, como havia sido planejado. Mas em poucas horas, a pressão arterial de Soneni começou a subir e a frequência cardíaca do bebê começou a cair, levando à transferência para um outro quarto. "Aquela sala parecia diferente, mais escura, com muitos equipamentos médicos", lembra o pai. Ele se lembra que, às vezes, a parteira apertava um botão vermelho, e em seguida a sala se enchia de médicos. Não era assim que ele imaginava que as coisas seriam. Soneni estava recebendo antibióticos intravenosos porque testes detectaram uma infecção por uma bactéria Streptococcus do Grupo B, e equipe esperava que os medicamentos pudessem evitar a infecção do bebê durante o parto. Na maioria das vezes, esta infecção não é prejudicial à mãe ou ao bebê — mas, neste caso, era. Depois de quase 24 horas de trabalho de parto, a bebê nasceu. Ela estava cinzenta e não fazia barulho. "A parteira colocou a neném no peito da minha esposa e houve apenas um silêncio. Parecia que tudo havia parado." Novamente médicos encheram a sala, e Elliott só pôde assistir, incrédulo, sua filha sendo ressuscitada de um lado da sala e sua esposa perdendo uma quantidade preocupante de sangue do outro. "Parecia que estava assistindo a um filme, e outra pessoa estava vivendo aquilo." "Durante o parto, desempenhei um papel, mas ali me sentia impotente e chocado. Tive que dar um passo atrás e confiar em pessoas que não conhecia para salvar minha família." Minutos depois, Elliott dava um beijo de até logo em Soneni e acompanhava a filha para uma unidade de terapia intensiva (UTI) neonatal. "Estava muito preocupada com as duas, mas minha filha tinha cinco minutos de vida. Eu precisava ir com ela." "Quando chegamos à UTI neonatal, uma senhora olhou para mim e percebeu que estava desnorteado. Ela me disse que eu precisava me recompor e ajudar minha família." Hoje, ele se diz grato por aquelas palavras, porque elas geraram o efeito pretendido. Nos dias que se seguiram, Elliot incorporou uma postura quase profissional de eficiência, indo de um lado a outro para acompanhar muito de perto os quadros da filha e da esposa. "Não havia tempo" para cair aos prantos, mas voltar para casa na primeira noite sem a bebê nos braços e a esposa foi muito difícil. Poucos dias depois, os três conseguiram se acomodar juntos em um quarto do hospital, e a neném se recuperou lentamente da infecção bacteriana. Depois de 15 dias, a equipe médica passou a falar da volta da família para casa. Elliott e Soneni finalmente sentiram recuperar o fôlego. Tudo ia ficar bem. Então, de repente, apareceu um protuberância na parte de trás da cabeça da filha. Os médicos ficaram preocupados e pediram uma ressonância magnética para descartar a possibilidade de ter ali coágulos sanguíneos ou até mesmo um tumor cerebral. Mais uma vez, Elliott sentiu uma total perda do controle. "Podia sentir a energia sendo sugada do meu corpo. Não tinha mais nenhuma", lembra o pai. "Nós dois chegamos ao fundo do poço, estávamos em nosso estado mais vulnerável." O casal passou a noite em claro e fez orações pela bebê junto com as parteiras. "Lembro-me de me perguntar de onde vinham todas aquelas lágrimas, porque chorei a noite toda." No dia seguinte, ele levou a filha para a sala de exames e colocou o minúsculo corpinho naquele enorme aparelho para adultos. Após uma angustiada espera pelos resultados, uma enfermeira irrompeu pela porta, puxando os pais para um abraço com um enorme sorriso no rosto. A protuberância não era nada para se preocupar, e a família poderia voltar para casa. Mas as angústias em relação à saúde da filha não ficaram para trás, no hospital. "Em todas as semanas dos primeiros meses, ficávamos de prontidão para uma emergência para tudo, a cada fungada", lembra Elliott. A maior parte da licença paternidade de Elliott foi usada enquanto a família estava no hospital, então ele logo precisou retornar ao trabalho. Colegas perguntavam entusiasmados sobre o nascimento, mas ele nunca se sentia à vontade para contar pelo que tinha passado. Terapia não era algo que Elliott considerasse. Já Soneni logo reconheceu que precisava de ajuda e foi diagnosticada com ansiedade pós-parto meses após o nascimento da filha. "Me preocupava constantemente e imaginava os piores cenários", lembra a mãe. Até que uma grave reação alérgica ao trigo levou a bebê de volta ao hospital, e revelou também que a assistência estava fazendo bem a Soneni. "Ela lidou com esse episódio muito bem, mas para mim, foi como voltar à sensação de desamparo e descontrole do nascimento", lembra Elliott. Foi quando ele começou a apresentar mais sinais de TEPT: insônia, ansiedade e lembranças que surgiam de repente. "Ele me contava sobre ter experiências como se estivesse fora do próprio corpo. Foi quando comecei a me preocupar", conta Soneni, chegando às lágrimas ao pensar na pressão que o marido sentiu. Elliott reconheceu que precisava de ajuda em 2017, depois que um jornalista perguntou sobre o nascimento da filha e ele se viu lutando para abordar o assunto sem ficar angustiado. Sutilmente, o jornalista sugeriu que ele conversasse com alguém, passando o contato de um médico especializado em traumas e depressão pós-parto. "Pensava no estresse pós-traumático como algo que só soldados têm depois de ir para a guerra. Agora, sei que ele pode ser desencadeado em qualquer pessoa que passou por um evento traumático, capaz de mudar ou colocar em risco a vida." Em janeiro de 2016, Elliott criou uma rede online sobre paternidade e estilo de vida chamada Music Football Fatherhood ("Música, futebol e paternidade"). Foi uma saída para falar sobre ser pai de primeira viagem, embora só depois ele tenha abordado o nascimento traumático da filha e o TEPT que desenvolveu. Outros pais começaram a entrar em contato e a se abrir, o que lhe deu a ideia de escrever um livro, Dad. "Acho que a maioria dos novos pais passa por angústias em algum momento, e isso é normal. O Music Football Fatherhood me fez perceber isso." "Há muitas histórias e não falamos delas em público. A maioria dos homens que está prestes a ter um filho não sabe metade do que é ser pai, porque não falamos sobre isso." Elliott quer que seu livro gere novas conversas. Há relatos de homens que sofreram bullying como um novo pai, que criaram filhos sendo viúvos ou foram pais de uma criança que morreu. "Como homens e pais, é muito incomum se mostrar vulnerável e falar sobre saúde mental. Ainda não é completamente aceitável", diz o pai, e agora escritor. Ele acha que há muitas maneiras de preparar os futuros pais. No seu caso, ele lia blogs e pesquisava coisas práticas, como a preparação do orçamento ou qual carrinho de bebê comprar — mas não ia muito além disso. "Não pensava direito sobre o tipo de pai que eu queria ser, e não conversei com outros homens da minha vida. Isso nunca me ocorreu", conta. Mas agora, por meio do Music Football Fatherhood, ele começou a trabalhar com os serviços de planejamento familiar e acompanhamento pré-natal do NHS (sistema de saúde britânico) para incentivar homens a pensar sobre o que significa ser pai, como sua identidade mudará e o que isso pode significar para seus relacionamentos. Ele acha que todos os futuros pais devem ter conversas sobre saúde mental, especialmente se estiverem em uma categoria de alto risco — como aqueles com histórico de problemas de saúde mental, que testemunharam partos traumáticos ou cujas parceiras estejam sofrendo de depressão pós-parto. Para ele, os empregadores também poderiam fazer mais, oferecendo licença paternidade igualitária em relação à maternidade e oportunidades para trabalhar com maior flexibilidade. "Olhando para trás, poderia ter tido tantas conversas, tantos momentos de intervenção. Mas me sinto sortudo por minha experiência não ter sido tão grave quanto poderia." A filha de Elliott e Soneni agora é uma menina de cinco anos alegre e atenta, que adora cachorros e compõe canções enquanto está no banho. Ela herdou o amor dos pais pela música e pela dança e começou a escrever seus próprios "livros" desde que o pai começou a escrever os dele.
