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sociedade
Preço do diesel quase dobrou durante o governo Bolsonaro, aponta Dieese
Nos postos de combustíveis brasileiros, o preço do diesel aumentou em 96% durante o governo Bolsonaro, segundo levantamento do Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos), entidade criada e mantida pelo movimento sindical brasileiro. Na última quinta-feira (5/5), o presidente Jair Bolsonaro (PL) usou as redes sociais para criticar a Petrobras e os preços dos combustíveis. Bolsonaro chamou o lucro obtido pela empresa (R$ 44,5 bilhões no primeiro trimestre) de "estupro" e afirmou que a empresa não poderia mais aumentar o preço, ou "quebraria o Brasil". Uma mudança foi aprovada poucos dias depois, e entra em vigor nesta terça-feira (10/5), após a Petrobras anunciar o aumento do preço do diesel em 8,87%, o que significa uma mudança de 40 centavos no litro do combustível — de R$ 4,51 para R$ 4,91. Diferentemente da gasolina — que teve alta de 67% nos anos do governo — a população não sente o efeito imediato logo após os anúncios de alta, já que a maioria das pessoas não usa utiliza o diesel para abastecer seus veículos. Mas, em longo prazo, a tendência é que esse aumento seja repassado para os consumidores, fazendo com que as mudanças constantes nos preços nos últimos anos contribuíssem para que bens e serviços sofressem com inflação. Fim do Matérias recomendadas "Quando se trata do IPA, índice que mede a inflação ao produtor indústria e agricultura, o diesel tem um peso até maior do que a gasolina. Isso porque todo o processo produtivo, desde o funcionamento das máquinas agrícolas até sistema de logística. Tudo que consumimos tem o diesel como insumo em alguma magnitude", explica Carla Argenta, economista-chefe da CM Capital Markets. Argenta usa o exemplo do consumo de carne vermelha para ilustrar a situação. "O diesel não é usado na vaca, mas sim nas máquinas agrícolas que trabalham no pasto e no transporte dessa carne até você." Dessa forma, ainda que não seja de um dia para o outro, os custos devem chegar à população. "O repasse não é necessariamente um para um, há um espaço de margem dos produtores ou responsáveis pelo frete e parte da inflação pode ser diluída, mas o aumento é esperado porque as margens de lucro já estão comprimidas", diz Felipe Sichel, economista-chefe do Banco Modal. Em nota, a Petrobras afirmou que a alteração ocorreu por uma redução da oferta frente à demanda. "Os estoques globais estão reduzidos e abaixo das mínimas sazonais dos últimos cinco anos nas principais regiões supridoras." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O economista Felipe Sichel aponta que, agora, os olhares dos especialistas estão voltados às próximas possíveis movimentações do governo. "Agora é ver se de alguma forma o governo tentará suavizar esse impacto por meio de aumento de subsídio." Na opinião dele, caso ocorra, o efeito pode ser negativo. "Com a situação fiscal extremamente delicada na economia global e local, há pouca capacidade de absorver choques. Tentar amenizar agora pode gerar inflação pior no futuro, e via de regra, quanto mais rápido os preços se ajustam, melhor a economia absorve o choque e se adapta. Dificultar a absorção faz com que essa conta tenha que ser paga em algum lugar." De acordo com Carla Argenta, uma das opções seria tirar os "royalties" da Petrobras, dividendos da empresa destinados à União, para o subsídio. "Não teria impacto nenhum na precificação da Petrobras, e poderia ser até bom para o investidor que comprou ações. Mas essa não deve ser uma alternativa usada pelo governo federal porque esses recursos já vão para dívidas, o que resultaria em endividamento público."
2022-05-10
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61402299
sociedade
Como nova alta do diesel anunciada pela Petrobras afeta o consumidor?
A Petrobras anunciou o aumento do preço do diesel em 8,87% nas refinarias a partir de terça-feira (10/5), o que significa uma mudança de 40 centavos no litro do combustível - de R$ 4,51 para R$ 4,91. O aumento ocorre menos de dois meses após a última alta, em 11 de março, quando o litro do combustível ficou 90 centavos mais caro. Para o consumidor final - como caminhoneiros, transportadores de passageiros em coletivos - o reajuste deve chegar nas bombas aproximadamente na metade, com uma inflação de cerca de 4,5%. Mas conforme explicam os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, ainda que a população não sinta o efeito diretamente em curto prazo, a alta deve, sim, ser repassada. "O diesel já havia subido 49% nos últimos 12 meses, então qualquer reajuste que surja daqui pra frente pesa mais na estrutura produtiva", aponta André Braz, coordenador do IPC (Índice de Preços ao Consumidor) do FGV IBRE (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas). Fim do Matérias recomendadas O aumento tem pouco impacto no IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), medida usada para acompanhar tendências de inflação para o consumidor final. "Mas quando se trata do IPA, índice que mede a inflação ao produtor indústria e agricultura, o diesel tem um peso até maior do que a gasolina. Isso porque todo o processo produtivo, desde o funcionamento das máquinas agrícolas até sistema de logística. Tudo que consumimos de bens ou serviços tem o diesel como insumo em alguma magnitude", explica Carla Argenta, economista-chefe da CM Capital Markets. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Dessa forma, ainda que não seja de um dia para o outro, os custos devem chegar à população. "O repasse não é necessariamente um para um, há um espaço de margem dos produtores ou responsáveis pelo frete e parte da inflação pode ser diluída, mas o aumento é esperado porque as margens de lucro já estão comprimidas", diz Felipe Sichel, economista-chefe do Banco Modal. Outro ponto que pode ser sentido pela população geral é o aumento das passagens de ônibus. "Sabemos o quão relevante é o transporte rodoviário e o transporte público urbano aqui no Brasil, e como os ônibus são movidos a diesel, é mais uma pressão sobre o preço das passagens", aponta Sichel. Até o momento, a alta das passagens não havia sido tão significativa. O IPCA aponta aumento da de ônibus municipais em 1,2%, e para os intermunicipais e interestaduais, entre 1,5 e 2,5%. Na última quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro (PL) usou as redes sociais para criticar a Petrobras e os preços dos combustíveis. Bolsonaro chamou o lucro obtido pela empresa (R$ 44,5 bilhões no primeiro trimestre) de "estupro" e afirmou que a empresa não poderia mais aumentar o preço, ou "quebraria o Brasil". O economista Felipe Sichel aponta que, agora, os olhares dos especialistas estão voltados às próximas possíveis movimentações do governo. "Agora é ver se de alguma forma o governo tentará suavizar esse impacto por meio de aumento de subsídio." Na opinião dele, caso ocorra, o efeito pode ser negativo. "Com a situação fiscal extremamente delicada na economia global e local, há pouca capacidade de absorver choques. Tentar amenizar agora pode gerar inflação pior no futuro, e via de regra, quanto mais rápido os preços se ajustam, melhor a economia absorve o choque e se adapta. Dificultar a absorção faz com que essa conta tenha que ser paga em algum lugar." De acordo com Carla Argenta, uma das opções seria tirar os "royalties" da Petrobras, dividendos da empresa destinados à União, para o subsídio. "Não teria impacto nenhum na precificação da Petrobras, e poderia ser até bom para o investidor que comprou ações. Mas essa não deve ser uma alternativa usada pelo governo federal porque esses recursos já vão para dívidas, o que resultaria em endividamento público."
2022-05-09
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61387333
sociedade
Por que achamos algumas pessoas chatas mesmo antes de conhecê-las
Imagine que você esteja em uma festa e seu amigo o chama para conhecer sua prima Bárbara. Para enriquecer a apresentação, o amigo traz algumas informações básicas. Bárbara mora em uma cidade pequena e trabalha como analista de dados em uma agência de seguros. E seu passatempo favorito é ver televisão. A essa altura, você pode já estar resmungando só de pensar em conhecê-la — e esta reação pode dizer muito, tanto sobre você, quanto sobre analistas de dados que gostam de TV. Pesquisas recentes indicam que as pessoas têm muitos preconceitos sobre as características que formam o estereótipo do chato. Como outros tipos de estereótipos, esses preconceitos podem não ser reais e objetivos, mas suas consequências são extremamente negativas. As pessoas julgam com severidade aqueles que preenchem os estereótipos de "chato" e os consideram menos competentes e simpáticos que a média das pessoas. Elas chegam a afastar-se injustamente deles nas interações sociais — antes mesmo que eles abram a boca. Fim do Matérias recomendadas "Eles são marginalizados", afirma Wijnand van Tilburg, psicólogo especializado em experimentos sociais da Universidade de Essex, no Reino Unido, que conduziu a pesquisa recente. Essas descobertas podem fazer com que todos nós reanalisemos nossas conjecturas antes de conhecermos Bárbara em uma reunião social. Quando iniciamos um encontro com expectativas indevidamente negativas, podemos perder uma conversa que talvez acabasse sendo agradável, enquanto uma mente mais aberta poderia fazer florescer uma amizade. E a pesquisa também oferece algumas dicas para melhorar a primeira impressão causada por nós mesmos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A pesquisa de van Tilburg é sustentada por mais de duas décadas de interesse científico pelas experiências com pessoas chatas. Ela demonstrou que esta é uma das nossas experiências mais torturantes e traz influências profundas e surpreendentes sobre o nosso comportamento. Em 2014, por exemplo, pesquisadores da Universidade da Virgínia em Charlottesville, nos Estados Unidos, pediram aos participantes de um estudo que passassem 15 minutos em uma sala com pouca mobília. Os participantes estavam sem seus telefones celulares, computadores e material de leitura, mas havia um aparelho que dava um pequeno choque elétrico a quem pressionasse um botão. Apesar da óbvia dor causada pelo aparelho, 18 dos 42 participantes decidiram testá-lo pelo menos uma vez para quebrar o tédio. Parece que qualquer estímulo, mesmo o desconforto físico deliberado, era melhor que não ter nenhuma interação com o ambiente. Você pode se perguntar se essa reação era específica para o ambiente do experimento, mas ela já foi reproduzida em outras situações. Em um estudo posterior, os participantes foram forçados a assistir a um filme monótono que exibia uma mesma cena de 85 segundos, repetida por uma hora - e muitos participantes preferiram brincar com um aparelho que gerava um choque elétrico desconfortável, quando tiveram a oportunidade. Esses comportamentos podem parecer bizarros. Mas, segundo James Danckert, professor de neurociência cognitiva da Universidade de Waterloo, no Canadá, esses estudos apenas demonstram como o tédio pode ser poderoso para nos forçar a buscar novos estímulos - o que pode ter enormes efeitos benéficos para o nosso dia a dia. Segundo ele, ao longo da vida, precisamos escolher constantemente entre esgotar a situação existente ou explorar outras oportunidades. E, depois de adotarmos o mesmo comportamento por muito tempo sem a recompensa correspondente, o tédio nos força a mudar de atividade, para não ficarmos presos naquela rotina. A pesquisa de Danckert demonstra que os sentimentos de tédio são especialmente angustiantes quando somos conscientemente lembrados das outras possíveis fontes de estímulo que poderíamos estar explorando. As pessoas acham muito mais difícil, por exemplo, sentar-se em uma sala sem fazer nada, se estiverem olhando para um quebra-cabeça não terminado ou uma mesa com Lego sem permissão para tocá-los. Isso pode explicar por que é insuportável ficar preso com uma pessoa chata em uma festa em meio a conversas animadas à nossa volta. Enquanto somos obrigados a ouvir os mínimos detalhes do emprego do nosso novo conhecido, estamos perdendo a chance de fazer conexões sociais mais profundas com alguém que seria muito mais ajustado à nossa personalidade. Em termos psicológicos, nós percebemos o "custo de oportunidade" daquela conversa. A angústia causada pelo tédio nos faz evitar naturalmente interações que não sejam gratificantes. Ocorre que, infelizmente, os seres humanos têm a irritante tendência de pré-julgar injustamente as pessoas com base em informações incompletas. Por isso, muitas vezes, nós decidimos que alguém é chato antes mesmo que ele tenha tido a chance de despertar nosso interesse. Em uma série de estudos publicados no início de 2022, van Tilburg propôs-se a identificar as características que ativam esse estereótipo. E essas descobertas podem nos oferecer um motivo para refletir sempre que percebermos que estamos pré-julgando a personalidade de alguma pessoa. Em conjunto com Eric Igou, da Universidade de Limerick, na Irlanda, e Mehr Panjwani, da London School of Economics and Politics, van Tilburg começou pedindo a um grupo de 115 moradores dos Estados Unidos que descrevessem as qualidades mais tipicamente associadas a pessoas chatas. A partir dessas respostas iniciais, a equipe criou listas de 45 características pessoais, 28 profissões e 19 hobbies. Os pesquisadores pediram então a outro grupo, com mais de 300 pessoas, que avaliasse cada um dos itens relacionados em uma escala de 1 (não é chato) a 7 (extremamente chato). Os resultados foram extremamente reveladores. Os participantes do estudo de van Tilburg indicaram que digitadores, contadores e fiscais de impostos eram considerados os profissionais mais chatos. Os hobbies considerados chatos incluíam ir à igreja, ver televisão e dormir. Em termos de personalidade, os chatos foram considerados restritos a um pequeno conjunto de assuntos de interesse, pessoas sem senso de humor ou com fortes opiniões sobre qualquer assunto. Também se pensava nos chatos como pessoas que reclamam excessivamente, queixando-se de tudo. A equipe também queria entender as consequências desses estereótipos, incluindo seu potencial de criar isolamento social. Para isso, eles criaram diversos cenários baseados nas características pesquisadas nos estudos anteriores. Um desses cenários foi a descrição do personagem "Brian", que trabalhava como digitador em um escritório de contabilidade e cujo principal passatempo era ver televisão — um retrato que coincidia perfeitamente com o estereótipo do chato. Por outro lado, havia "Paul", um artista fictício que trabalhava para um jornal local, gostava de correr, ler e praticar jardinagem, em uma combinação de detalhes pessoais geralmente considerados muito menos chatos. A equipe questionou então aos participantes o quanto eles gostariam de conhecer cada personagem e se eles tentariam evitar encontrá-los ou falar com eles. E chegou a perguntar quanto dinheiro os participantes precisariam receber para passar uma semana de suas vidas com aquela pessoa. Como seria esperado, os personagens que atenderam aos critérios do estereótipo do chato não foram tratados com gentileza. De forma geral, as pessoas eram muito menos dispostas a conhecer Brian do que Paul. E, para compensar o tédio por um período de tempo prolongado, os participantes responderam que precisariam de cerca de três vezes mais dinheiro. "Eles realmente desejavam ser compensados por ficar com essas pessoas, o que indica que existe algum tipo de custo psicológico", segundo van Tilburg. Se você levar em conta os estudos que demonstram que as pessoas preferem sentir dor em vez de tédio, faz sentido que você precise de alguma recompensa para fazer valer a pena o desconforto e todas as outras experiências mais interessantes que você poderia estar perdendo. Todos nós podemos aprender com essa pesquisa. Sua premissa impensada de que pessoas com certas profissões ou hobbies são inerentemente chatas poderá evitar que você forme conexões profundas e significativas. E, se você estiver procurando um parceiro, seus preconceitos podem impedir que você conheça alguém que poderia ser o amor da sua vida. Você pode encontrar interesse e amizade onde menos espera, simplesmente tendo a mente um pouco mais aberta. E a pesquisa de van Tilburg é ainda pior se, por acaso, você próprio se enquadrar em alguma dessas situações. Mas, felizmente, ele tem algumas dicas que poderão ajudar os possíveis Brians a evitar julgamentos cruéis. A primeira orientação é examinar se você pode redefinir a descrição da sua profissão. Analista de dados, à primeira vista, pode parecer uma profissão chata — mas talvez você esteja contribuindo para um esforço maior, como pesquisas científicas. Geralmente, os cientistas são considerados muito menos chatos que os que trabalham com dados. Por isso, enfatizar o elemento científico do seu trabalho poderá ajudá-lo a afastar o preconceito das pessoas. Se isso não for possível, você pode abrir-se sobre a sua vida particular. Lembre-se de que os chatos, de forma geral, são considerados pessoas com mentes fechadas e poucas paixões. Quase todas as pessoas gostam de televisão e, se você relacionar a TV como seu único passatempo, você inevitavelmente irá parecer uma pessoa comum. Quais são suas paixões mais específicas? Atividades como jardinagem, escrever, pescar e costurar são consideradas relativamente positivas. E, quanto mais exemplos você der, maior será a chance de encontrar algo em comum com a outra pessoa. "Acho que é importante mostrar uma série de atividades", segundo van Tilburg. Por fim, você poderá estudar a arte de conversar. Assuntos como o seu trabalho ou passatempos terão muito pouca importância se você não conseguir criar um diálogo significativo. "Os chatos falam muito, mas têm muito pouco a dizer", afirma van Tilburg. Tenha a liberdade de expressar suas próprias opiniões, mas assegure-se de também dar à outra pessoa a mesma oportunidade de se expressar — e faça muitas perguntas para extrair o que há dentro da outra pessoa. Com o tempo, o seu novo conhecido poderá esquecer todos os seus preconceitos. E, se nada disso funcionar, não leve tanto para o lado pessoal. Van Tilburg indica que as pessoas são muito mais propensas a aplicar estereótipos negativos a outras pessoas quando se sentem ameaçadas. Ao julgar você injustamente pelo seu trabalho ou hobbies, a pessoa pode estar apenas escondendo suas próprias inseguranças. A chatice, como a beleza, está na mente de quem observa. * David Robson é escritor de ciências premiado e autor do livro O efeito da expectativa: como o seu pensamento pode transformar a sua vida (em tradução livre do inglês), publicado no início de 2022 no Reino Unido pela editora Canongate e, nos EUA, pela Henry Holt. Sua conta no Twitter é @d_a_robson.
2022-05-06
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-61311483
sociedade
Inflação histórica e medo de violência afetam brasileiro que volta ao trabalho presencial
A volta ao trabalho presencial para brasileiros que faziam home office até o início de 2022 pode ser considerada uma notícia boa - afinal, o que levou funcionários a ficarem em casa durante quase dois anos, a pandemia de coronavírus, demonstra uma melhora gradual. No mês de abril, o Brasil registrou o menor número de mortes por covid-19 desde março de 2020, de acordo com dados do Ministério da Saúde. No entanto, para o grupo que pôde realizar as atividades profissionais remotamente - cerca de 1 a cada 5 brasileiros, segundo o Instituto Brasileiro de Economia da FGV -, a hora é de enfrentar altas de preço históricas e, para alguns, sentir-se mais vulnerável à criminalidade, especialmente nas grandes metrópoles. Para a advogada Debora Moreira, de 27 anos, moradora da capital paulista, o retorno ao escritório onde trabalha quatro vezes por semana significa que ela terá uma parte menor de sua renda disponível no fim do mês. "Agora gasto três vezes mais do que antes com gasolina, pelo trajeto e preço mais alto, e como trabalho em uma região cara, no bairro da Vila Olímpia, meu vale-alimentação não é suficiente para comer todos os dias fora. Enquanto estava em casa, cozinhava e ainda sobrava para o dia seguinte, então era bem mais econômico", diz. "Por ficar parada no trânsito de grandes avenidas e em faróis, tenho medo de ser assaltada e perder não só meus bens, mas o notebook da empresa com todo o meu trabalho nele. De sofrer violência, então, mais ainda. Evito assistir televisão para que os crimes não me causem ansiedade". Fim do Matérias recomendadas O psicólogo André Vilela Komatsu, pesquisador do NEV-USP (Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo), aponta que tem acompanhado muitos relatos de trabalhadores que, assim como Debora, se sentem mais ansiosos por precisar transitar em distâncias maiores nas cidades. Na avaliação dele, é esperado, assim como toda mudança de rotina, que as pessoas sintam algum nível de estresse. "Passando mais tempo em casa, reparamos na cadeira que está ruim, no espaço não tão agradável... E, com o tempo, a gente vai acostumando. E agora é a mesma coisa. Voltamos a reparar em problemas sociais que sempre estiveram aí, mas muita gente não viu as transformações do espaço público por ficarem restritos a seus bairros durante a pandemia." Entre as mudanças, ele cita a intensificação de problemas sociais, com maior degradação dos espaços públicos, mais pessoas morando nas ruas e o aumento de crimes. "Houve uma redução de assaltos durante a pandemia, justamente por ter menos gente na rua, e agora já estamos chegando em níveis semelhantes aos de antes." Para o pesquisador, a sensação de medo é natural e, embora não seja o ideal, é esperado que as pessoas consigam se acostumar ao menos parcialmente. "(Para) a maior parte dos trabalhadores, não é nem uma questão a ser discutida. Infelizmente, o medo de ser demitido ou de não ter onde trabalhar às vezes é maior do que o medo de sofrer violência, e certamente isso causa muita ansiedade." A prévia da inflação oficial, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - 15 (IPCA-15), chegou em abril a 1,73%, a maior taxa desde 1995, resultado que é consequência de uma série de fatores ocorridos nos últimos dois anos no Brasil e mais recentemente, internacionalmente. "Há dois fatores que agiram juntos para jogar inflação para cima durante a pandemia: estímulo muito forte por meio da transferência direta de renda do governo para as famílias e taxas de juro em uma mínima histórica - a Selic chegou a 2% ao ano e hoje já está em 11,75%. Isso ajudou a manter o poder de compra das famílias estável por algum tempo, mas com maior demanda e circulação de dinheiro, elevou a inflação", explica a economista Tatiana Vieira, da XP Investimentos. Outros acontecimentos recentes no cenário internacional também contribuíram para a alta da inflação no Brasil. "A guerra da Rússia contra a Ucrânia fechou portos, criou embargos importantes para Rússia e paralisou produção em ambos os países, exportadores de milho, trigo, sementes - o que influencia, inclusive, no preço da carne, já que esses alimentos servem como ração", afirma Vieira, lembrando que a Rússia também é o maior exportador de gás para Europa e que a situação de instabilidade afeta o preço dos combustíveis. Na China, o lockdown restritivo a qualquer caso de covid-19 faz com que fábricas e portos fechem por alguns dias, deixando a comunidade global sem acesso a insumos muito importantes para produção. "Com isso, bens manufaturados devem subir, especialmente os industrializados." De todas as altas, a de combustível foi a maior - no último ano, o preço da gasolina aumentou 47%, o diesel, 50% e o etanol, 60%. Os automóveis também ficaram muito mais caros, com aumento de 20% para carros novos e 15% para modelos usados, de acordo com o IPCA. "Transporte por aplicativo tinha sido uma alternativa muito usada. Até por conta da pandemia, muitos reavaliaram o uso de alguns bens, 'abriram mão' de ter o carro. Mas os preços já subiram um pouco, principalmente pelo combustível", comenta a economista. Para quem usa o transporte público, também houve aumento. O aumento da passagem de ônibus municipais foi de 1,2%, e para os intermunicipais e interestaduais, entre 1,5 e 2,5%. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Durante a pandemia, os prefeitos decidiram não dar reajuste. O caixa dos municípios e estados estava muito bem, arrecadação por ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) surpreendeu positivamente, evitando que repassassem a alta do diesel via aumento de tarifas. Mas não sabemos até quando vão conseguir segurar", aponta Vieira. Os serviços, em geral, desde a contratação de funcionários para limpeza, mensalidade de escolas e creches, e outros que se tornaram ainda mais necessários para muitas famílias ao deixarem o home office, sofrem reajustes ligados à inflação do ano anterior. Para comer, mesmo dentro de casa, o preço dos alimentos também aumentou, e a conta fica ainda mais cara em restaurantes. "O primeiro motivo é doméstico, crise hídrica, fatores climáticos que impactaram a produção. Fretes e transporte das mercadorias ficaram muito mais caros. E a expectativa é que a gente continue vendo", conclui. A volta parcial ao escritório com equipes reunidas até duas vezes por semana é a opção preferida pela maioria dos profissionais de grandes empresas brasileiras, de acordo com o estudo "Modelos de trabalho pós-pandemia", realizado pela empresa de consultoria e auditoria PwC Brasil em parceria com o PageGroup. Entre os mil profissionais ouvidos, 67% preferem regime integral de home office ou modelo híbrido com uma, ou duas idas ao escritório na semana. "Com a pandemia, fomos convidados a refletir sobre qual modelo de trabalho queremos. Algumas barreiras já foram quebradas e as pessoas começam a pensar 'Bom, talvez eu não precise me deslocar - por horas, às vezes - para trabalhar. Além disso, pessoas localizadas remotamente em diferentes partes do Brasil trazem a equipe, pela minha experiência profissional, ideias diferentes e originais", Stephanie Crispino, CEO da Tribo, consultoria do grupo Anga que tem como foco a humanização de culturas empresariais. A mistura de home office e trabalho presencial é realidade na rotina das pequenas e médias empresas brasileiras. Segundo a pesquisa "Impacto da covid-19 na cultura e operação das PMEs brasileiras", 47% das PMEs estão trabalhando de forma híbrida. O trabalho 100% presencial vem em segundo lugar, com 38% das companhias, seguido do trabalho totalmente remoto, com 15%. Ter conhecido a possibilidade de trabalhar em sistema híbrido ou remoto, aponta Stephanie, não significa que as empresas necessariamente continuarão adotando o modelo - mas, em sua opinião, para os tipos de trabalho que permitem, é um passo nessa direção. "Essa flexibilidade fez as lideranças e trabalhadores entenderem que a produtividade fora do escritório é possível, e nesse ponto, não há como voltar. Essa alternativa pode, inclusive, fazer a diferença quando o profissional for escolher a empresa na qual quer trabalhar", conclui Crispino.
2022-05-05
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61315023
sociedade
Compartilhar imagem íntima sem autorização é crime; veja como denunciar
Enquanto publicar imagens na internet pode levar apenas alguns segundos, para quem teve fotos ou vídeos íntimos expostos, as consequências podem durar uma vida toda. O artigo 218C do código penal, introduzido em 2018, estabelece que oferecer, trocar, transmitir, vender distribuir, publicar ou divulgar, por qualquer meio - inclusive pela internet - fotografias, vídeos ou outro registro audiovisual que contenha pornografia ou nudez sem o consentimento da vítima, assim como cena ou apologia de estupro ou de estupro de vulnerável ou cena de sexo, é crime. Quem recebe, por exemplo, uma foto de nudez no Whatsapp e compartilha - mesmo sem ter sido o primeiro a expor a imagem - também é considerado infrator. "As mulheres são a maioria das vítimas e, para quem sofre um crime como esses, o trauma emocional é muito grande. Algumas entram em depressão e já vimos até caso de tentativa de suicídio", diz a advogada criminalista Jaqueline Valles, conselheira do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). Como pena, a lei prevê a reclusão de um a cinco anos, se o fato não constitui crime mais grave. Caso o criminoso seja um ex-namorado(a) e a divulgação tenha fim de vingança ou humilhação, essa pena pode aumentar de um a dois terços. Fim do Matérias recomendadas Já se as imagens foram compartilhadas por um tutor, padrasto, madrasta, irmão, tio, empregador ou qualquer outro título que a justiça considere "de autoridade" sobre a vítima, a pena pode aumentar 50%. "Na prática, se o infrator não tiver antecedentes criminais ou o ato não for considerado um crime mais grave, é difícil que fique preso, porque não chega à pena mínima para reclusão. Nesses casos, pode-se estabelecer prisão domiciliar e prisão restritiva de direito (como prestação de serviços comunitários e interdição temporária de direitos)", explica Ivana David, desembargadora do TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo). Mas isso não quer dizer que o crime passará impune e que as vítimas não devem denunciar - pelo contrário. Ainda que não seja a prisão, há sanções para os infratores e, de acordo com a advogada Jaqueline Valles, quem cometeu o crime também fica com a passagem marcada, o que significa que, se voltar a compartilhar imagens da mesma ou de outra pessoa, a pena deve ser maior. "Nada justifica alguém publicar um material de exposição íntima e é necessário interromper esse ciclo, o que só é feito denunciando. A vítima também pode entrar com ação de dano moral, já que o compartilhamento prejudica a vida dela como um todo. Muitas abandonam o emprego por vergonha e precisam passar por longos tratamentos psicológicos. O advogado pode colocar um valor a titulo de indenização, estimando o prejuízo que a pessoa sofreu. Esse tipo de ação normalmente vence", diz David. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Antes de denunciar a foto para a rede onde ela foi publicada, o que pode ser a reação natural de muitas vítimas, deve-se tirar 'prints' (capturas de tela) de todas as fotos ou vídeos. "É uma situação que pode ser difícil, muitas vítimas me dizem: 'Não quero ficar com isso', mas são provas necessárias", afirma Valles. Depois, pode-se comunicar a plataforma e pedir a retirada do conteúdo. Também é importante que um boletim de ocorrência seja feito assim que possível. "É possível realizar de forma online ou presencial, e há delegacias especializadas em crimes digitais e também para crimes contra a mulher. Ainda que tenha sido publicada de uma conta falsa, a inteligência da polícia consegue quebrar o 'IP', o número de identificador do computador", aponta Ivana David. O processo, conforme explicaram ambas as advogadas consultadas pela BBC News Brasil, pode ser doloroso para a vítima. É necessário deixar o delegado ver as fotos ou vídeos, além de presenciar as imagens sendo exibidas durante julgamento. "O juiz pergunta detalhes, por fazer parte do processo, mas isso envergonha a pessoa, a gente vê a vítima se 'afundando' na cadeira", diz David. Apesar disso, as especialistas reforçam que denunciar ainda é o melhor caminho. "Precisamos lembrar essas vítimas que por mais incômodo que seja, o processo tem um fim. Já se ela não denuncia, pode ficar na mão do criminoso, sendo extorquida, ameaçada ou envergonhada, sem saber quando o pesadelo vai acabar", conclui Jaqueline Valles.
2022-05-04
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61274620
sociedade
Pesquisa mostra como a pandemia de covid alterou nossa percepção do tempo
Imagine que, durante os próximos 60 minutos, você terá dois compromissos. O primeiro deles é uma reunião de trabalho sobre um tema que você considera chato e tedioso. O segundo é um café com um grupo de amigos, com os quais você adora conversar. Mesmo que as duas atividades tenham exatamente a mesma duração, a tendência natural é que a sensação da passagem de tempo em cada uma delas seja muito diferente. Enquanto cada segundo da reunião parece demorar uma eternidade, o café vai passar voando num piscar de olhos. Mas e o que aconteceu durante os primeiros meses da pandemia de covid-19? Será que o lockdown, o distanciamento social, o trabalho remoto, a suspensão das aulas e o cancelamento de festas e datas comemorativas alteraram a forma como a gente se relaciona com o relógio? Essa foi a curiosidade que guiou uma pesquisa realizada pela Universidade Federal do ABC (UFABC), na região metropolitana de São Paulo, e pelo Instituto do Cérebro do Hospital Israelita Albert Einstein, na capital paulista. A partir de maio de 2020, os especialistas enviaram pela internet um questionário, e 3.855 pessoas toparam participar do experimento. Durante 15 semanas, os voluntários responderam, com o auxílio de uma escala, perguntas relacionadas à percepção de tempo e às sensações do dia a dia. Fim do Matérias recomendadas Para tanto, os cientistas levaram em conta dois domínios diferentes. O primeiro foi a expansão temporal, ou a noção de que os minutos se prolongam e custam a passar — o que desemboca em tédio. Já o segundo tem a ver com a pressão temporal, em que parece que há mais tarefas na agenda do que horas suficientes para cumpri-las. Quando essa sensação se prolonga, aparece o estresse e o abandono de dimensões importantes da vida, como o autocuidado e o relacionamento saudável com familiares e amigos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Vale lembrar que o primeiro semestre de 2020 foi marcado por muitas incertezas: a doença havia sido descoberta pouco tempo atrás, os casos estavam subindo rapidamente (com uma situação de calamidade em alguns países), não existia vacina ou remédio efetivos e o isolamento era a única saída para conter o vírus. Em resumo, ele indica que o tempo "se expandiu" logo no início da pandemia, mas essa sensação foi diminuindo com o passar das semanas. Outro achado interessante foi o de que a nossa consciência sobre a evolução das horas está diretamente relacionada com fatores psicológicos, como solidão e estresse. As emoções se revelaram um aspecto crucial da maneira como o tempo é vivenciado, concluem os autores do artigo. Mas será que é possível explicar como acontecem essas mudanças e o que elas podem significar, até para a vida pós-pandemia? O neurofisiologista André Cravo, um dos responsáveis pela pesquisa, explica que a percepção de tempo envolve uma série de habilidades do sistema nervoso. "Uma delas é a capacidade de manter um ritmo, como medir adequadamente os milissegundos entre clicar no botão do mouse e ver alguma alteração na tela do computador", diz. "Outra tem a ver com estimar a duração de eventos no passado e colocá-los dentro de uma linha de tempo, em uma ordem de acontecimentos", continua o especialista, que integra o Laboratório de Cognição e Percepção do Tempo da UFABC. "E também existe uma terceira habilidade, que envolve estimar intervalos de eventos do passado e tentar comparar com eventos similares do presente, como uma maneira de avaliar se o tempo passa mais rápido ou devagar", completa. A Ciência ainda não desvendou completamente os mecanismos por trás de todos esses processos, ou quais são exatamente as áreas do cérebro envolvidas nessa tarefa tão complexa. Mas uma coisa que não dá pra ignorar — e a pesquisa brasileira observou — é o impacto das emoções na percepção de que os ponteiros do relógio estão em marcha lenta ou em alta velocidade. "No nosso estudo, fatores sociodemográficos, como gênero e idade, não foram tão preponderantes para a percepção de tempo. O que mais influenciou mesmo foram os fatores psicológicos, como a solidão, o tédio…", diz Cravo. "Mas é preciso levar em conta que os voluntários pertenciam a classes sociais com mais condições, e temos bons motivos para acreditar que indivíduos numa situação econômica mais complicada tenham sentido uma pressão temporal mais forte na pandemia." Portanto, é possível especular que, entre os participantes do experimento, aquela sensação de expansão do tempo no início da crise sanitária tenha a ver com uma agenda mais livre e com horas extras, que antes eram dedicadas às atividades sociais ou aos deslocamentos entre casa e trabalho. Num primeiro momento, isso esteve relacionado à sensação de tédio e enfado, que foi diminuindo com o passar das semanas. Mas esse sentimento é bastante subjetivo e pode variar de acordo com a realidade de cada um: é possível que, para alguém que precisa sair de casa para ganhar seu sustento, esses mesmos primeiros dias da covid-19 tenham sido marcados pela pressão temporal e pelo estresse. Cravo também lembra que as características individuais influenciam nessa percepção e na forma como cada um experimentou esse período. "Para alguns, não poder sair foi muito ruim e agoniante. Já para outros, que têm traços mais introvertidos, foi bem mais fácil se adaptar." Outra questão que fica em aberto tem a ver com o impacto que um evento como a pandemia deixa na percepção de tempo pelo resto da vida — mesmo quando a covid-19 deixar de ser uma emergência de saúde pública internacional. Por ora, ainda não foram publicados estudos sobre esse tema. O neurocientista Raymundo Machado, do Instituto do Cérebro do Hospital Israelita Albert Einstein e que também fez parte do estudo, lista algumas maneiras de medir esse efeito a longo prazo. "Daqui a dois ou três anos, poderemos entrevistar as pessoas para ver se elas se lembram da sequência em que os eventos aconteceram nesse período. Será que a ausência de marcos temporais importantes, como feriados e festas de aniversário, vai afetar a maneira como relacionamos as memórias?", questiona o pesquisador. Um exemplo simples: você consegue se lembrar de bate-pronto dos momentos exatos em que ocorreram as trocas de ministros da Saúde no Brasil nesses dois anos? Quando saiu Luiz Henrique Mandetta e entrou Nelson Teich? Em que mês e ano o general Eduardo Pazuello assumiu o posto? Quando ele deixou o ministério? E o médico Marcelo Queiroga está no cargo desde que mês? Montar esse verdadeiro quebra-cabeças pode ser um desafio ainda maior daqui a alguns anos, quando espera-se que a pandemia seja coisa do passado e os marcos temporais (aniversários, festas, feriados…) estejam 100% restabelecidos. Machado também destaca a dificuldade de comparar, do ponto de vista da percepção de tempo, a atual crise sanitária com qualquer outro evento histórico. "Mesmo na gripe espanhola ou nas duas guerras mundiais, a forma como as pessoas lidaram com esses eventos foi diferente em cada parte do planeta." E isso, claro, influencia na percepção do tempo sentida nesses locais. "Já na covid, todo o mundo experimentou coisas parecidas, e a maioria dos países adotou algum tipo de distanciamento físico, ao menos por algum tempo", conta o especialista. Ou seja: não há paralelos históricos e ainda é cedo para dizer se as mudanças sentidas na pandemia seguirão por toda a vida. Mas os especialistas especulam que indivíduos que sofreram mais nesse período — e até desenvolveram transtornos sérios, como depressão, ansiedade ou estresse traumático — podem ter uma relação mais atribulada com o relógio daqui pra frente.
2022-04-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61221868
sociedade
A modelo brasileira que viralizou ao fazer faxina para pessoas com depressão
Louças acumuladas, roupas sujas, restos de comida nos cômodos, incontáveis baratas e até mesmo larvas. Essas são algumas das coisas que a modelo Ellen Milgrau encontrou em casas que visitou nas últimas semanas. Ela foi a esses lugares com um objetivo: limpar as residências para melhorar a qualidade de vida dos moradores, que enfrentam a luta contra a depressão. Sem ânimo, muitos dos responsáveis por essas casas não conseguiam sequer limpar os cômodos. "Às vezes a pessoa não consegue nem levantar para tomar banho. Tem situações em que não é justo chamar uma faxineira porque a sujeira está muito crítica", diz a modelo à BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas Ellen conta que o projeto, chamado de Faxina Milgrau, tem relação com o hábito de limpeza que possui desde pequena. Ela considera que o local em que vive precisa estar livre da sujeira para que as coisas fiquem bem. "Parece que a vida só funciona quando a casa tá limpa", comenta. O Faxina Milgrau, diz Ellen, surgiu quando ela precisou ajudar um amigo em depressão que estava com dificuldades para limpar a própria casa. "A gente costumava falar: vamos fazer uma intervenção, chegar com as vassouras e tudo na sua casa. A gente só falava, mas chegou um momento em que ele realmente pediu ajuda", diz Ellen. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A modelo e a amiga, a publicitária Lua Rodrigues, decidiram registrar a limpeza em um vídeo no TikTok. Para Ellen, que também é influenciadora digital, foi um teste sobre o conteúdo que realmente agradaria o público. Ela conta que ainda avaliava a melhor forma de usar a rede social de vídeos. "Eu pensava em alguns nichos, como maquiagem, porque queria crescer no TikTok. E o que desse certo, seguiria nesse nicho. Quando falamos sobre gravar a faxina, pensei: é um conteúdo que eu gosto e pode dar certo", explica Ellen. Os vídeos de limpeza foram inspirados em publicações da finlandesa Auri Katariina, que se tornou um fenômeno mundial ao fazer faxinas nas casas de pessoas que enfrentam problemas de saúde mental ou outras dificuldades que as impedem de conseguir limpar o local em que moram. Logo na primeira faxina, na casa do amigo, a publicação de Ellen fez sucesso na rede social. Em poucos dias passou de 2 milhões de visualizações. A repercussão positiva fez com que a modelo seguisse com os vídeos. Para ela, foi uma forma de fazer algo que gosta, ajudar outras pessoas e ainda fazer com que o público a conhecesse melhor. "Com isso, consigo sair da minha zona de conforto e também mostrar um lado que muitas pessoas não têm ideia sobre mim. Acham que por ser modelo sou intocável ou nasci rica. Não sou nada disso. Não nasci rica ou herdeira", declara Ellen. Depois da repercussão do primeiro vídeo, Ellen e Lua começaram a busca por uma segunda pessoa que estivesse em situação parecida. Lua anunciou em diversos lugares na rede até achar outro caso: uma mãe e uma filha que moram juntas, enfrentam a depressão e estavam com a casa suja. Com exceção do primeiro episódio, nenhum participante teve a identidade divulgada no projeto para evitar a exposição por revelar detalhes muito pessoais. Com a repercussão dos vídeos, Ellen e Lua passaram a receber inúmeras mensagens por e-mail, pelo Instagram e TiKTok de pessoas pedindo para serem ajudadas. Para definir em qual casa irão, elas olham fotos do local e conhecem melhor a história do morador do imóvel. "A gente já consegue identificar quem são aqueles que buscam a gente e realmente precisam da nossa ajuda", diz Ellen. No início, a modelo e a publicitária faziam as faxinas sozinhas - Lua aparece raramente nos vídeos, pois é a responsável pelas gravações. Diante da repercussão dos vídeos, conseguiram voluntários para ajudá-las. Ao menos por enquanto, todas as residências foram em São Paulo por questões financeiras. Toda a produção é feita de modo independente, diz Ellen, pois ao menos por enquanto não há nenhum patrocinador. Em razão disso, elas só conseguem atender uma casa por semana, em uma faxina que não tem horário estipulado para acabar - nos últimos episódios foram cerca de sete horas para concluir a limpeza. Quando não está limpando as casas, Ellen se dedica à carreira de modelo ou faz publicidades para as suas redes sociais. "Não é com a faxina que a gente ganha dinheiro, por isso não conseguimos viver só disso no momento", comenta a modelo. Já foram publicados quatro episódios no TikTok. Para Ellen, a história mais marcante foi a do terceiro caso, no qual uma jovem de 21 anos morava sozinha e sofria com uma depressão grave. "Era uma situação muito precária. Ela foi completamente abandonada pela família depois que perdeu um ente querido, estava sem amigos e morando em São Paulo. Isso mexeu muito comigo", diz. No vídeo, Ellen contou que a jovem não limpava a casa havia 10 meses. No local havia lixo por todos os lados e muitas baratas. "Teve um momento, durante a limpeza, em que ela (a jovem de 21 anos) desabou, começou a chorar, se sentir culpada e ficou com muita vergonha por a gente estar fazendo isso por ela. Mas a gente explicou pra ela, a gente a acolheu e deu tudo certo, ela ficou muito feliz ", disse Ellen no vídeo. Outro caso marcante para a modelo foi o do quarto episódio: uma mãe que perdeu a guarda da filha. "Quando a gente viu as fotos do apartamento, falou: o lugar tá num nível de sujeira que a gente quer, vai ser tranquilo. Mas quando chegamos, era muito pior. O cheiro era muito forte, num nível de passar mal. Ela estava três meses sem a filha, enfrentava uma depressão e tinha muita sujeira", relembra a modelo. As mulheres do terceiro e quarto episódio conseguiram terapia gratuita por meio de um psicólogo que se ofereceu para ajudá-las. Assim como as pessoas que visita, Ellen também sofre de depressão. "Eu faço tratamento e entendo as dificuldades que essas pessoas enfrentam." O psiquiatra Higor Caldato explica que é comum que uma pessoa em depressão não consiga ter os cuidados considerados mais simples. "Um dos principais sintomas da depressão, assim como a tristeza e a irritabilidade, é a perda de energia e a perda de prazer nas coisas", diz à BBC News Brasil. "Isso faz com que as pessoas não consigam, muitas vezes, fazer as tarefas mais simples do cotidiano, como as domésticas e também as de autocuidado como banho e exercício físico. E isso não é porque a pessoa não quer, é porque ela não consegue e está sem energia para fazer suas atividades", acrescenta. Mas ele destaca que nem todas as pessoas em depressão terão esses sintomas. "Hoje é muito comum a gente perceber aquilo que chamamos de depressão funcional, que é o paciente que mesmo deprimido faz suas atividades rotineiras, mas à custa de muito esforço, de um sofrimento muito grande", diz. Em caso de suspeita da doença, o especialista ressalta que é fundamental procurar ajuda por meio de psiquiatra ou psicólogo para fazer o tratamento adequado. "Tem muitos sintomas de depressão que são vistos como bobagem, como besteiras. O ideal é buscar ajuda especializada. Por serem sintomas emocionais, as pessoas não conseguem identificar em exames de sangue, de raio-X", diz. No caso daqueles que não conseguem sequer limpar a própria casa, o psiquiatra pontua que a bagunça pode piorar o quadro depressivo. "Isso faz com que a sensação de incapacidade cresça dentro da pessoa e aumenta ainda mais a sensação de impotência e inferioridade", declara Caldato. A limpeza da casa, comenta Ellen, é um pequeno passo para ajudar uma pessoa que enfrenta a doença. "Nos comentários muitos dizem: 'ah, daqui a uma semana volta tudo como antes'. Mas eu acredito que eles podem manter (a limpeza) porque esse pode ser o gás que precisam para seguir, Depois disso, eles podem dormir melhor e até pensar melhor", afirma a modelo. O melhor exemplo de como a faxina pode ajudar, diz Ellen, é o de seu amigo que participou do primeiro episódio do projeto. "Ele mantém a casa limpa até hoje e sempre manda foto mostrando pra gente", conta a modelo.
2022-04-29
https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-61266367
sociedade
Como aumentar vida útil das roupas e ajudar a salvar o planeta
No seu livro de 2021 Loved Clothes Last ("Roupas amadas duram", em tradução livre), Orsola de Castro, fundadora da campanha mundial Fashion Revolution (Revolução da Moda), lança um apelo apaixonado. "Passei anos vasculhando roupas de segunda mão em brechós e vi centenas de peças perfeitas abandonadas simplesmente por causa de um zíper quebrado", ela conta. "Afinal, por que gastar tempo e dinheiro consertando um zíper quebrado, quando é mais rápido, mais barato e infinitamente mais divertido comprar uma roupa nova, com um zíper que funcione?" "Mas, por favor, podemos parar e analisar o que estamos fazendo quando desprezamos o zíper que quebrou? O que aconteceria se decidíssemos substituí-lo?", pergunta ela. O questionamento de Castro é um dentre muitos enfrentados pela indústria da moda no século 21. Está ficando cada vez mais difícil ignorar os prejuízos sociais e ambientais causados pela fabricação de roupas. As taxas de consumo de recursos naturais são estratosféricas, sem falar na poluição e nos níveis de resíduos, enquanto as cadeias de fornecimento globais são marcadas pela exploração. E o setor é ainda responsável por uma parcela que varia de 2 a 8% do total das emissões globais de gases do efeito estufa, dependendo do estudo consultado. Fim do Matérias recomendadas São fatos impressionantes, considerando que, até certo ponto, trata-se de uma indústria de produtos não essenciais. Muito poucas pessoas nas capitais consumidoras de moda ao redor do mundo realmente precisam de mais roupas. Mesmo assim, são produzidas cerca de 80 a 100 bilhões de peças de roupa por ano - e esta estimativa é conservadora. O setor da moda vem lutando para vencer esse desafio com planos e relatórios detalhadamente pesquisados, que incluem uma série de projetos para aumentar a eficiência energética das cadeias de fornecimento, mudar para materiais renováveis, investir na inovação de materiais para evitar os sintéticos, promover iniciativas de justiça social e combater a crueldade com os animais. Mas, embora esses esforços sejam bem intencionados, eles enfrentam uma indústria que já tem um impacto ambiental gigantesco. Basta dizer que a maioria desses 80 a 100 bilhões de peças de roupa acaba sendo incinerada ou lançada em aterros com muito pouco uso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A pandemia abalou as vendas globais de roupas. Agora, elas estão a caminho de atingir novamente níveis um pouco maiores que os de 2019, segundo os relatórios sobre o Estado da Moda da consultoria norte-americana McKinsey & Company. Cada vez mais ativistas argumentam que uma das formas mais fáceis de reduzir os impactos da indústria da moda é comprar menos (ou muito menos - apenas três novas peças de vestuário por ano, segundo o grupo ativista britânico Take the Jump) e fazer com que as roupas que já temos durem mais tempo. A ideia básica é que a indústria da moda precisa reduzir seu tamanho substancialmente. Para uma geração de compradores alimentados por desejos construídos artificialmente e pela gratificação instantânea, esta pode ser uma meta difícil de imaginar, mas os números são irrefutáveis. Pesquisas da organização ambiental britânica Wrap indicam que estender a vida útil de uma peça de roupa em apenas nove meses poderá reduzir seu impacto ambiental em até 10% - imagine o que poderíamos atingir ao longo de décadas. Fatores que contribuem para atingir esse objetivo incluem a compra de roupas de boa qualidade, a disposição dos usuários de vestir a mesma roupa por muitas vezes e sua capacidade de cuidar delas. Pode parecer fácil, mas, se isso fosse verdade, nós já teríamos feito. O que ocorre é que, agora, os riscos parecem assustadores demais para não tentar. Faz pouco mais de uma geração que perdemos a arte de manutenção das roupas. Enquanto a vida de nossos avós era de economia e reparo, a maioria dos consumidores hoje em dia se acostumou com o sistema de usar, quebrar e descartar. As peças de roupa perfeitas de Castro com zíperes quebrados são sintomas da profunda falta de conexão com a forma de produção das roupas. Mas agora é mais importante que nunca perguntar por que tantas roupas são produzidas com materiais derivados de petróleo; se a viscose daquela blusa foi extraída de florestas antigas; se há pele animal naquele pompom; por que apenas uma pequena parcela dos trabalhadores nas indústrias de vestuário recebe salários decentes - e se ainda queremos ajudar a causar toda essa destruição. O subtítulo do livro de Castro é "como a alegria de consertar e vestir novamente as suas roupas pode ser um ato revolucionário". É fato. Precisamos de uma revolução. A primeira etapa é visitar o seu guarda-roupa. Em 2019, a organização britânica TRAID lançou a campanha 23 Percent para destacar a proporção das roupas mantidas sem uso no guarda-roupa pelos habitantes de Londres. A estilista norte-americana Sam Weir é a fundadora do Lotte.V1, um serviço de combinação personalizada de roupas e acessórios, que pretende revitalizar nossa relação com as roupas. Weir tem larga experiência em campanhas de alto perfil e afirma que "muitos de nós não usamos o que temos porque fomos ensinados a encontrar soluções para combinar roupas pelo consumo". "Combinar as roupas permite que as pessoas se expressem e se divirtam com as roupas, sem comprar [peças] novas; força a criatividade e [faz com que] elas realmente vistam suas roupas. Envolve aprender a interagir com a moda, sem consumismo, e estabelecer um relacionamento com as nossas coisas", explica Weir. Por onde podemos começar? "Reserve duas horas e abra seu guarda-roupa", ensina ela. "Procure peças que você não veste há meses ou mais. Uma delas pode ser uma blusa social. É aqui que a combinação de roupas pode ajudar." Weir prossegue: "Coloque-a junto a uma calça jeans informal, algo que você só usaria no fim de semana. Acrescente um par de sapatos de salto baixo e um blazer. Combinando as roupas, você transformou uma peça que você só vestia em um ambiente em algo para usar em inúmeras ocasiões." "Com a combinação criativa, vestidos podem se transformar em saias ou tops; o velho fica novo outra vez. É como se você acabasse de ir às compras, sem nunca ter deixado seu guarda-roupa", conclui ela. Fazer boas compras é uma boa ajuda para começar, segundo Mikha Mekler, professora de gestão de produção do London College of Fashion. Para ela, "a forma como compramos é o problema. Se comprarmos qualidade, [a roupa] durará mais." Comece evitando marcas de moda de consumo, com suas gigantescas campanhas publicitárias, repletas de celebridades. Procure marcas com conduta ética, que se orgulhem por serem artesanais. E, ainda assim, verifique você mesmo: o peso do produto e a qualidade dos seus detalhes podem dizer muito. "Experimente a roupa", aconselha Victoria Jenkins, tecnóloga de vestuário e fundadora da marca de roupas ajustáveis Unhidden. "Puxe, repuxe, examine a costura. Ela está limpa e arrumada ou cheia de fios soltos? Você pode ver linhas aparentes em pontos de tensão sobre a costura? A roupa tem fitas para ser pendurada, para evitar que ela perca a forma? Aquela camiseta tem faixas sobre os ombros para que ela não se deforme quando for pendurada? A bainha é resistente ou pode ser desfeita com facilidade? O tecido tem pontos desbotados, ou mais falhas de impressão do que o esperado?" A etapa seguinte é ter cuidado. No seu estudo de 1954, intitulado Soap Powders and Detergents ("Detergentes e sabões em pó", em tradução livre), o semioticista francês Roland Barthes escreveu sobre o uso da espuma - que não é rigorosamente necessária no processo de limpeza - na publicidade de detergente. Para ele, "o que importa é a arte de dissimular a função abrasiva do detergente com a imagem deliciosa de uma substância, ao mesmo tempo profunda e aerada, que pode controlar a ordem molecular do material sem danificá-lo". A ideia de que a lavagem, de alguma forma, renova e refresca persiste, mas, na verdade, ela é muito destrutiva, como indica Barthes. A maior parte dos especialistas em roupas sustentáveis concorda: lave menos as roupas - e lave-as com detergentes naturais suaves e do avesso, para evitar que as cores e impressões desbotem. A designer Stella McCartney disse em entrevista ao jornal britânico The Observer, em 2019: "a regra é não limpar. Você deixa a sujeira secar e a retira com escova. Basicamente, na vida, a regra geral é: se você realmente não precisa limpar alguma coisa, não limpe. Eu não troco de sutiã todos os dias e não jogo as coisas na máquina de lavar simplesmente porque foram usadas. Sou incrivelmente higiênica, mas não sou fã de limpeza a seco - nem de qualquer tipo de limpeza, na verdade." Para Mekler, "o cuidado com as roupas ainda é algo que as pessoas fazem errado diariamente. Eu lavo muitas roupas, especialmente as mais finas e até os jeans, no ciclo de lavagem de delicados, a menos que elas estejam muito sujas." Considere a possibilidade de pendurar as peças de roupa com pouca sujeira no banheiro enquanto você toma banho e deixar que o vapor faça o trabalho de limpeza. Evite a secagem na máquina; agite as roupas e pendure para secar. E comemore os benefícios ambientais das suas novas rotinas. Segundo o Energy Star - o programa de eficiência energética da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês) - uma máquina de lavar gasta, em média, 24,6 mil litros de água por ano, ou cerca da metade do que uma pessoa bebe ao longo da vida. Além da água, sempre que lavamos a roupa, nós lançamos substâncias químicas e microfibras dos tecidos sintéticos nos cursos d'água já sobrecarregados. E, por fim, a maior parte das emissões produzidas durante o período de uso do ciclo de vida de uma roupa é gerada durante a lavagem e a secagem na máquina. Reduza esse processo e você ficará na moda de forma sustentável. Depois de limpar suas roupas, resista à tentação de atirá-las sobre o piso ou embolá-las no sofá. A armazenagem correta representa metade do trabalho de cuidar das roupas. As principais orientações incluem manter as roupas limpas longe do calor e da luz do sol, em espaços secos e frescos, com espaço suficiente para que elas respirem. A organizadora profissional Katrina Hassan adota o método Marie Kondo de arrumação. Ela ensina que "a consciência e a mudança positiva de hábitos estão no centro do processo. E um princípio fundamental é guardar as coisas de forma que você possa ver tudo com facilidade. Quando você sabe exatamente o que tem, você tem muito mais disposição de cuidar de tudo." Avaliações periódicas permitem que você estabeleça conexão com suas coisas e determine sua qualidade ao longo do tempo. Nesse estágio, é hora de colocar as mãos na massa. "Todos nós já colocamos roupas no armário quando caiu um botão, mas seria ótimo se soubéssemos simplesmente fazer o básico, como colocar a linha na agulha e costurar um botão, ou consertar uma costura", argumenta a consultora de sustentabilidade Tessa Solomons. "[A falta desse conhecimento] paralisa muitas pessoas no primeiro obstáculo, mas essas ações evitariam que as roupas fossem mandadas para o aterro sanitário - ou para lojas de caridade, onde outras pessoas precisarão consertá-las", ressalta Solomons. "E é também uma grande sensação de conquista saber que você conseguiu [fazer o reparo] dentro da sua capacidade. É fantástico, um prazer." Existem muitos recursos para o costureiro iniciante na internet. Em inglês, os sites Repair what you Wear e Fixing Fashion Academy oferecem tutoriais em vídeo de fácil compreensão para pessoas com conhecimento básico. Outros sites, como The Clothes Doctor, entram em um nível mais avançado, com instruções sobre "como consertar seu sutiã" ou "costure um remendo no seu jeans". Em português, uma rápida busca no YouTube por "dicas de costura" ou "conserto de roupas" leva a diversos canais com tutoriais em vídeo para iniciantes e profissionais da costura. Solomons aconselha a "assistir a vídeos específicos sobre o que você quer consertar. E divirta-se. Reúna tudo o que você precisa perto de você em um só lugar. Coloque uma música agradável e não tenha pressa. Assim, não será um trabalho. Será uma escolha." Faça remendos decorativos, consertando suas roupas de forma criativa com costuras em cores contrastantes, motivos bordados e adesivos. Eles eliminam a pressão de tentar atingirperfeição e são divertidos! "Tenho uma calça de tom azul escuro com um botão amarelo, porque não consegui encontrar um botão azul escuro para substituir o que foi perdido", conta Solomons. "Agora, eu simplesmente adoro aquele botão. Ele mudou toda a peça." A marca londrina Reaburn, dedicada ao design responsável e inovador, promove uma série de oficinas que convidam os participantes a projetar e customizar suas próprias roupas, utilizando retalhos do próprio ateliê. Mas, se isso ainda parecer difícil, "use os serviços de alguém que adore fazer remendos", aconselha Solomons. "Existem muitas pessoas por aí que estão mudando a forma como observamos os remendos, um ponto de cada vez." Os especialistas em conserto de roupas da Toast - uma marca popular preocupada com a ética - resgatam qualquer roupa da marca como parte de um serviço gratuito de "renovação". Já o site Reture Bespoke encaminha peças danificadas a recicladores jovens e talentosos. Janelle Hanna, consultora de design da consultoria de suprimentos sustentáveis White Weft, lançou um serviço para remendar e reparar jeans durante o lockdown. "Fiquei impressionada com a popularidade do serviço", afirma ela. "As pessoas não estão vindo com uma ou duas calças jeans. Elas estão trazendo cinco ou seis calças que não usavam há um, dois ou três anos, mas simplesmente não queriam jogar fora. As pessoas queriam opções para os reparos. E não sabiam que essas opções existiam." Tomar a decisão de consertar uma roupa muda profundamente nossa relação com ela. "Quando as pessoas decidem fazer um conserto, elas estão investindo naquela roupa", afirma Solomons, cujos reparos bordados agora decoram as roupas de dezenas de clientes. "As pessoas me trazem roupas que estavam nos seus guarda-roupas ou com suas famílias por muito tempo, que tiveram uma vida [de uso]. Quando eu acrescento algo a elas, elas passam a adorar essas roupas ainda mais. Isso é tudo para mim." Em um mundo de mercadorias produzidas em massa, com milhares de produtos sendo despejados pelas fábricas com exatamente a mesma aparência, todos os dias e a todo momento, prometendo facilidade e conveniência, isso é mesmo algo de especial. "Quando você faz um remendo decorativo em uma peça, ela se torna exclusiva", ressalta Solomons. "Isso muda a nossa relação com aquela roupa e estabelece uma conexão com ela. As pessoas que me consultam perceberam que suas roupas têm um valor e não um custo. E esse valor não tem preço." A sinergia entre Tessa Solomons e Orsola de Castro - a ideia da revolução silenciosa - é marcante. Castro escreve: "Hoje, quando surge a geração do colapso climático, a mensagem de que 'roupas amadas duram', compartilhada quando consertamos e alteramos nossas roupas, foi além da originalidade ao vestir. Ela se tornou uma declaração de que o ato de cuidar das nossas roupas estende-se ao cuidado com o nosso meio ambiente. Ela marca nossa gratidão valorizando o trabalho das pessoas que produzem as roupas que vestimos." E Castro conclui: "Mantenha com orgulho as roupas que você tem, reduza as novas compras ao mínimo e faça isso com aquele entusiasmo contagiante que irradia alegria. Porque tudo o que precisamos agora em maior quantidade são árvores, baleias, pássaros e abelhas - e não roupas."
2022-04-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61252550
sociedade
Como série 'Heartstopper' faz sucesso desafiando limites da representatividade LGBTQIA+ na TV
Os fãs da popular série de quadrinhos LGBTQIA+ de Alice Oseman, Heartstopper, provavelmente esperavam há meses pela sua adaptação para TV, que chegou ao Netflix em 22 de abril. Heartstopper conta a história de dois adolescentes, Charlie (Joe Locke) e Nick (Kit Connor), que se apaixonam um pelo outro em uma escola do ensino médio do Reino Unido, e seus amigos, Elle (Yasmin Finney), Tao (William Gao) e Isaac (Tobie Donovan). Charlie e Nick sofrem bullying e homofobia dos amigos de Nick. Elle, uma adolescente transgênero, mudou-se recentemente da escola para meninos, onde todos seus amigos estão, para a equivalente para meninas, depois de também ser alvo de provocações cruéis. Fim do Matérias recomendadas Finney conquistou muitos seguidores no TikTok, postando sobre suas experiências de ser uma jovem transgênero negra no Reino Unido, enfrentando dificuldades na escola. "Para mim, a escola era a mesma coisa. Sempre houve [essas] vozes de masculinidade tóxica que claramente não são educadas o suficiente. E mesmo que sejam, elas só querem... rir, mas há um ponto em que se cruza uma linha, e acho que é isso que Heartstopper destaca. Isso acontece todos os dias no ensino médio", diz Finney. "Na verdade, comecei o TikTok quando estava na minha segunda escola de ensino médio depois que saí da primeira porque sofri bullying. O que descobri é que as pessoas que me intimidaram no ensino médio não estão fazendo muita coisa útil com suas vidas agora. E eu estou realmente me saindo muito bem!" Locke, que fará o vestibular em algumas semanas, diz que teve "muita sorte" com sua experiência escolar. "Minha escola é ótima, e nunca sofri bullying. Quando você fica mais velho, as coisas realmente mudam porque muitas das pessoas que diriam coisas assim não estão mais lá ou as pessoas cresceram e perceberam que isso realmente não é importante, e as pessoas podem ser elas mesmas." Mas ele reconhece que não é fácil para todos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Em geral, no ensino médio, é muito difícil ser diferente de qualquer maneira. E, se você não se encaixa na norma de usar roupas esportivas e fumar cigarro eletrônico, é provável que seja visto como alguém diferente", diz Locke. "Acho que o que é bonito sobre o nosso programa é que ele celebra essas diferenças. Você pode pensar que você é o estranho, mas, na verdade, todos, exceto aquelas poucas pessoas 'ajustadas às normas' são os estranhos. E mesmo elas provavelmente são assim porque acham que é isso que têm que fazer para se encaixar." Ele acrescenta: "É tão triste para elas... porque foram condicionadas a sentir que é assim que eles devem ser para viver em nossa sociedade". A mídia social também tem papel importante, é claro - em Heartstopper, muitas das conversas estranhas ou mais delicadas entre os personagens ocorrem online. Embora possa ser um local de apoio, ganhar destaque nas mídias sociais também pode tornar uma pessoa alvo de abusos injustificados. Finney diz que você precisa ser ousado para se expor e saber quando dar um tempo. "Eu acho que você tem que correr riscos. Sempre soube que quero ser alguém que outras pessoas possam admirar, especialmente os jovens queer que não necessariamente sabem onde se encaixam na sociedade. Sempre adorei documentar minha experiência como pessoa trans desde os 15, 16 anos." (Ela agora tem 18 anos, assim como Locke). Tendo conquistado um conjunto de "seguidores incríveis nos últimos três anos", Finney se afastou do TikTok enquanto filmava Heartstopper, que é seu primeiro trabalho como atriz profissional. "Eu só queria uma pausa. Acho que, às vezes, você só precisa se afastar. Quando eu estava fazendo TikToks em 2019 e 2020, eu me comparava em alguns pontos com todos os outros. Eu só queria me concentrar em mim mesma e me certificar de que estou bem mentalmente", diz Finney. "Você só precisa ter uma mentalidade positiva nas mídias sociais e perceber que a maior parte não é real, a maior parte é falsa. Pode ser bastante avassalador. Mas aprendi a aproveitar isso... e isso definitivamente me tornou mais forte." Locke também acredita que a mídia social é uma "faca de dois gumes". "Por um lado, é muita interação e muita socialização. Por outro lado, pode ser avassalador. Há momentos em que eu só tenho que desligar meu telefone. É preciso estar ciente de seus limites", afirma o ator. Alice Oseman também deu um tempo de atualizar a série em quadrinhos Heartstopper na internet devido a "esgotamento e estresse intenso". "Alice é muito esforçada, e estou feliz que esteja dando um tempo. Tudo o que Alice fez é simplesmente mágico, e ver essa reação ao seu trabalho e ver os personagens ganhando vida é incrível." Locke me disse que Oseman estava no set todos os dias e era "como ter uma Bíblia de Heartstopper ali". Ele acrescenta: "Acho realmente incrível ter um programa queer voltado para um público mais jovem, e é um programa que acho que muitas pessoas gostariam de ter visto quando eram mais jovens." Finney está particularmente feliz em ver a si mesma - uma jovem negra trans - refletida em uma série de TV. "Atuar sempre foi algo que eu quis fazer, mas eu realmente não me via refletida na mídia, especialmente no Reino Unido." Um relatório recente da ONG GLAAD apontou que a representação LGBTQIA+ na TV dos Estados Unidos - inclusive em plataformas de streaming disponíveis em outros países - está em alta, com quase 12% de personagens regulares que são LGBTQIA+, um aumento de 2,8% em relação ao ano passado. Mas o estudo também descobriu deficiências e oportunidades perdidas de contar uma gama mais ampla de histórias sobre personagens LGBTQIA+. A análise investigou a diversidade geral de programas, incluindo aqueles em grandes plataformas de streaming como Netflix, Amazon, Apple+ e Disney+. "Foi uma loucura o quão incrível foi a resposta para Heartstopper e o quão necessária... Atores e atrizes trans estão na indústria. E estou muito feliz por fazer parte desse mundo." O debate sobre a autenticidade do elenco ainda está em curso - os papéis gays devem ser interpretados apenas por atores gays, por exemplo? Finney acha que eles deveriam. "É importante... para que a comunidade LGBTQIA+ possa participar. É sobre representação. Se você tivesse pessoas trans desempenhando papéis cis, seria mais justo, mas agora e por anos e anos tivemos pessoas cis interpretando personagens trans", diz a atriz. "Eddie Redmayne ganhou um Oscar por A Garota Dinamarquesa e depois se desculpou porque percebeu que o debate sobre inclusão é mais amplo", diz ela. Na verdade, Redmayne não se desculpou, mas disse que se arrependeu de ter assumido o papel. "Por tantos anos, especialmente pessoas trans, nós meio que fomos ridicularizados por meio do entretenimento. Pessoas queer, pessoas trans - nós existimos há gerações e milênios", diz Finney. "É sobre a indústria perceber que eles estavam errados e precisam dessa representatividade."
2022-04-28
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sociedade
Psicopatas: o que diz a ciência (e por que séries erram)
Todos os dias, milhões de americanos se enrolam nas cobertas para assistir a seus programas policiais favoritos. Seja FBI, Dexter, Mindhunter, Killing Eve, Law & Order ou qualquer outra de uma infinidade de séries de TV ou streaming semelhantes, eles atraem grandes audiências com seus retratos vívidos de vilões cujos comportamentos são incrivelmente cruéis. Confesso: faço parte desse público. Meus alunos até zombam do quanto eu, pesquisadora que estuda comportamento criminoso, assisto a séries de crimes. Justifico parte do meu tempo de TV como sendo trabalho, pesquisa de material para meu curso de graduação e para meus seminários sobre a natureza da mente criminosa. Mas também sou cativada pelos personagens desses dramas, apesar — ou por causa — de não corresponderem à realidade. Fim do Matérias recomendadas Um dos tipos de personagens mais comuns nas séries de crimes é o psicopata: a pessoa que comete assassinatos brutais, age de forma imprudente e senta-se friamente na frente de policiais. Embora os programas sejam obviamente ficção, seus enredos tornaram-se referências culturais familiares. As pessoas assistem ao agente Hotchner em Criminal Minds rotular qualquer personagem que seja perturbadoramente violento como "alguém com psicopatia". Eles ouvem o Dr. Huang em Law & Order: SVU (chamado no Brasil de Law & Order: Unidade de Vítimas Especiais) se referir a um jovem infrator que machucou uma jovem como "um adolescente com psicopatia" que ele sugere ser incapaz de responder a tratamentos. Tais retratos deixam os espectadores com a impressão de que os indivíduos com psicopatia são incontrolavelmente maus, incapazes de sentir emoções e incorrigíveis. Mas uma extensa pesquisa, incluindo anos de trabalho em meu próprio laboratório, demonstra que as concepções sensacionalistas de psicopatia usadas para conduzir essas narrativas são contraproducentes e simplesmente erradas. A psicopatia é classificada pelos psicólogos como um transtorno de personalidade definido por uma combinação de carisma, emoções superficiais, ausência de arrependimento ou remorso, impulsividade e criminalidade. Cerca de 1% da população em geral atende aos critérios de diagnóstico da psicopatia, o dobro da prevalência da esquizofrenia. As causas exatas da psicopatia não foram identificadas, mas a maioria dos estudiosos conclui que tanto a genética quanto o ambiente são fatores contribuintes. A psicopatia impõe um alto custo aos indivíduos e à sociedade como um todo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pessoas com psicopatia cometem duas a três vezes mais crimes em geral do que outras que se envolvem em comportamento antissocial e representam cerca de 25% da população encarcerada. Eles também cometem novos crimes depois de serem libertados da prisão ou liberados da supervisão a uma taxa muito maior do que outros tipos de infratores. Meus colegas e eu descobrimos que pessoas com psicopatia tendem a começar a usar drogas mais cedo e a experimentar mais tipos de substâncias. Há também algumas evidências de que pessoas com psicopatia tendem a não responder bem às estratégias terapêuticas convencionais. A realidade é significativamente mais sutil e encorajadora do que as narrativas sombrias da mídia. Ao contrário da maioria das formas como essas pessoas são retratadas, a psicopatia não é sinônimo de violência. É verdade que indivíduos com psicopatia são mais propensos a cometer crimes violentos do que indivíduos sem o transtorno, mas o comportamento violento não é um requisito para o diagnóstico de psicopatia. Alguns pesquisadores argumentam que os principais traços de psicopatia estão presentes em indivíduos que não apresentam comportamento violento, mas que tendem a comportamentos impulsivos e arriscados, tiram vantagem dos outros e mostram pouca preocupação com as consequências de suas ações. Esses traços podem ser observados em políticos, presidentes de empresas e investidores financeiros. Muitos programas de TV policiais, assim como muitos veículos mais sensacionalistas de notícias, associam a psicopatia à falta de emoção, principalmente de medo ou remorso. O personagem normalmente está parado calmamente sobre um corpo sem vida ou dando o clássico "olhar psicopata", e os espectadores estão acostumados a ver pessoas com psicopatia como quase robóticas. A crença de que as pessoas com psicopatia não têm emoção é difundida não apenas entre leigos, mas também entre psicólogos. Há um elemento de verdade aqui: uma pesquisa considerável descobriu que indivíduos com psicopatia apresentam uma capacidade reduzida de processar emoções e reconhecer as emoções dos outros. Mas meus colegas e eu estamos encontrando evidências de que indivíduos com psicopatia realmente podem identificar e experimentar emoções nas circunstâncias certas. No meu laboratório, estamos realizando experimentos que revelam uma relação complexa entre psicopatia e emoções. Em um estudo, examinamos a suposta falta de medo de indivíduos com psicopatia usando um simples teste de laboratório. Mostramos a um grupo de participantes a letra "n" e caixas coloridas em uma tela. Ver uma caixa vermelha significava que um participante poderia levar um choque elétrico; caixas verdes significavam que não. A cor da caixa, portanto, sinalizava uma ameaça. Um breve aparte: os choques não foram prejudiciais, apenas um pouco desconfortáveis, e este estudo foi aprovado pelo conselho de revisão de proteção de seres humanos. Em algumas tentativas, pedimos ao participante que nos dissesse a cor da caixa (forçando-o a se concentrar na ameaça). Em outras tentativas, pedimos ao participante que nos contasse se a letra era maiúscula ou minúscula (forçando-o a se concentrar na não ameaça), embora a caixa ainda estivesse exposta. Pudemos ver que indivíduos com psicopatia apresentaram respostas de medo com base em suas reações fisiológicas e cerebrais quando tiveram que se concentrar na ameaça de choque. No entanto, eles mostraram um déficit nas respostas de medo quando tiveram que nos contar se a letra era maiúscula ou minúscula e a caixa foi secundária a essa tarefa. Evidentemente, indivíduos com psicopatia são capazes de vivenciar emoções; eles apenas têm uma resposta emocional menos intensa quando sua atenção é direcionada para outra coisa. Esta é uma versão extrema do tipo de processamento que todos nós fazemos. Na tomada de decisões de rotina, raramente nos concentramos explicitamente na emoção. Em vez disso, usamos informações emocionais como um detalhe de fundo que informa nossas decisões. A implicação é que os indivíduos com psicopatia têm uma espécie de miopia mental: as emoções estão lá, mas são ignoradas se puderem interferir no alcance de um objetivo. Pesquisas em meu laboratório e em outros descobriram evidências adicionais de que indivíduos com psicopatia são capazes de experimentar e rotular emoções no contexto de observar cenas ou rostos, a dor de outros e experiências de arrependimento. Aqui, de novo, os indivíduos com psicopatia são capazes de processar a emoção quando se concentram na emoção, mas apresentam déficits quando a emoção é difícil de detectar ou é secundária ao seu objetivo. Muitos estudos mostraram que indivíduos com psicopatia são ótimos em usar informações e regular seu comportamento se for diretamente relevante para seu objetivo; por exemplo, eles podem agir de forma simpática e ignorar emoções para enganar alguém. Mas quando a informação está além de seu foco imediato de atenção, eles geralmente exibem comportamento impulsivo (como deixar um emprego sem ter um novo) e tomadas de decisão extraordinariamente ruins (como propagandear um crime quando são procurados pela polícia). Eles têm dificuldade em processar emoções, mas, ao contrário dos personagens comuns na televisão, eles não têm inerentemente sangue frio. A imagem de assassino destemido baseia-se em uma concepção científica ultrapassada de psicopatia. Em vez disso, parece que as pessoas com psicopatia podem acessar emoções — mas as informações emocionais são sufocadas pelo foco nos objetivos. Uma das falácias mais prejudiciais sobre a psicopatia — na ficção, nos noticiários e em parte da literatura científica antiga — é que ela é uma condição permanente e imutável. Essa ideia vai ao encontro do clichê do bem contra o mal, mas as pesquisas mais recentes contam uma história bem diferente. Traços de psicopatia diminuem naturalmente ao longo do tempo para muitos jovens, começando no final da adolescência até a idade adulta. Samuel Hawes, psicólogo da Florida International University, nos Estados Unidos, e seus colaboradores acompanharam mais de mil indivíduos desde a infância até a idade adulta, medindo repetidamente seus traços de psicopatia. Embora um pequeno grupo tenha mostrado níveis persistentemente altos de traços psicopáticos, em mais da metade dos meninos que inicialmente apresentavam altos níveis desses traços, isso tendia a diminuir ao longo do tempo, e eles não os apresentavam mais tarde na adolescência. Com a intervenção adequada, as perspectivas de melhoria se ampliam. Estamos descobrindo que jovens com traços de psicopatia e adultos com psicopatia podem mudar e responder a tratamentos adaptados às suas necessidades. Vários estudos documentaram a eficácia de tratamentos específicos projetados para ajudar os jovens a aprender a identificar e responder às emoções. Intervenções parentais que se concentram em aumentar a conexão emocional com o cuidador e ajudar os jovens a identificar emoções parecem reduzir sintomas e comportamentos problemáticos. Em uma série de experimentos, investigamos videogames projetados para treinar o cérebro de indivíduos com psicopatia, ajudando-os a melhorar a maneira como integram informações. Por exemplo, mostramos um rosto a um grupo de participantes e os instruímos a responder com base na emoção que estão vendo e na direção em que os olhos estão olhando, treinando-os para integrar todas as características do rosto. Ou jogamos um jogo no qual mostramos aos participantes uma série de cartas e vemos se eles conseguem notar quando mudamos as regras que definem a carta vencedora. Os participantes não são informados quando a mudança acontecerá, então, eles precisam aprender a prestar atenção às sutis mudanças contextuais à medida que avançam. Nossos dados preliminares mostram que tarefas baseadas em laboratório como essas podem mudar o cérebro e o comportamento de indivíduos com psicopatia. Tais estudos abrem a possibilidade de reduzir os danos sociais e pessoais causados ​​pela psicopatia. Acredito que a sociedade precisa aposentar os mitos de que os indivíduos com psicopatia são fundamentalmente violentos, sem emoção e incapazes de mudança. O comportamento de indivíduos com psicopatia é fascinante — tanto que não precisa ser embelezado para criar enredos dramáticos. Devemos trabalhar mais para ajudar os indivíduos com psicopatia para que possam perceber mais informações em seu ambiente e usar mais sua experiência emocional. A cultura pop pode ajudar em vez de atrapalhar esses objetivos. *Arielle Baskin-Sommers é professora assistente de Psicologia da Universidade Yale, nos Estados Unidos.
2022-04-28
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sociedade
Kawésqar, o idioma falado por somente 8 pessoas e que linguistas lutam para preservar
Entre os labirínticos arquipélagos austrais — onde os ventos, as chuvas e o frio não dão tréguas —, viviam os kawésqar. O grupo nômade passava grande parte do dia em suas canoas (ou hallef) percorrendo os canais entre o Golfo das Penas e o Estreito de Magalhães, cercados por densas florestas, em busca de leões marinhos, lontras, pássaros e moluscos para se alimentar. Os homens eram responsáveis ​​pela caça em terra (que incluía o icônico huemul) e no mar, enquanto as mulheres coletavam mariscos em mergulhos e cobriam a pele delas com gordura de leão-marinho. Como os demais povos nativos que povoaram a América há milhares de anos, os kawésqar tinham uma língua própria, profundamente marcada por sua geografia. Isso explica, por exemplo, por que eles tinham 32 maneiras de dizer "aqui". Mas, com o passar do tempo e a chegada de colonos nesta parte sul do Chile, chamada Patagônia Ocidental, o grupo étnico passou por uma transformação brutal. Não só abandonou sua vida nômade — se estabeleceu em Puerto Edén, uma pequena aldeia localizada ao sul do Golfo das Penas — mas também deixou sua língua em segundo plano. Fim do Matérias recomendadas Isso ocorreu porque aprender espanhol se tornou uma necessidade para eles e, aos poucos, chegou-se a um ponto crítico: hoje, apenas oito pessoas falam a língua original. Quatro delas são idosos. Três nasceram na década de 1960 — a última geração a adquirir o idioma desde a infância — e apenas um que não faz parte da etnia: Oscar Aguilera. O etnolinguista chileno de 72 anos tenta salvar essa língua há quase 50 anos, registrando o vocabulário, gravando arquivos de som por horas e documentando o léxico. Agora, há outra pessoa, que não é da comunidade, interessada em aprender sua gramática: a parceira do presidente chileno, Gabriel Boric, a primeira-dama, Irina Karamanos. A líder feminista entrou em contato com Aguilera para pesquisar mais sobre o assunto. Para ela, os chilenos têm uma relação "ruim" com suas comunidades e povos indígenas, e aprender a língua é uma forma de se aproximar deles. Mas que particularidades essa língua nativa tem? Qual é a sua origem e as suas características mais importantes? Linguistas e pesquisadores sempre tentam responder a mesma pergunta: de onde vêm as línguas dos povos e qual é sua verdadeira origem? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No caso do kawésqar — assim como de muitas outras línguas indígenas — a resposta ainda não está clara. Isso é explicado, em parte, porque ela é considerada uma língua "isolada" ou "não classificada". Ou seja, não faz parte de uma família linguística nem tem vínculos com nenhuma outra língua viva (como, por exemplo, o espanhol, que vem do latim e faz parte das línguas românicas). Por estar "isolada", é mais difícil descobrir de onde vêm suas palavras, estrutura e gramática. Embora acredite-se que os kawésqar tenham habitado a Patagônia Ocidental há cerca de 10 mil anos, a primeira evidência conhecida de sua língua aparece apenas entre 1688 e 1689, registrada pelo aventureiro francês Jean de la Guilbaudière. De acordo com o Museu Chileno de Arte Pré-Colombiana, no século 19 sua população chegou a 4 mil indivíduos, e a maioria falava a língua ancestral. No final do século 19, no entanto, sua população caiu drasticamente para 500 pessoas, e depois para 150 na década de 1920. Atualmente, existem cerca de 250 kawésqar na região de Magallanes, mas são monolíngues — falam apenas espanhol — e não a língua de seus ancestrais. Por suas características morfológicas, o kawésqar é uma língua aglutinante (como o turco e outras) e polissintética. Ou seja, tem "palavras, expressões ou frases" que não podem ser traduzidas para o espanhol com uma única palavra. "Não existe equivalência uma a uma, como, por exemplo, a table, em inglês, e mesa, em espanhol", explica Oscar Aguilera à BBC News Mundo. Apesar do amplo contato dos kawésqar com os colonos, eles relutam em aceitar algo dos espanhóis. Dessa maneira, eles criaram sua próprias palavras para chamar, por exemplo, os dispositivos que estão comprando (como a televisão ou o telefone). As poucas palavras que foram adotadas do espanhol sofreram uma "nativização", uma transformação para a fonética kawésqar. É o exemplo de "barco", que se diz jemmáse ou também wárko. O "b" em espanhol é substituído pelo "w", já que o som "b" não existe em kawésqar. Além disso, há um lado cultural que, segundo Aguilera, "é notavelmente diferente da forma como nos expressamos". "Se o kawésqar não tem certeza do que está dizendo, ele não diz. Ele sempre usa o condicional. Culturalmente, eles rejeitam a falta de veracidade, isso é sancionado pelo grupo. A pessoa que mente se destaca negativamente entre eles", explica. Por exemplo, os kawésqar nunca diriam que tal pessoa ligou de Londres. Como eles não têm certeza de que essa pessoa estava em Londres (porque não o veem), eles diriam "ele teria me ligado" de Londres. Sendo falada por apenas oito pessoas, ela está entre as línguas que a Unesco considera em risco de extinção. "O problema é que, em linhas gerais, não é uma língua prática. É melhor aprender espanhol ou estudar inglês", diz Aguilera. Segundo o especialista, uma das razões que explicam a penetração tão forte do espanhol entre os kawésqar é a comercialização de seus produtos com os novos habitantes da região. Além disso, segundo o especialista, eles se sentiram discriminados pelas cidades vizinhas, como os chilotes (habitantes da ilha de Chiloé). "Os chilotes os desprezavam e até riam de como falavam sua língua. Então, decidiram não falar mais o idioma em público, apenas em casa", explica o linguista. O Estado do Chile também não priorizou seu resgate ou sobrevivência. Até hoje, não há incentivos suficientes para revitalizar a língua. A única escola em Puerto Edén, por exemplo, ensina em espanhol. "Há algumas pessoas que estão se esforçando para aprender o idioma, mas a falta de continuidade e persistência, além de ser um idioma gramaticalmente tão diferente do espanhol, dificulta para eles", diz Aguilera. No inverno de 1975, Oscar Aguilera embarcou em uma aventura que mudaria sua vida para sempre. Sendo um jovem inexperiente, recém-formado em Filologia Clássica, Germânica e Linguística na Universidade do Chile, decidiu viajar para Puerto Edén, local onde vivem atualmente os kawésqar. "Fiquei muito impressionado porque eles tinham pintado um quadro completamente diferente para mim. Imaginei que encontraria pessoas vestidas com peles, quase em trapos, e morando em cabanas icônicas. Mas não, eles moravam em casas comuns e se vestiam como eu", diz. Nessa viagem — que durou todo o inverno — conheceu a família Tonko, que o ajudou a começar a gravar o idioma, compartilhando com ele longas jornadas de gravação. No ano seguinte, publicou um primeiro léxico que perdura até hoje. O fascínio de Aguilera pelos kawésqar era tanto que ele sempre encontrava motivos para voltar. E foi assim que ele decidiu embarcar em uma segunda expedição, da qual retornou com dois membros da comunidade para a casa dele em Santiago, onde morava com os pais e a avó. "Eles moraram conosco por quatro meses. Minha família os recebeu bem, eles os aceitaram", conta. Na época, Aguilera era professor do Departamento de Filosofia da Universidade do Chile. Todas as tardes, quando as aulas terminavam, ele ficava com os dois kawésqar gravando parte do léxico e registrando informações etnográficas. Depois, todos voltaram juntos para Porto Eden. "Gostava de ir porque a língua de uma comunidade tem um componente cultural muito importante. Por isso, me dediquei não só a salvar a língua mas também ao resgate cultural que implica muito mais, todo o modo de vida e o próprio testemunho deles", explica . A maioria dos kawésqar que ele conheceu nessas viagens falava espanhol, mas com graus variados de fluência. Os mais velhos, por exemplo, costumavam ter mais interferência da língua materna, cometendo erros como não diferenciar o singular do plural. O acadêmico reconhece que se apaixonou pelo povo. "Fiz o contrário do que os livros recomendavam para um pesquisador: 'Você pega a informação, descreve a linguagem e vai embora'. Envolvi-me com a comunidade", diz. Na década de 1980, a relação entre Oscar Aguilera e os kawésqar se aprofundou ainda mais quando ele decidiu adotar duas crianças da comunidade para receber uma boa educação em Santiago. As crianças pertenciam à família Tonko. No total, havia oito irmãos. Um deles, José, adorava ler. "Com a permissão dos pais, comprei uma passagem para Puerto Montt e fui procurá-lo para ir a Santiago. Ele foi matriculado na escola, o Liceu Alessandri, onde eu também estudei", conta. Quatro anos depois, o irmão de José, Juan Carlos, também foi morar em Santiago com Aguilera. Todos moravam juntos em uma casa que o acadêmico alugou no bairro da Providência. "Eu os adotei. A família deles foi muito boa comigo, sempre me acolheu como se eu fosse parte deles. Então, foi realmente uma adoção mútua." Quando completaram 18 anos, José e Juan Carlos entraram na universidade. O primeiro estudou Serviço Social e Antropologia, e o segundo, jornalismo. Atualmente, os irmãos — que têm cerca de 60 anos — moram na cidade de Punta Arenas, assim como Aguilera, que ministra seis cursos na Universidade de Magallanes. "Até hoje, eles são minha família. É como se fossem meus filhos. Eles cuidam de mim e eu cuido deles". Ambos trabalharam com ele na árdua tarde de resgate da língua. José é coautor de diversas publicações — como "Gente de los canais" (2019) — e colaborou na criação de um dicionário kawésqar-espanhol, que ainda não terminou. Além disso, entre 2007 e 2010, eles escreveram um texto e registraram um arquivo de som que hoje está na Universidade do Texas, em Austin, nos Estados Unidos, e na James Cook University, na Austrália. No entanto, o linguista acredita que ainda há muito a ser feito. "Por trás das línguas, há muito conhecimento e por isso elas devem ser preservadas. Pois abrigam informações únicas sobre o ambiente onde vivem as pessoas que a falam", afirma. Olhando para o futuro da língua, a esperança está na futura primeira-dama, Irina Karamanos. Talvez o interesse de Irina, revela, realmente ajude a revitalizar a linguagem daqueles que o linguista considera a verdadeira família dele.
2022-04-28
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sociedade
'Abri mão de carreira no auge para viver minha verdade', diz mulher trans que foi cantora gospel
Jotta A vivia o auge da carreira musical no meio gospel. Acumulava milhões de visualizações em seus vídeos em diversos países, tinha fã-clubes, já havia recebido indicação ao Grammy Latino e era sensação em eventos evangélicos. Um fenômeno que ecoava em rádios do Brasil e também em outros países latino-americanos, por suas diversas músicas gravadas em espanhol. Era a história de superação da criança que nasceu no município de Guajará Mirim, em Rondônia, enfrentou dificuldades ao se mudar para São Paulo em busca do sonho de viver da música e alcançou o sucesso. Mas isso não era sinônimo de felicidade para ela. Em meio à pandemia de covid-19, com shows adiados e sem perspectiva sobre a retomada da rotina, passou uma fase que define como de "muita solitude", olhou para si e decidiu que não queria mais viver daquela forma. "Precisei ficar a sós comigo mesma para provar a roupa que eu queria ou poder colocar o vestido que eu queria", diz à BBC News Brasil. Nesse período, decidiu que precisava se conhecer melhor. O primeiro passo foi abandonar a música gospel, ela conta. Fim do Matérias recomendadas "Tive que abrir mão de uma estabilidade, de uma carreira construída, para viver a minha verdade. Digo abrir mão porque viver a verdade ainda é um tabu muito grande. Para que eu pudesse buscar o autoconhecimento, tive, de certa forma, que abrir mão de toda a comodidade que uma carreira brilhante me trouxe", diz. Dois anos depois, iniciou o processo para alterar os documentos para o gênero feminino. O nome que no passado era artístico fará parte de seus registros oficiais: Jotta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O passado e o presente de Jotta são conectados principalmente pela atividade que ela considera que a mantém viva: a música. A carreira musical dela começou na igreja evangélica, quando ainda era muito nova. "A igreja é um local de muita musicalidade, eu ouvia muita música e isso despertou um desejo muito grande. Meus pais viram que talvez eu tivesse talento e me incentivaram muito", relembra. Na infância, costumava ouvir e cantar música gospel - e o talento chamava a atenção. Aos seis anos, gravou o primeiro CD. Quando a família se mudou para São Paulo, Jotta se inscreveu no programa de calouros do apresentador Raul Gil. Ela, que estava no início da adolescência, venceu a disputa e se tornou conhecida nacionalmente. "Depois disso, recebi inúmeros convites para gravar CD em inglês ou em espanhol e nunca mais parei", diz. Em 2014, o seu segundo álbum foi indicado ao Grammy Latino na categoria de música cristã em língua portuguesa. Naquele ano, o prêmio foi vencido pela cantora brasileira Aline Barros. Ao longo da carreira gospel, Jotta foi responsável por inúmeras músicas de sucesso em português e espanhol. No YouTube, os vídeos antigos da artista acumulam milhões de visualizações - um deles com mais de 76 milhões. "Vivi muitos momentos que posso dizer que foram especiais na minha carreira, momentos de muito status em que cheguei a lugares altos que eu nunca imaginei. Eu sou uma pessoa nortista, de uma família que não tinha uma condição financeira boa e conquistei várias coisas incríveis", avalia a artista. E foi justamente no auge da carreira, com possibilidade de crescer ainda mais, que Jotta A decidiu mudar a própria história. "Eu percebi que precisava fazer por mim mesma, não fazer pela minha carreira, não fazer por todos aqueles prêmios que eu poderia conquistar pela minha música, mas por mim mesma. Então foi o momento em que entendi que, de fato, precisava me autoconhecer", comenta. Enquanto o mundo enfrentava a dura batalha contra a covid-19, Jotta A usou o período de isolamento social para viver uma fase de busca por respostas sobre o próprio futuro. "A pandemia foi um momento difícil para muitas pessoas e perdi pessoas importantes na minha vida. Mas também foi um momento em que eu tinha uma agenda lotada, cancelaram tudo e eu não sabia o que fazer. Eu precisava me libertar. Foi quando falei: 'puxa, talvez esse seja também um momento de solitude no qual posso decidir de vez o que fazer'", diz. Hoje, aos 24 anos, a artista avalia que sempre se enxergou como uma mulher transgênero. "Com certeza desde criança sempre me entendi como uma mulher, mas nunca tive oportunidade de exteriorizar tudo isso", reflete. Ela desconhecia a realidade de mulheres trans e só teve o primeiro contato com uma quando tinha cerca de 16 anos. "Até então, tudo o que eu tinha à vista era a experiência cisgênero (pessoas que se reconhecem com o gênero que nasceram), então pensava que nunca seria uma mulher porque nunca teria um útero ou uma vagina. Esse meu primeiro contato com uma mulher trans me fez ver que eu não preciso ser uma mulher cisgênero para ser uma mulher na sociedade. Então, ali me senti representada", conta. Mas Jotta diz que ainda tinha muitos receios. "Eu nunca pude expressar o meu gênero. Para mim, sempre foi uma coisa que tive que privar das pessoas porque tinha medo do que poderia acontecer. Infelizmente, o preconceito deixa a gente acanhada para desbravar esse mundo de autoconhecimento." Quando iniciou a transição de gênero, a cantora decidiu falar sobre o assunto aos poucos por medo da exposição. O principal temor era como o público religioso e conservador encararia o fato de ela ser uma mulher trans. "Primeiro eu falei para as pessoas que eu era uma pessoa não-binária (que não se identifica no gênero masculino ou feminino). Foi uma maneira que considero que pode ser mais leve. Foi o primeiro passo. E só agora, há alguns dias, estou podendo falar para as pessoas quem eu sou de verdade", diz. Foi em 11 de abril que Jotta revelou ser uma mulher transgênero, por meio de uma publicação no Instagram na qual aparece em uma rua de São Paulo com um visual diferente do habitual: tranças na altura do ombro, roupas femininas, salto alto e uma bolsa no ombro. "Essa sou eu indo ao cartório para fazer a primeira solicitação de retificação do meu nome de registro", escreveu no início do post. Na publicação, explicou que escolheu manter o nome artístico por "ser uma maneira de estar atrelada sempre" à própria história. "Recomeçar não é fácil, mas estou feliz, por estar vivendo todo esse processo. Feliz em ter tantas pessoas que me apoiam e acreditam em mim nessa nova etapa", concluiu no texto na rede social. E ali começou publicamente a vida da Jotta, que passou a compartilhar inúmeras fotos do seu cotidiano. "Depois do momento de solitude tão especial, que começou dois anos atrás, agora estou podendo externar tudo isso e está sendo incrível", diz a cantora à BBC News Brasil. Nesses últimos anos, ela fez terapia, mudou o próprio visual algumas vezes e recentemente deu início à terapia hormonal. O procedimento para mudar os documentos ainda está em andamento. "Fiz a petição no cartório de São Paulo, mas antes tive que receber minha certidão (de nascimento) que veio de Rondônia", explica sobre o processo, que ainda não tem prazo para conclusão. As recentes publicações de Jotta A nas redes sociais geraram uma onda de carinho, mas ela também foi alvo de incontáveis ofensas e comentários preconceituosos. Muitos deles partem de pessoas que afirmam que ela se perdeu de Deus e precisa retornar à religião. "Nós vivemos em um mundo onde as maiores religiões são catequistas. O que isso significa? Uma religião catequista que tem um intuito missionário, ela tenta te convencer a acreditar em um Deus verdadeiro e normalmente esse Deus verdadeiro é o dela. E eu sempre, lendo a bíblia, vi que Cristo não era um ser humano catequista. Ele nunca quis forçar ninguém a nada, mas a mensagem dele convencia porque era uma mensagem de amor e atraía todas as pessoas", diz Jotta. "O que eu sinto hoje de mais difícil é a falta de sensibilidade das pessoas de entenderem que cada um vive o seu mundo. E muitas pessoas que me acompanham desde criança às vezes tentam me forçar a uma realidade que não é a minha. Isso acaba conflitando em muitos assuntos pessoais que todos nós temos, como, por exemplo, assuntos de fé ou assuntos sociais. Eu acho que vamos viver em uma comunidade com mais empatia quando entendermos que vivemos em uma sociedade e devemos socializar, mas que temos vidas diferentes", acrescenta. Atualmente, ela não tem religião, mas diz respeitar todas. "A minha família toda é da igreja, então de certa forma ainda é o meu convívio. A minha avó sempre ora por mim quando a vejo e eu recebo isso com muito apreço, com muito carinho. Mas eu acho que posso viver a fé hoje sem nenhum vínculo religioso. Eu posso viver de uma maneira mais natural", afirma. Entre os familiares, Jotta diz que tem tido paciência para entender que a compreensão sobre a transexualidade é "um processo que leva tempo", porque "não é algo somente pessoal, ela acaba atingindo as pessoas ao seu redor". "Hoje eu tenho uma afinidade e um carinho, uma empatia muito grande pelos meus pais, apesar de não termos concordância em alguns assuntos", pontua. O principal apoio familiar nesse período, diz, é o da irmã. "Os meus sobrinhos me chamam de tia desde o momento em que eu falei para eles. Para mim esses mínimos detalhes já são um grande salto", conta. Jotta, que morava no Rio de Janeiro, recentemente se mudou para São Paulo para focar na nova fase da carreira. Agora, ela canta pop e nos próximos dias irá lançar uma nova música. "Eu acho que esse momento tem sido muito libertador também artisticamente. Estou podendo escrever o que quero e em um período próximo vou lançar um álbum que vai contar sobre toda essa minha transição. Acho que vai ser legal para o público também entender artisticamente o que estou vivendo", diz. Em um país em que a violência afeta duramente a população LGBTQIA+, Jotta A quer ser referência no cenário cultural e mostrar que é possível ser feliz sem precisar se esconder. "Eu quero que as pessoas, de alguma forma, sejam valorizadas através das suas próprias histórias e que elas se identifiquem com a minha verdade", afirma.
2022-04-28
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61250795
sociedade
A jornada do sobrevivente de câncer cubano que chegou aos EUA em uma prancha de windsurfe
O Estreito da Flórida é conhecido como "corredor da morte" porque dezenas de milhares de pessoas se afogaram em suas águas. Atravessar os mais de 140 quilômetros que separam Cuba e Estados Unidos já é um desafio difícil e perigoso em uma lancha ou em uma embarcação pequena. O cubano Elián López Cabrera conseguiu fazer isso em uma prancha de windsurfe. Ele não é o primeiro a fazer isso (pelo menos sete casos foram documentados anos atrás), mas sua façanha é inusitada: ele fez usando uma bolsa de ostomia, consequência de uma cirurgia para tratar o câncer de cólon. Elián, que é mergulhador e ex-windsurfista profissional, pulou no mar em 23 de março e calculou que levaria 8 horas para concluir o seu objetivo. No entanto, as coisas se complicaram e sua jornada se tornou um pesadelo de mais de 37 horas que quase lhe custou a vida. Fim do Matérias recomendadas Esta é a história dele. Me chamo Elián López, tenho 48 anos e sou de Varadero, em Cuba. Até o mês passado, eu vivia lá e era instrutor de mergulho recreativo para turismo. Desde pequeno pratico atividades náuticas de todo tipo: caça submarina, mergulho, windsurfe, vela e kitesurfe. Em 2008 fui diagnosticado com um tumor no reto inferior. Como atleta de alto desempenho, foi uma notícia muito forte. Passei por quimioterapia, radioterapia e três grandes cirurgias no abdômen até que em 2009 acabei com uma colostomia permanente. Quando o cirurgião me disse que precisaria usar uma colostomia, a minha maior preocupação era se eu poderia colocar os arnês para praticar esportes aquáticos. Ele disse que não teria problema, era só colocar o equipamento e deixar a bolsa de colostomia dentro. Não passou nem um ano e voltei ao kitesurfe, que exige um pouco menos fisicamente. Um amigo me orientou a fazer uma alteração: em vez de uma bolsa grande, poderia colocar algumas menores e mais confortáveis, o que daria mais liberdade para colocar a roupa de mergulho ou os arnês e praticar windsurfe e kitesurfe, e até mergulho e caça submarina. Não há nenhum desses insumos para cuidado e manutenção da colostomia em Cuba, nem mesmo as bolsas tradicionais. Minha mãe era quem confeccionava esses itens para mim. Ela fazia isso em sua máquina de costura. Há muitas coisas que tornam a vida com essa condição bastante difícil. Outras condições têm soluções alternativas, a colostomia não. Conheço pessoas em Cuba que usam um saco plástico com fita adesiva e é terrível por causa do mau cheiro e da irritação. Esse foi um dos principais motivos que me levaram a tomar a decisão de tentar vir aqui para os Estados Unidos. Mas, além das deficiências materiais da questão da colostomia, fiz isso pelo futuro e pelo desenvolvimento profissional e intelectual da minha filha. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Houve um momento em que eu disse: vou subir na prancha e vou seguir. Planejei durante um ou dois meses, no máximo. Alguns dizem "se você planeja demais, não faz", e provavelmente teria sido assim. Primeiro você vê a ideia, é possível? Bom, sim, eu acho que é possível. E você começa a fazer estudos um pouco mais específicos, da velocidade do vento, do curso e da data. A primeira coisa foi escolher o material. Escolhi a prancha onde minha filha, minha esposa e alguns amigos aprenderam a surfar, pois é uma prancha que flutua, bastante larga e estável. Apesar de que seria prejudicado na velocidade se houvesse um imprevisto, como de fato ocorreu, eu poderia descansar um pouco nela, quase me deitar. Eu tinha outras pranchas muito mais rápidas, leves e menores, mas essa funcionou como a minha salvação. Na verdade, graças a ela podemos nos falar hoje. O meu material não era mais tão novo, era quase como eu, chegando ao fim da vida útil (risos), então incluí peças de reposição para o que pudesse falhar: um mastro, uma quilha... tudo o que não fosse algo excessivamente grande ou impossível de transportar. Quando cheguei à praia naquele dia, vi que o vento não estava como a previsão havia dito. No dia anterior havia um vento muito forte, muito bom, mas deixei passar e disse: não, meu dia é amanhã. O sol ainda não tinha nascido e vi que o vento estava fraco. E eles me perguntaram, você vai sair assim? Isso não é o que esperávamos. E eu disse, sim, vou sair assim. E talvez se eu não tivesse saído naquele dia nunca teria saído. Porque se você começar a considerar os riscos, há muita coisa que pode dar errado: você está sozinho, não tem comunicação, não tem ninguém para te resgatar... A primeira etapa foi sair das águas territoriais de Cuba sem ser perseguido pelos "guardas de fronteira". Essa fase foi bastante estressante, pois devido à baixa força do vento demorou muito tempo. Também encontrei alguns navios grandes e tive que me esconder e não estava indo tão rápido quanto gostaria. Quando me afastei, veio a outra parte. As condições do mar no estreito entre a costa norte de Cuba e o sul da Flórida são muito complicadas. As ondas grandes não me preocupam, elas são definitivamente o que buscamos neste esporte. O problema é a desordem que há no mar, que você diz: mas o que está acontecendo? Parece um rio em alguns lugares porque a corrente vem de uma direção e a 500 metros vem de outra. E então o vento foi diminuindo ainda mais. Às vezes é normal que isso aconteça por volta do meio-dia, mas as horas foram passando e continuava assim. A realidade de que não chegaria em um dia ficou cada vez mais clara. Felizmente, por volta das 15h o vento começou a aumentar bastante e isso foi como uma injeção de esperança. Com muita adrenalina, percorri uma grande distância em um tempo razoável. Isso me trouxe pra perto da costa dos Estados Unidos. Percebi que seria inevitável que eu pegasse a noite, mas eu estava a uma distância em que com aquela velocidade do vento seriam necessárias apenas algumas horas para concluir a travessia no dia seguinte. À noite não pude navegar porque o estado do mar piorou e como há pouca visibilidade, poderia tropeçar e cair. E se eu levasse algum golpe forte seria muito complicado, porque estava sozinho e não havia ninguém para me ajudar. Deitado na prancha, descansei um pouco, mas dormir era impossível, nem mesmo relaxar, porque estava à mercê do vento, das ondas e tinha que estar puxando a corda com uma mão. No meio da noite, uma onda me jogou na água, perdi os meus óculos e isso também dificultou a leitura do GPS. Muitas coisas pequenas foram ocorrendo e me levaram a um cenário complicado, a algo sério que quase terminou muito mal. Perdi parte da minha reserva de água. Ao amanhecer, quando retirei a última garrafa que restava e fui tomar um gole, ela estava contaminada pela água do mar. Durante aquela manhã, o vento afrouxou muito e mudou um pouco de direção. A corrente vinda do Golfo me moveu um pouco ao norte do meu rumo planejado, mas ao mesmo tempo me aproximou um pouco da costa. No entanto, como o vento mudou, já não conseguia mais manter seu curso até o ponto mais próximo da costa; então tive que puxar como uma tangente para outro ponto mais distante e um pouco mais difícil de começar. Felizmente, depois de navegar por um tempo no segundo dia, o telefone que trouxe com um cartão de uma linha dos EUA começou a receber notificações. Percebi que estava com cobertura de rede e comecei a escrever para alguns amigos sobre a minha situação. Eles me pediram para avisar a guarda costeira para que pudessem me resgatar e eu disse que não seria uma boa ideia. Existia a possibilidade de eu ser devolvido a Cuba e tudo voltar ao zero, ou pior ainda, porque isso provavelmente significaria perder meu emprego e estar marcado pelas autoridades. Eu disse: vou continuar tentando, acho que consigo. Houve momentos em que pensei que ia morrer, porque olhava à minha volta e não havia nada, e mesmo tendo comunicação via que não vinha nenhum tipo de socorro e fiquei muito preocupado com a minha condição física. Algo tão simples como ficar em pé sobre a prancha e tirar a vela da água foi muito difícil para mim. Apesar disso, consegui, tirei a vela e naveguei alguns metros até perder o equilíbrio e cair na água. Com grande esforço físico, sem água ou comida, com progresso muito lento à custa de grande esforço, percebi que não seria possível. Pedi que chamassem a guarda costeira. Quando o barco chegou, uma pessoa se identificou em espanhol: somos da Guarda Costeira dos EUA, viemos para ajudá-lo, você precisa de atendimento médico. Ao ver que seria encaminhado para a terra e iriam me levar a um hospital, comecei a perceber que talvez houvesse a possibilidade de ficar nos Estados Unidos. Na ambulância, a enfermeira me disse: mas o que é isso que você tem aí? Ela disse que a minha colostomia era uma espécie de remendo do qual ela nunca tinha visto. Expliquei que era algo que minha mãe fazia. E ela disse: mas a sua mãe é enfermeira? E eu disse que a minha mãe é uma mãe, uma mãe de Cuba, que precisa estar criando, que tem que estar inovando e buscando soluções para seus filhos. Depois de concluir os exames e ao observar que eu estava respondendo bem ao tratamento, fui transferido do hospital para o centro de detenção da patrulha de fronteira. Aí ocorreu o processo normal: impressões digitais, DNA, fotografia e uma breve entrevista. Por fim, me liberaram sem dar mais explicações. Agora a primeira coisa que quero é regularizar a minha situação e começar todos os procedimentos para poder trabalhar com algo relacionado à náutica, talvez mergulho, em uma embarcação, em uma escola de windsurfe ou de kitesurfe, dando aulas ou alugando equipamentos. Trazer a minha esposa e a minha filha é a minha prioridade número um. A minha esposa é minha mão direita, esquerda e ambos os pés. Ela é a minha enfermeira, a minha nutricionista. Ela é a minha companheira de vida durante a minha doença, nos anos seguintes e nessa última loucura. O que eu mais desejo é que ela esteja comigo e que nossa filha esteja aqui conosco também, porque ela foi o meu maior incentivo para fazer isso. O meu sonho é que a minha filha tenha a oportunidade de ter um futuro diferente em um país onde as coisas são muito diferentes do país onde ela está vivendo, e que ela esteja em um lugar em que possa se desenvolver como pessoa, como profissional, e levar uma vida diferente daquela que tínhamos em Cuba.