2021-06-18
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57521880
sociedade
'Trabalho no escritório 5 dias por semana vai voltar a ser a normal em 2 anos'
A semana de trabalho de cinco dias presenciais pode se tornar a regra novamente dentro de dois anos, segundo o centro de estudos britânico Center for Cities. No Reino Unido, a expectativa para o pós-pandemia é uma mistura de home office e períodos de trabalho no escritório, enquanto o país não se recupera totalmente dos efeitos da covid. Mas alguns analistas preveem uma volta aos padrões de trabalho anteriores à pandemia. Atualmente, as pessoas que podem trabalhar em casa ainda são aconselhadas a fazê-lo. No entanto, é provável que esse cenário mude se o governo do Reino Unido acabar com todas as restrições de distanciamento social em 21 de junho. "Espero que tenhamos três ou quatro dias por semana no escritório enquanto o Reino Unido se recupera", disse Paul Swinney, diretor de políticas e pesquisas do Center for Cities, ao programa Wake Up to Money, da BBC Radio 5 Live. "A longo prazo, estou bastante esperançoso de que veremos as pessoas voltando a trabalhar cinco dias por semana. A razão para isso é que um dos benefícios de estar no escritório é a interação com outras pessoas, ter novas ideias e compartilhar informações", afirmou. Dados do Instituto Nacional de Estatística Britânico, publicados em maio, revelaram que a maioria dos britânicos não trabalhava de casa antes de 2020. A proporção de pessoas que fazem home office mais do que dobrou durante a pandemia. O movimento atingiu o mercado imobiliário de escritórios, ao mesmo tempo que gerou muita discussão sobre o futuro do local de trabalho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A demanda por mais escritórios no centro de cidades britânicas agora parece estar aumentando. Números da agência imobiliária Savills mostram que a ocupação por metragem quadrada nas seis maiores cidades do Reino Unido aumentou significativamente desde o segundo trimestre de 2020. A agência disse que também registrou "aluguéis recordes" para alguns escritórios de primeira linha na Grande Londres e em outras áreas urbanas do país. Os setores que assinaram alguns dos maiores acordos com escritórios regionais foram os serviços públicos, como de educação e saúde. Imobiliárias que alugam imóveis enfrentam dificuldades durante a pandemia. Na segunda-feira, a firma de escritórios compartilhados IWG alertou sobre uma queda acentuada nos lucros. No entanto, a empresa disse estar vendo uma "demanda sem precedentes" por seus serviços flexíveis de escritório, já que muitas outras empresas adotaram o modelo de trabalho híbrido. Jessica Bowles, diretora de estratégia da incorporadora de imóveis comerciais Bruntwood, que opera em Manchester, Birmingham, Leeds e Liverpool, disse à BBC que sua empresa também sentiu uma alta da demanda por escritórios flexíveis e com serviços de locações curtas. "Tivemos uma aceitação muito forte. As pessoas querem termos flexíveis. O que é interessante é que são as corporações que querem fazer isso, bem como as pequenas empresas." Mas o trabalho híbrido não significa que os aluguéis flexíveis sejam mais baratos, pois "a flexibilidade tem seu preço". A maioria das empresas também deseja manter um escritório de cinco dias, disse ela. "A maioria deseja manter um escritório e diz não poder abrir mão do espaço por um determinado número de dias por semana. Eles apenas querem usar o escritório de maneira diferente. Isso significa mais espaço colaborativo, menos bancadas de mesas, lugares onde as pessoas podem se reunir, criar e inovar." Ela acrescentou que, embora o trabalho híbrido estivesse crescendo em popularidade antes da covid-19, o padrão de trabalho poderia ser "desafiador" para as empresas se alguns funcionários estivessem em casa e outros, no escritório. "Acho que, tanto no nível pessoal como empresarial, veremos mais pessoas valorizando o encontro presencial. Mas às sextas-feiras são sempre muito tranquilas no escritório, e não espero que isso mude." Já as empresas que dependem do trabalho presencial têm esperança de que sua sorte irá melhorar em breve. Em Birmingham, os proprietários do café Morridge, os irmãos James e Naomi Morris, estão ansiosos pela chegada de mais trabalhadores ao centro da cidade. Eles abriram o negócio em 2019 de olho nas pessoas que trabalham por ali. James disse à BBC que começou a ver mais clientes entrando no café novamente. "Nas últimas semanas, os funcionários dos escritórios têm voltado lentamente. As pessoas estão começando a trabalhar no café. Uma senhora veio tomar o café da manhã outro dia e atendeu alguns telefonemas de trabalho. Quartas e quintas-feiras são nossos dias mais movimentados", diz. Ele espera que mais trabalhadores retornem ao Centro da cidade no final do mês, caso as restrições impostas pelo governo acabem em 21 de junho. "Acho que tudo vai voltar." Mas a perspectiva de um retorno em massa aos escritórios, mesmo de forma híbrida, não será necessariamente bem-vinda por todos os funcionários. Uma equipe da Apple teria lançado uma campanha contra os planos do presidente da empresa, Tim Cook, de que os funcionários fossem ao escritório pelo menos três dias por semana até setembro.