2022-04-22
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61184459
sociedade
Vídeo, O faxineiro das casas de pessoas que morrem sozinhas na Coreia do SulDuration, 5,37
Kim Wan é um faxineiro que limpa os últimos traços deixados pelos mortos na Coreia do Sul. E, na maioria das vezes, de pessoas que morrem sozinhas. “O lugar da morte é uma caixa de Pandora. Eu não sei o que está esperando dentro da porta”, descreve ele. Já houve casos de lixo empilhado até o teto, barracas espalhadas pela sala e, frequentemente, remédios contra a depressão. Ao limpa os rastros deixados por aqueles que morreram sozinhos, Wan se depara com a dor que vivenciaram no final de suas vidas. Kim publicou um livro chamado "Limpando a casa dos Mortos", baseado em suas experiências de encontro com solidão, suicídio e outros males da sociedade moderna – e em um país em que ser sozinho é cada vez mais comum. Confira no vídeo. Produção, imagens e edição: Jungmin Choi, da BBC News Coreia.
2022-04-22
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61196836
sociedade
'Fui obrigada a rezar para tirar o demônio': o duro relato de transexual submetida à 'cura gay'
"Meus pais me levaram a uma igreja católica, onde passei por exorcismos que duraram horas e no final me perguntaram se eu ainda era gay". É assim que Danne Aro Belmont relembra sua experiência traumática na "terapia de conversão gay", o processo pelo qual passou para tentar mudar sua orientação sexual ou identidade de gênero. "Jogaram cinzas em mim e me disseram que meu espírito estava marcado e precisava ser limpo", diz a colombiana, hoje com 29 anos. Danne afirma que seus pais a "tiraram do armário" aos 11 anos quando ela sequer sabia o que significava ser gay e era conhecida pelo nome masculino que recebeu ao nascer. "Eu só sabia que gostava de outros garotos e que queria coisas diferentes daquelas que meus irmãos queriam", diz em entrevista à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC). Fim do Matérias recomendadas "Eles ouviram uma conversa que eu tive com um amigo, nos interromperam e logo começaram a fazer muitas perguntas", completa. Ao confirmar que o filho era homossexual, os pais de Danne começaram uma busca por informações sobre o tema e consultaram vários especialistas. "Diziam para eles que a minha carga hormonal estava muito baixa e me fizeram tomar pílulas para aumentar meu nível de testosterona, ou diziam que era assim porque a minha mãe me mimava muito ou que talvez tivessem me estuprado, embora isso nunca tenha acontecido", diz. Após descartar diversas hipóteses, os pais dela aplicaram uma série de "processos de correção sexual" por meio da religião e da espiritualidade. Uma psicóloga cristã foi a responsável por fornecer as informações iniciais sobre o tema aos pais de Danne. Eles não entendiam muito bem em que consistiam os tratamentos, mas aceitaram a "ajuda" e foi aí que começou o martírio de Danne, que tinha 16 anos na época. Ela é uma das muitas pessoas da comunidade LGBTQIA+ que foram forçadas a participar da chamada terapia de conversão, que ainda é realizada em muitos países, inclusive naqueles onde foi proibida. No Brasil, há proibições dessa prática quando é relacionada à psicologia. A "cura gay", como é conhecida por aqui, é proibida pelo Conselho Federal de Psicologia desde 1999. Em 2020, o Supremo Tribunal de Justiça (STF) suspendeu uma decisão judicial que abria brecha para permitir que psicólogos praticassem esse tipo de intervenção. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Certa vez, diz Danne, os pais a chamaram para acompanhá-los em algumas tarefas de rotina. Ela ficou surpresa quando eles foram a uma igreja, pois sua família "nunca foi muito católica". "Os pastores já sabiam tudo sobre mim. Eles me levaram ao púlpito e começaram a orar por mim e por outras pessoas que estavam lá", conta. "Eu vi como os outros tocavam suas cabeças e as levavam para trás. Logo agarraram a minha cabeça também e tentaram puxá-la para trás, mas eu não tinha vontade de ir a nenhum lado. Foi muito estranho", se recorda. "Então eles me perguntaram se eu ainda era gay e se o espírito havia deixado meu corpo". Essa primeira "terapia" durou pouco mais de uma hora. Ela lembra que a sessão a deixou muito cansada e que lhe explicaram que isso ocorreu porque "os espíritos haviam curado seu corpo e eliminaram os demônios". "É como uma lavagem cerebral. No final você acaba acreditando que há algo ruim dentro de você e que estão limpando você de alguma coisa", explica. Ela decidiu dizer a eles que não era mais gay. "Eu menti para sair de lá. Eu sabia que, se dissesse que ainda era gay, o martírio duraria muito mais", conta. Ela afirma que o nervosismo, a ansiedade e a pressão causados pelas pessoas que rezavam ao seu redor não deixaram outra opção. Ela garante que naquela época não sabia nada sobre direitos humanos, na escola não tinha o apoio de nenhum professor e não tinha as ferramentas para dizer aos pais que o que estavam fazendo era errado. Tudo isso desencadeou nela sintomas depressivos e várias tentativas de suicídio. "Terapia de conversão" é um termo que descreve práticas pseudocientíficas usadas para tentar alterar a expressão de gênero, identidade de gênero ou orientação sexual de uma pessoa, variando de medicamentos prescritos a eletrochoques, internamento forçado em "clínicas" e exorcismos. Uma pesquisa da Universidade de Coventry, no Reino Unido, publicada no ano passado, entrevistou dezenas de pessoas que haviam sido submetidas a essas "terapias de conversão" e não encontrou nenhuma evidência de que elas funcionem. Esse estudo apontou que isso pode ter um impacto negativo para a saúde mental das pessoas que passam por essas intervenções. Um relatório elaborado em 2020 pelo Instituto Williams, da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, apontou que homossexuais ou bissexuais - o levantamento não incluiu pessoas trans - que são submetidos a esse tipo de terapia de conversão têm quase o dobro de probabilidade de tentar ou pensar em suicídio em comparação com pessoas que não passaram por isso. Vários meses depois dessa primeira terapia, a colombiana que hoje se identifica como transexual foi submetida a uma segunda, ainda mais traumática, organizada pela mesma igreja onde foi batizada e seus pais se casaram. "A minha irmã me acompanhou e disseram que seria um encontro de jovens, o que não me pareceu estranho porque eu já tinha ido a alguns encontros nas empresas em que os meus pais trabalhavam". Elas foram colocadas em um ônibus com outras famílias e, sem explicação, foram levadas a uma fazenda remota nos arredores de Bogotá. O encontro tinha regras rígidas. Durante os "intermináveis" seis dias, ela repetia a mesma rotina: acordava muito cedo e logo mandavam rezar antes do café da manhã. "Depois tinha que ficar rezando o dia todo para tirar o 'demônio' de mim e se não obedecesse não conseguia comer nem dormir", lembra ela. "Eles fizeram exorcismos jogando água benta em mim. Eles colocaram velas em todos os lugares, fizeram cruzes com cinzas em mim e falaram sobre o que havia de errado comigo e a minha orientação sexual." À medida que as pessoas "se arrependiam de seus pecados", elas tinham que falar sobre outras pessoas com quem haviam cometido o "pecado" para identificá-las. Para poder ir para a cama, era necessário dizer primeiro que se sentia "livre de espíritos". Todos iam dormir, menos Danne, que não aceitava mentir novamente e não queria demonstrar arrependimento por ser gay. Por isso, a colocaram como um exemplo de algo que "estava errado" e a faziam rezar rosários durante horas. "Nas últimas noites, a minha irmã me disse que se sentia muito mal e me implorou para mudar. Ela também se sentia rejeitada por ser irmã de um gay", explica Danne. Chegou um momento em que ela decidiu ceder e, assim como fez depois da primeira terapia, disse que havia deixado de ser gay. No caminho para casa, sua família perguntou se ela estava bem e se sentia alguma mudança. "A princípio, disse que havia mudado. Não queria seguir lutando e se eu dissesse que me sentia o mesmo de sempre, as terapias continuariam, o que não era saudável pra mim". Danne explica que quando sai de uma terapia de conversão, você se sente "perdido", porque o que dizem nesses lugares é "muito diferente" do que você realmente sente. "Você quer mudar e ser 'normal', porque te fazem acreditar que é errado ser você", reflete. "Eles fazem você sentir que se você é gay, sua única opção na vida é ser cabeleireiro ou prostituta e eu não queria isso, queria estudar astronomia". Após essas experiências, Danne começou a investigar o que havia acontecido com ela e o que significava ser gay. Pouco depois, muito mais informada, Danne se abriu para os pais. Ela confirmou que continuava sendo gay, falou para eles sobre os direitos humanos, decidiu se envolver no ativismo LGBTQIA+ e começou a participar de manifestações e eventos sobre a temática. Na escola, ela começou a falar sobre diversidade e foi expulsa por isso. Anos depois, seus pais se desculparam, agora a apoiam e a acompanham nas passeatas do orgulho gay. Hoje, Danne trabalha como diretora da Fundação Gaat, um grupo de ação e apoio à comunidade trans, que denuncia que "as terapias de conversão continuam sendo muito comuns" tanto na Colômbia como no resto da América Latina e que o problema é "normalizado e internalizado". "Eu não sabia que havia passado por terapia de conversão até começar a investigar o que era isso", diz ela. "Eu só dizia na escola em tom de brincadeira que haviam feito exorcismo em mim, que não havia funcionado e eu continuava sendo gay". Após as terapias às quais foi submetida, Danne passou por um processo de autoconhecimento como pessoa trans que ela classifica como longo e permeado por muitas "práticas e reavaliações" sobre o que sentia. Andrés Forero, gerente de campanha do All Out, um movimento global de direitos LGBTQIA+, diz que há muito pouca informação sobre essas terapias que prometem a cura gay. "A questão na América Latina é complexa porque não tem sido prioritária e as leis variam muito", diz à BBC Mundo. Em alguns países, como aqui no Brasil, existem proibições que impedem os psicólogos de fazer terapia de conversão, mas é uma medida "que não é muito útil", segundo Forero. Isso porque "não são os psicólogos que mais fazem essas práticas, geralmente são organizações religiosas", argumenta. Ele diz que "infelizmente" as terapias de conversão são "bastante normalizadas" na cultura latino-americana. "Quando eu disse ao meu pai que eu era gay, sua primeira reação foi dizer: 'Bem, vamos ver se há algum tipo de terapia ou algo que possamos fazer para curá-lo", conta Forero. No século 20, não era incomum que alguns terapeutas propusessem a mudança de orientação sexual por meio de psicanálise intensa e, em alguns casos, terapia de eletrochoque. Mas em 1973, a Associação de Psicologia dos Estados Unidos deixou de considerar a homossexualidade como um transtorno. Em 1990, também foi retirada da Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde (OMS). A OMS e outras organizações médicas em todo o mundo alertam que todas as formas de terapia de conversão são antiéticas e potencialmente prejudiciais. Até o início de 2022, cinco países latino-americanos proibiam explicitamente essa prática: Argentina, Brasil, Equador, Uruguai e Porto Rico, embora na maioria dos casos as leis não abranjam o tema de maneira suficientemente ampla. No restante da América Latina, há um vazio na legislação sobre o tema.
2022-04-20
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61155945
sociedade
Como revelei meu câncer aos 'crushes' em app de relacionamento
Um ano depois de ter sido diagnosticada com câncer de mama aos 29 anos, Katherine Crowson estava se perguntando quando poderia retomar sua vida amorosa. Na época, a consultora administrativa, natural de Edimburgo, na Escócia, ainda estava passando por quimioterapia e radioterapia, mas queria saber quando teria sua vida de volta. "Eu estava navegando no Google às 3h da manhã quando encontrei um artigo de jornal. Lembro-me de ver muitas respostas de pessoas dizendo que não se importariam de namorar alguém que teve câncer, mas que prefeririam que terminassem o tratamento antes", recorda. "Lembro de ter achado aquilo ridículo." Ainda assim, inicialmente ela decidiu adiar seus planos de voltar ao mundo dos relacionamentos. Algumas semanas depois, contudo, Katherine mudou de ideia e fez um perfil em um aplicativo de namoro. "O próximo dilema era qual foto usar no meu perfil, porque, àquela altura, por causa da quimioterapia, meu cabelo tinha apenas um centímetro de comprimento", conta a jovem, hoje com 32 anos. Fim do Matérias recomendadas "Eu estava usando longas perucas loiras, mas a cor natural dos meus cabelos era castanho." "O cabelo comprido não representava quem eu era naquele momento, mas eu também não queria que o câncer fosse minha característica definidora", acrescenta. Ela acabou usando uma seleção de fotos diferentes para seu perfil, mas sem dizer expressamente que estava com câncer - o que a fez sentir que estava "enganando" seus interlocutores nos estágios iniciais da comunicação. A partir do momento que a conversa saía do aplicativo, entretanto, ela decidiu que falaria às pessoas sobre seu tratamento. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Eu disse a eles que podiam parar de me escrever se o fato de eu ter câncer fosse visto como um problema." "Mas ninguém ficou chateado com isso. Tem muito a ver com a forma como você se apresenta. É sua atitude de não colocar aquilo como um problema - eu não estava me candidatando a uma vaga de emprego", pontua. Katherine passou um ano morando na casa de seu pai após o diagnóstico, e resolveu sair na primavera de 2021. Ela ainda estava no aplicativo de namoro quando se mudou para um apartamento que compartilhava com dois rapazes. Quando visitou o imóvel, explicou que tinha câncer e perguntou se isso seria um problema. "Dissemos que não e concordamos que ela poderia se mudar", relata Angus MacPhail, de 30 anos, um dos moradores. Por coincidência, Angus estava usando o mesmo aplicativo de namoro que Katherine e, mais tarde naquela noite, deu like em uma foto dela - que respondeu dizendo ser sua nova colega de apartamento. "Fiquei morto de vergonha, não sabia onde enfiar a cara", diz ele. "Quando ela visitou o apartamento, tinha cabelos curtos, estava de máscara. Nas fotos do aplicativo seu cabelo era comprido", justifica-se. Katherine chegou a conhecer uma pessoa "muito compreensiva", mas o relacionamento não foi pra frente e eles terminaram perto do fim de seu processo de quimioterapia. Angus então a convidou para sair, e ela disse sim. "Katherine e eu temos uma comunicação muito aberta, conversamos muito, nos tornamos melhores amigos e começamos a namorar", afirma o rapaz. "Meus pais e minha irmã tiveram câncer. Isso afeta todo mundo, então nunca foi um problema para mim. Tem sido difícil ajudá-la com o câncer, mas tudo vale a pena." Quando precisa, Angus conversa com os profissionais de uma organização sem fins lucrativos de Edimburgo que oferece serviço para familiares e pessoas próximas de pacientes com câncer. Katherine foi diagnosticada com câncer de mama estágio 3 em março de 2020. Sentiu um pequeno caroço na axila e foi ao médico, que encontrou um caroço maior no seio. "Realmente me assustei quando meu clínico me encaminhou para um centro de mama especializado", recorda. "Relacionamentos no meio de um diagnóstico de câncer em geral são um desafio, ainda mais quando são novos", destaca Andrew Anderson, chefe da Maggie's Edinburgh, entidade sem fins lucrativos que ajuda pacientes com câncer. "O impacto do câncer pode variar muito de uma pessoa para outra, e é realmente importante dar tempo para você se recuperar para depois olhar para o que precisa em um novo relacionamento." "Depois de ter aproveitado esse tempo, encare o futuro com saúde e lide com as oportunidades que existem para você", completa. Katherine continua a fazer um tratamento preventivo que inclui injeções mensais e infusões semestrais para fortalecer seus ossos. Ela decidiu congelar óvulos. "Vou ter que esperar para ver se ainda poderei ter filhos." "E há muitos outros sinais que me dizem que ainda não voltei ao meu normal. Minha frequência cardíaca aumenta com qualquer esforço físico e meus braços ficam dormentes. É um efeito colateral do tratamento, uma entre muitas coisas com as quais estou tendo que me acostumar." Ainda assim, Katherine avalia que "sair do tratamento de câncer faz você sentir que precisa abraçar a vida e viver a vida ao máximo". "Como tive câncer e passei 18 meses em tratamento, quero dizer 'sim' a tudo."
2022-04-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61144293
sociedade
'Me preparei para morrer': as imagens da saga da brasileira que escapou da Ucrânia após ser considerada desaparecida
"Dias de terror". Essa é a definição da brasileira Silvana Vicente, de 53 anos, para o período em que viveu em uma região da Ucrânia duramente afetada pelos inúmeros ataques sofridos pelo país desde o início da invasão russa, no fim de fevereiro. "Tudo isso que vivemos é o terror causado pela guerra. A gente despertou e, de repente, tudo estava de pernas pro ar, instável, demolido, com bombas para todos os lados e ninguém sabia qual direção seguir, nem quando tudo acabaria", diz Silvana à BBC News Brasil. A brasileira, o marido, o ucraniano Vasyl Pilipenko, e a sogra dela moravam em Mariupol, uma importante cidade portuária ucraniana que foi duramente atacada desde o início do conflito com a Rússia. Desde o início da guerra, a vida de Silvana mudou completamente no país do leste europeu. Ela teve parte do apartamento atingida por uma bomba e precisou improvisar uma janela para se proteger do frio intenso junto com a família. Além disso, faltavam itens básicos como alimentos e até mesmo água. Fim do Matérias recomendadas O período foi marcado por uma rotina de incerteza sobre o futuro. "Tudo era difícil, mas a sobrevivência era a nossa maior preocupação", conta. Em meio à tragédia, a brasileira quis registrar alguns momentos por meio do celular para mostrar as dificuldades enfrentadas na região. "Eu buscava formas de carregar o celular, no meu computador ou do meu esposo. Fazia as fotos e desligava completamente para economizar", diz. Ela compartilhou algumas dessas fotografias com a BBC News Brasil (as fotos estão publicadas ao longo desta reportagem). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Silvana ouviu os primeiros impactos da guerra logo no início dos ataques russos, em 24 de fevereiro. "Eu lembro que até a noite de 23 de fevereiro não havia nada, mas logo na manhã do dia seguinte recebemos a ligação de uma prima do meu marido, que é ucraniana, e ela avisou: a guerra chegou aí", conta a brasileira. "Assim que ela avisou, a gente começou a notar o barulho dos tiros de canhões. Eu e meu marido nos levantamos assustados, porque até o dia anterior a gente achava que o (presidente russo) Vladimir Putin não levaria a guerra adiante", acrescenta Silvana. Os ataques começaram em uma área distante do apartamento de Silvana. "Os bombardeios iniciais aconteceram em uma região de fábrica na cidade", diz. A partir de então, a brasileira e os familiares passaram a conviver com o constante barulho de explosões. Mariupol se tornou um dos principais alvos da Rússia em virtude da posição estratégica no mapa da Ucrânia. Se dominada, a cidade ajudará os russos a formarem uma espécie de corredor ligando as duas áreas separatistas da região de Donbas até a península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014. Com esse grau de controle, os russos teriam também acesso facilitado tanto ao Mar de Azov quanto ao Mar Negro. Em poucos dias, Silvana começou a enfrentar os impactos do conflito. Nos mercados, as prateleiras ficaram cada vez mais vazias e havia dificuldades até mesmo para encontrar água potável. A cidade também começou a sofrer problemas no abastecimento de gás, energia elétrica e havia dificuldades para acessar a rede de telefonia da região. Mesmo com as dificuldades, a brasileira e o marido optaram por permanecer na Ucrânia para proteger a sogra dela, Yulia Pilipenko, que é idosa e possui uma saúde frágil. "Seria quase impossível tentar se aventurar a sair da cidade com ela", explica. No começo de março, Silvana fez o último contato com a família por meio da internet. Pouco depois, não conseguiu mais nenhum tipo de conexão. Durante semanas, ficou incomunicável. "No dia 2 (de março), falei com a minha família e fiz um vídeo contando como estava a situação. Pouco depois, a energia elétrica da região foi cortada totalmente", diz. No dia seguinte, conta Silvana, o gás também foi cortado e o abastecimento de água ficou cada vez mais precário. "A água que chegava era muito gelada e começou a vir preta, não dava para beber ou cozinhar, a gente só usava para dar descarga", detalha. No apartamento em Mariupol, a situação ficava cada vez mais difícil. Silvana e o marido se preocuparam principalmente com a sogra dela, que precisa de diversos remédios para cuidar dos problemas de saúde. "Ela começou a racionar remédios para durar mais, porque as farmácias da região tinham sido saqueadas", detalha a brasileira. Dias após perder a comunicação com os familiares, Silvana viveu um dos momentos mais difíceis na Ucrânia: uma explosão nas proximidades do prédio dela. "Por volta do dia 6 (de março), a explosão de uma mina atingiu o nosso prédio. Até então, os ataques ainda estavam na área das fábricas, mas como essas minas têm uma força muito grande, acabaram atingindo a região do prédio também", conta. O impacto da explosão, diz Silvana, estilhaçou os vidros das janelas de muitos apartamentos do prédio, inclusive o dela. "O prédio todo foi prejudicado", diz. Sem o vidro da janela, ela precisou improvisar para amenizar o frio, de cerca de 5 graus negativos. "Coloquei um plástico de construção na janela. Enquanto havia o bombardeio lá fora, eu ajustava o plástico. Meu esposo falava: sai daí, senão você vai ser atingida. Mas se eu não fizesse isso, a gente não aguentaria o frio", conta. Posteriormente, ela usou pregos para fixar o plástico na janela. "Ainda assim, fazia muito frio. O frio foi uma das partes mais difíceis de tudo isso, mas decidimos continuar no apartamento porque não havia outra escolha. Se a gente saísse dali, os bombardeios continuariam da mesma forma. Nossa casa era o lugar mais seguro para a gente", declara a brasileira. A intervenção na janela foi somente uma das adaptações que Silvana fez para sobreviver. Sem água, ela precisou recorrer a um rio em uma região perto da sua casa, onde dezenas de pessoas também sofriam com a falta de água e se acumulavam em filas. "A gente buscava água em dias alternados. Só tínhamos dois galões de cinco litros e três de três litros. O maior medo era o caminho para o rio, porque no trajeto havia algumas áreas que já tinham sido atingidas por ataque e a gente tinha medo que houvesse novos ataques ali", diz Silvana. E diante da falta de gás, ela e os vizinhos começaram a cozinhar com lenhas, que buscavam na região, em um fogão improvisado em frente ao prédio em que morava. Enquanto faziam o alimento, precisavam ficar atentos a qualquer barulho de explosão nas proximidades. Silvana e os familiares faziam uma pequena refeição por dia, além de tomar café puro pela manhã. "Quando tinha pão, a gente comia aos poucos", diz. Segundo ela, o marido perdeu 13 quilos em menos de um mês. Para enfrentar as dificuldades, os moradores do prédio de Mariupol tentavam se ajudar por meio de troca de alimentos ou água. "A gente dividia as coisas, conforme a necessidade do outro. É um povo muito forte e esperançoso de que a guerra logo vai acabar", afirma. As tropas russas avançavam cada vez mais em Mariupol. Aos poucos, diz Silvana, o horror da guerra passou a fazer parte da vida deles. "Nosso maior medo era do ataque dos aviões, porque o impacto era muito grande. O nosso prédio tremia com o impacto das bombas. Uma casa explodiu a poucos metros do nosso prédio", detalha. Nas ruas, o cenário de guerra assustava a todos. Era possível avistar carros e casas destruídos ou até mesmo corpos de pessoas atingidas pelos ataques. "Eu nunca vi um corpo e tinha muito medo de avistar algum, mas o meu marido viu alguns. Se eu visse, ficaria muito abalada e desabaria", diz. Silvana diz que as cenas mais chocantes que presenciou foram os túmulos improvisados. "As pessoas não tinham como enterrar o familiar no cemitério, então abriam um buraco na calçada da casa, colocava o corpo, a cruz e pronto. Faziam isso para não deixar o morto exposto na rua com tanta gente passando", detalha. Em meio ao cenário de destruição, Silvana se preparou para o pior. "Aprendi a ser forte e a controlar o medo. Eu não tinha mais tanto medo, muito menos pânico da morte. Me preparei emocionalmente para morrer e orava para que Deus confortasse meu filho e a minha família. Eu dizia: se o senhor quiser me tirar daqui, que assim seja", relembra. No fim de março, um ucraniano que morava em Mariupol foi ao prédio de Silvana e avisou que levaria a família dela para fora do país em seu carro. "Ele chegou e disse: vocês têm 15 minutos para pegar o essencial e os documentos. E tivemos que sair às pressas", relembra a brasileira. O homem, que morava na região e também queria deixar o país, foi pago pelo filho de Silvana e Vasyl, o marinheiro mercante Gabriel Pilipenko, de 26 anos. Gabriel, assim como outros familiares dele, vivia a angústia da falta de informações sobre Silvana, Vasyl e Yulia. A cada nova notícia sobre ataques a Mariupol, o desespero do rapaz e de seus parentes aumentava mais. Ao serem resgatados, Silvana, Vasyl e Yulia foram levados pelo ucraniano tendo que passar pelo território dominado pelos russos, onde tiveram o veículo revistado diversas vezes. Posteriormente, chegaram à Crimeia, onde ficaram alguns dias enquanto aguardavam um passaporte de emergência para Yulia. Depois, seguiram para Moscou, receberam apoio da embaixada brasileira e conseguiram as passagens aéreas. Primeiro, pegaram um voo para Dubai e depois seguiram para o Brasil. Por fim, desembarcaram no domingo (10/4) em João Pessoa (PB), cidade natal de Silvana e onde a família dela mora. Silvana e Vasyl ainda não reencontraram o filho, que conseguiu um emprego na Alemanha e permanece no país europeu. Em solo brasileiro, Silvana pensa em recomeçar, mas agora enfrenta outras dificuldades. "Estamos no meu apartamento, que estava fechado há anos. A gente deixou tudo pra trás, então nossa principal dificuldade é financeira. Viemos pra cá só com a roupa do corpo mesmo", diz Silvana. Ela e o marido estão desempregados e contam com a ajuda de familiares de Silvana para se alimentar. "O meu esposo (que é marinheiro mercante) tem um ótimo currículo, mas infelizmente isso dificulta para que ele ache um emprego facilmente. Mas acredito que logo ele estará empregado", afirma Silvana. "O governo da Paraíba está dando suporte médico e exames, e está tentando achar trabalho pro meu esposo. Temos nossas despesas, como comida, e não temos suporte para isso e isso tem sido a parte mais difícil atualmente", acrescenta. O futuro ainda é completamente incerto para Silvana. Sobre os próximos meses, ela afirma que seu principal desejo é o fim da guerra na Ucrânia. "Me sinto culpada por ter deixado para trás tantas pessoas que compartilharam o terror da guerra com a gente", lamenta. Quando o conflito terminar, ela pretende cumprir a promessa feita à sogra e elas, junto com Vasyl, retornarão à Ucrânia.
2022-04-14
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61111517
sociedade
O que dizem os adeptos do 'poliamor solo'
Depois que Chris, com 35 anos de idade, assumiu-se bissexual três anos atrás, ele decidiu que "não queria necessariamente viver uma vida heteronormativa". "Eu queria poder namorar homens e mulheres simultaneamente por toda a minha vida", afirma Chris (seu sobrenome é omitido para manter sua privacidade). "Eu sentia que a monogamia me negaria parte de mim mesmo." Durante a pandemia, Chris mudou-se para uma comunidade sexualmente positiva no Brooklyn, Nova York, nos Estados Unidos - um "espaço seguro" onde ele poderia explorar ainda mais sua relação com o sexo e a sexualidade. Por meio dessa comunidade, ele descobriu um curso chamado Open Smarter, que orientava seus alunos a explorar diversos tipos de relacionamentos eticamente não-monogâmicos. Foi ali que ele ouviu pela primeira vez a expressão "poliamor solo" e percebeu rapidamente como ela se encaixava com seu estilo de vida amorosa. Basicamente, o poliamor solo designa pessoas que estão abertas a namorar ou dedicar-se a diversos relacionamentos significativos, sem que tenham um "parceiro principal" - uma pessoa com a qual eles se comprometem acima de todos os demais parceiros. Em vez disso, o adepto do poliamor solo poderá ver a si próprio como seu parceiro principal, evitando os objetivos típicos dos relacionamentos, como reunir as finanças ou morar junto com um parceiro, casar-se e ter filhos. Fim do Matérias recomendadas O poliamor solo representa uma pequena parcela dos adeptos do poliamor em geral. Muitos deles tendem a ter ou desejar ter um parceiro principal, segundo Liz Powell, terapeuta e educadora sexual da Filadélfia, nos Estados Unidos. Por isso, é naturalmente difícil calcular qual percentual da população em geral adota relacionamentos desta forma. Mas estudos demonstram que as gerações mais jovens são mais propensas a adotar algum tipo de relacionamento não-monogâmico que as gerações mais velhas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo um estudo da empresa de pesquisas YouGov com 1.300 norte-americanos adultos, realizado em 2020, 43% dos millennials afirmaram que sua relação ideal seria não-monogâmica, embora apenas 30% das pessoas da geração X afirmem o mesmo. E, de forma geral, uma pesquisa de 2016 que sintetiza dois estudos norte-americanos diferentes demonstrou que 20% dos participantes tiveram, em algum momento, relacionamentos consensualmente não-monogâmicos. Mas esses estudos não detalham os números para os tipos específicos de relacionamentos não-monogâmicos, de forma que é impossível afirmar quantas das pessoas pesquisadas identificam-se com o poliamor solo. Como os adeptos do poliamor solo são uma identidade minoritária, os conceitos errôneos sobre seus estilos de vida multiplicam-se - desde aqueles que comparam o poliamor solo com ter diversos namoros monogâmicos até encontrar "o escolhido", até as pessoas que o consideram uma atitude egoísta ou gananciosa, como querer "ter o melhor de dois mundos". O fato é que existe a tendência de ignorar a definição mais flexível da expressão, que acaba sendo reduzida a uma fuga da heteronormativa "escada rolante do relacionamento" por pessoas que optam por uma forma alternativa de envolver-se em relacionamentos amorosos e sexuais. A expressão poliamor solo ganhou popularidade com o blog Solopolynet, escrito pela jornalista norte-americana Amy Gahran sob o pseudônimo Aggie Sez. Ela publicou sua primeira postagem, com o título Riding the relationship escalator (or not) ("Subindo pela escada rolante do relacionamento (ou não)", em tradução livre), em 2012. Cerca de cinco anos depois, ela escreveu um livro sobre o tema, Stepping Off the Relationship Escalator: Uncommon Love and Life ("Saindo da escada rolante do relacionamento: vida e amor incomuns", em tradução livre). Gahran define a "escada rolante" como "o conjunto padrão de costumes sociais para a conduta adequada nos relacionamentos íntimos" - em outras palavras, relacionamentos que atingem, ou pretendem atingir, os momentos tradicionalmente marcantes da vida, como morar junto com um parceiro, reunir as finanças, noivar, casar-se e ter filhos. "Temos esses momentos marcantes ou sinais normalizados de que o relacionamento é sério", segundo Rachel Krantz, da Califórnia, nos Estados Unidos, autora do livro Open: An Uncensored Memoir of Love, Liberation and Non-Monogamy - A Polyamory Memoir ("Aberta: Memórias sem censura do amor, liberação e da não-monogamia - memórias do poliamor", em tradução livre). "Os adeptos do poliamor solo tendem a evitar interligar sua vida com outras pessoas dessa forma." Embora a definição possa parecer restrita, existem muitas formas de adotar o poliamor solo. Essas pessoas tendem a ser alossexuais, segundo Elisabeth Sheff, do Colorado, nos Estados Unidos, autora de livros que incluem The Polyamorists Next Door ("Os adeptos do poliamor à nossa volta", em tradução livre), o que significa que eles tendem a experimentar desejos sexuais - mas outros são assexuais e mantêm diversos relacionamentos não sexuais. Eles também tendem a "valorizar sua independência", segundo Sheff, mas alguns têm relacionamentos não amorosos muito importantes nas suas vidas, que colocam em primeiro lugar. "O pai ou mãe solteira que prioriza seus filhos sobre todos os demais relacionamentos pode ser adepto do poliamor solo", segundo Sheff, bem como alguém que seja cuidador de uma pessoa portadora de deficiência. O poliamor solo também não precisa durar para sempre. Alguém poderá identificar-se com o poliamor solo hoje, mas ainda acabar entrando em um relacionamento mais tradicional, compartilhando sua casa ou finanças no futuro - e não precisa ser uma identidade fixa para ser válido, segundo Zhana Vrangalova, consultora e pesquisadora sexual de Nova York, nos Estados Unidos. Na verdade, Chris tem interesse em encontrar um parceiro principal algum dia, mas afirma que, enquanto isso, o poliamor solo "me permite namorar, ter experiências com as pessoas, conhecer muitas pessoas diferentes e atende algumas das minhas necessidades". Ele acrescenta que é parecido com o tempo em que ele namorava de forma monogâmica, "exceto porque agora tenho um rótulo para comunicar às pessoas quais são as minhas intenções". Vrangalova é originariamente da Macedônia do Norte e ministra o curso Open Smarter, do qual Chris participou em Nova York. Ela estima que cerca de dois terços da sua classe são de pessoas que possuem relacionamentos, dos quais pouco mais da metade são monogâmicos. Mas essas pessoas estão "tentando descobrir se algum tipo de relacionamento não-monogâmico seria ideal para elas". Os demais alunos já estão explorando diversas formas de relacionamentos não-monogâmicos e buscam mais conhecimentos para ajudá-los no processo, ou são solteiros em busca de relacionamentos. O poliamor solo não é o ideal para todos. Vrangalova faz testes de personalidade com seus alunos para ajudá-los a definir um ou mais estados de relacionamento que possam funcionar melhor para eles. Esses testes incluem perguntas como "o grau de aventura e novidade" de que os participantes precisam ou o quanto de segurança que eles exigem nos seus relacionamentos. Os adeptos do poliamor solo, segundo Vrangalova, "normalmente não precisam de muita segurança no relacionamento". Mas só porque alguém que se identifica com o poliamor solo pode não precisar do mesmo grau de segurança de alguém em uma parceria monogâmica de longo prazo, isso não quer dizer que eles não possam ou não venham a formar laços profundos e duradouros com seus parceiros. Para incentivar esses relacionamentos de confiança, a educadora sexual Powell, que se identifica com o poliamor solo, afirma que eles são muito abertos com seus parceiros potenciais sobre seus desejos e necessidades. "Eu não vou deixar de perguntar [o que eu quero em um relacionamento] só porque estou preocupada porque você vai dizer não", dizem eles. "Se as pessoas dizem não, elas dizem não, e nós decidimos para onde vamos a partir dali." Muitos estigmas em torno do poliamor solo vêm da falta de compreensão geral do motivo pelo qual algumas pessoas não querem o chamado relacionamento tradicional "sério". Os estereótipos dos adeptos do poliamor solo incluem "egoísmo, fuga ou confusão de várias formas", segundo Vrangalova. Além disso, o poliamor solo é marcado pela falta de adoção dos marcos do relacionamento, como casamento e filhos - que também são considerados marcos da idade adulta. "As pessoas que consideramos 'adultas' são casadas, têm filhos, vivem juntas e compartilham as finanças", afirma Powell. "Já os 'adultos instáveis' como eu, que vivem sozinhos e não se casaram, são exemplos de tudo o que há de errado na sociedade." É claro que os adultos podem viver sozinhos com muito sucesso e ser autossuficientes. Para aqueles que se identificam com o "poliamor solo", isso também não significa que eles "não se importam com as pessoas", segundo Sheff. "Eles simplesmente não querem organizar sua vida de forma centralizada em torno de um parceiro amoroso." Esses preconceitos acompanham outra força social conhecida como o "privilégio dos casais". O significado dessa expressão é amplo e inclui tanto as vantagens que os casais têm na sociedade com relação aos solteiros (como os benefícios financeiros do casamento e da união estável) e a postura de que, em um relacionamento poliamoroso, por exemplo, o sucesso do casal primário deve ser priorizado e todas as demais ações dos parceiros devem ser tomadas considerando a preservação daquele relacionamento primário. Esses estigmas e expectativas sociais podem representar bloqueios para que as pessoas se identifiquem com o poliamor solo. Quando Powell estava em um relacionamento poliamoroso em Savannah, no Estado da Geórgia (Estados Unidos), por volta de 2014, eles tentaram encontrar um terapeuta favorável à não-monogamia, sem sucesso. Isso os levou a preencher a lacuna e Powell abriu seu próprio consultório particular dirigido a pessoas que se identificam como não-monogâmicas, queer, kinky e/ou trans. Mesmo nos círculos da psicologia, persiste a falta de conhecimento sobre o poliamor, que dirá sobre o poliamor solo. Sheff é parte da Divisão 44, um subgrupo da Associação Norte-Americana de Psicologia que desenvolve materiais educativos sobre o poliamor para conselheiros e terapeutas. Em última análise, o poliamor solo é muito mais do que uma forma de namorar diversos parceiros vivendo sozinho. É uma rejeição dos padrões de relacionamento heteronormativos. "Para mim, grande parte do poliamor solo envolve descobrir formas de concentrar-me na minha própria autonomia, na autonomia dos outros e questionar sinceramente o que eu quero em um relacionamento, em vez de considerar que todo relacionamento segue a fórmula da escada rolante", segundo Powell. Da mesma forma, Chris foi atraído pelo rótulo de poliamor solo por permitir que ele pensasse sobre os relacionamentos e os abordasse de forma diferente. Ele conta que as formas de relacionamento que acompanharam seu desenvolvimento não faziam sentido para ele. Antes da legalização do casamento gay nos Estados Unidos, ele tinha relacionamentos sexuais com pessoas que ele sabia que nunca poderiam se casar. Hoje, Chris afirma que não eliminaria totalmente a perspectiva de casamento, mas não é exatamente um admirador dessa instituição. "Como pessoa queer, bissexual, não gosto da estrutura heteronormativa do casamento", afirma ele. "Quero me rebelar contra isso."
2022-04-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61102041
sociedade
Depois de abril, 2022 só tem mais um feriado prolongado; programe-se
O calendário de 2022 atrapalhou os planos de quem pretendia usar os feriados prolongados para curtir viagens ou recuperar as energias em finais de semana mais compridos. Isso porque, neste ano, muitos feriados nacionais vão cair em finais de semana e nas quartas-feiras, o que inviabiliza a tradicional "emenda" que ocorre quando o feriado é na terça ou quinta-feira. No total, o calendário brasileiro possui nove feriados nacionais. São eles: Dia da Confraternização Universal (1º de janeiro), Paixão de Cristo (Sexta-Feira Santa, 15 de abril), Tiradentes (21 de abril), Dia do Trabalhador (1º de maio), Independência do Brasil (7 de setembro), Nossa Senhora Aparecida (12 de outubro), Dia de Finados (2 de novembro), Proclamação da República (15 de novembro) e Natal (25 de dezembro). Na sexta-feira, 15 de abril, aconteceu o feriado da "Paixão de Cristo", também conhecido como "Sexta-Feira Santa", que antecede a Páscoa. A data é usada por muitas famílias para reunir os parentes para compartilhar refeições - a depender da crença, sem a presença de carnes. Em seguida, o feriado de 21 de abril cai em uma quinta-feira. Depois, sete meses se passarão sem dias seguidos de folgas além dos finais de semana - incluindo três feriados que caem em quartas-feiras. Fim do Matérias recomendadas O próximo feriado prolongado acontece no dia 15 de novembro, data que marca a Proclamação da República. Mas, por se tratar de uma terça-feira, a emenda depende das regras de cada empresa ou instituição. Os pontos facultativos são datas comemorativas ou que antecedem ou sucedem algum feriado oficial, mas que não são obrigatoriamente dias de folga. Nesses casos, as empresas e instituições podem decidir se oferecem ou não os dias livres aos empregados. Um exemplo é o Carnaval. O único estado onde a data é de fato um feriado todos os anos é o Rio de Janeiro, que possui uma lei específica que determina a terça-feira de Carnaval como um dia de folga. No entanto, diferentemente de outros anos, quando já era esperado que o ponto facultativo se transformasse em um dia de folga, por conta das restrições impostas pela covid-19 e menos probabilidade de festividades (incluindo proibições expressas em várias cidades), muitas pessoas trabalharam normalmente. Outros pontos facultativos nacionais são a quarta-feira de cinzas (2 de março), Corpus Christi (16 de junho) e Dia do Servidor Público (28 de outubro).
2022-04-13
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61088437
sociedade
Zika vírus pode estar a um passo de novo surto global
Um novo surto de vírus zika é bem possível, alertam os pesquisadores, e uma única mutação poderia ser suficiente para desencadear uma disseminação explosiva. A doença causou uma emergência médica global em 2016, com milhares de bebês nascidos com danos cerebrais depois que suas mães foram infectadas durante a gravidez. Cientistas americanos dizem que o mundo deveria estar atento a novas mutações. O trabalho de laboratório, descrito no periódico científico Cell Reports, aponta que o vírus pode mudar facilmente, criando novas variantes. Estudos recentes de infecção indicam que essas variantes podem ser eficazes na transmissão do vírus, mesmo em países que acumularam imunidade de surtos anteriores de zika, diz a equipe do Instituto La Jolla de Imunologia. Fim do Matérias recomendadas Especialistas disseram que as descobertas, embora teóricas, são interessantes - e um lembrete de que outros vírus além do causador da covid podem representar uma ameaça. O zika é transmitido por picadas de mosquitos Aedes infectados. Os insetos são encontrados em todas as Américas - exceto no Canadá e no Chile, onde é muito frio para eles sobreviverem - e em toda a Ásia. Embora para a maioria das pessoas o zika seja uma doença leve, sem efeitos duradouros, pode ter consequências catastróficas para bebês que ainda estão no útero. Se uma mãe contrair o vírus durante a gravidez, pode prejudicar o feto em desenvolvimento, causando microcefalia e danos ao tecido cerebral. Os pesquisadores recriaram o que acontece quando o zika passa entre mosquitos e humanos, usando células e camundongos vivos em seus experimentos. Quando o zika passou entre células de mosquito e camundongos em laboratório, ocorreram pequenas mudanças genéticas. Isso significa que foi relativamente fácil para o zika sofrer mutações de uma maneira que permitia que o vírus prosperasse e se espalhasse, mesmo em animais que tinham alguma imunidade anterior de uma infecção transmitida pelo mesmo mosquito: a dengue. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O principal pesquisador do estudo, o professor Sujan Shresta, disse que "a variante do zika que identificamos evoluiu ao ponto em que a imunidade de proteção cruzada proporcionada pela infecção anterior por dengue não era mais eficaz em camundongos". "Infelizmente para nós, se essa variante se tornar predominante, podemos ter os mesmos problemas na vida real." "Ouvimos muito sobre a rápida evolução e surgimento de variantes de coronavírus ultimamente, mas este é um lembrete oportuno de que a mudança de forma é um recurso comum compartilhado por tantos vírus", o professor Jonathan Ball, especialista em vírus da Universidade de Nottingham, disse à BBC. "Este trabalho mostra a rapidez com que uma mudança de uma única letra na sequência do genoma de um vírus pode surgir e o forte impacto que pode ter na capacidade de doença de um vírus. Mas vírus que compartilham essas mudanças não são vistos com frequência em surtos. e, como os autores apontam, esses insights intrigantes exigem uma investigação mais completa." Clare Taylor, da Society for Applied Microbiology, alerta que "embora essas descobertas tenham sido observadas em experimentos de laboratório e, portanto, tenham limitações, elas mostram que há potencial para que variantes preocupantes surjam durante o ciclo normal de transmissão do Zika e nos lembra que o monitoramento é importante para acompanhar os vírus à medida que eles evoluem". Ela afirma que pode ser possível prever quais variantes podem causar problemas significativos no futuro e intervir cedo. O professor Paul Hunter, professor de medicina da Universidade de East Anglia, disse que infecções passadas por zika ainda podem oferecer alguma proteção contra novas variantes - como foi visto com a covid.
2022-04-12
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61088444
sociedade
O suicídio público em Berlim que acende alerta sobre situação de refugiados trans
Quando Ella Nik Bayan, uma mulher transgênero iraniana de 40 anos, colocou fogo sobre seu corpo na icônica praça Alexanderplatz, em Berlim, em setembro do ano passado, sua morte chocou seus amigos e colegas mais próximos. Seis meses depois, vestígios de paralelepípedos carbonizados são testemunha do que aconteceu. O episódio gerou discussão na mídia alemã por algum tempo, levantou muitos questionamentos, mas encontrou poucas respostas. Com o passar do tempo, o interesse público pode ter arrefecido, mas a confusão e a tristeza daqueles que conheciam bem Ella não diminuíram. Membros da comunidade trans viram o ato de autoimolação pública como um protesto, mas Ella não deixou nenhuma mensagem ou explicação - e alguns de seus amigos mais próximos acreditam que não houve motivo político. Fim do Matérias recomendadas O que teria levado Ella a um ato tão desesperado? O que ela passou desde que deixou o Irã que poderia explicar sua decisão de acabar com sua vida? Alguns sinais podem ser encontrados nos desafios que sabemos que ela enfrentou na jornada que terminou na Alexanderplatz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Ela era uma pessoa tão gentil, tímida. Sempre sorrindo", lembra Edna Pevestorf. Edna é coordenadora de assistência social e conheceu Ella quando ela chegou a Magdeburg, uma cidade na antiga Alemanha Oriental onde o partido anti-imigrante Alternative für Deutschland teve votação expressiva nas últimas eleições. Ella era transgênero - sua identidade de gênero diferia daquela que lhe foi atribuída no nascimento. Chegou à Alemanha em 2015 e sua jornada - como a de muitos outros refugiados queer - foi repleta de dificuldades. Ela havia fugido do Irã quatro anos antes e chegado à Alemanha pela Turquia - uma rota comum para refugiados iranianos porque, dessa forma, conseguem entrar sem visto. Ella não revelou sua identidade de gênero no início e levou quase um ano para começar a fazer perguntas à assistente social. "Ela veio a uma aula de alemão que eu dava", recorda Edna, "e perguntou se era legal viver como homossexual aqui, se estava tudo bem. Foi a primeira vez que pensei que ela pudesse estar lidando com alguma coisa." Mas Ella não era gay. Como muitos outros membros da comunidade LGBTQIA+ no Irã, ela aprendeu a reprimir quem era e como se sentia por medo de ser perseguida e processada. Cresceu em uma família conservadora e religiosa no sul do Irã, com quase nenhum acesso a informação sobre identidade de gênero e orientação sexual. Para Ella se assumir como uma mulher trans não foi fácil, e, nesse sentido, Edna relembra uma conversa em um dia de outono em 2016. "Ela veio ao meu consultório e disse que precisava falar sobre algo. Disse: não sou gay, mas quero ser mulher". As duas conversaram por algumas horas, e Ella fez várias perguntas sobre como poderia viver como uma mulher trans. Alguns meses depois, em dezembro de 2016, Ella fez outra visita ao escritório de Edna. "Não havia nada nela que fosse novo, exceto o esmalte. Apenas em um dedo da mão esquerda." Esse foi o primeiro dos muitos pequenos passos de Ella em direção à transformação. Ella gradualmente começou a revelar sua identidade de gênero para aqueles com quem se sentia segura, pessoas como Edna ou Lisa Schulz, que se tornou amiga de Ella enquanto trabalhavam com refugiados em um centro comunitário em Magdeburg. Lisa se lembra de Ella como uma pessoa sorridente e sociável, que fazia amigos com facilidade. "Conheci Ella no centro. No começo, ela estava lá para melhorar seu alemão. Mas depois de um tempo passou a ser uma grande ajuda para nós na tradução - ela falava cinco idiomas: inglês, alemão, árabe, turco e farsi - era uma pessoa muito prestativa." Sobre a expressão de gênero de Ella, Lisa diz: "Ella sempre foi Ella, mas no começo, não se parecia com a Ella que conhecemos agora. Foi um processo". Foi um processo que levou mais de um ano. Ella também frequentava uma horta comunitária, lembra Lisa. "Ella estava sempre nos campos cavando batatas ou algo assim, usando salto alto e saia curta." Mas a realidade era que nem todos os lugares eram seguros para Ella. Lisa e Edna dizem que Ella era assediada e intimidada nas ruas. "Em todos os lugares que ia, as pessoas falavam. Ela chegou a ser agredida verbalmente algumas vezes", diz Lisa. "Ela só queria ser aceita como a mulher que era, e as pessoas não aceitavam isso." Michael, outro amigo de Ella em Magdeburg, lembra-se do dia em que uma gangue de jovens a atacou em um trem. "Os agressores não se importaram com os outros passageiros. Ella teve que se defender com spray de pimenta", recorda. Michael diz que não conseguia entender o que os agressores estavam gritando em farsi - Ella disse que eles faziam ameaças de estupro. A vida como uma mulher trans de cor não foi fácil para Ella em Magdeburg. Ela mudou de casa cinco vezes. Segundo Michael, sua última residência na cidade foi um abrigo para mulheres, do qual saiu porque algumas residentes não a queriam lá. No outono de 2019, Ella decidiu se mudar para Berlim, na esperança de encontrar maior aceitação. Berlim é conhecida por seus muitos espaços queer seguros e uma abordagem mais liberal à comunidade LGBTQIA+. Kaveh Kermanshahi, que trabalha com refugiados queer para a LesMigraS, uma organização que ajuda pessoas trans e queer em Berlim, diz, contudo, que muitos desses espaços não são acessíveis aos refugiados por vários motivos. "Os requerentes de asilo e os refugiados dependem da ajuda financeira do governo, que não é muito", afirma, "por isso, não é acessível para eles irem a bares, cafés e clubes que são conhecidos como espaços queer. "Outra questão é que a maioria desses espaços é projetada para homens gays brancos cisgênero e não para mulheres trans de cor, por exemplo, e também há a barreira do idioma", completa. O pedido de asilo de Ella foi inicialmente rejeitado, um resultado que não é incomum, de acordo com Kermanshahi. Ele diz que há uma percepção de que pessoas trans têm acesso à cirurgia de mudança de sexo no Irã e, posteriormente, vivem "livremente", uma falsa suposição que enfraquece o pedido de asilo. No Irã, as pessoas transgênero precisam passar por uma terapia obrigatória inicialmente e ficam à mercê dos preconceitos pessoais dos profissionais. Aqueles que desejam ser submetidos a operação podem ter que esperar anos antes de obter a permissão. "As sessões de terapia usadas para determinar se alguém precisa da operação não são adequadas, e os conselheiros e terapeutas não têm conhecimento atualizado no Irã", diz Kermanshahi. "Em muitos casos, as pessoas se sentem pressionadas a fazer terapia hormonal e cirurgia. De acordo com a lei iraniana, as carteiras de identidade só serão entregues a pessoas que se submetem à operação. Isso significa que muitas pessoas transgênero sentem que não têm opção." Baran é uma mulher trans iraniana que vive na Turquia desde 2017. Recebeu status de refugiada, mas não tem direito de trabalhar. Ela fugiu do Irã precisamente porque não queria fazer a cirurgia de mudança de sexo, mas foi forçada por sua família a fazer terapia hormonal, o que a levou a ter depressão. "Eu estava feliz com meu corpo e minhas genitais - não queria tomar hormônios ou fazer essa operação", diz Baran. Mas sua família insistiu, e os médicos disseram que se ela se recusasse, não poderia ser considerada uma mulher. Baran diz que as coisas na Turquia não foram muito diferentes. O servidor que estava cuidando de seu caso de asilo não sabia nada sobre pessoas transgênero. "Ele continuou me dizendo que eu deveria fazer a operação e 'acabar com isso'." Ella teve experiências semelhantes na Alemanha e queixava-se de que sua identidade de gênero era frequentemente questionada. Lisa Schulz foi visitá-la em Berlim em julho de 2021, alguns meses antes de Ella tirar a própria vida. "Ela tinha começado a terapia hormonal, e você podia ver os primeiros sinais de transformação nela. Ela estava ótima, estava com um vestido maravilhoso", recorda. Ella parecia feliz, e convidou Lisa para seu restaurante de sushi favorito. "Eu sabia o quanto ela gostava de sushi, e fomos com os amigos mais próximos dela, então foi uma honra", lembra Lisa. Na época, Ella estava fazendo um curso que lhe permitiria se candidatar a um emprego em uma fábrica da Tesla. Depois de muitos bicos em cafés e restaurantes, esta era a oportunidade de finalmente conseguir um emprego e renda estáveis. "Quando eu a deixei, eu fiquei tipo: 'uau'!", diz Lisa. "Eu estava feliz por ela." Mas Ella aparentemente não estava feliz. Muitos refugiados LGBTQIA+ iranianos esperam ser aceitos por quem são nos países ocidentais, mas muitas vezes a realidade não atende às suas expectativas. Conforme a legislação alemã, os requerentes trans de asilo são identificados pelo sexo e nome de nascimento atribuídos até que recebam o status de refugiado. Isso pode levar vários anos, o que significa que Ella teria sido identificada como "homem" em todos os seus papéis. Para Ella, a longa e frequentemente decepcionante luta para ser aceita continuou em sua nova cidade natal. "Ouvi de amigos em Berlim que ela também foi assediada nas ruas de lá", diz Lisa. A transfobia - preconceito contra pessoas transgênero - pode levar à violência. O relatório Trans Murder Monitoring 2021 apontou que mais de 370 pessoas trans e de gênero diverso foram assassinadas no ano passado em todo o mundo, 96% delas mulheres trans. Em 14 de setembro, apenas alguns meses depois do encontro com Lisa em Berlim, Ella tirou a própria vida. A notícia chocou profundamente seus amigos. "Não fazia sentido. Achei que ela estava bem. Estava animada com a possibilidade do novo emprego e uma vida boa. Foi chocante", comenta Lisa. Michael foi uma das últimas pessoas a ver Ella em setembro, poucos dias antes de seu suicídio. O aniversário de Ella era em novembro, e quando Michael perguntou o que gostaria de ganhar, ela pediu um casaco de inverno. Ele está convencido de que, na época em que foram fazer compras juntos, ela não tinha planos de tirar a própria vida. "Ella era tão incrivelmente cuidadosa com dinheiro", pontua. "Se ela tivesse planejado o suicídio naquele momento, não teria me deixado comprar aquele casaco. Isso simplesmente não faz sentido." O local onde Ella Nik Bayan tirou a própria vida rapidamente se transformou em um altar improvisado, onde as pessoas passaram a deixar flores, velas e cartões. Mas o ódio não teve fim. Em janeiro deste ano, o túmulo de Ella em um cemitério de Berlim foi vandalizado por desconhecidos que deixaram lá uma lata de gasolina e um extintor de incêndio. Nunca saberemos por que Ella decidiu tirar a própria vida e de maneira tão pública, só que em algum momento ela decidiu que continuar não era mais uma opção. Sabemos que ela enfrentou vários obstáculos, desde a fuga de seu país de origem até a longa burocracia do processo de asilo, e o que parecia uma sucessão aparentemente interminável de consultas médicas, psiquiátricas e legais em seu esforço para finalmente ser ela mesma. Sem mencionar a discriminação e o abuso, que parecia nunca ter fim. Sua principal arma foi o sorriso no rosto e, apesar das amizades íntimas e fraternas que conseguiu construir, muitos provavelmente não retribuíram sua gentileza. A BBC procurou o Escritório Federal Alemão de Migração e Refugiados para comentar o caso de Ella e recebeu retorno de uma porta-voz. Ela afirmou que, embora eles não possam comentar casos específicos, os procedimentos para concessão de asilo são avaliações caso a caso cuidadosamente conduzidas com base nos princípios do estado de direito, e os requerentes de asilo que tenham suas demandas negadas sempre têm o direito de apelar. *O Centro de Valorização da Vida (CVV) dá apoio emocional e preventivo ao suicídio. Se você está em busca de ajuda, ligue para 188 (número gratuito) ou acesse www.cvv.org.br.
2022-04-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61073124
sociedade
Violência doméstica: ‘Fui indiciada por ajudar ex abusivo que cometeu assassinato’
Vítima de violência doméstica, a britânica Megan, de 29 anos, foi indiciada por obstrução da justiça por ter ajudado seu ex-parceiro depois que ele foi acusado de homicídio. "Provavelmente morreria nas mãos daquele homem", diz ela à BBC sobre o período de seu relacionamento. "E isso quase aconteceu algumas vezes." "Acordava todos os dias com uma sensação inteiramente nova de pavor e desespero", acrescenta. Assim como Meghan, milhares de mulheres do Reino Unido são "duplamente vítimas" — tanto de seus parceiros abusivos quanto da Justiça, segundo denuncia a ONG Center for Women's Justice. A entidade alerta que, devido a "leis e práticas impróprias", mulheres vulneráveis, forçadas ao crime por seus agressores - incusive em casos de defesa própria -, são"injustamente" presas pela Justiça britânica, detidas e processadas por delitos decorrentes diretamente de sua experiência de abuso, incluindo se defender de agressões físicas. Fim do Matérias recomendadas Isso inclui cenários em que as vítimas de abuso doméstico são coagidas a infringir a lei e também casos em que a vítima é forçada a se defender contra seu agressor. Megan conheceu seu ex-namorado quando tinha 23 anos e ele, 38. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Eles se apaixonaram rapidamente, mas aos poucos ela passou a perceber nele um comportamento errático. Depois de experimentar três anos de abuso emocional, financeiro e físico, Megan diz que ficou "dormente" por dentro. "Acordei com medo de estar viva e ter que passar mais um dia com ele sem saber o que ele faria", acrescenta ela. "Ele me estrangulou, me bateu, me jogou no chão, me chutou, colocou uma faca na minha garganta". "Aceitei meu destino, mas ele também ameaçou absolutamente todos na minha vida. Minha família, meus amigos." Em junho de 2019, quando seu ex foi preso — e depois condenado — por assassinar seu primo, Megan sentiu que poderia finalmente estar segura e livre das garras dele. Mas esse sentimento durou pouco — porque ela própria foi presa e processada por obstrução à Justiça. No dia do assassinato, os dois estavam hospedados na casa dos pais dela em Teddington, um subúrbio no sudoeste de Londres. Megan diz que seu ex pediu a ela para buscá-lo na estação de trem e sacar dinheiro para ele - algo que, diz, costumava fazer por ele diariamente. A Promotoria acabou usando isso como evidência de que ela havia ajudado seu parceiro em um assassinato do qual ela não sabia nada. Megan e seus pais alegam que a polícia e o Crown Prosecution Service (CPS, o Ministério Público do Reino Unido) estavam cientes do contexto do abuso doméstico desde o início, mas optaram por processar Megan de qualquer maneira. Falando sobre o caso de Megan, o CPS disse à BBC que "o apoio à vítima está na vanguarda de todas as etapas de uma acusação". "Não é papel do Crown Prosecution Service decidir se uma pessoa é culpada de uma ofensa criminal, mas fazer avaliações justas, independentes e objetivas sobre se é apropriado apresentar acusações para um júri considerar", diz o órgão, por meio de um comunicado. "Estamos convencidos de que nossa decisão de apresentar essa acusação foi correta, de acordo com nossa avaliação legal, e respeitamos o veredicto que o júri chegou neste caso". "Não é do interesse público processar vítimas de abuso doméstico, que foram coagidas ou forçadas a cometer um crime. Isso simplesmente não deveria acontecer. Mas acontece rotineiramente", diz Katy Williams, do Center for Women's Justice, à BBC. Katy acrescenta que há uma "falha" em proteger mulheres e meninas de "processos inapropriados". O governo britânico já havia reconhecido publicamente a ligação entre violência doméstica e infrações das quais mulheres são acusadas. Em 2017, quase 57% das mulheres presas no Reino Unido disseram ter sofrido abuso doméstico. O Center for Women's Justice defende que seja feita uma emenda à lei de legítima defesa, que desse às sobreviventes que agem contra seu agressor a mesma proteção dada a quem se defende contra um invasor. Além disso, a entidade preconiza uma defesa legal para vítimas de abuso doméstico, com base na Lei da Escravidão Moderna de 2015, que daria a sobreviventes proteção semelhante às vítimas de tráfico que são obrigadas a cometer infrações. Os pais de Megan dizem que, no dia em que ocorreu a prisão do casal, foram informados por um inspetor da Polícia Metropolitana de Londres que detalhes da coerção e violência a que Megan foi submetida seriam usados como prova durante seu julgamento. A evidência do abuso doméstico também estava disponível para o CPS, depois que Megan fez a denúncia à polícia. Em dezembro de 2020, o CPS julgou Megan por obstrução da justiça, mas o júri não chegou a um acordo sobre o veredicto. Um relatório psiquiátrico detalhado enviado ao CPS, ao qual a BBC teve acesso, elencou as condições de saúde mental que Megan estava sofrendo como resultado do abuso doméstico de seu ex. Durante dois anos, Megan foi aconselhada por profissionais médicos de que era muito arriscado iniciar o tratamento para Transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), porque a intensidade do tratamento, combinada com os procedimentos legais, poderia ter sido muito perigosa para ela. "Estava tomando antipsicóticos neste momento e o CPS tinha acabado de chamar meus pais como testemunhas de acusação. Estava sozinha." Megan diz que esses sintomas, incluindo alucinações, perda de visão e ataques de pânico, continuaram ao longo dos dois anos em que ela teve que enfrentar a Justiça. Apesar disso, o CPS optou por levá-la aos tribunais de novo. Após ir a julgamento pela segunda vez, em julho de 2021, ela foi considerada inocente. A BBC apurou que, além dos custos incorridos pelo CPS, 32 mil libras (R$ 192 mil) foram gastos em advogados externos para processar Megan. Em resposta ao relatório do Center for Women's Justice, o CPS disse que está atualizando sua orientação legal. "Já estamos tomando medidas para melhorar todos os aspectos de como um caso é tratado, mas é necessário aceitar mais e consideraremos essas ações recomendadas com cuidado", afirmou em comunicado. "O CPS estava continuando o trabalho do meu ex para ele - eu ainda estava sob o controle daquele homem", diz ela. "Acho que o CPS estava mais interessado em obter uma condenação do que em justiça real". "Acho que eles me processaram na esperança de que isso significaria uma pena mais longa para meu ex-parceiro. Eles tentaram me usar como um peão em sua partida de xadrez. Era um dano colateral fácil para eles."
2022-04-08
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60999953
sociedade
O mototaxista que mudou de vida após encontrar e devolver US$ 50 mil
A história do que aconteceu com Emmanuel Tuloe, na Libéria, tem os ingredientes de uma lenda moderna. O jovem de 19 anos, vestido com um uniforme escolar, com camisa azul e bermuda, se destaca em uma classe cheia de alunos pelo menos seis anos mais novos que ele. Emmanuel, que já havia abandonado o ensino fundamental, está feliz, apesar da diferença de idade. Em 2021, enquanto dirigia seu mototáxi, seu meio de ganhar a vida, ele encontrou US$ 50 mil (cerca de R$ 230 mil), em uma mistura de dólares e notas liberianas, embrulhados em um saco plástico na beira da estrada. Ele poderia facilmente ter guardado aquela quantia de dinheiro, mas decidiu entregá-la para a tia cuidar. Quando o legítimo dono pediu ajuda pela rádio nacional para encontrar o dinheiro, Emmanuel apareceu e o devolveu. Fim do Matérias recomendadas Embora alguns o ridicularizassem pela honestidade - as pessoas zombavam dele dizendo que morreria pobre - o ato trouxe recompensas generosas, incluindo uma vaga no Ricks Institute, uma das escolas mais prestigiadas da Libéria. O presidente George Weah deu a ele US$ 10 mil (R$ 46 mil) e o dono de um meio de comunicação local também doou dinheiro para o jovem. O dono do dinheiro que o jovem encontrou também doou US$ 1.500 (R$ 6.900) em mercadorias. Além de tudo isso, e talvez de forma mais significativa, uma universidade nos Estados Unidos ofereceu ao jovem uma bolsa integral assim que ele terminar o ensino médio. Agora, ele se dedica a concluir os estudos no instituto Ricks, criado há 135 anos para a elite da sociedade liberiana, que descende dos escravizados libertos que fundaram o país africano. Sua estrutura de dois andares fica em um belo e arborizado campus a 6 km da costa atlântica. "Estou confortável na escola. Não porque Ricks tem um nome com tanto prestígio, mas por causa das disciplinas acadêmicas e morais", disse Emmanuel, sorrindo e ajustando a gola da camisa enquanto falava. Como muitas crianças liberianas de origem rural pobre, Emmanuel abandonou a escola aos 9 anos de idade para tentar ganhar um pouco de dinheiro e ajudar sua família. Isso ocorreu logo depois que o pai dele se afogou em um acidente e o garoto teve que ir morar com a tia. Alguns anos depois, tornou-se mototaxista. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Depois de tanto tempo fora do sistema educacional, ele precisa de muito apoio extra na escola. Quando Emmanuel entrou pela primeira vez na sexta série, "ele se sentiu um pouco inferior. Não conseguia se expressar em sala de aula, mas trabalhamos com ele dia após dia", disse a professora dele, Tamba Bangbeor, à BBC. "Academicamente, ele veio com fundamentos baixos, então o colocamos em um programa de enriquecimento educacional. Isso o ajudou", disse ela. Ele ainda precisa cursar seis anos de ensino médio e, quando tiver 25, se formará. Mas ele não se importa com a diferença de idade em relação aos colegas, a quem descreve como "amigáveis". Emmanuel também gosta do sistema de internato, avaliando que "a vida no dormitório é boa porque é uma maneira de aprender a viver sozinho algum dia". Olhando para o futuro, ele quer fazer faculdade de contabilidade "para se preparar para ajudar a orientar o bom uso do dinheiro do país". Sua discrição e honestidade têm sido vistas como modelos em um país atormentado pela corrupção e onde os funcionários públicos são frequentemente acusados ​​de roubar recursos do Estado. Refletindo sobre a forma como algumas pessoas zombaram dele por devolver o dinheiro, Emmanuel admite que poderia ter usado o dinheiro para melhorar sua situação financeira, "mas eu nunca teria tido as oportunidades que tenho agora". Emmanuel agradeceu a Deus por lhe dar as recompensas e também expressou "gratidão" a seus pais por terem "inculcado nele a honestidade". "Minha mensagem para todos os jovens é: 'É bom ser honesto; não pegue o que não pertence a você'." Os professores também agradecem pela presença de Emmanuel. "Como escola, não apenas nos beneficiamos recentemente de sua honestidade. Ele também é o goleiro substituto do time de futebol da escola", disse Bangbeor sobre seu aluno - um torcedor obstinado do Chelsea - que joga no time com alunos com idade mais próximas à dele. Seus colegas de classe também comemoram. Bethlene Kelley, de 11 anos, o chamou de "um grande amigo com quem gostamos de sair e cuidar porque ele é quieto e não gosta de conversar muito. Ele é leal, respeitoso e honesto". Já os outros mototaxistas parecem felizes com as novas perspectivas do ex-colega. Um deles, Lawrence Fleming, de 30 anos, disse à BBC que abandonou a escola quando adolescente na 9ª série e acompanhou de perto a história de Emmanuel. "É bom que Emmanuel tenha voltado à escola, somos gratos a Deus por ele", disse. Em pé, na beira de uma estrada na cidade de Brewerville, no oeste da Moróvia, o motociclista chinês Boxer deu alguns conselhos. "Que ela permaneça na escola para seu futuro e o futuro de seus filhos... agora ele tem uma oportunidade que alguns de nós não tivemos."
2022-04-06
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60997350
sociedade
A médica que quer mudar visão sobre a morte no século 21: 'Medicina não é suficiente'
Há algo de errado na forma que lidamos com a morte e precisamos fazer alguma coisa para mudar isso. Essa é a principal conclusão de um relatório produzido pela Lancet Commission on the Value of Death, a Comissão sobre o Valor da Morte da revista científica Lancet, um grupo de especialistas que se reuniu para investigar o que significa morrer nos tempos atuais. Logo nos primeiros parágrafos do artigo, os autores apontam que "a história do morrer no século 21 é cheia de paradoxos". "Enquanto muitas pessoas recebem tratamentos excessivos e fúteis nos hospitais, longe da família e da comunidade, outra parcela da população não tem acesso a nenhum tipo de terapia, nem para aliviar a dor, e morre de doenças preveníveis", escrevem. Fim do Matérias recomendadas A BBC News Brasil conversou com a médica inglesa Libby Sallnow, autora principal do relatório e especialista em cuidados paliativos. Ela atua no serviço público de saúde do Reino Unido, no St. Christopher Hospice, uma casa de cuidados para pacientes terminais, e nas universidades de Bruxelas, na Bélgica, e College London, na Inglaterra. Confira os principais trechos da entrevista a seguir. BBC News Brasil - No seu ponto de vista, o que é a morte? Libby Sallnow - Nós costumamos falar da morte como um evento. E, como mencionamos no artigo, a morte se tornou mais difícil de acontecer, graças à tecnologia médica. Partes do corpo que antes falhavam, e definiam esse fim, agora podem ser substituídas por máquinas ou por novos órgãos em transplantes. A tecnologia está ampliando os limites do que entendemos como morte. Mas, de forma geral, a morte é vista como um ponto final, um evento que acontece com todos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Brasil - E o que é morrer? Sallnow - Morrer é um processo cujo entendimento fica muito mais aberto, especialmente na hora de definir o começo. Em termos médicos, falar que alguém está morrendo envolve os últimos dias, ou as últimas horas. Mas os cuidados paliativos podem começar a partir do diagnóstico de uma doença, ainda que a pessoa esteja se sentindo bem naquele momento. Para algumas pessoas, morrer pode durar muito tempo mais. Alguns até acreditam que esse processo se inicia assim que nascemos. Afinal, a cada dia que passa, estamos mais próximos de morrer. Essa resposta então vai depender da perspectiva de cada um e se você está analisando a questão do ponto de vista médico ou filosófico. Muitas pessoas que conheci na minha prática clínica me disseram que estavam morrendo. E isso não significava que a morte delas aconteceria nos próximos dias. Elas apenas queriam dizer que o processo já havia começado. Como mencionei mais acima, definir o que é morrer se tornou mais difícil com o avanço da medicina. Antigamente, as pessoas estavam com uma doença ou sofriam um acidente e era bem mais fácil de dizer se elas iam morrer ou se recuperar. Agora, com as doenças crônicas, como a demência e a insuficiência cardíaca, falamos de um processo que pode levar anos. Então o foco nesses casos é tentar viver bem, mesmo como uma enfermidade considerada terminal. Pode ser, inclusive, que você acabe morrendo de outra coisa no caminho. BBC News Brasil - É curioso como essa discussão ultrapassa as barreiras da ciência. O cantor e compositor brasileiro Gilberto Gil, por exemplo, tem uma música em que ele diz "não ter medo da morte, mas, sim, medo de morrer"... Sallnow - Isso é muito interessante de se pensar. A compreensão cultural do que morrer significa é geralmente mais poderosa do que o conceito técnico da medicina. As narrativas populares é que nos dão o contexto necessário para entender isso. Inclusive, o famoso cineasta americano Woody Allen tem uma frase famosa a esse respeito: "Eu não tenho medo de morrer. Só não quero estar lá quando acontecer". Sim, a morte é amedrontadora e desconhecida. Nós perdemos o controle e nos tornamos dependentes dos outros. Tudo isso vai contra a narrativa da nossa época, em que independência, força, autonomia e controle do corpo e das próprias decisões são tão importantes. E isso me leva a uma outra discussão sobre o desconhecimento. Há uma noção de que a morte costumava ser mais familiar para muitas comunidades e culturas em todo o mundo. As pessoas estavam acostumadas com o que era morrer. Na minha profissão, vejo pessoas morrendo o tempo todo. Mas, fora desse contexto, especialmente nos países mais ricos, as pessoas não veem mais isso. Nós morremos cada vez mais tarde, o que é ótimo. Trata-se de uma conquista da medicina e da saúde pública. Mas isso também significa que você pode ser muito mais velho quando vê a primeira pessoa mais próxima morrer. Isso pode ser muito assustador e no geral não se sabe muito bem quais são os sinais e como oferecer apoio nesse momento final. Existe um padrão do que acontece quando a pessoa está nas suas últimas horas. Ocorre uma alteração no ritmo da respiração, há mudanças de fala e outros detalhes muito comuns. Mas, se você nunca viu isso antes, essa cena pode ser assustadora. Isso faz com que os amigos e familiares enviem a pessoa que está morrendo para o hospital, porque há uma ideia de que essa mudança de padrões do corpo não é natural. E, claro, elas têm medo de não fazer a coisa certa pela pessoa que amam. Há um temor de que o indivíduo está sofrendo e sem o apoio necessário. O resultado disso é o aumento das mortes em hospitais. Me parece que temos um enorme desafio pela frente. A morte se tornou tão desconhecida e fora do radar que isso nos leva a um círculo vicioso. Nós transferimos a responsabilidade de cuidar da pessoa para o sistema de saúde, quando o fim da vida pode acontecer no conforto de casa em muitos casos. De certa maneira, isso me lembra de toda a discussão sobre o parto. Há uma medicalização do nascimento e também da morte. É claro que, em ambos os casos, há um componente ligado à medicina, mas não podemos nos esquecer da importância da família e dos relacionamentos próximos nesses momentos-chave. Nosso objetivo com a comissão foi mostrar que há algo errado. E precisamos, sim, de medicações, cuidados paliativos e suporte à saúde na hora da morte. Mas isso não pode ser a única coisa que oferecemos. Nós temos ótimos serviços de cuidados paliativos espalhados pelo mundo, mas às vezes sinto que essa é a única resposta que damos à morte. É claro que o indivíduo precisa desses cuidados, de remédios para a dor, de uma boa cama... Mas tudo isso são apenas ferramentas, uma maneira de garantir que elas tenham boas conversas com familiares e amigos, para que possam refletir sobre o sentido da vida e se preparar para morrer. Essas sim são as coisas grandes, os fatores existenciais e significativos. BBC News Brasil - E como a senhora se interessou por esse assunto e direcionou a carreira para essa área? Sallnow - Quando eu era estudante de medicina, comecei a aprender sobre os cuidados paliativos. E, para mim, ser médica vai muito além de prescrever comprimidos. É claro que o tratamento é uma parte importante do meu trabalho, mas eu estava mais interessada em entender como a comunidade, as relações e os contatos são promotores de saúde. Existem muitos estudos comprovando que os sistemas de saúde não constroem vidas mais saudáveis sozinhos. O importante é o ambiente. Os determinantes sociais de saúde são muito mais poderosos para determinar a forma que vivemos e morremos. Eu sempre vi a morte como um evento tão importante, pelo qual todos nós vamos passar. É uma certeza universal. E uma coisa que percebi como voluntária de um asilo era que ninguém falava sobre morrer. As pessoas tentavam esconder e fugir do assunto, o que só torna todo o processo mais difícil para nós mesmos. Ainda quando era estudante de medicina, fui para a Índia e tive contato com um novo modelo sobre a morte, em que a comunidade estava no centro de tudo. As pessoas estavam cientes do que é morrer e elas tiraram o controle de médicos e enfermeiros. Não tinha nada parecido com isso no Reino Unido, onde só víamos hospitais e casas de cuidado. Eu voltei da Índia muito inspirada e com vontade de mudar a visão que temos sobre o morrer. Há 20 anos, comecei a trabalhar com colegas de várias partes do mundo para conhecer e desenvolver diferentes modelos para trazer a morte de volta ao controle da comunidade. BBC News Brasil - Além da Índia, a senhora lembra de outros modelos interessantes de como lidar com a morte de forma mais saudável e sustentável? Sallnow - Na Áustria, há uma iniciativa chamada "últimos socorros", numa referência aos primeiros socorros aos quais estamos acostumados. A ideia é empoderar todo mundo sobre o que fazer diante da morte das pessoas. Temos projetos que focam na comunidade e tentam mostrar como é possível ajudar os outros num momento como esse. Eles também ensinam o que acontece perto da morte, o que dizer para a pessoa e como dar o suporte adequado. Existe também o projeto das doulas da morte, inspiradas nas doulas que fazem o parto. O interessante é que essa iniciativa foca nas mulheres mais velhas, que são aquelas que comumente mais tiveram contato com a morte dentro daquela comunidade. A ideia é que elas ensinem e promovam abordagens sobre o que falar para uma família em luto e como identificar quando o processo natural da morte se inicia. Por fim, há também um modelo de "alfabetização sobre a morte". A ideia é usar o conceito da alfabetização em saúde, que nos ensina sobre a importância da dieta e dos exercícios físicos para prevenir as doenças. No caso da morte, a proposta é fazer planos para o futuro e avisar as pessoas próximas, por exemplo, se você não quer ir para uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI) ou não deseja fazer algum tratamento específico e não puder decidir na hora. BBC News Brasil - Existe uma desigualdade na forma como a morte é abordada em países ricos e pobres? Sallnow - Sim, há uma enorme desigualdade. Se você só considerar a expectativa de vida, há uma diferença de décadas entre os índices de nações ricas e pobres. Um dos participantes da nossa comissão vem do Malauí e a expectativa de vida lá é quase 20 anos mais baixa em relação ao Reino Unido. Em outros países, essa disparidade é ainda maior. Há diferenças significativas também se você analisar as principais causas de morte de cada lugar. Nos mais pobres, há mais óbitos por conflitos, violência ou doenças e acidentes preveníveis. E ainda existe uma enorme desigualdade no acesso aos serviços e às políticas públicas de saúde. Tudo isso ajuda a determinar como, quando e porque cada um de nós vai morrer. Mesmo para aquelas pessoas dos países mais pobres que têm acesso aos cuidados paliativos, a última disparidade chocante é a falta de acesso a formas de aliviar a dor. Existem mapas mostrando como é a distribuição de morfina [remédio usado para aliviar esse sintoma] por várias partes do globo. No Canadá e nos Estados Unidos, acontece um uso além da conta. Já na Índia, na África e na Rússia temos uma falta desse medicamento. Então muitas pessoas ainda estão morrendo com dor, quando é possível aliviar esse sofrimento. BBC News Brasil - A senhora mencionou o aumento da expectativa de vida nos últimos séculos. Como uma vida mais ampla modificou, para melhor e para pior, a nossa relação com a morte? Sallnow - A expectativa de vida é uma conquista da qual devemos nos orgulhar profundamente. E isso só foi possível graças à medicina, à saúde pública, à vacinação e às mudanças na habitação. Todos esses diferentes determinantes sociais contribuíram de alguma maneira para isso, o que é brilhante e admirável. Mas o problema agora é que morremos cada vez mais tarde e por doenças crônicas, e não de forma inesperada, por acidentes ou doenças preveníveis. Existe então uma transição, em que os óbitos ocorriam de forma aguda e em indivíduos mais jovens, para mortes por condições crônicas múltiplas, que levam dez ou mais anos. No cenário atual, a deterioração da saúde acontece de forma muito lenta. Os sistemas de saúde, porém, sofrem para lidar com essa transição. Porque eles são baseados num modelo de cuidado agudo. Acontece o diagnóstico de uma infecção ou de uma fratura no quadril, aquilo é tratado e, pronto, você recebe alta. Mas agora a tendência é precisarmos cada vez mais de intervenções regulares, por muitos e muitos anos. Isso revela a necessidade de um novo modelo de saúde. Porque estamos falando agora de obesidade, tabagismo, transtornos mentais e várias outras condições em que a prevenção é muito mais relevante que o tratamento. Devemos trabalhar mais próximos da própria pessoa e de seus familiares. Afinal, são eles que farão as escolhas no dia a dia. Já o modelo antigo, que imperou por pelo menos 50 anos, é muito mais paternalista. O médico fazia o diagnóstico, prescrevia o tratamento e só. BBC News Brasil - Em muitas comunidades, falar sobre morte é um tabu. Esse é um fenômeno recente ou vem de uma tradição antiga? Sallnow - Existem vários exemplos disso ao longo da história. Algumas tradições populares falam sobre a morte de forma bem aberta. Há lugares que fazem funerais públicos, promovem conversas sobre o que há depois da vida e preparam as pessoas sobre o que é morrer. Outros lugares, na contramão, até falar a palavra morte já é sinal de má-sorte. Um exemplo clássico de celebração daqueles que já se foram acontecem no México e no Japão. Mas existem também outros lugares em que amigos e familiares visitam os túmulos e conversam constantemente sobre a pessoa que morreu, até no sentido de mantê-la viva na forma de memórias coletivas. Há comunidades que veem a morte como parte da vida. E outras que, por questões religiosas e culturais, não querem nem falar no assunto. Porém, mesmo nas sociedades em que a morte é um tabu, existem maneiras de abordar o tema de forma indireta ou figurada. Afinal, os conceitos sobre a morte já estão lá, eles só não falam diretamente nisso. Mas percebemos que existe atualmente um sentimento geral de não se falar abertamente sobre a morte. Isso se deve parcialmente ao fato de as pessoas terem medo, mas também porque há um desconhecimento generalizado e uma ilusão de que basta ir ao hospital para resolver todos os problemas de saúde. A morte é triste e ninguém quer perder as pessoas que ama. Não queremos minimizar isso de jeito nenhum. Mas, quando não falamos sobre o tema ou não nos preparamos para esse fato, isso é bastante prejudicial, já que não fazemos nenhum plano, não nos despedimos e quem fica não sabe como lidar com tudo. BBC News Brasil - Nós estamos no meio de uma pandemia, em que as imagens de UTIs e pacientes intubados se tornaram comuns, assim como os números crescentes de mortes por covid. Isso nos aproximou ou nos afastou ainda mais do significado de morrer? Sallnow - A pandemia teve muitos impactos. Primeiro, ela escancarou diariamente nos jornais e nas televisões o que é morrer. Por um lado, isso aumentou o medo de todos nós. Até porque a morte sempre foi apontada como a consequência derradeira da covid. Por outro, toda essa crise reforçou a importância de estar conectado em tempos tão difíceis. É só lembrar das imagens de funerais em que só uma pessoa podia estar presente, ou a ideia de alguém morrendo sozinho, sem a família, isolado num hospital... Isso tudo nos provou que a medicina não é suficiente para lidar com a morte. Você necessita de um excelente sistema de saúde, mas as pessoas precisam estar próximas da família. Os laços sociais fortes são importantes demais para o bem-estar de todos. A pandemia então comprovou o quão ruim é estar sozinho e como a falta de suporte social pode ser destrutiva. Num nível existencial, me parece que as pessoas estão mais reflexivas sobre o que significa a mortalidade nesse momento. Todos nos tornamos mais conscientes do papel da perda e da morte em nossas vidas, já que muitos foram afetados pela partida de alguém querido. BBC News Brasil - E também não podemos ignorar o impacto que as mudanças climáticas terão no mundo nas próximas décadas. O efeito disso na perspectiva sobre a mortalidade pode ser parecido ao que vimos na pandemia? Sallnow - As mudanças climáticas desafiam a noção de que temos controle sobre a natureza. De certa maneira, há uma similaridade com a pandemia. Sentimos que estamos acima e mandamos na natureza, quando na verdade fazemos parte dela. É preciso considerar que o excesso de tratamentos médicos e essa tentativa de estender a vida tem um grande custo financeiro. Isso por sua vez representa um enorme impacto no planeta, do ponto de vista de recursos naturais e da emissão de carbono. Em última análise, esse exagero pode levar a uma piora da situação global e provocar um aumento nas doenças e nas mortes. Ou seja, nossa busca por ampliar a vida hoje pode afetar a saúde das gerações futuras. Devemos então colocar na balança o preço ético, financeiro e climático de tratamentos que não trazem benefícios claros ao paciente. E há muitas terapias fúteis que são oferecidas nos hospitais, especialmente nos momentos mais críticos, que não vão mudar em nada a progressão do quadro. BBC News Brasil - No primeiro relatório, vocês mencionam "os cinco princípios de uma utopia realista". A senhora poderia explicar quais são eles e o que significam? Sallnow - Nós queremos ser esperançosos sobre o futuro, porque descrevemos muitas coisas que estão erradas e não funcionam. Nosso objetivo, então, foi propor como é possível mudar esse cenário para melhor. Nós podemos nos inspirar nos sistemas que existem para outros problemas. O combate à obesidade, por exemplo, envolve uma série de políticas públicas diferentes com um objetivo em comum. Tudo está conectado e precisamos entender essas questões de uma maneira mais ampla. O mesmo vale para o morrer. Não basta apenas ampliar a oferta de cuidados paliativos ou focar só nas ações comunitárias. Há muitas e muitas áreas que precisam ser abordadas. Nós definimos então cinco princípios que, se colocados em prática, podem mudar radicalmente a forma como as pessoas lidam com a morte e com o luto. Nós focamos nas desigualdades, no papel das relações sociais e das redes de contato, a ideia de que a morte não é apenas um evento fisiológico, mas envolve também questões espirituais e existenciais, e a proposta de que tudo isso deve ser abordado de uma maneira que seja apropriado para cada cultura. Essas conversas sobre morrer são importantes para todos nós durante a vida. Então precisamos encontrar maneiras de integrá-las no nosso dia a dia. Há exemplos ao redor do mundo em que alguns aspectos dessa utopia realista já estão presentes. O que precisamos agora é começar a ampliar essas iniciativas, para que elas deixem de ser ações isoladas. A ideia é ver como podemos aprender e adaptar esses projetos para cada sociedade, sempre respeitando os aspectos culturais e religiosos. BBC News Brasil - A ideia da imortalidade é algo que a humanidade sempre perseguiu, e vemos isso em histórias antigas e recentes. A senhora acha que chegará o dia em que seremos imortais? Ou vida e morte são eventos que estarão sempre conectados? Sallnow - A imortalidade sempre foi um sonho. Isso é histórico e está presente no nosso imaginário há milênios. Sempre existiram lendas sobre um elixir especial que você toma e rejuvenesce ou vive para sempre. Mas eu diria que, no momento, diante de tantas desigualdades que vemos em todo o mundo, nosso foco não deveria ser em estender ainda mais a vida daquele grupo minoritário que é capaz de pagar por isso, enquanto a maior parte do mundo ainda está morrendo de doenças preveníveis. Isso é uma questão de justiça social. Enquanto não nos assegurarmos que a maior parte do nosso mundo vive de forma mais igualitária, é injusto investir tanto dinheiro na busca pela imortalidade. Em segundo lugar, eu me questiono: onde essas pessoas que querem viver pra sempre acham que estão? Porque há um claro conflito entre mudanças climáticas e imortalidade. A menos que mudemos radicalmente a forma que vivemos e consumimos os recursos do planeta, não haverá a menor possibilidade de vivermos por 200 anos ou mais.
2022-04-05
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60959537
sociedade
As parcerias platônicas que unem pares 'até que a morte os separe'
Todos os relacionamentos entre companheiros de vida precisam ser românticos e sexuais? As pessoas que optam por parcerias de vida platônicas respondem com um sonoro "não". Deena Lilygren, que é mãe na casa dos 40 anos de idade, mora há anos com sua melhor amiga Maggie Brown em Kentucky, nos Estados Unidos. Nesse período em que as duas vivem juntas, Brown conheceu seu marido. Ele se mudou para a casa onde moram as duas amigas, pediu Brown em casamento, eles se casaram e, por fim, os três compraram uma casa juntos. Quando ele foi morar com elas - e novamente, quando foi pedida em casamento -, Brown disse a ele que as duas amigas eram um "pacote". Segundo Lilygren, "ela queria ter certeza de que ele não tinha a mesma expectativa que muitas pessoas parecem ter - que o casamento é a hora em que você abandona seus amigos". Brown e Lilygren têm um relacionamento que vai além da maioria das amizades. Lilygren considera que elas são "parceiras de vida platônicas", o que significa que são as principais companheiras uma da outra - o mesmo tipo de relação que as pessoas normalmente associam a cônjuges ou parceiros amorosos, a não ser pela ausência de sexo ou romance no seu relacionamento. Fim do Matérias recomendadas A expressão "parceiras de vida platônicas", pouco conhecida no passado, vem sendo popularizada nos últimos tempos por duas mulheres de Singapura na casa dos 20 anos de idade, April Lee e Renee Wong. Elas discutem sua parceria de vida platônica (PVP) no TikTok, onde Lee tem mais de 51 mil seguidores. Lee e Wong firmaram sua amizade como PVPs quando Wong mudou-se de Singapura para Los Angeles, nos Estados Unidos, para morar com Lee em setembro de 2021. Como Lee descreveu em um artigo sobre sua parceria para o site Refinery29, elas não eram apenas melhores amigas, mas sim "parceiras de apoio financeiro", que se ajudavam mutuamente para atingir seus objetivos de vida com mais eficácia e queriam estar juntas não só morando juntas temporariamente, mas sim a longo prazo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A popularidade da sua história gerou diversas reportagens sobre esse tipo de amizade comprometida, incluindo entre os homens. Mas relacionamentos como esses não são totalmente novos. Em alguns casos, suas raízes datam do século 18. Embora alguns certamente fossem relacionamentos homossexuais disfarçados, é bem possível que muitos fossem exatamente como o de Lee e Wong - apenas não existia ainda o termo "PVP" para descrevê-los. Para algumas pessoas atualmente em relacionamentos PVP, como Lilygren, esse termo é uma forma importante não apenas de definir sua situação de vida, mas também de salientar a importância das parcerias não românticas. "Culturalmente, na verdade, nós desvalorizamos a amizade em comparação com relacionamentos como o casamento. As pessoas esperam que nós tenhamos amizades secundárias e transitórias, que ficam marginalizadas quando um dos amigos se casa", afirma Lilygren, "e realmente não há uma palavra para [descrever] um amigo que é parceiro de vida." O termo "PVP" preenche essa lacuna. Dos tempos coloniais até cerca de 1850, as pessoas firmavam parcerias de vida - casamentos - por razões "pragmáticas", segundo Eli Finkel, professor da Universidade do Noroeste em Illinois, nos Estados Unidos, e autor do livro The All-or-Nothing Marriage: How the Best Marriages Work ("O casamento do tudo ou nada: como os melhores casamentos funcionam", em tradução livre). Para Finkel, "as distintas funções do casamento naquela época giravam em torno da sobrevivência básica - literalmente, coisas como alimentação, roupas e abrigo". Para as mulheres (que eram mantidas fora da força de trabalho e não conseguiam sustentar-se de forma independente), ter um marido era fundamental para sobreviver. Mas isso mudou para muitas pessoas em lugares como o Reino Unido e os EUA no final dos anos 1800. Nesses países, as mulheres de classe média já podiam ir à escola, consolidando o caminho para que elas começassem a trabalhar, segundo a historiadora LGBTQIA+ norte-americana Lillian Faderman. Com isso, as mulheres não precisavam mais depender de maridos para ter renda e algumas decidiam viver com outras mulheres. Nessa época, surgiu a expressão "casamento de Boston" para descrever "duas mulheres vivendo juntas em um relacionamento comprometido de longo prazo", segundo Faderman. Ela conta que ninguém sabe ao certo de onde veio essa expressão, mas suspeita-se que poderá ter se originado no romance The Bostonians, de Henry James, publicado em 1866, que apresentava um possível relacionamento amoroso entre duas mulheres. "Se eram relacionamentos lésbicos ou quantos desses relacionamentos eram lésbicos... nós nunca saberemos", afirma ela, "pois esse tipo de coisa não era declarado no papel - as pessoas não falavam abertamente sobre o sexo entre as mulheres". O que foi declarado no papel foram os pensamentos de Eleanor Butler, uma das chamadas Senhoras de Llangollen, duas mulheres ricas cujos recursos financeiros permitiram que elas se afastassem de suas famílias na Irlanda para viver juntas no País de Gales no final dos anos 1700. Seu relacionamento foi muitas vezes chamado de "amizade romântica". Butler se referia à sua parceira de vida Sarah Ponsonby como sua "querida" e detalhava seus dias juntos em seu diário, mas nunca mencionou relações sexuais. Embora seja impossível conhecer a verdadeira natureza desses relacionamentos históricos, os historiadores sugerem que essas "amizades românticas" fossem bastante comuns na época, de forma que é bem possível que algumas delas não fossem sexuais, servindo como os precursores dos PVPs de hoje. Eli Finkel afirma que, entre meados dos anos 1800 e a década de 1960, o casamento saiu da "era pragmática" e entrou na "era baseada no amor", quando as pessoas começaram a formar parcerias de vida por amor e intimidade, não por sobrevivência. A industrialização trouxe os jovens para as cidades, fazendo com que eles ficassem, "pela primeira vez... geográfica e economicamente independentes das suas famílias", segundo Finkel. E, com essa liberdade, veio a ênfase na "realização emocional" na escolha dos parceiros de vida. Finkel afirma que, nos anos 1960, observou-se nova mudança das necessidades das pessoas com relação aos parceiros de vida no mundo ocidental. "O amor e a intimidade permaneciam necessários, mas não eram mais suficientes", afirma ele. Os casamentos de hoje também precisam "permitir que as pessoas possam ser autênticas e busquem seu crescimento pessoal". Os casamentos e as parcerias de vida evoluíram a um ponto em que muitos esperam que seus parceiros sejam tudo para eles, desempenhando diversos papéis que incluem a parceria sexual, coabitação, parceria na criação dos filhos, fornecimento de apoio emocional e parceria financeira, entre outras funções. Pode ser pedir muita coisa a uma só pessoa e "muitos relacionamentos estão sentindo a pressão", segundo Finkel. Já os PVPs oferecem uma alternativa para os relacionamentos de longo prazo. Não se espera que um parceiro platônico atenda às necessidades românticas e sexuais e as pessoas que têm um PVP não consideram seus parceiros românticos seu principal sistema de apoio emocional. Algumas pessoas unem suas finanças às do seu PVP, como normalmente se espera de casais casados, mas outras não, ou unem apenas parcialmente. Lilygren conta que não têm contas conjuntas com Brown, "mas chegamos a um ponto em que já compramos tantas coisas juntas para a casa, incluindo os móveis, que tudo parece inseparável". De forma geral, iniciar um relacionamento PVP tem muito em comum com um casamento. Alguns até se casam, em parte pelos direitos legais decorrentes da união (como garantir que seus parceiros sejam considerados seus parentes mais próximos) ou para demonstrar seu compromisso para os familiares e amigos que talvez não consigam entender de outra forma. Ainda se aplicam as discussões práticas sobre como compartilhar a vida, além de negociações adicionais sobre como incorporar os parceiros amorosos de cada um ao relacionamento e/ou aos acordos de vida. As pessoas que não conhecem os relacionamentos PVP muitas vezes têm dificuldade com a ideia de que duas pessoas possam compartilhar tanta intimidade e não ter relações sexuais. Foi preciso que as norte-americanas Jay Guercio e Krystle Purificato - que falaram sobre seu relacionamento PVP no reality show The Cut - viralizassem no TikTok para que sua família e amigos finalmente entendessem que elas são totalmente platônicas, apesar do seu casamento. E, para Lilygren, escrever sobre seu relacionamento com Brown para o site norte-americano HuffPost acabou por ajudar a explicar a situação do trio para Brown e a família do marido dela. "Eles começaram a nos levar mais a sério como uma unidade familiar, o que é bonito", afirma Lilygren. Mas o artigo também recebeu críticas. "Houve muitos comentários negativos online porque as pessoas não conseguem imaginar que nossa situação não é sexual, o que é muito ruim", segundo ela. Atualmente, embora o estigma contra as pessoas que se identificam como LGBTQIA+ não tenha sido erradicado e alguns casais homossexuais ainda não saiam a público ou não se identifiquem dessa forma, é menos provável que pessoas que vivem com parceiros platônicos o façam para ocultar o romance. O aumento da aceitação de outras orientações além das heterossexuais facilitou para muitas pessoas manter relacionamentos abertamente homossexuais. E, à medida que mais jovens falam publicamente sobre suas opções por relacionamentos PVP, eles divulgam que existe mais uma opção de parceria de vida. Lilygren escreveu abertamente sobre namorar mulheres no seu artigo no Huffpost e sua PVP é casada com um homem. Elas planejam manter seu compromisso platônico de longo prazo. "Com certeza não me vejo vivendo algum dia longe de Maggie", afirma Lilygren. "Estou saindo com alguém já há dois anos e estou comprometida com o nosso relacionamento, mas minha forma de vida me faz feliz e não quero que nada a prejudique."
2022-04-04
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60980873
sociedade
Brasileira conta como é trabalhar nas fazendas ilegais de maconha da Califórnia
A programadora brasileira Amanda B.*, de 28 anos, foi uma das estrangeiras que decidiu ir para Califórnia, nos Estados Unidos, e viver a dura rotina de um "trimmigrant". Eles são responsáveis por colher e trimar a maconha, durante meses, em fazendas ilegais espalhadas pelo Estado americano. O uso recreativo já é liberado no território desde 2018, sendo que somente maiores de 21 anos podem consumir. No entanto, devido às altas taxas e licenças impostas aos produtores legais, o mercado informal cresce a cada ano. Conhecida como Emerald Triangle ("Triângulo das Esmeraldas"), a área é responsável por ser a maior região produtora de maconha em solo americano, atraindo imigrantes que desejam fazer muito dinheiro em pouco tempo. Amanda chegou a ganhar entre entre US$ 100 e US$ 150 (entre R$ 500 a R$ 750) por dia nas cinco semanas que trabalhou lá. Apesar do bom dinheiro, ela não recomenda a experiência — que é crime — a ninguém. Pessoas pegas pela polícia podem ser deportadas ou expulsas dos EUA e até mesmo responder pelo crime no Brasil. As autoridades americanas vêm promovendo ações contra as fazendas ilegais de maconha. Segundo dados oficiais e balanços de 2021 do Departamento de Justiça da Califórnia, o governo estadual erradicou 1,2 milhão de plantas de maconha e apreendeu 81 toneladas da droga. Em 491 operações policiais foram apreendidas 165 armas. O governo não informa quantas pessoas foram presas. Fim do Matérias recomendadas "Você vê pessoas sentadas nas calçadas com placas procurando fazendas de maconhas. Os fazendeiros vão andando de carro pela cidade", diz à BBC News Brasil. Assim como eles, a programadora também foi em busca dessa promessa, já que precisava se mudar para Europa no mesmo ano e não tinha recursos financeiros suficientes. Diferentemente de muitos que procuram a região do "Triângulo Esmeralda" para começar o trabalho, ela estava na cidade de Santa Cruz. "Não é algo tão seguro de se fazer. Tem muita gente da Europa e do México. Eu só fui porque um amigo já tinha ido algumas vezes", conta. Com a ajuda desse amigo, ela embarcou para os EUA e como a atividade não é regulamentada, ela entrou no país com o visto de turista, seguiu pelas cidades da Califórnia e depois chegou à plantação. Quando chegou à fazenda de maconha em Santa Cruz, Amanda já sabia que a "hospedagem" não ia ser das melhores. No entanto, não esperava condições tão precárias como encontrou na que ficou. Dividindo o espaço com outras seis pessoas, incluindo brasileiros e estrangeiros, ela conta que eles precisavam dormir em barracas e água corrente era somente para uma pessoa. Fazer xixi e cocô também eram bem difíceis. "Cocô eu fazia em um balde e xixi no chão. Banho também era de balde", relembra. Também não havia sinal de celular, internet e tampouco água quente. Mesmo diante do frio, o único trailer que podia servir de abrigo era habitado por ratos à noite. Por lá, existia um cooler, no qual eles podiam deixar alguns mantimentos para gelar. Há fazendas, segundo ela, em que as condições de trabalho são um pouco melhores, mas quase nenhuma oferece um bom ambiente para ficar. Os gastos também chegam a ser mínimos, já que os trimmigrants não pagam por estadia e só precisam comprar mantimentos. A ida ao mercado era feita da forma mais discreta possível, pois qualquer descuido poderia ensejar uma denúncia à polícia. A preparação envolvia tomar banho, trocar de roupa e limpar bem as unhas, que ficavam pretas devido ao processo de trima da maconha. "Os dedos ficam pretos por conta do haxixe", diz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Geralmente, os donos das fazendas começam a plantar a maconha ao longo do ano e não precisam de muitos funcionários para o serviço. Na época de outono no país, as colheitas começam e há ofertas de trabalho nas plantações. Por último, é o processo de trima, que retira as folhas de cannabis próximas das flores, conhecidas como buds. É nessa fase que os fazendeiros recrutam mais pessoas, já que o trabalho demora horas. "A gente colhe, deixa secando e vai pegando os galhos. Mas o principal é trimar a maconha", conta Amanda. A rotina tinha pouco descanso: ela acordava cedo, tomava café e começava o processo. As pausas só ocorriam para refeições, idas ao banheiro e para dormir à noite. Durante a colheita, os produtores costumam pagar 80 dólares por hora de trabalho. Já quando eles trimam, os valores variam entre US$ 120 e US$ 150 por meio quilo de maconha trimada. Como não tinha muita experiência, a brasileira demorava em torno 12 horas por dia para atingir essa meta. Já os mais experientes costumavam fazer o trabalho em até oito horas. Amanda conta ainda que o serviço era bem organizado e tinha até uma espécie de gerente, anotando todas as pesagens e valores. Segundo ela, o dono do local tinha pouco mais de 30 anos e ganhava muito dinheiro com o "negócio". Ele ainda administrava uma outra fazenda maior. "É absurdamente muita grana . A mão de obra lá é muito barata. Para brasileiro que ganha em dólar soa maravilhoso, mas para a galera de lá não vale muito a pena", ressalta. Mesmo não passando nenhuma situação violenta ou de risco extremo, ela conta que não iria se não estivesse na companhia do amigo. Muitas fazendas oferecem trabalho ao imigrante, mas durante a colheita e processo de trima, muitos deles sofrem assédio moral, sexual e diversos constrangimentos. É muito comum ouvir relatos de pessoas desaparecidas, placas perguntando quando ele foi visto pela última vez e outras situações. Ela conta ainda que ouviu histórias de mulheres que eram obrigadas pelos donos das plantações a trabalharem sem a parte de cima da roupa com uma arma apontada para o rosto. Diante desses casos, como o trabalho é ilegal, não há muito o que fazer e recorrer à polícia não é uma opção viável. Em uma situação difícil, a brasileira e os outros trimmigrants quase foram pegos pela polícia americana. Quando estavam trabalhando, um helicóptero da corporação sobrevoou o local e todos começaram a se esconder em árvores. A prática ocorria com certa frequência, mas quando contaram ao dono, foram informados que os agentes nunca voltavam. A princípio, a brasileira desejava passar dois meses nas plantações de maconha. Mas mesmo achando que ia aguentar sem nenhum problema, o cansaço mental superava o físico. Ela conta que somente na primeira semana de colheita sentiu o corpo. Segundo Amanda, não é muito difícil ver pessoas brigando entre elas por dinheiro ou tendo sérios problemas mentais após o trabalho ou até mesmo durante a jornada. "Eu pensava que só queria meu dinheiro e ir embora dali. Falaram que o mental ficava abalado, mas eu não botei fé. As pessoas ficam meio malucas", diz. Situações estranhas também foram vividas pela brasileira. Seu grupo começou a brigar entre si e o clima foi ficando cada vez pior. Como a intenção era permanecer dois meses, ela disse que tentou aguentar mais um pouco, mas a sua permanência ficou insustentável. Mesmo tentando mudar para uma fazenda maior, não havia mais vaga, ela desistiu do trabalho e retornou ao Brasil. Embora tenha obtido metade do valor, ela conta que a experiência foi muito diferente de tudo que já passou na vida. "A parte emocional é a que mais pega. Do resto eu me virei bem", diz. Contudo, quem trabalha nas plantações por períodos de dois ou três meses consegue lucrar um bom valor, segundo a programadora. Questionada se iria de novo, ela é categórica na resposta: não. "Vou poder contar isso para os meus netos. Mas é um ambiente muito ganancioso, competitivo e tem gente que se deixa levar. A pessoa fica no meio de bastante coisa ruim", afirma. Ela ainda ressalta que não aconselha ninguém ir sem conhecer alguém próximo no local ou "só pela experiência", já que pode ser muito perigoso. "Eu estava em um ambiente seguro e me sentia segura. Mas a maioria das pessoas tem medo", conclui. * O nome da programadora foi omitido para preservar sua identidade.