2021-06-16
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57492169
sociedade
Como um 'desprogramador de seitas' já salvou centenas de pessoas de grupos perigosos
Enquanto seitas prometem uma nova vida para quem começar a segui-las, o americano Rick Alan Ross trabalha correndo contra o tempo para reverter o que chama de "lavagem cerebral" feita por grupos religiosos radicais ou que promovem o ódio. Seu trabalho integral é de "desprogramador de seitas", como é conhecido pela imprensa. Através de intervenções — ele já fez mais de 500 —, o americano ajuda pessoas a deixarem de seguir grupos perigosos. "Na essência, todos esses grupos são muito parecidos: um líder totalitário que se torna foco de adoração; um processo de doutrinação que resulta em influências indevidas; e a exposição de pessoas ao risco, uma vez que o grupo de fato se torna destrutivo", explica Ross à BBC. Hoje com 60 anos de idade, ele convive há tempos com ameaças. "Já fiquei sob proteção do FBI (polícia federal dos EUA) e do Departamento de Justiça, já fui perseguido por detetives particulares, processado judicialmente cinco vezes… Alguns grupos já até compraram meu lixo para obter informações sobre mim." Os problemas trazidos por estes grupos, diz Ross, são mais amplos do que parece. No último século, acontecimentos horríveis promovidos por seitas chegaram às manchetes. Houve o famoso massacre de Jonestown, quando mais de 900 pessoas morreram por suicídios e assassinatos em uma comunidade fundada pelo líder cristão Jim Jones, no ano de 1978; os assassinatos perpetrados por seguidores da "Família Manson" em 1969; e os crimes de tráfico sexual da seita Nxivm, que levou seu líder a uma condenação de 120 anos de prisão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ross desempenhou um papel nesse julgamento, testemunhando e expondo as táticas do grupo em outubro do ano passado. "Olhamos para essas seitas e pensamos: eles são muito doidos. Mas não percebemos que dentro desses grupos, tudo o que está fora está sendo submetido à manipulação", disse Ross em entrevista ao programa de rádio da BBC Outlook. Uma seita pode atingir o senso de realidade de uma pessoa e forçá-la a construir um novo, criando uma ruptura entre o que o grupo diz ser real e o que realmente é real. Ross passou por isso em sua vida pessoal, quando tinha cerca de 30 anos de idade e foi visitar a avó em uma casa de repouso no Estado do Arizona. Ela lhe contou que uma enfermeira estava tentando levá-la para um controverso grupo religioso que visava a conversão de judeus. "Fiquei muito chateado, senti que queria protegê-la. Procurei o diretor da casa de repouso, e uma investigação foi aberta. Descobriu-se que uma seita havia planejado secretamente que alguns de seus membros trabalhassem no asilo, com o objetivo de chegar aos idosos." Ele então passou a trabalhar em um programa para apoiar prisioneiros judeus, que também eram alvos de grupos religiosos extremistas ou de ódio. No começo, ele dividia a rotina com o comércio de carros antigos em um ferro-velho. Depois, ele se tornou um "desprogramador" em tempo integral. "Comecei a receber mensagens de famílias dizendo: 'Olha, não sei o que fazer. Meu filho, minha filha está envolvida neste grupo. Você pode ajudar?'." "Ao lado de um psicólogo, passei a conversar com essas pessoas." "As famílias ficavam muito aliviadas, porque muitos desses grupos eram perigosos. Alguns deles abusavam de crianças, alguns eram violentos. Muitos levaram as pessoas ao sofrimento psicológico e ao afastamento da família." Segundo Ross, sua técnica "sempre seguiu o mesmo processo básico, mas foi se tornando cada vez mais sofisticada". "Trata-se de voltar ao processo de recrutamento e examiná-lo: quais técnicas foram usadas para recrutar uma pessoa? Eles foram enganosos? Prenderam a vítima no grupo, de alguma forma?" Para criar um sentimento de pertencimento exclusivo, seitas podem empregar da pressão coletiva à hipnose, além da privação de comida e do contato físico. Para descobrir estas estratégias, porém, é preciso que o "desprogramador" converse com a vítima por muitas horas. Também ajuda pesquisar muito sobre a seita em questão e seus termos — para que Ross consiga conversar com seus seguidores na "mesma língua". A primeira intervenção costuma acontecer de surpresa, para evitar que a seita sabote o trabalho. "A pessoa poderia ir até o grupo e contar: 'Minha família quer conversar comigo sobre meu envolvimento neste grupo. O que vocês acham que devo fazer?'. O grupo diria: 'Não vá.'" Entretanto, Ross reconhece que a intervenção surpresa muitas vezes não leva a boas reações — e sim à raiva e à tristeza, com a pessoa sentindo-se "encurralada". "A família vai falar à pessoa de suas preocupações. Explicarei o motivo de estar ali. É um diálogo que normalmente dura dois ou três dias", diz o "desprogramador", que estima sua taxa de sucesso entre sete e 10. "Ou seja, ao final da intervenção, cerca de 70% das pessoas dirão: 'vou dar um tempo do grupo'." Em meados dos anos 1980, o trabalho de Ross começou a ganhar espaço na imprensa. Conforme isso aconteceu, ele se tornou também cada vez mais visado pelos mesmos grupos que tentava combater. "Fui chamado, sabe, de Satanás... e palavras que não vou repetir. Existem grupos que realmente têm ressentimento e me odeiam." "Mas simplesmente percebi que o fato desses grupos não gostarem de mim era uma evidência de que estava tendo algum impacto. Eles estavam preocupados com a perda de seguidores, porque frequentemente a desprogramação teria um efeito cascata." A primeira ameaça de morte que o americano recebeu foi em 1988, quando denunciou na TV o líder de uma seita. Desde então, foram várias outras. "Diria que não há um mês em que não receba alguma ameaça por e-mail, ou que o Departamento de Justiça não me envie um aviso sobre um grupo ter me colocado na sua lista de alvos." Ross também já recebeu duras críticas, como a de odiar as religiões ou de alguma forma tentar, com seu trabalho, restringir a liberdade religiosa. Suas técnicas de desprogramação também já foram acusadas de modificar comportamentos de forma forçada, ou de serem uma "lavagem cerebral" em si mesmas. Ross responde que só atua contra grupos que representem algum tipo de perigo para seus seguidores. "Estou focado no comportamento, não na crença. As pessoas podem acreditar em todos os tipos de coisas com as quais não concordaria, mas se não fizerem mal, se não machucarem as crianças, se não tiverem um comportamento destrutivo, elas nunca estarão no meu radar." A principal polêmica em torno do trabalho de Ross diz respeito à desprogramação involuntária — quando a vítima não consente o processo, que pode envolver restrições físicas. Isso é legalizado nos EUA para menores, sob supervisão dos pais ou responsáveis. Mas para adultos, a questão é mais complicada. Dos mais de 500 casos que Ross já atendeu, ele diz que cerca de dez foram desprogramações involuntárias. "(Nesses caso) A família decidiu que era a última alternativa para salvar alguém que amava. Podia ser uma escolha controversa no sentido de que não é certo forçar alguém contra sua vontade. Mas, dadas as opções, eles (parentes) viam isso como um mal menor. E estava disposto a trabalhar com eles." "Às vezes, era questão de vida ou morte. Por exemplo, tive um caso em que uma pessoa precisava tomar insulina, e o grupo dizia para ela parar." Sua última intervenção involuntária, e também a mais famosa, foi a de Jason Scott em 1991. A mãe de Jason havia se envolvido e depois se desentendido com uma seita, desejando sair, junto com seus três filhos adolescentes. "Ela estava terrivelmente angustiada. Um de seus filhos havia sido abusado sexualmente, o que a levou a querer deixar o grupo. E ela sabia que Jason estava prometido em um casamento arranjado com uma mulher do grupo." Ross foi contratado. Ele conseguiu desprogramar os dois filhos mais novos, mas Jason, com 18 anos, recusou. Ele lutou contra os seguranças que sua mãe havia contratado e acabou sendo levado à força para um esconderijo. Lá, Ross conversou com o jovem e com outros membros da família por cerca de cinco dias. No final, Jason parecia ter mudado. Mas não: ele fugiu, voltou à seita e denunciou Ross à polícia, que foi detido e acusado de executar uma prisão ilegal. Ele foi absolvido, mas o caso não parou aí. Em 1995, Jason processou Ross, dizendo ter sido vítima de tratamento depreciativo, intimidação, violência e vigilância constante durante a intervenção. A Justiça considerou Ross responsável por uma conspiração que privou Jason de seus direitos civis e liberdades religiosas. Foi determinado que ele pagasse mais de US$ 2 milhões em danos. "Declarei falência. Foi um momento muito difícil da minha vida", lembra o americano. Mas em uma nova reviravolta, Jason acabou se reconciliando com seus irmãos e a mãe e fez um acordo com Ross, que agora precisaria pagar apenas US$ 5 mil, e não mais US$ 2 milhões. Jason pediu também ajuda para desprogramar a esposa, que ainda frequentava o grupo. "Isso é o que costuma acontecer em uma reprogramação falha. A pessoa recebe muitas informações e pode não agir imediatamente, mas talvez o faça mais tarde. Jason basicamente deixou o grupo por muitos dos motivos que nós discutimos na intervenção." Este caso, entretanto, o fez questionar algumas de suas práticas. "Independentemente das circunstâncias, decidi nunca mais fazer uma desprogramação involuntária em um adulto", diz ele. Alguns de seus casos mais bem-sucedidos, por sua vez, levaram a relações longas. "Algumas pessoas mantêm contato, me enviam cartões de Natal, me convidam para casamentos. Agradeço muito. Uma mulher que ajudei a sair de um grupo que esterilizava seus membros, quando teve seu primeiro filho, me mandou uma foto do bebê."