2022-04-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60577748
sociedade
O que é 'escuta profunda' e por que ela ajuda a melhorar os relacionamentos
"Se uma mulher muçulmana usava o véu decide parar de vesti-lo, eu costumava pensar que ela era uma pessoa ruim e que não merecia ser minha amiga. Se a conhecesse, eu a intimidaria", explica a libanesa Hawraa Ibrahim Ghandour. Ela diz que pontos de vista que carrega foram formados crescendo em uma família muito religiosa. O pai dela preferia que a menina fizesse amizade com pessoas semelhantes. Hoje, Ghandour observa que continuou esses valores na vida adulta e no trabalho como professora de inglês do ensino médio. Ghandour é uma das 150 pessoas no Líbano que participaram de um projeto de escuta profunda, administrado pelo British Council (instituto cultural público do Reino Unido dedicado à difusão da língua e da cultura inglesa), em colaboração com a BBC. O objetivo era aprender habilidades ligadas à empatia, ao silêncio e à eliminação de julgamentos. Um ano depois, Ghandour vem refletindo sobre como o que ela aprendeu ajudou a abrir mais a mente. "Aprendi a ouvir mais, a não julgar, a tentar compreender e a dar tempo aos outros para comunicarem as mensagens que desejam. Depois, dar uma resposta adequada para verificar se realmente entendi o que eles queriam dizer." Fim do Matérias recomendadas O que ela agora vê como fanatismo e intolerância se estendia a qualquer um que fosse diferente. "Eu costumava ser contra os refugiados sírios no Líbano", diz. "Pensava que os sírios não cuidavam da higiene e não viviam uma vida libanesa adequada." Hoje, no entanto, Ghandour trabalha nas tardes de terça-feira em uma escola para refugiados sírios, apesar da reação chocada da própria família. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Todas as manhãs, Ghandour encontra Mayada, uma enfermeira refugiada da Síria, durante o café da manhã. Elas se conheceram quando Mayada estava cuidando da mãe de Ghandour, e agora as duas mulheres estão frequentemente na casa uma da outra. Ghandour diz que os novos relacionamentos a ajudaram a se tornar mais receptiva. "No passado, talvez eu não estivesse me comunicando efetivamente com as pessoas, ou talvez estivesse apenas ouvindo a mídia, que desempenha um papel importante na estigmatização", explica. "Se nos escutarmos, acabamos descobrindo que temos muito em comum: sentimentos humanos que compartilhamos", acrescenta. No entanto, a amizade de Ghandour com Mayada não impede que ela tenha sérias dúvidas sobre alguns aspectos da cultura da amiga. O filho de Mayada, por exemplo, está prestes a se casar com uma jovem de 16 anos, o que não é incomum na comunidade de refugiados sírios. "Eu aceito que esta é escolha dele", pondera Ghandour. "Ao ouvir profundamente, você entende que o outro não é seu inimigo, mesmo que esteja se comportando de maneira diferente." A escuta profunda é usada para lidar com conversas difíceis e garantir que ambas as partes sintam que estão sendo ouvidas. A técnica envolve ser genuinamente curioso sobre a outra pessoa, com um forte desejo de entendê-la. O objetivo principal é se conectar com o outro como indivíduo e construir uma relação de confiança. Entenda a seguir como colocar tudo isso em prática seguindo quatro passos: Mohammad, um trabalhador humanitário libanês, conta que não sabia ouvir o outro e que isso atrapalhava o processo de negociação, parte essencial do trabalho que faz. "Eu era aquela pessoa que sempre interrompia, que sempre sabia o que você estava tentando dizer", admite. "Eu começava com minhas suposições e depois tentava validá-las. E suposições podem ser mortais." Logo depois de passar pelo treinamento em escuta profunda, Mohammad conseguiu um emprego em Mosul, no Iraque, onde trabalha com autoridades locais, organizações não governamentais e agências da Organização das Nações Unidas (ONU) para criar um plano de ajuda aos deslocados da cidade. Para ter sucesso na nova posição, Mohammad teve que conciliar muitos grupos diferentes com um grande número de ideias opostas. "Devemos mandar os deslocados de volta para casa? Podemos tentar integrá-los à cidade onde estavam? Eles aceitarão morar em um bairro com pessoas de outra tribo?", lista. Mohammad lembra-se vividamente das informações que recebeu antes de começar a trabalhar. À medida que um colega descreveu a função e os requisitos, ele começou a sentir que havia algumas informações básicas de que precisaria para cumprir a função, mas que não estavam sendo compartilhadas adequadamente. "Acredite, no setor humanitário você precisa entender as personalidades de todos os envolvidos para coordenar o trabalho efetivamente. É preciso diferenciar quem é um facilitador, quem está estragando a situação e quem está bloqueando o processo." Naquele momento, Mohammad foi lembrado do treinamento de escuta profunda e da importância de dar espaço a alguém. A ideia é aguardar alguns segundos depois que a pessoa termina de falar, tanto como sinal de respeito quanto para permitir que ela compartilhe mais informações. Depois que um colega terminou de falar, ele aguardou 20 segundos. "Nesses 20 segundos, consegui ganhar um pouco de confiança e me relacionar com ele", avalia. "Depois dessa pequena espera, nosso relacionamento meio que mudou e ele compartilhou comigo experiências reais e a percepção dos indivíduos com os quais teria que trabalhar". Três meses depois, Mohammad acredita que essa pequena mudança de postura permitiu entender como a cidade de Mosul funciona e fazer grandes progressos com planos para uma resposta coordenada. Há momentos, no entanto, em que Mohammad prefere não utilizar as habilidades de escuta profunda recém-adquiridas. "No campo da ajuda humanitária, se você ficar realmente bom nisso e estiver em uma conversa individual, acaba atingindo um nível emocional muito profundo para o qual pode não estar preparado", conta. Mohammad se recorda de uma conversa com um taxista que disse ter sido açoitado 18 vezes pelo crime de levar no carro uma mulher sem a escolta de um homem, algo que era proibido quando a cidade estava sob controle do autointitulado Estado Islâmico. "Existe um lado sombrio na escuta profunda", explica Mohammad, pensativo. "Eu sei que agora não é seguro para mim ter essas conversas. Preciso ser capaz de me separar da experiência e do sofrimento dos outros. Pessoalmente, ainda não estou pronto para dominar esse lado emocional." E Ghandour, citada no início da reportagem? Como ela concilia as novas crenças com a própria criação e os valores do pai? O pai dela morreu há alguns anos, mas todas as quintas-feiras Ghandour visita o túmulo. "Sinto que ele pode me ver do céu e estou feliz por ele estar feliz e orgulhoso", confessa. "Quanto mais conhecemos os outros, menos medo e preconceito temos deles. Talvez meu pai tenha descoberto que todas as pessoas são iguais em sua humanidade."
2022-04-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60954053
sociedade
O estigma das mães que deixam seus filhos
Deixar um emprego do qual ela não gosta, mudar-se de uma cidade que não atende mais às suas necessidades ou terminar um relacionamento com alguém que ela não ama mais - nas últimas décadas, a sociedade ocidental vem avançando na defesa de mulheres que fazem essas escolhas empoderadoras. Mas e se a escolha for abandonar seus filhos? Apesar da melhoria da igualdade de gênero, as mães que tomam a difícil decisão de viver longe de seus filhos não costumam ser nada elogiadas. "Mesmo se os dois pais estiverem fazendo um trabalho brilhante e criando filhos felizes e saudáveis, [se] eventualmente as crianças viverem longe da mãe, a mulher ainda é difamada", segundo Melissa, que mora a uma hora e meia de carro dos seus dois filhos e administra um grupo de apoio online para mulheres em situações similares. "[Essas] mães são consideradas anormais, como se algo lá no fundo, dentro delas, estivesse quebrado", afirma ela. A recente produção da Netflix A Filha Perdida lançou uma luz sobre esse tipo de reação às mães que vivem separadas de seus filhos. O filme, baseado no romance homônimo da escritora italiana Elena Ferrante, concentra-se na atriz britânica Olivia Colman no papel de uma mãe que deixa seus filhos com o marido por três anos para buscar seus objetivos profissionais. Ela e outras pessoas consideram que sua decisão é egoísta, mas o mesmo não acontece no filme com um pai (interpretado pelo ator norte-americano Ed Harris), que também deixou seus filhos, aparentemente sem muito julgamento. Fim do Matérias recomendadas Embora, na vida real, pais de todos os gêneros venham abandonando seus filhos há séculos, existem episódios que indicam que a quantidade de mães que tomam essa decisão pode estar aumentando. Melissa afirma que a quantidade de pessoas que participam do grupo de apoio online que ela administra está na casa das centenas e em crescimento constante. E terapeutas como Reennee Singh, porta-voz do Conselho de Psicoterapia do Reino Unido (UKCP, na sigla em inglês), afirma que eles vêm notando "leve aumento" da quantidade de mães decidindo abrir mão de viver com seus filhos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Dados do Reino Unido e dos EUA também indicam aumento da proporção de lares com apenas um dos pais, mas as informações não diferenciam as famílias onde as crianças ainda passam parte significativa do tempo com suas mães ou não - ou como foram decididos os esquemas de criação dos filhos. Sejam quais forem os números exatos, a questão das mulheres (e não os homens) deixarem a unidade familiar ainda levanta muito debate na cultura ocidental. Uma das causas de tensão do filme A Filha Perdida, por exemplo, é a questão indicada pelo título: se a filha foi abandonada pela mãe ou se, ao contrário, a mãe que abandona suas filhas é a "perdida", evidenciando que a reação emocional a esse tipo de comportamento ainda é profunda. Isso pode parecer surpreendente de muitas formas, considerando a onda de apoio da sociedade e da imprensa à igualdade de gênero em outros setores da sociedade. "Nós aceitamos muito mais as famílias misturadas e pais do mesmo sexo que as mães que trabalham e cuidam dos filhos à distância", segundo Tom Buchanan, professor de sociologia da Universidade Mount Royal em Calgary, no Canadá. Para ele, "existe um atraso cultural". E os especialistas dizem que isso pode não mudar em breve. Acadêmicos e terapeutas que acompanham o "leve aumento" das mães que decidem viver longe de seus filhos afirmam que existe um amplo espectro de razões para que isso aconteça. Algumas saem para assumir empregos, atribuições ou oportunidades de estudo em cidades diferentes, mantendo seu relacionamento com o pai das crianças ou depois de uma separação. "Os tempos mudaram o suficiente para que as mulheres se sintam mais confortáveis e tenham o direito de buscar suas próprias carreiras, seus próprios interesses", afirma Singh, "mesmo que isso signifique viver longe da casa [da família]." Outras mulheres concluem que é preferível que seus filhos morem com o pai depois de uma separação, por razões práticas ou financeiras. "As crianças viviam em uma casa agradável em uma fazenda no interior, estavam em boas escolas e tinham ótimos amigos", conta Melissa. "Eu não sabia como conseguiria sustentá-los." Ao deixar seus filhos com o pai, ela conseguiu refazer sua carreira como freelancer na imprensa e mudar para um bairro mais barato, perto da sua família estendida. "E eu também fiquei muito fragilizada com o que aconteceu no casamento e precisava de tempo para me recuperar", ela conta. Em outros pontos do espectro de escolhas, encontram-se as mães que saem de casa para terem um estilo de vida ou relacionamento diferente. "Eu me sentia presa, completamente presa em uma situação", afirma Katy, professora que deixou seus cinco filhos com o pai em 2018 e mudou-se para outro lugar na Europa. "Eu me casei com 22 anos, tive meu primeiro filho com 25 e depois foi 'bum, bum, bum' - um filho depois do outro. Eles eram o que eu queria na época, mas acho que não conseguia fazer nada que fosse para mim, na verdade." E, no extremo do espectro de escolhas, estão as mães que fogem de relacionamentos tóxicos. Para esse grupo, deixar seus filhos para trás pode ser uma espécie de último recurso para superar sérias questões de saúde mental e seguir adiante com suas vidas. Este foi o caso de Natalie, da Austrália, que sofreu depressão profunda quando vivia no exterior com seu ex-marido. Ela disse que a dinâmica entre eles não era saudável, mas que ele cuidava muito bem dos filhos, de forma que ela acabou voltando para o país natal sem eles. "Meus filhos tinham um pai e uma família estendida que os amavam, rotinas e um lar. Deixá-los era salvar a mim mesma", ela conta. "Quando você chega ao fundo do poço, precisa ser criativa." Singh acredita que promover a consciência do público sobre o bem-estar sustenta as decisões das mães de deixar o ninho da família - ao contrário das gerações anteriores, quando as mulheres muitas vezes sentiam que precisavam cuidar da dinâmica doméstica existente. Existem hoje livros e podcasts de autoajuda sobre separações ou autocuidado, por exemplo, que podem oferecer conforto e aprovação para as mães que tomaram a difícil decisão de viver longe dos seus filhos. Mas Singh alerta que parte dessa literatura somente existe devido aos estereótipos de maternidade que ainda existem. E ela se questiona como algumas mulheres podem sentir que precisam usar discursos sobre bem-estar "para garantir ou legitimar o que estão fazendo". "Se a sociedade fosse mais justa e igualitária, talvez elas não precisassem depender tanto da literatura para se sentirem confortáveis com as decisões que tomaram. Eu tento ajudar as mulheres a se tornarem mais fortes e fundamentadas em suas escolhas e, sabe, penso, 'bem, a sociedade pode dizer 'o que seja', mas é isso que eu quero fazer neste momento'", argumenta ela. Às vezes, esta opção é a única que se apresenta para elas... [então é] também questão apenas de ajudá-las, fazendo com que elas possam sair com a sensação de que está tudo bem." A liberdade de sair de casa não fez com que as mulheres ficassem livres de julgamentos. Elas ainda tendem a enfrentar reações negativas dos amigos, da família e da sociedade em geral pela decisão não convencional de viver longe dos seus filhos, sejam quais forem as razões por trás dessa decisão - especialmente no Ocidente. "O principal tema no grupo [online] é como as mulheres ficaram surpresas com as restrições que a sociedade [ainda] esperava delas", segundo Melissa. Ela conta que até participantes que moram longe dos seus filhos para buscar caminhos profissionais no exército ou estudos de pós-graduação compartilham experiências de difamação pelas suas escolhas. Melissa conta que é frequente que novos conhecidos perguntem às participantes do grupo: "O que você quer dizer, seus filhos não moram com você? Que tipo de mãe não quer estar com seus próprios filhos?". "Como se fosse uma escolha simples que apenas a mãe pudesse fazer. Como se os pais não tivessem influência, voz, nem responsabilidade nenhuma", diz. Segundo Singh, isso se deve, em grande parte, aos discursos e expectativas sobre a maternidade não terem se alterado na mesma velocidade do progresso das mulheres em outras áreas. Em outras palavras, ainda se espera que as mulheres desempenhem o papel de criadora dos filhos, independentemente de outras circunstâncias externas. "Existe ainda um certo estigma ligado às mulheres, como se estivessem abandonando suas tarefas e responsabilidades", segundo ela. "Tem muito a ver com história, ideias culturais e relações entre os gêneros." Ela indica que esta narrativa é particularmente comum nas culturas individualistas do Ocidente, ao contrário das sociedades mais coletivas. "Nas Filipinas ou na Índia, é bastante comum que as mulheres saiam para ganhar dinheiro em outros países e o enviem para casa, enquanto as crianças estão sendo criadas pela família estendida ou pelos avós." Nessas culturas ocidentais, o estigma muitas vezes é ainda mais forte para as mulheres que deixam o ninho familiar para buscar um relacionamento ou estilo de vida específico, que para aquelas que saem por razões práticas ou profissionais. Katy afirma que muitos dos seus parentes não falaram com ela por meses, embora a decisão de manter seus filhos na casa da família em vez de sair com ela tivesse sido, segundo ela, tomada de comum acordo com o pai das crianças. "Os homens podem fazer isso, não ter contato com a criança e é aceitável", segundo Katy. "Mas, quando uma mulher faz isso - e eu ainda tenho contato com meus filhos -, as pessoas acham que sou uma mãe ruim e os abandonei. Pensei em fazer o melhor para eles", relata ela, indicando que, se ela tivesse ficado, sua exaustão e infelicidade só teriam se ampliado. "Eu não percebi na época todas as consequências e todos os julgamentos que iria enfrentar." Quatro anos após sua mudança, Katy conta que alguns amigos e familiares ainda a veem como "uma mãe ruim" e culpam sua decisão de sair de casa por qualquer dificuldade sofrida pelas crianças. E compartilhar sua história com novos amigos também não a ajudou a reduzir a pressão. Muitas pessoas próximas se distanciaram dela depois que souberam do seu passado e, por isso, ela agora evita falar sobre seus filhos. "É difícil porque todo dia você pensa 'sim, o que eu fiz realmente exigiu muita coragem'; até que alguém faz um comentário e leva você novamente a pensar que é a pior pessoa do mundo", relata ela. Melissa conta que as mulheres que admitem que o abuso doméstico foi um fator para que elas saíssem - mesmo acreditando que seu antigo parceiro não machucaria as crianças - enfrentam o julgamento "talvez mais cruel" das pessoas. "Na violência doméstica, as mulheres raramente saem vivas, que dirá com sua saúde mental intacta", ela conta. Ainda assim, essas mulheres ainda ouvem de estranhos e conhecidos perguntas como "como você pôde fazer isso?" ou "as crianças estão bem com isso?" "Muito raramente as pessoas perguntam 'como você está?' ou 'você está bem?'", conta Melissa. Buchanan concorda que, historicamente, os pais que deixam a casa da família foram muito mais aceitos pela sociedade e pela cultura popular do que as mães. Ele menciona a música do veterano cantor norte-americano Bruce Springsteen intitulada Hungry Heart ("Coração faminto", em tradução livre). Sua letra começa dizendo "tenho esposa e filhos em Baltimore, Jack, saí para dar uma volta e nunca mais voltei". Parte dessa aceitação deve-se ao estereótipo social dos homens e das mulheres. Os pais são tradicionalmente considerados cuidadores menos capazes do que as mães. E há também o valor atribuído ao trabalho doméstico sem pagamento, como cuidar das crianças, em comparação com empregos assalariados, argumenta Buchanan. Tudo isso alimentou a narrativa de que é mais aceitável que os homens saiam de casa se contribuírem financeiramente, enquanto as mulheres são vistas como abandonando as tarefas familiares. "Os pais costumam reconhecer apenas o trabalho profissional [pago] como 'trabalho'. E, até que isso mude, acho que você verá muita pressão sobre as mulheres", argumenta ele. "Os pais precisam abraçar, abordar e desafiar o estigma de que eles são apenas 'provedores', não necessariamente 'pais'." Mas Buchanan acredita que, apesar de tudo isso, os pais que saem de casa hoje em dia "não são totalmente desestigmatizados" e "provavelmente sua reputação não é boa". Mas ele aceita que existe um "nível diferente de estigma" para as mulheres que deixam suas famílias nesse tipo de circunstâncias. "Quando isso acontece com as mães, o problema é enorme e se torna uma questão de gênero." Singh acrescenta que os estigmas sociais podem até influenciar a forma em que as crianças reagem à decisão da mãe de mudar-se da casa da família. Ela trabalhou com muitos clientes adultos que presenciaram o crescimento da infidelidade dos pais e conta que as pessoas tendem a julgar as mães que saem de casa com mais severidade que os pais: "É difícil perdoá-las, mesmo na idade adulta". Natalie descreve sua relação com seus filhos como "muito próxima" e afirma que eles se falam várias vezes por semana, trocam mensagens de texto regularmente e fazem visitas presenciais entre si. "A qualidade do tempo que temos quando estamos juntos é mágica e normal. Nós nos reunimos com muita alegria e estou também presente para cuidar dos dramas e da lição de casa", relata ela. Já Katy conta que enfrentou dificuldades para manter contato regular com alguns dos seus cinco filhos e mantém uma relação particularmente frágil com sua filha mais velha. Mas, embora a pandemia tenha dificultado as visitas das crianças, ela afirma que conseguiu oferecer a elas o tipo de tempo de família de qualidade que era difícil quando ela equilibrava a atenção em casa e os horários de trabalho antissociais. "Nós vamos à praia, saímos, fazemos piqueniques juntos no parque... esse tipo de coisas", segundo Katy. "Eu não me arrependo da minha decisão. Todo o tempo, eu fiz o que achei que tinha que fazer. Gostaria que, um dia, meus filhos crescessem, olhassem para mim e pensassem 'bem, minha mãe não estava feliz, mas ela não aceitou a situação. Ela fez alguma coisa a respeito.'" No grupo de apoio online, muitas mulheres compartilham regularmente sentimentos de culpa, isolamento social e ostracismo, segundo Melissa, porque é difícil discutir o que elas estão passando com outras pessoas. "A observação mais comum das novas participantes do nosso grupo é como elas são incrivelmente solitárias. Elas dizem que descobrir o nosso grupo ajuda porque elas se sentem compreendidas e não demonizadas pelas suas circunstâncias", segundo ela. Melissa acredita que os comportamentos mais amplos da sociedade precisam mudar, com a melhor compreensão de que "as mulheres que saem [de casa]... amam seus filhos tanto quanto as mães que vivem vidas mais tradicionais". Permanece o debate sobre se a sociedade algum dia passará a aceitar melhor as mães que vivem longe dos seus filhos. Tom Buchanan acredita que as coisas irão melhorar, mas apenas em algumas circunstâncias. "No caso de mudanças orientadas à carreira, acho que é algo que iremos superar, em termos de estigmatização", segundo ele. Ele argumenta que este será um efeito colateral de um aumento mais geral da igualdade de gênero no lar e no local de trabalho, com os pais cada vez mais envolvidos em casa e mais mulheres em posições de liderança. "[Mas] sair da família apenas por querer buscar algo diferente - acho que sempre será estigmatizado", ressalta ele. Melissa, a administradora do grupo de apoio, concorda: "Não acho que as coisas mudarão muito no futuro". Dez anos depois que se mudou da casa da família, ela conta que viu pouco progresso no comportamento social com relação às mães que vivem separadas, como ela. Mas Natalie tem mais esperanças de que as mulheres que saem de casa por motivos não profissionais terão suas escolhas mais "normalizadas" no futuro, "com educação e consciência suficientes". Para que isso aconteça, ela afirma que a sociedade também precisa ser mais aberta à ideia de que os pais são cuidadores igualmente capazes. Esse tipo de mudança, segundo Reennee Singh, também precisa ser acompanhada de uma aceitação mais ampla e respeitosa de todo o leque de opções abertas para as mulheres modernas que trabalham, além dos modelos tradicionais das funções domésticas. "Seja tendo filhos com mais idade, não tendo filhos, tendo filhos para que outra pessoa seja o cuidador principal deles, existe muito trabalho à frente para nós, mulheres, apenas nos sentirmos mais confortáveis com o fato de que existem escolhas disponíveis atualmente", argumenta ela. "Não há problema em escolher algo um pouco diferente... mas cada uma dessas escolhas tem um custo." Os sobrenomes de Melissa, Katy e Natalie foram omitidos para proteger a privacidade delas e de suas famílias.
2022-03-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60909122
sociedade
Dismorfia corporal: 'preocupação com meu aspecto físico não me deixava viver'
Desde pequeno, onde quer que fosse, sempre me comparavam com minha irmã, loira de olhos azuis. Eu sou moreno. "Por que ela é tão linda? E o que aconteceu com você?", as pessoas me diziam. Esses comentários eram gracejos, feitos de brincadeira, mas para mim ficaram gravados, de tanto que foram repetidos. Ali, meu transtorno começou a criar forma. Este é o relato de Carlos*, que sofre de transtorno dismórfico corporal, mas, como muitos outros pacientes, ele somente soube disso anos depois de manifestar os primeiros sintomas. Também conhecida como dismorfia corporal, esse transtorno está incluído entre os transtornos obsessivo-compulsivos nas principais classificações médicas. Fim do Matérias recomendadas As pessoas que sofrem do transtorno não conseguem deixar de pensar em um aspecto que consideram um defeito físico - algo que frequentemente as outras pessoas nem chegam a ver - e tratam de escondê-lo ou modificá-lo de forma repetida e obsessiva. Com isso, eles vivem em um estado de ansiedade permanente, com pensamentos intrusivos constantes e comportamentos de difícil controle. Sua preocupação com a aparência e seu comportamento tentando escondê-la ou alterá-la ocupam tanto tempo que chegam a prejudicar suas atividades diárias, como suas relações pessoais e familiares até o seu desempenho profissional. Foi o que aconteceu com Carlos. Ele prossegue com seu relato: Comecei a me preocupar muito com meu aspecto físico. Primeiro, com o peso. Com 16 anos de idade, eu estava meio gordinho, de forma que entrei em uma academia e comecei a cuidar muito da alimentação. Não cheguei a sofrer anorexia - porque, na verdade, eu comia - mas fazia tantos exercícios que cheguei a perder 10 kg em duas semanas. "É o bastante, você já emagreceu muito", as pessoas me diziam. Mas eu não via isso. Eu tinha a falsa ideia de que permanecer magro era tudo o que importava. E havia mais: eu achava que as pessoas mais magras e com saúde têm melhores oportunidades na vida. Sei que não é assim, mas era isso que eu pensava. Naquela época, minha relação com a família começou a piorar. Eles viam que eu estava mal e tentaram me avisar de muitas formas, até que um dia me disseram que eu precisava de ajuda profissional. Eu continuava não admitindo, mas naquela época já não conseguia ir a festas, aniversários... porque me sentia mal. A preocupação com o peso foi se alterando para outros "defeitos". Fiquei obcecado pelo meu nariz. Eu o achava grande, largo e feio. Eu me olhava no espelho e tirava fotos de todos os ângulos possíveis para comprovar como eu me via. E poderia passar muito tempo olhando aquelas imagens. Depois, minha atenção se voltou para a assimetria, tanto do rosto quanto do corpo. Eu me analisava detalhadamente, me dissecava. Eu me concentrava em cada parte do corpo e não percebia o nível de perfeccionismo e obsessão pelas minhas observações. Tanto é verdade que, se ficasse com alguém, eu me arrumava e me trancava por horas no banheiro para gravar minhas imagens e verificar minha aparência. Eu precisava ter controle sobre como me via. E, se eu não gostasse do que visse, minha autoestima caía e provavelmente nem sairia. O mesmo acontecia quando eu sabia que alguém iria publicar fotos da festa do dia anterior no Instagram ou no Facebook. Eu não queria nem ver as fotos. Não queria enfrentar isso. Sabia que veria muitos defeitos em mim e não conseguiria aguentar. Isso me gerava muita ansiedade e comecei a me isolar. Até que, em um momento, eu disse a mim mesmo que não aguentava mais. Eu era apenas um adolescente e tinha passado a vida me condicionando, de forma que decidi recorrer a um profissional. Fui a um médico que me encaminhou a outro, que me deu medicação: antiobsessivos e antidepressivos. O transtorno dismórfico corporal foi descrito pela primeira vez em 1891, pelo médico italiano Enrico Morselli. Segundo os especialistas que o estudaram, ele afeta de 1,7 a 2,9% da população, tanto homens quanto mulheres. Mesmo assim, ele passa despercebido com frequência, até pelos especialistas, e é subdiagnosticado ou mal diagnosticado. Devido às suas comorbidades, os pacientes são frequentemente considerados esquizofrênicos ou diagnosticados com algum transtorno alimentar, segundo Tania Borda, psicóloga argentina especializada nesse tipo de transtorno de saúde mental, autora do livro "Trastorno Dismórfico Corporal: un desorden complejo" ("Transtorno dismórfico corporal: um distúrbio complexo", em tradução livre). Carlos prossegue: Inicialmente, senti uma grande melhora, mas os medicamentos causam um sobe e desce. Às vezes me sentia bem, outras muito mal. Precisei ir mudando os medicamentos, já que a obsessão pelo corpo, "o que vão dizer", "como eles irão me ver", era claramente mais forte que os comprimidos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Não se sabe especificamente o que causa o transtorno dismórfico. Pode ser o resultado de uma combinação de problemas, como antecedentes familiares, anomalias do cérebro e avaliações ou experiências negativas sobre o corpo ou a imagem que se tem de si próprio, segundo a organização norte-americana Clínica Mayo. Mas os especialistas concordam que ele começa a se manifestar na adolescência, que não melhora sozinho e, se não for tratado, pode desencadear depressão grave e até pensamentos e comportamentos suicidas. "É um dos transtornos com maior índice de tentativas de suicídio da psicopatologia", afirma Tania Borda, que também é diretora clínica do BioBehavioral Institute de Buenos Aires, na Argentina. Já me haviam diagnosticado com transtorno dismórfico corporal e comecei a fazer terapia. Coincidiu com meu pior momento. Eu não saía de casa. Não fazia nada. Eu tinha a autoestima tão baixa, estava tão deprimido e com tanta ansiedade que qualquer coisa - ouvir música, ver um filme - me fazia chorar. Eu estava em um buraco tão fundo que não aguentava nem isso. O que eu fazia era acordar tarde. Quando você está deprimido, dormir é uma boa escapatória. Eu me levantava às 10 horas da manhã e dormia de novo até o meio-dia. Comia e me olhava no espelho. E assim passava horas, o dia inteiro, dormindo e levantando-me para olhar no espelho, até que os meus pais me tiraram do quarto. Depois de superar aquele período, que durou cerca de um mês, a terapia prosseguiu avançando lentamente, com altos e baixos. Às vezes, eu contava as coisas, outras não... e, para progredir, é preciso tirar o que você tem dentro de si. Você precisa ser sincero com o profissional. Não pode dizer que está bem quando claramente não está. Eu seguia sofrendo ataques de ansiedade muito fortes. Acontecia em determinadas situações, como em festas, por exemplo. A ansiedade me dominava porque eu não sabia como os outros estavam me vendo. E ativava esse pensamento de "não sei se irão me aceitar, se vão gostar de mim". Era como se eu estivesse amarrado a esse pensamento, como se ele me perseguisse e eu precisasse sair correndo. E a primeira coisa que fazia era ir ao banheiro. Resolvia olhando-me no espelho ou tirando uma foto minha. Isso me acalmava. Fiquei em terapia de manutenção depois de dois anos de tratamento, mas tive recaídas e voltei no final do ensino médio. Melhorei bastante. Fiquei animado a fazer coisas que antes não fazia: convidar alguém para sair, ir a uma festa onde não conhecia ninguém ou me vestir com uma determinada roupa. Quando comecei a me sair bem em todos os aspectos, fui trabalhar. Isso foi um gatilho porque é muito social: as reuniões são muito frequentes e você acaba se abrindo com as pessoas. Tirei definitivamente o foco sobre o que vão dizer e deixei de colocar o aspecto físico em primeiro lugar. O transtorno dismórfico corporal faz com que você coloque a sua aparência acima de tudo: dos amigos, das relações, de como você é. Você coloca o aspecto físico em um pedestal e pensa que as pessoas lindas são as únicas que triunfam na vida. Até que você se dá conta de que não é o mais importante e observa que os demais o aceitam mesmo que você não seja o Ken (o namorado da boneca Barbie). Agora, eu me sinto bem. Eu sempre tenho alguma preocupação relativa ao meu aspecto físico, mas já não é como antes. Aquilo não me deixava viver. Acredito que seja parte da minha personalidade, de como sou, de como vejo as coisas e o mundo. A diferença é que antes era uma trava, uma parede enorme que eu não conseguia ultrapassar. Agora, é uma preocupação que permanece presente, mas me deixa viver. *Nome alterado para proteger identidade. -CAPS e Unidades Básicas de Saúde (saúde da família, postos e centros de saúde) -UPA 24h -Samu 192 -Hospitais -Pronto-socorro -Telefone 188 (ligação gratuita de qualquer linha telefônica fixa ou celular)
2022-03-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60874063
sociedade
Conheça o menor parque nacional do mundo
Alguém que compra uma ilha tropical normalmente está em busca de luxo. Mas Brendon Grimshaw era diferente, assim como Moyenne, a ilha no arquipélago das Seychelles comprada por ele. Grimshaw chegou pela primeira vez às Seychelles — um arquipélago composto por 115 ilhas no Oceano Índico, das quais apenas oito são permanentemente habitadas — em 1962, de férias. Na época, ele trabalhava como editor para alguns dos maiores jornais do leste africano. Era uma época empolgante na África e, como parte do seu trabalho, ele mantinha boas relações com o novo e carismático líder que se tornaria presidente da Tanzânia, Julius Nyerere. Mas Grimshaw procurava algo mais do que apenas férias. A Tanzânia havia declarado independência no ano anterior. Um ano depois, seria a vez do Quênia. E Grimshaw, que era inglês, sabia que empregos como o seu em breve passariam para os habitantes locais. Sabendo que logo ficaria desempregado, Grimshaw procurou um novo rumo para sua vida, que o levasse para mais perto da natureza. Ele sonhava em comprar terras nas ilhas Seychelles — mas o ideal seria comprar sua própria ilha. Fim do Matérias recomendadas Nas suas primeiras semanas nas Seychelles, Grimshaw começou a imaginar se precisaria mudar de planos. Não havia muitas ilhas à venda, e os preços das poucas existentes eram extremamente altos. No penúltimo dia das suas férias, um jovem aproximou-se dele na capital das Seychelles, Vitória, e, do nada, perguntou se Grimshaw queria comprar uma ilha. Eles viajaram juntos para Moyenne — um pontinho de 0,099 quilômetros quadrados a 4,5 km ao norte da costa da maior ilha das Seychelles, Mahé. Grimshaw apaixonou-se imediatamente pelo silêncio e pelo emaranhado de vegetação selvagem do local. Mais tarde, ele diria que era perto o suficiente para ter fácil acesso à ilha principal do arquipélago, mas ainda ficava a um mundo de distância. "Era totalmente diferente. Uma sensação especial", disse ele à equipe de filmagem que produziu ali um documentário em 2009. "Este é o lugar que eu estava procurando." Faltando quatro minutos para a meia-noite do último dia das suas férias nas Seychelles, Grimshaw assinou o contrato de compra de Moyenne por 8 mil libras (cerca de R$ 57 mil). A ilha era dele. Mas comprar Moyenne acabaria sendo uma tarefa mais fácil que cuidar da ilha. Exceto por uma família de pescadores que vivia por lá, Moyenne estava abandonada há décadas. Com o turismo começando a decolar nas Seychelles, parecia apenas questão de tempo até que alguém limpasse o terreno para construir ali um hotel cinco estrelas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Moyenne é uma das menores ilhas internas das Seychelles. Mede apenas 400 metros de comprimento por 300 metros de largura — e seu litoral tem menos de 2 km. Seu ponto mais alto eleva-se a apenas 61 metros acima do nível do mar. A ilha de Moyenne possui a mesma areia branca paradisíaca e os penhascos de granito característicos da costa das Seychelles, mas também abriga um paredão denso e contínuo de árvores que recobrem a ilha, formando uma pirâmide baixa acima do nível da água. É um turbilhão de verde em contraste com o céu de cobalto e o mar azul-safira, parecendo uma minúscula floresta tropical que emerge do oceano. Apesar do diminuto tamanho de Moyenne, a restauração da beleza natural da ilha foi uma tarefa colossal. Uma combinação de intervenções humanas violentas seguidas por abandono havia deixado a ilha desordenada e ofegante em busca de ar. Ervas daninhas sufocavam a cobertura vegetal. Dizem que a ilha tinha tanta vegetação que os cocos que caíam nunca atingiam o solo. No emaranhado de ervas, observava-se a ausência de pássaros, enquanto ratos se abrigavam na vegetação. Para ajudar Grimshaw, havia um nativo chamado Rene Antoine Lafortune, filho de um pescador local, então com 19 anos. Os dois tornaram-se inseparáveis e juntos imaginaram como transformar a ilha, limpando o mato, plantando árvores e abrindo caminhos pela vegetação. O trabalho era meticuloso e exaustivo, mas tornou-se a obsessão de Grimshaw pelo resto da sua vida. O objetivo inicial de Grimshaw era proteger a ilha de Moyenne contra o desenvolvimento excessivo. A princípio, isso significava revelar a beleza natural da ilha e construir uma pequena casa onde ele pudesse viver o resto dos seus dias. Mas seu sonho de longo prazo era criar um paraíso natural que sobrevivesse a ele e permanecesse protegido por muito tempo, ao longo das gerações. "O seu sonho era deixar uma ilha preservada para as futuras gerações de habitantes das Seychelles e para o mundo", afirma Suketu Patel, que conheceu Grimshaw em 1976 e virou seu amigo pelo resto da vida. "Ele queria uma mini-Seychelles. Queria tentar reproduzir o que eram as ilhas Seychelles antes da chegada dos turistas." Mas nem tudo era trabalho duro. Ao aparar o excesso de vegetação no canto noroeste da ilha de Moyenne, Grimshaw encontrou dois túmulos com a inscrição: "Infelizmente desconhecidos". Ele estava certo de que piratas de séculos atrás foram enterrados ali — uma das praias no norte da ilha é conhecida como a Baía dos Piratas. Reza a lenda que os túmulos pertenciam a dois modestos bucaneiros que foram mortos por dois líderes famosos da pirataria, para que os espíritos dos homens mortos assombrassem a ilha e protegessem o tesouro. Não se sabe se Grimshaw realmente acreditava nestas lendas. "Para ele, era engraçado levantar-se de manhã e perguntar: 'O que vou fazer hoje? vamos procurar o tesouro'", relembra Patel. Existem hoje dois locais marcados nos mapas da ilha de Moyenne com o símbolo da pirataria, onde Grimshaw e Lafortune tentaram a sorte procurando o tesouro escondido dos piratas, sem nunca encontrá-lo. À medida que o turismo nas Seychelles crescia na década de 1980, e o arquipélago se tornava sinônimo de paraíso tropical, investidores voltaram seus olhares gananciosos para a ilha de Moyenne. Grimshaw recebeu ofertas de até US$ 50 milhões (cerca de R$ 270 milhões) para vender a ilha, mas resistiu a todas as tentativas. Enquanto a idade de Grimshaw avançava, ele se conscientizava cada vez mais que lhe restava pouco tempo para proteger o futuro da ilha. Ele não tinha filhos para quem transferir a custódia de Moyenne e, quando Lafortune morreu em 2007, decidiu agir. Com Patel e outros, ele formou um fundo permanente para proteger a ilha e, em 2009, assinou um acordo com o Ministério do Meio Ambiente das Seychelles que incluiu a ilha de Moyenne como parte do Parque Marinho de Saint-Anne, mas com status especial. Assim nasceu o Parque Nacional da Ilha de Moyenne — o menor parque nacional do mundo. Pode parecer fácil imaginar Grimshaw como uma figura excêntrica. Afinal, ele se mudou sozinho para o outro lado do mundo, comprou uma ilha, acreditava em piratas e passou a vida restaurando um ponto de terra aparentemente irrelevante. Mas muitos habitantes das Seychelles ainda são gratos pelo legado que Grimshaw deixou para a nação que adotou. "Pessoalmente, não acho que ele fosse maluco", afirma Isabelle Ravinia, da Administração dos Parques Nacionais das Seychelles. "Ele devolveu a ilha ao país, o que foi um ato nobre. Normalmente, as pessoas tentariam vender a ilha antes de morrer para conseguir dinheiro para outra coisa. Em vez disso, ele fez algo incrível." Grimshaw morreu em 2012. Seu corpo foi enterrado ao lado do túmulo do seu pai (que foi viver com ele na ilha) e dos dois piratas desconhecidos. Atendendo a seu pedido, o túmulo de Grimshaw tem a seguinte inscrição: "Moyenne o ensinou a abrir os olhos para a beleza à sua volta e agradecer a Deus". Em seu testamento, ele expressou seu último desejo: "A ilha de Moyenne deve ser mantida como um local de oração, paz, tranquilidade, relaxamento e conhecimento para os cidadãos das Seychelles e para os visitantes estrangeiros de todas as nacionalidades, cores e credos." A tarefa de atender ao desejo de Grimshaw agora está a cargo da Fundação Ilha de Moyenne, administrada por Patel. Exceto por um restaurante chamado Jolly Roger, que serve pratos locais como peixe grelhado e frutos-do-mar com curry e molho crioulo vermelho, um pequeno museu dedicado à vida de Grimshaw e dois berçários para filhotes de tartarugas gigantes, Moyenne permanece preservada. A ilha não tem porto, e chegar até lá tem uma magia toda especial. Em nenhum outro ponto das ilhas Seychelles você tem a sensação de descoberta de uma ilha deserta como ao desembarcar descalço nas águas rasas da costa de Moyenne. Ao chegar à terra firme e dar os primeiros passos ao longo da trilha levemente inclinada em meio à floresta, as árvores se fecham atrás de você e um novo mundo se abre à sua frente. Raios de sol coloridos se infiltram pela copa das árvores até o solo, a temperatura é mais baixa, e as 16 mil árvores da ilha — mogno, mangueiras, mamoeiros e palmeiras — plantadas por Grimshaw e Lafortune te rodeiam. Há uma estimativa que diz que Moyenne tem mais espécies vegetais por metro quadrado que qualquer outro parque nacional do mundo. De vez em quando, você pode ter seu caminho bloqueado por uma das cerca de 50 tartarugas-gigantes-de-aldabra que vivem livremente em Moyenne. Elas não têm pressa — e nem você deve se apressar enquanto as vê passar. De volta às águas rasas nas praias da Baía dos Piratas, observe as tartarugas-de-pente que frequentemente visitam o local para desova. Mesmo durante a alta temporada, dificilmente há mais de 50 visitantes na ilha ao mesmo tempo — e nunca mais de 300 ao longo de um dia. Seis ilhas compõem o Parque Marinho de Saint-Anne, mas Moyenne é a única, além da minúscula Ilha Cachée, que não possui hotéis ou outra forma de propriedade privada. E, graças a Grimshaw e seus amigos, Moyenne provavelmente permanecerá assim. "Existe algo que te conquista quando você vai até lá", afirma Patel. "Se você acha que tem um grande problema, quando você está na ilha percebe que aquilo, no fim das contas, não é um problema. Moyenne é a vida como deveria ser."
2022-03-28
https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-60201703
sociedade
Os segredos dos pais no Ártico para ensinar sobrevivência aos filhos
Todos os anos, nos meses de junho ou julho, sob o sol da meia-noite do Ártico, famílias de pastores de renas do povo sami no norte da Finlândia, Noruega e Suécia se reúnem para um dos maiores eventos sociais do ano: marcar os novos filhotes de renas para identificá-los. A pé, a bordo de quadriciclos e até helicópteros, eles localizam e reúnem as renas semiselvagens que vivem soltas por vastas áreas, espalhadas por dezenas de quilômetros quadrados. A expectativa é de que as crianças pequenas participem do evento. Os meninos e meninas mais novos ajudam a pegar os filhotes. E, a partir dos 10 anos, empunham suas próprias facas de marcação, seguram o filhote e marcam ambas as orelhas dele com um padrão único de corte. As crianças recebem um padrão de marcação próprio ao nascer e o utilizam para marcar seus rebanhos pelo resto da vida. Entre os sami, povo indígena espalhado pelas regiões mais ao norte da Noruega, Suécia, Finlândia e Península de Kola, na Rússia, as crianças não apenas participam do trabalho de pastoreio, como também são incentivadas a agir de forma independente na maioria das outras áreas da vida. Fim do Matérias recomendadas Independência a -30ºC Elas podem decidir quando comer, quando dormir e o que vestir, mesmo em temperaturas de -30 °C. Para quem vê de fora, essa independência pode surpreender. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Missionários que visitaram o Ártico no século 18, escreveram depois em seus diários que parecia que as crianças sami podiam fazer o que quisessem e que faltava a elas disciplina. No entanto, como pesquisas revelam cada vez mais, o modo sami de criar os filhos, aparentemente sem regras, tem sua própria filosofia e estrutura complexa. Com o tempo, esse estilo parental único evoluiu para preparar as crianças para lidar com os desafios extremos da vida no Ártico - e promover um tipo particular de resiliência. Uma das suas diretrizes é que, em vez de seguir uma rotina fixa, toda a família se adapta a quaisquer tarefas que precisem ser realizadas, seja a marcação de rebanhos, alguma viagem ou outras atividades conjuntas. Dentro dessa estrutura, as crianças fazem suas próprias escolhas. "Elas comem quando estão com fome e vão para a cama sempre que estão cansadas", diz Tytti Valkeapää, mãe de seis filhos, com idades entre 8 e 18 anos, que mora na aldeia finlandesa de Kuttanen, na fronteira com a Suécia. Embora Valkeapää não tenha nascido na cultura sami, ela se adaptou ao modo de vida local depois de se casar e entrar para uma família de pastores de renas sami. Como a grande maioria dos sami, sua família não é mais totalmente nômade - eles passaram a se deslocar bastante em motos de neve, o que transformou a vida dos pastores de renas e permitiu que eles se tornassem mais sedentários. Mas, embora vivam principalmente em casa, as atividades tradicionais, como o ritual de marcação, ainda ditam o ritmo da família. O processo de marcação leva várias semanas - e só é realizado à noite, quando ainda está claro, mas mais frio do que durante o dia. Isso torna menos estressante para as renas e seus filhotes. Para poder realizar o trabalho em conjunto, toda a família muda seu ciclo de sono, trocando a noite pelo dia. As crianças ficam acordadas a noite toda, trabalhando e brincando, por semanas a fio, junto com suas famílias e colegas pastores. Elas tiram uma soneca durante o dia, cochilando sempre que têm vontade. "Eu e as crianças podemos cochilar em um quadriciclo, em uma moto de neve, sob uma capa de chuva em um trailer ou em nossa van", diz Valkeapää. "Você só precisa ser capaz de descansar e comer sempre que puder. Durante a marcação, as crianças costumavam gostar de dormir em um lávvu (barraca), mas hoje temos uma pequena cabana lá." Para Valkeapää, cultivar hábitos de sono flexíveis desde cedo é a melhor maneira de ajudar as crianças a lidar com as estações extremas do Ártico. Na verdade, os moradores do Ártico geralmente dormem menos no verão e mais durante o escuro e longo inverno, quando os níveis de melatonina, hormônio indutor do sono, aumentam. "Mudar o ritmo do sono é natural para crianças com as mudanças sazonais. Nunca tive que tentar forçar isso, porque tivemos a sorte de viver nos termos de nossos filhos", diz ela. "Durante a marcação, as crianças participam do trabalho e, quando não participam, brincam do lado de fora do curral. Acho que não ficam com sono quando há tanta coisa para fazer, e elas querem participar." No entanto, as noites agitadas de verão às vezes a fazem ansiar pelas noites escuras de outono. "É mais fácil agora que elas cresceram um pouco, mas ainda assim nunca houve uma situação em que todas as crianças fossem para a cama ao mesmo tempo." No verão, durante as noites claras do Ártico, também é normal que crianças mais velhas, de 12 anos ou mais, saiam para pescar com os amigos à noite e só voltem para casa nas primeiras horas da manhã. Esta autonomia contrasta com o estilo parental intensivo, altamente centrado na criança, que está em ascensão em muitas sociedades ao redor do mundo. Mas mesmo quando comparadas com comunidades vizinhas, como noruegueses não-sami, as famílias sami se diferenciam. Um estudo comparativo na Noruega mostrou que as crianças sami eram "mais socialmente independentes do que as norueguesas" - e que "a autorregulação da alimentação e do sono era comumente praticada pelos sami, mas não nas famílias norueguesas". Também se espera que as crianças sami regulem e controlem suas próprias emoções, um padrão que é comum em comunidades circumpolares, de acordo com o estudo. Outro estudo identificou a independência e a resistência como valores fundamentais dos pais sami, entre outros. "Na pedagogia sami, um pensamento central é que os adultos não dão tudo pronto para as crianças", diz Rauni Äärelä-Vihriälä, professora associada de pedagogia sami na Universidade Sami de Ciências Aplicadas da Noruega, Guovdageaidnu, que é sami e mãe de dois filhos. "No pensamento ocidental, muitas vezes é esperado que os adultos deem tarefas e atribuições, enquanto para nós, a ação é baseada na liberdade, seja a questão de mudar os ciclos de sono, escolher hobbies ou qualquer outra coisa. Os adultos não podem simplesmente dizer [às crianças o que fazer] e estabelecer os limites. Além disso, não planejamos muito as coisas. As coisas acontecem quando acontecem [na natureza]." O tempo é uma parte importante desta filosofia. "Acreditamos que as crianças devem ter tempo para pensar e expressar suas opiniões, e elas também precisam errar para aprender." Ela cita uma expressão sami do norte - "Gal dat oahppá go stuorrola" -, que significa: "Ele/ela aprenderá quando crescer". Outro ditado comum entre os pais sami, "ieš dieđát", que quer dizer "você mesmo sabe", também engloba essa mentalidade. Os pais sami podem, por exemplo, dizer isso quando o filho insiste em sair no frio com roupas leves, pois a criança vai descobrir por si mesma se deve colocar mais camadas. Asta Mitkija Balto, professora emérita de pedagogia da Sámi University College, na Noruega, argumenta em um trabalho de pesquisa que o principal objetivo da educação infantil sami é "preparar as crianças para a vida e desenvolver indivíduos independentes que possam sobreviver em um determinado ambiente, e dar às crianças autoestima, entusiasmo pela vida e alegria." Parte disso é um conceito sami chamado "birget", que significa lidar ou gerenciar tanto de forma independente quanto com os outros. As estratégias utilizadas são muitas vezes indiretas, evitando o confronto, argumenta Balto, que é sami. Os pais e mães sami, sobretudo os pais, podem, por exemplo, esperar por um momento em que o foco comum esteja em outra coisa, como contemplando o fogo, para discutir um assunto difícil sem criar uma sensação de confronto. No entanto, apesar dessa independência, um conjunto de normas e deveres sociais molda a vida sami desde o início. "Tradicionalmente, uma criança assume a responsabilidade em muitos tipos de trabalho relacionados ao pastoreio de renas e se sente orgulhosa disso. Sobretudo, ela não é um indivíduo, mas um membro de uma família ampla pela qual é responsável", diz Äärelä-Vihriälä. As crianças sami aprendem a usar facas afiadas, fazer fogo e se orientar na natureza, habilidades essenciais para a sobrevivência no Ártico, mas também têm uma dimensão social. Elas também devem ser capazes de marcar e identificar renas. Alguns pastores de renas especialmente respeitados são conhecidos por lembrar e reconhecer milhares de marcas. "Sobreviver ou se dar bem na vida, aos olhos da comunidade, não tem nada a ver com ganhar dinheiro ou uma boa carreira, mas, sim, com as habilidades de sobrevivência. Além de sobreviver na natureza, é preciso conviver com diferentes tipos de pessoas em diferentes tipos de ambiente. Uma criança sami cresce pensando que as pessoas são todas diferentes e que é preciso ser sempre criativo. Eu diria que isso é muito tolerante", explica Rauni Äärelä-Vihriälä. Hoje, essas habilidades antigas ainda podem ser úteis. Um estudo sugere que conhecer a língua sami e estar conectado com suas famílias extensas e tradições culturais está ligado a uma maior resiliência e bem-estar em crianças e jovens sami. De modo mais geral, a pesquisa indica que o desenvolvimento de habilidades de resolução de problemas e autorregulação com o apoio de uma família carinhosa pode promover a resiliência nas crianças. Uma forma de impor sutilmente as normas culturais é por meio de uma prática parental sami chamada nárrideapmi, uma espécie de provocação lúdica. Isso também foi observado em outros povos circumpolares indígenas, como os inuítes, mas não nas culturas predominantes escandinavas. O propósito do nárrideapmi é aumentar a autoestima da criança e incentivá-la a se controlar melhor e não se levar tão a sério. O nárrideapmi é geralmente praticado por familiares próximos, como tias e tios, não necessariamente os pais. Eles devem conhecer bem a criança e garantir que nunca digam algo realmente doloroso ou a intimidem, diz Rauni Äärelä-Vihriälä. "Para um adolescente, pode ser algo relacionado a namoradas ou namorados, enquanto para crianças menores, pode ser algo ligado a como se vestir, por exemplo. Se eu notar que meu filho não está usando roupas de inverno suficientes, posso perguntar se ele está indo para uma praia tropical ou algo assim", explica. "Você meio que espera que a criança reaja brincando com algo semelhante em relação a você. Isso também faz a criança perceber por conta própria o que ela precisa fazer, e a encoraja a pensar por si mesma. É, mais uma vez, algo bastante indireto." Algumas tradições parentais sami estão inseridas nas línguas sami, um grupo de línguas relacionadas ainda faladas por cerca de 25 mil a 35 mil pessoas. As línguas sami ainda usam o dual, uma forma que outrora foi conhecida do inglês antigo, do grego antigo e do eslavo eclesiástico antigo. Refere-se a duas pessoas fazendo algo, como na expressão sami do norte "moai manne", que pode ser traduzida como "nós dois vamos". De acordo com Äärelä-Vihriälä, os pais sami costumam usar o dual: "Se uma criança faz xixi na calça, podemos dizer: 'Oh, nós (dois) fizemos xixi, vamos (nós dois) limpar isso?' Ou podemos dizer: 'Ah, nós (dois) não estamos acostumados a fazer isso'. Dessa forma, podemos voltar a atenção da criança para outro lugar, sem culpar e criticar." Mesmo quando os sami se adaptam à vida urbana, alguns mantêm certos princípios parentais ancestrais. Laura Kallioinen, professora e mãe de três filhos, é uma mulher sami que cresceu na aldeia mais ao norte da Finlândia, Nuorgam, na fronteira com a Noruega. Hoje ela vive com sua família em Jyväskylä, uma cidade na parte ocidental da região dos lagos finlandeses. A família costuma passar todas as férias em Nuorgam, onde as crianças ficam acordadas até de manhã, se quiserem. Questionada sobre a rotina delas, Kallioinen ri: "Que rotina? Não temos nenhuma". Isso a diferencia de seus vizinhos não-sami na região dos lagos. "Acho que não conheço nenhuma outra família nesta área que não tenha um horário fixo para o jantar." Ela ressalta que seus filhos nunca passam fome, e sempre há comida disponível - eles simplesmente não seguem um cronograma. "Às vezes, eu tento, mas simplesmente não funciona." Ela também sente que seus vizinhos mais ao sul fazem uma distinção entre as diferentes atividades familiares de uma forma que não existe na cultura sami. "Uma coisa que eu também notei é que aqui as pessoas realmente investem no 'tempo de qualidade' que passam com a família. Eu realmente não entendo isso, para nós é como ir à floresta colher frutas ou pescar no gelo, coisas normais." No entanto, ela admite que o ambiente da cidade os fez adaptar seu modo de vida. "Minha filha acabou de dizer que gostaria de usar roupas confortáveis ​​ao ar livre, que as pessoas usam o tempo todo em Nuorgam, mas ela não sabe se ficaria com vergonha de fazer isso aqui. Eu realmente não me importo com o que as pessoas pensam, sempre usei (as roupas) de acordo com o clima." Para Kallioinen, fortalecer as habilidades linguísticas sami de seus filhos tem sido a maneira mais importante de permanecer conectada à sua terra natal, cultura e parentes, e criar os filhos com uma forte identidade sami. Mesmo para aqueles que ainda vivem do pastoreio de renas, a vida está mudando. A mudança climática está deixando as condições de neve e gelo menos previsíveis e tornando mais difícil para as renas encontrar comida. A extração de madeira está destruindo florestas antigas onde as renas encontram musgo para comer. Muitas cooperativas de pastoreio de renas não recolhem mais renas que vivem soltas em lugares distantes para a tradição de marcação — em vez disso, mantêm os filhotes perto de casa. Para Valkeapää, mãe de seis filhos que se casou e entrou para uma família de pastores de renas, o fato de o ritual de marcação ocorrer durante as férias escolares dos filhos ajuda a seguir o ritmo antigo. "Às vezes, eu sinto que algumas pessoas podem pensar que meus filhos são preguiçosos se dormirem até o final da tarde, mas isso é realmente um problema? Talvez seja apenas um problema da nossa sociedade." E embora ela se orgulhe de que os filhos já estejam participando do trabalho da família, em última análise, até mesmo a decisão de continuar este legado será deixada para eles. "Claro, é uma bela ideia que nossos filhos continuem pastoreando renas. Mas eles precisam decidir por si mesmos. Você também precisa querer isso, e você precisa de um certo tipo de personalidade para ser capaz de fazer isso", diz Valkeapää. Questionada sobre que tipo de personalidade seria, ela responde: "Bem, você sabe, é preciso confiança e esse tipo de atitude de sobrevivência. Esse tipo de atitude de 'não mexa comigo'". *Suvi Pilvi King trabalha com os Arquivos Sami, no Arquivo Nacional da Finlândia, e mora em Inari, na Finlândia. Ela é coautora do livro "Revitalizing Indigenous Languages: How to Recreate a Lost Generation" ("Revitalizando as línguas indígenas: como recriar uma geração perdida", em tradução literal).
2022-03-27
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-60229897
sociedade
A verdade sobre a cidade ecológica que a Arábia Saudita planeja no deserto
Praias que brilham no escuro. Bilhões de árvores plantadas em um país dominado pelo deserto. Trens que levitam. Uma lua de mentira. Uma cidade sem carros, livre de carbono, construída em linha reta ao longo de 170 km no deserto. Estes são alguns dos planos de Neom, uma ecocidade futurística que é parte da estratégia da Arábia Saudita para tornar-se um país verde. Mas não parece bom demais para ser verdade? Neom afirma que será um "modelo para o futuro, no qual a humanidade progride sem comprometer a saúde do planeta". O projeto de US$ 500 bilhões (R$ 2,53 trilhões) é parte do plano saudita chamado Visão 2030 para reduzir a dependência do petróleo - a indústria que enriqueceu o país. Cobrindo uma área total de mais de 26.500 km² - mais que o Kuwait, Israel ou o Estado de Sergipe -, Neom ficará, segundo seus idealizadores, totalmente fora dos limites do sistema judiciário atual da Arábia Saudita, sendo regido por um sistema legal autônomo a ser criado pelos seus investidores. Ali Shihabi, ex-banqueiro que agora faz parte do conselho de administração de Neom, afirma que o megaterritório incluirá uma cidade com 170 km de comprimento chamada A Linha, em linha reta ao longo do deserto. Pode parecer improvável, mas Shihabi explica que A Linha será construída em etapas, bloco por bloco. "As pessoas afirmam que é um projeto maluco que irá custar zilhões, mas ela será construída módulo por módulo, de forma a atender à demanda", afirma ele. De forma similar às superquadras de Barcelona livres de trânsito, ele explica que cada bloco será autossuficiente e incluirá instalações como lojas e escolas, de forma que tudo o que as pessoas precisam estará a cinco minutos de distância, a pé ou de bicicleta. Quando estiver completa, a viagem através da Linha será feita por trens de hipervelocidade e a viagem mais longa "nunca durará mais de 20 minutos", segundo afirmam seus projetistas. E ainda há mais. Neom abrigará Oxagon - uma cidade flutuante sobre a água com 7 km de extensão, que será a maior estrutura flutuante do mundo. O CEO (diretor-executivo) de Neom, Nadhmi al-Nasr, afirma que a cidade portuária "receberá seus primeiros inquilinos para a construção no início de 2022". Mais acima desse "centro industrial" no litoral do Mar Vermelho, Neom anunciou planos de estabelecer o maior projeto de restauração de recifes de coral do mundo. Seu website - que às vezes parece ter saído de um romance de ficção científica - afirma que a primeira fase do megaterritório estará construída até 2025. Este é o plano. Mas a realidade, por enquanto, é mais modesta. A imagem de satélite mostra atualmente um único bloco sendo construído no deserto. Além de fileiras de casas, ele inclui duas piscinas e um campo de futebol. Ali Shihabi afirma que esse é o campo dos funcionários de Neom, mas não estamos no solo para verificar. Mas qual a viabilidade de construção de uma cidade de ponta com credenciais verdes no meio do deserto? Manal Shehabi, especialista em energia da Universidade de Oxford, no Reino Unido, afirma que, para avaliar o grau de sustentabilidade que Neom pode ter, existem muitos pontos a serem considerados. Por exemplo: os alimentos serão produzidos localmente em um sistema que não use quantidade excessiva de recursos ou serão importados do exterior? O website afirma que Neom será "a maior cidade autossuficiente em alimentos do mundo". Ele apresenta uma visão revolucionária de agricultura vertical e estufas para um país que atualmente importa cerca de 80% dos seus alimentos. A questão é se isso pode ser feito de forma sustentável Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Críticos acusam o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman, que é a força motora atrás de Neom, de praticar o que é conhecido como "greenwashing" - fazer grandes promessas sobre o meio ambiente para desviar a atenção da realidade. O "gigaprojeto" é parte da visão do príncipe herdeiro de uma Arábia Saudita mais verde. Uma semana antes das negociações sobre mudanças climáticas da COP26 em novembro de 2021, ele também lançou a Iniciativa Verde Saudita, anunciando o objetivo de zerar as emissões do país até 2060. Inicialmente, este foi considerado um passo importante na comunidade do clima, mas não resistiu às análises, segundo Joanna Depledge, especialista em negociações internacionais sobre mudanças climáticas da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Ela indica que, para limitar o aquecimento a 1,5 °C, a produção global de petróleo precisa ser reduzida em cerca de 5% por ano a partir de agora até 2030. Mas a Arábia Saudita prometeu aumentar a extração de petróleo poucas semanas depois de apresentar promessas verdes importantes para a conferência do clima COP26. O ministro da energia do país, príncipe Abdulaziz bin Salman, teria afirmado que a Arábia Saudita não interromperia o bombeamento de petróleo. "Nós ainda seremos os últimos a ficar em pé e todas as moléculas de hidrocarbonetos serão extraídas", segundo ele. "Acho muito alarmante que a Arábia Saudita aparentemente ainda ache que pode continuar a explorar e extrair petróleo no contexto atual", afirma Depledge. As emissões de cada país vêm do combustível que ele queima, não do que é extraído. Por isso, um país como a Arábia Saudita, que extrai milhões de barris por ano e os exporta para outros países, não precisa incluir essa quantidade em suas emissões. Mesmo em nível doméstico, a Arábia Saudita tem um longo caminho pela frente. Embora seu último objetivo estabelecido seja de geração de 50% da sua eletricidade por energia renovável até 2030, apenas cerca de 0,1% da energia elétrica do país foram gerados desta forma em 2019. Os defensores de Neom afirmam que é preciso começar do zero e construir uma cidade inteligente e sustentável alimentada por energia solar e eólica, com água fornecida por usinas de dessalinização livres de emissões de carbono. "A Arábia Saudita precisa de pensamento criativo, pois a água do Oriente Médio está se esgotando", afirma Ali Shihabi, do conselho consultivo de Neom. A Arábia Saudita é um país árido e cerca da metade da sua água é produzida por usinas de dessalinização (instalações industriais que extraem o sal da água do mar) alimentadas por combustíveis fósseis. Trata-se de um processo caro e o subproduto gerado - uma mistura de salmoura e substâncias tóxicas - é descartado de volta para o mar, com consequências prejudiciais para os ecossistemas marinhos. O processo de dessalinização de Neom será alimentado por energia renovável e a salmoura, em vez de ser descartada no mar, será usada como matéria-prima industrial. Mas há uma dificuldade: o uso de energias renováveis em usinas de dessalinização nunca foi bem sucedido. Shihabi admite que Neom "é um projeto experimental, mas, se apenas esse projeto funcionar e pudermos resolver o problema da água no Oriente Médio, tudo o que Neom fizer terá valido a pena". Mas os especialistas do clima receiam que depender de tecnologias não comprovadas pode ser uma forma de atraso climático, retardando ações significativas contra os efeitos das mudanças climáticas - algo que às vezes é descrito como "otimismo tecnológico". Existem também grandes dúvidas sobre quem se beneficiará com a construção de Neom. O terreno desolado entre o litoral do Mar Vermelho e a fronteira montanhosa com a Jordânia pode ter parecido o terreno vazio perfeito para construir um míni-Estado. Mas existem pessoas que já vivem ali - os Huwaitats, membros de uma antiga tribo de beduínos tradicionalmente nômades. O projeto promete criar empregos e gerar riqueza nessa região subdesenvolvida, mas, até agora, a população local não viu nenhum benefício. Defensores dos direitos humanos afirmam que duas cidades foram evacuadas e 20 mil Huwaitats foram removidos à força, sem compensação adequada, para a construção da megacidade. Um homem chegou a ser morto na ocasião. Em abril de 2020, Abdul Rahim al-Huwaiti recusou-se a ser despejado de sua casa na região de Tabuque e começou a postar vídeos online. Dias depois, ele foi morto a tiros pelas forças de segurança sauditas, como ele havia previsto que iria acontecer. Fahad Nazer, porta-voz da embaixada da Arábia Saudita em Washington, nos Estados Unidos, contesta as alegações de remoção forçada dos Huwaitats, mas não contesta a morte de al-Huwaiti, que ele chama de "pequeno incidente". Os habilidosos esforços de relações públicas de Neom - parte do esforço para atrair turistas para diversificar a economia saudita - também vêm recebendo críticas. Vídeos promocionais chamativos exibem todo o charme e glamour de uma cidade cosmopolita com suas próprias leis e forças de segurança, em um território independente da velha guarda que governa a Arábia Saudita. Mas os críticos afirmam que o projeto atenderá principalmente aos muito ricos. Há relatos de que foram construídos palácios para a família real do país. Imagens de satélite mostram um heliporto e um campo de golfe entre os primeiros projetos de construção. Ali Shihabi afirma que a cidade abrigará a todos, "desde trabalhadores até bilionários", mas reconhece que não vem sendo percebida dessa forma. "Acho que o problema de Neom é uma falha na sua estratégia de comunicação", afirma ele. "As pessoas acham que é apenas um brinquedo de gente rica." "Começar esta jornada rumo a um futuro mais verde não tem sido fácil, mas não estamos evitando decisões difíceis", afirma Mohammed bin Salman. "Nós rejeitamos a falsa escolha entre preservar a economia e proteger o meio ambiente". Neom claramente é parte dessa visão. Mas, até agora, os sauditas estão evitando a decisão mais difícil de todas: abandonar a produção de combustíveis fósseis. Fechar as torneiras será difícil, segundo Manal Shehabi, a especialista em energia de Oxford. "Acho que seria muito difícil, do ponto de vista econômico, esperar que qualquer país com tamanha dependência de petróleo e gás repentinamente parasse de usá-los e de explorar os recursos oferecidos." Os sauditas afirmam que estão respondendo às necessidades de energia do mundo. "A realidade é que a demanda por hidrocarbonetos em todo o mundo ainda está presente", afirma o porta-voz da embaixada saudita, Fahad Nazer. Nos bastidores, a Arábia Saudita e outros países dependentes de combustíveis fósseis vêm tentando insistentemente atenuar as palavras relativas aos compromissos internacionais sobre o clima, segundo Joanna Depledge, da Universidade de Cambridge - uma estratégia que foi mantida na COP26. "A Arábia Saudita intervinha de forma muito intensiva, tentando apontar incertezas, custos e impactos naturais para minimizar a urgência dos problemas causados pelas mudanças climáticas", afirma Depledge, que acompanhou de perto as negociações da COP26 em Glasgow, no Reino Unido. Mas Fahad Nazer nega as alegações de greenwashing e insiste que a Arábia Saudita está caminhando para um futuro verde. E, embora permaneçam as dúvidas se Neom cumprirá suas promessas, Ali Shihabi nos convida a reservar um apartamento na Linha, "antes que todos o façam".
2022-03-25
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-60486476
sociedade
A britânica que decidiu fazer gentilezas para estranhos todos os dias por um ano
"Você poderá achar que a bondade é sinal de fraqueza, ilusão ou transigência, mas, na verdade, ela é fundamental para a forma como nos conectamos." Quem afirma é Robin Banerjee, do Centro de Pesquisa da Bondade da Universidade de Sussex, no Reino Unido. "Para mim, ser amável é parte do propósito de estar vivo", afirma Bernadette Russell, ativista pela gentileza. Já para Nina Andersen, fundadora do projeto Community Senior Letters, "os atos de bondade são necessários no mundo, agora mais do que nunca". Robin Banerjee, Bernadette Russell e Nina Andersen falaram com a BBC sobre o poder extraordinário da bondade e da gentileza e seu impacto sobre a nossa própria saúde mental. Fim do Matérias recomendadas "Em 2011, eu estava sentada em uma lanchonete, tomando meu café da manhã, quando olhei para uma televisão e havia um ônibus de dois andares em chamas em Londres", conta Bernadette Russell. O que ela estava vendo eram os maiores distúrbios da história moderna da Inglaterra, desencadeados pela morte de Mark Duggan, de 29 anos, que foi assassinado a tiros pela polícia em Tottenham, no dia 4 de agosto de 2011. "Parecia uma guerra civil", relembra Russell. "E houve uma reação muito negativa aos distúrbios que também me perturbou muito. Comecei a ficar cada vez mais desesperada por ver como são enormes os problemas do mundo. E não sabia o que podia fazer." Alguns dias mais tarde, Russell estava em uma agência dos correios e viu que faltavam algumas moedas para um estranho comprar um selo. E ela deu a ele as moedas. "Sua gratidão foi muito grande em comparação com o pouco tempo e dinheiro que gastei. Mas pensei: 'coloquei um sorriso no seu rosto' e isso me fez bem. No caminho de volta para casa, bolei um arriscado plano de fazer um ato de bondade todos os dias para um estranho durante um ano. Isso mudou a minha vida!" Estudos demonstraram muitas vezes que a gentileza é intuitiva. Quanto mais tempo temos para pensar, menos amáveis somos. Até as crianças têm o instinto de ajudar quando se sentem conectadas aos demais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E ser gentil também pode ter efeitos poderosos sobre os nossos cérebros. "É um dos grandes paradoxos da bondade que um ato amável, cuja intenção é de beneficiar os demais, na verdade tem consequências positivas para você mesmo", destaca Robin Banerjee, que é diretor da Faculdade de Psicologia da Universidade de Sussex, na Inglaterra. Segundo ele, "existem padrões de ativação no cérebro que correspondem a um estímulo ao bem-estar. As formas de recompensa no cérebro são ativadas quando as pessoas realizam atos de gentileza." A gentileza desencadeia neurotransmissores no cérebro, que são os mensageiros químicos que controlam nosso estado de ânimo. As sensações agradáveis geradas pelos neurotransmissores impulsionam uma sensação de conexão com os demais. "As relações necessárias para trabalhar em cooperação são baseadas nas conexões sociais básicas. Por isso, é algo fundamental para a forma como os seres humanos interagem entre si", ressalta o psicólogo. Mas o que aconteceu com Bernadette Russell durante o período em que ela se propôs a ser gentil todos os dias durante um ano inteiro? Ela contou à BBC que a experiência acabou sendo "totalmente comovente, completamente aterrorizante, ocasionalmente cara e, às vezes, fisicamente perigosa, como quando carreguei compras muito pesadas por 6,5 km até o apartamento de uma senhora. Foi muito muito cansativo e incrivelmente inspirador." Russell havia sentido os efeitos químicos da chamada euforia dos generosos ("helper's high", em inglês) - a sensação especial de formigamento que se apodera de nós quando somos gentis. "Eu ficava em êxtase todos os dias. Na maior parte do tempo, sentia uma espécie de energia suave envolvendo meu coração e também na barriga... Em resumo, eu me sentia muito bem." Mas, se a bondade é tão benéfica e está na nossa natureza, por que não vivemos em um mundo mais gentil? Para Banerjee, "nós, seres humanos, somos predispostos a ser bondosos, mas também a ser cruéis com as outras pessoas. Nosso ambiente faz muita diferença." "Quando você pensa em uma pessoa muito bem sucedida, você pensa em alguém amável? Ou em uma celebridade ou alguém muito rico?", pergunta o psicólogo. "O que podemos fazer para mudar a narrativa do sucesso, para que possa envolver relações positivas com as outras pessoas?" Bernadette Russell afirma que "precisamos questionar todas as histórias que mostram a gentileza como se fosse uma fraqueza". O teste de bondade - um estudo recente idealizado pela Universidade de Sussex e lançado pela BBC, que teve a participação de mais de 60 mil pessoas em todo o mundo - concluiu que dois terços das pessoas acreditam que a pandemia de covid-19 fez com que as pessoas fossem mais amáveis. No primeiro confinamento de 2020, a adolescente britânica Nina Andersen criou uma campanha para que os alunos das escolas escrevessem para idosos. "Pensei em como as pessoas idosas não tinham mais contato além das paredes das suas casas de repouso", ela conta. "O que começou como uma ideia localizada muito pequena converteu-se em algo muito maior do que poderia ter imaginado. [O projeto] chegou a mais de 250 escolas e mais de 250 casas de repouso, com impactos positivos para milhares de pessoas." E sua campanha ultrapassou as fronteiras do Reino Unido. "O que presenciamos durante esse período foi o quanto ansiamos por ajudar-nos uns aos outros. O que precisamos fazer agora é recordar a imensa bondade de que fomos capazes", afirma Bernadette Russell. Robin Banerjee afirma que "não se trata simplesmente de instruir às pessoas em um determinado ambiente para que sejam gentis. Precisamos mudar o nosso ambiente para que pareça normal ser amável." "Gostaria de ver todas as empresas, as escolas, os hospitais e todos os serviços públicos formarem um manifesto de bondade. Para que todos se perguntem: 'Isso é gentil?' Para que se torne um tema comum nas nossas conversas em todos os níveis de todas as organizações, em todos os lugares", afirma Bernadette Russell. Mas desejar grandes mudanças não significa que os pequenos atos de gentileza não sejam significativos. Russell conta que "a maior lição para mim foi aceitar o fato de que todos os dias posso fazer alguma coisa, seja simplesmente cumprimentar uma pessoa ou sorrir... é assim que mudamos o mundo". Para Nina Andersen, "cada uma das suas boas ações aumenta a possibilidade de que elas se reproduzam e formem um círculo de gentileza". E Robin Banerjee destaca que "as coisas pequenas podem, na verdade, ser coisas grandes. Todas essas pequenas coisas que você pensa que não são relevantes podem ser o mais importante para criar um ambiente que realmente permita que as pessoas se sintam bem e possam trabalhar juntas para assumir desafios realmente grandes." "Assim como uma praia é composta de bilhão de grãos de areia, existe essa bela humildade ao dizer 'eu posso, a qualquer momento e a qualquer hora do dia, colaborar para fazer do mundo um lugar melhor'", conclui Russell.
2022-03-24
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60862093
sociedade
'Preferi amputar a sentir mais dor': a britânica que virou atleta após perder a perna
No passado, Shona Brwonlee não deu muita importância à queda que sofreu no fim de seu treinamento militar. Depois de anos de dor crônica, ela tomou uma decisão que mudou sua vida e que posteriormente a levou aos Jogos Paralímpicos de Pequim 2022. Desde a infância, Shona tinha paixão por tocar trompa. "A música era a única coisa que eu queria fazer", diz. "Minhas tardes e fins de semana eram ocupados com ensaios de orquestra e concertos". Shona é de Livingston, na Escócia, e estudou música no mais alto nível. Primeiro no conservatório de Birmingham, na Inglaterra, e depois na Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. Mas a vida de trabalhadora independente era difícil. Os músicos da orquestra só cobram por um ou dois ensaios antes de um concerto e depois pela apresentação. Fim do Matérias recomendadas Ela conhecia amigos que ingressaram para a força aérea como músicos, em busca de estabilidade. "Você está de uniforme, mas tem ensaios, concertos, viagens e bandas de classe mundial". Assim, Shona ingressou na força aérea como aeronauta. Mesmo com o foco na música, teve que cumprir com os requisitos de todos os recrutas e completar as provas básicas antes de poder tocar. Chegando ao fim dessas provas, ela começou a imaginar como seria a sua carreira musical. E então ela caiu. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Foi um acidente simples", comenta sobre sua queda de uma doca de carregamento. Ela não deu muita importância. O tornozelo doía, mas ela assumiu que tinha uma entorse e que logo se recuperaria. Ela buscou motivação para acabar o treinamento e se juntou à banda. Mas ela mal conseguia caminhar. Shona foi levada para um centro de reabilitação onde foi diagnosticada com síndrome de dor regional complexa, que causava dor persistente e incapacitante. Os tratamentos não funcionaram. "Fiquei de muletas com uma perna que não andava". Ela continuou na força aérea, mas em algumas ocasiões era incapaz de atuar na sua função ou marchar, atividades consideradas fundamentais. Seis anos depois, sem sucesso nos treinamentos, a equipe médica de Shona disse a ela que "não havia mais nada a ser feito". Porém, Shona sabia que isso não era tão certo assim. Ela diz que tinha amigos veteranos "duplamente ou triplamente amputados que eram muito mais funcionais do que ela porque tinham próteses". E se lembrou de uma piada de anos atrás: "Deveriam cortá-la". Shona entendeu naquele momento que isso não era mais completamente uma piada e decidiu que iria amputar a perna. "No início eu estava um pouco horrorizada e pensei que preferia ter uma perna com dificuldades do que nenhuma perna". Mas com o passar do tempo, ela diz que pensou que "não seria tão ruim assim". Shona começou a investigar a possibilidade de uma amputação e quando decidiu que faria isso, contou à sua equipe médica. Demorou "um pouco para convencê-los", falaram sobre as vantagens e desvantagens, sobre a possibilidade de isso não funcionar por ela não se acostumar a uma prótese. Shona estava preparada para arriscar. "Depois de seis anos de muleta, parecia que não havia nenhuma decisão a ser tomada, porque minha perna não estava funcionando", diz ela. "Eu não tinha nada a perder". "Escolhi ter a minha perna amputada abaixo do joelho", conta. Shona comenta que a decisão a ajudou a entender como seria a operação que mudaria a sua vida. Mesmo convencida, ela ficou nervosa no dia da cirurgia. Ela não tinha ideia se realmente funcionaria e se a deixaria sem dores. Depois de acordar da anestesia, Shona olhou para baixo. "Havia um pequeno caroço estranho onde a perna deveria estar, mas me lembro de pensar que não doía, o que era um bom sinal". Shona passou uma semana no hospital, seguida por seis semanas em uma cadeira de rodas, para garantir que a lesão havia cicatrizado antes de receber a prótese. "Me adaptei melhor do que esperava", explica. "No começo foi estranho", e ela teve que aprender a se cuidar para evitar bolhas e feridas. "Mas em poucos meses a sensação foi normal". Tão normal que ela conseguiu até marchar com a banda do exército pela primeira vez. Enquanto fazia reabilitação, Shona viu um anúncio da força aérea que dizia que a entidade ajudava pessoas lesionadas por meio de esportes e aventuras como parte da recuperação. Esse anúncio, em particular, mencionava uma viagem para esquiar na Baviera, na Alemanha. Ela se inscreveu. "Seriam 10 dias para se divertir, mas esse foi o início da minha carreira no esqui". Shona testou o esqui adaptado - com assento montado em cima de um esqui - com dois estabilizadores adaptados para coordenar o equilíbrio e a direção. "Não diria que peguei muito rapidamente. Após encontrar o seu equilíbrio e o seu centro de gravidade, fica tudo bem. Lembro-me de estar de cabeça para baixo muitas vezes, deslizando por uma montanha e acabando em valas". Apesar dos acidentes, alguém viu potencial nela e a apresentou para a equipe de Para-Snowsport, que dá oportunidades no esqui a pessoas lesionadas, por meio de suporte com treinadores e equipamentos. Entre o trabalho e a recuperação, Shona começou a treinar seriamente com a ajuda dessa equipe, e isso a levou para a equipe britânica, com quem competiu em campeonatos mundiais e nos Jogos Paralímpicos de inverno em Pequim. Shona agora é parte do programa de equipe de elite da Força Aérea do Exército, o que permite que ela pegue licença dos trabalhos na sua função para que possa treinar em tempo integral. Ela também foi nomeada a atleta feminina do Exército em 2021. Por mais que Shona quisesse uma medalha de ouro em Pequim 2022, o mais importante para ela foi a experiência. "O objetivo final? É voltar para a banda e fazer música outra vez".
2022-03-21
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60804000
sociedade
'Anjos da guarda': a aposentada resgatada por motoboys durante alagamento em SP
A aposentada Maria Ladi Rodrigues, de 77 anos, voltava para casa na terça-feira (15/3) quando ficou presa em uma rua em meio a uma forte chuva em São Paulo (SP). "Um carro passou tranquilo na minha frente e eu fui passar também, mas aquilo encheu repentinamente, meu carro morreu e não consegui mais sair", diz a idosa à BBC News Brasil. "Olhava para frente e não via ninguém. Falei: quem vai me ajudar?", relembra Ladi, como é conhecida entre os familiares e amigos. O carro dela ficou parado em um trecho de Perdizes, na capital paulista. Ela permaneceu no veículo por cerca de um minuto, período suficiente para fazer com que sentisse muito medo. "Eu pensava no pior: agora eu vou", conta. Logo três motoboys que estavam em uma lanchonete da região se aproximaram do veículo ilhado na rua. Fim do Matérias recomendadas "Eles chegaram, me acalmaram e um deles falou assim: a senhora vai subir nas minhas costas. Um outro ficou me segurando atrás", diz ela. Após ser levada até a lanchonete, a aposentada riu da situação. "Eu achei que eles não iriam conseguir me segurar, por isso fiquei rindo depois, quando já estava tranquila e não corria mais risco nenhum", diverte-se. A cena do resgate foi filmada pela advogada Ana Letícia Arruda, que mora em um apartamento próximo ao local, e foi compartilhada nas redes sociais. O vídeo causou repercussão e muitos elogiaram a ação dos homens que ajudaram Ladi. "Decidi registrar no momento em que vi os motoboys entrando na água para ajudar. Nos dias atuais ficamos surpresos quando vemos um altruísmo desse nível, infelizmente", diz Ana Letícia à BBC News Brasil. "Quem sabe se der mais destaque (à ajuda dos motoboys) e visibilidade, o vídeo inspira as pessoas a fazerem mais pelas outras", acrescenta. A advogada afirma que a região sempre costuma alagar quando há chuva forte. Há relatos de outros carros que também ficaram ilhados na mesma área em períodos anteriores. Alagamentos como o vivenciado por Ladi em São Paulo são cada vez mais comuns pelo país. A aposentada diz que se trata de um problema histórico, do qual ela já foi vítima de outro episódio há mais de 40 anos, também na capital paulista. "Vivi um acontecimento semelhante. Meu filho tinha 10 anos e a gente teve que sair pela janela (do carro)", diz ela, que diz ter se recordado do alagamento do passado quando ficou ilhada dentro do veículo na última terça-feira. Ela cobra que as autoridades de São Paulo e de todas as cidades em que há dificuldades causadas por enchentes deem atenção ao tema e procurem medidas para evitar episódios assim. "As autoridades precisam tomar consciência e dar um jeito na cidade", diz. Quando foi deixada pelos motoboys na lanchonete, Ladi quis dar uma retribuição financeira a eles. "Mas eles não aceitaram de jeito nenhum. Eles foram sensacionais. Acho que os motoqueiros, nessas horas, se juntam para salvar", conta. Os três rapazes também empurraram o carro dela para uma área em que não havia alagamento. O automóvel teve perda total. "Agora estou aguardando o seguro", afirma a aposentada. Após o susto, ela prefere enxergar a situação com bom humor. Para Ladi, os motoboys e as outras pessoas a ajudaram, principalmente, em razão de seus cabelos brancos. "O quarteirão todo (do local do alagamento) me acolheu muito bem", diz. "Nunca imaginei que seria assim. Acharam que sou assim, velhinha, e ficaram preocupados comigo", declara. "O pessoal todo veio falar: a senhora precisa de alguma coisa? Foram muito solidários comigo", conta. A aposentada não teve nenhum tipo de ferimento. Ela não sabe os nomes dos homens que a ajudaram a sair do carro, mas tem uma certeza: diz que eles foram seus "anjos da guarda" naquele momento. "Quando eles fizeram sinal de que estavam indo, meu coração sossegou porque fiquei bastante apreensiva quando estava no meio da água e não via ninguém na minha frente", diz.
2022-03-21
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sociedade
A luta de brasileiro por informações dos pais desaparecidos na cidade mais atacada na Ucrânia
Quando ficou sem informações sobre os pais, o marinheiro mercante Gabriel Pilipenko, de 26 anos, deixou a embarcação na qual trabalhava em Taiwan. "Não conseguiria continuar trabalhando tranquilamente sem notícias dos meus pais. Estava pensando nisso toda hora. Seria perigoso continuar embarcado, porque é um trabalho que requer muita responsabilidade e seria difícil continuar enquanto estava com a mente ocupada por problemas pessoais", diz à BBC News Brasil. Há quase 20 dias, Gabriel não tem notícias dos familiares. No último contato, os pais dele avisaram aos parentes que ficariam sem comunicação porque a cidade estava sem energia elétrica em decorrência dos sucessivos ataques. Desde o início da invasão russa na Ucrânia, em 24 de fevereiro, Mariupol, que tem cerca de 400 mil habitantes, tem sido duramente atingida. Milhares de civis estão presos na região, enquanto as tropas russas seguem a ofensiva com mísseis e artilharia, segundo autoridades ucranianas. Fim do Matérias recomendadas Há relatos de ataques a diferentes pontos da cidade, como uma maternidade e uma escola de arte que, conforme as autoridades ucranianas, abrigava 400 moradores da cidade. Para Gabriel, cada dia sem notícias dos pais aumenta ainda mais a angústia que tem vivido. "Já passou muito tempo. A cidade está com problemas com abastecimento de água, sem água para beber, e sem comida. Isso me deixa muito preocupado, porque mesmo que eles estejam bem, podem estar passando por dificuldades", diz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Diante dos constantes ataques russos, Gabriel decidiu não tentar, ao menos por ora, entrar na Ucrânia. Após deixar a embarcação na qual trabalhava, ele seguiu para a Alemanha, onde permanece à espera de notícias da família. "Ainda não tenho certeza, estou pensando sobre ir para a Ucrânia. Mas para sair daqui (na Alemanha) para chegar a Mariupol teria que passar por muitas estradas perigosas, então fico receoso de ficar preso em algum lugar e não poder ajudar os meus pais", diz. O marinheiro tem mantido contato com pessoas que também têm parentes em Mariupol. Ele diz que tem feito ligações para pessoas que estão em áreas próximas à cidade e que talvez possam procurar a família dele. "Estou tentando ser o mais informado possível para saber como posso ajudar os meus pais", diz. "Tenho tentado arranjar um jeito de tirar a minha família de lá e sei que vou conseguir", acrescenta. Os intensos ataques a Mariupol se explicam pela posição estratégica dela no mapa da Ucrânia. Se dominada, a cidade ajudará os russos a formarem uma espécie de corredor ligando as duas áreas separatistas da região de Donbas até a península da Crimeia, anexada pela Rússia em 2014. Com esse grau de controle, os russos teriam também acesso facilitado tanto ao Mar de Azov quanto ao Mar Negro. No último dia em que teve contato com a família, no início de março, Silvana gravou um vídeo para uma veículo de imprensa paraibano no qual contou que Mariupol estava cercada e todas as saídas estavam fechadas. "Não saímos logo no início (do conflito) porque temos a mãe do meu esposo, a minha sogra, muito fragilizada, e é quase impossível tentar se aventurar a sair da cidade com ela", disse. A paraibana ainda comentou que a Embaixada brasileira em Kiev, capital da Ucrânia, ofereceu transporte e trem para deixar o país, mas não se responsabilizou por possíveis riscos no trajeto em meio ao conflito. "Então seria por conta e risco nosso. Diante desses obstáculos, decidimos ficar aqui em Mariupol", relatou no vídeo. Silvana e Vasyl moram em Mariupol desde o ano passado, quando se mudaram para acompanhar a mãe dele, uma idosa que precisa de cuidados. Já Gabriel mora em Odessa, cidade portuária da Ucrânia, onde os pais dele também viviam antes do endereço atual. Gabriel, assim como a mãe, nasceu em João Pessoa, na Paraíba, onde morou até os 16 anos. Ele e os pais costumavam visitar a Ucrânia com frequência. A família se mudou para o país do leste europeu no fim da adolescência dele. A história dos pais de Gabriel começou há cerca de 27 anos, quando se conheceram em uma festa em Santos (SP). Silvana é artesã e estava a passeio na cidade, enquanto Vasyl estava a trabalho porque era marinheiro mercante — ele é a principal inspiração para que o filho seguisse no mesmo caminho. O último contato de Gabriel com os pais foi em 2 de março, por meio de ligação telefônica. "A ligação ficava caindo, mas consegui conversar com eles e me explicaram que a situação estava ficando pior, que estavam cortando a luz e estavam com problemas de internet e sinal. No dia seguinte não consegui conversar com eles mais". Ele acredita que os pais, assim como tantos outros moradores da região, ficaram sem energia elétrica, não conseguiram mais carregar o celular e perderam o contato com a família. "Algumas pessoas conseguiram carregar seus celulares em baterias de carro, mas meus pais não têm carro. Além da eletricidade, cortaram também a rede móvel de celular", diz. "Alguns conseguem achar sinal de celular raramente em alguns cantos de prédios altos, mas meus pais infelizmente não devem ter conseguido achar", completa. Em meio às notícias que recebeu nos últimos dias, Gabriel descobriu que o prédio em que sua família estava foi atingido por um ataque. "Alguma bomba aterrissou em alguma parte do prédio. Disseram que não foi nada de grande dano", conta. O marinheiro mantém o otimismo e acredita que os pais ou a avó não foram atingidos por nenhum ataque na cidade. Ele diz que recebeu, na manhã de domingo (20/3), mensagens de uma conhecida que disse que os pais dela avistaram a família de Gabriel recentemente. "Mas isso não pode ser confirmado, já que não tenho contato direto com a minha família", diz. Segundo o brasileiro, ela não detalhou a situação dos pais e da avó dele. Uma das esperanças de Gabriel é que a família consiga uma vaga em algum carro que esteja deixando Mariupol. Desde o início do conflito há diversos relatos de veículos que conseguiram entrar e sair da cidade para retirar moradores. "Mas devido ao alto número de pessoas que precisam ser resgatadas, até o momento ninguém aceitou meu pedido de ajuda, nem mesmo quando ofereço dinheiro", conta Gabriel. Ele reclama da falta de assistência do Itamaraty e cobra que a entidade ajude a resgatar os pais dele. "O Itamaraty apenas disse que estava em contato com a Cruz Vermelha, mas falou que não está resolvendo casos individuais, apenas tentando mandar comida para a cidade. Na minha opinião, não estão se esforçando o suficiente", afirma. Em nota à BBC News Brasil, o Itamaraty diz que está ciente do caso da brasileira e afirma que já acionou organizações internacionais de apoio humanitário que estão na cidade para "tentar localizar a cidadã". Ainda em nota, o Itamaraty diz que tem mantido contato regular com familiares de Silvana por meio de um escritório de apoio em Lviv, na Ucrânia. Sem respostas, Gabriel evita pensar em planos para o futuro. Ele só deverá retornar ao trabalho quando souber dos pais. "Para onde a minha família vai, após ser encontrada, não tem a menor importância agora. Só preciso que eles estejam bem. Agora, basicamente, quero que eles sejam retirados de Mariupol e levados para algum outro país da Europa que esteja dando suporte moral e financeiro a refugiados da Ucrânia", diz.
2022-03-21
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sociedade
Millennials e geração Z: por que elas são a 'geração deprimida'
Alguns meses atrás, uma paciente me disse: "Faço parte da geração deprimida, como posso escapar disso?" Era sua primeira sessão. Ela veio à terapia porque não tinha vontade de fazer coisa alguma, estava sem motivação e sua sensação era de que a vida não tinha sentido. Ela estava certa, pertence à chamada "geração deprimida" — que engloba, na verdade, duas gerações: a dos millennials (também chamados de geração Y) e a geração Z. A primeira se refere às pessoas nascidas entre 1981 e 1995 e a segunda, aos que chegaram ao mundo entre 1995 e 2010 (as datas são aproximadas, pois não existe um consenso social claro para esta classificação). O fato é que o uso de antidepressivos é cada vez maior, cada vez se busca mais assistência psicológica e há cada vez mais expressões conscientes de ansiedade e tristeza nestas gerações. Vamos por partes para descobrir que fatores influenciam nisso. Fim do Matérias recomendadas Antes de mais nada, vamos começar definindo o que é o transtorno depressivo maior. Ele se manifesta como um conjunto de sintomas, entre os quais podemos destacar um estado de ânimo deprimido durante a maior parte do dia, redução do interesse pelas atividades que antes traziam prazer, perda ou aumento de peso, insônia ou hipersonia, agitação ou retardo psicomotor, perda de energia, sentimento de inutilidade ou culpabilidade excessiva, redução da capacidade de pensar ou concentrar-se e pensamentos recorrentes de morte. Há várias razões pelas quais a geração millennial e a geração Z são denominadas conjuntamente de geração deprimida. Vamos analisar os diferentes fatores que podem estar influenciando isso: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pandemia, coronafobia e solidão Não podemos menosprezar a influência que a pandemia de covid-19 teve sobre a população em geral — incluindo quadros desagradáveis, como de coronafobia (ansiedade excessiva em relação a contrair o coronavírus), ansiedade, fadiga pandêmica (reação de esgotamento diante de uma adversidade constante e não resolvida) etc. Diante de tal cenário, a pergunta é: essas situações teriam afetado particularmente estas duas gerações? A solidão possui relação direta com a tristeza. É verdade que isso se aplica a qualquer idade, mas a necessidade de se relacionar com os demais é maior na juventude. E é por isso que as medidas específicas de prevenção do contágio do coronavírus afetaram particularmente esta faixa da população. Ansiedade social Por outro lado, a solidão desse momento se contrapõe agora com o retorno à vida social, muitas vezes provocando ansiedade entre adolescentes e jovens. Isso é chamado de ressaca social. Minha experiência pessoal no consultório revelou que muitas pessoas dessa idade manifestam desde então a sensação de não conseguir "se conectar" com seus pares. Elas sentem que não se divertem em situações sociais com muita gente e sofrem ansiedade quando estão rodeadas de pessoas que acabaram de conhecer. Redes sociais As redes sociais se converteram em um refúgio para muitos jovens que se sentem mal. Cabe destacar que o uso adequado das redes sociais é positivo. Graças a elas, em parte, a desconexão social durante o confinamento não foi total. Mas há dois fatores que podem afetar negativamente os jovens: - Uso excessivo ou como forma de evitar momentos de ansiedade. Isso pode fazer com que se refugiem nas redes para evitar situações sociais presenciais. - Uso enviesado. Essa situação poderia expô-los apenas a conteúdos com os quais possam se comparar negativamente, incluindo publicações que demonstrem expressões de dor emocional por pessoas desconhecidas (por exemplo, imagens de automutilações). Frustração profissional Os millennials foram educados em uma "meritocracia" muito voltada para o sucesso socioeconômico e profissional condicionado ao esforço. A maioria deles certamente ouviu frases como "se você se esforçar, conseguirá o que deseja". É uma geração que se esforçou para atingir seus objetivos de vida, mas, em muitos casos, com resultados frustrantes. Os estudos universitários foram equiparados ao sucesso profissional, mas, ao final do período de estudos, ocorreu uma crise econômica que não permitiu a eles se desenvolver no trabalho. Agora, eles podem ter medo de que o mesmo aconteça devido à pandemia. Preocupações globais Entre os assuntos que preocupam os millennials e a geração Z, encontram-se o feminismo, a eco-ansiedade, os direitos LGBTQIA+, a migração... São gerações que se preocupam com o global, e não apenas com o particular. Pensam mais além e sentem ansiedade por mais coisas do que as particulares e individuais. Estas preocupações globais e a possibilidade de se comunicar pelas redes oferecem a eles uma sensação de pertencimento que é muito positiva. Faz com que se sintam parte de um todo e compreendidos pelos demais. Mas eles não só se preocupam, como também procuram soluções. E, muitas vezes, sentem uma responsabilidade excessiva por situações que são globais e de solução mais difícil, o que, por fim, causa ansiedade. Maior reconhecimento dos próprios sintomas Uma das razões pelas quais se fala mais em depressão e ansiedade nestas gerações é o fato de que as pessoas que sofrem desses transtornos discutem a questão com mais naturalidade e reconhecem mais facilmente seus sintomas. De fato, a saúde mental já é um assunto bastante comentado nas redes sociais, plataformas em que há uma presença maior de jovens. Isso é positivo porque, quando uma pessoa reconhece que não está bem, ela pode pedir ajuda. Na verdade, foram estas gerações que quebraram o tabu que rondava os cuidados com a saúde mental. Agora são eles que mais (e mais abertamente) falam em fazer terapia. Também são os que mais a recomendam e mais reconhecem seus próprios problemas. Esta é a geração deprimida porque é a geração que reconhece seu mal-estar sem vergonha, nem medo. * Begoña Albalat Peraita é psicóloga clínica e professora na Universidade Internacional de Valência, na Espanha. - Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Unidades Básicas de Saúde (UBS) — clínicas da família, postos e centros de saúde; - Unidade de Pronto Atendimento (UPA 24h); - Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192); - Hospitais; - Pronto-socorros; Apoio emocional e prevenção ao suicídio:
2022-03-20
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sociedade
7 formas de ser mais positivo mesmo em tempos sombrios
Com a chegada de 2022, o véu da pandemia que ofuscou os últimos dois anos começou a se levantar. Mas assim que o mundo parecia estar voltando a ser um local mais gentil, a guerra na Ucrânia ganhou as manchetes. As más notícias, para além desse conflito, são muitas. Como então permanecer otimista sem necessariamente ignorar a realidade? Diversos estudos destacam os benefícios do otimismo. Essa atitude em relação à vida nos faz viver mais (entre 11% e 15% a mais do que os menos otimistas, segundo um estudo da Boston School of Medicine), melhor (as chances de sofrer doenças são menores para quem sabe apreciar o lado bom da vida), ter melhores relacionamentos e até ganhar salários mais altos. Mas aqueles que tendem a ver o copo meio vazio podem fazer alguma coisa para mudar sua perspectiva? Fim do Matérias recomendadas De acordo com Eric Kim, codiretor de uma pesquisa publicada no American Journal of Epidemiology em 2016, estudos com gêmeos "sugerem que até 25% do otimismo pode ser genético ou hereditário, implicando que até 75% é modificável". Em outras palavras, a margem de manobra é grande. Portanto, se você deseja limpar a nuvem pesada que paira sobre sua cabeça, as recomendações a seguir podem te ajudar, segundo especialistas. 1. Reconheça seu problema Dizem que, com qualquer problema, o primeiro passo é tomar consciência dele. "Muitas pessoas pessimistas estão muito apegadas à ideia de que suas crenças de que as coisas vão dar errado estão corretas e têm a percepção de que esses pensamentos ruins são permanentes, generalizados e personalizados", explica à BBC Mundo Allison Funk, doutora em psicologia do Instituto Americano de Terapia Cognitiva. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É por isso que eu diria que o primeiro passo é desenvolver um pouco de curiosidade sobre esse padrão de pensamento e analisar se costumamos usar frases como 'isso sempre acontece comigo, é minha culpa, ou sempre vou me sentir assim', cada vez que algo ruim acontece." Funk diz que devemos estar dispostos a questionar essa maneira de pensar e nos perguntar se podem ter sido circunstâncias além de nosso controle que fizeram com que algo ruim acontecesse conosco. 2. Pratique a gratidão Um exercício que muitos psicólogos recomendam é expressar nossa gratidão pelas coisas boas que temos. "Tome consciência das coisas positivas que existem em sua vida e faça você se sentir mais esperançoso de que haverá coisas positivas no futuro", diz Funk. Ela sugere escrever regularmente "cinco coisas pelas quais somos gratos ou enviar mensagens de texto para um amigo, se você quiser um nível mais alto de responsabilidade". Esse exercício simples pode nos ajudar a cultivar uma atitude mental mais positiva. Laura Rojas-Marco, psicóloga espanhola e autora de vários livros sobre desenvolvimento pessoal, conta que, além de ter trabalhado esse tema com seus pacientes durante a pandemia, ela mesma o praticava todas as noites depois do trabalho. "No final do dia, depois de trabalhar 15 horas com pessoas que sofriam muito, devido à minha própria saúde mental e emocional, anotei no meu caderno as coisas positivas que aconteceram naquele dia, para fechar o dia com algo positivo ", disse ela à BBC Mundo. 3. Abra espaço para a decepção Um aspecto importante de ser o que eles chamam de "otimista realista" é reconhecer que algumas coisas ruins vão acontecer com você na vida. Não se trata de pensar que cada dia será perfeito, mas de saber que coisas ruins também acontecerão na vida, mas que é bom "dizer a nós mesmos que seremos capazes de lidar com o que nos acontece, em vez de nos preocuparmos sobre coisas ruins que podem acontecer", diz Funk. 4. Planeje atividades empolgantes e cuide de si mesmo "Seria ótimo ter férias planejadas em nossa agenda, mas também podem ser pequenas coisas que nos fazem sentir realizados", diz Funk. "Planeje um encontro para um café com um amigo que você não vê há muito tempo. Faça planos ao ar livre", sugere a psicóloga. Também é importante implementar estratégias benéficas para a regulação do humor em geral. "Sabemos que há uma forte correlação entre humor positivo e coisas como dormir o suficiente, comer bem, evitar substâncias nocivas e tratar doenças físicas", diz Funk. "Trabalhar com a química do seu corpo ajuda você a ter uma visão mais otimista da vida." 5. Visualize como as coisas podem funcionar A visualização é uma grande aliada, explica Rojas-Marco. Ela afirma, porém, que tem que ser uma visualização realista. "Se você visualizar algo no futuro que deseja que aconteça, algo que deseja e imagina, isso ativará sua atitude proativa no cérebro", diz. "Depois vamos caminhar nessa direção, porque é mais fácil começar a caminhar em direção a algo que você sente que é atingível, do que em direção a algo que não é", diz a psicóloga, acrescentando que essa é uma técnica que também é usada com frequência em clínicas de terapia para tratar fobias. Funk concorda com a utilidade das visualizações, que devem ter como objetivo "imaginar-se vivendo de acordo com seus próprios valores". "Porque quando as pessoas se visualizam como seus eus ideais, elas usam isso para se punir por não cumprir esses padrões", explica ela. As visualizações também podem nos ajudar a definir metas. E "trabalhar em direção a metas alcançáveis pode nos dar uma sensação de realização, e isso nos fará sentir mais otimistas". 6. Discuta com sua voz interior Quando você cai em um poço escuro onde só vê tudo dando errado, Martin Seligman, psicólogo americano e um dos fundadores da psicologia positiva, diz que a primeira coisa a fazer é reconhecer aquela voz que faz comentários negativos, discutir com ela como se fosse uma pessoa que só quer nos fazer sentir mal. "Essa voz interior é muitas vezes o seu eu que está com medo, o eu inseguro, o eu medroso ou o eu preguiçoso, e a preguiça às vezes também nos prende", diz Rojas-Marco. Por isso, é importante estabelecer um diálogo interno com essa voz crítica e a forma como falamos com nós mesmos, diz. Argumente com essa voz interior apresentando contrapontos. Esse diálogo é o que "vai influenciar o motor que nos coloca em ação", por isso é fundamental discutir e fazer reforço positivo. 7. Reconheça o que acontece no mundo e você não pode controlar Embora haja muito que podemos fazer para nós mesmos, a verdade é que às vezes é difícil não perder o otimismo diante do que está acontecendo no mundo - e isso está completamente fora de nosso controle. A crise ambiental, os conflitos armados, os feminicídios e muitos outros problemas são para muitos fonte de angústia e desesperança. Funk diz que é importante reconhecer o que está acontecendo no mundo. "É incrivelmente humano e apropriado ter sentimentos negativos", diz a psicóloga. Mas ela explica que também é importante lembrar que "não contribuímos para nenhuma situação nos sentindo esgotados pelo que está acontecendo no mundo e escolhendo deixar que isso impacte a maneira como nos apresentamos ao mundo". "Às vezes nos sentimos impotentes e incertos sobre o que virá de uma situação global, mas a única coisa que podemos controlar é nosso próprio comportamento." "Se controlarmos nossas próprias expressões emocionais, a forma como tratamos os outros e como nos apresentamos ao mundo de acordo com nossos valores, este é, na minha opinião, o melhor antídoto", conclui Funk. Rojas-Marco reconhece que é um desafio, mas diz que em momentos de grande crise o que nos ajuda é focar no agora e em metas de curto prazo para manter o otimismo. "É mais fácil dar um passo à frente do que pensar em fazer mil quilômetros", diz. Devemos também aprender a resgatar o que é positivo das situações ruins, como, por exemplo, em plena guerra na Ucrânia, os gestos generosos das centenas de pessoas foram à fronteira da Ucrânia — algumas da Espanha, que viajaram milhares de quilômetros, conta Rojas-Marco, para ir oferecer sua própria casa aos refugiados que fugiram de seu país. "Isso dá esperança. E quando uma pessoa testemunha o ato generoso de outra pessoa, tende a querer repeti-lo. Isso acaba formando uma corrente humana de generosidade, de empatia, que é o que estamos vendo agora."
2022-03-19
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sociedade
O capixaba que viralizou no TikTok mostrando como é viver com doença rara
Quando tinha 12 anos, o capixaba Matheus Emerich, hoje com 23, começou a sentir tremores nas mãos e a caminhar de forma diferente. Com o tempo, seu andar foi ficando desorientado e seus familiares passaram a estranhar a diferença nos movimentos. A busca por um diagnóstico começou com um cardiologista, que a princípio informou que era somente um tremor excessivo. Mesmo tomando as medicações receitadas pelo médico, os sintomas não passavam. Morador da cidade de Pantas, no interior do Espírito Santo, ele precisou ir até a capital Vitória para realizar novos exames e obter um diagnóstico mais preciso. "Fomos a um neurologista que também não disse o que eu tinha", conta à BBC News Brasil. Depois de quase quatro anos de investigação, os médicos perceberam uma deficiência na enzima hexosaminidase, responsável pelo metabolismo das gorduras. Fim do Matérias recomendadas Emerich tinha em torno de 11%, quando os níveis normais são acima de 58%. Depois de realizar um exame molecular específico, recebeu o diagnóstico da doença de Tay-Sachs, uma condição rara, principalmente em adultos jovens. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Como os primeiros sintomas surgiram ainda na infância, Emerich conseguia fazer atividades do dia a dia sem a ajuda de terceiros. Mas com o passar dos anos, precisou usar muletas para dar equilíbrio e sustentação ao corpo. Correr, caminhar e andar não eram tarefas tão simples e sua locomoção começou a ser afetada diariamente. Quando terminou o Ensino Médio, ainda conseguia pegar ônibus sozinho e iniciou a faculdade de engenharia. Para chegar até o local, realizava uma viagem de quase duas horas. Porém, no final da graduação, precisava de suporte de amigos para entrar, sentar dentro do veículo e voltar para casa. "As principais dificuldades são motoras. Não consigo andar sozinho, caminhar e tenho falta de equilíbrio. Não consigo subir degraus, por exemplo", diz. Mesmo diante do avanço da doença, Emerich conseguiu se formar em Engenharia Civil, mas não pôde exercer a profissão por causa das dificuldades de locomoção. "Cheguei a sofrer muitas quedas. Elas eram frequentes. Tinha um sonho de construir uma carreira, mas tenho esse empecilho", lamenta. Morando com a mãe, o capixaba diz que precisou adaptar toda sua casa para evitar acidentes e conseguir ter mais qualidade de vida. Hoje, conta que não pode morar sozinho. Emerich também sofre com a limitação no âmbito social, que impacta sua qualidade de vida de forma frequente. "Não consigo sair e fico sentido. Com certeza tem momentos que a gente fica bastante triste. Tem que focar em ficar vivo e aproveitar cada minuto", diz. Uma das suas maiores queixas é não conseguir dirigir. Embora tenha tirado a carteira de habilitação, os tremores não permitem mais que ele dirija sozinho. "Não conseguia mais apertar os pedais." Como a doença é rara, os estudos científicos nacionais e internacionais sobre o tema são escassos. Segundo os especialistas, estima-se que a condição atinja 1 a cada 320 mil pessoas no mundo. E como ainda não existe cura, Emerich participa de um estudo feito por um Centro de Pesquisa do Hospital das Clínicas do Rio Grande do Sul, para tentar identificar tratamentos futuros. Para participar do trabalho científico, ele precisa frequentar o local a cada três meses e realizar exames periódicos. O intuito é descobrir um remédio para estabilizar a produção da enzima hexosaminidase. Dessa forma, poderia haver uma cura para a doença. Com duração de dois anos e três meses, ele diz estar com esperança nos resultados. "É experimental e não é certo que o medicamento vai funcionar. Mas pode ser o tratamento para a doença", afirma. A pesquisa termina ainda neste ano. Em paralelo, Matheus realiza exercícios de alongamento em casa e também pretende fazer pilates e natação. Para tentar se distrair um pouco e ainda levar informação às pessoas, o capixaba criou uma conta no aplicativo Tik Tok. No perfil, ele mostra um pouco do seu dia a dia e explica o que é a doença de Tay-Sachs. Em um dos seus vídeos, que já conta com mais de 200 mil visualizações, Emerich mostra como é lidar com os sintomas e os desafios decorrentes deles. "Sigo fazendo vídeos e motivando as pessoas", diz. Em poucos meses, seu perfil conta com 23 mil seguidores. Ele vê a produção de conteúdo como um hobby que, no futuro, pode se tornar uma profissão e gerar renda. "Não consegui seguir o caminho que sonhei e tento fazer o máximo de atividades para me distrair", destaca. Daqui a alguns anos, ele espera conseguir que uma cura seja descoberta e deseja exercer a profissão para a qual estudou. A condição é causada por uma alteração dentro de um gene situado no cromossomo 15. Este é responsável por produzir uma enzima chamada hexosaminidase, que age no metabolismo de gorduras. Para que a doença ocorra, os pais precisam ter uma cópia normal e alterada do gene e, dessa forma, transmitir para o bebê. Assim como Emerich, que tinha apenas 11% dessa enzima no organismo, quando há menos de 50% dela, a doença se manifesta no indivíduo. "Se a pessoa não tem o erro no gene, não forma a enzima ou desenvolve pouco. Assim, não consegue quebrar essa gordura, provocando o acúmulo no corpo, principalmente no cérebro e nos nervos", explica Salmo Raskin, geneticista e especialista em Genética Médica pela Universidade de Vanderbilt, nos Estados Unidos. Existem três formas dessa doença e ela pode se desenvolver em diversas fases da vida. Confira abaixo: Clássica É a forma mais comum da Tay-Sachs. "A criança nasce sem problemas, não tem má formação, mas a partir dos três aos seis meses de idade, já começa a perder o desenvolvimento motor", diz Raskin, que também é professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). No geral, bebês com três meses já conseguem sustentar o pescoço e, aos seis, já se sentam sozinhos. Quando a doença se manifesta, eles perdem a capacidade de fazer isso. Há também perda de atenção visual e a retina dos olhos começam a ficar com cor de cereja. Em torno de um ano de idade, a criança começa a ter convulsões e o quadro clínico só piora. "O prognóstico é bem reservado e degenerativo, onde vai havendo piora na deglutição. São crianças que acabam indo ao óbito. O impacto na vida é fulminante", diz Heraldo Laroca, neurologista do Hospital INC (Instituto de Neurologia de Curitiba). Juvenil Os sintomas começam a aparecer a partir dos dois ou cinco anos de idade. Há mudanças no caminhar e as pernas começam a ficar um pouco duras, além da perda de habilidade e problemas na fala. Em casos mais extremos, a criança pode não conseguir mais falar. "A doença evolui para o cérebro e provoca uma atrofia. Essa é forma juvenil ou aguda", explica Raskin. Tardia Como o nome já diz, a doença começa se manifestar em adolescentes ou adultos. Provoca fraqueza muscular nas pernas, quedas, há problemas nas falas, tremor e falta de coordenação. O diagnóstico também é difícil e pode levar anos, mas há mais chances de sobrevivência do que na fase juvenil e clássica. No entanto, episódios de psicoses, desequilíbrios constantes e tremores podem ocorrer. Ainda não existe um tratamento definitivo para a doença de Tay-Sachys, diz Laroca. Segundo o especialista, existem maneiras de amenizar a progressão da patologia e dar mais qualidade de vida ao paciente. Anticonvulsivos, fisioterapia para melhorar a movimentação, fonoaudiologia e terapia ocupacional são algumas delas. Há ainda uma alternativa, aguardada por médicos e pacientes, chamada terapia gênica. Nela, ocorre a introdução de cópias normais do gene HEXA nas células, repondo a falta de proteína, que é a raiz da condição.
2022-03-17
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sociedade
'St. Patrick's Day': a verdadeira história por trás da festa popular
Em 1997, viajei com meus alunos para a Croagh Patrick, uma montanha no Condado de Mayo, na Irlanda. Era parte de um programa de estudos estrangeiros sobre a literatura irlandesa, que eu lecionava na Universidade de Dayton, nos Estados Unidos. Queria que meus alunos visitassem o lugar onde, todos os meses de julho, milhares de peregrinos prestam homenagens a São Patrício (St. Patrick), que segundo a tradição jejuou e rezou no monte durante 40 dias. No local, o guia turístico contou a história de como São Patrício, deitado em seu leito de morte em 17 de março do ano de 461, supostamente pediu àqueles que o rodeavam que brindassem pela sua viagem ao céu com "uma gotinha de uísque" para aliviar a sua dor. A menção ao uísque me deixou pensando se São Patrício, sem querer, influenciou a forma como a maior parte do mundo celebra a sua memória: bebendo. Fim do Matérias recomendadas Nem sempre foi assim. O St. Patrick's Day, como é conhecido mundialmente, começou no século XVII. Na época, era uma comemoração religiosa e cultural do bispo que levou o cristianismo à Irlanda. No país europeu, ainda há um componente cultural e religioso nessa festa, embora no resto do mundo tenha se tornado para muitos uma desculpa para se vestir de verde e beber excessivamente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em razão das especulações sobre os detalhes históricos da vida de São Patrício, os estudiosos enfrentam dificuldades para separar fatos e lendas sobre o tema. Em suas memórias espirituais, Confessio, São Patrício descreve como chegou à Irlanda sendo escravo. Ele conseguiu escapar e se reuniu com a sua família na Grã-Bretanha, provavelmente na Escócia. Enquanto estava lá, sonhava com frequência que a "voz dos irlandeses" pedia que ele voltasse à Irlanda para batizá-los e se tornar um líder religioso para eles. E assim ele fez. Os irlandeses reverenciam o relato desse sonho: eles aceitam a simplicidade e o fervor de suas palavras e sentem uma dívida de gratidão por seu compromisso altruísta com seu bem-estar espiritual. Os esforços de São Patrício para converter os irlandeses ao catolicismo nunca foram fáceis. Encarando isso como um desafio ao seu poder e autoridade, os altos-reis da Irlanda e os sacerdotes pagãos, chamados druidas, resistiram aos esforços do santo para converter a população. Graças ao seu empenho missionário, ele conseguiu relacionar a cultura irlandesa ao cristianismo, como por meio da introdução da Cruz Celta ou com o uso de fogueiras para celebrar festas como a Páscoa. Mas muitas dessas histórias podem ser apenas mitos. No entanto, séculos depois de sua morte, os irlandeses continuam mostrando gratidão pelo santo padroeiro usando um ramo de trevos em 17 de março. Eles começam o dia com uma missa, seguida de uma festa que dura o dia inteiro, e oração e reflexão durante a noite. Entre 1820 e 1860, quase dois milhões de pessoas deixaram a Irlanda. Muitos devido à Grande Fome (fome da batata) entre 1840 e 1850. Muitos outros emigraram no século 20 para se juntar a parentes e escapar da pobreza e do desemprego na Irlanda. Uma vez estabelecidos, eles encontraram novas maneiras de celebrar o St. Patrick's Day e sua identidade irlandesa em suas novas casas. Os irlandeses-americanos, em particular, rapidamente transformaram o 17 de março em um empreendimento comercial A obrigação de "vestir verde" está muito longe da tradição original de honrar a memória de São Patrício com trevos e celebrar a solidariedade irlandesa. Surgiram desfiles famosos, especialmente em Nova York e Boston (nos Estados Unidos), a comemoração cresceu e surgiu até cerveja tingida de verde para as festas. Os filhos dos irlandeses que vivem nos Estados Unidos assimilaram essa cultura à distância. Talvez muitos saibam que São Patrício é o padroeiro da Irlanda. Porém, eles podem não apreciar totalmente as questões místicas do santo como aqueles que foram criados na Ilha da Esmeralda. Pergunte a uma criança de qualquer idade na Irlanda sobre São Patrício e ele vai te encantar com histórias das habilidades mágicas do santo, desde o seu poder de expulsar as serpentes da Irlanda até o uso das três filhas e um caule de trevo para desmistificar a doutrina da Trindade da Igreja Católica. Eles enxergam São Patrício como um milagreiro e, quando adultos, mantêm suas lendas vivas da sua maneira. Alguns seguem os passos do santo pela Irlanda, do poço à colina, do altar à capela, em busca da sua bênção e bondade onde quer que essa jornada os leve. Nos Estados Unidos, o dia do santo é, acima de tudo, uma festa. Em alguns anos, os americanos gastaram US$ 6,16 bilhões comemorando, consumindo 13 milhões de canecas da cerveja Guinness. Algumas partes do país ainda têm uma outra celebração depois, em 17 de setembro, conhecida como "Halfway to St. Patrick's Day" (meio caminho para o St. Patrick's Day, em tradução livre). Mas a partir da década de 1990, a Irlanda pareceu captar o potencial de receita da versão americana. O dia 17 de março continua sendo uma data sagrada para os nativos e um dia festivo para os turistas de todo o mundo, com os bares ganhando muito dinheiro no St. Patricks Day. Mas sempre me perguntei: e se São Patrício tivesse pedido uma oração silenciosa em vez de "uma gotinha de uísque" para brindar a sua morte? A celebração deles teria sido mais sagrada que profana? *James Farrelly é professor de inglês na Universidade de Dayton em Ohio, nos Estados Unidos.
2022-03-17
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-60785852
sociedade
O coveiro que virou celebridade nas redes sociais
Eram 2h da manhã e Gleibson Roberto, 36, começou a preparar um sepultamento. Ele se importava pouco em cumprir somente as 30 horas semanais do seu contrato de coveiro. Na cidade de Santo Amaro, no interior de Sergipe, ele se tornou celebridade com o nome @coveiroemacao no YouTube, TikTok e Kwai. Gleibson colocou seu número de telefone numa placa na entrada do cemitério, o que chama carinhosamente de "Disk Coveiro". Essa história começa há dez anos, quando Gleibson prestou o concurso, ficou em terceiro lugar e foi chamado após um dos coveiros não ter "aguentado o tranco" da profissão. Ele tinha medo de ver cadáveres e de tudo que aquele mundo poderia apresentar, mas precisava do trabalho. Hoje já está mais tranquilo e sabe que sua função é essencial na cidade de pouco mais de 12 mil habitantes, segundo o IBGE. A experiência lhe mostrou que os problemas em cemitérios não eram os mortos. O problema estava nos vivos, nas pessoas que violavam os túmulos, algo que diminuiu bastante depois que Gleibson resolveu colocar uma luz à noite, já que o cemitério não conta com seguranças. Fim do Matérias recomendadas No começo da carreira, quando "sequer conseguia dormir se visse um caixão", Gleibson até encontrou um companheiro de trabalho morto, na capela do cemitério, após um AVC. Hoje, ele está mais acostumado com a rotina que tem, já que o maior aprendizado foi de que não se deixasse levar tanto pelo que via ou sentia. Deveria ajudar, mas não deixar que sua mente se perdesse no dia-a-dia. Essa experiência e a sugestão de uma prima lhe propulsionaram a ideia de entrar nas redes sociais. Ele próprio um estudioso da função que decidiu desempenhar, descobriu que tinha traquejo para apresentar conteúdos e desmistificar a profissão. A curiosidade das pessoas ajuda e Gleibson responde perguntas com embasamento, além de mostrar os processos do cotidiano. "Para você ter ideia, eu exumei o meu próprio pai para ter mais espaço e resolvi postar o vídeo nas redes sociais. Foi uma boa oportunidade de mostrar às pessoas como o corpo fica após um tempo, além de explicar todo o processo. Já fiz isso mais de uma vez, sempre com a responsabilidade de não expor a pessoa. Consultei um advogado para ver o que poderia ou não fazer, e agora consigo produzir esse conteúdo com ética, desmistificando uma profissão que sofre com más impressões", disse Gleibson à BBC News Brasil, por telefone. O processo de exumação é um dos que despertam mais curiosidade nas pessoas e um daqueles com que Gleibson precisa ter mais cuidado, já que, dentro das gavetas, podem ser encontrados bichos perigosos, como escorpiões, baratas e cobras. Desde o começo, ele se paramenta de todos os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) e também desenvolveu técnicas para ter ainda menos contato com o corpo e suas substâncias. "Os vídeos de exumação geralmente despertam mais curiosidade nas pessoas. Um deles bateu mais de 1,5 milhão de visualizações. A gente exuma porque precisa de espaço nas gavetas, para que possamos enterrar mais pessoas. Esse cemitério é o único da área urbana da cidade, então muita gente procura. Tento sempre deixar três ou mais gavetas disponíveis para não passar aperreio. Na época que a pandemia estava forte, infelizmente tivemos que trabalhar todos os dias ininterruptamente", conta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Gleibson tem somente um companheiro de profissão para atender toda a demanda. O colega prefere não se identificar, mas é o responsável pela gravação dos vídeos. É Gleibson quem edita e aquela prima que lhe deu a ideia é responsável pelo "atendimento" aos fãs e curiosos do Coveiro em Ação. Durante os momentos mais difíceis da covid-19, Gleibson e o colega trabalharam muitas horas e ainda têm dúvidas de alguns procedimentos. "É uma cidade pequena, mas morreu muita gente. Tínhamos vários sepultamentos por dia e era aquela dificuldade para saber como agir, quem poderia estar, quais cuidados precisávamos. Por conta da demora da vacina no Brasil, um dos nossos colegas até pediu para ser afastado do trabalho, por receio, então a carga ficou maior para nós dois. É o tipo de coisa que eu nunca pensei fazer", relata ele. "Tinha sepultamento de manhã, de tarde, de noite, e muitas vezes sequer tínhamos gavetas para atender à demanda. Daí tem que exumar, entregar os restos para a família responsável, limpar e já ir colocando o novo corpo. Não parava." Gleibson tem o controle de tudo o que acontece no cemitério porque anota os detalhes num caderno. Não há computador, então todo o processo é feito à base de caneta e papel. Ele sabe onde estão todos os corpos, tem o contato do familiar responsável e é quem trata de tudo. No cemitério, inclusive, ele resolve a maioria dos problemas técnicos e sofre com a falta de abastecimento de alguns materiais. São os familiares que chegam junto com doações porque gostam de ver o lugar preservado. "As pessoas vão bater na porta da minha casa, que fica a 300 metros do cemitério, para pedir que faça sepultamentos. E eu vou e faço, claro. Meu horário é de 7h às 13h, mas fico até 17h, 18h, e se a família precisar que eu fique à noite, eu fico também. Depois de um tempo, eu aprendi que a função do coveiro é facilitar esse processo para a família. É muito difícil perder um ente querido e se sentir sem suporte, entende? Então nós somos esse elo, essa pessoa que se preocupa com o bem-estar deles. Dentro do possível, faço tudo o que me pedem." Dentro da cidade, Gleibson não divulga que faz sucesso nas redes sociais. Ele admite que utiliza roupas próprias para que não possam identificar o seu local de trabalho na internet. É mais um cuidado que ele tem em relação à exposição que existe quando faz os vídeos. Ultimamente, diz ele, é possível criar uma espécie de roteiro para a produção dos conteúdos, embora tudo dependa de como vai ser o dia no cemitério. "Quando tem muita coisa para fazer, fica difícil de produzir um conteúdo legal. O que eu tento fazer é planejar os meus dias antecipadamente e ir gravando os conteúdos. Minha prima fica de olho nas publicações e nos comentários, daí quando tem uma dúvida legal, já fico pensando em como saná-la. Descobri que as pessoas querem esse tipo de conteúdo, mas ele precisa ser feito pensando em cada plataforma. Posto algumas coisas no YouTube, outras no TikTok e em quantidade maior no Kwai, que aceita mais vídeos", revela. A popularidade como coveiro e como uma pessoa responsável por tentar ajudar as famílias já até alçou Gleibson a uma candidatura política em 2020, como vereador. Ele diz que não foi eleito por sete votos, mas que hoje não se vê participando do pleito novamente. "É o tipo de coisa que a gente só concorre uma vez na vida. Se tivesse ganho, provavelmente conseguiria fazer um trabalho pensando sempre no bem-estar das pessoas, mas ainda bem que não deu certo. Eu gosto é de ser coveiro. Meu sonho, na verdade, seria de trabalhar no Instituto Médico Legal (IML), mas ainda não consegui passar no concurso. Venho estudando para ser um profissional melhor e para, quem sabe, conseguir essa mudança de profissão." Enquanto não consegue, Gleibson sacrifica seus dias de folga e férias para continuar trabalhando. Ele divide a rotina de coveiro durante o dia com um segundo trabalho, desta vez como segurança, dia sim, dia não, no horário noturno. Quando está em casa, ele ainda se mantém de olho no cemitério, sempre disponível para qualquer pedido que possa surgir.
2022-03-16
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sociedade
Por que se deslumbrar com o mundo pode ajudar memória e nos deixar mais generosos
Sempre que Ethan Kross entra em um ciclo mental de preocupação e pensamentos negativos, ele caminha cinco quadras até o jardim público do seu bairro para contemplar uma das magníficas árvores do local e o incrível poder da natureza. Se não puder ir até o jardim, ele passa alguns momentos pensando sobre as fabulosas possibilidades oferecidas pelas aeronaves e pelas viagens espaciais. "Fico pensando em como nós estávamos tentando acender fogueiras, apenas alguns milhares de anos atrás, e agora podemos aterrissar com segurança em outro planeta", afirma ele. O propósito, neste caso, é evocar o deslumbramento - que ele define como "a maravilhosa sensação de encontrar algo que não podemos explicar facilmente". Os hábitos de Kross são baseados em evidências científicas. Como professor de psicologia da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, ele sabe que as sensações de deslumbramento podem ter influência muito profunda sobre a mente - aumentando nossa memória e criatividade, além de nos inspirar a agir de forma mais altruísta com relação às pessoas à nossa volta. Eles podem também ter profundo impacto sobre a nossa saúde mental, permitindo colocar nossas ansiedades em perspectiva. Como a maioria de nós somente ficamos admirados esporadicamente, ainda não conhecemos seus benefícios. Quando estamos tristes, podemos ser mais propensos a buscar alívio em uma comédia, por exemplo - procurando sentimentos de diversão que são bem menos poderosos. Fim do Matérias recomendadas Mas gerar o deslumbramento pode trazer uma grande mudança mental. Por isso, ele pode ser uma ferramenta essencial para melhorar nossa saúde e bem-estar. E existem muitas formas de cultivar essa emoção na nossa vida diária. Michelle Shiota, professora de Psicologia Social da Universidade do Estado do Arizona, nos Estados Unidos, foi uma das pioneiras na descoberta dos benefícios do deslumbramento. O seu interesse específico reside nas formas em que ele pode remover nossos "filtros mentais" para incentivar maior flexibilidade de pensamento. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Vamos considerar a memória. Se alguém nos contar uma história, normalmente nos lembramos do que achamos que devemos ter escutado e não dos detalhes específicos do evento. Isso pode indicar que perdemos elementos incomuns ou inesperados que acrescentam a clareza e especificidade necessária para entendermos o que aconteceu. Podemos até formar falsas memórias de eventos inexistentes, mas que achamos que poderiam ter acontecido nesse tipo de situação. Alguns anos atrás, Shiota decidiu estudar se evocar uma sensação de deslumbramento poderia evitar isso. Ela pediu aos participantes, em primeiro lugar, que assistissem a um dentre três vídeos: um filme científico que inspira deslumbramento, levando os espectadores em uma viagem do espaço sideral até partículas subatômicas; um filme animador sobre um patinador artístico que ganhou uma medalha de ouro olímpica; ou um filme neutro sobre a construção de uma parede de blocos de concreto. Em seguida, os participantes ouviram uma história de cinco minutos descrevendo um casal que saía para um jantar romântico e responderam perguntas sobre o que eles haviam ouvido. Algumas dessas perguntas referiam-se a eventos tipicamente esperados em qualquer refeição ("o garçom serviu o vinho?"), enquanto outras se referiam a informações incomuns, como se o garçom estava usando óculos. Confirmando a hipótese formulada por Shiota, os participantes que haviam assistido ao filme científico lembravam-se com mais precisão dos detalhes que haviam ouvido que aqueles que haviam assistido ao filme neutro ou animador. Qual seria o motivo? Shiota indica que o cérebro está constantemente formando previsões do que acontecerá em seguida. Ele usa suas experiências para formar estímulos mentais que orientam nossa percepção, atenção e comportamento. Experiências que inspiram o deslumbramento - com sua sensação de grandiosidade, assombro e perplexidade - podem confundir essas expectativas, criando um "pequeno terremoto" na mente que faz com que o cérebro redetermine suas premissas e preste mais atenção ao que realmente está à sua frente. "A mente reprograma seu 'código de previsão' para simplesmente olhar em volta e coletar informações", afirma ela. Além de ampliar nossa memória para detalhes, isso pode melhorar o pensamento crítico, segundo Shiota, pois as pessoas prestam mais atenção às nuances específicas de um argumento, em vez de confiar nas suas intuições para se convencerem ou não. Essa capacidade de abandonar as premissas e observar o mundo e seus problemas de uma perspectiva nova poderá também explicar por que essa emoção contribui para maior criatividade. Existe um estudo de Alice Chirico e seus colegas da Universidade Católica do Sagrado Coração em Milão, na Itália, publicado em 2018. Os participantes que caminharam por uma floresta em realidade virtual tiveram notas mais altas em testes de pensamento original que aqueles que observaram um vídeo mais comum de galinhas passeando na grama. Os participantes inspirados pelo deslumbramento foram mais inovadores quando perguntados sobre como melhorar um brinquedo infantil, por exemplo. Os efeitos mais transformadores do deslumbramento podem referir-se à forma como nos observamos. Quando ficamos maravilhados com algo realmente incrível e grandioso, "nós nos percebemos como menores e mais insignificantes com relação ao resto do mundo", afirma Shiota. Uma consequência é o maior altruísmo. "Quando estou menos concentrada em mim mesma, nos meus próprios objetivos e necessidades e nos pensamentos que passam pela minha cabeça, tenho mais capacidade de observar você e [perceber] o que você pode estar vivendo", afirma ela. Para medir esses efeitos, uma equipe liderada por Paul Piff, da Universidade da Califórnia em Irvine, nos Estados Unidos, pediu a um terço dos participantes que assistisse a um clipe de cinco minutos da série Planet Earth, da BBC, composta de imagens grandiosas e arrebatadoras de paisagens, montanhas, planícies, florestas e cânions. Os demais assistiram a um clipe de cinco minutos de vídeos engraçados com animais ou a um vídeo neutro do tipo "faça você mesmo". Em seguida, os participantes avaliaram o quanto eles concordavam com quatro afirmações, como "sinto a presença de algo maior que eu" e "sinto-me pequeno e insignificante". Por fim, eles participaram de um experimento conhecido como o "jogo do ditador", no qual recebem um recurso - neste caso, 10 cupons de um sorteio de um vale-compras de US$ 100 - que eles poderiam ou não dividir com um parceiro, se desejassem. As sensações de deslumbramento produziram mudança significativa da generosidade dos participantes, aumentando o número de cupons compartilhados com os parceiros. As análises estatísticas que se seguiram permitiram aos pesquisadores demonstrar que isso foi causado pelas mudanças da sensação de si próprios. Quanto menores se sentiam os participantes, maior a sua generosidade. Para reproduzir a descoberta em um ambiente mais natural, um dos pesquisadores levou os estudantes para uma caminhada por um bosque de eucaliptos da Tasmânia - que crescem até mais de 60 metros. Enquanto os estudantes contemplavam o esplendor das árvores, os pesquisadores "acidentalmente" deixaram cair as canetas que estavam carregando e observaram se os participantes se ofereciam para pegá-las. Eles perceberam com total segurança que os participantes eram mais prestativos durante essa caminhada inspiradora do deslumbramento que os estudantes que haviam passado o tempo contemplando um edifício alto, mas não tão majestoso. Além de tudo isso, os benefícios para a nossa saúde mental são enormes. Eles são causados, como o aumento da generosidade, pela redução do sentido de si próprio, que parece reduzir o pensamento ruminante. Isso é potencialmente muito importante, pois a ruminação é um fator de risco conhecido para a depressão, a ansiedade e transtornos de estresse pós-traumático. "Você muitas vezes está tão concentrado na situação que não pensa em mais nada", afirma Ethan Kross, cujo livro Chatter: The voice in our head, why it matters and how to harness it ("Falatório: A voz na sua cabeça, por que ela é importante e como dominá-la", em tradução livre) explora os efeitos dessas conversas negativas consigo mesmo. O deslumbramento nos força a ampliar nossa perspectiva, segundo ele, de forma a interromper o ciclo de pensamento ruminante. "Quando você está na presença de algo vasto e indescritível, você se sente melhor e seu falatório negativo também diminui", afirma ele. Para comprovar seu ponto de vista, Kross indica um experimento extraordinário realizado por pesquisadores da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos. Os participantes eram militares veteranos e jovens de comunidades desfavorecidas, muitos dos quais sofriam estresse sério na vida (alguns até com sintomas persistentes de estresse pós-traumático). Todos eles haviam se inscrito anteriormente em uma viagem para praticar rafting em águas claras no Rio Verde, em Utah, nos Estados Unidos, patrocinado por uma organização filantrópica. Antes e depois da viagem, eles foram questionados sobre seu bem-estar psicológico geral, incluindo seus sentimentos de estresse e sua capacidade de lidar com os desafios da vida. E, após cada dia de rafting, pediu-se aos participantes que preenchessem um questionário, avaliando suas sensações de deslumbramento, diversão, contentamento, gratidão, alegria e orgulho. Como se poderia esperar, a viagem, de forma geral, foi muito agradável para a maioria dos participantes. Mas foi a sensação de deslumbramento que indicou as melhorias mais importantes do seu estresse e bem-estar em geral. Estas foram circunstâncias claramente excepcionais, mas os pesquisadores observaram efeitos muito similares em um segundo estudo que examinou o contato diário dos estudantes com a natureza. Novamente, eles concluíram que as experiências de deslumbramento apresentam impacto muito maior sobre o bem-estar dos estudantes a longo prazo, em comparação com as sensações de contentamento, diversão, gratidão, alegria e orgulho. Antes que fiquemos deslumbrados com essa pesquisa, Shiota alerta que os cientistas ainda precisam examinar se essa potente emoção tem algum efeito negativo. Ela suspeita, por exemplo, que o deslumbramento pode explicar o apelo exercido por muitas teorias da conspiração - com suas explicações intricadas e misteriosas do funcionamento do mundo. Mas, de forma geral, os benefícios do deslumbramento precisam ser considerados sempre que sentirmos que nosso pensamento ficou preso em uma rotina improdutiva ou prejudicial. "A capacidade [que temos] de sair de nós mesmos é uma técnica muito valiosa", afirma Kross. Ele acredita que andar no jardim público do seu bairro e pensar em viagens espaciais traz os sentimentos necessários de assombro, respeito e reverência, mas indica que cada um de nós terá suas preferências pessoais. "Tente identificar quais são os seus próprios gatilhos", sugere ele. Para Michelle Shiota, as possibilidades são tão infinitas quanto o universo. "As estrelas no céu noturno nos relembram do universo além da nossa experiência. O som do oceano nos relembra suas imensas profundezas; o pôr do sol brilhante nos relembra como é vasta e espessa a atmosfera em volta do nosso planeta", afirma ela. Isso sem mencionar as sublimes experiências oferecidas pela música, cinema ou arte. "Tudo é questão de experimentar e prestar atenção no extraordinário à nossa volta, em vez daquilo que, para nós, é rotina", conclui ela.
2022-03-12
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60027505
sociedade
Como trabalho remoto dos pais pode prejudicar filhos no futuro
Eu trabalho muito. Em parte, devido aos meus hábitos não muito equilibrados e, por outro lado, também trabalho com equipes do mundo inteiro. Por isso, eu admito que não desligo tanto quanto deveria. E me preocupo se meu filho irá perceber a situação. Ele tem só 2 anos de idade, mas me vê nos meus aparelhos eletrônicos com muito mais frequência que o desejável. Muitas vezes, logo depois que ele acorda, já estou no computador; durante o jantar, às vezes me pego verificando meu telefone de trabalho, desviando minha atenção. Ele já aprendeu a dizer "mamãe está trabalhando" e sabe pedir lanches ou brinquedos para o papai quando estou com a cabeça baixa. E, com o trabalho híbrido passando a ser padrão, ele irá me ver nesses aparelhos com mais frequência que se eu ficasse trabalhando apenas no escritório. Pais vêm trabalhando em frente às crianças há séculos. Mas a pandemia alterou radicalmente nossa forma de trabalho, trazendo consigo ambientes remotos para muitas pessoas. Alguns pais - particularmente os trabalhadores do conhecimento (aqueles que usam principalmente seus conhecimentos, informações e inteligência para desenvolver seus trabalhos) - têm seus hábitos de trabalho cada vez mais à vista das crianças de uma nova forma. Pesquisas já demonstraram que o comportamento e as práticas dos adultos podem influenciar a relação das crianças com seu trabalho no futuro, bem como a forma de seu desenvolvimento. E agora que muitos pais que trabalham não estão no escritório como antes, esses efeitos poderão ser exacerbados? Fim do Matérias recomendadas Especialistas afirmam que a maior exposição ao trabalho pode trazer desvantagens tanto para o desenvolvimento das crianças quanto para a forma como elas percebem o papel do trabalho na vida dos pais. Mas pode também haver vantagens ocultas - e os pais podem agir para amplificar a parte boa, em detrimento da ruim. Pesquisas realizadas na última década demonstraram que as atitudes e comportamentos dos pais com relação ao trabalho podem ter impacto sobre seus filhos. Em 2017, Ioana Lupu, professora da Escola Superior de Ciências Econômicas e Comerciais (ESSEC, na sigla em francês), na França, publicou resultados de estudos que tentavam descobrir se as crianças imitam os hábitos de trabalho dos seus pais na idade adulta. Observando funcionários dos principais escritórios de advocacia de Londres, Lupu encontrou uma quantidade considerável de trabalhadores imitando os padrões dos seus pais. Aqueles cujos pais trabalhavam por muitas horas ou eram provedores, por exemplo, apresentavam propensão a reproduzir esse padrão na sua própria vida profissional na idade adulta, seja consciente ou subconscientemente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outras pesquisas de Stewart Friedman, autor do livro Total Leadership: Be a Better Leader, Have a Richer Life ("Liderança total: seja um líder melhor, tenha uma vida mais rica", em tradução livre) e psicólogo organizacional da Escola Wharton da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, demonstraram que as crianças muitas vezes apresentam sofrimento emocional quando seus pais são psicologicamente muito dedicados às suas carreiras. Além disso, a divisão da atenção dos pais devido ao trabalho com seus aparelhos eletrônicos também causa prejuízos emocionais e até físicos. Esses estudos foram conduzidos antes da pandemia, quando os pais estavam frequentemente nos seus escritórios. Agora que eles trabalham mais na frente das crianças, devido às configurações de trabalho remoto, os dois pesquisadores acreditam que esses efeitos poderão ter se intensificado. As condições atuais são parecidas com "levar sua criança para um dia de trabalho", mas todos os dias, segundo Friedman - e ele acredita que isso é problemático. Em alguns horários do dia, as crianças estarão em frente a aparelhos eletrônicos ou com um livro, enquanto a atenção do pai estará em outro lugar. Quando os filhos veem os pais trabalharem, eles podem acreditar que estão fazendo outras tarefas com pessoas que são mais importantes que eles. "Você está pegando o seu bem mais precioso, que é a sua atenção, e desviando da pessoa mais importante do mundo para você... e eles sentem isso", afirma Friedman. Ele acredita que as crianças mais jovens podem ser especialmente afetadas quando os pais são "psicologicamente removidos da vida familiar enquanto estão fisicamente presentes". Lupu concorda, especialmente com o aumento do uso de aparelhos eletrônicos fora dos horários de trabalho padrão. "Por definição, esses aparelhos são muito envolventes", segundo ela. "Você pode dizer 'preciso de apenas cinco minutos para responder este e-mail e vou estar com você', mas isso dificilmente acontece." Lupu afirma que as crianças, que anseiam por atenção, podem ter reações emocionais negativas quando os pais desviam seu olhar. "Elas entendem isso como 'não sou tão importante agora', o que pode ser muito prejudicial se elas forem expostas a isso com muito mais frequência que no passado." Lupu acrescenta que, muitas vezes, as crianças internalizam a forma como os pais priorizam o trabalho. "As crianças tendem a achar que as atividades em que passamos mais tempo são as mais importantes", segundo ela. "Elas poderão facilmente dizer que, como você está passando tanto tempo no seu trabalho e tão pouco tempo comigo, isso quer dizer que a sua prioridade é o trabalho." E os limites menos definidos entre a casa e o trabalho podem ser "caóticos", segundo acrescenta Sara Harkness, professora de desenvolvimento humano e ciências familiares da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos. "É estressante para os pais, mas também para as crianças", afirma ela. Essa imprecisão dos limites indica que as definições entre quando os pais podem dar atenção e quando não podem estão incertas. Antes da pandemia, as crianças tinham períodos em que não esperavam atenção dos pais, como as atividades escolares ou extracurriculares. Elas também compreendiam que os pais no escritório ou no trânsito não estavam ativamente disponíveis para eles. "Agora, com o trabalho em casa", afirma Lupu, "alguns pais podem estar presentes fisicamente, mas não mentalmente." Friedman também observa os efeitos "indiretos". Quando os pais têm interações negativas no trabalho em frente às crianças, elas podem achar que são a fonte dessa tensão. Friedman afirma que, se as crianças virem um pai ansioso e com raiva, elas podem ficar confusas e preocupar-se com os motivos. "[Elas podem] dizer 'eu fiz alguma coisa errada?'... e começam a sentir-se inseguras." Existe também um componente de gênero sobre alguns desses efeitos, segundo Lupu. A influência negativa pode ser mais aguda quando vem das mães, devido à expectativa enraizada de que as mulheres geralmente dedicam-se mais ao trabalho doméstico e aos cuidados com a família do que os pais, de forma que as crianças esperam que elas estejam disponíveis para tarefas como o trabalho doméstico e a criação dos filhos. Embora alguns pais venham se dedicando mais aos cuidados com a família devido ao trabalho remoto, geralmente é mais "aceito" que os homens tracem linhas rígidas além das quais eles não dedicam atenção para os filhos. Mas Friedman adverte que "os pais não têm 'passe livre'", pois eles ainda detêm influência significativa sobre a forma como o trabalho afeta os relacionamentos familiares. Mas trabalhar na frente das crianças não traz só desvantagens. Especialistas afirmam que certos elementos do trabalho remoto, bem como o comportamento dos pais em uma situação de trabalho em casa, podem ser benéficos para o desenvolvimento das crianças. Embora a repercussão possa ser prejudicial quando as emoções exibidas são negativas, por exemplo, também pode ocorrer o inverso, segundo Friedman. Se as crianças observarem os pais dedicando-se positivamente ao trabalho, usando seus empregos para exibir seus valores ou demonstrando que estão empregando seus "dons particulares e paixões para fazer o bem", isso pode estabelecer um precedente positivo para a forma como as crianças construirão seu relacionamento com o trabalho no futuro. Friedman afirma que as crianças podem não fazer essas associações de imediato, mas, ao longo do tempo, as observações podem ser significativas. "Estar presentes e ver seus pais administrando os valores e a dedicação ao seu trabalho pode ser muito importante e valioso para as crianças", concorda Kim Ferguson, reitora de graduação e estudos profissionais da Escola Sarah Lawrence, em Nova York, nos Estados Unidos. E um filho que observa a ética profissional dos pais pode levar essa forte influência para diversas etapas ao longo da vida, acrescenta Tricia Hanley, diretora do Instituto de Desenvolvimento Infantil da Escola Sarah Lawrence. Além disso, a ampliação do trabalho remoto e híbrido também coincidiu com o aumento da flexibilidade. Isso traz vantagens, segundo Sara Harkness, especialmente quando os pais que trabalham podem estar presentes para o almoço, comparecer a eventos extracurriculares ou até dar um lanche para um filho quando ele está com fome - algo que um emprego estruturado em um escritório em tempo integral não permitia. "Isso estabelece um precedente em que você pode envolver-se na vida do seu filho, mesmo se estiver também trabalhando", afirma ela. À medida que o trabalho mudava, cada vez se tornava mais difícil definir limites - mas encontrar uma forma de traçar essas linhas pode ser a solução para reduzir os efeitos negativos. Ioana Lupu chama essa abordagem de "segmentação": a criação de "regras e rotinas sobre o tempo e o espaço" quando pais e filhos estão juntos. Isso poderá significar a designação de um espaço físico para o trabalho, se possível - "um lugar onde, quando a mamãe está ali, ela está trabalhando". Stewart Friedman concorda: "Isso cria aquele espaço privado, reservado. É por isso que sou a favor das pessoas trabalharem até no closet... [As crianças] poderão ouvir a mamãe murmurando [no] closet, mas é porque ela precisa de privacidade no momento" e, quando ela terminar, ela irá sair e atender a todos. Um componente importante da segmentação é também a criação de limites sobre o uso dos aparelhos eletrônicos depois de um certo horário, de forma que os pais possam dedicar total atenção às crianças. Lupu afirma que a criação de rotinas é fundamental. De certa forma, colocar essas estruturas no lugar imita os limites definidos entre o trabalho e a atenção familiar que os filhos tinham antes da pandemia, devido às atividades programadas como a escola. Além disso, Friedman, Lupu, Ferguson e Hanley concordam que os pais precisam ser ativos e iniciar conversas sobre essas mudanças e os novos comportamentos, mesmo se os seus filhos parecerem jovens demais para internalizar esses sinais ambientais ou se eles tiverem idade suficiente para ter consciência explícita dos padrões dos seus pais. "É importante falar [com as crianças] sobre os diferentes tipos de trabalho que eles fazem, o quanto de atenção ele exige, por que é importante e valioso e por que eles o fazem", afirma Kim Ferguson. "Não há problemas se eles trabalham para ganhar dinheiro para a família ter o que comer - mas então [eles devem] dizer 'eu não gosto do meu trabalho, mas é por isso que eu faço' ou 'eu gosto desta parte dele'." Para crianças de todas as idades, Ferguson acrescenta que os pais deverão também informar por que estão tomando decisões de longo e de curto prazo sobre o trabalho. Eles devem, por exemplo, informar que um filho deve brincar em silêncio porque eles estão em uma reunião importante. Mas todos os especialistas salientam que o trabalho remoto não está "condenando" as crianças a algo de ruim, especialmente porque cada criança tem sua própria personalidade e sua forma de processar o que ela vê. Lupu afirma que, embora muitas pessoas na sua pesquisa imitassem os hábitos profissionais dos seus pais, alguns participantes combatiam ativamente modelos de comportamento insatisfatórios e decidiram abordar o trabalho de forma diferente e mais saudável. Ferguson aconselha que a melhor coisa que os pais podem fazer é compreender que essa configuração recém-criada irá se tornar a norma, pelo menos por enquanto, e que a solução é encontrar formas de fazê-la funcionar para o seu ambiente específico. Mas essa questão é muito nova e, por isso, não existem muitas orientações a respeito. Tricia Hanley indica que os pais podem enfrentar diferentes questões, dependendo do gênero, da estrutura familiar e da posição socioeconômica. Enfim, não importa se os pais estão em casa ou no escritório - as crianças se moldam com base no comportamento, nas ações e decisões dos seus cuidadores. A comunicação e os limites não se destinam apenas aos funcionários remotos. Esses precedentes estabelecem um modelo de como as crianças irão estabelecer sua relação com o trabalho no futuro e moldarão quem elas se tornarão nos próximos anos.
2022-03-06
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-60611889
sociedade
Aborto na Colômbia: a 'onda verde' que está descriminalizando interrupção da gravidez na América Latina
A Colômbia se tornou o sexto país da América Latina e do Caribe onde o aborto não é mais considerado crime. Na última década, as ativistas da Onda Verde impulsionaram mudanças históricas em uma região que tem algumas das leis mais restritivas do mundo sobre o procedimento e onde a Igreja Católica, com sua postura antiaborto, é extremamente influente. Além da Colômbia, os países que descriminalizaram ou legalizaram o aborto até certo ponto são Argentina, Cuba, Guiana, México e Uruguai. Em 2006, o aborto foi parcialmente legalizado na Colômbia para casos de estupro ou incesto, malformação genética grave do feto ou risco à vida da mãe. Fim do Matérias recomendadas Em todos os outros casos, o procedimento era punido com até quatro anos e meio de prisão. No ano passado, porém, a Causa Justa — uma coalização de mais de 90 organizações — entrou com uma ação questionando a legalidade das restrições. Entre seus argumentos, está o de que a criminalização alimenta a indústria clandestina do aborto. De acordo estimativas dos Médicos Sem Fronteiras, apenas 10% dos abortos na Colômbia são realizados com segurança. Números oficiais mostram que os abortos ilegais causam cerca de 70 mortes por ano no país. Em um comunicado, Catalina Martínez Coral, diretora regional da ONG Centro de Direitos Reprodutivos, comemorou o placar de cinco votos a quatro no tribunal acatando a ação da Causa Justa. "Isso eliminará os obstáculos e estigmas que impedem mulheres e meninas de acessar os cuidados de saúde reprodutiva de que necessitam e colocará fim à perseguição injusta de mulheres e meninas na Colômbia", disse Coral. O tribunal colombiano ordenou que o Congresso e o Executivo elaborem e implementem no "tempo mais curto possível" uma "política pública abrangente" regulamentando o aborto realizado até as 24 semanas de gestação. Não é por acaso que a Causa Justa adotou o verde como cor de sua campanha, espelhando o que em anos anteriores acontecia na Argentina. No início dos anos 2000, ativistas dos direitos das mulheres na Argentina iniciaram uma campanha pela legalização do aborto. A inspiração para chegar ao público veio da forma como as Avós da Praça de Maio protestavam. Este movimento, anteriormente chamado de Mães da Praça de Maio, conquistou fama internacional ao usar bandanas brancas em protestos rotineiros denunciando o assassinato de ativistas políticos e o sequestro de seus filhos durante o regime militar na Argentina (1976-1983). As ativistas pró-aborto mantiveram os lenços, mas mudaram a cor. Em uma entrevista de 2018 ao jornal argentino La Nación, a antropóloga e ativista Miranda Gonzalez Martin disse que o verde era "a única opção disponível" no espectro de cores, já que outras eram historicamente associadas a partidos políticos e outros movimentos. "O roxo é a cor do feminismo, e o laranja é usado pela Igreja (Católica)", disse ela. "As bandanas têm um significado enorme para as mulheres na Argentina e também são um símbolo muito visível." O movimento na Argentina decolou quase quatro décadas depois que Cuba se tornou o primeiro país da América Latina e Caribe a legalizar o aborto para todas as mulheres. O primeiro grande sucesso do movimento foi em 2012, quando o Uruguai legalizou o aborto para todas as mulheres, permitindo interrupções por até 12 semanas de gravidez. Vários Estados do México adotaram uma postura semelhante desde 2007 e, em setembro do ano passado, a Suprema Corte do país decidiu que o aborto não é mais crime nacionalmente. A vez da Argentina chegou em dezembro de 2020, quando o Congresso legalizou o aborto até a 14ª semana de gravidez. Enquanto isso, o Centro de Direitos Reprodutivos estima que 97% das mulheres latino-americanas em idade reprodutiva ainda vivem em países com leis restritivas ao aborto. A lista inclui o Brasil, o país mais populoso da região e que permite o aborto, segundo a lei, apenas em casos de estupro e risco à vida da gestante. Em 2012, uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) também descriminalizou o aborto em gestações de fetos anencéfalos.
2022-03-06
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60501587
sociedade
As pessoas punidas por manifestar seus sentimentos no trabalho
Todas as empresas têm normas sociais implícitas sobre como se espera que os funcionários se sintam em uma dada situação e como esses sentimentos devem ser expressos. Estas normas são conhecidas como "regras de sentimentos" e são tão arraigadas nas nossas interações sociais e no trabalho que raramente dedicamos muita atenção a elas. Quando um colega anuncia que está noivo, por exemplo, as regras de sentimentos determinam que você deve demonstrar alegria. Quando seu chefe diz que a equipe acabou de perder uma conta, a sensação apropriada poderá ser de frustração ou até raiva. A decepção relativa ao trabalho muitas vezes é tolerada, particularmente se junto com ela vier o empenho para encontrar a solução. Mas nem todas as demonstrações de emoção são tratadas igualmente. Segundo especialistas, o que é ou não é considerado "apropriado" pode depender do funcionário envolvido. Fim do Matérias recomendadas Já sabemos, por exemplo, que as mulheres que levantam a voz em um ambiente profissional podem ser consideradas beligerantes, enquanto um homem que se comporta da mesma forma seria visto como assertivo ou até como um líder. Mas pesquisas sugerem que não só a questão de gênero influencia as regras de sentimentos — existe também uma distinção racial. Dados indicam que, quando trabalhadores não brancos demonstram suas emoções, seus sentimentos podem despertar reações diferentes em comparação com trabalhadores brancos demonstrando as mesmas emoções. Isso força os funcionários não brancos a se auto-observar no local de trabalho, para evitar que os colegas interpretem incorretamente suas emoções com prejuízo para suas carreiras — o que aumenta significativamente sua carga emocional. Ao longo dos anos, diversos estudos demonstraram como as regras de sentimentos são aplicadas de forma diferente a homens e mulheres. A conclusão recorrente é que as pessoas julgam emoções como raiva, tristeza e frustração com muito mais rigor quando demonstradas por uma mulher do que por um homem. Pesquisadores concluíram que mulheres que choram no trabalho podem ser consideradas fracas ou não profissionais, enquanto se acredita que há fatores externos por trás das lágrimas dos homens. Da mesma forma, homens que demonstram raiva muitas vezes podem usá-la como ferramenta de gestão eficaz para mostrar competência, enquanto as mulheres são consideradas ineptas ou até antagônicas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em um projeto de 2014, 170 estudantes de graduação assistiram a um vídeo de declarações finais de advogados em um julgamento. Solicitou-se aos participantes que fornecessem um veredicto e avaliassem a competência dos advogados. Litigantes homens com raiva receberam as avaliações mais altas no estudo, enquanto litigantes mulheres com raiva receberam as notas mais baixas. Como se não bastasse, os estudantes atribuíram a raiva das mulheres ao seu estado emocional, mas atribuíram a raiva dos homens à situação em si. É difícil analisar a razão exata da disparidade de gênero, mas ela muitas vezes é causada por estereótipos enraizados, além da falta de visibilidade das mulheres em posições de liderança, ao contrário dos cargos de apoio. Mais recentemente, pesquisas demonstraram um fenômeno similar em termos de como as pessoas observam as emoções de funcionários não brancos no local de trabalho, em comparação com seus colegas brancos. Mesmo se os profissionais adotarem as regras de sentimentos "padrão", evidências indicam que funcionários não brancos — particularmente, funcionários negros — também precisam controlar as emoções que eles produzem nos outros, para não se arriscarem a sofrer consequências negativas. Robert, executivo de mídia negro do Reino Unido, afirma que, se ele ficar muito entusiasmado ao falar sobre um projeto em um ambiente profissional, as pessoas à sua volta muitas vezes observam essa emoção de forma diferente da sua intenção. "Posso ver na sua linguagem corporal e nos seus olhos que eles ficam um pouco assustados comigo quando entro em modo totalmente passional", afirma Robert, cujo sobrenome é omitido para proteger sua segurança no trabalho. "Especialmente como homem negro, acho que muitas pessoas simplesmente têm medo de você. Você levanta levemente a voz e observa o olhar. As pessoas não dizem nada, mas você observa um olhar de medo." Os pesquisadores afirmam que experiências como a de Robert acontecem com frequência nos locais de trabalho e nas interações diárias. Um estudo publicado em abril por Stephanie Ortiz, professora de sociologia da Universidade de Massachusetts em Lowell, perto de Boston, nos Estados Unidos, demonstra como as regras de sentimentos são interpretadas de forma substancialmente diferente, dependendo da etnia do funcionário. Ortiz realizou entrevistas com funcionários em centros LGBTQ+ de faculdades em várias partes dos Estados Unidos. As perguntas se concentraram em como os administradores percebiam suas emoções quando os funcionários tentavam discutir problemas de racismo e discriminação sofridos pelos estudantes. As análises revelaram que os funcionários brancos que demonstravam raiva em nome dos estudantes para os administradores eram considerados "apaixonados pelo seu trabalho". Mas funcionários não brancos eram considerados "radicais" e "não eram encarados como sendo da equipe quando expressavam raiva" em relação a microagressões ou preconceitos sofridos pelos estudantes. Uma entrevistada mexicana relatou que os surtos do seu supervisor branco eram considerados apaixonados, enquanto ela era aconselhada a ser menos emotiva para não "assustar os vizinhos". Os pesquisadores concluíram que o racismo internalizado e o viés inconsciente muitas vezes fazem com que a raiva e outras emoções dos profissionais não brancos sejam percebidas, nos espaços majoritariamente brancos, como mais "ameaçadoras" que emoções similares de trabalhadores brancos. Por isso, os funcionários não brancos muitas vezes precisam controlar significativamente suas emoções nas discussões sobre raça e desigualdade, para evitar o risco de serem considerados antagônicos. "Do contrário, o seu próprio trauma seria considerado algo não profissional, e parte da promoção de uma agenda", afirma Chad Mandala, estudante de doutorado em educação superior da Universidade da Geórgia, nos Estados Unidos, que trabalhou ao lado de Ortiz no estudo. Já a socióloga Adia Wingfield, em sua pesquisa sobre regras de sentimentos, mostrou que os profissionais negros controlam regularmente suas demonstrações de emoção, não porque sejam inadequadas, mas porque essas emoções podem ser mal interpretadas pelos demais. Ela argumenta que as regras de sentimentos nos locais de trabalho não foram necessariamente estabelecidas com os trabalhadores não brancos em mente, o que oferece mais espaço para que os colegas as decodifiquem de maneira incorreta — especialmente quando os estereótipos orientam essas interpretações. E isso pode trazer impactos negativos consideráveis. "Se [os trabalhadores não brancos] forem interpretados como estando com raiva, irritados, aborrecidos e frustrados, normalmente isso representará um problema importante, mesmo se eles não estiverem necessariamente se sentindo com raiva, irritados, aborrecidos e frustrados", afirma Wingfield, que é professora da Universidade Washington em St. Louis, no Missouri, nos Estados Unidos. "Mas essa percepção, particularmente pelos colegas brancos, muitas vezes poderá sair de controle e criar mais dificuldades e desafios para eles no trabalho." Uma entrevista com o ator Denzel Washington na televisão americana, conduzida pela âncora Katie Couric, ilustra esse problema. Na entrevista, Couric perguntou a Washington sobre política e se "o pessoal de Hollywood deveria se ater a representar". Ele respondeu dizendo: "Não sei quem é o pessoal de Hollywood. Hollywood é uma cidade que tem estrelas em uma calçada." Em um podcast recente, Couric afirmou que a entrevista a deixou "desconfortável" e "abalada". Ela disse que Washington "meio que pulou em cima de mim". A reação das redes sociais foi imediata, com muitas pessoas argumentando que a interpretação de Couric era injusta, e a resposta de Washington não havia sido nada de mais. Alguns imaginaram que, se um ator branco respondesse da mesma forma, ele não teria sido considerado uma ameaça. "Sabemos que os homens negros muitas vezes são estigmatizados como perigosos e furiosos", comenta Stephanie Ortiz. "A concepção [de Couric] sobre a resposta de Washington... parece muito severa." O vasto efeito das diversas formas de aplicação das regras de sentimentos aos trabalhadores não brancos aumenta a pressão emocional sobre eles. Adia Wingfield afirma que os trabalhadores precisam conciliar muitas coisas, como "fazer o seu trabalho, adequar-se às regras de sentimentos e manter-se concentrados nesse autocontrole para antecipar o conhecimento de como as pessoas poderão observar você, para ter certeza de não dar motivos para esse tipo de percepção — o que, como você pode imaginar, é uma tarefa assustadora". Mas deixar de fazer tudo isso pode trazer consequências importantes, segundo Ortiz e Mandala. "Todos os participantes [dos nossos estudos] falaram sobre como tiveram que aprender as regras observando outras pessoas sofrerem suas consequências, ou quando eles próprios as sentiram", conta Chad Mandala. "Ou seja, eles aprenderam o que não fazer porque outras pessoas foram despedidas." Já Stephanie Ortiz sugere que, em vez dos profissionais não brancos arcarem com o ônus da autocensura, os locais de trabalho deveriam tentar se tornar mais inclusivos. A solidariedade e a consciência dos colegas em grupos de trabalho que podem ter apenas um ou dois funcionários não brancos são fundamentais. "Se você estiver em um grupo e observar uma pessoa sozinha ser atacada durante uma reunião ou se as emoções dessa pessoa não forem consideradas legítimas, você não deve aguardar uma ocasião privada em um email ou no corredor para dizer a eles mais tarde 'olhe, a propósito, eu concordo com você'", diz ela. "Você precisa realmente se posicionar." Para Robert, reprimir suas emoções segue sendo uma experiência comum e inevitável. Mesmo depois de ganhar prêmios de prestígio, ele sabe que precisa pisar em ovos — "conter-se", nas suas palavras — para falar com outros executivos, potenciais doadores ou diretores de companhias, evitando que suas emoções sejam mal interpretadas. Mas ele também está se posicionando sobre este assunto. Este tipo de incidente no local de trabalho inspirou Robert a ajudar jovens sub-representados a encontrar um caminho para entrar na indústria de comunicação. Ele espera contribuir para uma força de trabalho diversificada que vai gerar mudanças duradouras, de forma que os trabalhadores das comunidades marginalizadas sejam totalmente abraçados com suas diferenças — e não apenas "tolerados", segundo ele. "Trabalho com pessoas que não tiveram experiências com outras culturas", afirma Robert. "Pode ser um pouco assustador para eles compreenderem quem você realmente é."
2022-03-05
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-60386894
sociedade
Câncer de pulmão: diagnóstico precoce como o da atriz Ana Beatriz Nogueira aumenta chances de cura
A atriz Ana Beatriz Nogueira, de 54 anos, foi diagnosticada com câncer de pulmão após fazer uma tomografia para acompanhar um caso de influenza. O exame detectou um pequeno tumor, que foi reconhecido pelos especialistas que a examinaram como o câncer em estágio inicial. De acordo com ambos os oncologistas consultados pela BBC News Brasil, Camilla Fogassa, do Hospital Albert Einstein, e André Murad, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com a pandemia causada pelo coronavírus e a alta dos casos de gripe nos últimos meses, mais casos de câncer de pulmão, como o da atriz, têm sido descobertos incidentalmente. "Os pacientes acabam fazendo tomografia para checar se os vírus prejudicaram o pulmão, e como o método é o que tem maior sensibilidade para identificar câncer de pulmão, as chances aumentam para uma detecção em fase precoce", indica Murad, que conta ter acompanhado alguns casos semelhantes em seu consultório. Os especialistas explicam que, quando isso acontece, é possível considerar que o paciente teve relativa "sorte", já que a detecção em fase inicial é mais rara. Fim do Matérias recomendadas "Geralmente, quando o câncer de pulmão começa a dar sinais, é por que o tumor já está mais avançado", diz o oncologista da UFMG. Dados do Inca (Instituto Nacional do Câncer) apontam que apenas 16% dos cânceres são diagnosticados em estágio inicial, para o qual a taxa de sobrevida após cinco anos é de 56%. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Para esses pacientes, o tratamento costuma ser cirúrgico, apenas para retirar a lesão. A depender do paciente, pode ser considerado incluir quimioterapia, radioterapia ou terapia alvo na sequência", esclarece Fogassa. Essas terapias adicionais podem ser indicadas antes da cirurgia se a doença está "localmente avançada", ou seja, ainda não é metastática (não se espalhou para várias áreas do corpo), mas já formou linfonodos do mediastino (região torácica), ou encosta na parede do tórax ou em algum vaso. Já para quadros metastáticos, além de quimioterapia e radioterapia, pode-se ser usada a terapia alvo e a imunoterapia - tratamentos mais caros e que não estão disponíveis no SUS (Sistema Único de Saúde). "Em casos de câncer de pulmão, muitas vezes conseguimos identificar qual é a alteração genética que causa os tumores, e usamos a chamada 'terapia alvo' para atacar somente ela. Já a imunoterapia é um tratamento que ensina os próprios linfócitos do corpo a atacar as células que causam câncer", diz Fogassa. O professor da UFMG conta que, há algumas décadas, quem tinha a doença em nível avançado não era esperado que vivesse mais do que nove meses. Agora, as terapias mais modernas aumentam a expectativa de vida em anos. "Não funciona para todos, mas têm revolucionado o tratamento do câncer. Na imunoterapia, por exemplo, um linfócito tem vida de 50 anos, então é 'como andar de bicicleta', ele nunca esquece como combater o câncer. Isso pode fazer com que o paciente viva mais." Os sintomas, mais comuns nessa fase da doença, incluem tosse crônica (presente por mais de um mês), falta de ar, escarro com sangue e dor na região torácica. O cigarro é o mais importante fator de risco para o desenvolvimento do câncer de pulmão. De acordo com o Inca, cerca de 85% dos casos está associado ao consumo de derivados de tabaco. Ser um fumante passivo (respirar a fumaça do cigarro alheio), inalar gases tóxicos como o radônio, liberado do solo em regiões ricas em minérios como o urânio, e expor-se à poluição ambiental também aumentam o risco. A oncologista do Hospital Albert Einstein aponta que há três tipos principais: Adenocarcinomas - representam a maioria dos casos. São lesões mais periféricas, que causam menos dor e um pouco menos relacionadas ao tabagismo. Este tipo de tumor maligno que pode atingir quase todos os órgãos do corpo. Carcinoma espinocelular - muito relacionados ao tabagismo e geralmente surge mais próximo das vias áreas, brônquios e traqueia. Sua presença faz com que os sintomas um pouco mais rápidos e é um pouco mais agressivo do que o adenocacinoma. Pequenas células - Representa casos mais raros e é uma variação muito agressiva da doença Por se espalhar rapidamente, os pacientes geralmente descobrem quando o quadro já está avançado.
2022-03-03
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60611883
sociedade
Carnaval 'só para rico'? Cidades cancelam festas públicas e liberam as privadas
Para muitos dos foliões que gostam de curtir o Carnaval de rua, aproveitando de forma gratuita os blocos que levam multidões em diferentes de cidades do Brasil, o clima atual não é assim tão festivo. Em centenas de municípios, a festa popular, aberta ao público, foi cancelada por oferecer riscos à saúde diante da pandemia de covid-19. Em grandes capitais como Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte e São Paulo, no entanto, ainda é possível participar de festas, mas só pagando. A depender do que o evento oferece, a entrada pode ser mais barata ou mais cara. Para um grande festival no Rio, com a apresentação de artistas como a dupla sertaneja Maiara e Maraísa, os ingressos vão de R$ 180 a R$ 710, por exemplo. Fim do Matérias recomendadas Cada festa deve cumprir com protocolos de saúde determinados pela cidade, o que está entre as justificativas das prefeituras para a liberação unilateral. As determinações distintas para festas públicas e privadas dividiu opiniões. Nas redes sociais, alguns criticam a existência de um Carnaval 'só para quem pode pagar', enquanto outros afirmam sentir mais segurança em locais que pedem teste de covid-19 negativo e comprovante de vacinação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os grandes desfiles de escola de samba também foram impactados pela pandemia. Em alguns lugares, as apresentações foram canceladas, e no Rio de Janeiro e São Paulo, locais que recebem milhares de pessoas na ocasião, foram adiados para abril. Na opinião de Kaxitu Ricardo Campos, presidente da Federação Nacional das Escolas de Samba (Fenasamba), as restrições específicas causam segregação. "O 'povão' é obrigado a ficar em casa, mas quem tem dinheiro pode ir para as festas que acontecerão em todo o Brasil", diz Campos. "Todo o segmento da cultura, que sofreu bastante na pandemia, pôde se reorganizar e está retomando as atividades aos poucos. Mas com as restrições atuais, as escolas de samba ainda têm muita dificuldade em vários aspectos, desde a organização de ensaios até a angariação de fundos com patrocinadores e a vendas de fantasias. Acredito que há um preconceito contra as atividades do Carnaval e das escolas de samba, que está ligado ao racismo estrutural." De acordo com Campos, a ideia de criar a federação surgiu por ele e outros memblros observarem o fortalecimento de movimentos políticos conservadores no começo da última década. "Percebemos que algumas ideologias passaram a afetar os desfiles, seja por parte de alguma prefeitura retirando apoio financeiro ou por narrativas religiosas, que dizem que o Carnaval infringe os ensinamentos de Deus, refletindo um preconceito com religiões de matrizes africanas e com culturas diferentes. Agora, a narrativa é a covid, e temos medo que no ano que vem aconteça o mesmo." A ômicron é a variante do coronavírus predominante no Brasil atualmente, e por sua alta capacidade de transmissão, o melhor é evitar qualquer aglomeração, dizem especialistas. "A doença é transmitida quando pessoas sem máscara ficam a menos de um metro de distância no período de dois dias antes até cinco dias depois do aparecimento dos sintomas", diz a infectologista Viviane Maria de Carvalho Hessel Dias, professora e pesquisadora da PUCPR. "O que acontece nessas festas, sejam elas de rua ou privadas, é que para comer ou beber, as pessoas tiram as máscaras. Independentemente do protocolo estabelecido, nada dá garantia total de proteção." A pesquisadora lembra ainda que os testes de covid-19 podem apresentar falsos negativos. Ela também alerta para o fato de que pessoas com comorbidades ou sem o esquema de vacinação completo estão mais vulneráveis a desenvolver casos graves da doença. "Se acabar se infectando, talvez quem você tenha em casa esteja mais vulnerável tenha mais dificuldade para superar a doença. Ir a um evento de Carnaval com muitas pessoas, seja ele público ou privado, é assumir riscos." Se a maior transmissão do vírus acontece, isso também favorece o aparecimento de novas variantes. "Quando alguém é infectado, o processo de replicação viral feito pelo Sars-Cov-2 para se espalhar pelo corpo está sujeito a pequenos erros. De 'cópia em cópia', esse pequenos erros vão se juntando até formarem um erro maior, e assim surgem as mutações que chamamos de variantes de preocupação, como a delta e a ômicron", explica a médica. Em resposta à BBC News Brasil, a Prefeitura de São Paulo afirma que, com a previsão de atrair até 15 milhões de pessoas vindas de várias regiões do Brasil e também de outros países, o ambiente do Carnaval seria propício à propagação da ômicron. "Permitir eventos com os blocos de rua seria uma irresponsabilidade. O maior intuito da proibição é conter o avanço da pandemia, o que se sobrepõe a qualquer outro. A saúde e a vida da população devam ser os principais objetivos da ação pública", afirmou a prefeitura por meio da assessoria de imprensa. De acordo com a resposta, três coletivos de blocos de rua responsáveis por mais de um terço dos desfiles inicialmente agendados, anunciaram o cancelamento antes mesmo da Prefeitura. "Isso mostra que a percepção dessa necessidade era, não só da administração municipal, mas também da sociedade civil." Sobre o desfile de escolas de samba, a assessoria respondeu que a organização demanda tempo, já que as apresentações atraem turistas e necessitam de alto investimento que dificultaria ainda mais a situação das agremiações, caso fosse necessário um adiamento de última hora. "A decisão pelo adiamento, tomada em conjunto com a Prefeitura do Rio de Janeiro, foi anunciada em janeiro deste ano, após parecer das autoridades de saúde dos dois municípios, com os indicadores e projeções possíveis à época. Os desfiles deverão ser realizados no feriado de Tiradentes." As festas e eventos particulares, disse a Prefeitura da capital paulista, estão sujeitos às regras estabelecidas pelas autoridades de saúde, sendo que os organizadores devem exigir o comprovante de vacinação. "Anteriormente, o passaporte era obrigatório apenas para eventos acima de 500 pessoas, mas foi ampliado para todas as festas e similares, independentemente do público presente, justamente pelo aumento de casos com a chegada da variante ômicron. Pelas regras vigentes, os organizadores devem limitar o público a 70% da capacidade do local. Também é obrigatório o uso de máscaras em todos os momentos em que as pessoas não estiverem se alimentando, além de disponibilizar álcool em gel e propiciar condições para a higienização do público." A Prefeitura de Belo Horizonte afirmou que decidiu não patrocinar o Carnaval, não realizar nenhum tipo de cadastro de blocos ou investimento em infraestrutura ou permitir desfiles de escolas de samba. "A decisão segue as orientações da Nota Técnica do Comitê de Enfrentamento à covid-19, divulgada em novembro de 2021, que desaconselha que a administração incentive e que a população participe de eventos que possam implicar em grandes aglomerações públicas de pessoas, sem controle de entrada", disse, por meio da assessoria de imprensa. No caso de eventos privados, a Prefeitura diz que o protocolo vigente da cidade exige que os organizadores cobrem do público e dos funcionários a apresentação do comprovante da segunda dose da vacina contra a covid-19 ou do resultado negativo em teste da doença para a entrada nos espaços. "Os testes devem ser do tipo RT-PCR, realizado até 48 horas antes do evento ou da atividade, ou teste pápido de antígeno, realizado 24 horas antes do evento ou da atividade. A regra é válida para eventos (casamentos, festas, partidas de futebol em estádios, corridas de rua e similares) com qualquer quantidade de público." A BBC News Brasil entrou em contato com as prefeituras de outras capitais, como Rio de Janeiro e Salvador, mas não recebeu resposta até o momento.
2022-02-26
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60530452
sociedade
4 ícones da longa luta das mulheres pelo direito ao voto no Brasil
Estudar, trabalhar, votar, divorciar-se. As brasileiras do começo do século 19 não tinham nenhum desses direitos. Até 1830, pra se ter ideia, a lei permitia que os maridos castigassem fisicamente as esposas, uma herança das Ordenações Filipinas, um conjunto de leis de origem espanhola adotada por Portugal e implantada no Brasil colônia. Até 1962, as mulheres casadas precisavam de autorização formal dos maridos para trabalhar - o Código Civil de 1916 via a mulher como incapaz para realizar certas atividades. Nas escolas, até 1854 as meninas aprendiam corte, costura e outras "prendas domésticas", enquanto aos meninos se ensinava ciências, geometria e operações mais avançadas de matemática. Depois que o currículo foi unificado no ensino básico, ainda foram necessárias várias décadas até que as mulheres tivessem acesso mais amplo às universidades, algo que só ocorreu depois de 1930. O direito de votar veio em 1932 - com a promulgação do decreto nº 21.076 no dia 24 de fevereiro, há exatos 90 anos -, como mais um capítulo de uma história longa, que vai muito além do acesso às urnas. Fim do Matérias recomendadas Conheça, a seguir, 4 mulheres protagonistas desse processo. Uma das precursoras dos movimentos pela conquista dos direitos das mulheres no Brasil viveu um século antes da promulgação do voto feminino. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Dionísia de Faria Rocha, que se tornaria conhecida pelo pseudônimo Nísia Floresta Brasileira Augusta, nasceu em Papari, no interior do Rio Grande do Norte, em 1810. Numa época em que a vida das mulheres estava circunscrita basicamente à esfera doméstica, como esposas e mães, Nísia foi um ponto fora da curva. Foi do Rio Grande do Norte para Pernambuco, para o Rio Grande do Sul, para o Rio de Janeiro. Teve 15 livros publicados e escreveu uma tradução livre da obra Vindication of the Rights of Woman, da escritora inglesa Mary Wollstonecraft, intitulada Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens. Vanguardista, Wollstonecraft chegou a publicar um livro em resposta aos escritos do filósofo Jean Jacques Rousseau, que afirmava, em Émile, ou da Educação, que a mulher, por ser intelectualmente inferior ao homem, deveria receber uma educação superficial, com ênfase maior na educação moral. Ainda que não repetisse o discurso de rompimento da intelectual inglesa, Nísia defendia que as mulheres tivessem acesso à mesma educação que os homens. Foi professora e fundou, em 1838, no Rio de Janeiro, um colégio para meninas com um currículo que ia bem além das aulas de corte, costura e boas maneiras previstas na lei. O programa do Colégio Augusto incluía latim, francês, italiano e inglês - tanto gramática quanto literatura -, geografia e história. Apesar de não ter eliminado as aulas de "prendas femininas", o fato de dar às meninas instrução bem mais ampla que o comum da época fez da escola alvo de duras críticas dos jornais cariocas durante os 18 anos em que esteve em funcionamento. Na edição de 2 de janeiro de 1847 do jornal O Mercantil, um comentário sobre os exames finais em que várias alunas haviam sido premiadas com distinção alfinetava: "trabalhos de língua não faltaram; os de agulha ficaram no escuro. Os maridos precisam de mulher que trabalhe mais e fale menos". O trecho foi destacado pela pesquisadora Constância Lima Duarte, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em sua tese de doutorado (Nísia Floresta: Vida e Obra). As escolas praticamente não existiam no Brasil colônia, muito menos o ensino obrigatório - a educação estava nas mãos da igreja Católica, que em seus conventos e seminários lecionava a poucos alunos. Com a vinda da Corte para o Brasil, em 1808, o ensino começa a se difundir no país, especialmente entre as famílias ricas, que costumavam contratar professoras estrangeiras (francesas e portuguesas, principalmente) para que ensinassem aos filhos dentro de casa. A primeira grande legislação sobre educação só é promulgada depois da independência, em 1827, durante o período do Primeiro Império. É ele que estabelece que o ensino para meninos e meninas deveria ser diferenciado. Em matemática, por exemplo, os cursos para meninas só deveriam cobrir as quatro operações básicas - somar, subtrair, multiplicar e dividir -; enquanto aqueles para meninos incluíam geometria, frações, proporções, números decimais. A lei só unificaria os currículos quase 30 anos depois, em 1854. A pesquisadora Mônica Karawejczyk, que há 15 anos estuda a questão do voto feminino no Brasil, pontua que Nísia não chegou a defender o voto feminino. "Ela pedia outras coisas porque aquela era uma época em que a mulher não tinha direito a quase nada. Só em 1827 tiveram direito ao ensino primário, e mesmo assim não era igual [ao currículo masculino]." A educação, entretanto, é um grande catalisador das transformações que aconteceriam nas décadas seguintes - e, por isso, o ativismo de Nísia e de outras mulheres nesse sentido é considerado fundamental para os avanços que vieram depois. "No momento em que a mulher tem acesso à educação, quando começa a ler, se instruir, começa a querer outras coisas: 'Por que ele tem direito e eu não tenho?', 'Por que ele pode fazer Medicina e eu não?' A partir daí, começa a haver uma maior conscientização sobre essas questões", ressalta a pesquisadora, autora do livro Mulher Deve Votar?: o Código Eleitoral de 1932 e a Conquista do Sufrágio Feminino Através das Páginas dos Jornais Correio da Manhã e A Noite. Uma mulher que fez muitas dessas perguntas foi a baiana Leolinda de Figueiredo Daltro, que nasceu cerca de 50 anos depois de Nísia, em 1859. Também professora, seu principal foco no âmbito do magistério eram os indígenas. Leolinda defendia que eles fossem incorporados à sociedade brasileira por meio do ensino laico, desligado da igreja - em uma época em que praticamente todas as iniciativas nesse sentido eram dominadas por agremiações católicas, como os jesuítas. Após a proclamação da República, nos anos 1890, chegou a percorrer o interior do país por alguns anos alfabetizando comunidades indígenas. Já separada do segundo marido e com 5 filhos - os quais sustentava com seu salário -, a própria forma como levava a vida afrontava os costumes da época. E foi experimentando as barreiras que se colocavam às mulheres pelo simples fato de serem mulheres que Leolinda se voltou para as questões de gênero. Em setembro de 1909, foi impedida de apresentar um trabalho no primeiro Congresso Brasileiro de Geografia por ser mulher, relata a historiadora Eliane Rocha em sua tese de doutorado (Entre a Pena e a Espada - A Trajetória de Leolinda Daltro: 1859-1934). Por essa mesma razão, nunca foi nomeada oficialmente como "catequista leiga ou diretora de índios", cargos aos quais sempre almejou. "Ela percebeu que precisaria mudar as leis para poder se inserir no espaço público", destaca Karawejczyk, que também escreveu sobre Leolinda em sua tese de doutorado (As Filhas de Eva Querem Votar: dos Primórdios da Questão à Conquista do Sufrágio Feminino no Brasil). Assim, morando no Rio de Janeiro, em 1910 ela funda o Partido Republicano Feminino (PRF), o primeiro com esse perfil montado no Brasil - e não formalmente reconhecido como partido, já que nem direito a voto as mulheres tinham ainda (uma das demandas, claro, do PRF). "Ela e todas aquelas mulheres começaram a frequentar as sessões parlamentares, vaiavam, aplaudiam. Elas tiveram muita coragem de se colocar e exigir esses direitos políticos", diz a pesquisadora. Por causa do estilo confrontativo, Leolinda era constantemente chamada pelos desafetos - e por boa parte da imprensa - de "Pankhurst brasileira", uma referência a Emmeline Pankhurst, uma das fundadoras do movimento sufragista na Inglaterra. Líder do Women's Social and Political Union (União Social e Política das Mulheres, WSPU), a britânica é um dos nomes mais célebres do que ficou conhecido como suffragettes, grupo que tinha um estilo de atuação mais combativo. Para pressionar os políticos e chamar atenção da opinião pública, as suffragettes faziam ações que iam desde interromper discursos de autoridades até acorrentar-se a portões de prédios públicos e atear fogo nas caixas de correio. No Brasil, as sufragistas do PRF eram constantemente alvo de campanhas difamatórias e ridicularizadas nos jornais, ligadas pela opinião pública ao que Karawejczyk chama de "mau feminismo" - em oposição ao "bom feminismo" que caracterizaria o grupo da geração posterior à de Leolinda, como Bertha Lutz (leia mais abaixo). Leolinda "invadia espaços exclusivamente masculinos e expunha-se pessoalmente às críticas, sempre buscando chamar atenção para as desigualdades e injustiças", escreveu a historiadora Teresa Cristina de Novaes Marques, que há mais de 20 anos se dedica a pesquisar a história das mulheres, em um artigo na revista Gênero em 2012. Entre os exemplos, a pesquisadora cita o episódio do Congresso Pan-Americano realizado no Rio de Janeiro em 1906, em que a ativista levou consigo um grupo de sete indígenas para assistir ao evento. Nos anos 1920, Leolinda começa a se afastar aos poucos da vida pública. Isso não impediu, entretanto, que ela não apenas votasse nas eleições de 1933, como também se candidatasse a deputada federal - sem conseguir, contudo, se eleger. A bióloga Bertha Maria Júlia Lutz tinha o estilo oposto do de Leolinda. Avessa ao conflito direto, preferia os pronunciamentos públicos, cartas à imprensa e a busca de apoio de lideranças masculinas - e fazia questão de deixar clara essa distância. A professora da Universidade de Brasília (UnB) Teresa Cristina de Novaes Marques conta que se surpreendeu quando começou a pesquisar no Arquivo Nacional os documentos da Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF) - fundada por Bertha - e não localizou uma menção a Leolinda, a não ser um pequeno obituário. "Mas ela [Leolinda] era uma pessoa tóxica para os propósitos da Bertha, porque atraía uma imprensa jocosa." Essas e outras nuances têm vindo à tona nas últimas décadas, à medida que mais pesquisadores se dedicam a reconstruir a história dos movimentos de luta pelos direitos das mulheres no Brasil e lá fora. Nascida em 1894, Bertha entra em cena em um momento em que o movimento feminista da América Latina vinha se internacionalizando e já estava integrado às redes europeias. Ela mesma tinha vivido em Paris, na França. Formou-se na prestigiosa Universidade Sorbonne e, em 1918, volta ao Brasil. No Rio de Janeiro, começa a trabalhar como assistente do pai, o célebre médico de ascendência suíça Adolfo Lutz, na seção de zoologia do Instituto Oswaldo Cruz. Em um período em que a Ciência é monopolizada por homens, ela teve dificuldade para se estabelecer como cientista - um dos fatores, inclusive, que a impele para a atividade política. "A Bertha é uma pessoa estudada, mas não é uma pessoa de dinheiro - essa ressalva é importante. Então ela precisava trabalhar. Por que ela entra no feminismo? Porque quer ter uma oportunidade de trabalho digna para sua formação", destaca Marques. Em 1919, funda então a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher (LEIM), que tinha, entre seus objetivos, articular a aprovação do sufrágio feminino. Em 1922, participa de uma grande conferência feminista em Baltimore, nos Estados Unidos, a Conferência Pan-Americana de Mulheres - onde se encontra com a sufragista americana Carrie Chapman Catt, com quem se correspondia por cartas e que elegeria como uma espécie de mentora. Naquele mesmo ano, a LEIM vira a Federação Brasileira para o Progresso Feminino (FBPF) e organiza o Primeiro Congresso Internacional Feminista do Brasil, no Rio de Janeiro. "A ideia era marcar as celebrações do centenário da independência, para que elas e o evento tivessem uma projeção na imprensa", conta Marques. Àquela altura, a demanda pelo voto feminino estava longe de ser um assunto novo para os políticos brasileiros. Há décadas aparecia nas discussões do Legislativo, inclusive durante a Assembleia Constituinte que redigiu a primeira Constituição da República de 1891, quando prevaleceu a posição daqueles que eram contrários ao direito do sufrágio às mulheres. Ante as tentativas mal-sucedidas, a pressão foi crescendo com os anos. A partir da década de 1920, mulheres em diferentes regiões do país chegaram a entrar na Justiça para reivindicar o alistamento eleitoral - isso porque a legislação brasileira era ambígua, não afirmava expressamente que o voto era proibido às mulheres. Em 1930, o Brasil assiste ao golpe de Estado que coloca Getúlio Vargas no poder. No ano seguinte, as representantes da federação conseguem uma audiência com o presidente e, finalmente, em 1932, o voto feminino aparece no decreto do novo Código Eleitoral, publicado em 24 de fevereiro. Naquele momento ainda não houve, contudo, popularização do voto. Tanto para mulheres quanto para homens, ele era restrito aos cidadãos alfabetizados, regra que, na prática, excluía boa parte da população pobre. A datilógrafa e escritora Almerinda Farias Gama foi uma das filiadas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF). Sua trajetória, contudo, foi bastante diferente da de Bertha. "Ela veio de uma família com muitas mulheres. E mulheres que arrimam [eram o sustento da casa]. A tia era uma médica influente em Belém - então ela tinha exemplos de mulheres fortes", diz Marques, que orientou o mestrado da pesquisadora Patrícia Cibele da Silva Tenório sobre a ativista. Almerinda faz treinamento para ser datilógrafa e se aborrece quando começa a procurar emprego e percebe que repetidamente lhe oferecem salários inferiores aos pagos aos homens. Em busca de melhores condições, deixa o Pará e parte para o Rio de Janeiro, onde morava seu irmão. Lá, conhece o movimento feminista e se aproxima da FBPF, atraída por pautas como a de igualdade salarial defendidas pelas associadas. Entre as muitas funções que desempenhou na federação, era o "elemento de ligação" entre a entidade e a imprensa carioca, conta a pesquisadora. "Ela era uma pessoa dinâmica. Não só datilografava, escrevia também - já escrevia na imprensa paraense. Então ela conhecia o pessoal da imprensa." Almerinda entrava nas redações e conversava com os jornalistas na esperança de convencê-los a publicar "notinhas" sobre a federação. "E aquela simpatia que dona Almerinda era…as pessoas cediam", diz a historiadora. Em paralelo, teve uma trajetória importante como sindicalista. Ajudou a fundar e foi a primeira dirigente do Sindicato dos Datilógrafos e Taquígrafos do Distrito Federal. Como líder sindical, foi a única mulher a votar como delegada eleitora na Assembleia Nacional Constituinte de 1933. Em 1934, afasta-se da federação, entre outras razões, por achar que ela vinha perdendo seu caráter mais combativo, como relata Tenório em sua dissertação (A Vida na Ponta dos Dedos: A trajetória de Vida de Almerinda Farias Gama (1899-1999) - feminismo, sindicalismo e identidade política). A partir daí, segue trabalhando como datilógrafa e passa a atuar cada vez mais próximo dos sindicatos e de um núcleo do movimento negro em Madureira, no subúrbio do Rio. Perto dos 50 anos, Almerinda consegue finalmente erguer sua casa própria, no bairro do Méier, também no subúrbio do Rio - um espaço que acabou usando para acolher muitos migrantes e quem precisasse de "pouso" no Rio de Janeiro. "Muita gente passou pela casa da dona Almerinda, que era uma casa de portas abertas", destaca Marques. "A Bertha era uma pessoa que fazia política pelos canais tradicionais - escrevia, se manifestava, pedia audiência. A dona Almerinda fazia política com suas escolhas pessoais."
2022-02-24
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60501066
sociedade
Por que dar gorjeta é quase obrigatório nos EUA
Você vai com seu parceiro a um restaurante nos Estados Unidos, lê o cardápio, pede dois pratos de US$ 15 e uma garrafa de vinho de US$ 20. Total: US$ 50. Mas você acaba pagando US$ 60. Ao pagar em restaurantes você tem que pagar cerca de um quinto adicional da conta. O pagamento é concebido como uma recompensa voluntária para agradecer o bom tratamento recebido, mas na prática ele é quase obrigatório, independentemente de o serviço ter sido excelente ou desastroso. E isso acontece não apenas em restaurantes. Em bares, no cabeleireiro, no hotel ou no táxi, o cliente presume que tem que deixar uma generosa "tip", palavra que significa "gorjeta" em inglês. E, caso algum cliente ainda não conheça essa etiqueta, a conta costumar vir com um lembrete ("gorjeta sugerida: 18%, 20% ou 22%)". Alguns estabelecimentos chegam a acrescentar a "taxa de serviço", dando ao cliente a opção de aumentar sua contribuição. Fim do Matérias recomendadas Muitos estrangeiros hesitam ou se irritam ao dar gorjetas nos EUA. A origem da cultura americana de "tip" vem de fora do país. "Se um homem com seu cavalo se hospeda em uma pousada, além de pagar a conta, ele deve dar pelo menos um shilling (moeda inglesa) ao garçom e seis pence à empregada, ao noivo e ao engraxate, o que equivale a meia coroa." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Este texto escrito na Inglaterra em 1795 por um jornalista anônimo é citado no livro Tipping: An American History of Social Gratuities (Gorjeta: Uma História Americana de Gorjetas Sociais, em tradução livre) de Kerry Segrave. O historiador diz que nos EUA não havia prática de se dar gorjetas pelo menos até 1840. O viajante inglês John Fowler visitou uma cidade do Estado de Nova York em 1830, onde registrou a seguinte despesa: "total, 81 centavos; garçom 0, empregada e botas, idem; e cortesia e agradecimento pelo tratamento. Algo semelhante seria visto na Inglaterra? Levará algum tempo até que isso vire um costume por lá." Fowler, um famoso engenheiro ferroviário, acreditava que a eliminação das gorjetas seria uma tendência exportada dos EUA para a Europa. Mas aconteceu justamente o contrário. A cultura das gorjetas decolou nos EUA no final do século 19 e início do século 20, quando os americanos importaram esse costume da Europa, onde era mais comum, explica para a BBC News Mundo o doutor em psicologia social William Michael Lynn, autor de mais de 70 publicações sobre este fenômeno. Assim, uma vocação elitista motivou os primeiros americanos a dar gorjeta em seu próprio país, imitando os costumes da aristocracia europeia. No entanto, enquanto no Velho Continente o hábito não se consolidou em todos os estratos sociais, do outro lado do Atlântico ele pegou. Por quê? A emancipação dos escravos nos EUA no final do século 19 teve um papel fundamental, diz Saru Jayaraman, ativista dos direitos trabalhistas e presidente da organização One Fair Wage. "Restaurantes e empresas de hospitalidade queriam continuar a ter mão de obra negra gratuita, então adotaram essa cultura da Europa e transformaram a gorjeta de um incentivo extra do salário. Então eles falaram para os negros: nós vamos te contratar, não vamos te pagar, mas você pode receber gorjetas", explica ela à BBC News Mundo. Ao longo do século 20, a cultura da "gorjeta" se estabeleceu nos EUA, mas não sem resistências — seis Estados aboliram temporariamente essa prática em 1915, opositores proeminentes como o ex-presidente William Howard Taft surgiram e grupos anti-gorjeta foram formados — até que em 1966 a gorjeta foi definitivamente consolidada quando o Congresso promulgou a cláusula "Tip Credit". Esse sistema permite que empresários do setor de serviços paguem a determinados funcionários um salário inferior ao salário mínimo, supondo que isso será complementado pela generosidade dos clientes. Assim, hoje nos EUA o salário mínimo para trabalhadores que recebem gorjetas é de US$ 2,13 (quase R$ 11) por hora. No entanto, apenas Porto Rico e 15 dos 52 Estados mantêm o salário mínimo federal. No resto do país, ele é maior e varia de US$ 2,33 (R$ 12) em Wisconsin ou US$ 6,60 (R$ 34) em Illinois a US$ 12,50 (R$ 64) em Nova York e US$ 13 (R$ 67) na Califórnia. "Basicamente vivo de gorjetas", diz Diana, 30, que trabalha como garçonete em um restaurante peruano em Miami. Seu salário é de US$ 6,98 (R$ 36) por hora, o mínimo legal na Flórida, que chega a uma média de cerca de US$ 1,2 mil (R$ 6,1 mil) por mês. No entanto, contando as gorjetas, sua renda mensal passa de US$ 4 mil (R$ 20 mil) brutos. "O que me pagam por hora mal dá para cobrir os impostos", diz ela à BBC News Mundo. Com seu trabalho como garçonete, Diana pagou seus estudos universitários, ajudou sua família e até poupou um pouco. E se as gorjetas são boas para os trabalhadores de restaurantes, na vida noturna elas são ainda maiores. "Na minha experiência, em uma noite você pode ganhar entre US$ 300 e US$ 1 mil (R$ 1,5 mil e R$ 5 mil). Depende do tipo de festa e do ambiente, se você presta um bom serviço e se você é bonito. Eu sou bonita e noto que me dão mais gorjetas", explica Silvia, uma chef cubana de 36 anos que trabalha no bar em boates e festas particulares em Miami. A relação entre gorjetas e aparência física, gênero ou raça de quem as recebe tem sido objeto de estudo e também motivo de polêmica. Um relatório da consultoria IPUS CPS publicado na revista especializada Eater indicou que entre 2010 e 2016 os funcionários brancos nos EUA ganharam em média US$ 7,06 (R$ 36) em gorjetas por hora, ante US$ 6,08 (R$ 31) para os latinos, US$ 5,57 (R$ 28) para os negros e US$ 4,77 (R$ 24) para asiáticos. Além disso, garçons brancos, pouco mais da metade do total, responderam por 78% dos empregos em restaurantes de alta gastronomia, onde as gorjetas são maiores. De acordo com um estudo mais recente, realizado pela One Fair Wage em Nova York em 2020, garçons brancos ganham US$ 5 (R$ 25) a mais por hora do que garçonetes negras. "Homens brancos sempre recebem mais gorjetas devido ao preconceito implícito dos trabalhadores americanos", diz a presidente da ONG. Jayaraman diz que a One Fair Wage não pede a abolição das gorjetas, mas leis que igualam o salário mínimo de todos os trabalhadores, considerando que a dependência de gorjetas coloca os empregados — principalmente mulheres e minorias — em uma posição mais frágil. "Se você vive quase inteiramente de suas gorjetas, você é muito vulnerável ao preconceito e ao assédio do cliente. É por isso que nossa indústria tem as maiores taxas de assédio sexual nos EUA, juntamente com enormes disparidades entre mulheres, pessoas de cor e homens brancos que recebem gorjetas", denuncia.
2022-02-21
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60435250
sociedade
Por que pandemia de covid-19 pode estar por trás de 'epidemia' de mortes de trânsito nos EUA
Dois anos após o início da pandemia de covid-19, os Estados Unidos enfrentam um aumento preocupante no número de mortes no trânsito, no que vem sendo descrito por autoridades como uma "crise nacional". Segundo os dados mais recentes do Departamento de Transportes, 31.720 pessoas morreram entre janeiro e setembro de 2021, maior número já registrado nos primeiros nove meses de um ano desde 2006. Isso representa um aumento de 12% em relação ao mesmo período de 2020 (quando ocorreram 28.325 mortes), o maior percentual de crescimento nos primeiros nove meses de um ano já registrado pelo Fatality Analysis Reporting System, sistema criado em 1975 e que analisa dados sobre mortes em acidentes com veículos motorizados. O aumento ocorreu apesar de uma redução no total de quilômetros percorridos desde o início da pandemia, e foi verificado tanto em zonas urbanas quanto em estradas rurais. Os dados indicam que houve crescimento no número de mortes no trânsito em 38 dos 50 Estados americanos. Fim do Matérias recomendadas "Essa é uma crise nacional", disse no mês passado o secretário de Transportes, Pete Buttigieg, ao anunciar medidas para combater o problema. "Nós não podemos e não devemos aceitar essas mortes como uma parte inevitável da vida cotidiana." Apesar de as causas ainda não estarem completamente claras, acredita-se que a pandemia teve impacto nesse aumento recente. "Enquanto o número de mortes anuais em rodovias caiu durante muitos anos, esse progresso estacionou na última década e agora, de maneira alarmante, as mortes aumentaram durante a pandemia", diz o Departamento de Transportes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A tendência verificada pelo governo federal é confirmada por outras análises. Segundo o National Safety Council (NSC), uma organização sem fins lucrativos que atua na prevenção de acidentes e mortes, mais de 42 mil pessoas morreram nos primeiros 11 meses de 2021, um crescimento de 9% sobre 2020 e de 18% em relação a 2019. Os números do NSC costumam ser maiores do que os do Departamento de Transportes, porque incluem também acidentes com veículos fora de ruas e estradas, em locais privados, como estacionamentos. Além disso, enquanto o Departamento de Transportes inclui mortes ocorridas até um mês após o acidente, os dados do NSC englobam mortes ocorridas até um ano depois. Mas, apesar dessas diferenças, o gerente de estatísticas do NSC, Ken Kolosh, diz à BBC News Brasil que sua organização também verificou uma relação entre o salto nas mortes e a pandemia. Ele cita três fatores que contribuíram para esse crescimento. "Particularmente durante os primeiros meses da pandemia, houve um aumento no número de ocupantes de veículos que não estavam usando cintos de segurança", observa Kolosh, lembrando que cresceu o número de pessoas ejetadas dos veículos durante colisões. O analista salienta que ainda não se sabe o motivo dessa mudança de comportamento. Kolosh também lembra que, desde o início da pandemia, houve aumento no número de acidentes envolvendo motoristas embriagados. O terceiro ponto destacado por ele é o fato de que, com a pandemia, menos pessoas tiveram de dirigir para o trabalho. "Nossas vias estavam muito menos congestionadas, o que permitiu que os motoristas dirigissem em maior velocidade", diz o analista. O aumento no número de mortes no trânsito também ocorreu ao mesmo tempo em que houve queda acentuada no uso de transporte público nos Estados Unidos. Dados do governo federal mostram queda de quase 80% no número de passageiros em metrôs, ônibus, trens urbanos e outros meios de transporte coletivo entre setembro de 2019 e setembro de 2020. Em setembro do ano passado, o volume de passageiros havia crescido modestamente, mas ainda permanecia quase 60% abaixo dos níveis pré-pandemia. Apesar do provável impacto da pandemia, a crise de mortes no trânsito envolve outros fatores mais antigos. Um relatório divulgado no ano passado pelo Fórum Internacional dos Transportes, ligado à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), comparou acidentes de trânsito fatais em 34 países. Quando analisada a evolução das mortes entre 2010 e 2018, houve queda em 26 desses países. Nos Estados Unidos, no entanto, o número de mortes cresceu 11% no mesmo período, um dos piores desempenhos. O país também teve o pior resultado em relação a mortes de pedestres, com aumento de 46% no período, enquanto 25 países apresentaram redução. Muitos analistas observam que o sistema rodoviário americano foi projetado com o foco em eficiência e para permitir velocidade. "É preciso refletir sobre como projetamos nossas vias, para que todos possam usá-las em segurança. Isso inclui pessoas em automóveis, mas também pedestres, ciclistas e motociclistas", diz Kolosh. O secretário Pete Buttigieg apresentou no mês passado um plano do governo federal para aumentar a segurança no trânsito, com verbas do pacote de infraestrutura anunciado pelo presidente Joe Biden. Buttigieg diz que o objetivo é não apenas evitar acidentes mas, caso estes ocorram, impedir que resultem em ferimentos graves ou morte. Estão previstas diversas medidas para aumentar a segurança de vias e rodovias, incluindo desde projetos para ciclovias e faixas para ônibus até limites de velocidade mais rígidos e melhor iluminação. Também há planos de melhorar a segurança dos veículos com o uso de tecnologia. Especialistas destacam ainda a importância de garantir que as leis de segurança no trânsito, como limites de velocidade, sejam fiscalizadas e cumpridas. Kolosh teme que, mesmo com o fim da pandemia, as mudanças que levaram a um maior número de mortes permaneçam. "Motoristas adotaram alguns comportamentos muito perigosos. Agora, à medida que o tráfego volta a níveis pré-pandemia, esses comportamentos estão ficando ainda mais perigosos e mortais", afirma. Mas ele e outros especialistas ressaltam que não basta apenas encorajar mudanças de comportamento entre os motoristas. É necessário garantir que as estradas e ruas sejam seguras. "Seres humanos sempre irão cometer erros. Mas nosso sistema rodoviário precisa garantir que, mesmo se você cometer um erro, isso não vai resultar em um acidente fatal", diz Kolosh.