2021-06-15
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57479069
sociedade
Vídeo, O que acontece com o corpo durante o beijo?Duration, 3,06
Por que nos beijamos? Quando os seres humanos começaram a fazer isso? O que acontece com o corpo durante beijo? Segundo o antropólogo Vaughn Bryant, Texas A&M University (Estados Unidos), o beijo estimula, principalmente, três sentidos: o tato, o olfato e o paladar. Sheril Kirshenbaum, autora do livro "A ciência do beijo", conta que existem muitas teorias sobre por que nos beijamos e algumas delas teriam relação com as primeiras experiências de humanos na Terra. Ao sermos beijados por nossos pais na infância, por exemplo, associamos estímulos feitos com os lábios a emoções positivas. Não faz muito tempo que, em alguns lugares, beijar não era tão tentador. Algumas culturas tinham suas formas de limpar a boca, mas escovar os dentes, passar fio dental e outras práticas de higiene não eram tão comuns, por isso algumas pessoas achavam que beijar era nojento. Neste vídeo da BBC Ideas, explicamos esta e outras curiosidades sobre a ciência por trás do beijo. Confira. Vídeo: BBC Ideas Animação: Ana Stefaniak, Peter Caires Narração: Silvia Salek
2021-06-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57468063
sociedade
Illuminati: 12 curiosidades sobre uma das sociedades secretas mais fascinantes da história
Illuminati é o nome dado tanto a uma sociedade real formada há 245 anos, quanto a uma sociedade fictícia. A versão fictícia até hoje alimenta teorias de conspiração, incluindo alegações de que se trataria de uma organização global secreta e misteriosa cuja intenção seria dominar o mundo. Supostamente, eles estariam por trás de algumas das maiores revoluções e assassinatos da história. Mas quem realmente eram os Illuminati? É por que se diz que eles controlam o planeta? Veja o que se sabe sobre esta que se tornou uma das sociedades secretas mais fascinantes da história. 1. Quem eram os Illuminati originais? A Ordem dos Iluminados, ou Illuminati, foi uma sociedade secreta formada na Baviera (hoje parte da Alemanha contemporânea) que existiu de 1776 a 1785. Seus membros originalmente se referiam a si próprios como "perfectibilistas". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O grupo foi inspirado pelos ideais do iluminismo e fundado pelo professor de direito canônico Adam Weishaupt (1748-1830). Ele queria promover a educação de razão e filantropia e se opor à superstição e à influência religiosa na sociedade. Weishaupt buscava mudar a forma como os Estados eram governados na Europa, removendo a influência da religião no governo e dando ao povo uma nova fonte de "iluminação", ou esclarecimento. Acredita-se que a primeira reunião dos illuminati da Baviera ocorreu em uma floresta perto de Ingolstadt em 1º de maio de 1776. Lá, cinco homens estabeleceram as regras que orientariam a ordem secreta. Com o tempo, os objetivos do grupo se concentraram em influenciar decisões políticas e mudar instituições como a monarquia e a Igreja. Alguns membros dos Illuminati se juntaram aos maçons para recrutar novos membros. Um pássaro conhecido como a 'coruja de Minerva' (Minerva é a antiga deusa romana da sabedoria) acabou se tornando seu símbolo principal. 2. Qual é a relação entre os Illuminati e os maçons? Os maçons são uma ordem que se desenvolveu a partir de agremiações de construtores de catedrais da Idade Média. Em alguns países, especialmente nos Estados Unidos, existe uma certa paranoia histórica sobre os maçons. Em 1828, um movimento político conhecido como Partido Antimaçônico foi estabelecido com o único objetivo de combater a ordem. Como os Illuminati recrutaram originalmente os maçons, os dois grupos costumam ser confundidos um com o outro. 3. Como era possível se unir aos Illuminati? Para se juntar aos Illuminati, você precisava ter o consentimento total dos outros membros, possuir riqueza e ter uma boa reputação dentro de uma família considerada adequada. Além disso, havia um sistema hierárquico para os membros dos Illuminati. Depois de entrar como "novato", você se graduaria como "minerval" e depois para um "iluminado minerval". Mais tarde, essa estrutura se tornou mais complicada, exigindo 13 graus de iniciação para se tornar um membro. 4. Os Illuminati tinham rituais? Eles faziam rituais - embora a maioria permaneça desconhecida - e usavam pseudônimos para manter as identidades dos membros em segredo. No entanto, graças a documentos secretos apreendidos, sabe-se como os novatos conseguiam passar para um nível superior na hierarquia dos Illuminati: • Produzir um relatório sobre todos os livros que possuíam,• Escrever uma lista de seus próprios pontos fracos,• Revelar os nomes de seus próprios inimigos. O novato então prometia sacrificar interesses pessoais pelo bem da sociedade. 5. O que é o olho que tudo vê? O "Olho da Providência", um símbolo que lembra um olho dentro de um triângulo, aparece em igrejas ao redor do mundo, bem como em edifícios maçônicos e na nota de um dólar americano. Além de ser associado à maçonaria, também foi associado aos Illuminati como um símbolo do controle e vigilância do mundo pelo grupo. Originalmente um emblema cristão, "o olho que tudo vê" tem sido usado em pinturas para representar a vigilância de Deus sobre a humanidade. No século 18, começou a ser usado de novas maneiras, por exemplo, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de Jean-Jacques-François Le Barbier (1738-1826), uma versão ilustrada do documento de direitos humanos aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte de França em 1789. Nesse caso, indicava um instrumento que representava o policiamento de uma nação que havia se tornado uma democracia. Não há uma ligação oficial entre o olho que tudo vê e os Illuminati; a conexão atribuída a eles provavelmente se deve ao fato de que o grupo original compartilhava semelhanças com os maçons, que usavam a imagem como símbolo de Deus 6. Os Illuminati conseguiram dominar o mundo? Algumas pessoas acreditam que os Illuminati controlam o mundo hoje. Segundo essa tese, eles seriam tão discretos que conseguiriam ter todo esse poder sem que as pessoas se dessem conta disso. Como muitos membros da Ordem dos Illuminati se misturaram aos maçons e vice-versa, é difícil julgar o sucesso dos Illuminati, mas a maioria dos historiadores acredita que o grupo original só conseguiu ter uma influência moderada. 7. Houve algum membro famoso entre os Illuminati? Em 1782, os Illuminati haviam crescido para cerca de 600 membros, incluindo nobres alemães como o barão Adolph von Knigge, que, como ex-maçom, ajudou a moldar a organização e a expansão do grupo. Inicialmente, os alunos de Weishaupt eram os únicos membros, mas médicos, advogados e intelectuais logo passaram a fazer parte. Em 1784, estima-se que havia entre 2 mil e 3 mil membros Illuminati. Algumas fontes dizem que o renomado escritor Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) também aderiu ao grupo, mas isso é contestado. 8. Os Illuminati desapareceram? Em 1784, Karl Theodor, duque da Baviera, proibiu a criação de qualquer tipo de sociedade que não fosse previamente autorizada por lei. No ano seguinte, ele aprovou uma segunda regra, proibindo expressamente a existência dos Illuminati. Durante a prisão de membros suspeitos dos Illuminati, documentos comprometedores (defendendo ideias como ateísmo e suicídio) foram encontrados em sua posse, bem como instruções para a realização de abortos. Isso cimentou a crença de que o grupo era uma ameaça tanto para o Estado quanto para a Igreja. Depois disso, a Ordem dos Illuminati parece ter desaparecido, embora alguns acreditem que ela continue ativa. 9. O que aconteceu com Adam Weishaupt? Adam Weishaupt acabou sendo destituído de seu posto na Universidade de Ingolstadt. Depois de ser exilado da Baviera, ele passou o resto de sua vida em Gotha, na Turíngia (Alemanha), e morreu em 1830. 10. Por que o mito dos Illuminati continuou vivo? A partir do momento em que foram dissolvidos, as teorias da conspiração sobre os Illuminati começaram a se estabelecer. Em 1797, o padre jesuíta Augustin Barruel sugeriu que sociedades secretas como a Ordem dos Illuminati haviam liderado a Revolução Francesa. Barruel é considerado o pai da antimaçonaria. O primeiro presidente dos EUA, George Washington (1732-1799), escreveu uma carta no ano seguinte dizendo acreditar que a ameaça dos Illuminati havia sido evitada, acrescentando mais combustível à ideia de que a ordem ainda existia. Livros e sermões condenando o grupo continuaram aparecendo, e o terceiro presidente dos Estados Unidos, Thomas Jefferson (1743-1826), foi falsamente acusado de ser um de seus membros. 11. Por que tanta gente ainda acredita nos Illuminati hoje em dia? A ideia dos Illuminati dominando o mundo nunca desapareceu totalmente e elA ainda se insinua na cultura popular. Em 1963, foi publicado um texto chamado Principia Discordia, promovendo um sistema de crenças alternativo conhecido como "discordianismo". O conteúdo apelava à anarquia e à desobediência civil perpetrando informações falsas, e entre seus seguidores estava o escritor Robert Anton Wilson (1932-2007). Alguns seguidores do discordianismo enviaram cartas falsas a revistas afirmando que eventos como o assassinato do presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy (1917-1963), havia sido obra dos Illuminati. Wilson posteriormente publicou um livro com Robert Shea, The Illuminatus! Trilogy, que se tornou um sucesso e inspirou um novo gênero de ficção de conspiração, incluindo o romance do americano Dan Brown (e filme subsequente) Anjos e Demônios. Nestas obras, os Illuminati também estavam ligados ao satanismo e a outros ideais que estavam muito distantes daqueles associados ao grupo bávaro original do século 18. 12. O que é a nova Ordem Mundial e como ela se conecta aos Illuminati? Aqueles que acreditam na teoria de uma Nova Ordem Mundial defendem a ideia de que um grupo de elite global estaria tentando governar o mundo. Além dos presidentes dos Estados Unidos, várias estrelas pop foram acusadas de serem membros, incluindo até Beyoncé e Jay-Z. Ambos negam as acusações.