2022-02-19
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60326628
sociedade
Malfatti, Graz, Novaes e Aita: as mulheres (esquecidas) da Semana de Arte Moderna de 22
No ano em que ocorreu a Semana de Arte Moderna, em 1922, as mulheres no Brasil ainda não podiam votar - a conquista desse direito viria uma década depois. Na vida privada, elas não podiam ter conta bancária sem autorização do marido, assim como não existia o divórcio - este seria permitido no país quase 60 anos após o evento modernista. Isso revela como a Semana de 22, ocorrida em São Paulo entre os dias 13 e 17 de fevereiro, foi revolucionária para a sociedade da época, mas também ajuda a explicar o porquê o nome de praticamente apenas uma mulher entrou para a história do evento - Tarsila do Amaral. Porém, segundo a professora do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade de Brasília (UnB), Vera Pugliese, Tarsila nem no Brasil estava na data do festival. "É interessante que, principalmente fora do meio universitário, Tarsila do Amaral seja indicada como uma das principais participantes da Semana de Arte Moderna. Em fevereiro de 1922, ela estava em Paris", diz Pugliese. A pintora paulista foi, de fato, umas das principais modernistas do país, "mas não participou da Semana de Arte Moderna. Nenhuma de suas obras esteve presente no festival artístico", conta a professora da UnB. Fim do Matérias recomendadas Segundo os registros, apenas quatro mulheres participaram da Semana de Arte Moderna: as artistas visuais Anita Malfatti, Gomide Graz e Zina Aita; e a pianista Guiomar Novaes. "Considerando-se a época, é natural que o número de participantes mulheres tenha sido pequeno, afinal, no Brasil do início do século 20 ainda predominava a ideia de arte feminina e arte masculina", explica a professora do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (USP) Mayra Laudanna. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A professora Pugliese lembra que fazia parte da cultura burguesa da década de 1920 que as mulheres dessas famílias "escrevessem poesia e mesmo desenhassem ou pintassem, preferencialmente aquarelas", e que "tocassem ou pelo menos tivessem aprendido um instrumento musical". "Escultura, nem pensar; era considerada excessivamente masculina", afirma. No entanto, não era incentivado que as mulheres se profissionalizassem, uma vez que seus conhecimentos artísticos "deveriam restringir-se ao espaço privado de suas residências, dentro dos limites permitidos primeiro pelo pai e depois pelo marido", diz a professora da UnB. Além das diferenças de gênero, a própria definição de arte da época impôs barreiras à popularização das artistas ligadas à decoração, como a tapeçaria e a cerâmica. "Precisamos com urgência rever as hierarquias da história da arte para entender melhor o que foi a experiência modernista, que não se limitou ao espaço da tela, da moldura", ressalta a professora do Instituto de Estudos Brasileiros da USP Ana Paula Cavalcanti Simioni. Autora do livro "Mulheres modernistas: estratégias de consagração da arte brasileira", que será publicado neste semestre, Simioni explica que um dos objetivos da arte modernista foi o de transformar os objetos do dia a dia. "Promover a ruptura com a separação entre arte e vida que se tinha", diz. "Isso levará a uma compreensão mais generosa e contextualizada da relevância de Regina Graz [tapeceira] e Zina Aita [ceramista] para a arte moderna", sugere Simioni. Já em relação ao esquecimento da participação da pianista Guiomar Novaes na Semana de Arte Moderna, a professora Laudanna sugere que o motivo pode ser a musicista "ter se indisposto com o evento devido a algumas paródias ocorridas antes de sua apresentação no Teatro Municipal de São Paulo", afirma. A artista plástica Tereza Aita, conhecida como Zina, nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1900, e estudou desenho, pintura e cerâmica na Itália dos 14 aos 18 anos. Quando retornou ao Brasil, em 1918, teve contato com o modernismo por meio, principalmente, dos amigos Anita Malfatti e Mário de Andrade. Apesar de ser considerada precursora do modernismo em Minas Gerais por causa de uma exposição individual feita na capital mineira em 1920, Laudanna aponta que a lacuna sobre a obra de Aita no Brasil é enorme. "Ainda hoje, pouco se sabe e quase nada se conhece dos trabalhos de Zina Aina", diz Laudanna. "Ela basicamente foi esquecida por falta de pesquisas [no Brasil] e por se localizar pouquíssimas obras suas". A professora Pugliese também destaca o retorno de Zina à Itália logo após a Semana de Arte Moderna, em 1924, tendo permanecido no país até a sua morte, em 1967, e a sua preferência pela cerâmica. "A desvalorização da cerâmica, taxada como arte decorativa (inclusive entre os artistas homens) não favoreceu seu reconhecimento como artista maior no meio das artes plásticas [modernistas]", acrescenta Pugliese. "Sua produção permanece pouco conhecida, e grande parte de suas obras não é datada", afirma trecho de sua biografia na enciclopédia do Itaú Cultural. A pintora, decoradora e tapeceira Regina Gomide Graz nasceu em Itapetininga (SP) em 1897. Após estudar em Genebra, na Suíça, Graz retornou ao Brasil em 1920, se aproximou dos modernistas e expôs sua obra em tapeçaria na Semana de Arte Moderna. Foi pioneira no interesse pela tradição indígena brasileira, tendo estudado a tecelagem indígena do Alto Amazonas para compor parte de sua obra. "Regina Gomide Graz foi a introdutora das artes decorativas modernas no Brasil, em especial nos suportes têxteis. Participou de um projeto de modernização da decoração em lares de São Paulo, ao lado de seu esposo, o artista suíço John Graz e seu irmão, o artista Antonio Gomide", conta Simioni. A artista é considerada uma das mais produtivas do Modernismo brasileiro entre 1920 e 1940, mas sua obra foi reduzida pela história como "colaboradora" do marido John Graz e do irmão Antônio Gomide. Em livros, Regina é descrita como "esposa" e "irmã" de artistas, quase nunca como "autora". Além disso, "em virtude de sua escolha por materialidades menos valorizadas pela história da arte (decoração, arte têxtil), Regina acabou ocupando um lugar menor, mas que vem sido revisto", diz Simioni. A pianista se apresentou na terceira noite do evento em um recital com obras de Debussy e Villa-Lobos. Teria sido a única artista daquela noite no Teatro Municipal a ter uma plateia em silêncio durante a sua apresentação e, em seguida, receber aplausos calorosos do público. Apesar do sucesso entre o público, Novaes deu uma entrevista na época afirmando estar triste com "peças satíricas à música de Chopin" que marcaram a segunda noite de apresentações. A pianista teria se sentido ofendida, uma vez que Chopin era a sua especialidade. Novaes nasceu em São João da Boa Vista, interior paulista, em 1894. Começou a tocar piano aos 4 anos e, aos 15, se mudou para a Europa para estudar música. A musicista teve uma sólida carreira internacional, tendo se apresentado para personalidades como a Rainha Elizabeth 2ª e o presidente americano Franklin Roosevelt. Ela já era uma das pianistas mais prestigiadas do Brasil quando se apresentou na Semana de Arte Moderna. A discreta e tímida Anita Malfatti produziu "uma arte distante dos padrões vigentes [os padrões europeus] antes mesmo de 1922", diz Laudanna. Por isso, segundo a professora, Malfatti é considerada a primeira pintora modernista do Brasil. Filha de um imigrante italiano, Malfatti nasceu em 1889 em São Paulo. Em 1910, se mudou para a Alemanha para estudar artes. Em seguida, foi para os Estados Unidos, onde produziu uma série de nus artísticos - um escândalo para os conservadores da época. Em 1917, já de volta ao Brasil, a pintora realizou uma exposição individual em São Paulo intitulada "Exposição de Pintura Moderna", que serviu de estopim para a Semana de Arte Moderna, cinco anos depois. Isso porque, assim como o evento de 1922, que não foi bem recebido por parte do público, a exposição individual de Malfatti de 1917 foi ferozmente criticada por Monteiro Lobato em um texto intitulado "Paranóia ou Mistificação?". "Após a crítica negativa de Monteiro Lobato, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e outros saíram em defesa de Anita nos jornais. Foi aí que estes artistas tomaram consciência do que os unia: um desejo de inovação e de se contraporem aos parâmetros da crítica e de gosto então em vigor", comenta Simioni. A exposição de 1917 foi lembrada pelos críticos e pelos jornais nos anos em que se seguiram. Ora lembravam da coragem e originalidade de Malfatti, ora retomavam as críticas de Lobato. "Ainda que Malfatti não tenha se concretizado como a cabeça do movimento modernista, posição inicialmente assumida por Victor Brecheret, a artista continuou sendo, na Semana de Arte Moderna, a personificação do escândalo da arte modernista", explica Pugliese. O projeto "Ver Anitta", da professora Laudanna, hospedado no site da USP, recuperou entrevistas de Malfatti sobre a repercussão de sua exposição anterior à Semana de Arte Moderna. Em 1955, a pintora afirmou ao jornal A Gazeta que não tinha ideia de que suas obras de 1917 seriam encaradas como uma "revolução". "Achei que era natural aquilo", disse Anita à Gazeta sobre a crítica de Lobato. "Apenas não tomei aquilo tudo como uma revolução nem imaginei o que iria causar mais tarde. Apenas quando o movimento tomou conta da literatura, da música e das outras artes, em geral, foi que avaliei o que estava acontecendo", continuou a artista modernista. Malfatti expôs cerca de dez obras durante a Semana de Arte Moderna "Estávamos completamente felizes apesar dos protestos e vaias. O Villa executou um tremendo concerto sinfônico de abalar as paredes do velho Municipal, na noitada de sexta-feira. Assim terminava a Semana. Tínhamos feito algo que só vinte ou trinta anos depois poderíamos registrar assim: deixamos um ponto luminoso na história da cultura da Cidade de São Paulo", afirmou Malfatti em 1954 ao jornal O Carioca. Tarsila, por sua vez, além de não ter participado do evento, foi apresentada aos modernistas fomentadores da Semana, Oswald de Andrade, Mario de Andrade e Menotti del Picchia, meses depois do evento, por intermédio de Anita Malfatti, sua conhecida desde 1919. "Tarsila passou a conviver com eles após a Semana. Juntos, formaram o 'Grupo dos Cinco', que se manteve unido em torno da ideia de produzir uma arte 'brasileira'", resgata Laudanna. O "Grupo dos Cinco" durou apenas alguns meses, contudo. "O grupo se desfaz com o retorno de Tarsila para a Europa ainda no mesmo ano de 1922", diz a professora da USP. "A Semana foi se construindo como um "mito fundador" posteriormente, assim como se foi construindo Tarsila como a musa do modernismo, e em algum momento se atrelou uma coisa a outra, mas isso não tem nenhuma veracidade", conclui a professora Simioni.
2022-02-15
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60381328
sociedade
As mulheres que escolhem ser mães solteiras: 'Melhor decisão da vida'
Mais de 50% das mulheres que usam doadores para engravidar pretendem criar seus filhos sozinhas, de acordo com os dados mais recentes de um dos maiores bancos de esperma do mundo, o Cryos International. Os dados do Cryos, que fornece esperma e óvulos de doadores congelados em mais de 100 países em todo o mundo, mostram um aumento constante de clientes mulheres solteiras nos últimos sete anos, chegando a 54% em 2020. No mundo, existem mais de 100 milhões de mães solteiras que criam seus filhos sozinhas, de acordo com a ONU. Embora não haja dados suficientes sobre quantas delas são mães solteiras por opção, as mulheres que optam por ser mães solteiras geralmente enfrentam desafios sociais, culturais e até legais ao iniciar uma família. Nós conversamos com quatro mulheres sobre suas jornadas pessoais de maternidade e como elas se sentem ao criar seus filhos sem um parceiro. Fim do Matérias recomendadas Mam Issabre, da França, sempre quis ser mãe e, depois de anos pensando na ideia, finalmente decidiu agir há dois anos. "Decidi falar com minha mãe sobre isso, e ela disse que talvez fosse um bom momento para tentar, já que eu tinha 38 anos na época", lembra ela. "Tomei minha decisão em dezembro e em fevereiro estava grávida", diz a radialista. Nove meses depois, Mam deu à luz uma menina saudável chamada Imany. Parece uma história simples, mas ela precisou superar um grande obstáculo: os tratamentos de fertilidade não estavam disponíveis para mulheres solteiras na França na época. Seu médico havia recomendado viajar para o exterior para fazer uma inseminação, mas Mam conseguiu encontrar outro médico disposto a realizar o procedimento. Ela diz que não sabia que o procedimento era ilegal; achava que apenas não era possível realizar o procedimento no país. Em junho do ano passado, a França aprovou uma lei que permite que mulheres solteiras e casais de lésbicas recebam tratamentos de fertilidade, anteriormente disponíveis apenas para casais heterossexuais. A lei foi aprovada após dois anos de debate intenso no parlamento e protestos em massa. Um ano depois, Mam reflete sobre ser mãe. "A primeira vez que segurei minha filha em meus braços foi quando realmente percebi que era mãe", diz ela. "Eu chorei muito naquele dia." "Foi um momento muito emocionante — foi a melhor decisão da minha vida", acrescenta ela. Mam optou por um doador anônimo porque queria proteger sua filha de uma possível rejeição. "Espero que seja uma boa decisão para mim e minha filha, mas explicarei tudo quando ela tiver idade suficiente." "Meu sonho é ter quatro ou cinco filhos", diz ela. "Mas estou ficando mais velha, então talvez uma criança seja um presente muito bom de Deus". Para Anne Marie Vasconcelos, de 44 anos, que vive em Nova Jersey, nos Estados Unidos, o caminho para a maternidade foi longo e árduo. Dez anos atrás, Anne Marie foi diagnosticada com síndrome dos ovários policísticos (SOP), uma condição comum que afeta o funcionamento dos ovários e pode causar problemas de fertilidade. O diagnóstico, juntamente com a recente perda de seu pai, fez com que ela decidisse mudar sua vida. "A endocrinologista disse com base nos meus resultados de laboratório que eu teria problemas para ter filhos e que, se eu quisesse filhos, deveria seguir em frente", diz a funcionária pública. Mas para uma mulher recém-solteira de 34 anos, a maternidade parecia uma possibilidade distante. "Eu disse a ela que não era casada, e ela respondeu que não é preciso ser casada para ter filhos. Eu nunca tinha pensado nisso desse jeito", lembra ela. Como católica praticante, Anne Marie diz que se tornar uma mãe solteira por meio de inseminação artificial levantou alguns problemas morais que ela precisou superar. Falar com um padre ajudou. "Ele me garantiu que, se eu seguisse esse caminho, meus bebês ainda poderiam ser batizados", diz ela. "Então, embora ele não pudesse apoiar os métodos de fertilidade, ele não me julgaria ou à minha família." A carga emocional e o desgaste financeiro surgiram depois de alguns anos tentando engravidar. "Foram necessárias cinco inseminações artificiais e dois tratamentos de fertilização in vitro para ter meu filho mais velho", diz ela. "Tudo custou US$ 95 mil [R$ 505 mil] porque meu seguro não cobria nada disso, então gastei todas as minhas economias, empréstimos de aposentadoria e refinanciei minha casa." Em 2016, nasceu o primeiro filho de Anne Marie, William, seguido por seu segundo filho, Wyatt, alguns anos depois. Ambas as crianças foram concebidas por meio de fertilização in vitro usando esperma do mesmo doador, e ambas as gestações foram cheias de complicações. Ambos nasceram precocemente por cesariana. "[William] não nasceu vivo", diz ela. "Ele teve que ser ressuscitado e receber transfusões de sangue imediatas. O nascimento foi muito traumático." Depois de nove dias no hospital, eles receberam alta para ir para casa. "Eu sentia que ele era meu mundo, e eu era o dele", diz ela, sorrindo. Sarah [nome fictício] sempre quis ser mãe. "Acho que nunca tive um momento na minha vida em que tivesse dúvidas se ia ou não ser mãe — eu simplesmente sabia", diz a curadora de arte, de 36 anos. Para ela, a pandemia de coronavírus deixou claro que não havia mais motivos para esperar. "A pandemia permitiu que eu me reconectasse com aquele desejo de ser mãe, então perguntei a um amigo e ele aceitou minha proposta de ter um filho seu", conta. Em agosto, Sarah descobriu que estava grávida após a primeira tentativa. "Eu estava ao ar livre, estava quente, e eu sentia e simplesmente sabia", diz. Hoje, grávida de seis meses, ela relembra como sua infância influenciou sua decisão. "Cresci no Líbano durante a guerra civil. Nasci em 1985 em meio ao período mais duro da guerra", diz ela. "Tive uma infância feliz, mas também repleta de traumas." Seus pais estão formalmente casados há quase quatro décadas, mas Sarah diz que eles "vivem separados, mas sob o mesmo teto" há muito tempo. "Eles não têm um ótimo relacionamento", diz ela. "Eu diria que eles tiveram um relacionamento bastante tóxico — e isso influenciou bastante na minha decisão." "Eu acho que o relacionamento dos meus pais me traumatizou", diz ela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sarah diz que o estado de seu país natal e a morte de familiares e amigos queridos tiveram um grande impacto em sua decisão. "Acho que houve um chamado para a vida após uma série de eventos trágicos que estão acontecendo com meu povo, meu país, minha comunidade nos últimos dois anos, e a pandemia foi apenas a cereja no bolo", diz ela. Para Sarah, ser mãe solteira não é uma decisão corajosa. "Eu acho que não há nada de especial ou heroico no que fiz, porque outras mulheres em relacionamentos ou mesmo casadas muitas vezes cuidam dos filhos sozinhas", diz ela. Mas ela diz que sua família foi "corajosa" ao abraçar sua escolha não convencional. "Fiquei muito surpresa que eles não fizeram perguntas sobre quem era o pai, acho que eles entenderam que eu não estava pronta para falar sobre isso no começo", diz ela. "É algo que eu só revelei a eles recentemente." "Mas eles estavam sinceramente muito felizes por mim, e acho que eles foram muito corajosos em dizer isso para outros membros da família", diz ela, sorrindo. O aumento no número de mulheres que decidem ser mães solteiras pode indicar uma mudança de atitude em relação à estrutura familiar de dois pais, mas a segurança Nyakno Okokon, de 37 anos, diz que ela não teve muita opção. "Eu digo que fui mãe solteira por escolha própria de uma forma muito vaga, porque não foi realmente uma escolha que eu fiz", diz ela. "Era o meu destino e eu tive que aprender a aceitá-lo." Nyakno cresceu em uma família de 20 filhos com um pai polígamo — sua mãe era a quarta esposa. "Nós tínhamos que lutar para sobreviver por conta própria, então não tivemos a melhor educação — apenas o ensino fundamental e médio." "Mas não posso culpá-los [porque] essa é a mentalidade deles", disse ela à BBC. Nyakno mudou-se da Nigéria para Dubai há seis anos em busca de uma vida melhor. Ela trabalha em turnos de 12 horas e diz que não tem tempo para conhecer e se conectar com novas pessoas. Mas ela decidiu que este ano fará "o que for preciso" para ter um filho. "Percebi que não havia nada que me impedisse de me tornar mãe se eu pudesse sustentar meus filhos, dar-lhes amor e uma boa educação", diz ela. "Preciso de alguém para amar e se eu não tiver um filho, acho que ficarei uma pessoa muito amarga." "Na África, não temos casas de repouso, então nossos filhos nos sustentam quando envelhecemos e ficamos fracos. Essa criança significa felicidade e esperança para o futuro", explica ela. Nyakno planeja conceber naturalmente, mas se isso não funcionar, ela tentará fertilização in vitro ou barriga de aluguel. No entanto, ela não planeja contar ao pai biológico seus planos até que esteja grávida. "É justo porque eu não quero dar a ele nenhuma responsabilidade, e isso só iria assustá-lo, pois ele tem sua própria vida e planos", diz ela. Nyakno diz que sua família aceita seus planos não convencionais e a apoiará como mãe solteira. "Antigamente, quando você engravidava fora do casamento, isso era um tabu, você era desprezada e as pessoas pensavam que você era irresponsável, mas não é mais assim", diz ela, acrescentando que o que importa é planejar sua vida depois dos 50 anos. "Minha família me apoia porque sabe que não estou ficando mais jovem — e isso me trará alegria."
2022-02-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60287364
sociedade
Bebida alcoólica ajudou a civilizar a humanidade, diz filósofo americano
A formação das primeiras civilizações é uma questão central das Ciências Humanas, que tentam há séculos explicar como agrupamentos de humanos abandonaram o estado de natureza, sem regras e em um constante clima de guerra de todos contra todos. O surgimento de leis, da autoridade do Estado e da religião são tradicionalmente apontados como vetores desse processo. Mas um elemento foi incluído recentemente nessa lista: as bebidas alcoólicas. Essa é a tese central do livro Drunk - How We Sipped, Danced, and Stumbled Our Way to Civilization [Em tradução livre: Bêbados - Como bebemos, dançamos e tropeçamos em nosso caminho rumo à civilização], escrito pelo filósofo americano Edward Slingerland. Ele argumenta que o consumo de álcool foi uma ferramenta civilizatória fundamental ao permitir a colaboração de "primatas egoístas e desconfiados" em grandes grupos por meio da formação de laços sociais. As bebidas alcóolicas aumentaram a criatividade de homem, quebraram barreiras, despertaram sentimentos de filiação e facilitaram a resolução de dilemas de cooperação. Fim do Matérias recomendadas Assim, tornaram-se uma peça central da evolução humana. Slingerland é professor de Filosofia da Universidade de British Columbia, no Canadá, e doutor em Estudos de Religião pela Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Em entrevista à BBC News Brasil, ele fala da importância das bebidas alcoólicas para a humanidade e critica um "neopuritanismo" que, ao seu ver, teria transformado em tabu o estudo de aspectos positivos do álcool. Slingerland reconhece que as bebidas alcoólicas podem ser uma droga poderosa, que oferece riscos - especialmente as destiladas e para quem bebe sozinho -, mas discorda dos médicos que dizem não haver um limite seguro para seu consumo. O filósofo defende uma abordagem deste assunto livre de preconceitos e que as pessoas tenham conhecimentos dos perigos e benefícios para tomarem suas decisões de forma informada e consciente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Brasil - Qual foi o papel das bebidas alcoólicas no processo de civilização? Edward Slingerland - O processo de civilização requer que primatas egoístas e desconfiados colaborem em uma escala maior do que a que estávamos biologicamente preparados. Para fazer essa transição acontecer, várias tecnologias culturais tiveram que ser desenvolvidas. Uma delas é a religião, que é o tema de outros importantes trabalhos acadêmicos, mas outra delas são os intoxicantes químicos e, especialmente, o álcool. Bebidas alcoólicas foram usadas como uma ferramenta cultural para aumentar a criatividade individual e em grupos, para quebrar barreiras entre pessoas, para criar sentimentos de filiação, para resolver dilemas de cooperação (onde estamos vulneráveis a que outras pessoas tirem vantagens), em situações que demandam confiança. E também pela necessidade de aliviar o estresse e a tensão que vêm de viver em uma grande sociedade. O álcool não é a única ferramenta em nosso arsenal, e há várias outras que ajudam nesse processo, como a religião, sistemas legais etc. A questão central é que o papel das bebidas alcoólicas em ajudar essa transição tem sido amplamente ignorado. BBC News Brasil - Por quê? Slingerland - Acho que é parte por conta do que chamo de neopuritanismo, um desconforto em falar sobre bebidas alcoólicas de qualquer forma que possa parecer positiva. Meu background acadêmico é em estudos da religião. Se olharmos para os teóricos clássicos de religião, muitos tinham uma postura muito desdenhosa em relação a intoxicantes químicos, criticando o que chamam de "xamãs modernos" que usam alucinógenos para atingir o estágio de elevação. Isso seria uma forma falsa de ter a experiência mística, não seria a verdadeira experiência, segundo eles. Em estudos de religião, fala-se sobre a importância da dança, do canto, dos movimentos sincronizados e, por algum motivo, se ignora completamente os intoxicantes químicos que estão sendo consumidos com frequência e em grandes quantidades enquanto as pessoas estão tendo essas experiências. É um ponto cego estranho e um melindre, uma relutância em reconhecer que as pessoas fazem isso, elas consomem essas substâncias e que isso também pode ter efeitos positivos. BBC News Brasil - Que tipo de influência sua obra pode ter, considerando que o assunto ainda é um tabu? Slingerland - Muito da cobertura da imprensa sobre o livro, por falar sobre bebidas alcoólicas, trata o trabalho pelo lado divertido e de curiosidade, sem levar tão a sério. A recepção acadêmica é mais lenta, e não tive nenhum retorno formal, mas tive respostas muito positivas de acadêmicos importantes envolvidos em estudos da história e psicologia do uso de drogas. O livro é de divulgação científica, mas traz uma contribuição acadêmica real, ainda que de forma popular. Estava preocupado com uma possível reação dura por apontar aspectos positivos das bebidas alcóolicas, mas tive menos reclamações do que esperava. A maioria veio de pessoas que têm histórico de alcoolismo, ou que tem alguém assim na família, e que reclama desse aspecto. Mas acho que fiz um bom trabalho no último capítulo do livro, deixando claro que reconheço que o álcool é muito perigoso e está se tornando mais perigoso no mudo moderno do que foi no passado. E acho que as pessoas entendem que o livro é motivado pelo fato de que o álcool é danoso e perigoso. O desafio é entender por que continuamos tendo este gosto por intoxicantes e que eles não são apenas algo que causa problemas de saúde e sociais. BBC News Brasil - Uma das funções das bebidas que seu trabalho aponta é aumentar a criatividade nas pessoas. Como isso ocorre? Slingerland - Antes de escrever sobre bebidas, fiz um estudo sobre um ideal que havia na China chamado wu-wei, que traduzi para 'ação sem esforço'. É um estado no qual você perde o senso de si mesmo como um agente, tudo parece acontecer de forma natural, e você não sente estar se esforçando e, no fim, tudo dá certo. O problema é que há uma tensão para se chegar a isso, pois é difícil tentar não tentar. Se você sabe que precisa relaxar e ser espontâneo, tentar atingir isso de forma consciente vai atrapalhar tudo. Meu estudo trata deste paradoxo. Historicamente, os chineses desenvolveram uma série de estratégias e comportamentos para conseguir superar essas tensões. Uma delas é a meditação, outra é fazer rituais, ouvir músicas específicas. São estratégias que podem ajudar a superar esse paradoxo. Mas, ao escrever este livro, percebi que uma forma de fazer isso é tomar uma substância, bebidas alcoólicas, por exemplo, que ajudam a desativar a parte do cérebro que precisa ser desligada. Cheguei a isso porque percebi que as culturas vêm usando bebidas alcoólicas como uma ferramenta psicológica para superar este paradoxo cognitivo. Em situações em que se quer que as pessoas relaxem e sejam mais espontâneas, a bebida faz isso. BBC News Brasil - Isso lembra a frase atribuída a Ernest Hemingway de que as pessoas devem escrever bêbadas e editar sóbrias. Slingerland - Exatamente. As pessoas precisam dos dois estados. Nós usamos diferentes substâncias químicas para diferentes propósitos. Acordei hoje e tomei café, por exemplo. A cafeína e a nicotina são excelentes drogas para fortalecer o foco e a atenção e ajudar você quando você precisa de energia e de foco. Elas são amigas do córtex pré-frontal do cérebro [tradicionalmente associado a funções executivas, como planejamento, tomada de decisão, memória de curto prazo, expressão de personalidade e moderação do comportamento social]. Mas há outras situações em que o problema que você está tentando resolver não é um que você pode atacar por esforço direto, e não adianta tentar se concentrar nele. Tem horas em que o que você precisa é de pensamento lateral, de criatividade, da capacidade de criar novas ideias e soluções. E, para isso, há outras drogas que ajudam, como a bebida alcoólica. A frase de Hemingway reflete a ideia de que as ideias novas surgem quando as pessoas param de regular o córtex pré-frontal e começam a fazer novas conexões e pensar coisas novas. Mas, ao acordar no dia seguinte e tomar café, a pessoa pode usar um cérebro mais focado para decidir o que é bom disso que foi criado. Essas ideias que apresento no livro de certa forma são intuitivas, mas nunca tinham sido expressadas diretamente e nunca tiveram uma abordagem científica. O livro tenta mostrar que muitas dessas intuições estão corretas. Elas são compartilhadas em diferentes culturas e através da história e de fato têm base empírica. BBC News Brasil - O livro apresenta justificativas históricas e evolutivas sobre o consumo de álcool, mas também defende que um dos motivos pelos quais as pessoas bebem é que isso é prazeroso, mas que as pessoas não falam sobre isso porque o álcool costuma ser criticado pela sociedade. Slingerland - Sim, isso é uma manifestação desse neopuritanismo. O prazer é algo sobre o qual evitamos falar, não admitimos que ele tenha peso no processo de tomada de decisão das pessoas. Meu argumento pode ser visto de forma irônica, pois muito do livro está tentando justamente se engajar em uma defesa das bebidas alcoólicas com uma abordagem próxima dos neopuritanos, argumentando que elas têm relevância funcional, que ele melhoram a colaboração e a confiança entre as pessoas, aumentam a criatividade... Então, de certa forma, estou me rendendo aos neopuritanos para dizer que há benefícios funcionais nas bebidas alcoólicas. Foi por isso que, no final do livro, quis incluir também este argumento sobre o prazer, por mais que seja importante ignorar a questão do prazer na análise científica e evolutiva. Na história evolutiva que apresento, o prazer não pode ser um dos benefícios das bebidas alcoólicas, pois a evolução não se importa se estamos felizes ou não, se temos prazer ou não. Então, eu precisava do argumento funcional. No fim do livro, argumento que não nos resumimos aos nossos genes. Somos pessoas, gostamos de prazer, nossos interesses enquanto indivíduos não estão totalmente alinhados com os interesses dos nossos genes. Então, como indivíduo, tomando uma decisão sobre consumir bebidas alcoólicas ou não, é preciso levar em consideração que elas são prazerosas, elas melhoram o humor, elas fazem comidas ter sabor melhor, fazem um bom par com comidas, aumentam conexões com outras pessoas. Mas temos um certo desconforto em falar desse aspecto das bebidas alcoólicas. Tanto que a maior parte da literatura científica que trata de álcool é sob a perspectiva médica, analisando os custos fisiológicos dele. BBC News Brasil - O livro discute um estudo que diz que não há limite seguro para o consumo de álcool. Por que isso pode ser uma abordagem equivocada? Slingerland - Este estudo analisa apenas aspectos fisiológicos do consumo de álcool e indica que qualquer volume que seja consumido tem efeitos negativos. Ainda há debates sobre essa avaliação, que foi muito criticada, mas o ponto é este. Mas, mesmo assumindo que seja uma avaliação correta, o principal problema dela é a defesa da redução de riscos a qualquer custo. Podemos argumentar que dirigir é perigoso e que a melhor forma de reduzir mortes relacionadas a automóveis seria proibir as pessoas de dirigirem ou limitar a velocidade de todos os carros a 40 km/h. Isso reduziria as mortes causadas por acidentes de carro. Mas qual seria o custo disso? A economia entraria em colapso. Estamos sempre fazendo análises de custo e benefício. Sim, dirigir é perigoso, mas é importante para a sociedade. Por algum motivo, a abordagem médica e científica não faz isso no caso das bebidas alcoólicas. Elas podem causar danos ao corpo? Sim. Mas elas têm outros benefícios evidentes. Indivíduos fazem este cálculo, empresas também fazem, mas o establishment médico tem uma abordagem puramente fisiológica, por mais que sejam ignoradas por muitos indivíduos que intuitivamente sabem os benefícios e tomam suas decisões. Nesse sentido, o objetivo do meu livro é dar voz a essas funções e benefícios e articular eles claramente, e mostrar que esses benefícios são válidos e compartilhados por diferentes culturas através da história. Isso pode ajudar cada indivíduo a tomar sua própria decisão sobre consumir ou não bebidas alcoólicas de forma mais inteligente, conhecendo melhor os custos e benefícios. BBC News Brasil - Essa visão informada seria capaz de superar o neopuritanismo? Slingerland - É difícil prever. O establishment médico é inerentemente muito conservador, e não sei se vai mudar. Mas espero que as pessoas que fazem políticas públicas conheçam esses benefícios. Isso seria importante, por exemplo, na decisão do que seria fechado durante a pandemia. Da mesma forma que pensamos sobre a importância de fechar ou não escolas, fechar ou não supermercados, etc. Bares e lugares que servem comida e bebida foram fortemente afetados por lockdowns em todo o mundo por serem vistos como um simples vício, algo que pode facilmente ser fechado. Mas se passarmos a ver bares como lugares aonde as pessoas vão não apenas por conta dos seus vícios, mas como um lugar de comunidade, onde as pessoas se reúnem para socializar, onde colegas compartilham informações e ideias ligadas ao trabalho, isso precisa ser levado em consideração por quem toma decisões deste tipo. BBC News Brasil - O livro aponta que bebidas alcoólicas costumavam ter mecanismos de segurança, mas que isso mudou e alterou a relação da sociedade com o álcool. Quais eram esses mecanismos e o que levou a essa mudança? Slingerland - As bebidas alcoólicas sempre tiveram dois mecanismos de segurança embutidos. Um deles era o limite da fermentação natural. As leveduras usam o açúcar e o transformam em etanol porque são relativamente resistentes a ele e fazem isso como uma arma biológica na guerra contra bactérias com quem disputam os açúcares. Mas elas não são muito resistentes, então, em um determinado momento do processo de fermentação, a concentração de etanol chega a um ponto que impede a atuação das leveduras, e paralisa a fermentação. Há muito tempo os seres humanos vêm manipulando as leveduras, que estão se tornando cada vez mais fortes. O fermento talvez seja o mais antigo "animal" domesticado pelos humanos, porque há tempos tentamos fazer bebidas mais fortes. Mas ainda assim há limites. Um vinho shiraz australiano pode chegar no máximo a 16% de álcool, e é a bebida mais forte que se pode alcançar com a fermentação natural. Então, na maior parte da nossa história, o que consumimos eram cervejas e bebidas feitas de grãos que chegavam normalmente até 2% ou 3% de álcool. Quando se bebe algo assim, é difícil consumir álcool demais. O imenso volume que é preciso consumir para ficar bêbado faz com que seja difícil exagerar. Quando argumento pelos benefícios sociais e individuais das bebidas alcoólicas, estou tratando de níveis baixos de embriaguez, algo até 0,08 miligramas de álcool. É muito fácil ficar abaixo disso quando se consome uma cerveja com até 3% de álcool. Mas a humanidade inventou a destilação. Nesse processo, o etanol é separado e concentrado, e é possível produzir vodkas com mais de 90% de álcool. Pensando numa média histórica, passamos muito tempo consumindo bebidas com 5%, 10% de álcool, mas, de repente, damos um salto e chegamos a mais de 90%. Passamos então a lidar com uma nova droga, ainda que tecnicamente ainda seja o mesmo etanol. Nossos corpos evoluíram para lidar com o etanol. Temos enzimas que servem especificamente para quebrar o etanol e retirar ele do corpo. Quando a pessoa toma doses de vodka e de tequila, ela sobrecarrega totalmente este sistema. O corpo não tem como lidar com essa quantidade de álcool consumida nessa velocidade. E as pessoas podem ficar muito bêbadas muito rapidamente, então, é um risco maior. BBC News Brasil - Outro mecanismo de segurança seria o aspecto social das bebidas alcoólicas. De que forma isso ajuda a manter o consumo de álcool em níveis mais saudáveis? Slingerland - Historicamente, costumávamos consumir estas bebidas em situações em que há regras sociais. É sem precedentes o nível de acesso privado a bebidas alcoólicas que se tem hoje. Em todas as sociedades, só se bebia em público, em eventos sociais, geralmente com refeições. As bebidas sempre estavam envolvidas em rituais cuidadosamente planejados em que havia sempre uma forma de controlar as quantidades de álcool consumidas. Em um banquete na China antiga, por exemplo, as pessoas tinham seus copos, mas só podiam beber quando uma determinada pessoa propusesse um brinde. Há uma pessoa ritualisticamente determinada para ser o mestre de brindes, que pode controlar o ritmo de consumo de bebida das pessoas. O simpósio grego tinha uma pessoa que tinha o poder de decidir sobre a distribuição das bebidas, e ninguém podia beber de forma diferente. Ele também determinava a quantidade de água que era misturada ao vinho, podendo deixar a bebida mais diluída para reduzir o consumo. Até mesmo em situações que parecem sem controle em bares mais contemporâneos, há regras informais que ajudam a controlar o consumo. As pessoas bebem juntas e não costumam ter ritmos diferentes. Além disso, há um processo para pedir, receber, se servir, então há "lombadas" que limitam e controlam o ritmo do consumo de álcool. Claro que as coisas não eram universalmente uniformes, e há culturas diferentes especialmente no sul e no norte da Europa, por exemplo. As pessoas de culturas do norte bebem mais destilados, bebem mais sozinhas, ficam bêbadas com mais frequência, proíbem o consumo por crianças e adolescentes, enquanto as cultura do sul, especialmente Portugal, Espanha, Itália, bebem especialmente cerveja e vinho, sempre no contexto de refeições e com alimentos envolvidos, muitas vezes com a família, crianças são introduzidas às bebidas muito mais cedo, então o álcool é visto como uma parte normal da vida. Tudo isso deixa de existir quando uma pessoa pode carregar o carro com caixas de vodka e levar para beber em casa, sozinho, de frente para a TV e sem ninguém controlando o ritmo e a quantidade consumidos. Biologicamente, muitos humanos têm tendência ao alcoolismo. Aproximadamente 15% da população está geneticamente propensa, mas, se olharmos para as taxas reais, elas variam muito em todo o mundo. Os índices são muito altos na Rússia, no norte da Europa, por exemplo, nos Estados Unidos. E em lugares como na Itália, por exemplo, as taxas são muito baixas, ainda que o consumo per capita deles seja muito alto. Argumento que isso é por conta desse truque cultural. Há tradições envolvidas no consumo bebidas alcoólicas, há normas que evitam que eles bebam em excesso. BBC News Brasil - Nos últimos dois anos, o consumo de álcool aumentou por conta da pandemia. De que forma isso afeta as pessoas que bebem sozinhas? Slingerland - Com a pandemia, as coisas saíram do controle. Quase todas as pessoas começaram a fazer justamente isso que aponto como problemático. As pessoas ficaram presas em casa, muitas vezes sozinhas. Então deixa de ser o ambiente natural e tradicional para o consumo de bebidas alcoólicas. Isso é pior porque os humanos não são muito bons em regular o consumo de álcool por si mesmos. Precisamos de outras pessoas. E isso se perdeu totalmente na pandemia.
2022-02-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60341935
sociedade
As mensagens de uma mãe a um filho morto que causaram comoção em rede social
"Meu filho, meu amor. Não consigo ir dormir sem te dizer que o teu irmão já chegou. Estão bem. Queria tanto saber se tu estavas bem. Amo-vos tanto meus filhos", escreveu a professora aposentada Assunção Fernandes no Twitter no domingo (06/2). A mensagem, assim como outras que ela escreve diariamente, foi direcionada a uma publicação feita no mesmo dia pelo perfil do filho mais velho dela, Pedro Gama. O rapaz morreu em 2019. Assunção, porém, manteve uma rotina: responder a todas as mensagens compartilhadas diariamente no perfil de Pedro. A história de mãe e filho ganhou repercussão na quinta-feira (10/2). Um post sobre o caso teve mais de 13 mil curtidas no Twitter e 500 compartilhamentos. As mensagens de Assunção para o filho comoveram diversas pessoas em Portugal, o país da família, e também no Brasil. Fim do Matérias recomendadas Nas redes, ela agradeceu o carinho que passou a receber. "Fico feliz em saber que há tanta gente solidária e que ainda podemos acreditar no amor", escreveu a aposentada, de 69 anos, em seu perfil no Twitter. Pedro era funcionário público em Braga, Portugal, costumava viajar o mundo e gostava de conhecer diferentes culturas. Os amigos o descreviam como uma pessoa alegre e muito solidária. "Ele sonhava com um mundo sem barreiras. Nunca, desde bem pequeno, admitia as palavras normal ou anormal para classificar as pessoas. Ele dizia que cada indivíduo era diferente e era assim que devíamos aceitar e respeitar", diz Assunção à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O rapaz costumava ajudar a mãe a mexer em diferentes tecnologias. Ele ensinou, por exemplo, Assunção a usar o Twitter. "Ele era muito ativo no Instagram, no Facebook e no Twitter. Ele até ia a encontros com pessoas que tinha conhecido no Twitter", relembra o irmão caçula de Pedro. Foi justamente nas redes sociais que Pedro viu a chance de continuar, de certa forma, ativo mesmo após morrer. No Twitter, ele recorreu a um bot (robô) para programar diariamente a publicação de emojis. "Acredito que ele fez isso sabendo que continuaria postando coisas mesmo após isso (a morte)", diz o irmão. Pedro morreu aos 43 anos, em decorrência de um câncer de cólon (na parte do intestino grosso). Ele havia sido diagnosticado com a doença em 2018. Cerca de um ano depois, o quadro se agravou cada vez mais. Nas redes, o perfil dele continuou compartilhando publicações diárias com emojis de teleféricos. A escolha das figuras para essas publicações pode ser explicada por um post de Pedro no Twitter em novembro de 2018. Na época, ele fez uma publicação com esses emojis para lamentar que um perfil mencionou que eram os menos usados na rede social. "Os emojis menos utilizados não podem ser meios de transporte! Lute pelo que é certo", escreveu. Enquanto convivia com a dor da saudade intensa do primogênito, Assunção viu as publicações programadas no perfil dele e começou a interagir com elas. Ali, começou a compartilhar as novidades, detalhes sobre o cotidiano da família e nunca deixou de demonstrar o amor pelo filho. "Tu sabes que te amo e jamais deixarei de te amar. Posso ficar com a memória reduzida a zero, mas estarás sempre no meu coração. Ontem não houve novidades conosco. Amo-vos tanto meus filhos", escreveu em uma das interações recentes com o perfil do filho. Segundo Assunção, essas publicações se tornaram uma forma de "desabafar" com Pedro. "Para atenuar a minha dor, e não podendo falar nele em casa por causa do meu marido, aproveitei a página dele do Twitter onde ele tinha um tuíte automático", explicou em uma publicação na rede social nesta sexta-feira (11/2). Essa atitude, acredita a mãe, a ajuda a enfrentar a dor da saudade e faz com que ela sinta Pedro mais perto. Algumas pessoas costumavam compartilhar ou interagir com as publicações dela nas postagens automáticas do perfil do filho. Ela admite que nunca pensou que "as conversas fossem descobertas, a não ser por amigos íntimos". Na quinta-feira, a interação da mãe com o perfil do filho foi compartilhada por um perfil com 2,9 mil seguidores no Twitter e alcançou repercussão inesperada, pois passou a ser compartilhada por diversas pessoas. "Ontem alguém encontrou uma das minhas conversas , comoveu-se, retuitou e a onda solidária tem sido tão grande que ainda não acabou. Não consigo responder a toda a gente e alguns tuítes que vi mas não respondi ontem, já não os consigo encontrar", escreveu a aposentada nesta sexta-feira em seu perfil na rede social. Os inúmeros compartilhamentos surpreenderam Assunção e o filho caçula, que atualmente tem 44 anos. A aposentada passou a receber diversas mensagens de apoio. "Assunção, que lindo o amor de vocês. Isso é eterno. Mandando muitas energias boas aqui do Brasil", digitou uma pessoa. "Fico sempre de coração partido quando a leio. Vejo nas suas palavras o amor que sente pelos seus e pelos outros. Ninguém neste mundo está preparado para a perda de um filho", escreveu outra pessoa. Para Assunção, as suas mensagens para o perfil do filho ajudaram a "despertar o coração de muitos filhos para o grande amor de mãe".
2022-02-11
https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-60354179
sociedade
'Fui enganada e me apaixonei por um deepfake num app de namoro'
Quem nunca se apaixonou perdidamente? E quando isso acontece em relação a alguém que conhecemos em um app de namoro? Assim como essas mulheres — e milhares de pessoas no mundo —, a atriz e cineasta francesa Yzabel Dzisky foi uma das pessoas que se aventuraram pelo mundo do namoro online. Até se dar conta de que havia se apaixonado por um deepfake. Em entrevista à BBC, Yzabel conta como caiu no chamado catfishing (termo em inglês usado para se referir a pessoas que criam perfis falsos na internet para se relacionar com outras por motivos emocionais ou financeiros), como a trapaça a deixou arrasada e como ela conseguiu seguir em frente para encontrar a verdade que espera poder curar seu coração partido. Fim do Matérias recomendadas A seguir, conheça a história de Yzabel. Em 2017, Yzabel tinha 46 anos, estava solteira e queria fazer um documentário sobre aplicativos de namoro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O plano era entrevistar pessoas aleatórias e procurar potenciais colaboradores. Mas essa ideia de documentário também parecia uma oportunidade de encontrar seu grande amor. "Meus amigos solteiros estavam me contando sobre todas aquelas histórias engraçadas de amor e seus encontros nesses aplicativos. Primeiro, pensei que só entrevistaria as pessoas. Mas depois talvez eu também pudesse encontrar meu grande amor ali", diz. Yzabel se deparou com o perfil de um homem bonito. Era 'Tony' (Colby) — pelo menos esse era o nome de apresentação — um cirurgião que vivia em Los Angeles, mas planejando se mudar para a França em breve. Imediamente, ela deslizou o dedo para a direita, curtindo o potencial pretendente. E a atração era mútua — eles eram um 'match'. Yzabel e Tony conversaram por mais de uma semana e ela ficou impressionada com as coincidências. "As mulheres gostam de coincidências e eu o achei muito romântico. Fiquei empolgada com essa história de amor." Em seguida, ela queria vê-lo em uma chamada de vídeo. Em uma noite com as amigas, Yzabel ligou para 'Tony' em seu celular e, durante essa videochamada de 10 minutos, mostrou o rosto dele para as amigas. Era uma cabeça que mal se movia emoldurada em uma pequena tela de celular. "Quando você está em uma chamada de vídeo, na maioria das vezes você tende a olhar para si mesma e tentar ficar bonita em vez de focar na pessoa na chamada, então não estava prestando muita atenção aos detalhes", lembra Yzabel. Eles mantiveram contato com mensagens e videochamadas curtas até que 'Tony' de repente parou de responder sem dar motivo. Quando finalmente respondeu, disse que não era 'Tony', mas que seu nome verdadeiro era 'Murat'. "Fiquei chocada, mais uma coincidência, porque o nome do meu ex-marido também é Murat. Ele disse que era turco e morava em Istambul. Nem fiquei brava, apenas surpresa". "Quando perguntei por que ele mentiu para mim, disse que era porque tinha origem do Oriente Médio (árabe), e achou que eu teria reservas por causa disso. Mas falei que não tinha problema nenhum com isso, pois meu ex-marido também tem ascendência árabe-francesa-turca. Falei que se tratava de uma grande coincidência e que ele não deveria se incomodar." "Decidi pesquisar no Google, havia muitas coisas sobre ele. Podia ver as fotos, vídeos em turco. Ele estava em todos os lugares — até na TV. Não tinha dúvidas sobre ele — ele era real e um cirurgião conhecido." Tudo parecia estar indo bem para ela. Videochamadas curtas ocasionais e cartas de amor intensas se seguiram — assim como a promessa de que 'ele viria vê-la em breve'. Mas primeiro, disse 'Murat', ele tinha que visitar Xangai, na China. Foi essa viagem que deixou Yzabel intrigada. "Ele me ligou dizendo que estava em Xangai para comprar equipamentos médicos. Contou que seu cartão de crédito não estava funcionando e pediu minha ajuda — queria que eu lhe enviasse 3 mil euros (R$ 18 mil)." Depois disso, disse 'Murat', ele voaria para Paris para finalmente conhecer Yzabel pessoalmente. Ela ficou surpresa que um cirurgião conhecido lhe estava pedindo dinheiro e falou com um amigo sobre isso. Os dois ficaram desconfiados, mas ainda assim, ela decidiu enviar 200 euros (R$ 1,2 mil) a 'Murat' por meio de uma plataforma de transferência de dinheiro internacional. "Não sei por que fiz isso — pensei que talvez os cartões de crédito emitidos na Turquia tivessem problemas lá. Ele me agradeceu e me mostrou sua passagem de avião de Xangai para Paris. Estaria aqui em três dias." Quando o grande dia chegou, Yzabel estava animada para conhecê-lo cara a cara pela primeira vez. "Então, fui ao aeroporto para encontrá-lo. Esperei e esperei... e ele não apareceu", conta. Yzabel faz uma pausa e respira fundo ao falar sobre aquele dia no aeroporto. "Tentei contatá-lo novamente, ele não respondeu. Depois houve dias de silêncio. Fiquei extremamente irritada — por que ele não respondia? Apesar disso, fui gentil com ele, queria que ele respondesse. Precisava de respostas." A possibilidade de 'catfishing' e golpes online começou a passar pela sua cabeça, mas ela relutou em aceitar essa possibilidade. "Pensei 'É impossível, eu o vi em videochamadas — ele era real. Meus amigos o viram, meus filhos o viram'. Achei que estava tendo um problema neurológico. Isso não poderia estar acontecendo", acrescenta. Alguns dias depois, 'Murat' entrou em contato novamente, mas dessa vez Yzabel queria vê-lo em uma tela maior, então conectada através de seu computador. "A qualidade era ruim; pensei que talvez a conexão dele não fosse boa. Houve também um atraso na transmissão. Ouvi um 'clique, clique, clique' quando ele estava falando comigo. Inclinei-me em direção à tela, olhei de perto, pude ver que o vídeo estava congelando um pouco." Ela precisava de uma imagem mais nítida e um amigo editor de vídeo a ajudou. Ele lhe disse para conferir um vídeo chamado 'Obama Deepfake' no YouTube. Yzabel encontrou muitas semelhanças entre o que viu em suas ligações e esses vídeos deepfake online. E finalmente aceitou que havia sido enganada — o vídeo e o áudio obviamente foram adulterados. "Eu me senti envergonhada, estúpida, ingênua. Sou uma mulher com espírito rock'n'roll, nunca me deixei ficar para baixo. Mas me senti roubada com essa história — meus sentimentos foram roubados e minha alma e meu espírito, estuprados. Estávamos escrevendo coisas lindas um para o outro — acreditei nele. Mostrei a ele meus filhos." Sua fúria a empurrou para confrontar a pessoa atrás da tela, mas ele ficou em silêncio novamente. Yzabel continuou escrevendo e até se ofereceu para pagar mais para retomar os bate-papos com ele. Quando finalmente conseguiu fazer outra videochamada, ouviu os mesmos cliques novamente. Era o momento de confrontá-lo. "Disse: 'Quem é você? Eu sei que você não é 'Murat', mas quem é você?' Ele ficou em silêncio por um tempo, então perguntou por que eu estava fazendo isso. E então desligou." Mas, em seguida, surpreendentemente, respondeu dizendo que seu nome era David e que ele era um hacker de 20 anos da Nigéria. "Perguntei por que ele estava fazendo aquilo. 'Você me fez apaixonar por você, você pediu meu dinheiro'. Ele disse que tinha conseguido muito dinheiro de pessoas e que fazia parte de uma rede muito grande especializada nesse tipo de crime. Até fizemos uma videochamada. Eu o vi com um amigo. Ele me disse que ficou rico com essas contas falsas, queria ser jogador de futebol e estudar no Canadá." A identidade de 'Murat', acrescentou David, havia sido inventada ao acaso, sem nenhuma ideia do fascínio que a ficção teria para Yzabel por causa das coincidências. Ela ficou arrasada, mas não conseguia deixar de lado o amor 'real' que sentia pelo 'falso' 'Murat'. Buscando um desfecho para sua história de amor virtual, ela partiu para encontrar o verdadeiro homem cuja identidade havia sido roubada. Yzabel encontrou um número de telefone em uma de suas contas nas redes sociais e ligou para ele. A princípio, o cirurgião turco rejeitou as mensagens. Ele estava ciente das inúmeras contas falsas abertas em seu nome, mas não queria falar sobre os golpes. "Decidi enviar uma mensagem de vídeo. Disse: 'Sou real, acho que você foi hackeado, não quero fazer nenhum mal — temos muito em comum. Gostaria de conhecê-lo e dar-lhe todas as provas que tenho.'" Yzabel disse a Murat que planejava visitar Istambul e ele concordou em conhecê-la. Ela imediatamente reservou uma passagem de avião para a Turquia. "O Bósforo era lindo, magnífico. Mas eu estava me sentindo muito solitária...", lembra ela. O cirurgião, aparentemente, não tinha certeza se queria conhecê-la. "Então, fui para o hospital. Foi muito difícil para mim, por meses, eu pensei que estava falando com ele. Quando a porta se abriu, a secretária dele disse que ele estava me esperando. E lá... eu o vi pelo primeira vez, ele era real..." Yzabel fez uma pausa na memória de seu primeiro encontro com ele, enquanto lágrimas escorrem pelo seu rosto e sua voz se torna trêmula. "Ele não sabia que eu tinha sentimentos por ele, mas ele foi muito acolhedor. Tentei não fazer um drama com isso. Tentei não mostrar meus sentimentos, mas meu coração estava... ficava dizendo a mim mesma que não era real, que não era ele". "Então eu mostrei a ele toda a papelada, as capturas de tela das conversas que tive com o hacker, para que ele pudesse compartilhar com a polícia. Sua fisionomia começou a mudar. E ele disse que não queria deixar seus pacientes esperando, então nós concordamos em nos encontrar mais tarde para um jantar." Yzabel disse que eles passaram uma linda noite conversando sobre o que havia acontecido. Ela decidiu fazer um longa-metragem sobre sua história e entrou em contato com alguns produtores e atores na Turquia. E acabou visitando Istambul e o cirurgião mais algumas vezes. "Mantivemos contato por um tempo, mas chegou ao fim eventualmente. Foi lindo, mas ele foi muito assediado pelas contas falsas e histórias de golpes. Ele já estava farto." A BBC entrou em contato com o cirurgião e seu advogado na Turquia. Eles se recusaram a comentar sobre esse caso em particular, mas disseram que estão tentando alertar as pessoas sobre as contas falsas criadas em nome do médico. Não era a primeira vez que ele era abordado por alguém que passou por experiência semelhante. Também foram apresentadas queixas criminais, mas obter justiça para esse tipo de crime cibernético na Turquia é complicado devido à falta de provas suficientes. É difícil rastrear a origem das contas falsas, pois a maioria é originária do exterior. Yzabel estava com o coração partido. Agora, ela quer um desfecho para sua história e espera conseguir isso com seu filme. Ela aproveita para deixar uma mensagem para quem é enganado por deepfakes ou catfishing. "Temos que lutar. Precisamos processar esses amantes fantasmas. Acho que não falamos o suficiente sobre isso porque temos vergonha", diz ela. Apesar do constrangimento de perder dinheiro com esses golpes, Yzabel incentiva as pessoas a compartilhar suas experiências com familiares e amigos. "Temos que encarar a realidade de frente. Estamos nesses aplicativos porque queremos ser amados e queremos amar. São como drogas, você quer mais e mais. Você acaba se perdendo nesse afeto virtual". "Essas plataformas são boas para conhecer novas pessoas, mas você deve conhecê-las pessoalmente o mais rápido possível. A conexão real não deve ser perdida, porque se for, você começa a se sentir muito solitária." *Murat não é o nome verdadeiro do cirurgião — sua identidade foi protegida a seu pedido. 'Catfishing' é quando alguém cria um perfil online falso para enganar as pessoas que estão procurando por amor, geralmente para tirar dinheiro delas. A polícia do Reino Unido alerta para golpes românticos, dizendo que criminosos geralmente fazem um grande esforço para ganhar confiança e convencer seus alvos de que estão em um relacionamento genuíno. Eles usam a linguagem para manipular, persuadir e explorar para que os pedidos de dinheiro não soem alarmes. Para evitar cair em um golpe de catfishing: Deepfake é um termo usado genericamente para se referir a qualquer vídeo em que os rostos foram trocados ou alterados digitalmente com a ajuda de inteligência artificial (IA). Existem muitos aplicativos e filtros diferentes disponíveis para trocar rostos em fotos e vídeos de maneiras muito realistas, mas nem todos usam IA. O 'deep' vem do Deep Learning, um ramo da IA que usa algo conhecido como redes neutras. As redes neutras são um tipo de técnica de aprendizado de máquina que tem alguma semelhança com o funcionamento do cérebro humano. Fonte: BBC, Age UK, UK Finance, Polícia do Reino Unido
2022-02-11
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60332778
sociedade
Como imaginar seu futuro pode trazer vida mais feliz
Imagine por um momento você daqui a 10 anos. Dependendo da sua idade, você poderá ter um pouco mais de rugas e cabelos brancos e poderá também esperar algumas mudanças nas suas circunstâncias materiais. Mas a pessoa que você imagina parece fundamentalmente muito próxima de quem você é hoje? Ou parece mais um estranho? Inúmeros estudos psicológicos da última década indicam que as respostas das pessoas costumam apresentar amplas variações - e suas respostas trazem revelações surpreendentes sobre suas tendências de comportamento. Algumas pessoas têm um senso vívido do seu "eu" futuro, que parece muito próximo da sua identidade atual. Essas pessoas tendem a ser mais responsáveis com seu dinheiro e éticas nas relações com os demais. Elas estão dispostas a agir de forma a facilitar a vida nos anos futuros. Mas muitas pessoas têm dificuldade para imaginar o seu "eu" futuro como uma continuação de quem elas são hoje e seu comportamento tende a ser muito menos responsável. É quase como se elas observassem seu "eu" futuro como se fosse outra pessoa, com poucas conexões com sua identidade atual - e, como resultado, elas se preocupam muito menos com as consequências de longo prazo das suas ações. Fim do Matérias recomendadas Você poderá quase pensar sobre você no futuro como uma relação que precisa ser estimulada e cultivada. Felizmente, existem algumas estratégias simples para fortalecer sua empatia e compaixão pela pessoa que você irá se tornar - com consequências profundas para a sua saúde, felicidade e segurança financeira. A inspiração para as recentes pesquisas psicológicas sobre o "eu" futuro pode ser encontrada nos textos de filósofos como o inglês Joseph Butler, do século 18. "Se a pessoa de hoje e a de amanhã não forem a mesma, mas apenas pessoas parecidas, a pessoa de hoje realmente não tem mais interesse pelo que irá sofrer a pessoa de amanhã do que pelo sofrimento de qualquer outra pessoa", escreveu Butler em 1736. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Essa teoria foi posteriormente expandida e defendida pelo filósofo britânico Derek Parfit e seu trabalho chamou a atenção de um jovem pesquisador chamado Hal Hershfield. "Era uma ideia muito envolvente", afirma Hershfield, que é professor de marketing, tomada de decisões comportamentais e psicologia da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos Estados Unidos. Ele suspeitou que a desconexão dos nossos "eus" futuros poderia explicar muitos elementos irracionais do comportamento humano, incluindo nossa relutância em poupar para a aposentadoria. Para descobrir, Hershfield primeiro precisou encontrar uma forma de medir a "autocontinuidade futura" das pessoas. Ele criou um gráfico simples que apresentava pares de círculos representando o "eu" atual e um "eu" futuro (veja abaixo). Os círculos se sobrepõem em níveis variáveis e os participantes precisavam identificar qual dos pares melhor descreve a similaridade e a conexão que eles sentem com seu "eu" futuro daqui a 10 anos. Ele então comparou essas respostas com diversas medidas de planejamento financeiro. Em um experimento, os participantes observaram diversos cenários nos quais eles poderiam receber uma recompensa menor agora ou um prêmio maior mais tarde. Conforme esperado, os participantes que sentiam maior conexão com o futuro estavam muito mais dispostos a atrasar sua gratificação e esperar o montante maior. Para verificar se essa tendência de planejamento financeiro adequado correspondia ao comportamento na vida real, Hershfield analisou em seguida as economias dos participantes na vida real - e teve a certeza de que, quanto maior a conexão que o participante sentia com seu "eu" futuro, mais dinheiro ele já tinha separado. As últimas pesquisas de Hershfield examinaram esse fenômeno em muitas outras áreas da vida. Em 2018, por exemplo, ele concluiu que a autocontinuidade futura das pessoas poderá prever suas práticas de exercício e seu preparo físico geral. Aparentemente, se você tiver forte identificação com seu "eu" futuro, mais você fica disposto a cuidar do seu corpo para garantir melhor saúde nos anos futuros. Outros experimentos indicam que pessoas com alto sentimento de autocontinuidade no futuro possuem padrões morais superiores às pessoas que enfrentam dificuldades para identificar-se com seus "eus" futuros. Elas foram menos propensas a fraudar os testes, por exemplo. "Se as pessoas têm melhores conexões com seus 'eus' futuros, elas terão maior capacidade de reconhecer as consequências das suas decisões atuais sobre seus próprios futuros", afirma Hershfield. "E isso vai ajudá-los a colocar freios nesses comportamentos." Em 2020, Hershfield confirmou que a (in)capacidade das pessoas em identificar-se com seus "eus" futuros pode ter consequências de longo prazo para o seu bem-estar geral. O estudo longitudinal, que rastreou mais de 4 mil participantes por uma década, concluiu que a autocontinuidade futura de uma pessoa no início do estudo poderá prever sua satisfação na vida 10 anos depois. É importante observar que isso foi válido mesmo quando ele controlou o bem-estar inicial das pessoas. Isso ajudou a eliminar a possibilidade de que as pessoas que se sentiam conectadas aos seus "eus" futuros simplesmente começassem o estudo com maior satisfação na vida e permanecessem dessa forma. Parece provável que a maior satisfação no final do estudo fosse o resultado de todos esses comportamentos positivos, como economias financeiras e aumento dos exercícios, que juntos resultaram em uma vida mais confortável. Com base nesses resultados, os neurocientistas começaram a observar mais de perto o processamento do cérebro por trás desses fenômenos e a razão por que tantas pessoas têm dificuldade de identificar-se com seus "eus" futuros. Meghan Meyer, professora da Faculdade Dartmouth em New Hampshire, Estados Unidos, recentemente pediu aos participantes que estimassem a sobreposição de continuidade do "eu" futuro em vários momentos. Em um desses testes, os participantes precisaram avaliar a similaridade entre o seu "eu" atual e o futuro, controlando a sobreposição de dois círculos, muito similares aos experimentos de Hershfield. Eles repetiram a tarefa diversas vezes, enquanto se imaginavam daqui a três meses, seis meses, nove meses e um ano no futuro. Confirmando os resultados de Hershfield, Meyer concluiu que o conceito médio do participante sobre o seu "eu" futuro divergiu muito rapidamente do seu conceito do "eu" atual - e o maior sentido de desconexão já surgiu no conceito após três meses. Mas é interessante observar que essa mudança começou a estabilizar-se nos momentos posteriores. Houve pouca diferença entre o conceito para os próximos nove meses e um ano e podemos imaginar que o mesmo aconteceria se fossem consideradas datas posteriores. Meyer sugere que a visão do "eu" futuro dos participantes do estudo ficava mais "desfocada" e menos definida. Isso também se refletiu nos resultados de varreduras de ressonância magnética funcionais, que forneceram evidências interessantes de que, em nível neural, realmente começamos a pensar no nosso "eu" futuro como uma pessoa diferente. Além de se considerarem em diversos pontos no futuro, também se solicitou aos participantes que pensassem em um estranho, com a ex-chanceler alemã Angela Merkel. À medida que os participantes avançavam na linha do tempo - imaginando-se daqui a cerca de seis meses em diante -, a atividade cerebral referente a si próprios começava a se parecer com a reação aos pensamentos sobre a ex-chanceler. "À medida que você avança para o futuro, a forma como você se representa não é muito diferente da forma como você representa Angela Merkel", segundo Meyer. "Isso é consistente com a ideia filosófica de que você trata seu "eu" no futuro distante como um estranho." Considerando os muitos benefícios para a nossa segurança financeira, saúde e felicidade em geral, é natural imaginar se podemos fortalecer nosso sentido de conexão com o nosso "eu" futuro. As pesquisas de Hershfield oferecem duas sugestões. Em uma série de experimentos, seus participantes entraram em um ambiente de realidade virtual com avatares personalizados que simularam qual seria sua aparência com 70 anos de idade. Conforme o esperado, eles relataram sentir maior conexão com seus "eus" futuros e, em avaliações subsequentes de tomadas de decisões, demonstraram maior responsabilidade financeira. Eles se mostraram mais propensos a poupar dinheiro para a aposentadoria, por exemplo. Muitos aplicativos de edição de imagens já permitem que você envelheça prematuramente suas fotografias e esse tipo de tecnologia poderá ser incorporado a programas educativos que incentivem as pessoas a pensar com mais cuidado sobre seu bem-estar no futuro. Para intervenção com baixa tecnologia, você poderá considerar um simples exercício de imaginação, no qual você escreve uma carta para si próprio daqui a 20 anos, descrevendo o que é mais importante para você agora e seus planos para as próximas décadas. Como a visão dos avatares envelhecidos, isso incentiva as pessoas a sentir maior senso de conexão com seu "eu" futuro - e, como resultado, estimula-os a ter mudanças positivas de comportamento. Os estudos de Hershfield demonstraram que a tarefa aumentou o tempo que as pessoas passaram se exercitando na semana seguinte - um sinal de que eles haviam começado a levar sua saúde no futuro mais a sério. Se você estiver disposto a tentar essa abordagem, ele sugere que você pode amplificar os efeitos escrevendo uma resposta do futuro, já que isso forçará você a adotar o ponto de vista de longo prazo. Como se poderá esperar, Hershfield aplica suas pesquisas à sua própria vida. Ao lidar com as tensões e frustrações da criação de filhos, por exemplo, ele tenta colocar-se no lugar do seu "eu" futuro para imaginar como ele analisaria seu próprio comportamento, olhando para trás. "Tento pensar se ele teria orgulho da forma como me portei", afirma ele. Poderá parecer excêntrico iniciar uma "conversa" com uma entidade imaginada. Mas, quando o seu "eu" futuro ganhar vida na sua mente, você pode achar mais fácil fazer os pequenos sacrifícios pessoais que são essenciais para preservar seu bem-estar. E, futuramente, você agradecerá a si próprio por ter sido previdente.
2022-02-10
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60341925
sociedade
Visão feminista de classe alta não vê que igreja evangélica pode fortalecer mulher, diz autor de 'O Povo de Deus'
O Brasil vai virar um país evangélico. Algumas previsões apontam que será no começo da próxima década, outras, um pouco mais tarde, mas elas concordam que vai acontecer. Os evangélicos - que eram 5% da população em 1970 e são um terço hoje - caminham para se tornar maioria no "maior país católico do mundo". É algo sem precedentes e paralelo no mundo, diz o historiador e antropólogo Juliano Spyer, autor de O Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam (Geração Editorial, 2020). O livro já foi recomendado publicamente por algumas personalidades e políticos de esquerda. Frei Betto, o deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ) e o ex-presidente Lula (PT) foram alguns deles. Caetano Veloso assina o prefácio. "A maneira com que eles abraçaram o livro foi no caminho de se dar conta de que existe muito mais do que Edir Macedo, [Marco] Feliciano e [Silas] Malafaia", afirma Spyer. Fim do Matérias recomendadas "Que, geralmente, a gente trata os evangélicos como espantalhos, de forma tão rude, tão desinformada, que só serve para bater, sem dar a essas pessoas a condição de seres inteligentes que fazem opções inteligentes, apenas por serem pobres e terem pouco estudo." Spyer diz que o Brasil precisa resolver esse preconceito com os evangélicos e que muita gente não está preparada para ter essa conversa - mas vai ter que fazer isso. O livro foi um dos resultados do seu doutorado em Antropologia na University College London, no Reino Unido, em que ele pesquisou o uso das mídias sociais pelos mais pobres. Spyer viveu um ano e meio em uma comunidade na periferia de Salvador e esteve pela primeira vez tão próximo de tantos evangélicos por tanto tempo. Ele diz que essa convivência iluminou os preconceitos que tinha e que ele vê também em pessoas ao seu redor. O pesquisador afirma que seu propósito com o livro - em que ele entrelaça sua experiência pessoal com pesquisas sobre o tema - é ajudar a rever esses preconceitos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um deles, por exemplo, é o de que as igrejas sempre tornam a mulher evangélica submissa ao homem, diz Spyer. Outro é que esse novo Brasil evangélico vai ser "uma ditadura miliciana fundamentalista", como alguns imaginam. A seguir, ele explica por quê. BBC News Brasil - As previsões apontam que o Brasil se tornará protestante. Em que medida esse Brasil vai ser diferente do que a gente viu até agora? Juliano Spyer - Há uma narrativa [a respeito disso] muito associada à série O Conto da Aia, em que o Brasil se tornaria uma ditadura miliciana fundamentalista baseada em uma relação bastante tensa de censura e de controle a partir de valores cristãos. Mas notei algo diferente em minha experiência. Quando fazia doutorado na Inglaterra, tinha quatro casais de amigos que vinham de famílias evangélicas pobres cujos pais não tinham estudado ou tinham estudado tardiamente. Desses quatro casais, três tinham deixado de participar mais intensamente da igreja ou deixado definitivamente da religião. Tinham inclusive uma perspectiva crítica. Então, uma contranarrativa possível é que [para as futuras gerações] a igreja se torna algo de que elas podem participar de uma forma mais branda, mais intelectualizada, mais tranquila, levando aí, portanto, a um caminho menos radical e fundamentalista. BBC News Brasil - De que forma isso ocorreria? Spyer - Um dos primeiros e mais importantes estudos da Sociologia foi produzido por Max Weber. Ele associa religião e capitalismo e aponta em que medida o individualismo do culto protestante, que é fundamentado no quanto o indivíduo é capaz de chegar à salvação via sua relação individual e direta com Deus, intermediada pela Bíblia. Então, a participação na igreja evangélica cria um ambiente de disciplina em relação ao consumo de substâncias, de álcool, de drogas, uma disciplina matrimonial, em relação aos estudos, que levam essas pessoas a evoluir na direção das camadas médias. Não sou só eu que estou falando isso. É a literatura que diz que uma das principais consequências do protestantismo, inclusive o pentecostal, é produzir ascensão socioeconômica. Uma mudança de classe social que expõe a próxima geração a um mundo muito mais laico, secular, dos ambientes universitários. BBC News Brasil - Seu trabalho tem um um propósito declarado de desfazer a visão estereotipada dos evangélicos. Pode, então, esclarecer de quem estamos falando? Spyer - Se a gente olhar para os quinhentos anos de protestantismo, uma maneira prática de separar os grupos é entre o protestantismo histórico - aquele que vem do [Martinho] Lutero até o início do século vinte, com igrejas batistas, metodistas, presbiteriana, entre outras, que surgiram mais próximo da Reforma Protestante - e o pentecostal. A partir do século 20, há esse fenômeno importante do pentecostalismo, que é o único ramo do protestantismo criado por um afrodescendente, o pastor chamado William Seymour. Não há na história do cristianismo nenhum criador de uma nova denominação, uma nova teologia, de origem africana. Ele não fundou uma igreja. Fundou uma maneira de apresentar sua mensagem que dialoga com o presente, algo muito particular do pentecostalismo. O pentecostalismo tem uma característica curiosa. Não foi disseminado por missões, com a igreja pagando para pessoas irem para certos lugares para ensinar sua teologia, mas de baixo para cima, com pessoas tocadas por aquela nova teologia indo para lugares distantes para criar suas igrejas. Tanto que as primeiras igrejas pentecostais do Brasil surgem dois anos depois do movimento original e foram se espalhando muito rapidamente dentro dos espaços da pobreza e menos visíveis da sociedade brasileira. Em parte por conta disso, há uma surpresa quando o pentecostalismo emerge. As pessoas olham para o lado e falam: "De onde vem isso? O que é que aconteceu? Onde que essas pessoas estavam?". BBC News Brasil - Por que há essa surpresa? Spyer - As camadas médias e altas do Brasil têm uma visão fora de foco do Brasil popular e ignoram esse fenômeno [evangélico]. Isso é problemático, porque generaliza a imagem de um grupo de brasileiros com imensa importância cultural, econômica e política. Ao se dirigir a esse brasileiro de maneira desinformada e preconceituosa, isso estimula uma polarização que, entre outras consequências, levou à eleição do presidente Jair Bolsonaro. A professora Claudia Fonseca, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, usa o termo "apartheid", que foi o regime de segregação racial na África do Sul, para falar sobre essa falta de contato entre o Brasil pobre e o das camadas médias e altas. E é incrível como eles são próximos. Uma rua separa o Brasil da Bélgica do Brasil do Haiti. As únicas situações geralmente de contato entre esses dois grupos é de manhã, tomando café enquanto a empregada lava a louça, ou no momento do assalto. E, dentro deste outro mundo, o cristianismo evangélico é muito maior e mais interessante e cumpre muito mais funções do que geralmente nós entendemos. BBC News Brasil - O que explica a crescente adesão às igrejas evangélicas no Brasil? Spyer - Não vou tentar aqui explicar o que é o mistério, se é um efeito psicológico, se é realmente a presença de Deus, isso não cabe dentro da Ciência Social e, geralmente, é visto como desrespeitoso pelo evangélico. Mas, além do aspecto espiritual, geralmente, a adesão está relacionada a viver uma situação degradante, de violência doméstica ou de desemprego, de alcoolismo, de dependência química. Quando a pessoa chega na igreja, ela está no esgoto da vida social, se sentindo fragilizada e precisa encontrar um lugar. Então, ela senta lá no fundo e começa a ouvir que ela vale a pena, que Deus tem uma história boa para a vida dela, e, dentro desse convívio, ela acaba se convertendo. O cristianismo evangélico está no Brasil muito associado a uma solução para as pessoas mais pobres e vulneráveis, formando, por exemplo, redes de ajuda mútua, para encontrar um advogado, uma clínica de tratamento, um médico especializado. A igreja cumpre a função de Estado de bem-estar social em lugares onde a vida é muito difícil. O protestantismo traz transformações econômicas, em termos de qualidade de vida, muito em função do disciplinamento que a conversão produz. A conversão é resultado da pessoa ter vivido situações muito difíceis na vida, e a consequência é uma prosperidade. Eu vi isso acontecer muito rapidamente, para minha primeira surpresa. A primeira consequência é que o homem abdica de uma série de coisas, do álcool, das drogas, do tabaco, e a violência física praticamente desaparece da vida do casal. A relação melhora, aumenta a confiança, a mulher pode trabalhar, tem menos a expectativa de ela ficar em casa e do homem ser livre para ir para o bar, para festas. Ele geralmente abdica dos relacionamentos paralelos. O dinheiro que era gasto com cerveja, aventuras, passa a ser investido na família. A casa fica melhor. O filho é incentivado a estudar. Uma segunda consequência, que considero mais importante, é uma prosperidade no sentido de dignidade, que passa por um aumento do autorrespeito e da autoestima, pela ideia de que você não é pior nem melhor do que ninguém. "Você pode ser quem você quiser e tem direito a todos os benefícios que as pessoas de outras classes sociais têm." Então, existem muitos motivos que trazem essas pessoas para o cristianismo evangélico, e deveríamos levar isso em conta para ter um olhar um pouco mais respeitoso e generoso com esse fenômeno. BBC News Brasil - Um efeito curioso que seu livro aponta e que contraria o senso comum é que a conversão evangélica empodera as mulheres. Como isso acontece? Spyer - A perspectiva feminista das classes médias e altas não é capaz de entender como a igreja evangélica pode e representa muitas vezes um aumento no poder da mulher. Geralmente, a maneira que a mulher destas classes médias e altas é estimulada a reagir a situações de abuso moral ou físico é pelo rompimento de relações. Mas a mulher evangélica é muitas vezes estimulada a manter os vínculos familiares, que são muito mais importantes para sua sobrevivência do que em outras classes. Uma anedota que ouvi com frequência e que faz sentido é que quando o homem entra para a igreja e a mulher não é da igreja, o casamento termina. O homem fica na igreja, e a mulher vai achar outro, porque ela não quer abrir mão da vida que ela leva. Quando a mulher entra na igreja, ela geralmente consegue levar gradualmente as outras pessoas da família para a igreja. A conversão das mulheres geralmente é relacionada a problemas coletivos. O marido que espanca ou é alcoólatra, o filho que está envolvido com o tráfico... A conversão do homem é individual. "Estou aqui porque tenho um problema." A mulher vai pra igreja para resolver o problema dos outros, e essas outras pessoas acabam indo junto com ela. Os filhos, um irmão, uma irmã, os sogros e, em algum momento, o marido. Quando o homem está na igreja, ele encontra ali um grupo e relacionamentos que o estimulam a gastar menos, a manter a abstinência, a evitar drogas, a romper relações extramaritais. Nesse sentido, a mulher se fortalece, porque a distância entre ela e o homem diminui. Então, não é que o poder da mulher aumenta. É que o poder do homem diminui. O empoderamento da mulher vem da restrição de possibilidades do homem. Além disso, ela se torna o centro da vida espiritual da família e pode assumir cargos de responsabilidade. Apesar de mulheres pastoras ainda serem pouco comuns, muitas viajam o Brasil pregando a palavra de Deus. Então, a igreja cria novas possibilidades para que essa mulher ganhe respeito e se torne uma líder, permitindo e estimulando que ela assuma posições de destaque. BBC News Brasil - De onde vem o preconceito com os evangélicos? Spyer - Nossos preconceitos têm a ver com modos de ver o mundo. Para quem cresce dentro de um ambiente secular, a igreja pode ser uma besteira, uma idiotice. Algo ruim. Mas, em um outro nível, é um preconceito de classe. Não é só com a religiosidade. O pobre é considerado problemático por alguns porque ele é barulhento demais, sexualizado [demais], violento demais, religioso demais. Tem essa patologização do pobre, principalmente quando ele está perto. Quando ele está longe, é bacana. Ele tem cultura. É o ribeirinho, o quilombola… Mas o pobre próximo é rejeitado. Há uma visão de que, se a pessoa não teve acesso a uma boa educação, não sabe votar, precisa ser educada para isso, para pensar a vida do lado de cá. A maior parte das pessoas que aderem ao protestantismo, principalmente pentecostal, são pretas, pardas, pobres, periféricas e do sexo feminino, ou seja, são, de fato, o grupo mais marginalizado da sociedade brasileira. Mas essas pessoas não querem se submeter à opinião dos outros. Como uma antropóloga americana fala, o protestante pentecostal não quer ser intermediado, não quer que digam o que ele é e quais são seus direitos. Então, ele é ousado, é uma pessoa "que não sabe seu lugar". Aí, imagina, além de pobre e ignorante, ele quer se meter com política? Quer comprar um carro? Quer viajar para a Disney? Falas assim explicitam esse preconceito de classe absurdo que aparece com frequência em relação ao cristão, principalmente o pentecostal, quando ele busca uma prosperidade que não é diferente da prosperidade que as pessoas que o criticam vivem, como ter uma casa, um carro, morar perto [do trabalho], ter plano de saúde, botar os filhos em uma escola privada. O Brasil é, curiosamente, preconceituoso, e a gente se acostumou por muitos anos a viver dentro dessa desigualdade a ponto de não aceitar muitas vezes que esses espaços sejam reduzidos. E esses protestantes não querem mais esperar, não querem mais que façam por eles, eles estão fazendo, pelo empreendedorismo de necessidade e de fato, buscando educação. Eles sentem que é responsabilidade deles fazer isso, que ninguém vai fazer, porque até agora ninguém fez. BBC News Brasil - Caetano Veloso assina o prefácio do seu livro, que já foi indicado por Marcelo Freixo, Lula, frei Betto. Por que personalidades e políticos de esquerda têm recomendado a leitura do seu trabalho? Spyer - Vou falar especialmente do Caetano Veloso. Não somos amigos e não tivemos contato antes de eu enviar o livro para ele. Queria uma frase dele e, dois meses depois, recebi um longo email com uma série de observações e críticas. Fiquei impressionado, porque ele leu de forma muito cuidadosa. O Caetano é uma pessoa que se move para além do óbvio. Ele fala no prefácio da quantidade de pessoas que falam sobre este assunto de maneira muito preconceituosa, taxando essas pessoas como idiotas e ignorantes ou como fanáticas e mercadores da fé. O Caetano historicamente combate esse tipo de visão arrogante das camadas médias. Acho que, de certa forma, as outras pessoas - posso falar pelo frei Betto, com quem eu passei a ter contato, e o Marcelo Freixo -, que a maneira com que eles abraçaram o livro foi no caminho de se dar conta de que existe muito mais nisso do que Edir Macedo, [Marco] Feliciano e [Silas] Malafaia. Que geralmente a gente trata os evangélicos como se eles fossem espantalhos, de uma forma tão rude, tão desinformada, que só serve para bater, sem dar a essas pessoas a condição de seres inteligentes que fazem opções inteligentes, apenas por serem pobres e terem pouco estudo. Essas pessoas demonstraram interesse pelo livro vendo ali um problema importante que o Brasil vai precisar resolver, que é o preconceito de classe com um grupo que hoje representa um terço do país. É importante perceber o quanto a gente pode ganhar aliando forças e tendo um diálogo mais interessante e menos preconceituoso com essas pessoas. BBC News Brasil - Por que o Brasil precisa resolver esse preconceito em relação aos evangélicos? Spyer - Em primeiro lugar, porque, ao tratar os evangélicos de forma desrespeitosa, arrogante, desinformada e com uma série de críticas por serem religiosos, estamos abrindo mão do diálogo com pessoas que têm valores conservadores, não só do ponto de vista moral, mas econômico, e que são contrários aos nossos. Em uma conversa recente com o pastor Henrique Vieira, perguntei como a gente faz para negociar essa pauta moral com o evangélico comum que acha que a família tradicional é uma questão importante e que sua liberdade religiosa é desrespeitada pelas "pessoas mais esclarecidas". Ele me deu duas recomendações muito lúcidas. A primeira: quando a esquerda se relacionar com essas pessoas, precisa tirar os manuais de baixo do braço e ouvir mais do que falar. A segunda é fazer um esforço para entrar de novo na discussão sobre termos que a esquerda tratou de forma muito desastrada: família, amor e vida. Se você quer dialogar com essas pessoas, precisa aceitar que, mesmo discordando do que pensam, elas têm o direito de pensar dessa forma. E tentar propor outros enquadramentos para essas discussões. Por exemplo, dentro do diálogo sobre a vida, em vez de reforçar que a mulher tem direito à escolha do aborto, mostrar que mulheres morrem porque o aborto é ilegal. A mesma coisa em relação à legalização da maconha: dizer que, por conta da proibição, pessoas morrem vítimas de determinadas situações ligadas à polícia. O Henrique Vieira relatou uma conversa que teve sobre homoafetividade: "O que você prefere: que uma pessoa gay seja assassinada ou ver essa pessoa beijando outra pessoa do mesmo sexo?". Percebe como você cria uma possibilidade de diálogo? BBC News Brasil - Qual será a consequência caso esse preconceito persista? Spyer - Em última instância, será manter os evangélicos cativados ou sendo pressionados dentro das suas igrejas a aderirem a pautas que geralmente não são do interesse deles por conta da defesa das pautas morais. É muito comum dentro dos círculos intelectualizados comparar os evangélicos a fascistas bolsonaristas, sendo que, no meu entendimento, a partir da convivência com uma série de evangélicos, há muitos que não têm identificação com nosso atual presidente. Mas eles se sentem constrangidos em dizer isso dentro das igrejas, porque o presidente, de forma muito hábil, costurou relações com as lideranças. Bolsonaro é um peso para o evangélico comum. Primeiro, porque ele fala de uma maneira muito violenta e desrespeitosa. Você não vai ver evangélico falando dessa forma, usando palavrões, uma forma intimidadora que não cabe ali dentro [da igreja]. Segundo, Bolsonaro não é evangélico, e a Bíblia certamente não é um assunto de interesse dele. O interesse dele pela religião é muito menor do que o interesse que tem, por exemplo, em relação à questão do policiamento. Terceiro, porque a mulher evangélica de periferia tem um imenso problema com o tema da facilitação do acesso às armas de fogo. Ela já vê armas de fogo demais nos bairros dela. Agora, se você não demonstra respeito pelas convicções, visões, entendimentos que essas pessoas têm em relação às pautas morais, você entrega elas todas [de bandeja] que serão de uma forma muito efusiva abraçadas pelo outro lado. Muitas vezes, essa polarização é promovida dentro da igreja, quando dizem que a esquerda é antifamília, é comunista, o que é uma grande bobagem porque as mesmas pessoas que falam isso participaram dos governos de esquerda do Lula e governo Dilma. Elas estão falando da boca pAra fora, por conveniência, mas constrangendo evangélicos que não se identificam com Bolsonaro a votar em candidatos que representam esse pensamento ou pelo menos, o que é mais importante, a se calar e não expressar suas críticas. BBC News Brasil - Seu livro cita episódios em que políticos de esquerda cometeram erros ao tratar da religião em eleições. A esquerda aprendeu a lição? Spyer - Os políticos e os partidos políticos entenderam o recado. Quem está disputando [uma eleição] sabe que precisa dialogar com um terço do país e disputar esses votos. O que me preocupa é o eleitor, que, com frequência, especialmente nas redes, demonstra ainda muita insensibilidade. Sempre que uma entrevista como essa é publicada, há muito desrespeito. A professora Jacqueline Teixeira, da USP, é uma antropóloga que estuda mulheres na Igreja Universal e acompanhou nas campanhas eleitorais em 2018 as conversas dentro das redes de mulheres evangélicas da Universal. Ela percebeu o esforço que essas mulheres estavam fazendo para que a igreja não abraçasse oficialmente a candidatura do Bolsonaro. Esse esforço veio abaixo quando o candidato Fernando Haddad chamou o Edir Macedo de charlatão. Isso deu munição para as outras pessoas que eram a favor do Bolsonaro constrangessem essas mulheres, falando "a gente vai votar no cara que é contra a gente?". BBC News Brasil - Caso o ex-presidente Lula seja candidato, ele cometeria um erro assim? Spyer - Certamente, não. Primeiro, porque o ex-presidente Lula, ao contrário do Haddad, não vem das camadas médias da sociedade. Ele é muito mais identificado com o brasileiro que migrou do sertão do que o Haddad, então, é uma pessoa muito mais aberta ao tema da religião e que vivencia a questão da religião do que o Haddad - que, aliás, é uma pessoa por quem tenho muito respeito. Mas, em relação a esse aspecto, ele cometeu um erro que o Lula, caso ele se torne candidato, não repetirá. Além disso, Lula é menos associado aos temas identitários do que Haddad. Acredito, que, neste momento, ele vai dar mais ênfase às pautas econômicas e menos à moral e aos costumes. Mas Lula vai ter que, de alguma forma, convencer esse grupo de que ele não é contra as igrejas e que, dentro do histórico das esquerdas, não vai se posicionar de forma arrogante em relação a causas e temas que são importantes para os evangélicos. BBC News Brasil - Na última eleição, o voto evangélico foi majoritariamente para Bolsonaro e, para muitos, isso foi decisivo para sua eleição. Pesquisas apontam que esse eleitorado agora está dividido entre ele e Lula e, em alguns levantamentos, Lula está à frente. O que aconteceu? Spyer - O evangélico é predominantemente pobre. A maior parte do cristianismo evangélico cresce nas periferias urbanas, por conta da ausência do Estado, então, não só o evangélico, mas o brasileiro pobre entende que foi beneficiado pelas políticas de combate à pobreza dos governos petistas e que viveu seu melhor naquele período. O Lula é visto pelos pobres brasileiros como uma pessoa que, pela primeira vez na história do Brasil, governou pensando neles. A gente ouvia com muita frequência nas pesquisas da campanha de 2018 pessoas falando: "Minha mãe fez faculdade, que era o sonho da vida dela", "essa casa e esses móveis eu comprei durante os governos do PT", então, num primeiro momento, essa lembrança da vida mais próspera que beneficia Lula. Particularmente, o cristão entende a prosperidade como elemento importante de expressão da fé, ou seja, estar trabalhando, ter uma casa melhor, comprar uma moto, ter filho na escola particular são uma evidência de que ele está se comportando bem. Em um segundo momento, tenho a impressão que essas pesquisas refletem que Bolsonaro não é a expressão mais desejada por eles enquanto líder. Então, esses evangélicos, mesmo calados entre seus pares, na intimidade da urna ou das pesquisas, manifestam essa rejeição. A vantagem de Bolsonaro é que ele tem falado de forma aberta e explícita em favor das pautas morais que são caras para os evangélicos e em favor da liberdade religiosa. É um grande mérito dele. Ele conseguiu indicar um ministro evangélico, bancou essa candidatura com o apoio da bancada evangélica. Com isso, ele demonstrou para o evangélico pobre uma fidelidade, uma atenção com esse eleitor que não se sente representado, por exemplo, no Supremo [Tribunal Federal] em relação aos seus valores e visões de mundo. Mas a disputa não está ganha. No espaço da esquerda intelectualizada, progressista, há o problema de achar que as pessoas que abraçaram a candidatura de Lula rejeitaram a candidatura Bolsonaro. Uma hipótese minha é que tem muitas pessoas que diriam que se, um não estiver na disputa, votam no outro. BBC News Brasil - Ou seja, a disputa pelo voto evangélico ainda está em aberto? Spyer - Não só está em aberto como está em aberto antes das campanhas começarem. Ainda tem muita propaganda boca a boca, muito uso dessa infraestrutura de comunicação via WhatsApp, tem muita água para rolar. Tenho visto nos meus pares um alívio, achando que o Bolsonaro não será o próximo presidente do Brasil. É a mesma sensação de segurança que se tinha em janeiro de 2018 em relação ao candidato azarão que não tinha tempo de TV. Agora, esse candidato é presidente da República, tem a máquina pública a favor dele e costurou muitas relações com esses líderes evangélicos midiáticos que falam em defesa dele. Então, ele não é carta fora do baralho.
2022-02-10
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60312039
sociedade
6 mudanças simples para ter sucesso, segundo especialistas em gestão
Como vão as resoluções de Ano Novo? Os disciplinados devem estar com as resoluções indo de vento em popa. Mas muitos, a esta altura, já ficaram apenas nas boas intenções, enquanto ainda outros aceitam nossa natureza e já nem se preocupam em fazê-las. Mas, se você não se deu por vencido e está em busca de conselhos, as sugestões de Hirotaka Takeuchi, professor de práticas gerenciais da Faculdade de Administração Harvard (HBS, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, e Ikujiro Nonaka, professor emérito da Universidade Hitotsubashi, no Japão, talvez sejam úteis. Eles talvez não fossem as primeiras pessoas que você consultaria sobre questões pessoais, já que são descritos como "lendários especialistas de gestão" empresarial. É também o que diz a contracapa do livro The Wise Company: How Companies Create Continuous Innovation ("A companhia inteligente: como as empresas criam inovações contínuas", em tradução livre), publicado por eles em 2019. Mas eles elaboraram "seis práticas que permitem aos líderes empresariais criar futuros novos e melhores", segundo contaram em um recente artigo publicado na revista Long Range Planning. E, segundo Takeuchi, essas práticas também servem para superação pessoal e do mundo em geral. Fim do Matérias recomendadas A ideia é "fornecer informações sobre como reformular estratégias para enfrentar um mundo VUCA (caracterizado pela volatilidade, incerteza, complexidade e ambiguidade, na sigla em inglês), recentemente personificado pela pandemia". Por isso, sem mais delongas, aqui estão as "seis práticas para ter um futuro melhor". "À medida que adquirimos a capacidade de coletar e analisar mais dados com maior rapidez, a tomada de decisões e a resolução de problemas tornam-se cada vez mais complexas", segundo afirmou Takeuchi à publicação online da HBS, Working Knowledge. "Muitas pessoas recorrem à tecnologia para solucionar os problemas modernos, mas, quanto mais a tecnologia avança, cada vez mais raciocínio humano e criatividade são necessários para dar forma a ela e aplicá-la", segundo ele. Mas como? O especialista em administração recomenda algo que, em japonês, chama-se "kata", que é praticado nas escolas de artes marciais. A palavra descreve uma coreografia realizada em grupo ou isoladamente para memorizar e aperfeiçoar os movimentos que a compõem. Recentemente, essa palavra começou a ser usada em outros ambientes, como pelos artistas e programadores de computador, para indicar exercícios que são repetidos para atingir a perfeição. A ideia é criar uma rotina de algo continuamente necessário nos seus afazeres cotidianos, para que você possa fazer com perfeição quase sem pensar. Takeuchi sugere usar kata para manter seus pensamentos e ações sincronizados com a sua missão, seja em nível pessoal ou empresarial. Um exemplo famoso de kata são "os cinco porquês", criados na década de 1930 por Sakichi Toyoda, fundador da Toyota, e que são usados até hoje - e não apenas na empresa automobilística que ele fundou. A ideia é que, quando ocorrer um problema, não vale a pena perguntar quem é o responsável, nem procurar culpados. O importante é determinar as causas fundamentais dos problemas. Isso talvez seja mais fácil de compreender em nível empresarial, pois a maioria das empresas dedica tempo para estabelecer sua missão, visão e valores. Mas Takeuchi destaca que poucas pessoas conseguem verbalizar algo assim em nível pessoal. Para isso, ele sugere que você responda a três perguntas que não são nada fáceis: Existe uma tendência, em especial no Ocidente, de pensar nas coisas em termos de "isso ou aquilo", mas os problemas raramente são tão claros, segundo afirmou Takeuchi à HBS. "Essa tradição intelectual", segundo escrevem Takeuchi e Nonaka, "reflete-se nos debates sobre o dualismo, como mente contra o corpo, sujeito contra objeto, racionalidade contra empirismo, materialismo contra idealismo e muitos mais". "Em administração, ele é representado por debates sobre máquinas contra seres humanos, análise contra intuição, valor econômico contra social, uso contra exploração, egoísmo contra altruísmo etc.", segundo ele. Se, em vez de pensarmos em "isso ou aquilo", treinarmos a mente para pensar em "isso e aquilo, ou ambos", o resultado pode ser uma compreensão do mundo através da lente da unidade, na qual o que é bom para a pessoa ou a empresa também é bom para a sociedade. 4. Ler para compreender A empatia é um ingrediente essencial para manter relações saudáveis, seja com clientes, usuários ou com alguém influente, disse Takeuchi à HBS. E uma das melhores formas de "treinar o músculo da empatia" é ler, pois a leitura permite que você se coloque no lugar de outra pessoa. Os coautores defendem que a narração de histórias é a forma mais eficaz de comunicar ideias e promover a compreensão. "As histórias se transformam em um prisma através do qual vivem os seres humanos", segundo Nonaka e Takeuchi. E "o poder da retórica é algo que podemos aprender", segundo Takeuchi disse à HBS. Recomenda-se ouvir (ou ler) os 10 melhores discursos de todos os tempos ou as 10 palestras TED mais populares da sua história. O último conselho de Nonaka e Takeuchi, basicamente, é ter o céu como teto com frequência. Para eles, conectar-se à natureza aumenta nossa avaliação da necessidade de viver em harmonia com ela. E eles não se referem apenas a passeios no parque. Quando eles viajam para o exterior, sempre visitam algum mercado de rua, "pois é ali que se vê a vida real". Takeuchi recomenda especialmente começar a praticar uma atividade de alta energia ao ar livre este ano. Para ele, o ideal é esquiar. "Não existe nada como descer pela montanha a toda velocidade", afirmou ele à HBS.
2022-02-09
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60286460
sociedade
PGR investigará Monark e Kim Kataguiri por comentários sobre nazismo
O procurador-geral da República, Augusto Aras, determinou a apuração das declarações dadas no Flow Podcast pelo apresentador Bruno Aiub, conhecido como Monark, de que deveria haver um "partido nazista reconhecido pela lei", além da frase "se um cara quisesse ser antijudeu, eu acho que ele tinha o direito de ser". Ele disse no programa que foi ao ar na segunda-feira (07/02), em resposta a um questionamento da outra participante dessa edição do podcast, a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP), que a Alemanha errou ao criminalizar o nazismo. O coletivo Judeus e Judias pela Democracia São Paulo havia entrado na tarde desta terça (08/02) com um pedido para que a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), o Ministério Público Estadual de São Paulo (MPSP) e a Procuradoria-Geral da República investigassem se houve crimes de apologia ao nazismo, incitação à violência, injúria racial e intolerância religiosa. As declarações tiveram forte reação nas redes sociais. Monark divulgou um vídeo em que disse que estava "bêbado" durante sua participação no programa e falou que sua fala foi tirada de contexto. Fim do Matérias recomendadas Após a repercussão do caso, os Estúdios Flow divulgaram uma nota afirmando que Monark "está desligado" da empresa e que o episódio em questão será retirado do ar. A nota não informou mais detalhes sobre como se deu o desligamento — Monark é sócio-administrador dos Estúdios Flow. "Pedimos desculpas à comunidade judaica em especial e a todas as pessoas, bem como repudiamos todo e qualquer tipo de posicionamento que possa ferir, ignorar ou questionar a existência de alguém ou de uma sociedade", também diz a nota dos Estúdios Flow. Kataguiri emitiu um comunicado sobre a decisão de Aras dizendo que vai "colaborar com as investigações pois meu discurso foi absolutamente antinazista, não há nada de criminoso em defender que o nazismo seja repudiado com veemência no campo ideológico para que as atrocidades que conhecemos nunca sejam cometidas novamente". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Flow é um dos podcasts mais populares do país. Começou em 2018 e tem, só no YouTube, quase 3,7 milhões de inscritos. É também apresentado por Igor Coelho, conhecido como Igor 3K. Em outubro do ano passado, ao falar de racismo, Monark postou que "é a ação que faz o crime e não a opinião". A empresa iFood anunciou a retirada de seu patrocínio ao programa. O apresentador disse após as críticas que "muita gente interpretou minha defesa à liberdade de expressão como a defesa de opiniões hediondas como racismo ou homofobia", mas que considera essas expressões "abomináveis". Como reação às últimas declarações de Monark, a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (Ferj) anunciou o rompimento do contrato com o Estúdios Flow, que transmitiam jogos do Campeonato Carioca de 2022. A Flash Benefícios, patrocinadora do programa, declarou que foi solicitado "o encerramento formal e imediato de nossa relação contratual com os Estúdios Flow" diante de "comentários inadmissíveis". André Vereta-Nahoum, integrante do grupo Judeus e Judias pela Democracia São Paulo e professor do departamento de sociologia da USP, diz que nos últimos anos "a sensação que nós temos é que em nome de uma suposta liberdade de expressão algumas pessoas têm sido bastante francas em relação a judeus, judias, aos LGBTs, aos romani [ciganos], a todas as populações que foram as vítimas do Terceiro Reich [regime nazista]. Ficamos um pouco assustados". "Existe uma grande movimentação de episódios e de posicionamentos individuais e coletivos antissemitas. É a minha sensação, de que há uma maior preocupação. Esse assunto [antissemitismo] está mais visível", afirma Vereta-Nahoum. A Confederação Israelita do Brasil (Conib) divulgou nota em que "condena de forma veemente a defesa da existência de um partido nazista no Brasil e o 'direito de ser antijudeu', feita pelo apresentador Monark, do Flow Podcast. O nazismo prega a supremacia racial e o extermínio de grupos que considera 'inferiores'. Sob a liderança de Hitler, o nazismo comandou uma máquina de extermínio no coração da Europa que matou 6 milhões de judeus inocentes e também homossexuais, ciganos e outras minorias. O discurso de ódio e a defesa do discurso de ódio trazem consequências terríveis para a humanidade, e o nazismo é sua maior evidência histórica". A Federação Israelita do Estado de São Paulo também expressou seu repúdio às falas de Monark dizendo que reitera "nosso compromisso em combater ideias que coloquem em risco qualquer minoria. Manifestações como essa evidenciam o grau de descomprometimento do youtuber com a democracia e os direitos humanos".
2022-02-08
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60312139
sociedade
Por que é tão difícil fazer novos amigos na idade adulta?
Se você alguma vez tentou fazer novos amigos na idade adulta, provavelmente sabe por que a solidão nunca esteve tão presente entre as pessoas. Fazer novos amigos parece simplesmente muito difícil. Na escola, fazer amigos pode ser muito simples - basta ir brincar juntos. Mas, na idade adulta, construir, desenvolver e manter as amizades pode ser muito mais difícil. Isso é importante porque nós precisamos de amigos. Os velhos amigos são um tesouro, mas nada fica estático para sempre. Os velhos amigos se mudam ou seu tempo é ocupado pela criação dos filhos ou por suas carreiras. Se você não fizer nada, a solidão pode crescer silenciosamente à sua volta. Vale a pena levar isso a sério, pois há evidências que demonstram que a solidão crônica pode ser mortal. Seu impacto sobre a taxa de mortalidade é equivalente a fumar 15 cigarros por dia. E não é só você nessa situação. Em muitos países, a solidão assumiu proporções epidêmicas, antes mesmo que a covid-19 tornasse ainda mais difícil ver nossos amigos. Fim do Matérias recomendadas Antes da pandemia, cerca de um terço dos australianos relatava ter sentido pelo menos um episódio de solidão. Mas, depois que os imensos prejuízos causados pela covid-19 ao trabalho e à nossa vida social começaram a se alastrar, a solidão disparou. Pesquisas agora indicam que mais da metade (54%) dos australianos relata experiências de maior solidão desde o início da pandemia. Enquanto buscamos um novo normal para a covid, vale a pena fazer um inventário das suas amizades - e verificar se você acha que sua vida social está boa ou se algo poderia ser melhorado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quando os pesquisadores entrevistaram adultos sobre fazer amigos em um estudo recente, a maior dificuldade mencionada foi a falta de confiança. Ou seja, as pessoas agora têm mais dificuldade para depositar confiança em alguém novo e investir plenamente na sua amizade que quando eram mais jovens. Talvez seja por isso que muitas pessoas tentam manter seu círculo de velhos amigos ao máximo possível, em consideração à confiança formada ao longo de muitos anos. Quem achou mais difícil confiar nos outros? As mulheres foram mais inclinadas que os homens a afirmar que não faziam novos amigos facilmente porque tinham dificuldade de confiar nas outras pessoas. Mas qual o problema da idade adulta? Bem, nós, adultos, temos maior autoconsciência que as crianças. Embora muitas vezes seja positivo, isso também significa que estamos mais conscientes dos riscos de sermos julgados pelos demais, de que os outros não gostem de nós, de sermos rejeitados ou de sermos magoados. Ou talvez signifique apenas que nós passamos pelo ensino médio e que já tivemos 20 anos de idade. Se nós já tivermos sido rejeitados em nossas amizades ou sofrido quebras de confiança, talvez seja mais difícil confiar nas pessoas no futuro. Confiar em um amigo novo significa que iremos nos abrir e ficaremos vulneráveis, da mesma forma que nos relacionamentos. Depois da questão da confiança, vem o tempo. "Falta de tempo" foi a segunda razão mais comum relatada pelas pessoas, depois da "falta de confiança", quando consultadas sobre a razão por que acham mais difícil fazer amigos na idade adulta. Isso não é novidade para muitos de nós. Quando temos cronogramas de trabalho rigorosos, grande envolvimento na vida familiar ou uma combinação de ambos, nosso tempo para investir em amizades diminui. Mesmo quando conhecemos um novo amigo promissor, pode ser difícil encontrar tempo para investir na sua amizade. Isso é um problema maior para os adultos com mais idade, quando a maioria das pessoas vê suas obrigações aumentarem. Quanto tempo realmente leva para fazer amigos? É claro que as amizades mais próximas levam mais tempo para se construir que os conhecidos casuais. Pesquisadores norte-americanos tentaram quantificar essa questão, estimando que são necessárias cerca de 50 horas de contato compartilhado para fazer com que conhecidos se tornem amigos casuais - e mais de 200 horas para que se tornem amigos próximos. Mais do que isso, as horas passadas juntas precisam ter qualidade. Embora você possa passar tempo com seus colegas de trabalho, as interações profissionais não contam muito. Para desenvolver uma nova amizade, é preciso ter conexão pessoal. E não é necessário ter conversas íntimas para fortalecer a amizade. Cumprimentos casuais e brincadeiras podem ter a mesma relevância. Existem muitas outras barreiras que nos impedem de ter as amizades que queremos. Elas podem incluir personalidade introvertida, barreiras de saúde, inseguranças pessoais ou a construção de uma fachada formal que não permite a entrada de amigos em potencial. As pessoas mais idosas têm maior possibilidade de mencionar doenças e incapacidades como barreiras para a socialização, enquanto adultos mais jovens são mais propensos a ser impedidos pela introversão e pelo medo da rejeição. É totalmente possível superar essas barreiras na idade adulta e estabelecer amizades significativas e duradouras. Não precisamos aceitar a solidão como inevitável. E, embora você possa achar que as outras pessoas têm uma ótima vida social, lembre-se que a solidão é generalizada. Passar dez minutos por dia fortalecendo amizades Você não precisa escalar montanhas, nem unir-se intensamente em torno de um hobby comum, para solidificar uma nova amizade. Se você dedicar dez minutos por dia, poderá manter as amizades existentes e construir novas. Envie um texto, encaminhe um meme, adicione ao grupo de bate-papo ou telefone para alguém rapidamente. Não se preocupe com a quantidade de tempo, esforço e energia necessária para construir amizades. Dez minutos por dia podem ser tudo o que você precisa. Aproveite todo o tempo com qualidade Quando você conseguir um tempo apropriado para passar com um amigo ou conhecido, aproveite da melhor forma. Evite distrações se for possível, deixe as redes sociais em casa e esteja presente com seu novo amigo. Mergulhe na sua vulnerabilidade Muitas vezes ficamos assustados com a ideia de sermos vulneráveis. Mas eu acho que deveríamos abraçar essa ideia. Lembre-se de que você controla o quanto você confia e até onde você se abre. Se você tem problemas para confiar nas pessoas, tente compartilhar suas informações pessoais lentamente e não todas de uma vez. Sim, existem riscos quando estamos vulneráveis. Mas também há o potencial de formar uma forte conexão com outra pessoa que pode muito bem tornar-se um bom amigo. E esta recompensa vale a pena. * Anastasia Hronis é psicóloga clínica da Universidade de Tecnologia de Sydney, na Austrália. Ahora puedes recibir notificaciones de BBC News Mundo. 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2022-02-07
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60286091
sociedade
'Cresci sozinho sob guarda do Estado. Por que nunca me disseram que tinha irmãos?'
O jornalista da BBC Ashley John-Baptiste cresceu sob a guarda do Estado acreditando que fosse filho único. Até que, do nada, recebeu uma mensagem de um irmão que ele não sabia que existia. Isso acabou motivando Ashley a investigar o que viver sem os irmãos significa para as crianças do sistema britânico de acolhimento. A seguir, ele conta sua história, apresentada em um documentário da BBC. Entrei para a guarda do Estado quando era bebê. Quando completei 18 anos, já tinha passado por quatro famílias de acolhimento e um abrigo residencial no sudeste de Londres. É muito difícil descrever como foi crescer em tantos lares diferentes. Eu sentia uma nuvem de rejeição sobre a minha cabeça — sem sentido de família, sem sentido de pertencimento. Eu conheci minha mãe biológica quando tinha 10 anos, mas nunca conheci meu pai. Sempre me perguntei por que não fui adotado — será que havia essa possibilidade? Viver naquele abrigo residencial com outras crianças me deu a primeira sensação de irmandade, mas eu não tinha controle sobre os nossos relacionamentos a longo prazo. Cada um de nós se mudaria em algum momento e desapareceria da vida dos demais. As crianças colocadas sob a guarda do Estado recebem sessões de "história de vida" dos seus responsáveis locais. Nessas ocasiões, um assistente social conta à criança o que eles sabem sobre os antecedentes e o histórico da sua família. Eu tinha cerca de sete anos quando tive a minha sessão e me disseram que eu era filho único. Fim do Matérias recomendadas Por isso, foi um enorme choque quando eu estava na casa dos 20 anos de idade e um homem me enviou uma mensagem pelo Facebook, dizendo que era meu irmão mais velho. Ainda me lembro da profunda sensação de confusão que senti quando li sua mensagem pela primeira vez. Eu precisei ler e reler diversas vezes aquela mensagem. Levei um tempo para responder, mas, quando nos falamos, percebemos que tínhamos o mesmo pai, mas mães diferentes; que tínhamos outros irmãos perdidos em algum lugar; e — o mais surpreendente para mim — que vivíamos na mesma região. Durante todo esse tempo, meu irmão estava vivendo perto de mim. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar da intensa curiosidade despertada por essas conversas iniciais, nunca planejamos nos encontrar pessoalmente. Eu gostava de receber mensagens do meu irmão recém-encontrado, mas nunca me senti pronto para um encontro presencial. Até que, quatro anos atrás, nós paramos de trocar mensagens. Mas, na primavera inglesa de 2020, eu estava levando minha filha recém-nascida para um check-up no hospital e o encontrei por acaso. Eu estava saindo do hospital enquanto ele entrava para visitar um parente doente. Eu o reconheci imediatamente. Eu o chamei encabulado e, para meu alívio, ele me reconheceu. Parece que ficamos anos conversando no hospital. Apesar de ser a primeira vez em que nos encontrávamos, a conversa fluiu de maneira fácil e natural. Era como se nos conhecêssemos já a vida inteira. Eu apresentei minha filha a ele. Ela conheceu o tio. Tiramos uma foto juntos em um momento familiar inesperado. Eu nunca mais o encontrei desde então, mas aquele momento mudou profundamente a minha vida. Encontrar meu irmão me fez pensar como as coisas poderiam ter sido diferentes se eu tivesse conhecido meus irmãos quando era mais jovem. Agora eu sei que tenho pelo menos quatro irmãos, todos mais velhos do que eu. A cada vez que me mudava de casa quando estava em acolhimento, eu era forçado a integrar-me a uma nova família, em uma comunidade diferente, e fazer novos amigos. Meu sentido de identidade na infância foi fragmentado entre as casas em que vivi. Não havia ninguém que me conhecesse ao longo de todas as minhas mudanças. Encontrar meu irmão me fez imaginar como tudo teria se passado se eu tivesse contato regular com meus irmãos durante todas as mudanças de guarda. Imagine se eu tivesse alguém como ele com quem conversar, que me visse crescer. Teria sido uma tábua de salvação. Mesmo alguns encontros por ano enquanto eu estava sob a guarda do Estado poderiam ter sido a base de um relacionamento na idade adulta. Eu deixei a guarda do Estado aos 18 anos e morei sozinho em uma habitação social até entrar na universidade. Viver sozinho e ser forçado a me sustentar trouxe um sentimento de abandono e isolamento para o qual eu não estava preparado. Embora eu tivesse amigos incríveis para aliviar a intensidade emocional de sair da guarda do Estado, conhecer meus irmãos naquela etapa da vida poderia ter me dado um sentido de família e de pertencimento. Talvez tivesse tido uma chance de passar o Natal com a família ou ter um lugar para onde voltar entre os semestres da universidade. Em nosso encontro no hospital, meu irmão pareceu entender tudo o que eu estava dizendo. Ele tinha uma compreensão implícita da minha jornada e dos meus pontos de vista. Havia uma conexão entre nós. Fiquei perplexo por nenhum dos meus assistentes sociais aparentemente saber da existência dos meus irmãos. Conversei com minha assistente social mais antiga, Rosalyn Payne, que cuidou de mim entre os 15 e 18 anos de idade, durante meu documentário para a BBC. Ela ficou surpresa ao saber que eu tinha um irmão. Mas por que não havia nenhuma informação sobre minha família nos meus arquivos? Rosalyn me contou que a pesquisa dos arquivos e informações avançou muito. "Naquele tempo, tínhamos arquivos de papel. Hoje, temos arquivos eletrônicos." Mas ela ressalta que esta não foi a única dificuldade. "As famílias nem sempre nos dizem o que queremos saber. Isso acontece muito, os familiares retêm informações." Então perguntei algo que nunca havia ousado perguntar antes: alguma vez foi considerada a hipótese da minha adoção? Ela me disse que, de fato, fui colocado para adoção quando era muito jovem, mas o casal que planejava me adotar engravidou e abandonou o processo. Essa notícia foi devastadora — compreender que, naquele momento, minha vida poderia ter sido completamente diferente. Por mais difíceis que sejam essas questões, eu acho que elas são importantes. Todos querem saber quem são e de onde vieram. Procuramos para o documentário uma perspectiva nacional sobre o tratamento das relações entre irmãos no sistema de acolhimento do Estado britânico, mas existem poucos dados. A BBC enviou mais de 200 solicitações para as administrações britânicas locais, com base na lei da Liberdade de Informação. Cerca de 75% das autoridades consultadas responderam. Segundo essas respostas, cerca da metade dos grupos de irmãos sob a guarda do Estado são divididos (45%) e mais de 12 mil crianças foram separadas de pelo menos um dos seus irmãos. Essa situação pode causar impactos por toda a vida. Eu conheci Saskia, que tem 24 anos de idade. Ela é de Manchester, na Inglaterra, e foi levada para a guarda do Estado com seus dois irmãos depois de ter sido resgatada da sua família biológica. Eles foram adotados, mas sua nova casa não era um porto seguro. Saskia e seus irmãos sofreram abusos psicológicos e negligência por uma década no lar adotivo. Quando a adoção se desfez, eles voltaram para a guarda do Estado, onde logo foram divididos e enviados a locais e regiões diferentes. Na época, Saskia tinha 11 anos e seu contato com os irmãos se rompeu de vez alguns anos mais tarde. Ela conta que afastar-se deles fez com que ela "perdesse sua força". "Perdi uma parte fundamental de mim mesma", segundo ela. "Éramos nós três contra o mundo, sempre tinha sido assim. Às vezes, os irmãos são tudo o que resta. Se você os afasta, você está tirando o último pedaço da identidade de uma pessoa." Saskia agora é assistente social formada, o que lhe deu uma nova perspectiva. Analisando sua história, ela sente que eles deveriam ter sido mantidos juntos. Seu irmão mais novo, Toby, teve sérios problemas e chegou a passar algum tempo na prisão. Ele agora tem um emprego, mas conta que suas experiências na infância fizeram com que ele se tornasse uma pessoa bastante ressentida. "Mesmo quando a vida vai bem, ainda encontro alguma forma de ser negativo sobre ela." Depois que saíram da guarda do Estado, eles conseguiram restabelecer relações. "Meus irmãos ainda estão na minha vida. Tenho sorte. Eu me considero muito abençoada", relata Saskia. Segundo a legislação em todo o Reino Unido, irmãos devem ser mantidos juntos quando for possível e seguro fazê-lo. Mas, com o aumento do número de crianças sob a guarda do Estado, simplesmente não há cuidadores suficientes para o acolhimento — especialmente agora que as crianças, pelas regras, precisam de um quarto cada uma. Tudo isso representa dificuldades para as administrações locais. Eu falei com a diretora do departamento de assistência a crianças do Conselho Municipal de Derby, na Inglaterra, Suanne Lim. Ela disse que não tem recursos suficientes para atender a todas as crianças sob a guarda do Estado na sua região — mesmo com os fundos adicionais oferecidos pelo governo para famílias vulneráveis durante a pandemia. "Estamos muito, muito sobrecarregados. Tem havido cortes nos serviços que oferecemos, ano após ano, e a demanda continua aumentando", afirma ela. "As entidades locais estão chegando ao seu limite." Durante a pandemia, o conselho municipal de Derby foi pioneiro na formação de uma equipe de assistência rápida para apoiar famílias vulneráveis e evitar que ainda mais crianças ingressassem no sistema. A equipe afirma ter ajudado, ao longo dos últimos 15 meses, 60 famílias a permanecer juntas, evitando que 50 grupos de irmãos fossem separados. É claro que os assistentes sociais estão sob enorme pressão. Mas, enquanto isso, muitas crianças sob a guarda do Estado são separadas dos seus irmãos e não recebem as merecidas informações sobre suas famílias. Na Escócia, a legislação foi recentemente alterada para dar aos irmãos maior controle sobre seus relacionamentos. A iniciativa Star, no condado de Fife, promove reuniões de grupos de irmãos separados sob a guarda do Estado, que têm a oportunidade de encontrar-se no campo em intervalos de poucos meses, conviver e restabelecer seus laços. "Eles passaram por muita coisa. Vamos oferecer uma tábua de salvação", afirma Karen Morrison, a cuidadora que administra a iniciativa. "Não estamos fazendo a diferença apenas agora, mas também para quando eles saírem do sistema de acolhimento." A Comissária Infantil da Inglaterra, Rachel de Souza, afirmou à BBC que apoiaria uma nova legislação para manter os irmãos juntos. Ela publicou um novo relatório com base nas opiniões de 6 mil crianças sob a guarda do Estado. Ainda neste ano devem ser publicadas as conclusões e recomendações de uma análise independente do sistema de acolhimento da Inglaterra. No meu caso, consegui as respostas a outras questões que eu tinha sobre quem sou eu e de onde vim. Embora eu não tenha crescido com meus irmãos, agora tenho a possibilidade de conhecê-los. Mas o mais importante talvez seja que eu posso dizer à minha filha que ela tem um tio.
2022-02-04
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60253807
sociedade
Vitiligo: pessoas com a doença dizem que presença de Natália no BBB ajudou a debater preconceito
Nenhuma palavra. Apenas olhares de julgamento, nojo, repulsa, negação e dó. "Isso é o mais dolorido para quem tem vitiligo", disse Maika Celi, de 43 anos, ativista e mentora da primeira lei de conscientização sobre o vitiligo no Brasil. Ela contou à BBC News Brasil que a maior parte dos relatos de quem a procura é sobre a rejeição das outras pessoas por conta da doença. Em resposta a esse julgamento silencioso, quem descobre ter vitiligo costuma usar maquiagem, calça comprida, camiseta de manga longa e luvas. Independentemente da temperatura ou ambiente onde estão, numa tentativa contínua de esconder o próprio corpo. O debate sobre a doença autoimune que causa uma despigmentação da pele cresceu nas últimas semanas, por conta da presença da modelo e designer de unhas, Natália Deodato, no Big Brother Brasil. Com vitiligo em grande parte do corpo, ela acendeu um debate sobre o assunto e se tornou alvo de ofensas. Nas redes sociais, surgiram piadas sobre a doença, mas ao mesmo tempo surgiu um exército para defender as pessoas com vitiligo. Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia, dados oficiais apontam que o vitiligo atinge cerca de 1% da população mundial e aproximadamente 1 milhão de pessoas no Brasil. Fim do Matérias recomendadas Especialistas consultados pela reportagem afirmaram que, além de não ser transmissível, o vitiligo reduz a chance de a pessoa ter câncer de pele. O principal contraponto é tornar a área sem as células de melanina, atacadas pelo próprio corpo, mais sensível ao sol. Depois que um colega de trabalho fez uma piada nas redes sociais sobre o vitiligo de Maika Celi, em 2016, a ativista disse ter se sentido muito magoada, mas usou o Facebook para fazer um desabafo e responder à agressão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Veio uma força maior e um sentimento de que ninguém mais me humilharia por conta do vitiligo. Até então, eu sempre me colocava como vítima, mas mudei para protagonista. Eu não imaginava que a publicação fosse alcançar tantas pessoas. Foi quando iniciei o projeto 'Meu lugar ao Sol', com uma página para compartilhar minhas experiências e de outras pessoas com vitiligo", conta. O alcance das publicações cresceu repentinamente. Maika foi chamada para dar entrevista na TV e, em pouco tempo, passou a receber mensagens de pessoas dizendo ter sido inspiradas a aceitar e a deixar de sentir vergonha por ter a doença. "Eu recebi até a mensagem de uma mulher com vitiligo que nunca tinha usado um short perto do filho. Ela usou uma saia, como gesto para presentear o filho dela no dia do aniversário dele, depois de ler meus depoimentos. Aquilo foi libertador. Ela disse: 'Maika, por favor, eu te peço, não pare', afirmou. A ativista disse que trabalha para que o processo de aceitação de outras pessoas em relação à doença seja "mais leve" e para que elas não passem por momentos de tristeza profunda devido à falta de informação e de conscientização. Ela conta que ficava muito abalada com comentários e "olhares de julgamento" por conta do vitiligo dela. Mas hoje diz que o principal motivo de seu bem-estar é estar segura de si mesma. "A pessoa deve entender que, quando ela está bem com suas imperfeições, ninguém tem o poder de desequilibrá-la ou humilhá-la. É um trabalho de autoconfiança e autoconhecimento que traz essa segurança e não permite que ela se abale com qualquer conceito", disse. Ela se vê como uma referência para pessoas que descobrem a doença e não sabem lidar com o preconceito, estão à procura de informações ou querem apenas ouvir alguém com mais experiência. "Não é sendo arrogante, mas muitas pessoas me procuram. Uma seguidora disse que entrou num restaurante e uma pessoa ficou olhando para as manchas dela. Ela pensou: 'O que a Maika faria? Empinaria o nariz, encararia a pessoa e daria um sorriso', me contou". Em entrevista à BBC News Brasil, o dermatologista especialista em vitiligo, Paulo Luzio, disse que é necessário ter uma genética para desenvolver a doença, aliada a um grande estresse. "A pessoa pode ter a genética e passar a vida inteira sem que a doença se manifeste. Para ela entrar em atividade, é necessário um fator ambiental: o estresse. Ela é uma doença 100% ligada ao emocional e, na maioria dos casos, você tem uma história clara do que desencadeou", afirmou. No caso da Maika, a doença foi desencadeada após um acidente de moto que ela sofreu aos 22 anos. Após lesionar algumas partes do corpo, ela percebeu que as feridas pareciam não voltar à cor anterior e outras manchas surgiram. Depois de procurar especialistas, Maika disse que ouviu o diagnóstico de maneira depreciativa por uma médica. "Nossa, que pena, você tem vitiligo", conta a ativista. Maika diz ainda que não aceitava a pele dela assim que descobriu a doença. Evitava frequentar lugares onde poderia expor sua pele, como praia, parques e churrascos. "Quando surgiu no meu rosto, eu me maquiava demais. Só usava calça e blusa de manga longa, mesmo no calor de 40ºC. As pessoas perguntavam se eu estava bem e eu dizia que sim, mas por dentro eu estava assando", lembrou. O modelo Roger Monte, de 38 anos, disse que tem vitiligo desde os 23, quando a doença se manifestou a partir de um furo que ele tinha no queixo e se agravou por conta de um estresse causado pelo término de um relacionamento. Mas, só aos 35 anos ele passou a aceitar as mudanças no corpo e, aos poucos, passou a ser procurado para ser fotografado. "Até então, eu não frequentava a praia porque ficava com medo da maquiagem que eu passava derreter e as pessoas verem minha pele. Passei mais de 10 anos me escondendo, fazendo tatuagens grandes apenas para esconder manchas no corpo. Hoje, quanto mais eu mostro, melhor", afirmou em entrevista à BBC News Brasil. Tanto Maika Celi quanto Roger Monte, citaram Winnie Harlow, modelo canadense com vitiligo, como referência de pessoa com autoconfiança e auto aceitação. Quebrando paradigmas, a modelo se tornou uma figura conhecida mundialmente e já acumula 9,3 milhões de seguidores no Instagram. "No Brasil, nunca tive uma referência dessa, então, quero ser a referência e a ajuda que eu não tive", afirmou o modelo Roger Monte. "Como eu costumo dizer, as coisas mudaram quando eu comecei a mudar a forma como eu me olhava. O julgamento das pessoas e a maneira que elas se afastavam de mim, me doíam e eu levava para o coração. Uma vez, um senhor na estação do metrô me disse que o irmão dele tomou sangue de tatu para curar a doença. Em outra situação, uma mulher no ônibus falou que eu tinha que tratar porque o vitiligo poderia me matar. Depois que ela desceu, eu senti todo mundo me olhando e fiquei de cabeça baixa. Aquilo nunca saiu da minha memória. Hoje, como acho minha pele linda, quando sinto alguém me olhando assim ou querendo me passar receitas, apenas ignoro", disse Roger Monte. Os entrevistados pela reportagem da BBC disseram que a presença da Natália Deodato no Big Brother estimula o debate sobre o vitiligo e quebra paradigmas sobre o assunto. Maika disse que essa presença inaugura uma nova fase da história do vitiligo no Brasil. "A escolha dela foi mais uma quebra de paradigmas no que diz respeito a padrões na nossa sociedade. Quando fui ao supermercado, a moça do caixa me falou: você viu que no BBB tem uma pessoa igual você? Isso pra mim foi uma vitória", afirmou. Para ela, a visibilidade e o estímulo ao debate causado pela presença da Natália no BBB serão essenciais para ajudar principalmente a derrubar antigos mitos, como o de que o vitiligo é contagioso. Por outro lado, o dermatologista Paulo Luzio afirma que também é importante esclarecer que a afirmação da Natália de que o vitiligo pode "evoluir" para o albinismo é incorreta. "São genéticas e doenças diferentes. No albinismo, você tem as células de pigmento em número normal, mas elas não funcionam, de maneira simplificada. No vitiligo, há células, mas elas vão morrendo pelo sistema imunológico. Quando ela atinge mais de 70% do corpo, é chamada de vitiligo universal, mas não é albinismo", afirmou. O médico, membro da Global Vitiligo Foundation e que, há 16 anos, trata apenas casos da doença, disse ainda que o albinismo aumenta a chance de o paciente ter câncer de pele, enquanto o vitiligo diminui. "O vitiligo tem a proteína P53, que corrige danos no DNA e que diminui a chance de ter um câncer. Por outro lado, as manchas do vitiligo queimam mais facilmente e podem dar bolhas, o que exige que a pele esteja sempre com protetor solar", afirmou. O especialista explica ainda que ter a genética do vitiligo não significa que ela se manifestará no paciente. Segundo ele, o fato de alguém na família ter vitiligo aumenta as chances em torno de 30%. O médico afirma que alguns tratamentos com laser, uso constante de protetor solar e outros cremes ajudam a diminuir as manchas causadas pelo vitiligo, mas que a doença não causa nenhum problema de saúde. "O tratamento é uma opção, mas a autoaceitação é o mais importante. Temos que nos aceitar como a gente é. Cerca de 20% dos pacientes reclamam de coceira no local da mancha, especialmente quando elas estão surgindo. Depois, é basicamente tomar cuidado para não queimar no sol", afirmou. Entre os mitos e simpatias usados para tentar curar a vitiligo, o médico disse já ter ouvido dezenas de relatos diferentes. Entre eles, está o uso de chás e produtos de origem animal, como tomar sangue de tatu e cágado cru. "Eu atendi uma paciente que era uma criança e que tomou, instruída pelos responsáveis, um copo de fígado de boi cru batido com caju durante anos. A crença deles era de que isso diminuiria as manchas", contou o médico. Ele disse que a medicina avançou e hoje há diversos tratamentos e medicamentos disponíveis para quem deseja reduzir as manchas. Há remédios de uso oral, utópico, fototerapia, injeções e até mesmo transplante de melanócito. Para a ativista Maika Celi, há quatro pilares principais que devem ser considerados por quem tem vitiligo: aceitação, amor próprio, conscientização e permitir-se. "Eu levanto isso como assunto principal. Sempre digo quantas oportunidades perdi por não me permitir. Se a Natália está no BBB, é porque se permitiu. Ainda tem outro fator como mulher preta. imagine o tabu que ela precisou quebrar". Segundo o dermatologista Paulo Luzio, uma das limitações para o tratamento do vitiligo é ter poucos profissionais qualificados para avaliar e tratá-lo. Ele menciona que os americanos são fortes em realizar pesquisas, mas têm poucos pacientes para tratar. Em congressos americanos que promovem encontros com especialistas em dermatologia, contou à reportagem, comparecem apenas cerca de 30 dedicados ao vitiligo e, geralmente, são sempre os mesmos. "Hoje, em livros de dermatologia com 3.500 páginas, por exemplo, apenas 3 páginas são dedicadas ao vitiligo, e não falam coisa com coisa. É decepcionante. É como se fosse menos importante", afirma o dermatologista. Em 2018, Maika Celi entrou em contato com a Câmara de Vereadores de Piracicaba, cidade onde ela vive no interior paulista, para relatar que estava sentindo falta de uma lei municipal que tratasse sobre o vitiligo. "Eles acharam interessante e, em 2019, foi criada a Lei Municipal de Conscientização do Vitiligo, lembrada sempre no dia 25 de junho, o Dia Mundial de Conscientização do Vitiligo. Depois dessa iniciativa, outros municípios sentiram a necessidade de levar essa ideia e já foram aprovadas leis semelhantes em Saltinho e Santa Bárbara d'Oeste", contou. Ela disse que a aprovação da lei ajuda na promoção de eventos, rodas de conversa, palestras e exposição de fotos em áreas públicas e escolas, por exemplo. Agora, a intenção de Maika é pressionar os órgãos públicos para que seja fornecido filtro solar pelo sistema público de saúde às pessoas com vitiligo.
2022-02-01
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60224367
sociedade
Iemanjá, a divindade africana que ganhou feição branca no Brasil
Se a água é a substância fundamental para a vida, talvez não haja metáfora melhor para representar a mãe da humanidade. Iemanjá, divindade cuja data é celebrada em 2 de fevereiro, é a rainha das águas e, acreditam os que a cultuam, a figura materna que irmana todas as pessoas. Em terras brasileiras — ou seja, nas práticas religiosas trazidas por africanos na diáspora forçada durante os séculos de regime escravagista e tráfico de mão de obra compulsória —, o orixá feminino ganhou ainda um significado que remete à ancestralidade. Afinal, se entendermos as costas brasileira e do continente africano como duas margens do mesmo imenso rio, o Oceano Atlântico, é Iemanjá quem promove a união, por ser ela a divindade das águas. "Iemanjá é a representação da grande mãe da tradição iorubá", explica o sociólogo, antropólogo e babalorixá Rodney William Eugênio, doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Fim do Matérias recomendadas "Seu nome vem da expressão 'a mãe dos peixes' ou 'a mãe cujos filhos são como peixes'. É considerada a mãe de todos, a que nos prepara para a vida, nos dá a imensidão das águas para que possamos realizar todas as potencialidades", afirma Eugênio. Na língua original, seu nome é Yemoja. Contudo, atualmente há uma aparente contradição que se torna evidente: se a divindade é originalmente negra, por que sua representação mais comum em terras brasileiras é uma mulher branca? A resposta estaria na violência do processo de sincretismo, muitas vezes romantizado como algo inerente à chamada "democracia racial". Para os que creem na divindade, ela tem a propriedade de "comandar as cabeças", reger o domínio da consciência. "Na tradição iorubá, dizem que a cabeça carrega o corpo, então, é ela quem traz o equilíbrio emocional e psíquico", prossegue o babalorixá Eugênio. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Yemoja é a mãe de todas as águas. Se existe água, existe Yemoja, se nós existimos é porque Yemoja existe. Não há uma cabeça que Yemoja não tocou e cuidou. e não há uma cabeça que Yemoja não possa tocar e cuidar", diz a estudiosa do tema Yasmin Fernandes Sales dos Santos, psicóloga e mestre em sociologia política. "Iemanjá é um orixá, ou seja, uma divindade africana cultuada a partir do panteão divino dos povos iorubás. Embora, no Brasil, assuma títulos e características de 'rainha do mar', na África, é cultuada na região de Abeokutá, na Nigéria, onde seus cultos se estabeleceram inicialmente nas águas doces do rio Yemoja, entre Ifé e Ibadan", contextualiza o sacerdote de umbanda David Dias, pesquisador em ciência da religião na PUC-SP. Ou seja: para os iorubás, ela é a divindade dos rios. Essa transposição para os mares é resultado do movimento de diáspora quando, já nos chamados navios negreiros, a ela continuaram recorrendo os "seus filhos". Dias explica que por ser "orixá das cabeças", ela "concede saúde mental" e "propõe harmonia entre o sentimento e a razão". "Esta orixá traduz o símbolo feminino das mulheres dos seios fartos, é capaz de alimentar todo o mundo. É a orixá que nutre, que alimenta, gerando abundância e prosperidade às suas filhas e seus filhos", completa. Eugênio ressalta que todo orixá tem seus arquétipos mas o que sintetiza Iemanjá é o da "grande mãe". "Todos somos filhos de Iemanjá, ela é a grande mãe do mundo, a representação das águas que, pelos oceanos, unem todos os continentes", argumenta ele. "Ela traz também essa noção fundamental de ancestralidade." "A mensagem de Iemanjá para a humanidade é de união, de respeito, de igualdade. Todos lembrando que somos filhos dela, somos irmãos", resume o babalorixá. "Na festa de Iemanjá estão todos, não só os adeptos do candomblé. São pessoas de várias origens, várias crenças e ela abençoa a todos sem nenhuma distinção." Os estudiosos ouvidos pela reportagem acreditam que a divindade ganhou importância no Brasil justamente por conta do processo de escravização. Por ter ela esse papel materno e, consequentemente, fazer de todo uma só família, ela foi fundamental para refazer os laços dos escravos separados de seus parentes durante o processo de migração violenta e forçada. "Em torno dela as famílias se organizam", diz Eugênio. "Para as religiões de matriz africana, ela foi a possibilidade de refazer, reinventar a família, que no processo de escravização havia sido esfacelada. Em termos simbólicos, Iemanjá representou o compromisso de recriar a família, promover a união na diáspora." Para o historiador Guilherme Watanabe, pai de santo do terreiro Urubatão da Guia, em São Paulo e membro fundador do Coletivo Navalha, no Brasil o culto a Iemanjá foi a resposta "ao rompimento dos laços familiares e afetivos" causados pelo regime escravocrata. "Com o sequestro das famílias africanas, há episódios de mortes de familiares ainda nos navios negreiros e a separação deles no desembarque, quando eram encaminhados para locais diferentes de trabalho", pontua. "Ser filho ou filha de orixá era uma forma de estarem ligados à sua origem ancestral, uma forma de recapitular o passado, reestruturar os laços." No Brasil, a devoção a ela "extrapola as religiões de matriz africana", ressalta Eugênio. "Todos os brasileiros de um jeito ou de outro são devotos dela. Ela é a grande mãe do povo brasileiro, faz parte do imaginário. Está profundamente arraigada em nossa formação." "Há quem diga que Iemanjá é uma santa católica, muita gente confunde e acha isso. Isso é um traço de aculturação que faz parte da formação do povo brasileiro. Vamos juntando elementos", prossegue Eugênio. "Ela é uma senhora de ancas largas, que pariu toda a humanidade e todos os orixás. Com seus seios fartos amamentou toda a humanidade", diz Eugênio. "Dizem que os rios são como o leite de Iemanjá escorrendo em direção ao oceano. Se temos uma mãe em comum também temos elos, os mesmos direitos." Na questão da representação reside o principal problema da maneira como Iemanjá acabou sendo incorporada ao imaginário brasileiro. Porque, originalmente uma divindade africana, é natural que suas primeiras e originais representações fossem de uma mãe negra. E seu embranquecimento é visto, por estudiosos atuais, como resultado de uma construção racista do século 20, que buscou tornar suas feições mais "europeias". Nesse sentido, uma violência cultural. "A figura de Iemanjá que está no imaginário coletivo é aquela imagem da mulher branca de cabelos longos com sua túnica azul, se confundindo um pouco com as águas do mar", pontua Eugênio. "Foi um processo de aculturação que levou à difusão dessa imagem. Tem a ver com sincretismo, com a aculturação. Para o babalorixá, "isso tem de ser respeitado". "Povos diferentes, quando convivem, ou eles sincretizam ou eles se matam. Então é importante respeitar, embora essas coisas tenham sido impostas: um povo é submetido à violência de abarcar uma outra cultura e então acaba assimilando essa cultura". Outros pesquisadores do assunto têm uma postura mais crítica frente a essa transformação. Watanabe ressalta que a ideia de sincretismo "apaga os processos históricos que deram origem a esse amálgama de divindades." Mas reconhece que o sincretismo existe inclusive com tradições indígenas. "Muitas vezes Iemanjá é confundida com Janaína, que seria a divindade da cultura dos povos originários do Brasil, uma sereia", exemplifica. Evidentemente que o processo mais dominador e muitas vezes violento dessa mistura se deu mediante o choque desigual com a religiosidade trazida pelos europeus. "Entender que o processo violento de sincretismo foi útil para que muita sabedorias ancestrais vindas na diáspora sobrevivessem até hoje é fundamental", afirma Santos. "Mas é fundamental também entender que, diante de tantos outros processos de mudança, nós, sobretudo mais novos, não precisamos do sincretismos como os nossos mais velhos precisaram num outro tempo para dar continuidade ao culto." Durante o período da escravidão, para conseguirem manter seus cultos, era comum que os africanos e seus descendentes precisassem recorrer a figuras do catolicismo. "Eles eram proibidos por seus senhores brancos e também pelos religiosos católicos de manterem suas crenças e então uma forma que encontraram para continuar foi disfarçando suas divindades de santos católicos", contextualiza a jornalista Bell Kranz, autora do livro 21 Nossas Senhoras que Inspiram o Brasil. Em suas pesquisas ela encontrou associações de Iemanjá com diversas denominações de Nossa Senhora. "Especialmente Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora das Candeias", pontua ela. Não é por coincidência, aliás, que o 2 de fevereiro é tanto dia de Iemanjá como de Nossa Senhora das Candeias — também chamada de Nossa Senhora da Luz. O arquétipo semelhante também ajudou nessa situação. Para os cristãos, afinal, a figura de Nossa Senhora é a mãe de Jesus. Especialmente para os católicos, ela também é reconhecida como mãe da humanidade, mãe de todos, senhora da família. E se você já usou branco numa festa de Revéillon, conscientemente ou não, também participou desse processo de sincretismo. Esse fenômeno cultural está intimamente ligado ao trabalho realizado para popularizar a Iemanjá em terras brasileiras, realizado pelo pai de santo Tancredo da Silva Pinto (1904-1979), o Tata Tancredo, no Rio de Janeiro. "Conhecido como o 'papa da umbanda', ele foi quem criou a cultura de celebrar Iemanjá no último dia do ano, quando reunia milhões de religiosos, inspirando brasileiros, independentemente de crença ou religião, a vestirem roupas brancas mesmo sem conhecer o motivo", conta Dias. "Muitos vestem branco na virada do ano pensando que é para pedir paz, muitos vão até a praia jogar rosas brancas… São rituais macumbeiros, e muitos que têm um pezinho na igreja evangélica ou no catolicismo estão lá realizando esse tipo de ritual. Tudo isso vem da popularização das macumbas", comenta Watanabe. "Com o processo de sincretismo e apagamento dos cultos de matriz africana no Brasil, os orixás, sobretudo Yemoja, que acabou por ficar muito popular no país, sofreram alterações e processos simbióticos com as características dos santos católicos", complementa a psicóloga Santos. "Mas vale lembrar que orixá não é santo e que Yeoja não é Nossa Senhora." Há alguns registros que demonstram uma europeização das características de Iemanjá já no século 19, muitas vezes a aproximando de representações de Nossa Senhora. Mas a imagem que acabou se sobrepondo às outras representações e dominando o inconsciente coletivo remonta aos anos 1950. Conforme explica o sacerdote umbandista e pesquisador Dias, tudo começou quando uma carioca chamada Dalla Paes Leme afirmou ter tido uma visão de Iemanjá e encomendou a pintura de um quadro com essa representação. "Curiosamente e, em pouco tempo, criam-se movimentos de promoção do quadro da nova imagem, além de selos postais, eventos, romarias resultantes de um movimento chamado pelo jornal 'Luta Democrática' de 'yemanjismo'", relata Dias. O pesquisador lembra que ela era "uma aristocrata e publicitária" e acabou fomentando uma tradução de "estética branca para a divindade por meio de uma peregrinação" do quadro aos terreiros de umbanda da época. Segundo Dias, essa tradicional imagem "pode ser considerada o marco do embranquecimento e aculturação da orixá". "Não por acaso, a fisionomia da 'nova Iemanjá' se dá mediante à sequela que o fenômeno do sincretismo deixa enquanto processo de apagamento e conversão cultural", prossegue. "A orixá, traduzida pela estética cristã, traz agora o mesmo estereótipo das virgens santas, perdendo completamente seus traços africanos. A partir de então, exclui-se os grandes seios que alimentam o mundo, cobre-se seu corpo, retiram-se as noções daquela que é mãe dos filhos peixes em detrimento da santa virgem que jamais dançou ao toque dos atabaques de umbanda", comenta o sacerdote. Para Watanabe, a Iemanjá representada como "a tal da moça branca com vestido azul" é um legado de grupos umbandistas conhecidos como "umbanda branca". "É das imagens que mais circulam, muitos têm uma dessas em suas casas", reconhece. "Acredito que se trate de uma tentativa descarada de apropriação de uma divindade africana e apagamento de toda uma história e de uma cultura que são negras", argumenta Watanabe. "Criticamos muito essa imagem. Todos os orixás são negros porque têm uma cultura de origem, um território de origem e esse território é a região de língua iorubá, em grande parte sintetizado na atual Nigéria." Ele afirma que muitos apregoam que "orixá não tem cor porque é energia". "Mas isso é uma disforia criada a partir dessas umbandas que foram invadidas por conhecimentos alienígenas, estranhos a elas. Esses esoterismos, essa tentativa da umbanda de se vincular a narrativa do mito da democracia racial, essa tomada da umbanda pelos grupos brancos que corroboram para o embranquecimento da mesma, isso tudo deu origem a essa imagem de Iemanjá branca", defende. Watanabe define o fenômeno como uma "violência aos povos negros, a cultura negra". "A imagem deve ser substituída, de fato. Não pode seguir circulando da forma como circula. Simbolicamente é um aviltamento da cultura negra", critica. Santos concorda e ressalta que a "descaracterização e o esvaziamento racista" feito com a orixá é um problema. "Essa Yemoja branca, com cabelos lisos, longos, magra, recatada, mansa e do lar que é, na verdade, uma imagem europeia cristã, não dá conta de quem Yemoja é e de quem ela pode vir a ser, porque Yemoja é isso: possibilidade", diz. Dias acrescenta que o "processo de sincretismos" sempre é visto "como um fenômeno de dominação". "Independente das relações e das trocas por ele produzidas, sempre haverá uma cultura de dominação sobreposta a uma cultura dominante. A invenção da imagem de Iemanjá traduz um Brasil que vivemos hoje em que, feito as redes sociais, adiciona filtros para tornar as imagens 'mais aceitas e palatáveis' pela sociedade que teima em manter o seu pseudo-status antirracista", argumenta ele. "Todavia, há algo de curioso em tudo isso: não se encontram traduções de divindades de outras culturas tão facilmente quanto as africanas. Nunca se viu uma imagem de Sidarta Gautama, o Buda, enquanto um homem negro, de dreadlocks e brincos nas orelhas. Não se colocam mantos e retiram-se as insígnias hindus de Shiva. Por outro lado, quando se questiona a identidade tão quanto a cor da pele de Cristo, o clero se levanta em defesa de uma tradição inventada para apagar a existência de um povo."
2022-02-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60215510
sociedade
As críticas à atriz Whoopi Goldberg por declarar que Holocausto não foi 'sobre raça'
A atriz Whoopi Goldberg, de 66 anos, provocou indignação na segunda-feira (31/01) após afirmar em um talk show nos Estados Unidos que o Holocausto "não foi sobre raça". No programa The View, da rede americana ABC, ela disse que o genocídio nazista dos judeus envolveu "dois grupos de brancos" Os críticos destacaram que o próprio Hitler expressava seu ódio aos judeus em termos raciais. E, mais tarde, ela se desculpou pela declaração. Os nazistas, que se viam como uma "raça superior" ariana, assassinaram seis milhões de judeus no Holocausto. Fim do Matérias recomendadas Maus, que retrata judeus como ratos e nazistas como gatos, ganhou vários prêmios literários. O conselho da escola disse que baniu o livro porque sua linguagem imprópria, nudez e representação de suicídio eram inadequados para crianças de 13 anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Goldberg, que está no The View desde 2007, disse aos coapresentadores do programa: "Estou surpresa que isso tenha deixado vocês desconfortáveis, o fato de haver alguma nudez". "Quero dizer, é sobre o Holocausto, o assassinato de seis milhões de pessoas, mas isso não incomodou vocês?" "Se vocês vão fazer isso, então vamos ser honestos. Porque o Holocausto não é sobre raça. Não, não é sobre raça." A coapresentadora Joy Behar observou que os nazistas diziam que os judeus eram uma raça diferente. E Goldberg respondeu: "Mas não é sobre raça. Não é. É sobre a desumanidade do homem em relação a outro homem." "Mas é sobre supremacia branca", retrucou a coapresentadora Ana Navarro. "É sobre ir atrás de judeus, ciganos." "Mas são dois grupos de pessoas brancas", rebateu Goldberg. A coapresentadora Sara Haines argumentou que os nazistas "não os viam como brancos". E Goldberg continuou: "Mas você não está entendendo! No minuto em que você transforma isso em raça, entra nesta vereda. Vamos falar sobre o que é. É sobre como as pessoas tratam umas às outras. É um problema." Ela acena então para alguém atrás da câmera enquanto a música tema do programa toca para indicar o intervalo comercial. Os críticos condenaram o programa por colocar no ar desinformação perigosa. Jonathan Greenblatt, líder da Liga Antidifamação, que combate o antissemitismo, tuitou: "Não @WhoopiGoldberg, o #Holocausto foi sobre a aniquilação sistemática do povo judeu pelos nazistas — que eles consideravam uma raça inferior". "Eles os desumanizaram e usaram essa propaganda racista para justificar o massacre de seis milhões de judeus. A distorção do Holocausto é perigosa." Meghan McCain, ex-coapresentadora do The View, tuitou: "O antissemitismo é um câncer e um veneno que é cada vez mais desculpado em nossa cultura e televisão — e permeia espaços que deveriam chocar a todos nós". O comentarista conservador Ben Shapiro publicou no Twitter uma citação do líder nazista Adolf Hitler, que escreveu em Mein Kampf ("Minha Luta"): "A própria existência deles não é baseada em uma grande mentira, isto é, de que eles são uma comunidade religiosa, enquanto na realidade são uma raça?" O Museu do Holocausto dos EUA, no que foi interpretado como um tuíte em resposta a Goldberg, escreveu: "O racismo era central para a ideologia nazista. Os judeus não eram definidos pela religião, mas pela raça. As crenças racistas nazistas alimentaram o genocídio e o assassinato em massa". Em meio às críticas, Goldberg mais tarde se desculpou: "No programa de hoje, eu disse que o Holocausto 'não foi sobre raça, mas sobre a desumanidade do homem em relação ao homem'. Eu deveria ter dito que foi sobre ambos", escreveu Goldberg em uma postagem no Twitter. "O povo judeu ao redor do mundo sempre teve meu apoio e isso nunca será dispensado. Sinto muito pela dor que causei", acrescentou.
2022-02-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60213411
sociedade
Vacina contra covid: o que é o efeito nocebo, versão negativa do efeito placebo
Dor de cabeça, dores musculares e fadiga estão entre os principais efeitos colaterais experimentados por algumas pessoas após receberem a vacina contra a covid-19, segundo os estudos até agora. Mas até que ponto esses sintomas relativamente menores são causados pelos ingredientes das vacinas e não pela autossugestão? Segundo um estudo da equipe do Centro Médico Diaconisa Beth Israel (BIDMC, na sigla em inglês) de Boston, associado à Faculdade de Medicina Harvard, nos Estados Unidos, até 76% dos efeitos colaterais mais comuns provocados pelas vacinas ocorrem devido ao chamado "efeito nocebo", e não à vacina propriamente dita. O efeito nocebo é o outro lado do conhecido efeito placebo: o surgimento de sintomas secundários ou a piora de um problema médico, produzida quando o paciente recebe um tratamento que ele acredita que provocará esses efeitos colaterais, embora, na verdade, não esteja sendo administrada nenhuma substância farmacológica. Ou seja, o efeito nocebo faz com que o paciente sofra certos sintomas somente porque sabe que pode vir a senti-los. Fim do Matérias recomendadas Esse efeito nem sempre está relacionado às próprias expectativas ou experiências negativas de cada pessoa. Na verdade, nós podemos incorporar esse conhecimento de forma inconsciente quando vemos uma experiência ou reação negativa de outra pessoa, segundo explica à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) Yvonne Nestoriuc, professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Helmut Schmidt, em Hamburgo, na Alemanha. E, embora seja independente da ação farmacológica do medicamento, esse efeito pode também interagir com ela. "Ele pode causar reações adversas novas não relacionadas ao efeito do medicamento, mas também pode fazer com que as reações adversas se intensifiquem", explica ela. "De forma que, se você sofre uma reação local típica de uma vacina, como um inchaço ou vermelhidão no braço (na zona da injeção), isso pode ser explicado pela vacina em si, mas pode ser mais pronunciado devido às expectativas e experiências negativas anteriores", acrescenta a pesquisadora, que não participou do estudo. Depois de analisar os dados de 12 testes clínicos sobre vacinas contra a covid-19, que contaram com a participação de cerca de 22 mil pessoas, os pesquisadores atribuíram ao efeito nocebo 76% de todos os eventos adversos depois da aplicação da primeira dose e cerca de 52% após a segunda entre o público pesquisado. Cabe esclarecer que o estudo concentrou-se nos efeitos colaterais menores e não nas raríssimas ocorrências de coágulos ou inflamações cardíacas. Embora o efeito nocebo seja geralmente pouco conhecido, o principal fator por trás dele são a ansiedade e o temor causado pela vacina, mas também a associação equivocada de diversos tipos de mal-estar à aplicação do imunizante. "É necessário pesquisar muito mais a respeito, mas, se você tiver expectativas negativas e sentir-se ansioso pela vacina, é mais provável que você experimente efeitos colaterais", afirmou à BBC News Mundo Julia Haas, médica do BIDMC e coautora do estudo publicado na revista JAMA Open Network. Sejam eles ou não produto da nossa imaginação - já que não há forma de distinguir a sua origem sem um exame clínico -, é importante tratar adequadamente os sintomas, descansando em caso de fadiga ou tomando um medicamento para aliviar dores de cabeça ou musculares. Ou seja, "você deve tratá-los da mesma forma que os trataria se fossem provocados pelos produtos farmacêuticos", explica Ted Kaptchuk, especialista em pesquisas sobre o efeito placebo da Universidade Harvard e principal autor do estudo. Haas acrescenta que, se também levarmos em conta que esses sintomas podem não ser resultado da vacina, mas sim parte das sensações de mal-estar que nos acometem de vez em quando, "poderemos lidar com eles de forma diferente para que não sejam tão preocupantes". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas existe algo que podemos fazer para evitar ou minimizar o efeito nocebo? Há quem acredite que os profissionais da saúde deveriam fornecer menos informações negativas, de forma que o paciente não receba tantos elementos para antecipar-se aos efeitos adversos que possam surgir. Mas Kaptchuk e Haas defendem exatamente o contrário. "Para começar, informar aos pacientes sobre os potenciais efeitos negativos é uma obrigação legal na maioria dos países do mundo e reduzir essa confiança é pior que comunicar os efeitos adversos", argumenta Kaptchuk. Segundo ele, evidências indicam que ter conhecimento sobre o efeito nocebo que um tratamento pode provocar (no caso, a vacina contra a covid-19) pode ajudar a reduzir a ansiedade e, por fim, o próprio efeito. Por isso, os pesquisadores sugerem a inclusão de informações sobre o possível efeito nocebo ns próprios panfletos ou informativos que contêm orientações sobre a vacina e seus efeitos secundários. "É sempre melhor que os médicos forneçam informações mais honestas e em maior quantidade", afirma Haas. "Se o público souber do que se trata, poderá reduzir a ansiedade e a preocupação com a vacina."
2022-01-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-60157014
sociedade
Como a ciência explica pais que já esqueceram filhos no carro - e o que fazer para evitar
"Eu me senti a pior mãe do mundo." É assim que Ana Nunes, de 44 anos, descreve o dia em que esqueceu seu bebê dentro do carro. Foi há seis anos. Ela conta que, como em todas as tardes, tinha saído para levar seu filho mais velho, Miguel, à escola. Ana costumava deixar o mais novo, Gabriel, na época com 10 meses, em casa com o pai. Mas quebrou a rotina naquele dia e levou o bebê junto, para ele dar um passeio de carro. Depois de se despedir de Miguel, ela decidiu passar no mercado. Dirigiu até a loja, estacionou o carro e saiu caminhando para entrar no supermercado. "Uns cinco minutos depois, eu me dei conta de que tinha deixado o Gabriel na cadeirinha no banco de trás. Voltei correndo e encontrei meu filho distraído com um brinquedo na mão", conta. Fim do Matérias recomendadas O episódio atormentou Ana por muito tempo. "Passei meses me culpando e pensando na tragédia que evitei por pouco, porque o dia estava muito quente e eu tinha estacionado o carro na rua, embaixo do sol." Mas, aos poucos, a angústia deu lugar à empatia por pais que já passaram pela mesma situação. "Aconteceu comigo e pode acontecer com qualquer um, porque estamos muito acostumados a cumprir as tarefas no piloto automático, na pressa." É consenso entre especialistas que, na maioria dos casos, pais não esquecem os filhos no carro por negligência. O psicólogo e neurocientista David Diamond, da Universidade do Sul da Flórida, nos Estados Unidos, dedica parte de sua carreira ao estudo desses episódios. Ao longo dos anos, o pesquisador entrevistou e conversou com cerca de 50 famílias que viveram o trauma de perder uma criança nessas condições e identificou um padrão de comportamento. "Todos os pais relatam ter sofrido de um lapso de memória. E quase todos eles esqueceram seus filhos no carro após mudarem sua rotina, seja porque decidiram fazer um trajeto diferente ou porque tiveram que levar os bebês para a creche mais cedo", diz Diamond em entrevista à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo o especialista, é comum isso ocorrer quando alguém faz algo que não é habitual. "Não são só pais que passam por essa situação: há registros de pilotos de avião que, por estarem tão acostumados a conduzir o mesmo modelo de aeronave, se envolvem em acidentes quando são designados a pilotar outro tipo", diz. "Por isso usamos agendas, alarmes e post-its para lembrar de tarefas novas. Nosso cérebro precisa de ajuda para não esquecer." Diversas partes do cérebro são usadas no processo de armazenar e ativar memórias. Nos casos citados, porém, duas áreas distintas e concorrentes são acionadas. A pesquisa de Diamond destaca os gânglios basais como o primeiro mecanismo dessa engrenagem da mente. Essa parte do cérebro opera em um nível subconsciente, ou seja, permite que habilidades já adquiridas ou informações armazenadas no passado sejam utilizadas sem precisar pensar ativamente sobre elas. "Os gânglios basais são nosso piloto automático: nos permitem, por exemplo, dirigir sem pensar sobre os movimentos nos pedais ou caminho exato para o trabalho", diz o neurocientista. Ao mesmo tempo, também utilizamos frequentemente o hipocampo e o córtex frontal, responsáveis por processar e reter informações novas. Esse sistema de memória é completamente diferente e independente do primeiro, de acordo com Diamond. Enquanto os gânglios basais funcionam de forma automática, o hipocampo precisa ser ativado conscientemente para que os dados armazenados voltem a fazer parte de nossos pensamentos. Isso pode ser feito por meio de um lembrete escrito ou de um fator externo, mas, em alguns casos, simplesmente não acontece. Quando Ana saiu da rotina, seu hipocampo foi ativado para processar a nova informação. Mas como ela não estava acostumada com a situação, os gânglios basais fizeram com que agisse no automático e fosse para o supermercado sem se lembrar do filho que estava no banco de trás. "De certa forma, os gânglios basais e o hipocampo competem dentro de nosso cérebro. E, quando uma mãe esquece seu filho no carro, significa que o hipocampo perdeu a batalha", explica Diamond. Esse tipo de situação pode acontecer com qualquer pessoa, mas pais que estão sob estresse ou em situação de privação de sono - o que é muito comum nos primeiros meses de um bebê - estão ainda mais sujeitos a isso. Em situações de cansaço e nervoso, o hipocampo é prejudicado, mas os gânglios basais continuam a funcionar normalmente, explica Diamond em sua pesquisa. Mariana Lopes, de 34 anos, viveu meses complicados depois do seu segundo filho nascer. Sebastião, hoje com 4 anos, sofria de refluxo e alergia ao leite de vaca, demandando muito cuidado. "Fiquei meses seguidos sem uma noite de sono e ainda precisava cuidar da casa e do meu menino mais velho, Vicente, que na época tinha 3 anos." Quando Sebastião completou 4 meses, o marido de Mariana decidiu levá-la para dar uma volta em uma praça para tentar aliviar seu estresse. Deixaram Vicente com a avó e trouxeram o caçula com eles. "Era a primeira vez que saía de casa desde o parto e estava exausta", conta Mariana. "Desci do carro atravessei a rua e fui em direção ao banco da praça. Foi quando ouvi meu marido me chamar, pois tinha esquecido que o bebê estava na cadeirinha." Mariana relata que quis voltar para casa imediatamente, tamanha a culpa que sentiu naquele momento. "Se estivesse sozinha provavelmente não teria me lembrado do Sebastião", diz. "Hoje em dia, não desço do carro sem olhar pelo menos uma vez para o banco de trás para ter certeza de que não esqueci meus filhos." Episódios de bebês esquecidos em carros se tornaram tão comuns - e temidos - nos Estados Unidos, que o fenômeno ganhou até um nome oficial entre cientistas e autoridades: síndrome do bebê esquecido. Há organizações que se dedicam exclusivamente à prevenção e monitoramento dos casos. A ONG NoHeatstroke é uma delas e calcula que 906 crianças morreram desde 1998 depois de terem sido esquecidas em veículos fechados no país, onde 90% dos lares têm pelo menos um carro. Ou seja, foram em média 37 episódios assim por ano. Não há dados atualizados sobre esses incidentes no Brasil, mas um levantamento feito por uma pesquisadora da Universidade Federal de Juiz de Fora identificou 59 casos de crianças deixadas sem supervisão no carro entre 2006 e 2018. Em 80% dos casos, elas foram esquecidas, e, em 17%, as crianças entraram nos veículos sozinhas e ficaram presas. Nanna Pretto, de 42 anos, viveu há cinco anos o pânico que as famílias experimentam nesse tipo de situação. Ela conta que, em uma manhã atribulada, mudou sua rotina e alterou a ordem em que deixava os filhos na escola todos os dias. Mas, depois de entregar o mais velho, em vez de seguir para a creche de Rafael, na época com 1 ano de idade, esqueceu-se completamente que ele dormia na cadeirinha no banco de trás e foi direto para o banco, sua próxima parada. "Já estava a caminho do caixa eletrônico quando percebi que precisava da carteira, que estava no carro. Quando voltei para pegar, vi a mochila do Rafael no banco e me lembrei que ele ainda estava na cadeirinha", lembra. "Me senti péssima, como se não amasse meu bebê o suficiente para me dar conta de sua existência no banco de trás", relata Nanna. Felizmente, nada grave aconteceu, mas, para outras famílias, o pior ocorre, e a criança não resiste ao calor de um carro fechado. Em agosto de 2021, o caso em Bauru, no interior de São Paulo, de um menino de 2 anos esquecido no carro por uma cuidadora foi notícia dos principais jornais do país. Arthur Oliveira dos Santos ficou por mais de três horas no veículo e morreu. Aquele foi até então o dia mais quente do ano, quando os termômetros marcaram mais de 35°C. Segundo a NoHeatstroke, nos casos em que a criança é deixada por longos períodos de tempo no carro fechado, a causa da morte quase sempre é insolação. Quando a temperatura corporal excede cerca de 41ºC, as células são danificadas, e os órgãos internos começam a se desligar, explica a ONG em sua página oficial. Essa sequência de eventos pode levar rapidamente à morte. A cuidadora responsável pelo menino Arthur comandava uma creche irregular em sua casa, onde recebia outras 9 crianças. Ela teve a prisão preventiva decretada e foi acusada de homicídio com dolo eventual, quando se assume um risco que pode levar a morte de alguém. O processo ainda corre na Justiça, e a cuidadora aguarda o julgamento em liberdade condicional desde setembro Segundo o advogado Carlos Nicodemos, que é especializado em direito da criança, se uma autoridade policial é chamada para prestar socorro a crianças esquecidas em carros, o conselho tutelar é acionado imediatamente - mesmo que se trate de um esquecimento repentino. "Se é determinado que não houve omissão intencional e tudo não passou de um acidente, se aplica uma medida protetiva, e os pais são encaminhados para acompanhamento familiar e programa assistencial", explica o advogado. "Mas, quando há negligência repetitiva, o caso passa a ser classificado como abandono de incapaz e entra na esfera penal." No segundo caso, os pais ou tutores podem ser condenados a penas de prisão ou penas alternativas, a depender das circunstâncias e de seu histórico criminal. As famílias ainda podem perder a guarda da criança. Uma recomendação para que casos assim não aconteçam é que os pais estejam cientes de que isso pode ocorrer com qualquer um. "É importante que eles saibam que casos assim são comuns, para que nunca deixem de checar pelo menos duas vezes se a criança ainda está no carro antes de fechar as portas", diz Erika Tonelli, coordenadora do Instituto Bem Cuidar e da organização Aldeias Infantis SOS. Há outras formas de evitar o esquecimento. As mães entrevistadas nesta reportagem desenvolveram, por exemplo, algumas técnicas que aplicam no dia a dia. A mais simples é manter um objeto que ajude a lembrar da criança por perto, no banco do carona ou preso na chave ou celular - pode ser uma chupeta, um brinquedo ou até uma fralda de pano. Também é útil criar o hábito de colocar a bolsa ou os pertences pessoais no banco de trás do carro, ao lado da cadeirinha onde o bebê costuma ser transportado. As mães ainda recomendam a instalação de um espelho no carro, para que o bebê possa ser observado mesmo quando a cadeirinha estiver na posição de costas, como determina o Código de Trânsito para crianças de até 1 ano de idade. Por fim, foram desenvolvidas nos últimos anos diversas tecnologias que podem facilitar muito a vida de pais e mães. O aplicativo de navegação Waze possui a função 'Lembrete de Criança', que pode ser ativada nas configurações. Há ainda outros programas próprios para isso, como como o Kars 4 Kids e o BabyOnBoard. Eles são conectados ao GPS do celular e emitem alertas sonoros assim que o motorista estaciona.O aplicativo Backseat ainda pode ser programado para enviar SMS automáticos a contatos pré-estabelecidos sempre que o carro é desligado. As mensagens relembram que a criança pode estar no banco de trás. E alguns modelos de cadeirinha mais modernos têm sensores que avisam ao motorista por meio do celular ou avisos sonoros que a criança ainda está no assento.
2022-01-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60160039
sociedade
'Lixo do mundo': o gigantesco cemitério de roupa usada no deserto do Atacama
O calor é extenuante. Ao meu redor só há terra, areia e algumas aves de rapina que dão voltas pelo ar em busca de animais mortos. O silêncio é desolador. São 11 da manhã de uma segunda-feira de dezembro. Estou no imenso deserto do Atacama, no norte do Chile, na altura da cidade de Iquique - situada a 1.800 km da capital Santiago. A alguns metros consigo avistar uma enorme montanha. Vamos nos aproximando pouco a pouco em um caminho improvisado e sem marcas de trilha. A imagem vai ficando cada vez mais nítida. Sapatos, camisetas, casacos, vestidos, gorros, trajes de banho e até luvas para neve formam essa surpreendente montanha. São peças inexplicavelmente abandonadas em pleno deserto. É roupa descartada pelos Estados Unidos, pela Europa e Ásia, enviada ao Chile para ser revendida. Fim do Matérias recomendadas Das 59 mil toneladas importadas todos os anos, grande parte (algo como 40 mil toneladas) não é vendida - acaba no lixo. A maioria fica nas cercanias de Alto Hospicio, uma comunidade com altos níveis de pobreza e vulnerabilidade. Em novembro, imagens desse lixão deram a volta ao mundo. Quisemos ir até lá para averiguar com profundidade o que está acontecendo. Caminhões carregados com fardos de roupa usada entram e saem da Zona Franca de Iquique, mais conhecida como Zofri. Este paraíso das compras abriga um imenso parque industrial onde operam mais de mil empresas que comercializam seus produtos isentos de impostos. Seu lugar estratégico no norte do Chile - a poucos quilômetros do porto do Iquique - transforma a área em um importante centro comercial para outros países latino-americanos como Argentina, Brasil, Peru e Bolívia. Aqui estão instaladas ao menos 50 importadoras que diariamente recebem dezenas de toneladas de peças de segunda mão que depois são distribuídas por todo o Chile para revenda. O negócio é imenso e completamente legal. De acordo com o Observatório de Complexidade Econômica (OEC), uma plataforma que registra diversas atividades econômicas pelo mundo, o Chile é o maior importador de roupa usada na América do Sul, recebendo 90% desse tipo de mercadoria na região. Os proprietários das importadoras têm nacionalidades distintas: alguns são de países longínquos como o Paquistão. Com um domínio precário do espanhol, vários se recusam falar sobre o assunto. "Ninguém quer se responsabilizar", diz um dos importadores. Após várias tentativas, a fundadora da PakChile, Paola Laiseca, explica à BBC Mundo como funciona o negócio. "Nós trazemos roupa dos Estados Unidos, mas também chega da Europa", diz ela, sentada no escritório de um imenso galpão onde se acumulam vários fardos de peças de segunda mão. A maioria dessas roupas foi doada a organizações de caridade em países desenvolvidos. Muitas vão para locais de distribuição ou são entregues a pessoas necessitadas. Mas o que não é aproveitado (por defeito na peça, por exemplo) segue para países como Chile, Índia ou Gana. Laiseca explica que ao porto de Iquique chegam peças de qualidades distintas. "A roupa usada vem em sacos e nós aqui fazemos uma seleção dividida em primeira, segunda e terceira categoria." "A primeira é das melhores peças, sem defeitos, sem manchas, impecáveis. A segunda pode ter peças sujas ou descosturadas. Na terceira há produtos mais deteriorados", explica. A empresária diz que as peças de terceira categoria são, sim, vendidas (e que ela só descarta 1% de tudo o que é importado). Mas autoridades locais ouvidas pela BBC Mundo afirmam que grande parte acaba em lixões clandestinos. "Sabe-se que ao menos 60% [do que se importa] é resíduo ou descartável e é isso que forma os montes de lixo", afirma Edgard Ortega, responsável pela área de meio ambiente na municipalidade de Alto Hospicio. No Chile é proibido descartar têxteis até em depósitos legais porque causa instabilidade do solo. Assim, não há, em teoria local, para jogar fora o que não se comercializa. Laiseca reconhece que existem pessoas que recebem dinheiro para descartar a roupa que não é vendida. De acordo com Patricio Ferreira, prefeito de Alto Hospicio, os importadores da zona franca "contratam carreteiros ou um caminhão coletor e pagam para que deixem em qualquer lugar". Carmen García, que veio da pequena cidade de Colchane, compra roupa dos importadores para revender na imensa feira de La Quebradilla, em Alto Hospicio. É possível encontrar marcas como H&M, Pepe Jeans, Wrangler e Nike. Os preços são incrivelmente baixos: por menos de US$ 1 é possível comprar uma camiseta ou calças. "Tudo o que você vê aqui vem da Zofri", diz ela, mostrando sua barraca com araras cheias de roupa. García diz que compra tudo por saco, sem garantia do que vem dentro. "Com sorte você se dá bem. Mas tem vezes que tudo acaba no lixo", diz. Quando questionada onde essa roupa vai parar, ela diz, sem dar muitos detalhes, que as peças são doadas para pessoas necessitadas. A indústria da moda está entre as mais poluentes do mundo, depois da indústria do petróleo. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), ela é responsável por 8% dos gases do efeito estufa e por 20% do desperdício de água no mundo. Para produzir uma peça de jeans são gastos algo como 7.500 litros de água. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além disso, grande parte da roupa está cheia de poliéster, um tipo de resina plástica derivada do petróleo e que oferece grandes vantagens em relação ao algodão: mais barato, pesa pouco, seca rápido e não amassa. O problema é que demora 200 anos para se desintegrar - o algodão leva 2 anos e meio. E aqui, no deserto do Atacama, a maioria das peças estão cheias justamente de poliéster. Camisetas esportivas, trajes de banho ou shorts brilham como novos, mas provavelmente estão há meses ou anos nas pilhas de lixo. Com o passar do tempo, as roupas se desgastam e liberam microplásticos que acabam na atmosfera, afetando fortemente a fauna marítima ou terrestre das cercanias. Outra coisa que preocupam as autoridades são os incêndios que anualmente ocorrem nos lixões clandestinos. "Como não há um dispositivo legal, a única solução é queimar [a roupa]. E a poluição da fumaça é um grande problema", explica Eduardo Ortega. "São provocados incêndios anuais de grandes proporções, que duram entre dois e dez dias." Segundo o departamento de meio ambiente da região de Tarapacá, a fumaça pode provocar doenças cardiorrespiratórias nos moradores de áreas próximas aos lixões, a maioria deles imigrantes ilegais que se instalam em casas improvisadas e em mau estado. "Há populações que vivem nesses lixões, que inalam diretamente os gases produzidos e ficam sujeitas a doenças cardiorrespiratórias", diz Gerson Ramos, responsável pelos resíduos da secretaria regional de meio ambiente. Nesses depósitos é comum encontrar imigrantes que escavam as montanhas de roupas para achar uma peça para vestir ou ganhar algumas moedas com revenda. "Como não podem trabalhar formalmente procuram peças nos lixões para vender por um preço mínimo. E isso gera um problema porque o lixo se dispersa ainda mais", diz Ortega. "Os pobres pagam o pato por esse modelo de negócio que ninguém quer se responsabilizar", afirma. O problema da roupa no deserto do Atacama não é novo. Faz cerca de 15 anos que os descartes têxteis se acumulam nesse lugar icônico, mas agora o problema tem atingido proporções gigantescas, afetando 300 hectares (algo como 420 campos de futebol) da região, segundo a secretaria de meio ambiente de Tarapacá. A solução, no entanto, não é simples. No momento, há dois planos em andamento: um programa de erradicação de lixões clandestinos e a incorporação da roupa usada à Lei de Responsabilidade Estendida do Produtor, que estabelece obrigações para empresas importadoras. Mas ainda faltam passos importantes para que os planos sejam colocados em prática: no caso do primeiro, é necessária a aprovação do governador regional e, no caso do segundo, ainda é preciso elaborar o decreto de regulamentação. "Não é fácil conciliar tantos interesses para uma solução ampla e incisiva, como proibir a entrada de roupa usada, isso não é factível", diz Moyra Rojas, secretária de meio ambiente da região de Tarapacá. A falta de fiscalização e controle na área faz com que seja muito fácil descartar as peças em depósitos ilegais. "Alto Hospicio é uma área vulnerável, que tem um orçamento muito baixo. Não podemos contratar mais fiscais, não recebemos recursos", declara Ortega. Com a falta de soluções reais - e o aumento indiscriminado da chamada "fast fashion" - a roupa segue se acumulando todos os dias nesse deserto inóspito. Bonecas velhas e jogos infantis escondidos entre as montanhas do deserto evidenciam a passagem do tempo e, de alguma forma, o abandono de uma área distante dos países desenvolvidos - de onde sai muito da roupa descartada aqui. "Ninguém quer viver em um lixão", diz Ferreira. "E lamentavelmente transformamos nossa cidade no lixão do mundo", conclui.
2022-01-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60144656
sociedade
Tiktoker criticada por dançar ao lado da mãe internada diz que não houve 'maldade' em vídeo
Quando visitou a mãe em um hospital em 30 de dezembro passado, a tiktoker Stephanie Mecco, de 19 anos, gravou uma dança ao lado dela. "Eu fiz o vídeo para descontrair e fazer com que ela ficasse mais tranquila naquele momento", diz a jovem à BBC News Brasil. Soraya Mecco estava internada em decorrência de um câncer em estágio gravíssimo. Ela já havia passado por diversos tratamentos, mas a mulher, de 51 anos, não apresentava mais respostas contra a doença. Stephanie diz que mesmo com o quadro complicado, acreditava que a mãe logo se recuperaria. A jovem afirma que o vídeo foi uma forma de registrar o momento e mostrar para Soraya posteriormente. "Ela se recuperaria e eu diria: olha como você estava nesse período, mãe", conta a jovem. Mas horas depois do encontro com os filhos, Soraya morreu. Para homenagear a mãe, que costumava aparecer em seus vídeos nas redes sociais, Stephanie publicou a gravação feita no hospital. "Hoje o ano se encerra e você se foi com ele. Te amo demais, mãe. Descanse em paz. Obrigada por tudo. Um dia nos vemos", escreveu. O vídeo viralizou, Stephanie conquistou milhares de novos seguidores. "A minha mãe sempre me incentivou a gravar meus vídeos, então a princípio encarei como um sinal de que ela estava bem e que estava me ajudando", diz. A tiktoker fez uma publicação comemorando a repercussão do registro. Fim do Matérias recomendadas Porém, o vídeo passou a ser compartilhado em outras redes sociais e muitas pessoas interpretaram como um desrespeito e também questionaram a comemoração da jovem por ter conquistado seguidores pouco após a morte da mãe. Entre os comentários, alguns disseram que a jovem era "psicopata", outros que ela era "desprezível" e até falaram que a tiktoker deveria ter morrido no lugar de Soraya. Para Stephanie, a reação negativa foi injusta e muitos não entenderam que o vídeo era um momento de amor. "Não consigo ver nenhuma maldade ali. Era um momento meu e dela em que tentei fazer de tudo para fazer com que ela ficasse mais calma. A gente enchia a nossa mãe de beijo e falava que ela ficaria boa logo. O vídeo foi só mais uma forma de descontrair", afirma. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Stephanie diz que a mãe sabia que estava sendo filmada e concordou com o vídeo. "Perguntei se podia gravar um TikTok naquele momento, a abracei e ela fez um sinal positivo com a cabeça", diz a jovem. "Então, arrumei a posição do celular, comecei a dançar ao lado dela e do meu irmão. A minha mãe até empurrou a cabeça pro lado quando comecei a gravar, como se quisesse me ver melhor. Quando terminei, falei: depois, quando você ficar bem, a gente vai ver isso, mãe", relata. Entre os vídeos antigos de Stephanie, há diversos nos quais a jovem dança ao lado da mãe. A tiktoker considera que Soraya era a sua melhor amiga e a sua maior incentivadora. "No começo da pandemia, ela me incentivou a publicar vídeos no TikTok, porque dizia que eu dançava muito bem, e isso me deu forças", diz a jovem. Soraya sabia do desejo da filha em se tornar uma influenciadora digital. "A minha mãe sempre ficava muito feliz quando meus vídeos tinham muitas visualizações", comenta. A partir de setembro de 2020, Soraya passou a gravar poucos vídeos ao lado da filha, porque precisou se dedicar intensamente a um tratamento de saúde. Ela foi diagnosticada com glioblastoma de grau IV, um tumor que tem uma grande capacidade de crescer ao longo do tecido cerebral e costuma ser resistente a tratamentos. Anos atrás, o pai dela havia morrido em razão da mesma doença. Soraya passou por cirurgias para retirar o tumor e fez quimioterapia e radioterapia. "Ela sempre falava que ia vencer e eu realmente acreditava nisso. De toda forma, ela foi uma vencedora por tudo o que passou", diz Stephanie. Em dezembro passado, os médicos suspenderam os tratamentos de Soraya. "Queriam esperar a imunidade dela subir novamente para tentar um novo tratamento", diz a tiktoker. O estado de saúde da mulher piorou cada vez mais. "Ela já estava com muitas dificuldades e se locomovia com uma cadeira de rodas", detalha Stephanie. Depois do Natal, Soraya passou a ter dificuldades para se alimentar e estava cada vez mais fraca. Ela foi internada em um hospital em São Paulo (SP), onde a família mora. As expectativas de que ela sobrevivesse eram consideradas baixas. Soraya tinha um desejo que já havia manifestado aos familiares: não queria nada que prolongasse a vida dela em uma cama de hospital. "Ela era uma pessoa muito ativa e não gostava dessa ideia de ficar em uma cama de hospital", diz a filha. "Os médicos proibiram que os parentes chorassem ou demonstrassem tristeza durante as visitas, porque sabiam que isso poderia assustar a minha mãe", comenta Stephanie. Nesse período, segundo a filha, Soraya se comunicava somente mexendo um pouco a cabeça ou apertando a mão levemente. Em 30 de dezembro, Stephanie e o irmão, de 16 anos, visitaram a mãe. Ela lembra que brincaram, conversaram e beijaram Soraya. Para a jovem, o vídeo compartilhado no TikTok foi um desses últimos momentos de alegria ao lado da mãe. Durante a madrugada de 31 de dezembro, Soraya morreu. "Ela partiu no tempo dela, dormindo. O meu tio, que estava com ela, disse que acordou e ouviu os batimentos diminuindo e logo chamou os médicos, mas ela já estava morrendo. Somos espíritas e acreditamos que esse era o plano de vida dela, que ela tinha um tempo curto de vida e por isso sempre fez tudo correndo", emociona-se a jovem. Horas após saber da morte da mãe, Stephanie quis homenageá-la nas redes sociais. "Eu postei várias fotos com ela no Instagram, falando da partida dela e dizendo que eu não poderia ser egoísta em querer que ela ficasse daquele jeito. Sabia que ela não queria ficar sofrendo como estava", diz a jovem. No TikTok, ela compartilhou a dança no quarto do hospital. "Não postei para viralizar ou ganhar algo com isso, postei como despedida", afirma. Nos primeiros dias, diz a tiktoker, a imensa maioria dos comentários eram positivos. "Recebi várias mensagens de pessoas dizendo que estavam emocionadas. Até a minha família gostou", diz. "Acabou viralizando e eu e minha mãe sempre sonhamos que eu viralizasse com algum vídeo, para atrair um público maior. Por isso, fiz um post agradecendo a ela como se fosse um presente dela", acrescenta a jovem. Quando começou a receber diversos comentários negativos, Stephanie se assustou. "Alguns trechos do vídeo começaram a viralizar, principalmente porque páginas começaram a compartilhar, e comecei a ser xingada. Falaram até que estava dançando ao lado do corpo da minha mãe, como se ela estivesse morta naquele momento". Ela afirma que ficou abalada por ter que provar que o vídeo foi feito em um momento de descontração. "Desde que ela começou o tratamento, sempre descontraí a minha mãe. A nossa relação sempre foi assim", justifica. A jovem também afirma que o irmão não se opôs à dança. "Falaram da cara dele no vídeo, como se tivesse me reprovando. Mas ele me olhou daquele jeito porque o encosto da poltrona dele tombou levemente para trás quando eu me joguei nela", diz. Mesmo com as inúmeras críticas, Stephanie não se arrepende de ter compartilhado o registro. "Postei como forma de despedida. Vou manter no meu perfil, mas privei os comentários, porque não quero deixar que usem esse vídeo como forma de destilar ódio", afirma. Nos últimos dias, Stephanie tem retomado as publicações nas redes sociais. "Não vou deixar me abater por tudo isso, porque sei que a minha mãe queria me ver bem", afirma a jovem. Estudante de publicidade e propaganda, a jovem mantém o sonho de viver como influenciadora digital. "Talvez consiga viver disso um dia", comenta. Em meio a toda a repercussão das últimas semanas, ela ganhou mais de 150 mil seguidores em janeiro (ao todo, ela já tem mais de 255 mil) no TikTok, plataforma na qual o vídeo de Stephanie no hospital acumula mais de 17 milhões de visualizações.
2022-01-27
https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-60146754
sociedade
100 segundos para o apocalipse: como ler o Relógio do Juízo Final
O Relógio do Juízo Final mostra como a humanidade está perto do apocalipse. Mas de onde ele vem, como ele lê o tempo que falta e o que podemos aprender com ele? Foi de uma professora na escola, em meados dos anos 1990, que ouvi falar pela primeira vez do Relógio do Juízo Final. Ela contou à minha classe sobre os grandes eventos da história, explicando que, se tudo o que aconteceu no nosso planeta fosse comprimido em um único ano, a vida teria surgido no início de março, os organismos multicelulares em novembro, os dinossauros no final de dezembro e os seres humanos somente entrariam em cena às 23h30 da Véspera de Ano Novo. Depois, ela comparou esse grande período da história com o nosso futuro e como ele pode ser curto - e disse que um grupo de cientistas nos Estados Unidos acha que podemos ter apenas alguns minutos metafóricos até meia-noite. Mas nunca havia passado pela minha cabeça que, algum dia, eu poderia estar trabalhando com a mesma questão, como pesquisador do Centro de Estudos dos Riscos Existenciais da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. É uma história impressionante e, por muitos anos, eu pensei que o Relógio do Juízo Final significava que seus ponteiros representassem o tempo que nós temos até o fim. Fim do Matérias recomendadas Mas não é exatamente isso. Há 75 anos, os cientistas responsáveis pelo Relógio do Juízo Final publicam, no Bulletin of the Atomic Scientists ("Boletim dos Cientistas Atômicos", em tradução livre), sua conclusão anual de quanto tempo falta para que os ponteiros do Relógio do Juízo Final indiquem meia-noite. Todos os anos, o anúncio destaca a complexa teia de riscos catastróficos enfrentados pela humanidade, incluindo armas de destruição em massa, colapsos ambientais e tecnologias problemáticas. E, em 2020, a presidente do Boletim, Rachel Bronson, anunciou solenemente que os ponteiros do Relógio haviam se movido para mais perto do apocalipse do que nunca - apenas 100 segundos, posição que foi mantida desde então. Mas, para compreender o que isso realmente significa, é preciso entender a história do Relógio, quais as suas origens, como interpretá-lo e o que ele diz sobre a crise existencial da humanidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A velocidade e a violência da evolução da tecnologia nuclear foram de tirar o fôlego, mesmo para as pessoas envolvidas no seu desenvolvimento. Em 1939, os renomados cientistas Albert Einstein e Leo Szilard escreveram para o presidente dos Estados Unidos sobre uma descoberta muito poderosa na área da tecnologia nuclear, que poderia ter consequências bélicas tremendas: uma única bomba nuclear "transportada de navio e detonada em um porto poderia muito bem destruir todo o porto". Era uma possibilidade muito significativa que não poderia ser ignorada. Essa carta levou à criação de um enorme projeto de colaboração científica, militar e industrial - o Projeto Manhattan - que, em apenas seis meses, produziu uma bomba muito mais poderosa que a imaginada por Einstein e Szilard, capaz de destruir uma cidade inteira e sua população. E, poucos anos mais tarde, os arsenais nucleares já eram capazes de destruir toda a civilização como a conhecemos. A primeira preocupação científica de que as armas nucleares poderiam ter o potencial de pôr fim à humanidade veio dos cientistas envolvidos nos primeiros testes nucleares. Sua preocupação era que as novas armas pudessem acidentalmente incendiar a atmosfera da Terra. Essas preocupações foram rapidamente desmentidas e, felizmente para todos os envolvidos, comprovou-se que eram falsas. Mesmo assim, muitas pessoas que trabalharam para o Projeto Manhattan continuaram a ter fortes reservas sobre o poder das armas que ajudaram a produzir. Depois da primeira tentativa bem sucedida de dividir o átomo na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, em 1942, confirmando seu potencial de liberar energia, a equipe de cientistas que trabalhava no Projeto Manhattan se dispersou. Muitos deles mudaram-se para Los Alamos e para outros laboratórios do governo, a fim de desenvolver armas nucleares. Outros permaneceram em Chicago conduzindo suas próprias pesquisas. Muitos desses cientistas haviam emigrado para os Estados Unidos e conheciam muito bem a conexão entre a ciência e a política. Eles começaram a organizar ativamente uma tentativa de garantir um futuro seguro para a tecnologia nuclear. Eles ajudaram, por exemplo, a fazer avançar o Relatório Franck em junho de 1945, que previa uma corrida de armas nucleares cara e perigosa, e apresentaram argumentos contra um ataque nuclear de surpresa ao Japão. Naturalmente, suas recomendações não foram aceitas na época pelas pessoas responsáveis pela tomada de decisões. Esse grupo criou o Boletim dos Cientistas Atômicos de Chicago e sua primeira edição foi publicada apenas quatro meses após o ataque com bombas atômicas a Hiroshima e Nagasaki, no Japão. Com o apoio do reitor da Universidade de Chicago e em colaboração com colegas especialistas em legislação internacional, ciência política e outros campos correlatos, eles ajudaram a criar e apoiar um movimento global de cientistas e cidadãos, capaz de afetar a ordem nuclear global. Esse movimento teve sucesso notável, por exemplo, ao estabelecer o "tabu nuclear" - tanto que, em conversas privadas, o secretário de Estado norte-americano chegou a queixar-se de que o "estigma da imoralidade" evitava que os Estados Unidos usassem armas nucleares. Ao decidirem manter sua sede em Chicago, os fundadores sinalizaram sua intenção de priorizar a colaboração com seus colegas cientistas e membros do público sobre os desafios éticos e políticos da tecnologia nuclear, sem se voltar para os líderes políticos e militares que tanto haviam depreciado suas preocupações até então. Eles argumentavam que a pressão do público era fundamental para a responsabilidade política e a educação era o melhor canal para garantir essa pressão. Dois anos após a sua criação, o Boletim decidiu mudar sua apresentação, deixando de ser um boletim impresso para adotar um formato de revista, a fim de atingir maior quantidade de leitores. Foi nesse ponto que seus responsáveis chamaram a artista Martyl Langsdorf para desenhar um símbolo para a nova capa - e ela produziu o primeiro Relógio do Juízo Final. Casada com um dos cientistas do Projeto Manhattan, Langsdorf compreendia a urgência e o desespero que seu marido e os colegas sentiam sobre a gestão da tecnologia nuclear. Ela criou o Relógio para chamar a atenção para a urgência da ameaça que eles vislumbravam e também para sua crença de que os cidadãos responsáveis poderiam evitar a catástrofe com sua mobilização e envolvimento - pois a mensagem do Relógio foi que seus ponteiros poderiam mover-se tanto para frente como para trás. Em 1949, a União Soviética testou suas primeiras armas nucleares. Por isso, o editor do Boletim moveu os ponteiros do Relógio de sete para três minutos para meia-noite. Ao fazê-lo, ele ativou o Relógio, que deixou de ser uma metáfora estática e passou a ser dinâmico. O Relógio evoluiria para um símbolo que, segundo Kennette Benedict, ex-diretora executiva do Boletim, é um aviso para "o público sobre como estamos perto de destruir o nosso mundo com tecnologias perigosas fabricadas por nós mesmos. É uma metáfora, um lembrete dos perigos que devemos abordar se quisermos sobreviver no planeta." Em 1953, o Relógio moveu-se adiante mais uma vez, para dois minutos para a meia-noite, depois que os Estados Unidos e a União Soviética detonaram as primeiras armas termonucleares. Foi o mais próximo da meia-noite que o Relógio esteve no século 20. Mas o que realmente indicam esses tempos e movimentos? É fácil interpretar o Relógio do Juízo Final da forma que fez a minha professora - como uma previsão do tempo que resta para a humanidade, algo que seria muito difícil de se prever e é de pouco uso se a sua intenção for evitar o apocalipse em vez de simplesmente prevê-lo. Uma leitura mais plausível é que o Relógio se destina a indicar o nível atual de risco enfrentado pela humanidade - e algumas pessoas, de fato, tentaram determinar isso. Em 2003, Martin Rees, o cosmólogo e astrônomo real do Reino Unido, argumentou: "acho que a probabilidade é de não mais de 50% que a nossa atual civilização na Terra sobreviva ao final do presente século". Ele não é o único com essa opinião e um banco de dados dessas avaliações de risco, reunidas por um pesquisador da Universidade de Oxford, no Reino Unido, contém atualmente mais de 100 previsões de diversos cientistas e filósofos que estudam o assunto. Mas essas estimativas, por mais úteis que sejam, são consideradas avaliações de longo prazo e não fotografias em tempo real do nível de risco atual. Já outros observadores dedicados do Relógio, como eu, interpretam os movimentos do Relógio do Juízo Final de forma um pouco diferente. Seu objetivo não é nos dizer o tamanho do risco enfrentado pela humanidade, mas a eficácia da nossa reação a esse risco. É um consenso, por exemplo, que a crise dos mísseis de Cuba, em 1962, foi o mais perto que o mundo já chegou à guerra nuclear, mas esse episódio não fez movimentar o Relógio. Já o Tratado de Proibição Parcial de Testes Nucleares de 1963 testemunhou a mudança dos ponteiros do Relógio para trás em cinco minutos inteiros. E isso faz sentido, pelo menos para os pesquisadores dos riscos existenciais, como eu próprio. Vários amigos me consultam para ter informações em momentos de aumento da tensão política global, como a crise diplomática de 2017 entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte ou o colapso do acordo nuclear com o Irã, em 2018. Mas geralmente eu preciso desapontá-los. Nós simplesmente não passamos a maior parte do tempo estudando ou nos preocupando com eventos como esses. Na verdade, são flutuações perfeitamente normais da política e da diplomacia internacional. O que preocupa pessoas como eu é, primeiramente, a existência de armas que os líderes poderiam detonar nessa crise e, em segundo lugar, as instituições e estruturas inadequadas e, às vezes, disfuncionais que temos para impedir que eles as detonem. Esses problemas não são criados por crises globais individuais - sua natureza é sistêmica e é isso que o Relógio do Juízo Final tenta medir. Eu não tinha total conhecimento disso na época, mas comecei a me preocupar com o Relógio do Juízo Final em meados dos anos 1990 - coincidentemente, o momento de maior segurança da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial. Entre 1987 e 1991, o Relógio andou para trás em surpreendentes 14 minutos em quatro anos, à medida que a redução das tensões da Guerra Fria fornecia proteção significativa contra a ameaça de guerra nuclear. Os episódios mais notáveis foram o Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, de 1987 - que proibiu todos os mísseis balísticos em território russo e norte-americano com alcance de 500 a 5.500 km e causou a retirada de serviço de 2.692 mísseis nucleares - e o Tratado de Redução de Armas Estratégicas (Start, na sigla em inglês), de 1991, que levaria à eliminação de cerca de 80% das armas nucleares. Nesse momento, o Relógio do Juízo Final foi alterado para 17 minutos para meia-noite e até retirado da capa do Boletim de Cientistas Atômicos - em parte, porque já não parecia mais tão expressivo. Mas, infelizmente, esse estado de coisas não duraria muito. A manutenção dos altos níveis de gastos militares e as preocupações crescentes com a proliferação nuclear no sul da Ásia e no Oriente Médio fizeram com que, no final da década de 1990, o Relógio voltasse para nove minutos para a meia-noite e continuasse e progredir inexoravelmente para frente. Mas a última década observou uma aceleração muito mais preocupante do movimento do Relógio do Juízo Final, até que, em 2020, ele atingiu 100 segundos para a meia-noite - ou seja, mais próximo do apocalipse que no tempo da Guerra Fria. Como isso aconteceu? Um fator foi o surgimento de novos tipos de ameaças globais e o repetido fracasso dos governos do mundo para enfrentá-las. Em 2007, o Boletim começou formalmente a analisar as mudanças climáticas, além das ameaças nucleares, para definir a posição dos ponteiros do Relógio. É claro que esses riscos são muito diferentes. Os ataques nucleares poderiam acontecer em questão de minutos, enquanto o risco climático é cumulativo, ano após ano. Além disso, a responsabilidade pelas armas nucleares do mundo está nas mãos, ou dedos, de muito poucos tomadores de decisões globais, enquanto todos nós estamos envolvidos nas mudanças climáticas e na destruição ambiental - mesmo que em escalas muito diferentes. Mas, sem dúvidas, a gravidade desses dois riscos - tanto em termos de seu potencial para causar catástrofes globais quanto da probabilidade de que isso aconteça - é comparável. E, para os dois riscos, precisamos examinar se o nível atual de ações globais sendo tomadas para combatê-los é ou não proporcional à sua gravidade e à crescente urgência de reduzi-los. Por muitos anos, as páginas do Boletim também analisaram os desafios apresentados por novas tecnologias problemáticas e esses desafios agora também influenciam os ponteiros do Relógio do Juízo Final. Essas tecnologias incluem a inteligência artificial, armas biológicas e a nanotecnologia. Além das tecnologias específicas, o nosso futuro também é cada vez mais ameaçado pela convergência das tecnologias problemáticas com as ameaças nucleares e ambientais existentes. Um segundo fator da posição do Relógio mais próxima da meia-noite é o fato de que, como o número e a variedade das ameaças enfrentadas pela humanidade se multiplicaram, a seriedade das dificuldades de gestão desses riscos também aumentou. Em 2015, o Boletim moveu o Relógio do Juízo Final de cinco para três minutos para a meia-noite, indicando três questões fundamentais por trás dessa mudança. Primeiramente, a deterioração das relações entre os Estados Unidos e a Rússia, que juntos possuem 90% do arsenal nuclear do mundo, e o enfraquecimento de muitos dos instrumentos idealizados para manter esses arsenais em segurança, como o sucessor do tratado Start (Novo Start). Em segundo lugar, todos os Estados que possuíam armas nucleares estavam investindo massivamente nesses sistemas, incluindo sua substituição, expansão e modernização. E, por fim, não havia nenhum sinal de formação da arquitetura global necessária para combater as ameaças climáticas. Mas, em 2016, o Boletim identificou dois pontos brilhantes com potencial de reverter algumas dessas tendências negativas: o acordo nuclear com o Irã e o acordo do clima de Paris - mas com a ressalva de que nenhum deles havia sido totalmente implementado. E, em 2017, os editores do Boletim foram forçados a concluir que a situação havia piorado significativamente, já que esses dois pontos brilhantes haviam sido ofuscados pelas mudanças da política doméstica norte-americana. Agregou-se a essa mudança o aumento das evidências de menosprezo global pelo conhecimento e negligência sobre a liderança e a linguagem nuclear. Por isso, o Boletim moveu o Relógio para dois minutos e meio para a meia-noite e, em 2018, moveu novamente, para dois minutos, devido à contínua deterioração da diplomacia internacional. A posição do Relógio adotada desde 2020 - 100 segundos para a meia-noite - reflete a absoluta instabilidade da situação global e a falha das instituições internacionais em reagir ao tique-taque do risco existencial. Essa situação inclui o colapso do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, que havia sido um dos primeiros sinais do fim da Guerra Fria. Pode não existir mais uma clara luta ideológica por trás dos conflitos internacionais, mas a escala de divergências entre as grandes potências e a falta de instituições que solucionem essas divergências parecem ser as piores que já existiram - e as formas em que essas divergências poderão vir a gerar uma catástrofe global continuam a multiplicar-se. A atual pandemia expôs as fraquezas dos governos atuais. A desigualdade da reação à covid-19 e a falta de liderança global para trabalhar para a vacinação universal e erradicação da doença não são um bom presságio para a prevenção das ameaças existenciais. Igualmente frustrante foi a falta de progresso na cúpula do clima COP26. Mas estamos também observando o aumento da preocupação global com a aceleração da crise da biodiversidade e a contínua fragilidade dos esforços internacionais para lidar com a questão. Suspeito que continuaremos a ver preocupações expressas sobre as tensões da política internacional, especialmente entre os Estados Unidos, Rússia, Irã e China, mas agora sabemos que elas já estão se alastrando para conflitos muito reais na zona cinza da cibersegurança, desinformação e desestabilização política. Por fim, podemos também considerar o aumento das tensões entre os governos e as empresas envolvidas no desenvolvimento da inteligência artificial e outras tecnologias problemáticas, além do recente fracasso das tentativas de elaborar um acordo sobre a proibição das armas letais autônomas. Poderia ter sido feito outro ajuste do Relógio do Juízo Final para mais perto da meia-noite este ano? Isso certamente não me surpreenderia. Mas não devemos nos acomodar, pois ele já está muito perto do apocalipse. A crise da covid-19 poderia ter servido para impulsionar os governos a unir-se em prol da nossa segurança, como ocorreu com a crise dos mísseis em Cuba, 60 anos atrás, mas não foi o caso. É difícil ver como as coisas poderão melhorar significativamente sem que ainda outras crises e desastres finalmente nos incentivem a agir. Mas o que aprendemos com o Relógio do Juízo Final é que a nossa capacidade atual de lidar com essas crises provavelmente é a pior da história. O Relógio ainda está se movendo e, se não pudermos fazer seus ponteiros voltarem, as badaladas da meia-noite podem não estar distantes. *S. J. Beard é pesquisador do Centro de Estudos dos Riscos Existenciais da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Sua conta no Twitter é @CSERSJ.
2022-01-26
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-60129837
sociedade
Crise leva três gerações da mesma família para as ruas de São Paulo
O céu paulistano anunciava um temporal enquanto Caroline Silveira, 24, passava entre os carros parados em um farol da avenida Cruzeiro do Sul, em Santana, zona norte da cidade, para "manguear". Na barraca na calçada, entre trovões e buzinas, dormia uma de suas duas filhas, uma menina de um ano e nove meses. Caroline explica que "manguear" é pedir dinheiro, emprego, comida, leite, fraldas, brinquedos, roupas, ou qualquer auxílio que possa amenizar um pouco a dureza que é viver nas ruas de São Paulo. Como ela, ali na frente da Rodoviária do Tietê, a maior da América Latina, dezenas de pessoas - incluindo bebês - sobrevivem principalmente do verbo manguear. No caso da família de Caroline, são três gerações de mulheres sob a mesma barraca embaixo do viaduto por onde passa o metrô: ela, suas duas filhas pequenas, e sua mãe, Sulamita Baptista, 42, grávida de oito meses. "Para não fazer uma coisa errada, tirar dos outros, a gente prefere manguear", diz, quando o farol ficou verde. As quatro mulheres foram para a rua há pouco mais de um ano, depois que Caroline e a mãe perderam seus empregos - os pais das crianças também estão parados, e dependem de bicos esporádicos. Sem dinheiro para o aluguel, a família foi despejada da casa onde vivia. Em Santana, a locação de um apartamento em um conjunto habitacional fica próximo de R$ 1 mil. Caroline era faxineira em eventos na zona norte, principalmente no centro de convenções do Anhembi, mas a pandemia interrompeu os trabalhos. Já Sulamita, que migrou do Recife há 12 anos, produzia adereços e fantasias em uma escola de samba, mas ficou sem serviço quando o Carnaval foi cancelado. Fim do Matérias recomendadas "A gente vive de pegar marmita e pedir no farol. Todo dia um pessoal vem aqui e doa comida", explica Sulamita, que ajuda a cuidar das netas pequenas e espera o parto de seu terceiro filho para 8 de fevereiro. Ela tem feito acompanhamento médico em uma Unidade Básica de Saúde (UBS) da região e, quando o bebê nascer, pretende morar por uns tempos na casa de um parente que prometeu ajuda. A filha e as netas, porém, devem continuar na rua. A família recebe R$ 400 do Auxílio Brasil, programa do governo Jair Bolsonaro (PL) que substituiu o Bolsa Família, mas o valor não dá conta de sanar as necessidades do cotidiano, ainda mais com duas crianças pequenas e uma mulher grávida. "Onde a gente consegue morar com R$ 400 em São Paulo? A gente gasta quase tudo em leite e fraldas. Um quilo de carne está R$ 40. O gás custa R$ 100", diz Sulamita. A situação da família retrata a crise econômica sob o governo Bolsonaro e agravada pela pandemia: aumento de desemprego e da inflação, milhares de despejos e crescimento da fome. O país soma 12,9 milhões de desempregados, e o preço dos alimentos acumula alta de mais de 14,66% nos últimos 12 meses, segundo o IBGE. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora existam decisões judiciais impedindo a remoção forçada de famílias na pandemia, os despejos também cresceram nos dois últimos anos. De agosto de 2020 até novembro do ano passado, 23,5 mil famílias foram despejadas no Brasil, segundo um levantamento da campanha Despejo Zero, lançada por organizações e movimentos sociais. O país somava 123,2 mil famílias ameaçadas de retirada forçada de seus domicílios em outubro do ano passado, um crescimento de 32% em relação ao levantamento anterior, de agosto. "Se você não tem endereço fixo, dificilmente alguém te dá um emprego", diz Caroline, que passa parte do dia "mangueando" para conseguir alimentar as filhas. "Meu sonho mesmo é ter uma casa, um lugar para ficar. Deixar as meninas na creche e procurar um emprego..." Suas duas filhas foram inscritas em uma creche da região há poucas semanas, diz, mas a família ainda aguarda ser chamada pela prefeitura. Já sua mãe, Sulamita, sonha com um futuro melhor para o bebê que vai nascer em poucos dias. "Minhas netas já se acostumaram à rua. Não vai acontecer com meu filho também. Só quero um lugar para ficar, ninguém merece a rua", diz. Nas proximidades da rodoviária do Tietê, a reportagem encontrou dezenas de pessoas em situação parecida: despejadas, sem emprego e renda fixa, vivem em barracas em canteiros e praças. Pararam ali por causa do fluxo intenso de pessoas que entram e saem da rodoviária, oportunidade de conseguir mais doações. Boa parte fica embaixo do elevado por onde passa a linha 3-azul do metrô, em frente à entrada principal do terminal rodoviário. As grandes pilastras desse viaduto, pintadas com grafites, já fizeram parte de um projeto do poder público e de artistas de transformar a área em uma espécie de museu da arte de rua paulistana. Porém, hoje as obras estão sujas e degradadas, além do mato e lixo acumulado. Quem vive por ali precisa conviver com grandes goteiras e poças d'água que se formam quando chove forte. Uma dessas famílias é a de Tatiane dos Santos, 37, e Marcio Freire, 42. O casal tem um filho de um ano e oito meses, que vive com eles em uma pequena barraca. Eles são de Francisco Morato, cidade da Grande São Paulo. Lá, pagavam R$ 600 de aluguel até serem despejados. Sem serviço, migraram para as ruas da zona norte há quatro meses. "Em Francisco Morato a gente podia passar fome, sem dinheiro. Lá quase não tem assistência, ninguém ajuda. Aqui sempre tem alguém pra doar uma marmita, um alimento", diz Tatiane, que já foi cozinheira e vendedora. Com o filho pequeno e sem endereço fixo, está desempregada há quase dois anos. Recebe R$ 400 do Auxílio Brasil, mas o valor é consumido com as despesas básicas do filho, como fraudas e leite. Seu companheiro, Marcio, não consegue serviço fixo como vigilante há mais de um ano - de vez em quando consegue pequenos bicos nas ruas. "A rua é sem futuro, mas é o que tem pra gente. Sempre ouvi que as pessoas que moravam na rua eram 'vagabundas', drogados. Hoje são famílias inteiras, crianças, bebês", diz ele. O casal afirma ter dificuldade para conseguir uma vaga em centros de acolhida da prefeitura. "Nunca tem vaga pra mulheres e crianças", diz Tatiane. A poucos metros dali, na avenida Zaki Narchi, há um abrigo municipal, mas o espaço só recebe homens. A reportagem tentou visitar o local na tarde do dia 13/1, mas funcionários de uma empresa terceirizada que administra o ponto impediram a entrada, alegando ser necessária autorização prévia da prefeitura. O acolhimento falho a famílias desabrigadas é um dos atuais gargalos da política de assistência à população em situação de rua em São Paulo, segundo Renata Bichir, professora da USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM). "Existem pouquíssimas opções de abrigo para famílias e mulheres com filhos. Muitas vezes, as mulheres precisam sair para procurar emprego, mas não têm com quem deixar as crianças, porque alguns abrigos não permitem que elas fiquem. Acabam deixando com colegas, em uma relação informal", diz. Para Bichir, o poder público não acompanhou a recente mudança de perfil dessa população. "Os equipamentos sempre foram voltados para homens, mas muitas mulheres e famílias foram viver na rua recentemente, e o serviço não melhorou", explica. "Era muito difícil encontrar crianças nas ruas de São Paulo. Mas com a crise econômica, a alta da inflação e o desemprego entramos de novo nesse buraco", diz. A gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) informou que a cidade tem 18 centros de acolhida exclusivos para mulheres, totalizando 986 vagas - 50 delas para gestantes, mães e bebês. Já para homens existem 11.692 vagas - outras 1.569 não têm predefinição de gênero e são destinadas às famílias que necessitam de acolhimento, diz a prefeitura. Também afirma que todos os dias agentes abordam adultos, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social na região da rodoviária, "oferecendo apoio e encaminhamento para os centros de acolhidas, inclusive, orientando-os com relação a inscrições em programas de assistência". O problema é que, na prática, muita gente prefere não recorrer aos abrigos por uma série de problemas, como estrutura ruim, dificuldade de encontrar vagas, regras restritivas e baseadas em padrões morais de comportamento e, no caso das mulheres, receio de perder a guarda dos filhos caso o contato com municipalidade inicie algum processo judicial nesse sentido. Essa é a avaliação Juliana Rocha, mestre em administração pública e governo pela FGV e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB), que participa de pesquisas de campo com mulheres em situação de rua. "Alguns espaços permitem que as mulheres fiquem no local durante o dia. Já em outros ela precisa ficar fora e só voltar no fim da tarde. Além disso, as mulheres são cobradas para ter uma super postura materna de trabalho e estudo ao mesmo tempo em que são julgadas negativamente quando existe algum problema, quando deixam o filho com alguém para procurar emprego, ou quando arrumam namorado", diz. Para ela, a situação de rua é ainda mais dramática para as mulheres e crianças, que ficam mais expostas à violência. "A Constituição tem esse compromisso de proteger a criança, porque ela está em desenvolvimento e é vulnerável. Nas ruas, elas estão expostas à violência, ao trabalho infantil, às vezes sem a oportunidade de estudar e experimentar a vida com a proteção social que toda criança merece", diz. O censo aponta, ainda, que 3,1% das pessoas tinham entre 0 e 17 anos. A faixa etária entre 31 e 49 anos representava 49,4%; outros 18,5% tinham entre 18 e 30 anos. Já 28% estavam na rua há menos de dois anos; 28,7%, há mais de dois anos, e 26% há mais de 5 anos. As redondezas da rodoviária explicam um pouco esse aumento de contingente na pandemia. Há dois anos eram raras as barracas na região. Hoje, o local é uma espécie de ponto inicial de um corredor ocupado por essa moradia precária: ele sai da Cruzeiro do Sul, passa pelas avenidas Santos Dumont e Tiradentes e pela região da cracolândia, chegando ao centro da cidade, onde é difícil circular sem encontrar pessoas nessa condição. "É importante saber o perfil dessa população para direcionar as políticas públicas adequadas para cada grupo. Há uma série demandas e polícias que poderiam mitigar esse problema complexo, como moradia, segurança alimentar e saúde mental", diz Bichir. São múltiplos os fatores que levam as pessoas às ruas. O levantamento anterior da prefeitura apontou que 41% dos entrevistados culparam "conflitos familiares" como motivo principal. Outros 26% falaram em "perda de trabalho". Dependência de drogas ilícitas e álcool somavam 33%. Perda de moradia, 13%. O próprio serviço de acolhimento foi bastante criticado pelos usuários. Embora 59,5% dos entrevistados tenham dito que os abrigos são "bons ou ótimos", 20% disseram já terem sido vítimas de discriminação por parte de algum funcionário, 30% já ficaram sem receber alimentação e 34% relataram ter dormido em colchões sujos ou com insetos. Em nota, a prefeitura afirma que, "preocupada com o agravamento da crise trazido pela pandemia", adiantou o censo da população de rua para o início deste ano - ele estava previsto para 2023. "A iniciativa se deu justamente pela percepção de que havia necessidade de atualizações", diz a gestão. A região da rodoviária também é ocupada por migrantes de outros estados que estão tentando a sorte em São Paulo. Sem parentes ou conhecidos na cidade e, principalmente sem oportunidades de emprego, acabaram embaixo de alguma barraca. É o caso de Caio Marinho, 21, que saiu de Ceilândia, no Distrito Federal, para procurar trabalho na capital paulista. Chegou no final de dezembro, mas até semana retrasada só conseguiu um bico esporádico em uma lanchonete. Sem dinheiro para alugar um espaço, montou uma barraca em frente à rodoviária, onde estava vivendo em meio a dezenas de ciganos que também ocupam a área. "Fico aqui porque é mais seguro, bem policiado. Passa muita gente e não corro risco, e sempre tem auxílio. De fome ninguém morre", diz. Desempregado há um ano e meio, sonhou que a "cidade das oportunidades" resolveria o problema. "Vim só com a mochila e as roupas. Em São Paulo, se você correr atrás, consegue emprego, sim. Tenho certeza que vai dar certo", diz, dentro da barraca. Na mesma situação está José Gonçalves Neto, 51, que improvisou um pequeno barraco de plástico em uma praça a poucos metros da rodoviária. De Divinópolis (MG), chegou a São Paulo há pouco mais de um ano. Até conseguiu um emprego de caseiro em Cotia (Grande SP), mas perdeu o serviço no início de dezembro. "Eu tinha R$ 200 no bolso. Vim para a rodoviária para voltar para Minas, mas perdi o ônibus. Fui para a rua e acabei sendo roubado e agredido. Perdi até os documentos", conta. Parte de sua família, que ainda vive em Minas, não sabe da situação. Sua ex-companheira e a filha, de três anos, ficaram em Cotia. "Eu desisti de voltar para Minas. Tudo o que quero é arrumar um emprego e alugar um quartinho para mim. Depois procurar minha filha de novo...", diz, enquanto espera o semáforo fechar. Durante o dia, José pede comida e emprego entre os carros que param no farol. Carrega sempre uma placa: "Procuro trabalho. Demitido em 10/12/21. Caseiro/Manutenção Geral. Tenho referência. Aceito ajuda! Deus abençoe".