2021-06-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57460948
sociedade
O impacto sobre ciclistas mulheres dos assédios sexuais de motoristas
Uma ciclista que viralizou após confrontar um homem que gritou comentários obscenos de dentro de seu carro disse que o caso ilustra o assédio diário enfrentado por mulheres nas ruas. Nanw Beard estava pedalando em Cardiff, no País de Gales, quando um motorista parou ao lado dela e disse que "seu traseiro iria causar um acidente". O motorista de 30 anos falou isso algumas horas antes de outro homem dizer que queria fazer sexo com ela ao vê-la passando de bicicleta. Beard disse que desafiar este comportamento a fez se sentir "empoderada". A ciclista pedalava em uma rua movimentada no dia 5 de junho quando um homem em um Land Rover parou ao lado dela e gritou para fora do carro. "Ele me disse que eu deveria carregar um alerta de saúde porque meu traseiro iria causar um acidente", disse ela. "Quando eu respondi que ele era nojento, ele foi embora rindo." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pouco depois, ela o reencontrou e resolveu confrontá-lo enquanto filmava a cena com o celular. Nas imagens, que se espalharam pelas redes sociais, Beard questiona o homem, que nega tê-la assediado sexualmente. "Você quer repetir o que disse?", diz ela nas imagens. "O quê?", responde o homem. "Você quer repetir o que disse?" "Eu disse 'cuidado', porque você pode causar um acidente." "Você é nojento, é desprezível. Eu estou aqui simplesmente pedalando e você está me assediando sexualmente na rua." Uma pesquisa no País de Gales aponta que 77% das mulheres se sentem inseguras ao pedalar e pedem melhorias na segurança. "Esta tem sido a regra para mim desde o início da adolescência, é uma parte da vida que eu simplesmente fui obrigada a aceitar", disse Beard. Mas ela acrescentou que não vai mais tolerar esse tipo de situação. "Cheguei a um ponto em que estou com muita raiva e farta da enxurrada constante de assédio nas ruas que enfrento como mulher, especialmente quando estou sozinha." Em janeiro, durante o lockdown nacional no Reino Unido, regras sobre quantas pessoas poderiam fazer exercícios juntas ao ar livre foram alteradas depois que mulheres praticantes de corrida levantaram questões sobre segurança. Atletas falaram sobre comentários obscenos sobre seus corpos, assobios e latas de cerveja atiradas contra elas enquanto treinavam sozinhas em parques. Agora, embora não haja limite para encontros ao ar livre para exercícios no país, Beard disse que mais precisa ser feito para combater o assédio. Ela disse que o homem tinha um passageiro em seu carro, que parecia ser seu filho, e ela sentiu que precisava enfrentar o comportamento do motorista. No ano passado, um relatório ao conselho de Cardiff mostrou que apenas uma mulher para cada 19 homens usava bicicletas regularmente na cidade. O relatório também descobriu que 70% das mulheres nunca andaram de bicicleta, mas 31% destas mulheres gostariam de fazê-lo. Gwenda Owen, da ONG Cycling UK, disse que tanto ciclistas homens e mulheres enfrentam abusos diariamente apenas por estarem nas ruas, e que isso pode ser intimidante. Owen disse que muitas mulheres se sentem mais seguras nas bicicletas do que caminhando, pois elas podem se deslocar mais rápido. Ela afirmou que os homens acreditam que podem "se safar" porque estão em carros, e que isso permitiria que eles gritassem comentários que não poderiam fazer quando cara a cara com alguém. "Já me atiraram coisas por andar de bicicleta na cidade, a mais engraçada foi um pacote de salame, mas isso pode ser muito, muito intimidante", disse ela. "Essas pessoas gritam de carros ofensas de natureza sexual, fazem calúnias homofóbicas... infelizmente, é algo bastante comum, mas acho que talvez reflita problemas mais amplos na sociedade." Tanto Owen quanto Beard disseram que este comportamento precisa ser questionado por outras pessoas para que as coisas mudem. Os homens também devem confrontar outras pessoas que se comportem dessa forma, seja "na rua, em bares, em conversas no trabalho ou em qualquer lugar", disse Owen. Christine Boston, diretora da OMG Sustrans Cymru, elogiou Beard por confrontar o homem, dizendo que todas as mulheres têm "direito à liberdade de movimento sem atenção indesejada". Ela descreveu comentários sexuais indesejados, como assobios, como uma forma de assédio e abuso, e disse que isso pode tirar as mulheres do ciclismo pelo resto da vida
2021-06-13
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57460953
sociedade
Britânica conta como deu soco em crocodilo para salvar irmã gêmea
Como todas as histórias de terror, a de Georgia Laurie começou de maneira bastante inofensiva. Em um albergue vibrante em Puerto Escondido, no México, Georgia agora está sentada, pouco tempo depois de ter recebido alta do hospital, mexendo em seu telefone e cercada por outros mochileiros, tentando dar sentido aos últimos dias. Certamente, o que ela passou foi um verdadeiro pesadelo - e não é à toa que, desde o episódio, ela tem dificuldades para dormir. Ela, sua irmã gêmea, Melissa, de Berkshire, no sul da Inglaterra, e mais alguns amigos decidiram participar de um passeio de barco na lagoa Manialtepec, no México. É um local de beleza natural intocada, com manguezais repletos de rica vida selvagem. No entanto, suas águas rasas também são o habitat de crocodilos e esta é a época de incubação - algo de que o grupo não sabia. "Na verdade, eu disse ao guia, 'este parece um lugar onde crocodilos vivem'", Georgia me falou com um sorriso irônico. A faixa enrolada firmemente em seu pulso é uma prova de que ela estava certa. O guia - aparentemente um cidadão alemão que não era registrado no órgão de turismo e desde então desapareceu - insistiu que era seguro nadar ali. Enquanto o grupo desfrutava de um mergulho no frescor do início da tarde (não um mergulho à meia-noite como foi relatado inicialmente), Melissa foi repentinamente puxada para baixo d'água. "Foi apavorante, não foi?", disse Georgia voltando-se para outras pessoas do grupo que estavam lá, que concordaram. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um ambientalista local me disse que o caso provavelmente foi de uma fêmea de crocodilo defendendo seus filhotes. O animal foi atrás de Melissa em três ocasiões diferentes, perfurando seu estômago e perna. No entanto, em vez de assistir impotente, Georgia reagiu e deu repetidos socos no crocodilo em seu nariz. "Era lutar ou fugir", lembra ela, "e você tem que lutar pelas pessoas que ama". Um dos amigos, Ani, atravessou os manguezais e pediu ajuda. Um barco próximo com um grupo diferente de turistas ouviu os gritos e se dirigiu para lá. "Empurrei a vegetação rasteira usando meu remo", disse Lalo Escamilla, o barqueiro e ornitólogo local que entrou nas águas rasas para ajudar as gêmeas. Lalo me levou ao local onde aconteceu o ataque e explicou que barqueiros devidamente treinados como ele estão preocupados que as ações irresponsáveis ​​de um guia desonesto possam prejudicar seus negócios. "Eles não são guias", diz ele sobre os estrangeiros que moram em Puerto Escondido e que buscam turistas para passeios de barco baratos, prejudicando os locais. "Eles não são especialistas aprovados pelo governo federal, eles não conhecem este lugar. Esse é o problema." Uma vez a bordo, ficou claro que os ferimentos de Melissa eram fatais. Além das lacerações e cortes profundos, havia água em seus pulmões e seu pulso estava quebrado. Mais tarde, ela desenvolveria sepse (infecção generalizada) em seu intestino rompido. A adrenalina que o corpo de Georgia liberava era tanta que ela não percebeu a extensão de seus próprios ferimentos até chegarem a um hospital particular na cidade. "Só quando a enfermeira abriu meu punho para limpar minha mão é que percebi que ela também havia sido cortada", disse Georgia. Compreensivelmente, todo o seu foco estava na irmã gêmea, que a essa altura havia sido colocada em coma induzido. Ligar para os pais dela foi o próximo momento difícil, pois era por volta de 4h no Reino Unido. "Quando me disseram que a condição dela estava piorando, tive que avisar a família." Felizmente, Melissa agora saiu do coma. Depois que conversei com Georgia, ela foi visitar sua irmã no hospital e disse que já parecia mais forte. "Estamos todos muito felizes", disse Georgia em uma mensagem. No entanto, o caminho para a recuperação total será longo. Os médicos mexicanos e a embaixada britânica têm sido "ótimos", diz Georgia. Melissa deve superar seus ferimentos físicos e as duas mulheres precisarão de tempo para lidar com as consequências emocionais e mentais do que passaram. Georgia diz que está tendo dificuldades para dormir e que as imagens do ataque não saem de sua cabeça. O que ela pode contar - pelo menos até que sua família chegue ao México - é com o suporte de outros viajantes e mochileiros com quem está. Eles já formaram uma espécie de família, uma combinação de amigos do Reino Unido, França, Índia, entre outros. O rótulo de "irmã gêmea heroína" ainda não é confortável para Georgia. Por enquanto, ela só quer uma chance de se recuperar de sua terrível provação e recuperar novamente o fôlego depois do episódio.
2021-06-11
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57442414
sociedade
A cidade asiática obcecada com a limpeza
Sinto isso toda vez que saio do avião: o frio repentino do ar-condicionado no máximo e o aroma característico do difusor de fragrância de chá de orquídea. Os aeroportos podem parecer todos iguais, mas desembarcar em Changi — tanto hoje quanto muito antes da pandemia de covid-19 — é uma experiência única de Cingapura. No trajeto até o controle de passaportes, caminhando pelo ar perfumado, você verá paredes verdes impecavelmente cuidadas, equipes de limpeza (tanto na forma humana quanto robótica) e banheiros de alta tecnologia com telas de feedback interativas. Se você sair do aeroporto esperando que o resto da cidade seja tão limpo e organizado, não vai ficar desapontado. Uma vez descrita pelo jornal americano New York Times como um lugar "tão limpo que o chiclete é uma substância controlada", Cingapura é universalmente conhecida por suas estradas perfeitamente pavimentadas, parques públicos bem cuidados e ruas sem lixo. Mas a limpeza é mais do que um ideal meramente estético por aqui. Nesta pequena cidade-estado com pouco menos de 56 anos de independência nacional, limpeza é sinônimo de profundas conquistas sociais, de um crescimento econômico sem precedentes e, mais recentemente, de uma contenção coordenada da pandemia de covid-19. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Enquanto a população tende a ignorar humildemente a sugestão de que seu país é especialmente limpo, seus líderes têm feito de tudo para obter e manter uma imagem pública imaculada. "A reputação de limpeza de Cingapura é algo que o governo buscou conscientemente promover", explica Donald Low, um acadêmico de Cingapura que estuda políticas públicas. "Originalmente, essa limpeza tinha pelo menos duas conotações: a primeira era a limpeza física ou ambiental; a segunda era um governo e uma sociedade honestos, que não toleram a corrupção." Tendo se separado da Malásia em 1965, Cingapura, liderada pelo então primeiro-ministro Lee Kuan Yew, tinha grandes ambições de se tornar um "oásis de primeiro mundo em uma região de terceiro mundo", nas palavras dele. "Como uma cidade-estado recém-independente que estava ansiosa para atrair investimentos estrangeiros, Lee Kuan Yew acreditava, corretamente, que essas coisas iriam diferenciar Cingapura do resto do Sudeste Asiático", acrescenta Low. Na prática, alcançar a limpeza significava desenvolver sistemas de esgoto de qualidade, criar programas para combater a dengue e outras doenças, conduzir um projeto de dez anos para despoluição do Rio Cingapura, o plantio de árvores em toda a ilha e a realocação dos vendedores ambulantes de comida, outrora onipresentes nas ruas, em centros cobertos voltados para isso. Também significou a realização de uma série de campanhas nacionais de higiene pública, convocando os cidadãos de Cingapura a fazer sua parte. "Manter a comunidade limpa requer um povo consciente de suas responsabilidades", declarou Lee no lançamento, em 1968, do Keep Singapore Clean, uma iniciativa agora anual contra os detritos. O discurso de Lee buscou despertar um novo sentimento de orgulho nacional entre a população, invocando um espírito coletivo e comunitário que ele via como vital para alcançar os objetivos da nação. À medida que as condições ambientais da cidade-estado melhoravam, o mesmo acontecia com o apelo de Cingapura a investidores estrangeiros e turistas, dando início a um longo período de crescimento econômico sem precedentes. Hoje em dia, Cingapura lidera regularmente rankings de pesquisas sobre condições sociais, segurança pessoal e qualidade de vida, entre as cidades globais; enquanto sua economia de mercado altamente desenvolvida é uma das mais competitivas do planeta. Nenhum lugar parece mais emblemático do vigor atual da nação do que o Central Business District, onde torres de escritórios reluzentes e arranha-céus — que abrigam milhares de sedes de empresas internacionais — dividem o espaço com hotéis de luxo de classe mundial, incluindo o icônico Marina Bay Sands projetado por Moshe Safdie. É o tipo de utopia futurista com a qual seu então primeiro-ministro e líder fundador só poderia ter vislumbrado em sonhos. Lee ficou irritado porque, apesar das conquistas de seu país, ele era de alguma forma sempre questionado sobre a notória proibição de chicletes durante entrevistas com a imprensa estrangeira. É improvável que ele tenha previsto o nível de atenção global que isso atrairia ao promulgar a lei em 1992, para combater o gasto com a limpeza de chicletes mascados de espaços públicos, como do então novo sistema MRT (de transporte público). Hoje em dia, o consumo de chicletes é, na verdade, permitido — se você inadvertidamente contrabandear um pacote aberto na mala, não vai parar na prisão — mas a venda continua proibida. Low explica que a infame lei do chiclete é, na verdade, bastante anômala em termos de formulação de políticas públicas em Cingapura. "Em vez de proibições diretas", explica ele, "o governo de Cingapura geralmente recorre a (des)incentivos financeiros para atividades que geram custos para a sociedade", citando como exemplo a recente introdução de um imposto sobre o carbono, destinado a reduzir as emissões e incentivar o uso alternativo de energia limpa. Mas será que Cingapura pode realmente ser tão limpa quanto sua reputação sugere? Nem é preciso dizer que os arranha-céus reluzentes, os hotéis em forma de barco e as fontes de água feitas pelo homem não apresentam uma imagem precisa da vida cotidiana aqui. No entanto, mesmo quando eu saía do centro da cidade e entrava nas partes em que os turistas raramente se aventuram, seus conjuntos habitacionais públicos uniformemente projetados, parques públicos bem cuidados e centros de vendedores ambulantes escrupulosamente regulamentados estavam longe de ser sujos. Fui para Geylang, uma área de Cingapura famosa por sua excelente comida local (elogiada por Anthony Bourdain) e por ser o único distrito da luz vermelha legalizado na cidade. Certamente, pensei, era ali onde veria a "verdadeira" Cingapura. Já estava escurecendo e as ruas estavam iluminadas com letreiros de neon fluorescentes de aparência antiquada anunciando sex shops, salas de karaokê e cafés noturnos vendendo mingau de perna de sapo, uma iguaria regional. "Pense nisso como o submundo de Cingapura", disse Cai Yinzhou, parado ao meu lado em um beco mal iluminado, "o oposto dos arranha-céus bem cuidados que vemos no Central Business District". Yinzhou, um nativo de Geylang, que "cresceu com profissionais do sexo e operadores de jogos de azar na vizinhança", agora dirige o Geylang Adventures, um tour organizado que visa "apresentar Geylang como um ecossistema social, além do lado decadente ou delicioso que a maioria dos moradores locais conhecem". O tour de Yinzhou explora bordéis, bares e o ambiente social de Geylang, que muitas vezes parecem estar em conflito com a reputação puritana de Cingapura. Apesar de sua incongruência dentro de uma cidade "família", Geylang