2022-01-25
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60031378
sociedade
Por que colegas de trabalho com quem temos relação de amor e ódio são os mais estressantes
Entre os mais próximos, é fácil identificar dois grupos de pessoas: os amigos verdadeiros, que iluminam os dias de trabalho, e os inimigos declarados - aquelas pessoas que deliberadamente dificultam a sua vida sem motivo. E as pessoas que ficam no meio do caminho? Esses colegas podem oferecer um ombro amigo para desabafar angústias, mas depois as espalham por nossas costas. Ou nos defendem das críticas, mas levam todo o crédito por um projeto conjunto, eliminando suas contribuições sem sequer olhar para trás. Eles ajudam e prejudicam igualmente. São, ao mesmo tempo, amigos e inimigos, ou "relacionamentos ambivalentes". Fim do Matérias recomendadas Antigamente, os psicólogos do trabalho costumavam ter uma visão em preto e branco dos nossos relacionamentos com colegas, ignorando as muitas áreas cinza das nossas relações sociais. Mas pesquisas recentes demonstram que aqueles que são nossos amigos e inimigos ao mesmo tempo têm a mesma importância ou mais que as pessoas que estão nos extremos do espectro - e trazem consequências próprias para a nossa saúde, bem-estar e comportamento no trabalho. Compreendendo suas complexidades, todos nós podemos aprender a enfrentar a política do emprego com mais sabedoria - e talvez reduzir o estresse causado por essas pessoas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Não há dúvida que amigos verdadeiros trazem enormes benefícios para a saúde e o bem-estar em geral. Existe uma ampla literatura científica disponível demonstrando que nossas conexões sociais podem elevar a autoestima e nos ajudar a recuperar do estresse com mais rapidez. Elas reduzem não apenas o risco de doenças mentais, mas também de doenças físicas e até da morte. Por isso, não é surpreendente que os relacionamentos totalmente negativos nas nossas vidas causem o efeito contrário: pesquisas demonstram que colegas ou familiares psicologicamente abusivos podem causar enormes prejuízos para a nossa saúde em geral. Somente na última década, os cientistas começaram a examinar as pessoas desse bloco intermediário - os relacionamentos ambivalentes, que podem ter lados bons e ruins - e seus efeitos sobre as nossas vidas. Para isso, eles desenvolveram questionários simples que pedem aos participantes que avaliem como seus amigos são prestativos ou perturbadores, em uma escala de 1 (absolutamente não) a 6 (totalmente). Dependendo das respostas a cada pergunta, os pesquisadores podem determinar se o relacionamento é de apoio, aversão ou ambivalente. Segundo Julianne Holt-Lunstad, professora de Psicologia e Neurociências da Universidade Brigham Young, nos Estados Unidos, um amigo apoiador teria nota 2 ou mais na característica positiva e 1 na negativa, enquanto o amigo com comportamento indesejado teria o oposto. O relacionamento ambivalente - amigo e inimigo ao mesmo tempo - teria pelo menos nota 2 nas duas avaliações. Usando essas categorias, pesquisadores como Holt-Lunstad vêm sendo capazes de identificar como nossas reações aos relacionamentos ambivalentes são diferentes dos outros tipos de relacionamentos. Alguns poderiam imaginar que os efeitos da amizade ambivalente enquadrem-se entre os relacionamentos de apoio e de aversão: o bom e o ruim simplesmente se cancelam, de forma que o impacto geral seja neutro. Mas não é isso que acontece. Em diversos experimentos ao longo dos últimos dez anos, Holt-Lunstad demonstrou que as interações com amigos que também são inimigos ao mesmo tempo podem aumentar nosso estresse, em comparação com os relacionamentos de apoio e de aversão. E, no longo prazo, esse tipo de relacionamento parece causar prejuízos à saúde cardiovascular. O problema está na incerteza típica das suas reações. Nós podemos desejar sua aprovação ou apoio, mas sabemos que isso pode não vir - e, por isso, ficamos em tensão constante. E, se eles reagirem mal, seu comportamento ofensivo, ou sua simples falta de interesse, irá nos magoar muito mais que o comportamento de alguém de quem simplesmente não gostamos. Holt-Lunstad estima que uma pessoa tem, em média, a mesma quantidade de amigos e de relacionamentos ambivalentes. Mas, apesar dessa pesquisa, muitos sociólogos e psicólogos continuam a ignorar essa questão. "Embora exista maior reconhecimento da importância da qualidade nos relacionamentos, ainda existe a percepção de que a questão é apenas de negatividade contra positividade", afirma Holt-Lunstad, que publicou recentemente um artigo descrevendo suas conclusões. "Ainda se subestima como os relacionamentos com aspectos positivos e negativos podem influenciar a nossa saúde e bem-estar." Se as relações de amor e ódio em geral foram pouco estudadas, o seu papel no trabalho é ainda menos compreendido. É uma pena, pois muitos ambientes de trabalho podem ser bastante apropriados para o surgimento e manutenção de relacionamentos ambivalentes. "As organizações muitas vezes nos levam a interações com pessoas que não escolheríamos para nosso convívio social", afirma Shimul Melwani, professora de Comportamento Organizacional da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill, nos Estados Unidos. Em alguns casos, o senso de competição profissional injeta negatividade na relação de trabalho. Você pode achar seu colega muito agradável, por exemplo, e ficar contente em sair com ele para beber - mas se sentir traído quando ele se candidata à mesma promoção que você. "É normal que as pessoas queiram progredir, mas também se dar bem com seus colegas ao mesmo tempo", segundo Naomi Rothman, professora de Administração da Universidade Lehigh em Bethlehem, nos Estados Unidos. Melwani e Rothman realizaram recentemente uma série de estudos para examinar essa dinâmica, e seus resultados foram publicados em setembro de 2021. Em um experimento, elas pediram aos participantes que entrassem em um "Programa de Amigos Rápidos", que consiste em responder a uma série de perguntas pessoais para um completo estranho, como relacionar suas conquistas mais importantes. Pesquisas anteriores haviam demonstrado que esse procedimento pode estabelecer rapidamente sentimentos de conexão emocional. Mas, depois de alguns minutos, Melwani e Rothman apimentaram as coisas. Um terço dos participantes continuou a participar de forma puramente positiva - descrevendo o que eles gostavam um no outro -, mas outro terço precisava dizer o que eles não gostavam na outra pessoa, introduzindo certa negatividade explícita. Já os demais receberam uma tarefa mais ambígua: avaliar as conquistas do outro e compará-las com as suas próprias, o que cria um sentido de competição. Depois dessas conversas iniciais, pediu-se aos participantes que escrevessem uma postagem em um blog sobre a sua instituição, que foi editado pelo parceiro. E eles tiveram em seguida a oportunidade de oferecer um relato por escrito do desempenho do parceiro - diretamente para a pessoa e de forma privada para os pesquisadores. Como esperado, as conversas iniciais moldaram a natureza dos relacionamentos formados rapidamente. As perguntas que incentivaram conversas positivas ou negativas criaram relacionamentos de apoio ou de aversão, enquanto as interações competitivas geraram sentimentos ambivalentes entre os parceiros. Isso afetou o comportamento dos participantes de formas interessantes. Os que eram amigos e inimigos ao mesmo tempo se esforçaram mais na edição do relato dos parceiros que os grupos de aversão e mesmo os de apoio, por exemplo. "Eles realmente foram além do que foi pedido", segundo Melwani. E ainda foram mais propensos a dar um feedback negativo para os pesquisadores, essencialmente prejudicando a reputação do seu parceiro aos olhos dos cientistas. É fácil compreender por que os parceiros de aversão se esforçaram menos para editar o trabalho do colega - eles simplesmente não se importavam - enquanto os que são amigos e inimigos ao mesmo tempo pelo menos estabeleceram algum sentimento de boa vontade. Mas o fato de que os parceiros ambivalentes também se esforçaram mais que os parceiros puramente de apoio é surpreendente. Os amigos rápidos recém-formados não deveriam ter sido mais cooperativos? Melwani suspeita que a maior disposição para ajudar pode fazer com que os parceiros ambivalentes eliminem as tensões inerentes a esse tipo de relacionamento - o desejo de manter a cordialidade, mesmo com a irritação e a contrariedade. "Eles não querem que esse relacionamento se torne totalmente negativo", afirma ela. Por isso, compensam seus sentimentos ruins com mais esforço para melhorar o trabalho do seu parceiro. O estudo seguinte de Melwani e Rothman questionou funcionários do setor de varejo dos Estados Unidos sobre seus colegas. Elas concluíram que a natureza das relações ambivalentes depende dos anseios de proximidade das pessoas. Quanto mais as pessoas desejavam estabelecer conexão com seu parceiro ambivalente, mais propensas elas ficavam tanto a ajudar quanto a prejudicar seu parceiro no trabalho. Em outras palavras, as intenções positivas significam que todos os elementos do relacionamento, bons e ruins, são mais intensos. "Isso torna a ambivalência mais marcante", explica Melwani. Melwani ressalta que os gestores podem levar em conta essas conclusões e procurar, por exemplo, medidas para reduzir o sentimento de competição entre os colegas, que pode ser uma das causas da ambivalência, e garantir que os relacionamentos permaneçam mais solidários. Para os empregados, Melwani espera que um maior conhecimento dessa dinâmica possa nos ajudar a lidar com os colegas mais difíceis. Ela afirma que nossa memória é muito curta, o que significa que nossos sentimentos pelos colegas ambivalentes no trabalho podem ser facilmente influenciados pelas suas ações mais recentes, sem necessariamente reconhecer que a ambivalência é um padrão duradouro e uma das principais características da relação. Ao compreendermos isso, podemos determinar se os benefícios superam o potencial de contrariedade e se talvez estamos muito necessitados do seu respeito ou afeição. É preciso lembrar que a pesquisa de Melwani demonstra que o desejo de proximidade amplifica os sentimentos ambivalentes. Por isso, se você começar a sentir-se estressado demais com o relacionamento, talvez possa tentar ser um pouco mais realista nas suas expectativas sobre o que o seu parceiro ambivalente poderá oferecer, sem necessariamente eliminá-lo completamente da sua vida. Às vezes, precisamos aceitar que alguém nunca será um amigo próximo, mas que vale a pena manter o vínculo com essa pessoa - à distância.
2022-01-22
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-60027037
sociedade
O pragmatismo da geração Z sobre amor e sexo
"Você está pronto para constituir família?" Essa é a pergunta que Kyung Mi Lee, estudante da Universidade Yale, nos Estados Unidos, apresentou em um artigo de fevereiro de 2020, intitulado Settling Down: Romance in the Era of Gen Z ("Constituindo família: o romance na era da geração Z", em tradução livre) e publicado no jornal universitário Yale Daily News. Estariam ela e seus colegas seguindo a tendência dos millennials, de postergar o casamento? Cerca de dois anos depois que escreveu o artigo, Lee (agora com 23 anos de idade) acha que a resposta é sim — mas por uma razão que talvez seja diferente dos seus companheiros millennials. "No meu imaginário cultural, a aversão [da geração millennial] a compromissos de longo prazo significa que as pessoas estão tendo mais relacionamentos", afirma ela. Fim do Matérias recomendadas Em outras palavras, Lee acredita que os millennials (nascidos entre 1980 e 1995) levaram mais tempo para casar-se porque estavam ocupados aproveitando a vida de solteiro. Para a geração Z (nascida entre 1995 e 2010), ela imagina que "as pessoas têm aversão [a relacionamentos de longo prazo] porque elas são mais... introspectivas sobre os tipos de relacionamentos que desejam ter". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Cada vez mais pesquisas confirmam a opinião de Lee: a geração Z parece ter uma visão muito pragmática dos relacionamentos em comparação com as gerações anteriores e estão fazendo menos sexo. "Eles compreendem que poderão ter parceiros diferentes em diferentes épocas da vida [que] podem atender a necessidades diversas", segundo Julie Arbit, vice-presidente global de conhecimentos do grupo de comunicação Vice. Sua pesquisa envolveu 500 participantes do Reino Unido e dos EUA (em sua maioria, da geração Z e millennials, com alguns participantes da geração X incluídos "para comparação") e concluiu que apenas um em cada 10 integrantes da geração Z afirma ter "decidido firmar compromisso". Outros pesquisadores chegaram a conclusões similares. Segundo um estudo sobre a geração Z na Índia, por exemplo, 66% dos participantes aceitam que "nem todos os relacionamentos serão permanentes", enquanto 70% rejeitam uma "relação romântica limitadora". Os pesquisadores e os membros da geração Z atribuem essa questão a dois fatores. Primeiramente, essa geração está entrando na idade adulta em uma época particularmente delicada, marcada pela pandemia da covid-19, mudanças climáticas cada vez mais sérias e instabilidade financeira. Muitos acreditam que precisam atingir a estabilidade sozinhos antes que outra pessoa entre em cena. E existe também o maior acesso a informações online sobre relacionamentos, que fornecem à geração Z a linguagem de que eles precisam para definir quem são e o que querem de um relacionamento que não comprometa sua identidade e suas necessidades. "Eles são extremamente focados em si próprios", afirma Arbit, "e não porque estão sendo egoístas. Eles sabem que são responsáveis pelo seu próprio sucesso e felicidade e que precisam ser capazes de cuidar de si próprios antes de cuidar dos demais." "Nos anos 1960 e 1970, um homem comum de 25 anos de idade conseguia sustentar uma família com a sua renda, sem esperar que sua esposa trabalhasse", afirma Stephanie Coontz, diretora de pesquisa e educação pública do Conselho sobre Famílias Contemporâneas, com sede nos Estados Unidos. Para muitas pessoas da geração Z, a ideia de que uma pessoa com 25 anos de idade possa sustentar toda uma família e que o homem espera que a esposa fique em casa não se adapta mais às circunstâncias atuais — e, para alguns, parece até motivo de risadas. A geração Z prioriza uma base financeira sólida individual, o que está alongando o caminho até o casamento, segundo Arielle Kuperberg, professora de sociologia da Universidade da Carolina do Norte em Greensboro, nos Estados Unidos. Para ela, "as pessoas estão levando cada vez mais tempo para constituir família porque estão demorando cada vez mais para atingir a estabilidade financeira". Kyung Mi Lee e seus amigos concordam. Ela conta que se sente na "geração mais instável financeiramente da história", o que aumenta o seu desejo de atingir "independência financeira" antes de estabelecer-se em um relacionamento de longo prazo. Veterana na universidade, Lee afirma que ela e seus amigos estão muito mais dispostos a priorizar suas carreiras do que seus relacionamentos, para atingir uma posição financeiramente mais estável. "É raro ter um amigo que diga 'vou me mudar para este lugar para poder ficar com meu ou minha parceira'", conta ela. Eles estão se concentrando mais no que é melhor para suas carreiras e como eles podem fazer os relacionamentos encaixar-se nelas. A pesquisa de Kuperberg sobre a geração Z confirma esse fato. Ela concluiu que pessoas mais jovens em vias de construir suas carreiras são menos propensas a ter encontros formais do que os millennials. "Não acho que eles não queiram ter relacionamentos de longo prazo. Acho que eles estão postergando esses relacionamentos", afirma ela. Kuperberg também concluiu que a atual instabilidade dos jovens adultos levou mais jovens a voltar para a casa dos pais porque não conseguem sustentar-se sozinhos na casa dos 20 anos de idade. "O aumento dos relacionamentos mais casuais e a queda dos relacionamentos mais sérios... ocorre porque simplesmente é mais difícil formar [estes últimos]." E, recentemente, a pandemia de covid-19 também exacerbou a tendência dos jovens adultos não conseguirem viver independentemente. Kuperberg entrevistou um homem da geração Z no primeiro semestre de 2020 que se mudou com seus pais de Washington para a Carolina do Norte, nos Estados Unidos, pouco depois que a pandemia atingiu o país. Ele contou aos pesquisadores que não iria namorar de novo enquanto não voltasse para a capital. Um estudo global sobre o amor depois do lockdown conduzido pelo grupo de comunicações Vice em setembro de 2020, no qual 45% dos participantes eram da geração Z, demonstrou que 75% estavam solteiros e não namoraram durante a pandemia. Muitos relataram que isso ocorreu, em parte, porque eles queriam usar o tempo sozinhos para conhecer-se melhor antes de buscar um parceiro. "Comecei a pensar sobre mim mesmo, o que eu quero e o que não quero fazer... e isso me ensinou muito", disse anonimamente um homem da geração Z da Itália, citado na pesquisa. Uma mulher da geração Z dos Estados Unidos expressou o mesmo sentimento: "estou fisicamente distante de todos e [agora] posso dar um passo atrás e perguntar 'quem sou eu?'" É claro que essa atitude pode ser consequência da falta de escolha durante o lockdown e não de uma propensão da geração Z à introspecção. Mas membros da geração Z de todo o mundo têm muito mais recursos para descobrir quem são, incluindo aplicativos de redes sociais como o TikTok, onde terapeutas comumente discutem estilos de conexão e dicas de relacionamentos saudáveis. Lee, por exemplo, observou que suas irmãs mais jovens (uma no primeiro e outra no segundo ano da faculdade) aprenderam no TikTok linguagem profunda para falar sobre relacionamentos. "Os adolescentes estão falando sobre seus estilos de conexão a parceiros românticos e sexuais usando linguagem como 'meu estilo de conexão é ansioso'", afirma ela. Isso indica uma visão muito consciente do que é o namoro, priorizando encontrar alguém que faça sentido para você e não alguém que você simplesmente ache atraente ou interessante. Embora essas prioridades certamente não sejam exclusivas dessa geração, a geração Z dispõe de uma série de recursos facilmente disponíveis para encontrar, de forma mais consciente, um parceiro mais adequado, de maneiras que as gerações anteriores talvez não conhecessem. Outro fator é a evolução da postura sobre a sexualidade e os papéis de gênero. Na geração Z, existe uma sensível redução da adesão a um gênero binário e um aumento das "pessoas dispostas a explorar a sua sexualidade", segundo Kuperberg. Na sua pesquisa, analisada pela BBC, ela inclui uma estatística que demonstra que cerca da 50% das pessoas da geração Z identificam-se como heterossexuais e "muitos afirmam que são heteroflexíveis". Essa abertura para diferentes tipos de parceiros sexuais e relacionamentos relembra as observações de Julie Arbit sobre a geração Z, sobre não necessariamente procurar seu único relacionamento, mas sim buscar diversas pessoas para atender a necessidades diferentes, sejam elas românticas, sexuais ou algo totalmente diferente. "Nossos pais podem ter procurado alguém da mesma religião ou das mesmas opiniões políticas", afirma Arbit. "Esta geração está procurando honestidade e paixão, alguém que os anime a levantar da cama de manhã... em comparação com as gerações anteriores, eles estão abertos para namorar com diferentes tipos de pessoas e dar a elas uma chance." Essa abordagem holística dos relacionamentos é totalmente diferente das adotadas por muitas gerações anteriores. Stephanie Coontz, do Conselho sobre Famílias Contemporâneas, relembra que, quando ela entrevistava pessoas para seu livro sobre as mulheres e as famílias nos anos 1960 e perguntava às mulheres por que elas decidiram se casar, "elas pareciam surpresas... e diziam 'estava na hora'". "Havia esse sentimento de que o casamento era algo que você fazia para entrar na vida adulta... agora, é o contrário." Este é um sinal de mudança para a geração Z. Enquanto o casamento costumava ser um rito de passagem para a idade adulta, hoje ele é um sinal de que você já é adulto. A sociedade vem se movendo nessa direção há algum tempo e cada geração tem ideias mais flexíveis sobre a família tradicional e sua importância nas suas vidas. É difícil distinguir se a geração Z está moldando a sociedade com essa postura ou se é a sociedade que está moldando a geração Z. É claro que esses padrões não são válidos para todos. Entre estudantes universitários, Arielle Kuperberg descobriu que raça, classe social, gênero e religião das pessoas da geração Z podem influenciar a forma como eles namoram e procuram relacionamentos. "As pessoas brancas são mais propensas a ter relacionamentos casuais. Já as pessoas negras costumam formar relacionamentos ou ter mais encontros formais", segundo ela, acrescentando que as pessoas de ambientes socioeconômicos mais favoráveis são mais propensas que outras a ter encontros sexuais casuais e formar relacionamentos de longo prazo — provavelmente porque elas "têm mais recursos" e, consequentemente, mais estabilidade. Embora muitos sinais indiquem que a geração Z esteja postergando o casamento ou relacionamentos permanentes, como os millennials antes deles, suas razões para isso parecem ser cada vez mais pragmáticas. É certo que os millennials postergaram o casamento por razões práticas, como o medo do divórcio (muitos deles cresceram como filhos de casais divorciados) e porque não conseguem sustentar-se. Mas a geração Z está herdando um mundo considerado ainda mais incerto, à medida que os problemas que afetaram os millennials (como as mudanças climáticas) tornam-se mais sérios e novos problemas surgem (como a pandemia). Isso poderá fazer com que a promoção da estabilidade individual torne-se a prioridade número 1 para a geração Z — ainda mais importante que para seus colegas um pouco mais velhos. "Nós brincamos sobre quem vai se casar primeiro [no] nosso grupo de amigos", conta Lee, "e achamos engraçado alguém se casar na casa dos 20 anos."
2022-01-16
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-59982142
sociedade
A verdade sobre supostos pesadelos causados por comer queijo antes de dormir
Afirma-se que apreciar o sabor intenso de um gorgonzola ou comer um camembert maduro antes de dormir causa sonhos estranhos ou até pesadelos. Mas os queijos realmente podem influenciar o que acontece enquanto dormimos? Temos uma estranha relação com os queijos. Muitas vezes, eles são um dos alimentos preferidos das pessoas - existem festivais totalmente dedicados aos queijos. Provar queijos e harmonizá-los com vinhos, molhos e biscoitos tornou-se uma forma de arte. E também sabemos que ele contém gordura saturada e comer muito queijo pode prejudicar nossa saúde. Mas algumas pessoas argumentam que o queijo tem um lado sombrio ainda mais surpreendente - ele pode afetar o nosso cérebro enquanto dormimos. Comer queijo tarde da noite, dizem, faz com que as pessoas tenham sonhos estranhos. Em 1964, um pesquisador observou que um paciente parou de ter pesadelos quando abandonou o hábito de comer 30 a 50 gramas de queijo cheddar todas as noites. Fim do Matérias recomendadas Mais recentemente, o extinto Conselho Britânico do Queijo financiou um estudo em 2005 e concluiu que comer queijos azuis, como o gorgonzola e o roquefort, causa sonhos intensos, enquanto o queijo cheddar faz com que as pessoas sonhem com celebridades. O estudo não foi exatamente consistente do ponto de vista científico, nem foi publicado em revistas revisadas por outros cientistas, mas suas conclusões ajudaram a perpetuar a crença de que o queijo pode influenciar o conteúdo dos nossos sonhos. Não existem evidências sólidas de que os queijos causem pesadelos — nem, de fato, grandes comprovações de que essa teoria esteja errada. Mas o predomínio dessa teoria poderá ser suficiente para que ela se torne verdade, segundo Tore Nielsen, professor de psiquiatria da Universidade de Montreal, no Canadá, e diretor do laboratório de sonhos e pesadelos da instituição. "Apenas saber que o queijo afeta os pesadelos poderá induzir sonhos, pois as pessoas são sugestionáveis", afirma ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outra explicação indireta é o alto teor de lactose do queijo. Em um estudo conduzido por Nielsen em 2015, apenas 17% das pessoas afirmaram que seus sonhos são aparentemente influenciados pela alimentação, mas os laticínios foram os alimentos mais frequentemente relatados como causadores de sonhos perturbadores. "É muito possível que esses efeitos se devessem a pessoas portadoras de intolerância à lactose", segundo ele. "É como um efeito indireto no qual a lactose produz sintomas como gases, inchaços e diarreia — que influenciam os sonhos, baseados em fontes somáticas como essas. E, mesmo se você tiver algum tipo de intolerância, pode acontecer de você comer esses alimentos de vez em quando." Mas não há evidências que sustentem a teoria de que os laticínios influenciam os sonhos na população em geral. E essa teoria contradiz as observações que deram ao leite de vaca — que também contém alto teor de lactose — a fama oposta de ajudar-nos a dormir. Uma pesquisa recente de 14 estudos e testes de controle aleatorizados conduzidos entre 1974 e 2019 indicou que, como parte de uma dieta balanceada, o leite e laticínios podem melhorar a qualidade do sono. A reputação do queijo de induzir sonhos intensos poderá também ser explicada, ao menos na Europa, pela tradição de comer queijo durante a última refeição da noite. Comer qualquer alimento tarde da noite poderá afetar a qualidade do sono e muitas vezes o queijo pode acabar levando a culpa sozinho. "Para ter uma boa noite de sono, a temperatura do seu corpo precisa cair em um grau", segundo o especialista independente do sono Neil Stanley. "Normalmente não temos problemas com isso, mas, se você comer muita gordura ou açúcar tarde da noite, você precisará queimar as calorias, o que cria calor. Durante o dia, você pode queimar essas calorias. Mas, à noite, o seu corpo não quer trabalhar", explica ele. A temperatura do nosso corpo varia enquanto dormimos e, se esse equilíbrio não for mantido, o nosso sono pode ser prejudicado. Comer tarde da noite, por exemplo, causa aumento da temperatura corporal na hora de dormir, o que pode prejudicar o nosso sono. Basicamente, se estivermos acordando mais durante a noite, isso pode significar que estamos nos lembrando mais dos nossos sonhos. Um estudo concluiu que as pessoas mais propensas a lembrar-se dos seus sonhos acordam mais durante a noite e demoram mais para voltar a dormir. Uma análise de evidências concluiu que a frequência dos pesadelos está relacionada, em parte, aos distúrbios do sono, enquanto outras evidências sugerem que as pessoas que têm pior qualidade de sono sofrem mais com pesadelos. "Uma razão pela qual o queijo e os pesadelos andam juntos é porque comer mais tarde antes de dormir apresenta grandes possibilidades de prejudicar o sono e o queijo pode ser de difícil digestão", afirma Charlotte Gupta, pesquisadora da Universidade Central de Queensland, na Austrália, que recentemente publicou uma análise da relação entre a alimentação e o sono. Mas existem algumas pesquisas que sugerem que, embora comer refeições noturnas altamente energéticas possa elevar a nossa temperatura corporal ao longo da noite, isso não significa necessariamente uma noite de sono ruim. Sabe-se que o aumento da temperatura corporal afeta os nossos sonhos de outras formas. Há muito tempo, as febres são associadas a sonhos intensos e alucinações. Estudos de sonhos durante acessos de febre sugeriram que eles tendem a ser mais bizarros que os sonhos em temperatura normal. Mas ainda é preciso pesquisar se o queijo é capaz de induzir aumento suficiente da temperatura corporal para induzir sonhos como os verificados em acessos de febre. A boa notícia é que alguns alimentos podem nos ajudar a ter melhor qualidade de sono e talvez nos tornar menos propensos a nos lembrar dos pesadelos. Estudos concluíram que comer kiwi pode trazer uma noite de sono com menos perturbações, pois ele é uma boa fonte de serotonina. Já um outro estudo menor encontrou os mesmos efeitos com suco de cereja. Em um estudo, Gupta concluiu que as pessoas com alimentação mais próxima da dieta mediterrânea - rica em frutas, legumes, verduras e castanhas - têm a melhor qualidade de sono. "O mecanismo por trás desse efeito deve-se provavelmente à composição desses alimentos. Muitos contêm melatonina, que é um hormônio promotor do sono", segundo ela. Marie-Pierre St-Onge, professora de medicina nutricional do Centro Médico Irving da Universidade Columbia, em Nova York, nos Estados Unidos, concluiu que as pessoas com alimentação saudável que atendiam às recomendações nutricionais demoravam a metade do tempo para dormir que com sua alimentação normal, que continha mais açúcar e gordura saturada e menos fibras. "Aparentemente, o consumo de alimentos com maior teor de fibras e alimentos vegetais e menor teor de açúcar e gordura saturada melhora o nosso sono", segundo St-Onge. O queijo contém baixo teor de fibras e muita gordura saturada - mas não mais que muitos outros alimentos que consumimos, como os alimentos processados. Não existem muitas pesquisas sobre os mecanismos por trás da qualidade da alimentação e do sono, mas eles podem estar relacionados com o triptofano, um nutriente envolvido na síntese do hormônio melatonina em nossos corpos. O triptofano é liberado à noite e está relacionado com o sono. Ele é encontrado em alimentos ricos em proteínas, incluindo queijo e também carne — especialmente carne de peru — além do peixe, trigo sarraceno, aveia e tofu. Fora da área científica, esta pode ter sido a origem de algumas das histórias de terror mais antigas que conhecemos. Bram Stoker, por exemplo, aparentemente inspirou-se em um sonho intenso que teve depois de comer caranguejos para escrever Drácula. Já a história do Sr. Jekyll e do Dr. Hyde pode haver ocorrido para Robert Louis Stevenson em um sonho após um farto lanche, tarde da noite. E não existem evidências que demonstrem a melhor hora do dia para comer alimentos ricos em triptofano, segundo St-Onge. Algumas pesquisas concluíram que comer tarde da noite é ruim para o nosso sono, possivelmente porque o estômago cheio ao dormir pode causar desconforto, segundo os pesquisadores, ou o teor mais alto de açúcar no sangue por comer tarde da noite pode afetar os padrões do sono. Mas comer os alimentos certos perto da hora de dormir pode realmente trazer uma boa noite de sono. "Comer perto da hora de dormir não é algo que incentivamos, mas, se você o fizer, é melhor comer alimentos que sabemos que são mais propensos a melhorar o sono", segundo Charlotte Gupta. Eles poderão incluir alimentos ricos em triptofano, segundo ela, como carne, peixe e tofu. A qualidade do nosso sono também poderá ser afetada pela forma como comemos queijo e outros alimentos, e não apenas pelo conteúdo da nossa alimentação. Gupta concluiu na sua pesquisa, por exemplo, que a falta de horários normais para as refeições também pode prejudicar a qualidade do nosso sono. Ir para a cama com fome e sede poderá também causar sonhos mais intensos, segundo a pesquisa de Tore Nielsen. "Os pacientes que relataram manter períodos mais longos entre as refeições tiveram sonhos mais intensos — e sabemos que o jejum é historicamente associado a sonhos intensos", segundo ele. Mas isso é baseado em crenças espirituais e não em evidências científicas. Nielsen também encontrou outras possíveis formas em que os nossos comportamentos alimentares influenciam nossos sonhos, incluindo dietas, compulsão alimentar e alimentação movida pelas emoções - mas ele afirma que os dados são limitados. Segundo sua pesquisa, os "comedores intuitivos", cujo consumo de alimentos é dirigido pela fome e não pela emoção, aparentemente também têm sonhos mais positivos. Para Nielsen, são necessários estudos de laboratório nos quais as pessoas recebem alimentos específicos antes de irem dormir para testar essas hipóteses. Mas esta seria uma pesquisa delicada. Quando tomada para análise, a relação entre o queijo e os pesadelos parece ter tantos buracos quanto um queijo suíço. Mas evidências mais genéricas indicam que aquilo que comemos — e de que forma nos alimentamos — poderá fazer a diferença entre uma boa noite de sono e uma noite terrível. O importante é que podemos tentar melhorar o nosso sono mudando a alimentação, segundo St-Onge. "As pessoas devem prestar atenção ao que elas comem durante o dia e como elas se sentem e dormem, alterando o que for necessário", afirma ela.
2022-01-15
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-59834069
sociedade
Os países onde dar gorjeta é ofensa
No Reino Unido, donos de bares e restaurantes estão prestes a serem proibidos de ficar com as gorjetas deixadas por clientes aos funcionários. O governo quer tornar a prática ilegal, uma vez que muitos trabalhadores dependem das gratificações para aumentar sua renda. Mas nem todos os países do mundo levam o assunto tão a sério quanto os britânicos, que acredita-se terem "inventado" o costume das gorjetas no século 17 — originalmente como uma prática aristocrática de dar pequenos presentes às "classes inferiores". Atualmente, as gratificações são um hábito amplamente difundido em todo o mundo, embora estejam enredadas na cultura e nos valores de uma nação. Em alguns lugares, as pessoas podem ficar até ofendidas se receberem gorjeta. Fim do Matérias recomendadas Uma piada comum entre os americanos é que apenas preencher as declarações de imposto de renda é mais confuso do que dar gorjetas. As gratificações foram importadas para o país no século 19, quando americanos ricos começaram a viajar para a Europa. O costume foi inicialmente reprovado, e os críticos o consideraram antidemocrático, acusando quem dava gorjeta de criar uma classe trabalhadora que "implorava por favores". No século 21, você ainda encontrará americanos debatendo os prós e contras da prática. Mas a gorjeta agora está completamente enraizada em suas mentes: o economista Ofer Azar estimou em 2007 que US$ 42 bilhões foram dados a prestadores de serviços só no ramo de restaurantes. Nos EUA, as gorjetas são um complemento importante do salário. Assim como muitos países asiáticos, a China tem em grande parte uma cultura de não aceitar gorjetas — por décadas, a prática foi proibida e considerada suborno. Até hoje, permanece relativamente incomum. Nos restaurantes frequentados pela população local, os clientes não deixam gratificações. As exceções são restaurantes que atendem principalmente a turistas estrangeiros e hotéis com uma clientela internacional semelhante (mesmo assim, só é aceitável dar gorjeta aos carregadores de malas). Outra exceção é deixar gratificações para guias turísticos e motoristas de ônibus de turismo. O intrincado sistema de etiqueta do Japão contempla gratificações. É socialmente aceitável em ocasiões como casamentos, funerais e eventos especiais — mas em situações mais comuns, pode na verdade fazer com que quem recebe se sinta depreciado. A filosofia é que deve se esperar um bom serviço antes de qualquer coisa. Mesmo nas ocasiões em que são esperadas gorjetas, a prática segue um protocolo que inclui a entrega do dinheiro em envelopes especiais em sinal de gratidão e respeito. Os funcionários de hotéis, que são quase universalmente cordiais e prestativos, são treinados para recusar educadamente as gorjetas . Em 1955, a França aprovou uma lei exigindo que os restaurantes adicionassem uma taxa de serviço às contas — prática que se tornou então comum na Europa e em outras partes do mundo —, como uma forma de melhorar os salários dos garçons e torná-los menos dependentes de gorjetas. No entanto, a gorjeta permaneceu habitual, apesar de pesquisas mostrarem que as gerações mais jovens de franceses tendem a não dar gorjeta. Em 2014, 15% dos consumidores franceses disseram que "nunca dariam gorjeta", um percentual duas vezes maior do que no ano anterior. A Nação Arco-Íris aparece aqui por causa de um serviço específico que normalmente não é contemplado em muitos países: o de vigia de carros ou "flanelinhas". É uma indústria informal que cresceu em proporção à taxa de desemprego da África do Sul — agora de 25% — e consiste basicamente de indivíduos que ajudam os motoristas a encontrar vagas e vigiam seus veículos. De acordo com estatísticas oficiais, quase 140 automóveis foram roubados todos os dias no país no ano passado. Pagar menos de US$ 1 pelo serviço não é o problema aqui: o debate na África do Sul é que o processo é quase totalmente desregulamentado e não há garantias de que nenhum dos lados cumprirá sua parte do acordo. Costuma-se dizer que as pessoas na Suíça arredondam contas e deixam gratificações para funcionários de hotéis e profissionais como cabeleireiros. No entanto, o país tem um dos salários-mínimos mais altos do mundo: os garçons, por exemplo, ganham mais de US$ 4 mil por mês. Portanto, eles não são tão dependentes de gorjetas quanto seus colegas americanos. Muitos restaurantes na Índia cobram taxas de serviço na conta, então é considerado normal não deixar gorjeta. Do contrário, a etiqueta é deixar de 15% a 20% do valor. Não é raro encontrar restaurantes que exibem placas contra gorjetas. Uma pesquisa de 2015 revelou que os indianos estavam entre os que mais pagam gorjetas na Ásia, atrás apenas de Bangladesh e da Tailândia. Embora pequenas doações não sejam ofensivas em hotéis, restaurantes e táxis, as gratificações podem ser uma questão delicada em Cingapura. O site do governo afirma que "dar gorjeta não é um estilo de vida" na ilha. A gorjeta está profundamente enraizada no Egito, onde a gratificação é conhecida como baksheesh. Egípcios abastados dão gorjetas regularmente a todos os tipos de prestadores de serviço, de garçons a frentistas de posto de gasolina. As gratificações são bem-vindas em uma economia com taxa de desemprego superior a 10% e na qual o setor informal contribui para quase 40% do Produto Interno Bruto (PIB). Os visitantes do Irã podem se deparar com o ritual do taroof — a prática de deferência em que o pagamento é inicialmente recusado por uma questão de educação —, que pode acontecer até mesmo em corridas de táxi, em que o motorista inicialmente se recusará a aceitar o pagamento. Mas não vai acontecer com uma gorjeta: as gratificações por serviços fazem parte do dia a dia. Durante a era soviética, dar gorjetas era inaceitável na Rússia — era considerado um meio de depreciar a classe trabalhadora. Mas os russos têm uma palavra para isso — chayeviye ("para o chá"). As gorjetas voltaram na década de 2000. Mesmo assim, pessoas mais velhas podem achar a prática ofensiva. Dar gorjeta a um garçom depois de comer um bom bife com vinho Malbec não causará problemas na Argentina — embora, na verdade, seja ilegal para as indústrias de alimentação e hotelaria, segundo uma lei trabalhista de 2004 . Mesmo assim, as gorjetas existem e podem corresponder a até 40% da renda de um garçom argentino.
2022-01-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59906711
sociedade
Como perfume influencia na escolha de parceiros (e o que isso tem a ver com o sistema imune)
Cada pessoa se sente atraída por outra por causas e razões muito diferentes. É sabido, por exemplo, que o odor corporal influencia na escolha do parceiro. E você não precisa fazer muitos experimentos para deixar claro que o cheiro ruim ajuda a descartar pretendentes. Evolutivamente e em diferentes espécies, incluindo humanos, o par é escolhido para complementar de forma otimizada nossos próprios genes, especialmente aqueles relacionados ao sistema imunológico. O objetivo disso é tornar nossa prole resistente a mais patógenos. Fim do Matérias recomendadas E aí vem algo curioso: embora em nossa espécie existam centenas de formas diferentes de genes que codificam o sistema imunológico, em cada pessoa algumas dessas variantes participam fornecendo seu próprio e particular aroma natural que exalamos e que nos acompanha. Ou seja, o odor corporal fala diretamente sobre nosso sistema imunológico. Ainda na década de 1990, cientistas do Instituto Max Planck realizaram os chamados "experimentos de camiseta suada". Consistiam nas meninas cheirando as camisas com as quais meninos - sem terem usado perfume, desodorante ou sabonete aromático - dormiram duas noites seguidas. Assim, eles descobriram que as mulheres preferem o cheiro dos homens que possuem variantes genéticas do sistema imunológico diferentes das delas. Além disso, os pesquisadores também mostraram que variantes genéticas do sistema imunológico influenciam os ingredientes do perfume que mulheres e homens escolhem. Em outras palavras, selecionamos o odor de forma que ele intensifique o próprio sinal olfativo imunogenético. Alguns anos depois, foi realizada uma série de testes em que cada participante foi capaz de reconhecer um perfume específico: aquele ao qual foram adicionadas partículas de seu sistema imunológico que caracterizam seu próprio odor corporal. E eles também selecionaram aquele perfume como seu favorito. Do ponto de vista neurobiológico, as imagens de ressonância magnética mostraram que, quando cada participante cheira suas próprias partículas imunológicas, uma região específica do cérebro é ativada: o córtex frontal medial direito. E isso indica que o ser humano também tem uma estrutura que nos ajuda, levando em consideração o cheiro, a decidir qual parceiro escolher. Em outras espécies, o órgão responsável é o chamado órgão vomeronasal. Por meio dele são detectados feromônios, por exemplo. Em humanos, esse órgão é pouco desenvolvido e não é funcional. Com este título sugestivo, foi publicado recentemente um artigo científico em que se analisa a influência de estímulos olfativos, desde fragrâncias delicadas a cheiros ruins, na percepção que temos dos outros. Ele indica que existe toda uma gama de odores corporais que influenciam o que percebemos de outra pessoa: se ela é atraente para nós, qual pode ser sua idade, se ela está estressada ou sofre de ansiedade, se ela está doente e até traços de personalidade . E tem mais. Tanto a presença de um aroma como a ausência de um mau cheiro influenciam a confiança que cada pessoa tem em si mesma, o que sem dúvida influencia quão atraente ela é para os outros. Isso nos leva à conhecida importância do olfato na impressão que podemos dar em uma reunião ou em uma entrevista de emprego. Curiosamente, os homens pontuam pior pessoas que usam perfume ou água de colônia, enquanto as mulheres fazem o oposto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em geral, pensa-se que usamos um perfume para mascarar o odor corporal e para agradar mais. Porém, foi demonstrado que é a combinação do perfume com o odor do próprio corpo que gera o efeito agradável e pessoal. Claro, na proporção certa que com certeza seremos capazes de encontrar. Neste sentido, percebemos como mais agradável uma mistura do nosso próprio perfume com o perfume favorito do que o nosso próprio perfume com outro perfume escolhido ao acaso, mesmo que ambas as fragrâncias sejam, de modo geral, consideradas igualmente agradáveis. Isso implica que o uso de um perfume vai além de evitar o mau cheiro - escolhemos o perfume que melhor combina com o nosso cheiro pessoal. Daí, como dizem os especialistas, a preferência tão particular que cada um tem ao escolher o perfume. E se não usarmos perfume? Talvez a explicação esteja naquela frase interessante do romance Perfume, de Patrick Süskind: "O que cobiçava era a fragrância de certas pessoas: aquelas, extremamente raras, que inspiram amor." *Francisco José Esteban Ruiz é profesor titular de Biología Celular, na Universidade de Jaén (Espanha)
2022-01-09
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59861894
sociedade
Após batalha judicial, colombiana Martha Sepúlveda morre por eutanásia
Depois de uma longa batalha na Colômbia, Martha Sepúlveda morreu no sábado (08/1) por meio da eutanásia. A mulher tinha esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma doença grave e incurável, e morreu aos 51 anos no Instituto Colombiano de Dor (Incodol), na cidade de Medellín. A informação foi revelada por meio de um comunicado do Laboratório de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, , que atua nas causas dos direitos humanos. "Martha Sepúlveda concordou com a eutanásia e morreu de acordo com sua ideia de autonomia e dignidade", disse a organização. "Martha partiu agradecida com todas as pessoas que a acompanharam e a apoiaram, que oraram por ela e trocaram palavras de amor e empatia durante esses meses difíceis", acrescentou o comunicado. Na Colômbia, a eutanásia foi descriminalizada em 1997, mas só se tornou lei em 2015. Fim do Matérias recomendadas Em julho de 2021, o Tribunal Constitucional do país estendeu o direito a uma morte digna para aqueles que sofrem de "intenso sofrimento físico ou mental" devido a uma lesão ou doença incurável. E o caso de Martha Sepúlveda havia se tornado o primeiro em que a eutanásia foi autorizada em um paciente sem uma doença terminal. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O argumento foi que a Comissão Científica Interdisciplinar pelo Direito de Morrer com Dignidade "decidiu por unanimidade pelo cancelamento do procedimento", ao determinar que "o critério de terminalidade não foi cumprido como tinha sido considerado pela primeira comissão" que avaliou o caso. Porém, a Justiça colombiana revogou essa suspensão do procedimento no fim de outubro e ordenou que o Instituto Colombiano de Dor cumprisse "com o estabelecido com a comissão científica interdisciplinar para morrer dignamente" em uma decisão de 6 de agosto. Nessa resolução, um painel de especialistas determinou que a paciente cumpria "com os requisitos para exercer seu direito de morrer com dignidade por meio da eutanásia", disse o juiz. O magistrado considerou que o Incodol violou "os direitos fundamentais de morrer com dignidade, a uma vida digna, ao livre desenvolvimento da personalidade e da dignidade humana de Martha Sepúlveda", e determinou que fosse fixada uma nova data para a eutanásia. O caso gerou um amplo debate no país sobre o direito pela opção da morte assistida. Em uma entrevista em setembro à Caracol TV, Sepúlveda contou sobre o seu desejo de morrer. "Sobre o plano espiritual, estou totalmente tranquila (...) Serei covarde, mas não quero mais sofrer, estou cansada. Luto para descansar", declarou. Ela acrescentou que a certeza de que logo morreria dava "tranquilidade". Ela disse ainda: "Sou católica e me considero uma pessoa muito crente. Mas Deus não quer me ver sofrer". "Com a esclerose lateral no estado em que está, a melhor coisa que pode me acontecer é que eu descanse". Na sexta-feira (07/01), um dia antes da eutanásia ser aplicada a Sepúlveda, um outro paciente se tornou o primeiro a receber o procedimento no país, e na América Latina, sem ter uma doença terminal. Victor Escobar, um motorista colombiano de 60 anos, sofria de várias doenças degenerativas incuráveis: doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC) e hipertensão, além de ter sofrido dois acidentes vasculares cerebrais (AVCs), em 2007 e 2008. Na juventude, ele tinha sofrido um acidente de carro que fez com que passasse por três cirurgias na coluna. Nos últimos anos de vida, ele tinha diversos problemas de mobilidade e precisava de oxigênio diariamente.
2022-01-09
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59928037
sociedade
Maioria quer um mundo diferente após a pandemia
Estamos em meio a uma crise agora — e a ômicron tornou mais difícil imaginar o fim da pandemia. Mas não vai durar para sempre. Quando o surto de covid-19 acabar, como queremos que o mundo seja? Nos estágios iniciais da pandemia — de março a julho de 2020 — um rápido retorno ao normal estava na boca de todos, refletindo a esperança de que o vírus pudesse ser rapidamente controlado. Desde então, slogans alternativos como "build back better" (reconstruir melhor, em tradução livre) também se tornaram proeminentes, prometendo um futuro melhor, mais justo e mais sustentável, com base em mudanças significativas ou até mesmo radicais. Voltar para como as coisas eram ou avançar para algo novo são desejos muito diferentes. Mas o que as pessoas querem? Em nossa pesquisa recente, tentamos descobrir. Junto a Keri Facer, da Universidade de Bristol, no Reino Unido, conduzimos dois estudos — um no verão de 2020 e outro um ano depois. Neles, apresentamos aos participantes — uma amostra representativa de 400 pessoas do Reino Unido e 600 dos Estados Unidos — quatro futuros possíveis, reproduzidos mais adiante. Fim do Matérias recomendadas Projetamos estes cenários com base nos possíveis desfechos da pandemia publicados no início de 2020 pela revista The Atlantic e o site The Conversation. Estávamos preocupados com dois aspectos do futuro: se envolveria um "retorno ao normal" ou um movimento progressista para "reconstruir melhor", e se iria concentrar o poder nas mãos do governo ou devolver o poder aos indivíduos. "Segurança coletiva" Não queremos grandes mudanças na forma como o mundo funciona. Estamos felizes que o governo mantenha seus poderes para nos manter seguros e colocar a economia de volta nos eixos. "Pela liberdade" Não queremos grandes mudanças na forma como o mundo funciona; nossa prioridade são o status quo e a segurança. Queremos pegar de volta dos governos os poderes que eles reivindicaram para limitar nossos movimentos e monitorar nossos dados e comportamento. "Futuro mais justo" O que queremos é que os governos tomem medidas firmes para lidar com a injustiça econômica e o problema da mudança climática. Estamos felizes que o governo mantenha seus poderes se proteger a justiça econômica, a saúde e o meio ambiente. "Liderança de base" O que queremos é que as comunidades, não os governos, trabalhem juntas para construir um mundo justo e ambientalmente correto. Queremos pegar de volta dos governos os poderes que eles reivindicaram para limitar nossos movimentos e monitorar nossos dados e comportamento. Em ambos os estudos e em ambos os países, descobrimos que as pessoas preferiam fortemente um futuro progressista a um retorno ao normal. Elas também tendiam a preferir a autonomia individual a um governo forte. No geral, em ambos os experimentos e em ambos os países, a proposta de "liderança de base" pareceu ser a mais popular. As orientações políticas das pessoas afetaram as preferências — os de direita preferiram o retorno ao normal mais do que os de esquerda — mas, curiosamente, a forte oposição a um futuro progressista foi bastante limitada, mesmo entre quem é de direita. Isso é encorajador porque sugere que a oposição ao "reconstruir melhor" pode ser limitada. Nossas descobertas são consistentes com outras pesquisas recentes, que sugerem que mesmo os eleitores conservadores desejam que o meio ambiente esteja no centro da reconstrução econômica pós-covid no Reino Unido. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Isso é o que as pessoas queriam que acontecesse — mas como elas acham que as coisas vão de fato acabar? Em ambos os países, os participantes acreditavam que um retorno ao normal era mais provável do que avançar em direção a um futuro progressista. Eles também achavam que era mais provável que o governo mantivesse seu poder do que devolvesse ao povo. Em outras palavras, as pessoas pensavam que dificilmente conseguiriam o futuro que desejavam. Elas querem um futuro progressista, mas temem voltar ao normal com o poder concedido ao governo. Também pedimos aos participantes para nos dizer o que achavam que as outras pessoas queriam. Descobrimos que eles pensavam que os outros queriam um retorno ao normal muito mais do que realmente desejavam. Isso foi observado tanto nos EUA quanto no Reino Unido em 2020 e 2021, embora em níveis diferentes. Esta notável divergência entre o que as pessoas de fato querem, o que esperam obter e o que pensam que os outros querem é o que é conhecido como "ignorância pluralística". Este conceito descreve qualquer situação em que as pessoas que são maioria pensam que são minoria. A ignorância pluralística pode ter consequências problemáticas porque, no longo prazo, as pessoas muitas vezes mudam suas atitudes em relação ao que percebem ser a norma prevalecente. Se as pessoas interpretarem mal a norma, elas podem mudar suas atitudes em relação à opinião de uma minoria, em vez de a minoria se adaptar à maioria. Isso pode ser um problema se a opinião minoritária em questão for negativa — como ser contra a vacinação, por exemplo. No nosso caso, uma consequência da ignorância pluralística pode ser que um retorno ao normal se torne mais aceitável no futuro, não porque a maioria das pessoas desejou este desfecho, mas porque sentiu que era inevitável e que a maioria das outras pessoas queria isso. Em última análise, isso poderia significar que as verdadeiras preferências da maioria nunca obtêm a expressão política que, em uma democracia, merecem. Para combater a ignorância pluralística, devemos, portanto, tentar garantir que as pessoas conheçam a opinião pública. Esta não é apenas uma contramedida necessária à ignorância pluralística e suas consequências adversas — a motivação das pessoas também geralmente aumenta quando elas sentem que suas preferências e objetivos são compartilhados por outros. Portanto, simplesmente informar às pessoas que existe um consenso social para um futuro progressista pode ser o que desencadeie a motivação necessária para alcançá-lo. *Stephan Lewandowsky é chefe do departamento de psicologia cognitiva da Universidade de Bristol, no Reino Unido. Ullrich Ecker é professor de psicologia cognitiva e bolsista do Australian Research Council Future, da Universidade do Oeste da Austrália.
2022-01-07
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59871032
sociedade
Por que algumas pessoas não conseguem parar de trapacear nos jogos
Existe uma área cinzenta entre ser um pouco desonesto e trapacear ativamente. Quem nunca fingiu não ter visto seu marcador na propriedade de um adversário no Banco Imobiliário ou deu uma espiada nas cartas dos oponentes ao jogar Detetive? Mesmo se nossa intenção nunca fosse de enganar, a adrenalina de não pagar aluguel ou conseguir uma vantagem sobre os demais parece ser bem-vinda. Embora isso possa causar discussões familiares nos feriados e talvez o inesperado cancelamento do jogo, trapacear é um problema importante nos jogos profissionais. Técnicos de equipes de competição do jogo Counter Strike, por exemplo, já baniram jogadores que exploravam falhas do jogo e combinavam resultados. Jogadores profissionais de videogame podem ganhar milhões de dólares e, por isso, qualquer possibilidade de fraude é profundamente investigada. Também o mundo do bridge ("o xadrez das cartas") e do pôquer profissional foi recentemente abalado por escândalos de fraude nos jogos. Mas, apesar das tentativas de evitar fraudes por amadores e profissionais, trapacear é mais comum do que pensamos. E, surpreendentemente, pode também ser algo positivo. Fim do Matérias recomendadas Criado em 1999, Whyville é um jogo educativo para crianças com 8 anos de idade ou mais que poderá parecer um local improvável para investigar trapaceadores. Mas existem evidências de que as fraudes surgem em qualquer lugar, segundo Mia Consalvo, autora do livro Cheating: Gaining Advantage in Videogames ("Trapacear: obtendo vantagens em videogames", em tradução livre) e professora de estudos e design de jogos e estudos da comunicação da Universidade Concordia em Montreal, no Canadá. Os jogadores resolvem quebra-cabeças de ciências e matemática em troca de "clams" - a moeda virtual do mundo de Whyville. Os clams podem ser trocados por atualizações de avatar como novas características faciais, cortes de cabelo ou pertences, enquanto os jogadores podem projetar suas próprias atualizações e vender a qualquer preço que quiserem no mercado do jogo. Whyville ganhou prêmios pelo uso inovador de moedas virtuais e por atrair audiência mais jovem e principalmente feminina para a matemática e as ciências. Em um dado momento, um vírus - chamado Whypox - infectou os rostos dos avatares e os jogadores precisaram descobrir como eliminá-lo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Quando soube que esse jogo era para meninas adolescentes, perguntei aos desenvolvedores: 'vocês provavelmente não tem problemas com fraudes, certo?'", relata Consalvo. Ela tinha boas razões para acreditar nisso, pois a maioria das pesquisas sobre fraudes até então concentrava-se nos homens, segundo ela - acreditava-se que os homens trapaceavam mais que as mulheres. Mas os desenvolvedores de Whyville notaram algo incomum. 68% da audiência eram meninas com 8 a 13 anos de idade, mas as fraudes eram generalizadas. Como em muitos jogos, havia códigos de fraudes e guias passo a passo. Mas os jogadores também fraudavam as contas dos outros ou criavam contas secundárias para ganhar mais clams, segundo descobriram Yasmin Kafai, professora de aprendizado da Universidade da Pensilvânia, e Deborah Fields, da Universidade do Estado de Utah, ambas nos Estados Unidos. Consalvo também ficou fascinada com outro tipo de fraude no jogo - algo que poucas vezes ela havia visto antes. Usando a função de bate-papo, algumas das meninas estavam manipulando o mercado de clams, conspirando para elevar o valor dos seus pertences. Grupos de meninas expressavam publicamente como uma atualização específica era rara ou desejada e quanto elas estariam dispostas a pagar, para ludibriar outras jogadoras cobrando preços excessivos pelos seus pertences. Consalvo considera isso uma espécie de "arbitragem social" - uma forma de manipulação do mercado. "Brilhante, não?", exclama Consalvo, sobre a genialidade das meninas. "Você nunca pode prever quem fará o quê em um jogo. Sempre estará surgindo algo novo e interessante." Mas por que elas estavam trapaceando? Consalvo descreve no seu livro uma ideia chamada de "capital de jogo". Ser bom em um jogo traz um selo social que eleva você na comunidade. Os bons jogadores querem manter sua posição e ser considerados especialistas. "Existe esse conhecimento que você obtém depois de jogar muito um jogo específico... e é algo que você quer compartilhar com os colegas", afirma Consalvo. "A ideia é que você tem uma espécie de 'capital cultural'." Mas, para manter essa posição, os jogadores às vezes precisam trapacear. Curiosamente, os melhores jogadores poderão sentir necessidade de trapacear mais que os jogadores que são piores que eles. O medo de perder algo parece motivar mais a fraude que a possibilidade de ganhar. Isso poderá ocorrer porque a perda que o jogador sente em um jogo é real. É dolorido ter seu capital de jogo retirado de você, mesmo se você estiver perdendo apenas dinheiro do Banco Imobiliário ou moedas virtuais do Whyville. A ideia de trapacear para manter sua posição poderá ser sustentada por evidências de outras áreas. Kerry Ritchie, que pesquisa métodos de aprimorar o ensino na Universidade de Guelph em Ontário, no Canadá, afirma que a maioria das fraudes acadêmicas é conduzida por estudantes com melhores resultados (60% dos fraudadores ganharam notas de 80% ou mais). Embora as fraudes na educação não sejam o mesmo que trapacear em um jogo, a similaridade é a pressão que aqueles que estão no topo sentem para manter sua posição. Mas existem outros fatores que influenciam se trapaceamos ou não. Quanto mais amigos fraudadores tiver um jogador, por exemplo, mais provável será que ele trapaceie no futuro. Isso poderá ocorrer por dois motivos: influência social - as ações dos nossos amigos fazem com que nós alteremos nosso comportamento - ou homofilia, quando buscamos amigos que sejam como nós mesmos. "As pessoas dirão 'bem, outras pessoas também estão trapaceando e eu preciso de qualquer vantagem que puder conseguir'", acrescenta Consalvo. Então os jogadores honestos de Whyville estavam sendo forçados a trapacear pelos seus amigos desonestos? Ou as pessoas mais propensas a cometer fraudes procuram umas às outras para serem amigas? Existem pesquisas que indicam que este último pode ser o motivo, pois nós tendemos a ser amigos de pessoas que exibem níveis similares de confiabilidade. Mas Kafai e Fields observam que a manipulação de mercado em Whyville exige muita interação social, de forma que os amigos poderão estar influenciando uns aos outros. Trapacear em grupo também poderá permitir que alguns jogadores justifiquem seu comportamento. Os jogadores são mais propensos a comportar-se de forma desonesta se puderem dizer que isso beneficia outras pessoas, além deles próprios. Em continuação ao seu estudo sobre fraudes no jogo Whyville 10 anos depois, Kafai e Fields descobriram que - embora a idade média dos jogadores tenha aumentado um pouco - as fraudes ainda eram comuns e discutidas abertamente entre os jogadores. Kafai e Fields afirmam que isso pode ser algo positivo, pois incentiva os jogadores jovens a lidar com julgamentos morais e, como as fraudes são muitas vezes uma atividade comunitária, elas exigem negociação. Mas elas também observaram os efeitos negativos das fraudes. Embora algumas delas fossem mais ou menos inócuas, ter seus clams roubados ofende os jogadores. Kafai e Fields dão como exemplo uma menina com 12 anos de idade, Zoe, que, um dia depois de ter suas economias roubadas, praticou um golpe pela primeira vez. Ela parou de jogar duas semanas depois. A magia do jogo havia sido perdida. Kafai e Fields explicam que os golpes são atividades dirigidas a outros jogadores fora do projeto do jogo e também especulam que poderão estar relacionados ao ciberbullying. Elas afirmam que a alta quantidade de golpes no jogo demonstra a necessidade de educar as crianças sobre os efeitos das suas ações. Além dos jogos com múltiplos jogadores, trapacear poderá melhorar os jogos solitários, sem prejudicar a diversão de outros jogadores. Quando se joga sozinho, as fraudes podem melhorar o humor, liberar o estresse e satisfazer necessidades psicológicas. Mia Consalvo ressalta isso por várias razões. Primeiramente, os jogos às vezes não são perfeitos. Uma pequena falha ou omissão poderá fazer com que um jogador fique "preso" - e isso não é divertido para ninguém. Ela afirma que essa é a principal razão por que a maioria das pessoas comete fraudes nos jogos. Ela compara com ler um livro. Se o leitor precisar entender completamente um capítulo antes de passar para o seguinte, ele poderá perder o interesse e abandonar o livro. Mas muitos jogos são projetados de forma que um jogador precisa completar um nível antes de seguir adiante. Ao contrário do livro, os trechos difíceis não podem ser "pulados". E alguns jogos também são monótonos, segundo Consalvo, e poderá ser mais divertido "brincar de Deus" e fazer experimentos com o jogo. Os jogadores podem demonstrar sua criatividade encontrando novas formas de jogar - usando fraudes para definir novos limites. Se tudo o que está em risco são moedas imaginárias ou o seu próprio orgulho por completar um jogo honestamente, talvez as fraudes não sejam tão ruins. Os jogadores trapaceiros de Whyville que manipulam o mercado certamente estão demonstrando sua criatividade. Vamos esperar que eles também aprendam onde está o limite entre o certo e o errado.
2022-01-06
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-59843092
sociedade
Vídeo, 4 dados que mostram por que Brasil é um dos países mais desiguais do mundoDuration, 7,34
O Brasil segue sendo um dos países com maior desigualdade social e de renda do mundo, segundo o novo estudo lançado mundialmente pelo World Inequality Lab (Laboratório das Desigualdades Mundiais), que integra a Escola de Economia de Paris e é codirigido pelo economista francês Thomas Piketty, autor do bestseller O Capital no Século 21, entre outros livros sobre o tema. O estudo se refere ao Brasil como "um dos países mais desiguais do mundo" e diz que a discrepância de renda no país "é marcada por níveis extremos há muito tempo". Neste vídeo, conversamos com o economista Lucas Chancel, principal autor do relatório, e separamos quatro dados que mostram por que a desigualdade de renda e de patrimônio no Brasil chama tanta atenção.
2022-01-05
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59888387
sociedade
Como ter 'muito dinheiro' virou dor de cabeça para sistema de aposentadoria da Islândia
Construir um dos mais bem-sucedidos sistemas previdenciários do mundo trouxe um desafio inusitado para a Islândia. Os recursos arrecadados com as contribuições atingiram um volume tão grande que o país se viu diante da necessidade de discutir o melhor caminho para investir o dinheiro que financia as aposentadorias dos islandeses. Com ativos que chegam a quase o dobro do tamanho da economia da ilha, localizada no Atlântico Norte, o governo liderado pela ambientalista e ecologista Katrín Jakobsdóttir está aventando a ideia de permitir que as empresas que administram fundos de previdência façam mais investimentos no exterior. Atualmente, a legislação limita o percentual a 50%. "O sistema ficou grande demais", disse o ministro das Finanças, Bjarni Benediktsson, em coletiva à imprensa local em dezembro. "Nem é preciso dizer que não podemos limitar todas as oportunidades de investimento ao mercado interno", completou. Fim do Matérias recomendadas Com um montante de recursos de cerca de US$ 50 bilhões, equivalente a mais que o dobro do Produto Interno Bruto (PIB) do país (de pouco menos de US$ 22 bi), "o sistema agora enfrenta as consequências do seu próprio sucesso", diz Hans van Meerten, professor de direito previdenciário europeu da Universidade de Utrecht, na Holanda, em entrevista à BBC Mundo, serviço em língua espanhola da BBC. A Islândia tem um sistema previdenciário de contribuição obrigatória, explica o pesquisador, como muitas economias da Europa. Contudo, ao contrário do que ocorre em outros países europeus, a participação é compulsória mesmo para trabalhadores autônomos, acrescenta van Meerten. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Diferente de países como a Holanda, a Islândia também dá mais liberdade no momento da escolha de um fundo de previdência por parte dos contribuintes. Essas características acabaram distinguindo o sistema dos demais. O sistema previdenciário do país se tornou "o melhor sistema de pensões do mundo" em outubro, segundo o Global Pension Index elaborado pelo Mercer-CFA Institute, um índice reconhecido que compara todos os anos os sistemas de aposentadoria em 43 países, representando cerca de 65% da população mundial. O ranking atribui diferentes valores de pontuação distribuídos entre três categorias principais: suficiência do sistema (cujo peso é de 40% na avaliação), sustentabilidade (35%) e ambiente regulatório (25%). Em 2021, a Islândia alcançou 84,2 pontos, o melhor desempenho da lista, tendo como pontos fortes o que foi considerada uma previdência pública "relativamente generosa", um sistema de previdência privada bem regulado e administrado, além de nível elevado de contribuições. Holanda e Dinamarca ocuparam segundo e terceiro lugares, respectivamente. A Islândia está "muito bem preparada para a bomba-relógio que vemos em todos os lugares: o envelhecimento", avalia van Meerten. "Tem uma combinação única de previdência pública e privada que evita em grande medida a pobreza na velhice para trabalhadores e não trabalhadores." Três pilares: um sistema público, um sistema de contribuição laboral e outro voluntário. 15,5%Alíquota mais recorrente no sistema de contribuição laboral 11,5% de contribuição das empresas 4%de contribuição dos trabalhadores De forma resumida, o sistema opera sob três pilares: um sistema público de previdência financiado pelo Estado, outro para o qual contribuem os trabalhadores e empregadores e um sistema voluntário de previdência privada. O sistema público, financiado com impostos, tem duas modalidades: uma básica, que inclui toda a população, exceto aqueles com maior renda, e uma complementar, que também tem limites em relação à renda pessoal. O segundo pilar, o laboral, bancado com as contribuições previdenciárias de trabalhadores e empresas, prevê contribuição mínima de 12% sobre o salário, sendo 4% pagos pelos empregados e 8% pelos empregadores. Devido à atuação dos sindicatos trabalhistas, contudo, a contribuição mais recorrente é um pouco maior, de 15,5%, com alíquota de 11,5% para as empresas e os mesmos 4% para trabalhadores. A lei estabelece que, para quem contribuiu ao longo de 40 anos, o valor da aposentadoria deve ser de, no mínimo, 56% do rendimento médio obtido nos anos de trabalho, com o benefício pago de forma vitalícia, conforme os dados da Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE). O valor final depende do desempenho financeiro dos fundos - pelas regras, entretanto, o rendimento das aplicações deve, no mínimo, estar atrelado ao índice de inflação. Os trabalhadores do setor privado podem se aposentar aos 67 anos e os do setor público, aos 65. A maioria dos islandeses, contudo, continua no mercado de trabalho mesmo depois da idade limite para tentar alcançar valores melhores de benefícios. No sistema obrigatório de contribuição laboral 56%do salário médio é o valor mínimo que o contribuinte que trabalhou por 40 recebe como benefício. Com apenas 370 mil habitantes e uma economia fortemente dependente do turismo, a Islândia não ficou imune às flutuações dos ciclos econômicos globais. A crise financeira de 2008, por exemplo, paralisou seu imenso setor bancário, quase varreu o mercado nacional de ações e fez com que o sistema previdenciário perdesse mais de 20% de seus recursos. Por conta disso, o país decidiu ser mais cauteloso e se proteger contra uma onda de riscos financeiros internacionais. Passada mais de uma década, entretanto, muitos fundos de investimento estão se aproximando do limite de aplicação em ativos no exterior, e têm se multiplicado os pedidos para que os limites legais de investimento sejam flexibilizados. A Icelandic Pension Fund Association, associação que representa as entidades financeiras, defende a eliminação total do limite de investimento ou, alternativamente, o estabelecimento de um teto de 60% a 65%. Há um intenso debate em torno do tema, já que, quanto maior a exposição ao mercado internacional, maior o risco de o país sentir os efeitos e de uma eventual nova crise. Nesse sentido, as autoridades têm repetido que qualquer aumento da internacionalização dos fundos de previdência deve ser feito de forma gradativa e em linha com a evolução da economia doméstica. Os críticos da proposta argumentam que uma grande mudança pode desestabilizar a moeda local em um momento em que a Islândia enfrenta uma contração no setor de turismo devido à pandemia de covid-19. No auge da pandemia em 2020, o Banco Central islandês chegou a assinar um acordo com fundos de pensão para que suspendessem os investimentos no exterior por seis meses justamente com o objetivo de proteger o câmbio.
2022-01-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59861203
sociedade
Três maneiras de ser mais racional neste ano
Muitas pessoas usam o Ano Novo para virar a página - ou seja, mudar o comportamento agindo de forma mais racional e em favor dos próprios interesses. Mas isso é mais difícil do que parece. Aqui estão três exemplos da minha série - Think with Pinker, da BBC 4 - sobre armadilhas comuns da irracionalidade e como evitá-las. Quando as pessoas comparam o que elas "pensam" com o que "sentem", muitas vezes elas querem falar sobre a diferença entre uma recompensa imediata ou a longo prazo. Por exemplo - um banquete agora ou estar em forma amanhã?; uma comprinha sem muita necessidade neste momento ou dinheiro suficiente para o aluguel no fim do mês?; seguir a paixão sem limites ou encarar possíveis consequências depois? Esse contraste entre tempos presentes e tempos futuros pode parecer uma luta interna, como se um lado da pessoa quisesse ver séries de streaming hoje e uma outra parte lembrasse da obrigação de ir bem na prova de amanhã. Em um episódio de Os Simpsons, Marge alerta seu marido sobre seu comportamento e ele responde: "Isso é um problema para o Homer de amanhã. Cara, coitado dele". Isso levanta uma questão: devemos sacrificar o agora em benefício do nosso futuro? Fim do Matérias recomendadas A resposta é: não necessariamente. Afinal, talvez a gente morra e nosso sacrifício terá sido em vão. Como diz um adesivo de carro: "A vida é curta. Como sobremesa primeiro". Talvez a compensação prometida nunca venha - por exemplo quando um fundo de pensão quebra. No final das contas, você é jovem apenas uma vez. Não faz sentido guardar dinheiro por décadas para comprar um equipamento de som caríssimo quando seu ouvido não conseguirá mais perceber a diferença. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Então o nosso problema não é viver apenas no futuro, mas viver demasiadamente no presente. A gente come, bebe e vai para a farra como se fosse morrer em poucos anos. É uma miopia que interfere em como enxergamos o futuro. Nós sabemos que em algum ponto teremos que nos preparar para a época de vacas magras, mas não conseguimos resistir a um gasto aqui e outro acolá. A disputa entre o "eu" que prefere uma pequena recompensa agora e o "eu" que prefere uma melhor mais para frente está entranhada na condição humana. A arte e os mitos já trataram diversas vezes desse tema ao longo da história. Há a história bíblica de Eva, que come a maçã apesar dos avisos de Deus sobre a pena de expulsão do Paraíso. Há a fábula da cigarra que prefere curtir o verão enquanto a formiga trabalha para estocar provisões para o inverno. Mas a mitologia também já apresentou exemplos de autocontrole. Ulisses se amarrou ao mastro de sua embarcação para não se encantar pelo canto das sereias - e evitar o choque contra as pedras. O nosso "eu" presente pode superar o nosso "eu" futuro restringindo as opções. Quando estamos saciados, temos a opção de jogar fora o resto da caixa de chocolate para não cair na tentação de comer além da conta. Muitos autorizam que o empregador separe uma parte do salário automaticamente para a aposentadoria. É uma maneira de usar a racionalidade para vencer a tentação - sem confiar demais na força de vontade, que pode fraquejar no momento da decisão. Hamlet não foi o único a olhar para o céu e encontrar figuras nas nuvens - é um passatempo da nossa espécie. Nós procuramos padrões no caleidoscópio da nossa experiência porque eles parecem sinais de causas ou agentes escondidos. Mas isso nos deixa vulneráveis a alucinações sobre correlações falsas em meio a um ruído sem sentido. Quando eventos ocorrem aleatoriamente, nossas mentes tendem a agrupá-los - a não ser que haja um evento não-aleatório que os deixe em escaninhos separados. Nós temos a tendência de achar que coisas ruins acontecem em sequência de três ou que algumas pessoas nascem com alguma maldição ou que Deus está testando a nossa fé. O perigo está justamente na ideia de aleatoriedade - que na verdade são duas ideias. A aleatoriedade pode se referir a um processo desordenado, que cospe informação sem lógica ou ritmo definido - como jogar uma moeda para cima. Mas pode se referir a informação, quando não há uma boa e simples explicação. Por exemplo: uma sequência "cara, coroa, coroa, cara, coroa, cara" parece aleatória. Mas "cara, cara, cara, coroa, coroa, coroa" não, porque pode ser resumida como "três caras e três coroas seguidas". As pessoas julgam que a segunda sequência é menos provável, embora toda sequência com uma moeda é igualmente possível. Existem apostas de que uma moeda vai dar necessariamente cara após uma sequência de coroas - como se a moeda adquirisse uma memória ou tivesse o desejo de ser justa. É a famosa falácia do apostador. O que nós não conseguimos enxergar é que um processo aleatório pode gerar dados não-aleatórios. Na verdade, isso vai de fato acontecer com o passar do tempo. Nós ficamos impressionados pelas coincidências porque nos esquecemos quantas chances existem de coincidências acontecerem. Por exemplo, você está numa festa com uns 25 convidados. Qual é a chance de duas dessas pessoas terem nascido no mesmo dia? A resposta: mais que 50%. Numa festa com 60 convidados? 99%! A alta probabilidade surpreende porque pensamos que é extremamente improvável encontrar um convidado que faz aniversário no mesmo dia que a gente. O que esquecemos é quantos aniversários existem por ano - 365 ou 366, a depender do ano - e quantas oportunidades existem para coincidências. A vida é cheia dessas oportunidades. Talvez a placa do carro à frente tenha uma sequência de números igual à do meu celular. Talvez um sonho ou um mau pressentimento se realize - afinal, bilhões deles circulam nas cabeças das pessoas todos os dias. O perigo de atribuir significados a coincidências se concretiza quando nós ligamos algum sinal a um fato - como o vidente que propagandeia que fez uma previsão correta e quer que todos esqueçam as predições furadas que já fez. É a chamada "falácia do atirador do Texas" - que se refere ao homem que atirou em qualquer lugar uma parede qualquer e depois pintou um alvo em torno do buraco como "prova" do acerto. Descobrir padrões é sedutor especialmente quando a totalidade parece nos indicar um sinal - quando nós, como Hamlet, dizemos que aquela nuvem é uma doninha, um camelo ou uma baleia. Interpretar demais a aleatoriedade começa a ficar perigoso quando monitoramos o andamento aleatório dos mercados financeiros e achamos que é a hora de fazer um movimento. Resistir a uma tentação pode representar uma oportunidade para um investidor que reflete mais a respeito de decisões. Também fornece uma oportunidade na vida de alguém - de evitar pensar que qualquer coisa acontece por um motivo e evitar guiar suas decisões pessoais por razões que não existem. Sempre que entramos numa discussão intelectual, nosso objetivo deve ser em torno da verdade. Mas humanos são primatas - e frequentemente o objetivo é ganhar uma discussão. Isso pode ser feito de forma não-verbal - o jeito de arquear a sobrancelha, o olhar duro, a voz forte, o tom agressivo, as constantes interrupções e outras demonstrações de domínio. Estratégias de domínio podem ser empregadas em um argumento ao usar uma série de truques sujos. Esses podem incluir: Combate intelectual pode ser um esporte divertido para o espectador. Leitores de revistas literárias se deliciam com réplicas tréplicas entre gladiadores intelectuais. Um gênero popular no YouTube é o do herói que "destrói" ou "acaba" com as ideias de uma outra pessoa. Mas se o objetivo do debate é melhorar o nosso entendimento - mais do que ganhar uma discussão - temos que achar modos de controlar esses péssimos hábitos. Todos nós podemos promover a razão ao modificar as normais habituais de um debate de forma que as pessoas possam tratar suas crenças mais como hipóteses a serem testadas do que slogans que precisam ser defendidos.
2022-01-03
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59855500
sociedade
Ano Novo: os rituais mais curiosos para a virada na América Latina
Como a América Latina celebra a chegada do Ano Novo? Em cada país há distintas formas de comemorar essa data. No imaginário popular, são rituais que servem para encerrar um ciclo e começar o outro de forma positiva. Muitas dessas simpatias possuem semelhanças, com uma ou outra variação que depende do país. Alguns rituais são muito conhecidos, como as famosas 12 uvas, uma para cada batida do relógio, que precisam ser consumidas à meia-noite enquanto a pessoa faz um pedido. Há também aqueles que guardam uma nota no bolso ou uma moeda no sapato para que não falte dinheiro no ano seguinte. Existe também uma simpatia na qual a pessoa anda com uma mala por um quarteirão, ou até mesmo dentro de casa, para que não faltem viagens no ano seguinte. Há, inclusive, quem faça esse ritual com o passaporte nas mãos. Conhecidos ou não, similares ou diferentes, todos esses rituais têm um ponto em comum: a busca por um novo ano com prosperidade. Há quem peça dinheiro, saúde, amor ou mesmo tudo isso junto. Mas há também quem faça essas simpatias por pura diversão. Em meio aos diversos rituais que são adotados nos países da América Latina, nem todos são tão conhecidos. Abaixo, conheça alguns deles: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em alguns países, é preciso tomar cuidado nesse período do ano para não ser atingido por um balde de água enquanto anda na rua. No Uruguai é celebrado o "baldaço", no qual as pessoas jogam um balde cheio de água pela janela. Dizem que essa tradição afasta as tristezas do ano que termina e dá boas-vindas a um novo ano cheio de prosperidade. Como é verão no Cone Sul, muitas pessoas não levam isso a sério e veem mais como uma brincadeira (ou algo ruim, dependendo se você é a pessoa que lança ou recebe a água). Outras versões dessa simpatia economizam na quantidade de água: em vez do balde, jogam uma "bombita", um balão cheio d'água, ou um apenas um copo com o líquido. Em Cuba é feito algo semelhante, chamado "el cubazo", que, como no Uruguai, consiste em jogar um balde de água pelas janelas ou sacadas. Isso tem dois objetivos: limpar as energias e divertir os vizinhos. Uma variação da água é jogar papéis pelas janelas. No Uruguai também é costume jogar fora calendários velhos, que estão rasgados ou queimados. Isso pode ser por causa da tradição de desfazer de tudo o que é antigo para dar lugar a novos objetos. Essa tradição de se livrar de tudo o que é velho não envolve necessariamente os calendários. Em alguns países, costumam limpar a casa completamente como um ato de purificação, seja aqueles sapatos que não usa mais ou algo que não precisa mais. Em outros lugares, há quem varra a casa, certificando-se de que tirou todo o pó para fora da porta. Mas você tem que limpar o mais profundamente possível, para evitar que as energias do ano velho permaneçam na residência. Como a água, o fogo é um elemento que significa renovação ou purificação. Em muitos países da América Latina, um boneco feito com materiais inflamáveis, como papel, serragem e roupas velhas, é queimado. No Equador, a "queima do ano velho" é uma prática popular, com origens no período colonial, que consiste em queimar um boneco que costuma representar uma pessoa famosa, real ou fictícia — como um político ou o protagonista de um filme. Essa tradição vem acompanhada pelas "viúvas": homens vestidos de mulheres com maquiagem exagerada e perucas que "choram" pelo "velho", enquanto caminham no trânsito pedindo doações que, posteriormente, serão usadas para uma festa. Minutos antes da meia-noite, essas "viúvas" começam a leitura do testamento, preparado com muito humor e sátira, em meio a gritos de dor. As pessoas assistem enquanto fazem outros rituais, como o das 12 uvas ou o passeio com a mala. Já no norte do Chile, é feita uma tradicional queima de bonecos, que são enormes figuras montadas para a data, que simbolizam as experiências ruins do ano que está acabando. Essa prática de queima também se estende pela Nicarágua, Colômbia, Peru, México e algumas regiões da Venezuela e da Argentina. Outra variação que é praticada em muitos países, muito mais simples, é escrever desejos para o ano novo (geralmente três) em um papel, ou anotar coisas ruins do ano que está passando, e queimar à meia-noite com as devidas precauções para evitar acidentes. Se você quer ter sorte, uma simpatia recomendada é comer lentilhas. Há quem acredite que esse alimento pode significar fortuna. Para alguns, a lentilha não é apenas alimento nesse período e a colocam em locais onde costuma haver dinheiro, como os bolsos ou a carteira. Há também quem receba o Ano Novo abraçando seus entes queridos com um punhado de lentilhas na mão, ou quem coloque esses grãos nos cantos da casa para que a sorte chegue ao local. O costume não se limita a lentilhas, mas também a diversos tipos de grãos, como o arroz. O grão é colocado em um prato com uma vela, que é deixada acesa durante a noite do dia 31 e depois é enterrada. Muitos acreditam que esse costume da lentilha veio da Itália e justificam que surgiu porque o grão lembra as moedas da Roma Antiga. Nem todas as pessoas confiam apenas em um punhado de lentilhas ou arroz para chamar sorte e dinheiro. No México, muitos costumam dar lembrancinhas de ovelhas como presente porque consideram que o animal traz coisas positivas. Na Costa Rica, as pessoas carregam um ramo de Santa Lúcia, flor que acreditam que traga boa sorte. É colocado em carteiras ou malas para que não falte dinheiro. Se você está no México ou na Colômbia, talvez saiba o que são as "cabanuelas". Mas caso você não saiba, se trata de um método tradicional de previsão meteorológica, que começa a partir do ano novo. E muita gente acredita na veracidade disso e usa como referência para saber como será o clima no novo período. Há quem insista que esse método não tem qualquer rigor científico. Mas isso não impede que muitos aproveitem esse ritual para ver como estará o clima nos próximos meses e até fazer planos com base nisso. O método é o seguinte: os primeiros 12 dias de janeiro representam um mês de forma crescente (dia 1 é janeiro, dia 2 é fevereiro e assim por diante). E de 13 a 24 de janeiro é ao contrário (13 de janeiro é dezembro, 14 de janeiro é novembro, e assim vai). Depois, de 25 a 30 de janeiro, cada dia representa dois meses em ordem crescente dependendo do horário (de meia-noite de 25 de janeiro ao meio-dia representa janeiro, e de meio-dia até meia-noite seguinte representa fevereiro). E, finalmente, o dia 31 de janeiro, onde cada trecho de duas horas representa um mês de forma decrescente (da meia-noite às 2h é dezembro, das 2h às 4h é novembro etc). No Peru e na Bolívia não pode faltar o ekeko, uma estatueta de poucos centímetros que representa um homem vestido de maneira típica do altiplano andino. Embora o culto a esse personagem não se limite ao Ano Novo, as pessoas enxergam esse período como uma oportunidade ideal para a presença dessa divindade. Dizem que ekeko está carregado com um grande número de fardos cheios de alimentos e necessidade. E se você cuidar bem, trará abundância e alegria. Mas cuidado, porque se for negligenciado ou abandonado, o ekeko pode reverter as coisas e causar infortúnios. O cuidado deste amuleto no final do ano também coincide com o fato de que em janeiro é celebrada a Feira da Alasita, uma festa tradicional que tem o ekeko como figura central. Em alguns países da América Central é comum quebrar um ovo e colocá-lo em um copo d'água. Há quem o deixe pernoitar no dia 31 de dezembro no lado de fora, pela janela, ou mesmo o coloque embaixo da cama. Dizem que a forma que o ovo vai assumir pode ser um indicativo de como será o ano novo. Assim como para muitas pessoas no Brasil, em outros diversos países há quem acredite que a roupa que vestimos durante a virada do ano é um elemento importante. Em países como a Venezuela, por exemplo, muitos têm o costume de "fazer a estreia" das últimas roupas adquiridas. A ideia é que a pessoa não pode chegar ao Ano Novo com roupas velhas. A cor também é importante. Por exemplo, o amarelo é para atrair dinheiro (muitos insistem que essa tem que ser a cor da roupa íntima), vermelho para quem procura um relacionamento amoroso e branco para boas energias. Em meio à pandemia, essa prática também ganhou uma nova característica: há pessoas que adaptam a cor da máscara conforme aquilo que quer com mais intensidade para o novo ano.
2021-12-31
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-59842926
sociedade
Como a ciência explica a embriaguez e a ressaca
Desde o alvorecer das primeiras civilizações, a humanidade consome álcool, na forma de diferentes bebidas, seja em comemorações ou cerimônias religiosas ou em momentos de lazer e descontração. Isso se explica, em parte, pelos efeitos que sua ingestão provoca, como diminuição da ansiedade, descontração, aumento da autoestima e da sociabilidade. Mas o consumo exagerado revela o outro lado do etanol, como causador de sonolência, sedação, falhas da memória, lentidão da fala e dos movimentos e, em casos extremos, coma e até morte - sem falar na ressaca no dia seguinte. Mas por que isso ocorre? No livro A história e a química da cachaça (Athena Editora, 2021), que publicou recentemente, o pesquisador Leinig Antonio Perazolli, do Instituto de Química do campus de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp), explica que, assim como diversas outras drogas e medicamentos ansiolíticos, a principal ação do álcool etílico ou etanol é a inibição do sistema nervoso central. De acordo com ele, após ser consumido, sua metabolização se dá pela ação de duas enzimas, a álcool desidrogenase e a aldeído desidrogenase. A primeira, explica no livro, converte o etanol em acetaldeído, que também é uma substância tóxica para o organismo. Por isso, a segunda enzima entra em ação, convertendo esse composto em ácido acético. O químico Carlos Alberto da Silva Riehl, coordenador do Laboratório de Química Forense, do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica por que ocorre a embriaguez. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com ele, quando consumido o álcool entra na corrente sanguínea, se difundindo por todo o corpo, chegando até o cérebro. "Como é uma molécula menos polar que a água, porém muito solúvel neste meio, ao chegar nas fendas sinápticas (local onde um neurônio troca informações químicas com outro), ele dificulta que os neurotransmissores se desloquem entre eles, causando uma certa lentidão em nossas ações, o que gera assim o que chamamos de embriaguez", diz. Riehl também explica por que, num primeiro momento, as pessoas ficam desinibidas e com sensação de bem-estar geral. Depois de absorvido pelo estômago, o etanol entra na corrente sanguínea, indo rapidamente para o fígado, onde é metabolizado. "Inicialmente, esse órgão o transforma em ácido acético, que é utilizado para gerar energia nas células, o que nos confere inicialmente uma sensação de bem-estar", diz. "Aos poucos, ele chega aos neurônios e inibe de forma sutil a troca de alguns neurotransmissores, o que gera a desinibição, a euforia e, consequentemente, uma maior sociabilidade (normalmente a pessoa fica muito falante)." O também químico e doutorando em Ciências Farmacêuticas, Diego Defferrari, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), acrescenta que o álcool é um sedativo e um anestésico leve. "Ao ser ingerido, ele libera no cérebro neurotransmissores como dopamina e serotonina, que estão relacionados com a ativação dos centros de prazer e recompensa", diz. "Devido a essa liberação exacerbada, ocorrem mudanças fisiológicas no organismo, como sensação de bem-estar, relaxamento, desinibição e euforia." Segundo o farmacêutico bioquímico e doutor em Toxicologia, Maurício Yonamine, do Departamento de Análises Clínicas e Toxicológicas da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP), a ação do etanol no cérebro é complexa. "Em pequenas concentrações (por exemplo, no início da ingestão de bebida alcoólica), o álcool inibe regiões do cérebro que naturalmente inibem sensações de euforia", explica. "É o que chamamos de 'inibir a inibição', ou seja, provoca euforia." Mas nem tudo é alegria e felicidade. O doutor em bioquímica Guilherme Andrade Marson, do Instituto de Química da USP, alerta que, nessa fase de euforia e desinibição, também podem ocorrer comportamento violento, imprudência e dificuldade de avaliar riscos. "Além disso, em alguns indivíduos, pode disparar crises de ansiedade, delírio persecutório, depressão ou ataque epilético, entre outros problemas", diz. Em seu livro, Perazolli usa uma linguagem mais técnica para explicar esse processo, que tem a ver com os neurotransmissores, que são moléculas relativamente simples, como a serotonina, dopamina, glutamato e o ácido gama-aminobutírico (GABA). "Esses transmissores interagem com os receptores e estimulam ou inibem funções e sensações do corpo", explica na obra. Ainda de acordo com ele, diferentes tipos de receptores podem interagir com um transmissor para gerar sensações específicas, uma vez que cada área do sistema nervoso central regula diferentes funções e percepções. "Ao entrar em contato com os receptores, esses transmissores exercerão um efeito excitatório ou inibitório, de acordo com a carga do transmissor enviado", escreve. Tanto um como o outro são determinados pelo tipo de interação iônica que ocorre nos receptores, que podem interagir com os íons de sódio (Na+) ou de cloreto (Cl-). O efeito excitatório, explica Perazolli no livro, é provocado por neurotransmissores como a acetilcolina, o glutamato, a serotonina e a adrenalina, que abrem os canais seletivos de sódio e entram na membrana, o que por sua vez leva o sítio receptor a ficar com uma carga positiva em relação ao exterior. "Assim, o neurônio fica mais propício a gerar um potencial de ação devido ao aumento da neurotransmissão", diz. É a fase de euforia. Em contrapartida, "os efeitos inibitórios provocados pela abertura dos receptores do GABA estão relacionados com a dos canais iônicos seletivos dos íons Cl-". Neste caso, o cloreto está mais concentrado fora do neurônio, "até que com a abertura dos sítios receptores, os íons entram e tornam o interior mais negativo em relação ao exterior, reduzindo a neurotransmissão e o potencial de ação naquela região". É a hora da sonolência e lentidão. Segundo o médico André Brooking Negrão, do Programa de Estudos sobre Álcool e Drogas (GREA) do Instituo de Psiquiatria do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da USP, isso ocorre na medida em que vai aumentando a concentração de etanol no sangue. "Inicialmente, doses baixas desinibem o comportamento, a tensão e a ansiedade", explica. "Na medida que se bebe mais, somam-se os efeitos que chamamos de depressores do álcool. Depressor no sentido de anular a atividade dos neurônios. Daí, teremos sinais iniciais de sonolência (tendência a dormir), sedação (tirar a excitação), lentidão do pensamento e das atividade cognitivas de atenção e memória." Se a ingestão continuar, poderá ocorrer até um "apagão neural", ou seja, a dose será tão alta que atingirá uma grande parcela dos neurônios. "O resultado final é de intensa sedação ou pré-coma, que se sobrepõe aos efeitos inicias de desinibição ou euforia", diz Negrão. "Num grau mais extremo, o álcool reduz a atividade de neurônios que controlam a respiração e a pessoa pode ter uma parada respiratório, que pode ser fatal." Se o sujeito que abusou da bebida superar todos esses efeitos e chegar vivo ao outro dia, poderá ainda se ver às voltas com outra consequência nefasta do etanol - que poderá fazer alguns jurar nunca mais beber: a ressaca. Perazolli explica em seu livro, em termos científicos, que ela ocorre devido, principalmente, ao acúmulo de acetaldeído não convertido em ácido acético. Indivíduos que possuam alguma deficiência na atividade da enzima aldeído desidrogenase "estão mais suscetíveis a estes efeitos e costumam exibir alguns sintomas característicos, como vermelhidão no rosto, dor de cabeça, enjoo e taquicardia". Segundo Yonamine, além do acúmulo de acetaldeído, a ressaca pode ter várias outras causas. "Os mecanismos físicos pelos quais ela ocorre ainda não estão completamente entendidos cientificamente", diz. "Múltiplos fatores devem estar envolvidos, como a própria ação direta do etanol na produção de urina (aumentando a diurese e provocando desidratação); como irritante da mucosa gástrica (aumentando a secreção de suco gástrico e secreções intestinais, provocando sensação de queimação, náuseas e diarreia) e o seu efeito de diminuir a concentração de glicose no sangue (podendo gerar hipoglicemia)." O que se sabe com certeza é que os efeitos e as consequências da ingestão de álcool variam de pessoa para pessoa. "Antes de mais nada, é importante ressaltar que a química do etanol no organismo é complexa e envolve duas áreas da ciência: bioquímica e enzimologia", diz Defferrari. "Lembrando também, que estamos tratando do organismo humano, que é extremante complexo, gerando respostas diferentes em cada pessoa. Características como massa corporal, sexo biológico e idade, também são fatores que devem ser levados em conta." No caso da ressaca, por exemplo, há uma outra peculiaridade. "Embora as explicações potenciais sejam numerosas, as diferenças genéticas podem explicar grande parte da variação nas ressacas entre os indivíduos", diz o pesquisador Jemmyson Romário de Jesus, da Universidade Federal de Viçosa (UFV). "Por exemplo, muitas pessoas de ascendência chinesa, japonesa e coreana têm uma mutação que impede seus corpos de efetivamente metabolizar o etanol, levando ao acúmulo de acetaldeído, e, por consequência, a ressacas piores." Mas, segundo Jesus, há uma recompensa para essa população: ela apresenta menor chance de transtorno por uso de álcool (alcoolismo), devido à aversão que ela pode criar em relação à bebida. Independentemente da etnia, também existem outros fatores que podem potencializar a ressaca ou não, tais como, alimentação, idade, massa corpórea, tolerância alcoólica e nível de consumo, por exemplo", acrescenta. Os efeitos e consequências do consumo abusivo do álcool não afetam apenas quem bebe, no entanto. O problema é coletivo. Segundo a Organização Pan-americana da Saúde (OPAS), o braço da Organização Mundial da Saúde (OMS) para as Américas, o seu uso abusivo também pode resultar em danos a outras pessoas, como membros da família, amigos, colegas de trabalho ou estranhos. Além disso, resulta em um fardo significativo em termos sociais, econômicos e de saúde para toda a sociedade. Ainda de acordo com a OPAS, o uso abusivo de álcool é responsável por 3 milhões de mortes por ano em todo o mundo, o que representa 5,3% de todas as mortes. Além disso, é a causa de cerca de 200 doenças e lesões. Em geral, 5,1% do total delas são atribuídas à bebida, conforme calculado em termos de Anos de Vida Perdidos Ajustados por Incapacidade (DALY, sigla em inglês). O consumo de etanol também causa morte e incapacidade relativamente cedo na vida, de acordo com a OPAS. Na faixa etária de 20 a 39 anos, aproximadamente 13,5% do total de óbitos são atribuíveis à bebida. Além disso, existe uma relação causal entre o uso abusivo do álcool e uma série de transtornos mentais e comportamentais, além de doenças não transmissíveis e lesões.
2021-12-31
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59836653
sociedade
Como a ideia de ficar bêbado influencia o efeito do álcool sobre nosso comportamento
As convicções das pessoas sobre o álcool podem exercer forte influência sobre o seu comportamento quando embriagadas - e até mudar seu comportamento quando estão sóbrias. Quando chegam as festas de final de ano, muitas pessoas comemoram com um copo ou dois a mais que o normal. Não importa se você mesmo bebe ou se simplesmente observa os demais - você não precisa de mim para explicar as consequências. Para algumas pessoas, a consequência será um calmo relaxamento e, para outros, extrema extroversão. Aquela pessoa tímida e ansiosa por tornar-se o escândalo da festa depois de um simples martini pode ser uma metáfora da TV ou do cinema, mas muitos de nós conhecemos alguém que também representa esse papel na vida real. E isso é um certo mistério científico, já que a ação biológica do etanol - a substância ativa das bebidas alcoólicas - simplesmente não deveria causar esse tipo de efeito. "Em termos de propriedades neuroquímicas, o etanol é um sedativo do sistema nervoso central", explica Andrew Lac, psicólogo da Universidade do Colorado em Colorado Springs, nos Estados Unidos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Mas, quando as pessoas consomem álcool, muitas vezes elas sentem efeitos estimulantes", afirma ele. Elas falam alto, ficam agitadas e até antagonizam com os demais, "o que é o oposto do esperado". Para solucionar esse mistério, pesquisadores como Lac começaram a examinar a forma como as nossas convicções moldam a sensação de embriaguez e influenciam nosso comportamento. Aparentemente, as pessoas podem associar o álcool a certas experiências, criando uma espécie de profecia da embriaguez que se autorrealiza. E, em muitas situações, seus pensamentos podem ser mais potentes que o próprio álcool. Essa ideia de que as convicções poderão moldar, de forma poderosa, os efeitos da embriaguez pode parecer surpreendente. Mas, como descrevo no meu livro The Expectation Effect ("O efeito da expectativa", em tradução livre), a ser lançado em breve, nossa forma de pensar molda quase todos os outros elementos das nossas vidas. O exemplo mais conhecido pode ser o efeito placebo, segundo o qual a crença na eficácia de um tratamento pode trazer seus próprios benefícios - como a redução da pressão arterial, redução de inflamações ou avisando o cérebro para que libere seus próprios opioides anestésicos - que são independentes dos efeitos químicos do remédio. Além da medicina, sabemos agora que nossas expectativas podem influenciar os benefícios dos nossos exercícios físicos, nossas reações a uma nova dieta, nossa experiência de insônia e fusos horários, o impacto da tensão e ansiedade, nossa força de vontade e até nossa longevidade. Considerando o enorme predomínio dos efeitos da expectativa, seria muito surpreendente se nossas convicções não influenciassem, de alguma forma, nossas reações à bebida. Algumas das evidências mais convincentes foram obtidas por Laurent Bègue, da Universidade Grenoble Alpes, na França. No final da década de 2000, ele elaborou um experimento detalhado para testar a agressividade das pessoas sob a influência do álcool, sob o pretexto de um falso teste de sabor. Os participantes receberam, em primeiro lugar, um conjunto de três coquetéis. Para alguns participantes, eles eram totalmente sem álcool, mas, para outros, os coquetéis continham teores alcoólicos altos ou moderados. É importante notar que os participantes não sabiam, necessariamente, qual coquetel estavam recebendo: alguém que achasse que estava recebendo a bebida com alto teor alcoólico, por exemplo, pode ter recebido, na verdade, a versão sem álcool. Para impedir que os participantes adivinhassem o teor alcoólico, eles foram informados que o coquetel sem álcool havia sido projetado para ter o mesmo sabor da bebida real. Isso permitiu que Bègue manipulasse suas expectativas de embriaguez. Para testar os sentimentos agressivos, os participantes foram divididos em pares e solicitou-se que eles temperassem, com sal e molho picante, um prato de batatas amassadas a ser servido para cada parceiro. O que os participantes não sabiam é que o parceiro era, na verdade, um ator representando uma pessoa deliberadamente hostil - chutando sua cadeira no caminho para a sala e ameaçando "explodir [sua] cabeça" com o tempero. Naturalmente, os participantes poderiam vingar-se preparando um prato bem desagradável em troca. De forma geral, os participantes que acreditavam que haviam bebido os coquetéis potentes apresentaram maior propensão a usar mais molho picante no tempero do prato do seu parceiro, enquanto o teor de álcool real teve muito menos influência nessa propensão. Esta é uma evidência do claro efeito da expectativa influenciando o comportamento de embriaguez. Bègue afirma que a associação entre o álcool e a agressividade pode surgir cedo. "Perguntou-se a crianças com 8 anos de idade quais seriam as consequências se elas bebessem álcool em vez de chá gelado", ele conta. "Elas responderam que o álcool as incitaria a cometer abusos verbais e mais brigas com outras pessoas." Desde então, Bègue vem estudando as formas em que nossas expectativas podem influenciar a sensação de autoconfiança normalmente decorrente da embriaguez. Como no primeiro estudo, os participantes receberam coquetéis que podiam ou não ter sido rotulados com seu teor de álcool correto. Pediu-se em seguida aos participantes que escrevessem e filmassem um pequeno comercial para a bebida. Por fim, eles deveriam assistir à filmagem e avaliar sua própria capacidade de atração, originalidade e humor - um exercício que muitas pessoas sóbrias podem considerar motivo de acanhamento. Novamente, as convicções dos participantes sobre seu consumo de álcool determinaram suas reações. Os que imaginavam estar embriagados fizeram avaliações mais positivas de si próprios que aqueles que acreditavam que ainda estavam sóbrios, enquanto o efeito do próprio teor de álcool não foi significativo. Alguns efeitos de expectativa altamente específicos podem depender do tipo de bebida consumido pelas pessoas. Alguns anos atrás, Yann Cornil, da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, quis pesquisar se misturar bebidas energéticas e vodca pode realmente aumentar a embriaguez, conforme relatado por muitas pessoas em episódios esporádicos. Cornil primeiramente questionou aos participantes sobre o seu uso de álcool e bebidas energéticas e suas expectativas sobre os efeitos da bebida. Em seguida, ele ofereceu um coquetel, marcado como "vodca-Red Bull", "coquetel de vodca" ou "coquetel de frutas exóticas", e pediu que eles preenchessem outros testes e questionários que avaliariam sua experiência de embriaguez. Confirmando os resultados de Bègue, Cornil concluiu que os rótulos alteraram significativamente a experiência dos participantes. Os participantes informados como tendo bebido a mistura de vodca e RedBull relatavam sentir-se mais embriagados que aqueles que haviam provado os coquetéis de "vodca" ou "frutas exóticas". A extensão média desse efeito foi grande - os rótulos causaram diferença de 50% na percepção da embriaguez. Mas houve variações significativas entre os indivíduos, o que pareceu depender das suas convicções pré-existentes. Se o participante chegasse ao laboratório considerando que as bebidas energéticas podem aumentar os efeitos do álcool, ele exibiria reação muito mais forte ao rótulo que aqueles que não acreditavam na lenda urbana. Padrões similares podem ser observados em um teste de disposição a riscos. Os participantes receberam um vídeo game no qual precisavam encher um balão virtual. Quanto maior o balão, mais dinheiro eles poderiam ganhar - mas, se bombeassem ar demais e o balão estourasse, eles perderiam tudo. Acreditando que haviam bebido a mistura de vodca e Red Bull, os participantes foram muito mais propensos a arriscar sua sorte, mas somente se já esperassem que as bebidas energéticas aumentassem sua embriaguez - e que a sua embriaguez ampliasse sua disposição a riscos. "A importância da bebida energética criou expectativas psicológicas, que se traduziram em uma sensação subjetiva de embriaguez, com consequências comportamentais", afirma Cornil. Os experimentos de Bègue e Cornil oferecem importante prova dos princípios, mas eles só conseguiram capturar um momento na vida das pessoas. Um dos estudos recentes de Lac rastreou o papel da expectativa no comportamento de consumo de bebidas das pessoas a longo prazo. Em uma pesquisa maior, ele recrutou mais de 400 participantes nos Estados Unidos, com 18 a 79 anos de idade, e pediu que eles avaliassem uma série de afirmações em escala numérica de 1 (discordo) a 4 (concordo). Alguns exemplos encontram-se abaixo. Quando bebo álcool espero: · sentir-me corajoso · sentir-me calmo · sentir-me sexy · sentir-me sociável · assumir riscos · falar alto, de forma tempestuosa ou fazer barulho · sentir-me mal humorado Um mês depois, ele deu continuidade ao estudo, enviando questionários detalhados sobre o uso de álcool dos participantes e suas experiências ao longo desses 30 dias. Talvez sem causar surpresas, as expectativas influenciaram a quantidade de consumo das pessoas. Os participantes com associações mais positivas ao álcool eram propensos a beber um pouco mais. Mas as expectativas também causavam efeito independente sobre o comportamento dos participantes. Uma pessoa que acreditasse que o álcool a deixaria mais relaxada e sociável perceberia que se sentia menos tensa e com maior autoestima. E uma pessoa que achasse que poderia falar de forma tempestuosa e correr riscos observou que havia agido de forma mais extrema, fora de sua personalidade. Para Lac, "essas convicções servem de filtros mentais que orientam o que acontece quando bebemos". Na maioria dos casos, as expectativas tinham importância igual ou maior que a quantidade real de bebida consumida - exatamente como haviam demonstrado os experimentos de laboratório de Bègue e Cornil. "Isso sugere que muitas das consequências causadas pelo uso de álcool realmente não se devem às propriedades neuroquímicas", afirma Lac. O poder das expectativas do álcool na vida diária pode também ser observado em um estudo recente de Christine Lee, da Universidade de Washington, e Melissa Lewis, da Universidade do Norte do Texas, ambas nos Estados Unidos. Elas pediram a estudantes que respondessem a pesquisas sobre suas expectativas e comportamento de bebida por meio de entrevistas telefônicas três vezes por dia, ao longo de duas semanas. As pesquisadoras concluíram que "as expectativas da pessoa sobre os efeitos específicos do álcool tendem a ser autoalimentadoras para os efeitos subjetivos da bebida, mesmo quando não houver relação direta com os efeitos fisiológicos". Esses efeitos subjetivos incluíram os benefícios positivos - sentir-se relaxado e de melhor humor - e as consequências negativas de "tornar-se agressivo, rude ou desagradável, criando situações embaraçosas". É preciso destacar que esses estudos analisaram principalmente o uso moderado de bebidas alcoólicas em populações saudáveis. As pessoas que possuem problemas sérios precisam de apoio profissional e será necessário mais que uma mudança das convicções sobre o álcool para alterar comportamentos prejudiciais. Mas espero, com base nas pesquisas para o meu livro, que o melhor conhecimento desses resultados possa contribuir para um estilo de vida mais saudável para as pessoas que apreciam uma bebida ou duas, mas gostariam de reduzir essa quantidade. Isso certamente me fez questionar minha relação com o álcool. Como muitas outras pessoas, muitas vezes bebo para me ajudar a relaxar e porque sinto que ele ajudará a facilitar situações sociais. Mas, depois de aprender que esses efeitos positivos vêm, em grande parte, das minhas expectativas, comecei a imaginar se eu poderia mudar de alguma maneira minha forma de pensar, para ter os mesmos benefícios com menos álcool e sem os seus efeitos negativos. Você pode duvidar que isso possa funcionar sem algum tipo de desapontamento, mas pesquisas recentes indicam que pode não ser este o caso. Quando as pessoas conhecem o efeito placebo, por exemplo, elas podem ter alívio significativo de suas dores com pílulas de placebo com "rótulos abertos", que não tentam esconder o fato de que a substância é inerte. Aparentemente, o conhecimento dos efeitos da expectativa e sua base científica pode produzir alterações muito potentes da nossa forma de pensar. Embora eu não tenha decidido parar totalmente de beber, estou experimentando porções pequenas para reduzir a quantidade de bebida - optando por misturas de vinho e soda, em vez de uma taça cheia de vinho, coquetéis sem álcool no lugar de martinis ou cervejas com baixo teor alcoólico. Desta forma, se eu estiver em algo como uma celebração ou um brinde, muitas vezes sinto o mesmo brilho que teria experimentado com minha bebida comum. E, quando acordo sem ressaca no dia seguinte, agradeço a mim mesmo pela decisão. Toda a diversão sem os efeitos negativos, graças a um pouco de pensamento positivo? Proponho alegremente um brinde a isso!