não parecia um lugar perigoso. Nem de longe sem lei. Com cerca de 500 câmeras de segurança cobrindo o bairro, havia uma forte sensação de que seus elementos indisciplinados — devido ao vício em drogas — estavam sendo cuidadosamente contidos e "frequentemente varridos", como Yinzhou descreveu. "Esta é a verdadeira Cingapura", declarou um homem local que estava no nosso tour, "deveria estar no roteiro de todos os turistas." Eu me peguei concordando. Embora Geylang não parecesse estéril, acabou se encaixando, de sua maneira única, na narrativa nacional de uma sociedade limpa e sem corrupção de Cingapura. Esses valores típicos de Cingapura foram efetivamente colocados à prova no ano passado. Desde as fervorosas campanhas de Lee no fim da década de 1960, a questão da limpeza nunca pareceu tão pertinente quanto na era atual. Em um mundo que foi radicalmente redefinido pela pandemia de covid-19, as boas práticas de higiene pública podem ser uma questão de vida ou morte. No cenário mundial, a resposta de Cingapura ao novo coronavírus foi amplamente elogiada. Mas, diferentemente da maioria das nações, a forma como Cingapura lidou com a pandemia não foi puramente reativa. A avançada infraestrutura de higiene pública do país significava que, de muitas maneiras, Cingapura já estava preparada. "Treinamos nossos agentes para lidar com a desinfecção de doenças infecciosas antes mesmo da covid-19 chegar às nossas terras", explicou Tai Ji Choong, diretor do departamento de limpeza pública da Agência Nacional de Meio Ambiente de Cingapura. Após ter planejado um curso com a Escola Politécnica de Cingapura em 2017, Choong me disse que a equipe estava "dotada de habilidades e conhecimentos atualizados sobre técnicas de desinfecção, manuseio de desinfetantes, procedimentos de segurança e uso correto de equipamento de proteção individual para lidar com um surto de doença infecciosa em Cingapura". "O que se provou fundamental quando fomos notificados do primeiro caso de covid-19 no ano passado", acrescentou. Isso resultou na implementação eficaz de soluções de tecnologia de saúde pública: aplicativos de celular que permitem aos cidadãos adquirirem máscaras faciais; tecnologias inteligentes para monitorar a temperatura corporal em grandes grupos; e cães-robôs que patrulham parques públicos para fazer cumprir as medidas de distanciamento social. Embora uma gestão governamental eficaz tenha sido crucial para lidar com o vírus, a pandemia forçou inevitavelmente os líderes a pedirem a colaboração dos cidadãos. Em Cingapura, onde o uso de máscaras e o rastreamento de contatos são obrigatórios, a resposta da população tem sido totalmente positiva. Mas, em uma sociedade com um legado cultural de limpeza, em que políticas de higiene pública e coordenação comunitária são a norma, o que mais você poderia esperar?
2021-06-10
https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-56995398
sociedade
Vídeo, Os mistérios da vida, morte e aparência de CleópatraDuration, 16,39
Eternizada no imaginário popular com a pele branca e os olhos azuis da atriz britânica Elizabeth Taylor, a rainha Cleópatra 7ª suscita debates há séculos em torno de sua astúcia política, sua beleza, sua identidade e seu legado à frente do Egito. As disputas em torno dela ganharam novo impulso com a divulgação de que a monarca do Egito será vivida no cinema pela atriz israelense Gal Gadot, conhecida por seu papel de Mulher-Maravilha. O longa, ainda sem previsão de estreia, será dirigido por Patty Jenkins, diretora de Mulher-Maravilha. Mas se de um lado muitos comemoraram uma produção majoritariamente feminina que deve evitar clichês de mulher sedutora de filmes anteriores, de outro, muitos criticaram a escolha da atriz para o papel sob acusações de embranquecimento ("whitewashing") da figura histórica, descendente de uma dinastia grega ligada ao rei macedônio Alexandre, o Grande, mas que provavelmente era de etnia mista. Mas qual é a verdadeira origem e história da última governante da dinastia ptolomaica, que comandou o Egito de 51 a.C. até 30 a.C., trouxe prosperidade e paz a um país falido e soube tirar proveito político da aproximação de dois generais romanos? Neste vídeo especial, Malu Cursino narra os fatos e os mistérios da vida e da morte de Cleópatra – incluindo, é claro, sua real aparência. Confira também a reportagem em texto: https://www.bbc.com/portuguese/geral-54549107
2021-06-10
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57427857
sociedade
Mulher que esperava óctuplos anuncia ter dado à luz 10 bebês na África do Sul, novo recorde
Uma mulher sul-africana deu à luz 10 bebês, no que se acredita ser um novo recorde mundial. O marido de Gosiame Thamara Sithole diz que o casal ficou surpreso com os décuplos depois que os exames mostraram que havia oito bebês em seu útero. "São sete meninos e três meninas. Estou feliz. Estou emocionado. Não posso falar muito", disse seu marido, Teboho Tsotetsi, ao site de notícias local Pretoria News após o nascimento. Uma autoridade sul-africana confirmou os nascimentos à BBC, mas outra pessoa disse que os bebês não haviam sido vistos. Um parente, que não quis ser identificado, disse à BBC que Sithole teve dez bebês — cinco por parto natural e cinco por cesariana. O Guinness World Records, o Livro dos Recordes, disse à BBC que está investigando o caso de Sithole. Uma mulher que teve oito bebês nos Estados Unidos em 2009 atualmente detém o recorde Guinness de maior número de crianças nascidas de uma só vez — em que todas sobreviveram. Mas há relatos de outros casos fora do Guinness. No mês passado, Halima Cissé, de 25 anos, do Mali, deu à luz a nove bebês em uma clínica no Marrocos. A maioria das gestações envolvendo um grande número de bebês termina prematuramente, diz a repórter de saúde da BBC África, Rhoda Odhiambo. Nascimentos múltiplos envolvendo mais de três bebês são raros e muitas vezes resultado de tratamentos de fertilidade — mas, neste caso, o casal sul-africano diz que as crianças foram concebidas naturalmente. Gosiame Thamara Sithole, de 37 anos, já havia dado à luz gêmeos, que agora têm seis anos. Ela está em bom estado de saúde após o parto de 29 semanas em Pretória, na noite de segunda-feira (07/06). Falando ao Pretoria News há um mês, Sithole disse que sua gravidez foi "difícil no início" e que ela rezou por um parto saudável, com muitas noites sem dormir se preocupando com o que estava por vir. "Como eles se encaixariam no útero? Eles sobreviveriam?", questionou-se. No entanto, Sithole afirmou que os médicos lhe garantiram que seu útero estava se expandindo. Quando se acreditava que ela estava grávida de oito filhos, Sithole sofria com dores nas pernas. Os médicos descobriram que dois dos oito "estavam no tubo errado". "Isso foi resolvido e estou bem desde então. Mal posso esperar pelos meus filhos", disse ela na época. Seu marido também disse que estava "nas nuvens" e que se sentia como "um dos filhos escolhidos de Deus. É um milagre que eu aprecio".
2021-06-10
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57425382