2021-12-31
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59832310
sociedade
‘Passei anos me escondendo’: o rapaz atingido por fogos de artifício que sonha em reconstruir o rosto
Em 2012, Samuel Rodrigues tinha 19 anos e vivia um período que considera um dos melhores da sua vida. Ele trabalhava como técnico de iluminação e tinha a promessa de ser promovido na empresa. Na noite de 17 de novembro daquele ano, ele estava trabalhando em um festival de música em Goiás quando sofreu um grave acidente. O jovem foi atingido por um fogo de artifício. "Ficou um buraco em quase todo o meu rosto", diz o rapaz, hoje com 29 anos. Ele foi levado às pressas ao hospital, passou por cirurgia e ficou internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Após quase um mês no hospital, Samuel se recuperou. Em casa, passou a conviver com a nova aparência: um rosto que carrega as marcas do acidente. Nesses quase 10 anos seguintes, ele se casou, se tornou pai e recomeçou a vida. No entanto, um fato o impedia de levar uma vida comum: a vontade de se esconder por causa de sua aparência. Um dos objetivos dele é fazer novos procedimentos para reconstruir a face. Porém, hoje ele afirma que esse desejo atualmente é motivado por questões funcionais no rosto, como a respiração, e não mais por questões estéticas. Ele diz ter conseguido resolver boa parte de seus problemas com a própria aparência nos últimos meses, quando começou a aparecer sem máscara nas redes sociais. "Tem sido libertador e tem feito muito bem para mim", conta à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Samuel trabalhava como técnico de iluminação. "Eu era muito elogiado, porque era um dos mais hábeis na empresa", diz o rapaz, que exerceu a função por cerca de dois anos. Ele, que mora em Trindade, região metropolitana de Goiânia (GO), conta que chegou a ser chamado para trabalhar em outros lugares, motivo que fez com que recebesse a promessa de que teria um cargo melhor se continuasse na mesma empresa. Enquanto aguardava a promoção no serviço, foi convocado para trabalhar com a empresa na parte de iluminação de um festival de música em Caldas Novas (GO). Ele teria que subir uma altura de cerca de quase 15 metros para cuidar do palco do evento. O rapaz conta que precisou subir na área de iluminação do palco em determinado momento do show. O objetivo, diz Samuel, era arrumar as luzes para a apresentação seguinte. Samuel afirma que nenhum funcionário da empresa em que ele trabalhava sabia que havia fogos de artifício perto da iluminação do palco. Ele descobriu a presença desses materiais da pior forma. "Enquanto eu finalizava a retirada das proteções no palco e me preparava para descer, os fogos dispararam. Não sei se foi automático ou se havia alguém por trás controlando isso", diz. "Um desses fogos atingiu o meu rosto", conta. Ele afirma que se lembra da situação "como se tivesse ocorrido trinta minutos atrás". "No momento, não percebi que tinha sido atingido. O impacto foi como um soco, eu fiquei um pouco tonto e deitei com o peito pra baixo, na estrutura do palco, para não cair. Tive um apagão de milésimos de segundos. Quando levantei um pouco a cabeça, vi os fogos estourando perto de mim e tive a noção de que um havia me acertado", relembra. Samuel foi resgatado do alto da estrutura com a ajuda de uma corda. "Me amarraram, colocaram um cinto na minha cintura para me sustentar e me desceram", conta. "Eu não tinha noção da gravidade", diz. Samuel acreditava que receberia atendimento médico e logo seria liberado. Porém, um fato chamou a atenção dele naquele momento: a reação das pessoas enquanto ele era resgatado. "Algumas choravam muito, outras viravam o rosto e isso me deixou muito preocupado", conta. Ele foi encaminhado por uma ambulância a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Pouco após chegar ao local, Samuel "apagou" e só despertou duas semanas depois. "Quando acordei, estava no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás, em Goiânia", conta. Posteriormente, o rapaz descobriu que horas após o acidente foi encaminhado da UPA para a unidade de saúde da capital, onde logo passou por uma cirurgia de emergência que durou quase 24 horas. "Colocaram pinos e placas no meu rosto. Abaixo dos olhos, perdi praticamente todos os ossos. Colocaram tela de sustentação no globo ocular. O trauma que eu tive no rosto foi surreal", diz. Entre os impactos na face, o jovem perdeu o nariz, os ossos da região central e parte dos dentes, principalmente na arcada superior. "Ele perdeu completamente os tecidos de pele da região central do rosto, todo o lábio superior, o músculo dessa região, parte da maxila direita e parte da maxila esquerda. Ele também perdeu todo o palato duro e o palato mole, por isso ficou sem a separação entre boca e nariz, área que ficou como se fosse uma cavidade única", detalha o cirurgião plástico Carlos Gustavo Neves, especialista em microcirurgia reconstrutiva. Os olhos do jovem também foram comprometidos: ele ficou completamente cego no olho esquerdo e com apenas 20% da visão no direito. Quando despertou, Samuel ainda estava na UTI e se assustou com a situação. "Eu estava com o rosto completamente enfaixado e não conseguia falar, por causa da traqueostomia", diz. Uma enfermeira perguntou se ele se recordava de tudo o que havia acontecido. "Eu respondi pra ela, por escrito, que sabia exatamente tudo até o momento em que entrei no hospital. Eu só não tinha noção de quanto tempo tinha passado ali, nem o que aconteceu nesse período. Ela ficou surpresa por eu me lembrar", conta. Desde que despertou, o rapaz passou a receber acompanhamento de uma fonoaudióloga, uma fisioterapeuta e uma psicóloga. Ao todo, Samuel passou 14 dias na UTI e o mesmo período na enfermaria do hospital. Depois da alta hospitalar, Samuel só conseguiu se olhar no espelho semanas depois, porque estava se recuperando de uma cirurgia de catarata que precisou fazer no olho direito. O primeiro encontro com o próprio reflexo foi impactante para o jovem. "Eu já sabia, pelo toque nessa região do rosto, que eu tinha perdido muita coisa, mas quando eu olhei foi um choque. Foi um encontro com a verdade. Foi chato e muito triste ver um buraco no meu rosto, mas acredito que como isso ocorreu meses depois do acidente, me sentia mais preparado para encarar", comenta. Ele recebeu apoio de familiares, principalmente da mãe, Geni Rodrigues, e de muitos desconhecidos. Pessoas de diversos lugares do país passaram a conhecer Samuel porque uma foto do rosto dele, completamente machucado após o acidente, foi compartilhada intensamente no Facebook na época. A partir disso, muitas pessoas passaram a manifestar desejo de que ele melhorasse. "Essas mensagens me ajudaram bastante", conta. O período de recuperação foi muito difícil para o jovem e exigiu cuidados intensos. Ele sofria com as diversas dificuldades, como para se alimentar, falar e até para respirar. Quase um ano depois do acidente, ele deu início à reconstrução facial, com o principal objetivo de restabelecer a função da área afetada pelo fogo de artifício. O jovem passou por um transplante autólogo (do próprio corpo) no qual foi retirada pele, tecido e músculo da coxa dele, que foram levados para o rosto. Ele também recebeu um enxerto com ossos retirados da bacia para reconstrução da face. As intervenções exigiram trabalho árduo de uma equipe composta por cerca de 20 pessoas. "Tivemos que usar instrumentos muito específicos, para não lesionar. Era preciso manusear todo o procedimento de maneira muito delicada", explica o cirurgião plástico Carlos Neves, responsável por liderar os profissionais. Meses depois, segundo Neves, Samuel passou por um procedimento de reconstrução nasal e por uma lipoescultura para ajustar o tecido transplantado ao rosto do jovem. Samuel afirma que os resultados foram positivos, mas diz que o pós-operatório foi muito difícil. "Foi uma recuperação traumática, porque imobilizaram a minha boca por um tempo. Fiquei muito estressado e nervoso nesse período. Isso me afastou das consultas e dos exames na época", confessa o rapaz. Em razão do pós-operatório, ele decidiu adiar novos procedimentos que poderiam ajudá-lo a evoluir cada vez mais. Hoje, ele planeja retomar esses procedimentos de reconstrução do rosto em breve, provavelmente após a pandemia de covid-19. "Preciso fazer um preenchimento na região em que faltam os ossos no rosto. Ainda vai ser definido, conforme as consultas, se será um enxerto ósseo ou uma prótese", explica Samuel. "São cirurgias para devolver a funcionalidade do meu rosto, não é mais com o foco na estética. O foco é a reconstrução do rosto", acrescenta. Um dos problemas que ele enfrenta, por exemplo, é em relação à respiração. "Quero fazer, ao menos, mais uma cirurgia para terminar parte do nariz. Na primeira vez, fizeram um molde nasal, mas os buracos para respirar não cicatrizaram bem e taparam", diz o rapaz, que respira por meio de uma traqueostomia (abertura da traqueia por um orifício). Outra dificuldade causada pelo acidente que o afeta é a baixa visão. "Não consigo andar sozinho e não consigo fazer muitas coisas sozinho". Para esse problema, porém, não há previsão de alguma cirurgia que possa reverter o quadro dele. Samuel foi à Justiça do Trabalho de Goiás contra a empresa para a qual trabalhava e contra duas empresas organizadoras do festival. Ele pediu indenização por danos materiais, morais, estéticos e pensão vitalícia pela perda de capacidade de trabalho. O processo teve início em dezembro de 2012 e transitou em julgado em fevereiro de 2016. As três empresas foram condenadas. A Justiça determinou uma indenização de mais de R$ 1 milhão pelos danos sofridos pelo jovem, segundo o advogado trabalhista Joaquim Cândido, responsável pela defesa de Samuel. O rapaz fez um acordo com a empresa para a qual trabalhava. "As duas empresas que organizaram o evento naquele ano foram montadas só para o festival e não tinham capacidade para o pagamento. Então, a única que podia pagar era a empresa na qual ele trabalhava, que não tinha recursos para pagar todo o valor estipulado pela Justiça. Por isso, ele decidiu fazer um acordo em que recebeu um valor muito menor que R$ 1 milhão", explica Cândido. O dinheiro do acordo, segundo Samuel, o ajudou a levar a mãe para conhecer o mar e o ajudou a construir uma casa "minimamente confortável". "Mas não consegui concluir o acabamento dela porque o dinheiro acabou", conta. No início de 2020, Samuel conseguiu se aposentar. Hoje, ele mora junto com a esposa, Karla Giovana, e o filho, de três anos, na casa que construiu. O relacionamento de Samuel e Karla começou em meados de 2013, meses após o acidente. "A gente se conhecia, mas não era próximo. Na época do acidente, ela (Karla) ficou muito abalada. A gente se aproximou, ela sempre queria saber o meu estado de saúde e a nossa amizade acabou virando um relacionamento", conta. O nascimento do filho mudou a vida de Samuel. "Não lembro como é não ser pai. Desde que ele nasceu, consegui me aceitar cada vez mais. Somos muito próximos", conta. Ele diz que o garoto até brinca com o enxerto no nariz do pai. "Para ele, que ainda está descobrindo as coisas, é algo comum. Acredito que agora ele esteja descobrindo a diferença que eu tenho das outras pessoas". Era somente perto de Karla, do filho e dos familiares mais próximos, como a mãe, que Samuel ficava sem máscara facial, para evitar possíveis olhares de estranhamento. "Nem mesmo parentes como sogra, cunhados ou primos tinham me visto sem máscara. Quando tinha algum evento em família, eu optava por comer coisas fáceis para não ficar totalmente sem a máscara", diz. Ele comenta que escondia o rosto por medo de constranger as pessoas. "Nem todo mundo sabe lidar com isso, por isso preferi me esconder", reflete ele, que logo brinca com o assunto. "Nem todo mundo está pronto para a minha beleza". Assim como para aqueles que encontrava pessoalmente, Samuel também evitava mostrar o rosto nas redes sociais e compartilhava apenas fotos com máscara. Ele conta que mostrou o rosto na rede pela primeira vez meses atrás. "Estava assistindo a uma live de um rapaz no TikTok, pedi para participar (da transmissão) e ele aceitou. Eu estava sem máscara e fui pego de surpresa, porque não sabia se ele aceitaria. E foi a primeira vez que expus meu rosto publicamente", conta. "Foi uma sensação libertadora", diz Samuel. "Eu contei toda a minha história nessa live e achei que haveria julgamentos ou brincadeiras de mau gosto com a minha aparência, mas não foi o que aconteceu". Samuel afirma que percebeu que falar abertamente sobre a sua história e mostrar o rosto nas redes poderia ser uma forma de ajudar aqueles que passam por dificuldades relacionadas à aparência. "Entendi que as pessoas se sentiam melhor quando eu explicava a minha história. Muitos se identificam de alguma forma. A minha história pode ser um incentivo para quem passa por problemas emocionais, pode até mesmo ajudar a buscar ajuda". Desde então, ele começou a compartilhar vídeos no TikTok sobre a sua vida ou brincando com situações do cotidiano. Na rede social, Samuel já conquistou mais de 62 mil seguidores. Em sua primeira foto sem máscara no Instagram, ele fez um texto curto sobre o quanto expor o próprio rosto não era "só um ato de coragem", mas também "um ato de amor, por saber que inúmeras pessoas podem se aceitar, mesmo não sendo aquilo que os padrões da sociedade exigem". Porém, nem tudo é fácil na exposição do rapaz nas redes. Ele passou a encarar diversos comentários ruins sobre a sua aparência. "As pessoas, em geral, me tratam muito bem. Então, não quero focar nesses pequenos comentários que não são legais", diz. Mesmo com a exposição nas redes, ele comenta que continua usando máscara em lugares com muitas pessoas, como em supermercados. "Sei que pessoas que nunca me viram podem ter um sentimento ruim ao me ver sem máscara ainda. Mas hoje, por exemplo, já consigo lanchar fora de casa". Para Samuel, a sua história é um exemplo dos impactos que os fogos de artifício podem ter. "Sempre fui contra, porque causam inúmeros transtornos, inclusive a pessoas sensíveis e a animais", diz. Utilizados com mais frequência durante períodos festivos, como em comemorações de fim de ano ou em festas juninas, os fogos de artifício já causaram diversos tipos de acidentes em decorrência do manuseio inadequado. O problema existe há anos no país e levou a mais de 5 mil internações hospitalares entre 2008 e 2017, segundo levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM) em parceria com a Sociedade Brasileira de Cirurgia da Mão e a Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia. De acordo com o levantamento, divulgado em 2018, foram registradas 218 mortes por acidentes com fogos de artifício nos 21 anos anteriores à pesquisa. São os dados mais recentes e completos sobre o tema até o momento. Profissionais de saúde ressaltam que o manuseio inadequado dos fogos pode causar problemas como queimaduras, lesões com lacerações e cortes, amputações de membros e lesões auditivas ou da visão. Além disso, especialistas alertam que há riscos para pessoas com deficiência, crianças ou animais que podem ser afetados pelo barulho causado pela prática. "É preciso endurecer a legislação e realmente proibir essa prática, porque é uma questão cultural e também revestida de muito desconhecimento e ignorância sobre os riscos", declara o médico José Adorno, presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras. "Existe uma insegurança muito grande na prática. Soltar rojões ou qualquer explosivo, com as próprias mãos ou em ambientes com muita gente, implica em riscos para a própria pessoa que vai soltar ou para aqueles que estão na proximidade", afirma Adorno. Nos últimos anos, diversos municípios do país passaram a proibir o uso de fogos de artifício com estampido, sob o argumento de que a medida ajuda a evitar transtornos àqueles que podem ser afetados pelo barulho desses produtos. A Associação Brasileira de Pirotecnia critica essas proibições. A entidade afirma que é necessário haver uma análise técnica de cada produto antes de impedir que sejam usados. "O que for comprovado que não faz bem pode ser retirado (de circulação) ou adaptado. É uma perseguição que não tem sentido", afirma o presidente da associação, Raul de Pina Barros. "Ninguém está aqui pra prejudicar ninguém. Ninguém está aqui pra vender um produto que possa fazer mal a alguma pessoa ou à sociedade. Na verdade, é o contrário, os fogos são para trazer alegria", acrescenta. Em relação aos acidentes, Barros afirma que podem ocorrer quando "não usam o artefato de maneira adequada". "Por exemplo, não é recomendado usar fogos nas mãos ou soltar em lugares (que tenham uma área) com menos de 50 metros (quadrados), porém ainda há usuários que fazem isso", diz Barros. Já o médico José Adorno considera que os cuidados sobre o tema no país ainda estão longe do adequado. "No Brasil, temos leis muito lenientes, que impulsionam essas práticas e acarretam em diversos problemas, como acidentes e até fábricas clandestinas. É preciso evoluir na fiscalização e nas proibições referentes aos fogos", declara.
2021-12-31
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59806075
sociedade
O que outros países fazem quando um feriado cai no fim de semana
O ano de 2022 começou com um feriado que caiu no fim de semana - 1º de janeiro, num sábado. E não foi o único: outros grandes feriados, como Dia do Trabalhador (1º de maio) e o Natal (25 de dezembro), serão no domingo. No Brasil, quem trabalha exclusivamente de segunda a sexta pode considerar esses feriados como "perdidos". Ao mesmo tempo, para áreas da economia como o comércio, a menor quantidade de feriados em dias úteis parece uma boa notícia (leia abaixo). No entanto, em outros países, há a transferência de feriados para dias da semana. Mesmo em culturas com regras trabalhistas diferentes entre si, como Inglaterra e Estados Unidos, essa prática é adotada. Na Inglaterra, o 1º de janeiro foi transferido, no papel, para o dia 3 (segunda). É que lá, se um feriado (bank holiday) cair em um fim de semana, um dia de semana 'substituto' será considerado como feriado - normalmente a segunda-feira seguinte. O feriado de Natal de 2022 será considerado no dia 27 na Inglaterra, já que o dia 26 (segunda) já é um feriado (Boxing day). No total, a Inglaterra tem 9 feriados nacionais. Nos Estados Unidos - onde geralmente o trabalhador tem direito a menos férias remuneradas que os de nações europeias -, também há transferência de feriados. Lá, o feriado do Ano Novo será "antecipado" para o dia 31 de dezembro. A regra nos Estados Unidos é assim: se um feriado cair em um sábado, para a maioria dos funcionários federais, a sexta-feira anterior será tratada como feriado para fins de pagamento e férias. Se o feriado cair em um domingo, a segunda-feira seguinte será tratada como um feriado. São 11 feriados federais nos EUA. No Japão, para a maioria dos feriados fixados em datas específicas que caiam em um domingo, a segunda-feira seguinte é considerada feriado. Se for no sábado, não há previsão de uma "compensação". Na nossa vizinha Argentina, uma lei prevê transferência de alguns feriados ("feriados nacionais móveis"), mas dentro da semana: os que caírem na terça ou quarta-feira são transferidos para a segunda-feira anterior. Os que coincidirem com quinta e sexta-feira são transferidos para a segunda-feira seguinte. Na mesma linha, no Chile e no Paraguai, legislações preveem que feriados específicos sejam transferidos de outros dias úteis para uma segunda-feira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast 1º de janeiro, Confraternização Universal (feriado nacional) - SÁBADO 28 de fevereiro, Carnaval (ponto facultativo) - SEGUNDA 1º de março, Carnaval (ponto facultativo) - TERÇA 2 de março, quarta-feira de cinzas (ponto facultativo até às 14 horas) - QUARTA 15 de abril, Paixão de Cristo (feriado nacional) - SEXTA 21 de abril, Tiradentes (feriado nacional) - QUINTA 1º de maio, Dia Mundial do Trabalho (feriado nacional) - DOMINGO 16 de junho, Corpus Christi (ponto facultativo) - QUINTA 7 de setembro, Independência do Brasil (feriado nacional) - QUARTA 12 de outubro, Nossa Senhora Aparecida (feriado nacional) - QUARTA 28 de outubro, Dia do Servidor Público (ponto facultativo) - SEXTA 2 de novembro, Finados (feriado nacional) - QUARTA 15 de novembro, Proclamação da República (feriado nacional) - TERÇA 25 de dezembro, Natal (feriado nacional) - DOMINGO Em circunstâncias normais, feriados podem estimular áreas como o turismo, mas eles também são associados a alguns impactos negativos em outros setores. Com a variação da quantidade de feriados em dias de semana, no Brasil, as previsões de impacto também se alteram. Para 2022, a Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC) prevê que, com menos feriados nacionais caindo em dias úteis em comparação a 2021, as perdas do comércio tendem a ser menores do que neste ano. Os números da entidade apontam para um prejuízo de R$ 22,11 bilhões em 2021, enquanto para 2022 a previsão é que as perdas sejam 22% menores (R$ 17,25 bilhões). Este deve ser, segundo a entidade, o menor prejuízo com feriados desde 2014. O cálculo da CNC é que cada feriado em dia útil gera um prejuízo R$ 2,46 bilhões ao varejo. Segundo a entidade, os segmentos que tendem a sofrer os maiores impactos são hiper e supermercados, vestuário e calçados, além de comércio automotivo, que concentram 55% das folhas de pagamento do comércio varejista brasileiro.
2021-12-28
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59811377
sociedade
‘Por que deixei meu emprego por outro com salário menor’
Assim como milhões de pessoas em todo o mundo, a pandemia estimulou Joe Flynn a reavaliar a carreira profissional dele. O homem de 34 anos de Worcestershire, um condado na Inglaterra, havia passado 10 anos vendendo hipotecas. Mas, durante as restrições dos últimos 21 meses, ele começou a reavaliar o que queria fazer da vida. "O setor de hipotecas para locação não era algo que eu sempre pensei em seguir, mas foi uma carreira que me proporcionou um forte desenvolvimento pessoal", diz ele. "Percebi que, em vez disso, queria algo em que eu pudesse fazer a diferença. Algo que eu me importasse." Inspirado por um trabalho voluntário feito anteriormente, Flynn encontrou um site chamado CharityJob, que lista as vagas no setor. Uma vaga na The Vegan Society chamou a atenção dele. "Foi perfeito ser vegano durante oito anos", diz ele. Agora, com três meses em sua função gerencial, Flynn está entusiasmado com o novo empregador. "Todo mundo é muito apaixonado aqui e quer impulsionar a organização. É realmente motivador". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No entanto, ele admite que aceitar uma "redução significativa no salário" o fez se questionar se era a atitude correta. "Mas pensei sobre minha ética e o que quero fazer", diz ele. "Achei que iria me arrepender para sempre de não ter aproveitado a oportunidade. Você não pode colocar um valor na satisfação no trabalho quando está lidando com uma organização cujas moral e ética se alinham com as suas." Com mais foco do que nunca em tópicos como mudanças climáticas, sustentabilidade e igualdade, as gerações mais jovens em particular estão mais empenhadas em encontrar uma carreira com um impacto social positivo. Jogue a pandemia nessa mistura e a tendência para uma carreira orientada com propostas sociais acelerou. Sete em cada 10 pessoas dizem que o coronavírus as fizeram reavaliar sua carreira, de acordo com um novo relatório da Escape the City, uma organização que ajuda as pessoas a deixar o setor corporativo. O estudo também descobriu que 89% dos entrevistados agora "queriam uma carreira com um forte senso de propósito". No mundo pré Covid-19, esse número era de 71%. Skye Robertson, chefe de operações da Escape the City, diz que a pandemia mudou o desejo das pessoas por suas carreiras. "Tem sido um período de reflexão para as pessoas pensarem sobre suas vidas e trabalhos, e o que é importante para elas", afirma. "As pessoas estão migrando para carreiras com propósito." Robertson acrescenta que, como muitas pessoas se acostumaram a trabalhar em casa desde março de 2020, o aspecto social que mantinha muitos trabalhadores presos aos seus empregos enfraqueceu significativamente. Habiba Islam é consultor de carreira da 80.000 Horas, uma ONG que fornece informações sobre como os indivíduos podem causar o maior impacto social durante sua vida profissional. "Para a maioria das pessoas, a carreira delas é a melhor maneira de causar um impacto positivo", diz ela. "A pandemia e as mudanças que ela fez para funcionar levaram as pessoas a pensar mais sobre a escolha de carreira e o que querem fazer." "Mas havia outros fatores em jogo. O outro aspecto é enfrentar uma catástrofe global. Isso volta a atenção das pessoas para problemas mundiais maiores, pensando que talvez pudessem estar trabalhando para prevenir a próxima covid, por exemplo", acrescenta. Yasmina Kone, de 27 anos, gerenciava o recrutamento de graduados em um escritório de advocacia quando a covid surgiu. "A pandemia foi uma época interessante", diz ela. "Passava muito tempo sentada atrás de uma tela, e isso me fez focar em quem estava se beneficiando com meu trabalho e como eu estava usando minhas habilidades. "Houve um sofrimento generalizado como resultado da pandemia e comecei a perceber que queria ter um impacto mais direto nas comunidades vulneráveis". Então, em maio de 2021, Kone deixou o emprego para se tornar gerente na Beam, uma empresa social que ajuda moradores de rua a encontrar empregos. Ela diz que seu novo papel tem sido motivador quando o mundo parece "um lugar escuro... agora estou mudando a vida das pessoas". Kone admite que aceitou uma redução no salário pelo cargo. No entanto, ela diz que valeu a pena. "Todos os dias, eu ajudo as pessoas. Isso é uma motivação mental, além de férias ilimitadas e opções de compartilhamento." Robertson insiste que é possível uma pessoa mudar para um emprego mais socialmente relevante sem ter que ver seu salário cair. "Ouvimos pessoas dizerem que há um 'imposto moral' (quando se deixa um emprego corporativo por outro com um propósito), com cortes massivos de salários ou tendo que trabalhar em uma instituição de caridade, mas esse não é mais o caso", diz Robertson. Ela aponta para o crescimento dos chamados negócios "B Corps" - empresas de todos os tamanhos que se comprometeram a equilibrar o lucro com um propósito e a considerar seu impacto na comunidade em geral e no meio ambiente. "Existem agora centenas de B Corps... oferecendo carreiras com propósito", diz Robertson. Para aqueles que estão reavaliando suas carreiras, Islam recomenda explorar qual problema social você mais se preocupa e deseja trabalhar, e quais são suas habilidades específicas. "Por exemplo, talvez você possa trabalhar em pesquisa... para ajudar a fazer avanços em um determinado campo. Ou trabalhar no governo ou na política. Também há a possibilidade de atuar em uma organização sem fins lucrativos", diz ela. "Há uma variedade de empregos diferentes, de comunicação a liderança, empreendedorismo e ou até mesmo a criação de uma organização sem fins lucrativos. Veja o que uma carreira gratificante e de alto impacto pode significar para você. Todo mundo tem prioridades diferentes dependendo da localização, finanças e fatores pessoais." Rachel Abraham acrescenta que "depois de um ano tão turbulento em 2020", ela "ficou refletindo sobre o que considera importante na vida". Trabalhando com marketing, a jovem de 27 anos de Liverpool, diz que "não queria mais gerar soluções apenas para os negócios". Abraham acrescenta: "Eu queria aplicar minhas habilidades em uma causa mais moralmente centrada. Eu sabia que queria trabalhar para uma instituição de caridade que prioriza e defende o bem-estar mental positivo, especialmente com jovens." Então, ela ingressou na iheart, uma instituição de caridade de educação em saúde mental infantil, como gerente de marketing, em agosto de 2021. "Trabalhando para uma instituição de caridade, as pessoas são muito mais legais e as interações diárias são gratificantes. Especialmente quando você está recebendo feedback de crianças que estão se sentindo muito mais confiantes", diz ela. Abraham acrescenta que é uma satisfação imediata no trabalho. "Você não está colocando centavos no bolso de uma pessoa desconhecida. Há um propósito maior."
2021-12-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59810506
sociedade
Matrix: a origem e o polêmico legado do filme no mundo real
"Não conheço o futuro. Não vim aqui para te dizer como isso acabará, vim para dizer como começará". Essa fala foi dita no final do filme Matrix em 1999, quando Neo, personagem interpretado por Keanu Reeves, emitia um alerta às máquinas que controlavam o mundo, após descobrir que a humanidade estava presa a uma realidade simulada. O filme, que foi lançado quando o mundo estava próximo da revolução da internet, e às vésperas do novo milênio, aproveitou o desenvolvimento tecnológico da época e levantou perguntas importantes sobre a web, a consciência e o controle social. 18 anos depois do fim da trilogia original, o quarto filme da saga, Matrix Resurrections, chega aos cinemas. Diante disso, analisamos o que permanece como legado do filme, que para alguns é uma espécie de referência profética. As irmãs criadoras de Matrix, Lana e Lilly Wachowski, basearam seu mundo distópico na obra do filósofo francês Jean Baudrillard. Muito antes de Reeves usar o sobretudo e os óculos escuros de Neo, ele foi convidado a ler o livro Simulacros e simulação, publicado pelo estudioso em 1981. Na obra, Baudrillard reflete sobre um "deserto do real", um mundo onde a verdadeira realidade foi substituída pelas ilusões do capitalismo. O filme concretizou esse conceito no líder rebelde Morpheus, quando ele usa a frase para apresentar a Neo as ruínas do mundo exterior. Para Baudrillard, não havia como escapar da simulação, mas as Wachowskis ofereciam esperança na "promessa de um verdadeiro mundo natural 'desconectado' e separado da matrix", explica o professor Richard Smith, editor do Dicionário Baudrillard. O impulso às ideias de Baudrillard com a sua narrativa é um dos primeiros legados do filme. Mas a influência da película se estende a situações e expressões cotidianas. Abaixo, conheça alguns exemplos disso: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma das cenas icônicas de Matrix é quando Morpheus oferece uma pílula azul ou vermelha a Neo (então vivendo como o hacker Thomas Anderson). Se Neo tomasse a azul, ele voltaria à vida como Anderson, sem saber da matrix, o mundo simulado criado para escravizar secretamente a humanidade. Já a pílula vermelha teria efeito oposto e lhe mostraria a realidade e ele teria conhecimento sobre a tirania das máquinas. Para o professor Smith, a narrativa do filme evoca a alegoria das cavernas de Platão, onde os prisioneiros acorrentados em uma caverna "confundem as sombras na parede com a realidade". Como Morpheus diz: "Matrix é o mundo que foi colocado sobre os seus olhos para cegá-lo da verdade". A cena da pílula "incita os seres humanos a se libertarem do mundo das aparências", diz Smith. Mas, com o passar do tempo, a metáfora da pílula vermelha do filme foi sendo alterada por motivos muito distantes de seu significado original. Por exemplo, a ideia foi adotada por grupos misóginos da internet, em particular o movimento incel, composto por homens supremacistas que criticam a liberdade sexual das mulheres e o feminismo. Entre essas comunidades da internet se destaca um fórum do Reddit chamado TheRedPill (TRP), que foi lançado em 2012 com o objetivo de proporcionar aos homens uma "estratégia sexual" para derrotar aquilo que descrevem como uma "cultura feminista" manipuladora que empodera somente as mulheres. Em 2018, o Reddit colocou o fórum em "quarentena" após um aviso de conteúdo que o tornava acessível somente por links diretos. Nessa época, havia mais de 400 mil seguidores no TRP. A filosofia da pílula já foi movida para fora da internet com consequências fatais. Antes do massacre de Plymouth, na Inglaterra, o autor do crime publicou um vídeo no Youtube no qual fazia referência a consumir "uma overdose de pílulas pretas", um termo interno da comunidade incel que leva ao extremo o significado niilista da pílula vermelha. Para a jornalista e escritora Sophia Smith Galer, as consequências offline da teoria da pílula vermelha mostram como ela se converteu em um conceito equivocado adotado como fuga de frustrações da vida cotidiana. A ideia de "libertar a mente" explorada pela teoria da pílula vermelha está entrando na política atualmente. Isso ocorre principalmente nos movimentos populistas modernos de extrema direita, que se posicionam como contra o sistema. A filosofia da pílula vermelha se transformou entre militantes da extrema direita como um "verbo", em razão do hábito de atacar o multiculturalismo, a globalização e a imigração, como disse o apresentador Danny Leigh. Alimentada pela desconfiança no governo, na mídia e no status quo, a extrema direita foi impulsionada para a principal corrente da política ocidente pelo ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump e seus apoiadores. A própria filha dele, Ivanka, então principal assessora da Casa Branca, mencionou o multimilionário Elon Musk no Twitter para dizer que ele teria "tomado" a pílula vermelha. O tuíte representou o oposto do significado da pílula vermelha de Morpheus. segundo o autor James Ball. "No filme, tomar a pílula vermelha é aceitar uma verdade diferente e espantosa em vez de permanecer em um engano cômodo", comentou. "E, ainda assim, tomar a pílula vermelha como é apoiado pelos grupos da extrema direita, é aceitar um pensamento em um grupo vil, mas confortável, se adaptar às suas ideias preconcebidas e ver o mundo em uma estrutura que se adapte a você". Lilly Wachowski demonstrou indignação ao responder secamente à publicação de Musk e Ivanka com uma frase ofensiva. Enquanto isso, o ator Hugo Weaving, que interpretou o Agente Smith na trilogia Matrix, também disse que ficou "desconcertado" com a mudança que fizeram na mensagem do filme. "Isso apenas mostra como as pessoas não leem abaixo das superfícies", disse ao The Daily Beast. O fato de que agora é tão fácil se trancar em uma câmara de ressonância online, onde nossas opiniões são reafirmadas e é um espaço desprovido de opiniões equilibradas, levou à afirmação de que vivemos na era da "pós-verdade". Esse termo foi até declarado como a palavra do ano pelo Dicionário de Oxford após o Brexit e a campanha presidencial nos Estados Unidos em 2016. Aplicativos de mensagens e redes sociais ajudaram esse clima a florescer, promovendo notícias falsas e o uso de algoritmos que constroem uma versão da realidade adaptada aos nossos gostos. Um relatório sobre o ecossistema de notícias digitais, publicado pelo Instituto Reuters neste ano, descobriu que embora o público valorize cada vez mais a verdade, apenas 44% acreditam nas notícias que leem. Plataformas como Instagram e TikTok atraem cada vez mais jovens, mas muitas vezes oferecem conteúdo de opinião ou vinculado a determinadas personalidades, sem antes verificar os fatos, acrescenta o estudo. Em conjunto, isso pode proporcionar um terreno fértil para uma espiral de teorias da desinformação e teorias da conspiração. Isso significa que o debate da pílula vermelha e azul está desaparecendo e ameaçando se transformar em uma pílula roxa roxa uniforme de preconceitos e desconfiança. Além de mudar nossas percepções sobre a verdade, nossa interconectada e crescente presença digital reflete elementos de Matrix que pareceriam pura ficção científica quando o filme foi lançado. Nossa disposição, tácita ou não, de compartilhar informações pessoais e aceitar monitoramento por meio da tecnologia, desde aplicativos de celulares a ferramentas de aprendizado por meio de máquinas, como alto-falantes inteligentes, nos permite traçar um quadro detalhado das nossas vidas e nossos hábitos. A sobreposição dos nossos perfis digitais e a vida real está aumentando cada vez mais por meio das novas tecnologias de realidade virtual, que fazem referência a como os rebeldes se conectam e desconectam da simulação no filme. O Facebook anunciou recentemente planos a longo prazo para criar um metaverso virtual, o que permitiria viver ainda mais conectado à internet. Assim como os guerrilheiros de Morpheus hackearam matrix para instalar programas que refletiam diferentes cenários, hoje existem vídeos "deepfake", cópias geradas por computadores que procuram imitar uma pessoa real. Da mesma forma, o transumanismo, a crença de que os humanos podem superar suas limitações físicas e mentais e "melhorar" seus corpos incorporando tecnologia, também coincide com a maneira como os personagens do filme podem baixar habilidades e aprender a manipular as leis da física dentro da simulação. Além disso, a relação do filme com a identidade do corpo como algo maleável foi fortalecida por Lily Wachowski, que descreveu esse conceito como uma característica trans durante uma conversa em um programa da Netflix no ano passado. "Essa era a intenção original, mas o mundo corporativo não estava totalmente pronto", disse a cineasta, que se identifica como uma pessoa transgênero, e revelou esse fato depois do lançamento da trilogia original. E onde está Matrix quando olhamos para o futuro? Alguns acreditam que o círculo está fechado. Em 2016, um grupo de físicos sugeriu que é provável que nosso universo não seja real e, em vez disso, é uma simulação gigante executada por um poder superior. Os líderes tecnológicos do Vale do Silício, incluindo o chefe da Tesla, Elon Musk, apoiaram a ideia. Por mais inverossímil que pareça, isso se encaixa no legado de Matrix. Como Neo advertiu as máquinas em 1999: "Vou mostrar um mundo sem vocês, um mundo sem regras e controles, sem fronteiras e limites... um mundo onde tudo é possível."
2021-12-27
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59786590
sociedade
Como identificar se seus dispositivos eletrônicos estão te espionando
Maria diz que cresceu em uma família católica e "amorosa" na costa leste dos Estados Unidos, que fazia grandes jantares de domingo. Os pais dela tinham um bom casamento e ela queria esse tipo de respeito e proximidade em seu próprio relacionamento. Quando ela conheceu o marido com vinte e poucos anos, foi amor à primeira vista. Mas o romance azedou rapidamente, transformando-se em uma história de 25 anos de abuso e controle. Primeiro, foi o xingamento. Então, o controle total de suas finanças, seus movimentos e, eventualmente, sobre seus três filhos. O marido se opôs à ideia de ela ter um emprego onde pudesse interagir com outras pessoas e a proibiu de usar o computador. "Ele me chamava de gorda todos os dias e me expulsava de casa quando estava com raiva", lembra ela. Eventualmente, o abuso financeiro aumentou. Primeiro, ele tomava o salário que ela recebia pelo trabalho como faxineira, depois, solicitou cartões de crédito em nome de Maria usando os documentos pessoais dela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Seis anos atrás, Maria finalmente desabou quando o ouviu dizer que a queria morta. Com a ajuda da igreja que ela frequentava e da família, ela formulou lentamente um plano de fuga. Depois de ter a sua casa hipotecada, ela finalmente foi morar com a irmã. Ela ganhou um laptop pela primeira vez e finalmente teve a liberdade de abrir uma conta no Facebook. E começou a namorar. Mas logo o ex-marido passou a responder as mensagens para o homem com quem ela estava saindo. E também começou a aparecer onde quer que ela estivesse. De repente, ela o localizaria dirigindo atrás dela em uma rodovia. Certa vez, ela estava com tanto medo de que ele a estivesse perseguindo e pudesse puxar uma arma, que chamou a polícia. Embora ela não tenha prestado queixa, a perseguição acabou diminuindo e ela se afastou ainda mais. Mas ela descobriu que tinha sido vítima do chamado stalkerware. Stalkerware é um software disponível comercialmente que é usado para espionar outra pessoa por meio de seu dispositivo - geralmente um telefone - sem seu consentimento. Ele pode permitir que o usuário veja as mensagens de outra pessoa, localização, fotos, arquivos e até mesmo vasculhar conversas nas proximidades do telefone. Para ajudar a resolver o problema, Eva Galperin formou a Coalition Against Stalkerware em 2019. Ela decidiu formar o grupo depois de olhar os relatos de várias supostas vítimas de estupro, que estavam com medo de que suas vidas continuassem sendo arruinadas pelos agressores por meio da tecnologia. Quando alguém tem acesso ao seu telefone, o potencial de exploração é enorme, explica ela. Por exemplo, uma vítima pode ser chantageada com ameaças de compartilhar fotos íntimas. Galperin diz que nos casos de violência doméstica que ela encontra, "algum nível de abuso habilitado por tecnologia está quase universalmente presente", e que isso geralmente inclui stalkerware. "Geralmente está relacionado aos casos mais violentos - porque é uma ferramenta poderosa de controle coercitivo", acrescenta ela. Uma pesquisa indica que a proliferação de stalkerware é um problema crescente: um estudo do Norton Labs descobriu que o número de dispositivos indicando que eles tinham stalkerware instalado aumentou 63% entre setembro de 2020 e maio de 2021. O relatório sugeriu que o aumento significativo pode ter sido causado pelo isolamento social, quando as pessoas passaram a ficar mais tempo em casa. "Os pertences pessoais estão mais acessíveis, provavelmente criando mais oportunidades para os abusadores instalarem aplicativos de stalker nos dispositivos de seus parceiros", constatou o relatório. Nos últimos dois anos, Galperin conseguiu convencer um punhado de empresas de antivírus a identificar esse tipo de software como malicioso. Isso ocorreu após uma relutância inicial em marcar o stalkerware como um programa indesejado - ou malware - por causa de sua possível legitimidade de uso. Em outubro, o Google removeu vários anúncios de aplicativos que incentivam os usuários em potencial a espionar o telefone de seus parceiros. Esses aplicativos costumam ser comercializados para pais que desejam monitorar os movimentos e as mensagens de seus filhos - mas, em vez disso, foram reaproveitados por abusadores para espionar seus cônjuges. Um desses aplicativos, o SpyFone, foi banido pela Comissão Federal de Comércio dos Estados Unidos em setembro de 2021 por coletar e compartilhar dados sobre os movimentos e atividades das pessoas por meio de um hack oculto no dispositivo. Apesar desses movimentos positivos, alguns aplicativos de stalkerware e conselhos sobre como usá-los ainda são facilmente acessíveis na internet. De acordo com Galperin, o próximo problema que a FTC está investigando são as empresas que vendem e compram dados de localização de telefones de usuários sem o conhecimento deles. Ela chama essa tecnologia de "uma ferramenta extremamente poderosa" para investigadores particulares, que a usam para rastrear a localização das vítimas. Com o stalkerware deliberadamente projetado para ser difícil de detectar, mesmo aqueles que são mais experientes em tecnologia ainda podem ser vítimas dele. Uma dessas pessoas era Charlotte (nome fictício), de uma analista sênior de segurança cibernética. Logo depois de ficar noiva, ela lentamente percebeu que coisas estranhas começaram a acontecer com seu telefone. A bateria descarregava rapidamente e ele reiniciava repentinamente - ambos sinais reveladores de um stalkerware potencialmente instalado no dispositivo dela. Até que o parceiro dela deixou claro que ele sempre sabia onde ela estava, e foi quando ela finalmente conectou os pontos. Para obter alguns conselhos sobre o que fazer, ela foi a um encontro de hackers. A reunião aconteceu em um local onde o noivo dela havia trabalhado e ela conhecia alguns dos rostos. Ela ficou chocada ao descobrir que existe uma cultura de aceitação de que parceiros possam rastrear um ao outro. O ambiente de "irmandade" entre homens da área de tecnologia que ela encontrou a estimulou a entrar na segurança cibernética, para reforçar a "representação a partir de diferentes perspectivas". Uma rápida pesquisa na Internet revela muitos serviços alegando que podem invadir o smartphone de alguém com apenas um número de telefone, geralmente por algumas centenas de dólares a serem pagos em criptomoeda. No entanto, embora o software com esses recursos possa ser acessado por órgãos de investigação, os especialistas em segurança cibernética acreditam que esses sites são provavelmente golpes. Em vez disso, o uso do stalkerware depende, em grande parte, de uma "engenharia social", com a qual Charlotte diz que as pessoas podem aprender a ter cuidado e evitar. O alvo pode receber uma mensagem de texto, que parece verídica, convidando-o a clicar em um link. Ou um aplicativo falso, disfarçado de legítimo, pode ser compartilhado com ele. Charlotte diz "não tenha medo" caso você tente excluir um aplicativo suspeito e ele exibir uma série de avisos. "Às vezes, eles usam táticas assustadoras para fazer com que os usuários não removam o software. Eles usam muitas técnicas de engenharia social." Se tudo falhar, Charlotte recomenda fazer uma redefinição de fábrica do telefone, alterando todas as senhas de suas contas de redes sociais e usando autenticação de duas etapas o tempo todo. Então, qual seria a melhor forma de enfrentar o problema? A maioria dos países já possui algum tipo de estatuto de escuta telefônica e leis anti-stalking em vigor. Por exemplo, em 2020, a França apresentou um novo projeto de lei sobre violência doméstica que, entre outros pontos, reforçou as sanções à vigilância secreta: o rastreamento geográfico de alguém sem o seu consentimento agora é punível com um ano de prisão e multa de € 45 mil (R$ 290 mil ). Se isso for feito pelo parceiro, as multas serão potencialmente ainda maiores. Mas, para Eva Galperin, esse não é um problema que possamos esperar que uma nova legislação resolva inteiramente. Ela acha que tanto o Google quanto a Apple poderiam, por exemplo, agir tornando impossível a compra de qualquer um desses aplicativos em suas lojas. Crucialmente, ela acrescenta, o foco deve ser em um melhor treinamento para que a polícia trate o problema de maneira mais rigorosa. Um dos maiores problemas que ela diz ver, é que as vítimas procuram a aplicação da lei na intenção de que ela seja cumprida. Porém, as autoridades fazem vista grossa e "dizem que esse não é um problema" prioritário. A proliferação do cyber-stalking também trouxe um novo tipo de serviço de apoio às vítimas de violência doméstica. A Clinic To End Tech Abuse - Ceta - é uma dessas instalações, associada à Cornell University nos Estados Unidos. A Ceta trabalha diretamente com sobreviventes de abusos, ao mesmo tempo em que coleta pesquisas sobre o crescente uso indevido de tecnologia. Rosanna Bellini, do Ceta, diz que normalmente eles não recomendam a remoção imediata do stalkerware do telefone da vítima - sem fazer um planejamento de segurança primeiro com um responsável pelo caso. A experiência anterior revelou esta abordagem: se o acesso do agressor ao telefone da vítima for cortado repentinamente, isso pode levar a uma escalada de violência. Para Maria, que está livre do casamento abusivo há seis anos, as coisas não estão perfeitas, mas melhorando. "Tenho um bom relacionamento com alguém que realmente se preocupa comigo e me apoia, ajudando a construir minha história", diz ela. Ainda há momentos em que ela fica ansiosa ao lidar com o telefone. Ela foi diagnosticada com transtorno de estresse pós-traumático (PTSD). Mas ela quer que outras vítimas saibam que a perseguição cibernética é enorme e que não estão sozinhas. "Não tenha medo. Há ajuda lá fora. Fiz grandes avanços e, se posso fazer isso na minha idade, - aos 56 - qualquer um pode fazer."
2021-12-27
https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-59798239
sociedade
Barão de Itararé: a vida trágica e o humor anárquico de um ícone do jornalismo
Na manhã de 19 de outubro de 1934, o jornalista gaúcho Apparício Torelly (1895-1971) saía de casa em Copacabana, no número 188 da rua Saint-Romain, rumo ao Centro, onde trabalhava, quando seu carro, um Chrysler, foi interceptado por dois veículos. Cinco homens, alguns deles armados, sequestraram o editor do Jornal do Povo. "Tem família?", perguntou um dos sequestradores, já com os carros batendo em retirada. "Isso não vem ao caso", respondeu o sequestrado. "Nem é da conta dos senhores". "Escreva despedindo-se", continuou o sujeito. "É um favor que lhe prestamos". "Dispenso-o", retrucou a vítima. Logo, Torelly descobriu que os homens que se diziam policiais eram, na verdade, oficiais da Marinha. Estavam indignados com a publicação de um folhetim sobre a Revolta da Chibata, liderada pelo marinheiro João Cândido (1880-1969), o Almirante Negro. Como Torelly se recusou a suspender a publicação, que denunciava os maus-tratos na Marinha, foi espancado. Os sequestradores cortaram seus cabelos, furaram os pneus de seu carro e o abandonaram, quase nu, num local deserto. Na tarde daquele mesmo dia, uma sexta-feira, depois de voltar para a redação, Torelly pendurou, na porta de sua sala, uma placa com os dizeres: "Entre sem bater". "O Barão é daqueles que começam uma partida do zero. É como se tivesse inventado as regras do jogo", afirma o jornalista Cláudio Figueiredo, autor da biografia Entre Sem Bater - A vida de Apparício Torelly - O Barão de Itararé (2012). "Foi muito mais do que 'frasista'. Foi um humorista revolucionário, anárquico, inovador. Colocar o foco sobre um único aspecto de sua obra seria como julgar Pelé por sua atuação no Cosmos, já no seu fim de carreira". Fernando Apparício de Brinkerhoff Torelly nasceu no Rio Grande, município a 317 quilômetros de Porto Alegre (RS), no dia 29 de janeiro de 1895. Seu pai, João da Silva, era brasileiro, e sua mãe, Maria Amélia, uruguaia. O pequeno Apparício ainda não tinha completado dois anos quando a mãe, então com 18, tirou a própria vida, com um tiro na cabeça. Até hoje, não se sabe ao certo a razão do suicídio. Especula-se que tenha sido por causa do temperamento violento do marido. Órfão de mãe, Apparício foi mandado para um colégio jesuíta em São Leopoldo. Apesar de sua pouca idade, já esbanjava a irreverência que o tornaria famoso. Tanto que foi lá, no Colégio Nossa Senhora da Conceição, que criou seu primeiro jornal de humor, o Capim Seco, totalmente escrito à mão. Certa vez, o professor de português pediu a Apparício que conjugasse um verbo qualquer no tempo mais que perfeito. "O burro vergara ao peso da carga", respondeu o jovem. Nada demais, não fosse Oswaldo Vergara o nome do tal professor. Antes de seguir carreira como jornalista, Apparício Torelly tentou a medicina. Tinha 17 anos quando se matriculou na Escola de Medicina e Farmácia de Porto Alegre. Ao chegar atrasado a uma aula de anatomia, o professor Sarmento Leite pegou um fêmur e lhe perguntou: "O senhor conhece este osso?". Ainda ofegante, o estudante respondeu, estendendo a mão: "Não, muito prazer!". Em outra ocasião, durante uma prova oral, o professor, vendo que Apparício não sabia as respostas, pediu, irônico, a um funcionário da faculdade: "Me traga um pouco de alfafa, por favor". "E, para mim, um cafezinho", completou o aluno que, no entanto, não chegou a concluir o curso e largou a faculdade em 1919. "A vida do Barão de Itararé é cheia de passagens trágicas. A começar pelos seus problemas de saúde, como a hemiplegia (paralisia total ou parcial da metade lateral do corpo)", conta Mary Stela Surdi, mestre em Letras pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com a dissertação Barão de Itararé - A Linguagem do Humor (1998). "Desde muito jovem, foi preso e apanhou incontáveis vezes. Mas, sempre lidou com a perseguição político-ideológica com humor e inteligência". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com passagem por diversos jornais e revistas, tanto da capital gaúcha quanto do interior do Estado, Apparício Torelly tentou a sorte no Rio de Janeiro. Na bagagem, trazia seu primeiro e único livro, Pontas de Cigarro, de poesia, de 1916, e seu primeiro jornal de humor, O Chico, que teve tiragem de oito mil exemplares, de 1918. Aos 30 anos, foi bater à porta de O Globo. "O que quer fazer aqui?", perguntou o então dono do jornal, Irineu Marinho (1876-1925). "Qualquer trabalho serve", respondeu Apparício. "De varredor a diretor do jornal, até porque não vejo muita diferença". Sua primeira coluna, intitulada Despreso, foi publicada na versão matutina do jornal, em 10 de agosto de 1925. Ao longo da carreira, Apparício Torelly teve dois pseudônimos: Apporelly, uma fusão de "Apparício" e "Torelly", e Barão de Itararé, o mais famoso deles, em homenagem à batalha que nunca aconteceu, na divisa entre São Paulo e Paraná, entre as tropas de Washington Luís e de Getúlio Vargas. Com a morte de Irineu Marinho em 21 de agosto de 1925, vítima de infarto, Torelly migrou para as páginas do jornal A Manhã, de Mário Rodrigues (1885-1930), pai dos jornalistas Mário Filho (1908-1966) e Nelson Rodrigues (1912-1980). Batizada de Amanhã Tem Mais..., a coluna diária de Apporelly estreou em 2 de janeiro de 1926 e fez enorme sucesso entre os leitores. "Eles não perdiam aquela saraivada de frases, versinhos e trocadilhos com nomes de políticos", afirma o jornalista e escritor Ruy Castro em O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (1992). "Algumas das melhores frases já tinham sido inventadas por Bernard Shaw, Mark Twain ou Oscar Wilde, a quem Apporelly esquecia de citar. Outras, às vezes muito engraçadas, eram dele mesmo". Entre outros trocadilhos famosos, Getúlio Dornelles Vargas (1882-1954), líder da Revolução de 1930, virou "Getúlio Dor Neles Vargas" e Filinto Müller (1900-1973), o torturador do Estado Novo, "Filinto Mula". Sobre Getúlio, aliás, disse, certa ocasião: "Sabe como se chama nosso caro presidente? Gravata Preta. Adapta-se a qualquer roupa e a qualquer regime". Além de fazer trocadilhos com nomes de políticos, Torelly se especializou em criar paródias para frases famosas. "Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos", do filósofo francês Auguste Comte (1798-1857), por exemplo, virou "Os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mais vivos". Já o lema integralista "Deus, Pátria e Família", de Plínio Salgado (1895-1975), ganhou nova versão: "Adeus, Pátria e Família!". Apenas quatro meses depois de começar a trabalhar no jornal A Manhã, Torelly decidiu fundar seu próprio jornal: A Manha. "O jornal de humor que ele criou e manteve com ímpeto quixotesco sobreviveu de 1926 a 1959", explica o jornalista Rodrigo Jacobus, Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com a tese Um Nobre Bufão no Reino da Grande Imprensa (2010). "Ao longo desse período, pontuou com seu humor alguns dos maiores acontecimentos do século 20, como a Revolução de 30, o Estado Novo, a Segunda Guerra Mundial...". Em 10 de outubro de 1929, A Manha passou a circular como suplemento do jornal Diário da Noite, do jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968), o "Chatô". A sociedade, porém, durou pouco: cinco meses. Além da edição diária, Torelly publicou, ainda, três números de Almanhaque, ou seja, o almanaque do jornal A Manha. Um número saiu em 1949 e dois, em 1955. Todos traziam jogos, piadas e adivinhações. Seu principal parceiro na nova empreitada foi o chargista e ilustrador paraguaio Andrés Guevara (1904-1963). No dia 9 de dezembro de 1935, Apparício Torelly sofreu a primeira de suas muitas prisões. O motivo da detenção nunca foi totalmente esclarecido. Uma das hipóteses é pelo fato de ele ter sido um dos fundadores da Aliança Nacional Libertadora (ANL), no Rio de Janeiro. Na manhã seguinte, Torelly foi levado para um navio-presídio ancorado na Baía de Guanabara. Nem mesmo preso perdeu sua verve cômica. A certa altura, o comandante afirmou: "O senhor está convidado a depor". Nisso, o Barão respondeu, cínico como sempre: "Depor o governo? Me admira muito que o senhor tenha a coragem de fazer um convite desses". Noutra ocasião, durante um interrogatório, ouviu do juiz Castro Nunes: "A que o senhor atribui sua prisão?". "Só posso atribuir ao fato de estar tomando um cafezinho", respondeu. "Na minha família, sempre disseram que café faz mal". No exato momento da prisão, Torelly estava em uma padaria, na avenida Rio Branco, tomando cafezinho. No dia 21 de março de 1936, Apparício Torelly foi transferido para a Casa de Detenção, na rua Frei Caneca. Lá, dividiu cela, entre outros, com o jornalista e escritor Graciliano Ramos (1892-1953). "Aporelly contava piadas satirizando a situação política do país", conta o escritor e biógrafo Dênis de Moraes em O Velho Graça - Uma Biografia de Graciliano Ramos (2012). "Só se referia, por exemplo, ao carrancudo general Góis Monteiro como 'Gás Morteiro' e adorava compor paródias para músicas famosas como Cidade Maravilhosa". Mas, aos poucos, a prisão começou a deixar marcas em Torelly. É o que relata Fábio César Alves, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), com a tese Vivência, Reflexão e Combate: Sobre Memórias do Cárcere (2013). A obra-prima de Graciliano, explica o pesquisador, revela o quanto a prisão destruiu Aparício Torelly. "De dia, era aparentemente alegre. Mas, à noite, passava muito mal. A ponto de sofrer tremores e ranger os dentes. O que obrigava o Graciliano a agarrá-lo até que se acalmasse". Solto em dezembro de 1936, já ostentando sua famosa barba, Torelly virou-se para o amigo e disse, com indisfarçável admiração: "Às vezes, tenho vontade de partir-lhe a cabeça só para ver o que tem dentro". Graciliano Ramos não foi o único escritor famoso que Apparício Torelly conheceu. No jornal A Manha, trabalhou ao lado de Rubem Braga (1913-1990), José Lins do Rego (1901-1957) e Marques Rebelo (1907-1973). No caso de Jorge Amado (1912-2001), foi Torelly quem apresentou o escritor baiano a sua futura mulher, Zélia Gattai (1916-2008). Foi em janeiro de 1945, durante o 1° Congresso Brasileiro de Escritores, em São Paulo. O encontro se deu na Boate Bambu. "Me apresente à moça, Barão", pediu Amado. E, assim, os dois se conheceram. "Não houve no Brasil, na década de 1940, escritor mais unanimemente lido e admirado do que o humorista cujo riso, ao mesmo tempo bonachão e ferino, fazia a crítica aguda e mordaz da sociedade brasileira e lutava pelas causas populares", declarou Jorge Amado, em 1985. "Mais do que um pseudônimo, o Barão de Itararé foi um personagem vivo e atuante, uma espécie de Dom Quixote nacional, malandro, generoso e gozador, a lutar contra as mazelas e os malfeitos". Em novembro de 1946, Torelly arriscou-se na carreira política. Em tempos de falta d'água e de leite adulterado, adotou como lema de campanha: "Mais água! Mais leite! Mas menos água no leite!". Deu certo. Com 3,6 mil votos, elegeu-se vereador pelo PCB. Certa ocasião, ouviu de um parlamentar: "O que Vossa Excelência fala entra por um ouvido e sai pelo outro". "Impossível, excelência", rebateu o Barão. "O som não se propaga no vácuo". Em maio de 1947, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) cassou o registro do PCB. Com isso, Torelly perdeu seu mandato. "Na época, emissoras de rádio transmitiam os discursos dos vereadores", relata o jornalista Mouzar Benedito, autor de Barão de Itararé: Herói de Três Séculos (2007). "Quando discursava, lavadeiras e operários paravam de trabalhar para ouvir o Barão. Em seu discurso de despedida, disse: 'Deixo a vida pública para entrar na privada'". No dia 12 de janeiro de 1965, Torelly sofreu mais um duro golpe. Sua companheira, Aída Costa, encharcou as roupas de álcool e ateou fogo ao corpo. Foi a quinta tragédia pessoal que Torelly sofreu em sua vida: em 1897, perdeu a mãe; em 1935, Zoraide, sua segunda mulher, vítima de câncer; em 1939, Juracy, sua terceira mulher, de leucemia; em 1944, Ady, sua filha, de problemas no coração e apendicite; e em 1965, Aída, por suicídio. Recluso, Apparício Torelly morreu enquanto dormia no dia 27 de novembro de 1971, aos 76 anos, há exato meio século. Ele morava, sozinho, num apartamento de quatro cômodos, todos abarrotados de livros, revistas e jornais, no bairro de Laranjeiras, Zona Sul do Rio. No atestado de óbito, "arteriosclerose cerebral, seguida de coma diabético". Apparício Torelly deixou três filhos: Arly, Ady e Ary, frutos de seu primeiro casamento, com Alzira Alves. Os sucessores são incontáveis. Os mais famosos, na opinião de Jorge Amado, foram o Stanislaw Ponte Preta, criado por Sérgio Porto (1923-1968), e o Analista de Bagé, de Luís Fernando Veríssimo. Mas, houve outros, conforme lista o jornalista e escritor Luís Pimentel em Entre Sem Bater - O Humor na Imprensa (2004): da revista Pif-Paf, de Millôr Fernandes (1923-2012), a Bundas, do cartunista Ziraldo. "O pessoal do Pasquim assumia ser 'neto' do Barão e 'filho' do Stanislaw Ponte Preta", observa o designer gráfico Sérgio Papi, responsável, ao lado de José Mendes André, pelo relançamento dos três volumes do Almanhaque, entre 1989 e 1995. "Não por coincidência, o jornalista Sérgio Porto foi 'foca' (jornalista iniciante) do Apparício no jornal Folha do Povo". Reza a lenda que foi o Barão quem convenceu Sérgio Porto, que estreou no jornalismo como crítico de cinema, de que tinha vocação para o humor. Dez máximas do Barão de Itararé: 1. "De onde menos se espera, daí é que não sai nada." 2. "Quando pobre come frango, um dos dois está doente." 3. "Tempo é dinheiro. Vamos, então, pagar as nossas dívidas com o tempo." 4. "O fígado faz muito mal à bebida." 5. "Negociata é todo bom negócio para o qual não fomos convidados." 6. "Para este mundo ficar bom, é preciso fazer outro." 7. "Quem foi mordido por cobra tem medo até de minhoca." 8. "Sabendo levá-la, a vida é melhor do que a morte." 9. "O tambor faz muito barulho, mas é vazio por dentro." 10. "Este mundo é redondo, mas está ficando muito chato."
2021-12-26
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59689669
sociedade
Como o guaraná se tornou bebida típica da região mais fria do Japão
Refrigerantes à base de guaraná são raros em praticamente todo o Japão, mas não em Hokkaido, a província mais setentrional e fria do arquipélago, que se tornou referência desse tipo de bebida no país. A geografia e o empenho de um grupo de pequenas e médias empresas 60 anos atrás ajudam a entender como ele foi parar no copo dos japoneses. "Meus pais conheceram o guaraná antes da Coca-Cola, e acabaram se acostumando com o sabor. Eu também tomo desde criança", diz o japonês Shinsuke Hamada, de 43 anos. Nascido e criado em Hokkaido, pelo menos uma vez por semana ele costuma comprar o refrigerante, seja em supermercados, lojas de conveniência ou em máquinas de venda automática, o que já não é possível para quem vive em outras províncias. Muitas das marcas são produções locais, e quase todas trazem o mapa da província no rótulo como uma prova de que o guaraná tornou-se um orgulho de Hokkaido ao longo de 60 anos. O primeiro refrigerante do gênero produzido em larga escala no Japão surgiu em 1960, quatro anos antes dos Jogos Olímpicos de Tóquio e na época em que o país começava a emergir das cinzas da guerra. Para rebater críticas que recebia por manter a economia superavitária e por impor altas tarifas sobre produtos importados, o país permitiu a entrada da Coca-Cola, que aportou no Japão em 1957. Em um curto espaço de tempo, os japoneses se apaixonaram pelo aroma único do refrigerante americano, levando à queda nas vendas de ramune (limonada gaseificada) e de cidra (soda), os refrigerantes produzidos na época pela indústria japonesa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para conter a investida do refrigerante americano, a Federação Nacional de Cooperativas de Produtores de Soft Drink do Japão foi em busca de uma alternativa capaz de disputar o mercado local com a Coca-Cola. "Foi quando soubemos que no Brasil havia uma bebida consumida há muito tempo pela população e que batia de frente com a Coca-Cola", lembra Koichi Obara, atual presidente da Co-Up Co. A empresa foi formada por 35 cooperados de várias províncias para desenvolver e comercializar uma marca unificada do primeiro refrigerante marrom made in Japan. O produto foi batizado de Co-Up (do inglês "cooperation up") e é vendido até os dias de hoje, porém fabricado por apenas duas das empresas pioneiras: a Obara e a Hoppy Beverage. Houve mudanças na receita e na embalagem. Segundo o diretor financeiro da Obara, Shinya Obara, a composição original tinha suco de maçã para suavizar o sabor único do guaraná. Atualmente, a empresa usa xarope de milho com alto teor de frutose de batatas cultivadas na região. O nível de doçura é mantido desde o princípio, por agradar o público de Hokkaido. "Talvez por ser uma região muito fria, as pessoas daqui gostem muito de coisas doces", afirma Obara. Quando desenvolveram a marca unificada Co-Up, os produtores tinham outra preocupação. Queriam tanto se aproximar da Coca-Cola, que além da bebida ser escura, a embalagem ficou parecida. Alguns anos antes de falecer em 2019, o empresário Koichi Ishiwatari (da Hoppy Beverage) contou que o grupo apostou em garrafas de vidro com formato inspirado em uma maiko (jovem dançarina que estuda para se tornar gueixa) para contrapor à da americana, que lembrava a silhueta de uma mulher de saia longa. Atualmente, o guaraná desta e de marcas que surgiram depois é envasado em garrafas PET e em latas. O sabor que agrada os japoneses de Hokkaido é estranho para brasileiros como a manauara Karen Melo. "Os refrigerantes de guaraná que tomei eram menos doces que o do Brasil, e tinham gosto que lembrava remédio". Há 25 anos ela veio do Amazonas para morar na província de Aichi (na região central do Japão) e mudou-se para Hokkaido (no extremo norte) há apenas 10 meses. Além do frio, uma das primeiras surpresas que teve quando chegou no atual endereço foi encontrar guaraná em todo lugar. "Realmente, a bebida é popular entre os japoneses daqui", diz. Um erro da Coca-Cola no passado teria ajudado o guaraná japonês a conquistar a popularidade regional. A empresa americana conseguiu ampliar seu mercado assim que chegou no Japão, mas demorou três anos para chegar a Hokkaido - a segunda maior ilha japonesa, separada da principal Honshu por um estreito. "Isso nos ajudou, porque nesse meio tempo o guaraná Co-Up se espalhou pela província", diz Koichi Obara. Nas demais regiões, os cooperados enfrentaram resistência do mercado para conseguir colocar o guaraná nas prateleiras já ocupadas pela Coca-Cola. Como eram empresas de pequeno e médio porte, a capacidade de produção era limitada. Mesmo assim, elas se lembram com orgulho da marca de 15 milhões de garrafas de Co-Up vendidas em um ano de pico, com Hokkaido puxando as vendas. Um problema com a esterilização das garrafas ocorrido em uma das fábricas acabou afetando a imagem do produto e comprometendo as vendas. Desestimuladas, muitas empresas desistiram da produção e venda da marca unificada de guaraná. A Obara se manteve fiel ao produto Co-Up e hoje detém 70% do mercado de guaraná em Hokkaido, segundo o diretor financeiro Shinya Obara. O potencial desse mercado não passou despercebido por grandes empresas como a cervejaria Kirin e a Pokka Sapporo, donas da Kirin Guarana (sem acento) e da Ribbon Squash. A rede de lojas de conveniência Seicomart também lançou o seu guaraná Secoma em julho de 2013, principalmente pensando em ampliar a lista de produtos de marca própria. Com os bons resultados, o objetivo agora é tornar a bebida conhecida fora de Hokkaido. Além da venda online, promove o produto em feiras e exposições, de olho também nos mercados de Hong Kong, Estados Unidos, China e Rússia. Na cidade de Furano é produzido o guaraná Heso (palavra japonesa que significa "umbigo", numa referência à localização, no centro da província de Hokkaido). Até mesmo uma rede de hamburguerias da cidade de Hakodate produz o seu guaraná Lucky, adoçado com uva. Redes atacadistas como a Sapporo Ueshima Coffee têm a Hokkaido Guarana, e a Maruzen de Tomakomai criou o guaraná Ale com mel. As matérias-primas principais podem ser as mesmas, mas o sabor final varia conforme cada fabricante. A empresa Godo, que faz parte do Grupo Oenon, produz o Hokkaido Highball Guarana, com 4% de teor alcoólico. No verso da lata tem a explicação, em japonês, sobre a origem do guaraná como um grão do Amazonas. "Deixamos a bebida com um sabor adulto. Aprecie o sabor local de Hokkaido".   O guaraná brasileiro Antarctica também está no cardápio dos japoneses. Importado e distribuído pela empresa Arai Shoji desde 1980, o refrigerante pode ser comprado em sites online, lojas de produtos brasileiros e alguns supermercados, inclusive na província de Hokkaido. Segundo a Japan Soft Drink Association, entre 2010 e 2019, o consumo per capita de bebida não alcoólica subiu de 145 litros para 180 litros. Com essa marca, o Japão ocupa a sétima posição no ranking individual de soft drinks elaborado pelo instituto de pesquisa de mercado Euromonitor Internacional, que traz em primeiro lugar a China (410 litros) seguida dos Estados Unidos, e o Brasil na 10ª posição (114 litros por pessoa). Entre os soft drinks preferidos dos japoneses, estão os vários tipos de chá vendidos em garrafas PETs, café em lata e água com gás. O guaraná ainda está longe de figurar neste ranking, mas em Hokkaido há mais de 60 anos aparece como o refrigerante preferido de muitas famílias.
2021-12-24
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59778255
sociedade
Há 90 anos, Vovô Índio era a tentativa brasileira de destronar Papai Noel
Revirando arquivos de jornais, não é tão difícil encontrar menções ao Vovô Índio em notícias do período natalino da primeira metade do século passado. Mais precisamente, nos anos 1930, quando foram grandes os esforços em popularizar o personagem, candidato brasileiro a destronar o Papai Noel nos corações das crianças sedentas por brinquedos. "Vovô Índio e as crianças" foi chamada de capa do jornal O Globo em 24 de dezembro de 1932, com o registro de que a figura havia sido a responsável pela entrega de presentes em uma escola municipal carioca. O mesmo jornal, em 28 de novembro, havia publicado um verdadeiro manifesto em defesa do Vovô Índio — sob o título "Vamos fazer um Natal brasileiro?" — e, em 20 de dezembro, uma declaração de guerra ao bom velhinho — "Pela deposição de Papai Noel" era o nome do texto. Na capital paulista, os ânimos não eram diferentes. Em 1935, conforme noticiou O Estado de S. Paulo, foi o Vovô Índio quem levou presentes a órfãos paulistanos em ação promovida pela Força Pública — instituição antecessora da atual Polícia Militar. Nos anos 1930 houve ainda um concurso nacional para escolher a imagem que melhor representasse o personagem. E, em 1939, uma peça infantil em cartaz no Rio promoveu o inusitado encontro do Papai Noel com o Vovó Índio. Presidente do Brasil de 1930 a 1945 e de 1951 a 1954, Getúlio Vargas (1882-1954) nutria simpatia pela figura, atestam pesquisadores. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há diversas histórias de que ele pessoalmente tenha se empenhado em transformar o Vovó Índio em símbolo do Natal brasileiro — mas, diante da falta de comprovação documental, se confundem os limites entre o que realmente era engajamento do político populista e o que se tornou causo folclórico. "Vargas tinha o compromisso de nacionalizar o país, criar um Estado nacional, criar uma estrutura nacional. Nesse esforço, ele reforçou a imagem de Tiradentes, por exemplo. E trouxe a ideia do Vovó Índio, deu apoio para difundi-la", explica o historiador e sociólogo Wesley Espinosa Santana, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "Mas não pegou na população." Com contornos de lenda e sem constar de jornais da época, mas apenas de histórias publicadas décadas mais tarde sobre o assunto, o mais famoso desses episódios pode ter ocorrido há exatos 90 anos, no Natal de 1931, quando o presidente teria sido anfitrião de um evento natalino para apresentar o Vovô Índio para a criançada em um estádio do Rio. Segundo esses relatos, a plateia não aprovou a ideia de receber presentes de um homem vestido de tanga e com cocar na cabeça — a preferência recaía sob o internacional Papai Noel. "A fábula do Vovô Índio dizia que ele era filho de um escravo africano com uma índia. Foi criado por uma família branca e, por influência de seus irmãos, deixou de ser escravo", explica o jornalista Marcelo Duarte em seus livro O Guia dos Curiosos - Fora de Série. "O presidente Getúlio Vargas chegou a pensar em transformá-lo em símbolo nacional." O historiador e sociólogo Santana vê paralelos entre esse mito e a teoria racial brasileira do antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997). Afinal, assim como povo o brasileiro, o Vovô Índio também seria a mistura das "três raças tristes". "O Vovó Índio era o velhinho sábio, filho de preta com índio, criado por uma branca. A ideia de mesclar, colocar o sincretismo cultural e étnico, as três raças tristes brasileiras: o preto porque foi escravizado, o índio porque foi explorado e invadido, o branco porque era obrigado a vir para cá", reflete o professor. Se as tentativas de fazer o Vovô Índio emplacar no imaginário nacional datam dos anos 1930, não se sabe exatamente a origem do mito. O que se sabe é que sua versão mais bem-acabada terminou divulgada por obra de simpatizantes do integralismo, movimento nacionalista que ficou conhecido como uma espécie de fascismo brasileiro. "Houve um grande esforço da intelectualidade nacionalista brasileira, principalmente uma intelectualidade de direita dos anos 1930, no sentido de criar essa fábula do Vovó Índio como contraponto ao Papai Noel", diz o historiador Leandro Pereira Gonçalves, professor na Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de, entre outros, O Fascismo em Camisas Verdes: do Integralismo ao Neointegralismo. Ele contextualiza, contudo, que se a simbologia nacional era muito importante ao movimento integralista, ele não foi criado pelos integralistas — foi, sim, utilizado por seus militantes. "O chamado camisa verde acabou se apropriando daquela imagem, daquela simbologia de aversão ao Papai Noel. E isso aparece em jornais e revistas integralistas do período", explica. Pesquisador vinculado à Universidade de Estrasburgo, na França, o historiador Philippe Arthur dos Reis lembra que o personagem já aparecia anteriormente no cenário musical e artístico brasileiro. "O JB de Carvalho, por exemplo, poeta de macumbas, já colocava em perspectiva a ideia do Vovô Índio como defensor da cultura. Ele fazia isso da perspectiva de um músico colocando em evidência a cultura negra e indígena", afirma. "Acho que isso vai estar em diálogo com o integralismo e, então, pode ter ocorrido, sim, um processo de apropriação de ideias." Autor do livro Fascismo à Brasileira, sobre o movimento integralista, o jornalista Pedro Doria acredita que o personagem seja resultado do caldo nacionalista que reverberava nas primeiras décadas do século 20. Isso tem a ver com o movimento modernista, cujos expoentes começaram os anos 1920 reafirmando que não havia necessidade de querer ser europeu. "E começa uma busca pelo que é ser brasileiro. Enquanto [os escritores] Mario [de Andrade] e Oswald [de Andrade] acabam tomando o caminho que ficaria mais famoso, há também o caminho do verde-amarelismo do Menotti [Del Picchia] e do Cassiano Ricardo, mais nacionalismo. É o caminho onde está Plínio Salgado [o fundador da Ação Integralista Brasileira, a AIB]", contextualiza Doria. Sociologicamente, o Brasil dos anos 1930 pensava então os conceitos de brasilidade. E aí estão nomes como Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e Gilberto Freyre (1900-1987). "Vem a ideia de que o barato do Brasil é que somos a mistura de três raças", pontua Doria. Na São Paulo prestes a comemorar seu quarto centenário de fundação, tomava forma o conceito do bandeirante como herói. "Mas esse mito é do bandeirante caboclo, filho do português homem com a mulher indígena, herói que fala tupi, era pobre mas bravo e desbravava o Brasil", descreve o jornalista. Plínio Salgado (1895-1975) ergueu as bases do integralismo misturando esse contexto a uma inspiração extremista: o fascismo italiano. "Mas seu fascismo brasileiro é modernista, coloca o caboclo como mito fundador, como homem brasileiro ideal, o cara que se mete no mato sem medo, que é a cara do Brasil", diz Doria. O Vovô Índio, assim, passou a ser valorizado dentro dessa narrativa. "Para os integralistas, o Papai Noel era uma influência ianque. O Vovô Índio representava o caboclo, o cara que estava no mato como o brasileiro, essencialmente brasileiro", comenta Doria. "É o resultado da busca que todo fascismo tem pela visão idealizada do que é o seu povo." "Ele, assim, se consolidou na AIB e foi adotado por Getúlio [Vargas] porque fazia sentido de acordo com essa visão", acrescenta. A fábula do Vovó Índio foi sacramentada pela lavra do jornalista Christovam de Camargo — que era amigo de Mário de Andrade e, ao que se sabe, não tinha nenhuma ligação com os integralistas. Ele publicou o conto em livro em 1932 e, depois, no jornal Correio da Manhã, no Natal de 1934. Na história de Camargo, Vovó Índio era um senhor amigo da natureza que trajava penas coloridas e saía distribuindo presentes para os brasileiros. Expulso de sua terra pelo homem branco, morreu — de "puro desgosto" — e foi parar lá nas portas de São Pedro. Não passou pelo crivo do paraíso, no entanto. Como não tinha sido batizado pela Igreja, o porteiro celestial precisou explica que ele não pode ingressar no céu. Então apareceu Jesus tentando resolver a situação. Afirmou que em seu aniversário ele próprio tinha o hábito de ir ao Brasil levar mimos para as crianças bem-comportadas e que, se Vovô Índio se convertesse, pronto, ele bem que podia se tornar o emissário dos presentes. E assim, pela narrativa de Camargo, Vovô Índio se tornou o "bom velhinho" brasileiro. Essa narrativa assumiu importância também pela mensagem religiosa. Gonçalves lembra que, afinal, "o movimento integralista é cristão, tem sob lema 'Deus, Pátria e Família'". "O debate da simbologia natalina realmente presente no integralismo brasileiro não é necessariamente o Vovó Índio, mas a valorização do nascimento de Jesus", argumenta o historiador. Ao mesmo tempo, os integralistas sempre ironizavam a figura do Papai Noel, considerando-a incompatível com o Natal de verão brasileiro. "Mas apesar de todas as tentativas, a imagem do Vovô Índio não deu certo, não foi enraizada. Naqueles anos 1930 o Papai Noel já estava com a imagem consolidada no imaginário ocidental", acredita Gonçalves. "O Vovó Índio ficou reservado ao aspecto de uma intelectualidade, da utopia do militante nacionalista em busca de uma alternativa ao capitalismo", comenta o historiador.
2021-12-23
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59754485
sociedade
É possível demitir alguém com gentileza?
Depois de dois anos recebendo avaliações positivas de seus gerentes em uma empresa financeira, André Santos se surpreendeu quando, um belo dia, recebeu um telefonema do escritório. A mensagem do representante de RH foi breve: a empresa estava em uma reestruturação e André fora demitido, com efeito imediato. "Eu entrei em pânico e perguntei: o que você quer dizer?" lembra André. Mas não houve nenhuma explicação adicional. Nem uma ligação de seu ex-chefe. Na época, André era casado e tinha um filho de 5 anos, e a esposa dele não trabalhava. O casal morava na cidade do Rio de Janeiro. Ele foi ao escritório para devolver o crachá, pegar seus pertences e sair do prédio chorando. "Fiquei abalado", disse ele à BBC. "Quando o telefone toca, você imagina que é tudo menos isso. Foi então que percebi que não existe aquela coisa de 'somos uma família'. É cada um por si." A sorte de André foi ter conseguido dar uma guinada radical. Ele se tornaria um influenciador em seu campo — mas, na época, o tom brutal da demissão o levou a um surto de depressão. É uma reação totalmente compreensível após uma demissão descuidada, dizem os especialistas. Mas não precisa ser assim. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Uma demissão pode ter implicações a longo prazo para um indivíduo e nunca podemos saber realmente o que isso significará para ele pessoalmente", diz Gemma Dale, professora da Faculdade de Negócios e Direito da Liverpool John Moores University, no Reino Unido. Os gestores "nunca devem esquecer que, ao anunciar o final de um processo, estão lidando com um ser humano que tem família, responsabilidades e sonhos", diz ela à BBC. Jodi Glickman, autora e fundadora da consultoria americana Great on the Job, concorda e acrescenta: "Demitir alguém deve ser feito com algum nível de humanidade". Demitir gentilmente Especialistas dizem que é possível demitir alguém de maneira gentil. Embora não existam regras simples e rápidas, isso geralmente combina pelo menos três fatores principais: transparência, empatia e apoio. Nunca pegar funcionários de surpresa certamente é o primeiro passo para os empregadores que estão tentando fazer a coisa certa, diz Glickman. "Como líder, você precisa definir expectativas e ser claro sobre como as pessoas podem alcançá-las e superá-las", disse ela à BBC. Se o motivo da demissão tem a ver com os resultados da empresa, os líderes devem ser transparentes sobre as dificuldades financeiras e informar aos funcionários que más notícias estão chegando, diz ela. Glickman diz que bons líderes também devem perceber que ser demitido é difícil, ao mesmo tempo que oferece aos funcionários "algum senso de transição". "Você precisa reconhecer que é realmente difícil ser dispensado e dizer às pessoas como você vai cuidar delas." Dale diz que ajudar os funcionários a melhorar seus currículos, além de fornecer referências e suporte individual, pode ajudar a mitigar muitos dos problemas. O assunto ganhou destaque no final deste ano, depois que o chefe do credor hipotecário americano Better.com, Vishal Garg, surpreendeu 900 colaboradores de sua equipe ao despedi-los em uma única ligação pela plataforma Zoom. "Se você está nesta chamada, você faz parte do grupo azarado que está sendo demitido", disse o CEO aos funcionários perplexos, que foram pegos completamente desprevenidos. O que piorou as coisas foi a aparente falta de empatia de Garg — ele foi descrito por críticos como "frio", "duro" e "horrível". Glickman diz que despedir alguém "nunca é uma conversa para se ter em público" e acha que Garg se comportou "como um idiota absoluto". "Quando você faz uma dispensa em massa de 900 pessoas via Zoom... parece totalmente indiferente e até cruel, dado o momento antes do feriado (de Natal). Você está deixando as pessoas com um gosto horrível na boca em relação ao empregador", diz ela. "E você nunca vai querer que seja assim, se precisar demitir pessoas". Depois de uma reação global, foi anunciado posteriormente que Garg estava tirando uma licença devido a vários erros de gestão. Ele se desculpou por não ter "mostrado a quantidade adequada de respeito e apreço pelos indivíduos que foram afetados e por suas contribuições para a Better" e acrescentou: "Eu possuo a decisão de fazer as dispensas, mas, ao comunicá-la, errei na execução." Mas Glickman não está convencida de que a medida signifique muito. Ela diz que demissões de empregos dizem muito sobre a cultura de trabalho de uma empresa que, no caso da Better.com, foi descrita como "tóxica". "Demitir 900 pessoas em massa pelo Zoom é um reflexo de uma cultura que não se preocupa com seus funcionários", diz ela. "Não acho que a cultura seja consertada apenas com a substituição do CEO. Porque o problema é o seguinte: quantas pessoas tiveram que aprovar essa decisão? E quantas pessoas concordaram que essa era uma boa maneira de se comunicar com os funcionários?" Dale diz que o episódio demonstra como lidar mal com as dispensas pode ter um impacto desastroso de relações públicas. Uma empresa com uma reputação manchada pode ser menos capaz de contratar talentos, diz ela. Demitir pessoas sem se importar também pode assustar seus próprios funcionários e definir como eles percebem seu valor na empresa. "A equipe pode ver como seus ex-colegas foram tratados, criando questões relacionadas ao engajamento, motivação ou lealdade dos funcionários — ou até mesmo encorajando-os a procurar outros empregos", diz Dale. Glickman concorda e diz que ex-funcionários são "embaixadores" em potencial de seus empregadores anteriores — mas quando as coisas dão errado, eles se tornam "oponentes" da empresa. "Eles (os empregados de uma empresa) são alunos das empresas, acabam muitas vezes terminando como novos clientes, ou mesmo novos parceiros de negócios." "Você quer ser conhecido como uma organização que acredita em seus funcionários, que investe em seus funcionários e faz o que é certo por eles." Certamente não foi assim que André se sentiu depois de ser despedido, embora diga que não sente nenhum ressentimento em relação ao seu antigo empregador. Mas ele diz que ficou totalmente confuso quando a empresa ligou algumas semanas depois e pediu-lhe que reassumisse seu antigo emprego. "Disseram que tinha havido um engano e pediram que eu voltasse. Eu obviamente disse não. Ainda estava fazendo entrevistas para outro emprego e não tinha recebido nenhuma oferta, mas preferi correr o risco", diz André. "Para ser franco, se não tivesse sido demitido, teria acabado saindo de lá mesmo assim, porque não era um ambiente agradável e motivador." Hoje, André Santos dá cursos de venda. Seus esforços de networking em anos anteriores — principalmente por meio do LinkedIn — valeram a pena depois que a pandemia o atingiu, pois ele conseguiu iniciar seu negócio online. Ele ganhou o status de Top Voice na plataforma, com mais de 30 mil conexões e mais de 300 mil seguidores. As publicações dele foram vistas mais de 100 milhões de vezes. André diz que se tornar uma marca lhe deu liberdade. "Quando estamos empregados, é como se valêssemos mais. As pessoas querem ser nossos amigos. Mas quando somos demitidos, alguns deles desaparecem. Essa oscilação não faz bem à saúde", afirma. "Percebi que precisava investir em minha rede e em minha marca pessoal para garantir que sempre valesse muito — independentemente de estar ou não empregado, desempregado, dentro ou fora do mercado."
2021-12-23
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59764109
sociedade
Vídeo, 'Por que congelei minha mãe morta aos 83 anos'Duration, 3,28
Kim Jung-kil (nome fictício) pagou para congelarem o corpo de sua mãe, que morreu de câncer aos 83 anos em 2020. Ele não está sozinho. Há cerca de 600 corpos humanos criogenicamente congelados ao redor do mundo. A mãe de Jung-kil está numa unidade de criopreservação em Moscou, por exemplo. Nos Estados Unidos, esse processo pode custar o equivalente a R$ 160 mil. Criopreservação é um processo de congelamento do corpo a temperaturas baixíssimas, na esperança de que a ciência no futuro seja capaz de trazer essas pessoas de volta à vida. O sangue da pessoa morta é drenado e substituído por conservantes e anticongelantes de uso médico, que evitam que cristais de gelo se formem no corpo e danifiquem as células e os tecidos. Se isso for feito imediatamente depois que o coração parar de bater e enquanto os tecidos ainda estiverem intactos, em tese médicos e cientistas do futuro terão maiores chances de sucesso. “Atualmente, não estou certo de que o descongelamento seja teoricamente possível, mas ele pode vir a ser”, afirma Kim C-Yoon, da Universidade Konkuk, na Coreia do Sul. Segundo o pesquisador, se houvesse investimento em estudos aprofundados, essa pergunta poderia ser respondida em até dez anos. Alguns especialistas que acreditam na viabilidade dessa técnica afirmam que a nanotecnologia (com robôs minúsculos) pode, por exemplo, tratar as células afetadas ao longo do tempo. Hoje não há técnicas viáveis para descongelar as partes interna e externa do corpo com a mesma temperatura. Atualmente, a criopreservação é utilizada em hospitais para conservar partes do corpo humano, como esperma, óvulos, células sanguíneas e embriões. Mas ainda há uma alta taxa de fracasso nesse processo, e no caso de um corpo humano inteiro (altamente complexo), o risco de isso não funcionar é muito maior. Para Clive Coen, professor de neurociência do King’s College London, a criopreservação de corpos humanos inteiros é mais baseada no pensamento mágico do que em evidências científicas. “Apesar de diversas declarações das empresas de criogênese, elas falharam em demonstrar que essa extraordinária massa de tecidos que constituem o corpo humano pode ser protegida pelo líquido anticongelamento que eles injetam no corpo após a morte”, disse à BBC. John Armitage, professor e diretor de banco de tecidos da Universidade de Bristol, acredita que “nunca se pode dizer 'nunca' em ciência”, mas há pouca chance de a criopreservação se mostrar viável tendo em vista o que se sabe hoje. Segundo ele, retirar tecidos de pessoas saudáveis para serem armazenados para uso futuro é uma coisa, mas pegar um corpo doente, congelá-lo com segurança (incluindo a estrutura complexa do cérebro) e reativá-lo é uma tarefa muito, muito mais difícil. "Quais são as chances de não haver algum dano? Ainda não estamos no estágio de criopreservação de órgãos, então fazer isso com o corpo inteiro seria um grande desafio", disse Armitage à BBC. Barry Fuller, professor de ciência cirúrgica e medicina de baixa temperatura na University College London (UCL), afirmou à BBC que o primeiro passo da pesquisa de criopreservação de corpos inteiros é demonstrar que os órgãos humanos podem ser criopreservados para transplante. No momento, contudo, não há equipamento para isso. "É por isso que temos que dizer que, no momento, não temos nenhuma evidência objetiva de que um corpo humano inteiro possa sobreviver à criopreservação com células que funcionarão após a reativação", disse ele. O Instituto de Criogênese, sediado nos EUA, contesta o argumento baseado no ônus da prova de que o processo é inviável porque até hoje ninguém foi revivido ainda. Além disso, afirma que nenhum cientista apresentou uma prova irrefutável de que a teoria do reavivamento pós-congelamento não funciona. “Nossa premissa não é que os reavivamentos da criopreservação bem-sucedidos sejam hoje um fato indiscutível, mas sim que as evidências e a tecnologia atuais sugerem fortemente que o reavivamento será possível no futuro.”
2021-12-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59735885
sociedade
A carta para Papai Noel encontrada em chaminé após 60 anos
Uma carta endereçada ao Papai Noel foi descoberta depois de ficar seis décadas presa em uma chaminé na Inglaterra. Chamuscada e cheia de fuligem, a carta - marcada como "urgente" -, foi encontrada alguns meses atrás por uma empresa de limpeza de chaminés na cidade de Worksop, no norte do país, a cerca de 240 km de Londres. Na mensagem, Robert Crampton pedia uma "roupa de cowboy e revólver e chapéu e tudo mais", acrescentando: "Isso seria o suficiente pra mim, Papai Noel". A empresa publicou o relato nas redes sociais e, pouco tempo depois, conseguiu localizar Crampton, hoje um policial aposentado. A carta havia sido escrita por seu pai, um sargento do Exército britânico, em seu nome. Ele contou que a mensagem fora redigida alguns dias antes do Natal de 1961, quando tinha 5 anos. Depois de saber que fora achada, Crampton teve certeza de que fora escrita pelo pai, que faleceu em 1996, quando viu a letra em tinta azul clara. Apesar dos problemas com a entrega do recado ao Papai Noel, ele conseguiu receber seus presentes seis décadas atrás. "Falei com minha mãe e ela me lembrou que, de fato, ganhei um revólver como os dos cowboys, uma cartucheira e um distintivo de xerife." Seu desejo de Natal também acabou se tornando realidade na sua vida profissional: ele prestou serviços à polícia de Surrey por 30 anos antes de se aposentar em 2013. "Sempre quis ser um xerife, e acho que o fui de certa forma." A administradora da empresa de limpeza de chaminés Sweeps Chimney Services, Cheryl Thorne, se disse emocionada com a história. "Sou uma pessoa sentimental, e quando montei o negócio disse a meu marido que sempre quis encontrar uma carta de Natal." "É um tesouro da chaminé. É precioso quando encontramos algo assim."
2021-12-17
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59701248
sociedade
A morte de jovem 'afeminado' que comove a China em meio a cruzada do país por homens 'mais viris'
A morte de um jovem chinês que disse ter sido vítima de bullying por ser "muito afeminado" gerou discussões no país sobre as normas de gênero. No entanto, especialistas temem que pouca coisa mude enquanto o Estado chinês continuar a promover críticas ao que chama de "homens afeminados". "Os meninos supostamente devem ser travessos, brigar e xingar. Meninos muito quietos e educados são afeminados e chamados de maricas." Isso é o que Zhou Peng, de 26 anos, escreveu em uma aparente nota de suicídio online, dias antes de ser encontrado morto no leste da província de Zhejiang. A nota também mencionava que ele era uma criança "deixada para trás" no campo por seus pais migrantes, que se mudaram para a cidade para trabalhar. Mas o que realmente ressoou nas pessoas na China foi sua descrição de como ele havia sofrido bullying. "Eu poderia apenas me parecer um pouco com uma garota quando era mais jovem, mas me vestia 'normalmente' e não tentava imitar as garotas", escreveu Zhou Peng, um fotógrafo, que também usava o pseudônimo de Ludaosen. "Ainda assim, fui intimidado na escola, abusado verbalmente, condenado ao ostracismo, ameaçado ... e alvo de todos os tipos de insultos." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A polícia não deu detalhes sobre sua morte, dizendo apenas que havia descartado homicídio. Mas para as centenas de milhares de usuários de rede social que compartilharam sua carta de 5 mil palavras no site de microblog Weibo, parecia ser um trágico caso de suicídio. Além de gerar discussões fervorosas sobre saúde mental e intimidação, a carta também levantou questões sobre como um chinês deveria se parecer ou como deveria se comportar. "Ele tem uma aparência delicada e uma personalidade aparentemente gentil. Todos esses são pontos positivos, mas ele foi intimidado apenas porque não estão de acordo com os ideais masculinos tradicionais", comentou um usuário do Weibo. "De quantos outros meninos riram por causa de sua aparência suave e voz suave? Quem somos nós para ditar o que é aceitável ou não - eles não fizeram nada de errado." Outro escreveu sobre como o caso trouxe de volta memórias "vergonhosas" de como ele e seus colegas de classe provocavam incessantemente um menino que consideravam "afeminado" durante seus anos de escola. "Lembrando daquilo, fico bem envergonhado. Estávamos apenas brincando, mas isso pode ter causado um trauma real", escreveu. Os dados sobre bullying na China são escassos, mas um artigo da Children's and Youth Services Review de 2019, que enviou questionários a mais de 3 mil jovens, apontou que mais de 35% dos entrevistados se identificaram como vítimas de bullying tradicional, enquanto mais de 31% disseram ter sido vítimas de cyberbullying. O jornal acrescentou que ser do sexo masculino, frequentar um internato, baixo desempenho acadêmico e um relacionamento ruim com os pais estão entre os principais fatores para sofrer bullying. A intolerância com homens supostamente "afeminados" não é exclusiva da cultura chinesa. Mas o governo chinês endossa abertamente a posição, até mesmo a promove ativamente. No início deste ano, o Ministério da Educação fez um apelo às escolas para que reformem a oferta de educação física, em edital com título que não deixou dúvidas sobre seu objetivo final: A Proposta para Prevenir a Feminização do Sexo Masculino. O texto aconselhava o recrutamento de atletas aposentados e do meio esportivo para auxiliar no desenvolvimento do esporte com vistas a "cultivar a masculinidade do aluno". Isso aconteceu meses depois que o consultor político Si Zefu expressou preocupação de que havia uma tendência entre os jovens chineses do sexo masculino em direção à "feminização", que "inevitavelmente colocaria em risco a sobrevivência e o desenvolvimento da nação chinesa", a menos que fosse "efetivamente administrada". Então, em setembro, o regulador de radiodifusão da China proibiu a exibição de homens "afeminados" em sites de transmissão de TV e vídeo - inclusive usando um termo depreciativo chinês no processo. As emissoras devem "pôr fim aos homens afeminados e outras estéticas anormais", disse em um comunicado, usando o termo niangpao, um insulto aos homens "afeminados". Wang Shuaishuai, especialista em cultura digital da Universidade de Amsterdã, disse à BBC que ficou "chocado" quando viu o termo escrito em uma comunicação oficial. "Agora, os jovens vão pensar que não há problema em usar essa calúnia de gênero para atacar os outros", disse ele. "Porque se o governo tolera esse tipo de linguagem, quem mais pode dizer que é errado usá-la na escola?" 'Guerreiros' Não é coincidência que o impulso da masculinidade na China esteja ocorrendo junto com a forma agressiva de diplomacia internacional do presidente Xi Jinping, disseram especialistas à BBC. "Quando você está criando um sentimento de 'nós contra o mundo', entrando em lutas com países ao redor do mundo, posicionando-se agressivamente e promovendo políticas de 'auto-suficiência', isso não combina com a metro-sexualidade suave", disse Jonathan Sullivan, diretor de programas para a China no Instituto de Pesquisa da Ásia da Universidade de Nottingham. Em uma mudança da estratégia do ex-líder Deng Xiaoping de se manter discreta, a China adotou nos últimos anos o que os observadores apelidaram de "diplomacia do lobo guerreiro''. O termo foi cunhado a partir de filmes de ação chineses no estilo de Rambo, nos quais as forças especiais chinesas de elite enfrentam mercenários liderados por americanos, a estratégia é caracterizada por diplomatas chineses usando retórica de confronto, às vezes até abusiva. Essa abordagem culminou em um discurso desafiador feito em julho, quando Xi advertiu que a China não seria "intimidada" ou "oprimida" por potências estrangeiras. Sullivan disse: "A demanda de Xi por uma postura nacional robusta e o destaque de uma expressão mais dura de masculinidade estão conectadas." Ao mesmo tempo, o alvo estatal de homens "afeminados" na TV ocorre em meio a uma repressão mais ampla às celebridades e às grandes tecnologias - ambos os quais têm uma influência incrível sobre os jovens da China. Mais uma vez, dizem os observadores, isso tem a ver com a agenda mais ampla de Xi de moldar sua versão da nova China - uma que seja "socialista com características chinesas", sem espaço para influências estrangeiras aparentemente desagradáveis. "Muitas das maiores estrelas masculinas jovens da China nos últimos anos desafiaram os ideais masculinos tradicionais, em grande parte graças à influência do pop coreano", disse Wang. "Eles podem usar brincos ou maquiagem, e os jovens fãs os adoram por isso. Mas a sociedade chinesa ainda é muito conservadora em geral, e o governo quer manter isso." Jovens celebridades masculinas como o grupo ídolo TFBoys e o cantor e ator Lu Han, celebrados por suas feições delicadas, têm milhões de fãs ávidos que vão a extremos para mostrar seu amor por eles. E como muitas dessas celebridades "afeminadas" populares aparecem em sites de streaming de vídeo de propriedade de grandes tecnologias - ao contrário da TV estatal - elas se tornam "alvos óbvios", acrescentou Wang. "O gênero, neste caso, também pode ser visto como outra parte da campanha em andamento da China contra as grandes tecnologias, que o governo vê como uma ameaça à sua capacidade de manter o controle sobre os cidadãos", disse ele. Mas enquanto celebridades podem ter que refazer sua imagem por enquanto, o maior medo de Wang é pela segurança do cidadão comum. "A violência baseada no gênero, o assédio e o bullying provavelmente aumentarão, porque o governo basicamente concordou com isso", disse ele. "É terrivelmente triste."
2021-12-16
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59681087
sociedade
Por que cada vez mais filhos cortam laços com pais por saúde mental
Uma conversa acalorada no Skype sobre relações inter-raciais levou Scott a eliminar todo o contato com seus pais em 2019. Ele conta que sua mãe estava furiosa porque ele apoiou um ativista dos direitos civis nas redes sociais. Ela fez "uma série de afirmações racistas horríveis", segundo ele, e seu filho de sete anos de idade estava ouvindo a conversa. "Tive um sentimento de pai muito forte, como 'você não pode dizer isso na frente das crianças, não é assim que vou criar meus filhos", explica Scott, que é pai de duas crianças e vive no norte da Europa. Ele afirma que a gota d'água veio quando seu pai tentou defender o ponto de vista da mãe por email, incluindo um link para um vídeo sobre supremacia branca. Scott ficou perplexo porque seus pais não conseguiam compreender a realidade das pessoas que são vitimadas pelas suas origens, especialmente considerando o seu próprio histórico familiar. "Eu disse para eles: 'Isso é loucura, vocês são judeus. Muitas pessoas da nossa família morreram em Auschwitz.'" Esta não havia sido a primeira vez que Scott enfrentava um conflito de valores com seus pais. Mas foi a última vez que ele viu ou falou com eles. Não existem dados concretos, mas há uma percepção crescente entre terapeutas, psicólogos e sociólogos de que esse tipo de rompimento intencional entre pais e filhos vem crescendo nos países ocidentais. Chamado formalmente de estrangement, expressão inglesa para uma situação na qual alguém se separa ou deixa de estar em bons termos com um grupo social, que poderia ser traduzida como "distanciamento", o conceito é definido com leves variações pelos especialistas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É amplamente utilizado para situações nas quais alguém corta todas as comunicações com um ou mais parentes, em uma situação que perdura a longo prazo, mesmo quando membros do grupo do qual a pessoa se afastou tentam restabelecer o contato. "A decisão de se distanciar definitivamente de um membro da família é um fenômeno único e poderoso", explica Karl Andrew Pillemer, professor de desenvolvimento humano da Universidade Cornell, nos Estados Unidos. "É diferente de disputas familiares, de situações de alto conflito e de relações emocionalmente distantes, mas que ainda incluem contato." Ao perceber que existem poucos estudos importantes sobre o distanciamento familiar, Pillemer realizou uma pesquisa nacional para o seu livro Fault Lines: Fractured Families and How to Mend Them ("Falhas tectônicas: famílias fragmentadas e como reuni-las", em tradução livre), publicado em 2020. A pesquisa demonstrou que mais de um a cada quatro norte-americanos relata ter se distanciado de algum parente. Uma pesquisa similar da organização britânica dedicada a distanciamento familiar Stand Alone sugere que o fenômeno atinge uma a cada cinco famílias no Reino Unido, enquanto pesquisadores acadêmicos e terapeutas na Austrália e no Canadá também afirmam que vêm observando uma "epidemia silenciosa" de rompimentos familiares. Nas redes sociais, existe um enorme crescimento de grupos de apoio online para filhos adultos que decidiram se distanciar dos pais. Scott participa de um desses grupos, que congrega milhares de membros. "Os números do nosso grupo vêm crescendo continuamente", afirma ele. "Acho que isso está se tornando cada vez mais comum." O fato de que o distanciamento entre os pais e seus filhos adultos parece estar aumentando — ou pelo menos está sendo cada vez mais discutido — aparentemente se deve a um complexo conjunto de fatores culturais e psicológicos. Essa tendência levanta uma série de questões sobre os seus impactos em indivíduos e na sociedade. Embora as pesquisas sejam limitadas, a maioria dos rompimentos entre pais e filhos crescidos tende a ser iniciativa dos filhos, segundo Joshua Coleman, psicólogo e autor do livro The Rules of Estrangement: Why Adult Children Cut Ties and How to Heal the Conflict ("As regras do distanciamento: por que os filhos adultos cortam os laços e como solucionar o conflito", em tradução livre). Uma das razões mais comuns é o abuso do pai ou da mãe, no passado ou no presente, seja ele emocional, verbal, físico ou sexual. O divórcio é outro fator de influência frequente que traz consequências que variam desde o filho adulto "tomar um lado" até a chegada de novas pessoas à família, como padrastos, madrastas e meio-irmãos, que podem alimentar divisões sobre "recursos financeiros e emocionais". Também se acredita que disputas de valores — como foi o caso entre Scott e seus pais — estejam cada vez mais presentes. Um estudo publicado em outubro por Coleman e pela Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, demonstrou que desavenças baseadas em valores foram mencionadas por mais de uma a cada três mães de filhos que se distanciaram. As recentes conclusões de Karl Pillemer, da Universidade Cornell, também demonstraram que diferenças de valores são um "fator importante" nos distanciamentos, devido a conflitos resultantes de "questões como preferência pelo mesmo sexo, diferenças religiosas e adoção de estilos de vida diferentes". Os dois especialistas acreditam que pelo menos parte desse contexto vem do aumento da polarização política e cultural ocorrida nos últimos anos. Nos Estados Unidos, uma pesquisa do instituto Ipsos relatou aumento das divergências familiares após a eleição presidencial de 2016 naquele país. Pesquisas da Universidade Stanford em 2012 sugeriram que uma proporção bem maior de pais se mostrou descontente com a ideia de seus filhos se casarem com alguém que apoia um partido político oposto na comparação com uma pesquisa realizada uma década antes. Um estudo recente no Reino Unido concluiu que uma a cada dez pessoas havia se distanciado de algum parente por questões relacionadas ao Brexit ( a saída do Reino Unido da União Europeia). "Esses estudos demonstram a forma como a identidade se tornou um fator mais importante para determinar quem decidimos manter por perto ou de quem nos afastamos", afirma Coleman. Scott afirma que nunca discutiu suas preferências eleitorais com seus pais. Mas sua decisão de se distanciar deles foi influenciada, em parte, por uma maior conscientização — dele e de sua esposa — sobre questões sociais, incluindo os movimentos Black Lives Matter e MeToo. Ele afirma que outros filhos adultos do seu grupo de apoio online se distanciaram dos pais devido a discordâncias sobre valores relacionados à pandemia, que vão desde pais mais idosos que se recusam a ser vacinados até divergências relacionadas a teorias da conspiração sobre a origem do vírus. Os especialistas acreditam que nossa crescente conscientização sobre saúde mental e sobre como relacionamentos familiares tóxicos ou abusivos podem afetar o nosso bem-estar também tem impactos sobre o distanciamento. "Embora não haja nada de novo em conflitos familiares ou no desejo de se distanciar disso, ver o distanciamento de uma pessoa de sua família como uma expressão de crescimento pessoal, como se faz normalmente hoje em dia, é com certeza algo novo", afirma Coleman. "Decidir quais pessoas manter dentro ou fora da nossa vida tornou-se uma estratégia importante." Sam, que tem pouco mais de 20 anos de idade e vive no Reino Unido, afirma que cresceu em um lar instável e que seus pais eram alcoólatras. Ela praticamente parou de falar com seus pais logo depois de sair de casa para a universidade e conta que cortou os laços para sempre depois de ver seu pai abusar verbalmente de sua prima de seis anos de idade em um funeral. A terapia ajudou Sam a reconhecer sua experiência como "mais do que apenas falhas na criação dos filhos" e processar seu impacto psicológico. "Acabei entendendo que 'abuso' e 'negligência' eram palavras que descreviam a minha infância. O fato de não ter apanhado não significa que não fui afetada de forma prejudicial." Ela concorda com Coleman que "está se tornando mais aceitável socialmente" cortar laços com membros da família. "Agora se fala mais sobre a saúde mental e é mais fácil dizer: 'essas pessoas fazem mal para minha saúde mental'. Também acho que as pessoas estão ficando mais confiantes para traçar seus próprios limites e dizer 'não' para as pessoas." Coleman argumenta que o aumento do nosso foco sobre o bem-estar social vem sendo acompanhado de outras tendências mais amplas, como a mudança para uma "cultura mais individualista". Muitos de nós confiam muito menos nos parentes que as gerações anteriores. "Não precisar de um membro da família para ter apoio ou porque você planeja herdar a fazenda da família significa que a escolha das pessoas com quem queremos passar o tempo é mais baseada nas nossas identidades e aspirações de crescimento do que na sobrevivência ou necessidade", explica ele. "Atualmente, nada une um filho adulto a um pai ou mãe além do anseio daquele filho adulto por ter esse relacionamento." O aumento das oportunidades de viver e trabalhar em cidades ou até países diferentes das nossas famílias quando adultos pode também ajudar a facilitar o rompimento com os pais, simplesmente devido à distância física. "Mudar de cidade agora é muito mais fácil para mim do que provavelmente teria sido 20 anos atrás", concorda Faizah, que é cidadã britânica de ascendência asiática e vem evitando viver na mesma região da sua família desde 2014. Ela afirma que rompeu os laços com seus pais devido a comportamentos "controladores", como evitar que ela comparecesse a entrevistas de emprego, desejar ter influência sobre suas amizades e pressionar para que ela se casasse logo depois de terminar seus estudos. "Eles não respeitavam meus limites", afirma ela. "Eu quero apenas ser dona da minha vida e fazer minhas próprias escolhas." Existem fortes pontos positivos para muitos filhos adultos que se distanciaram do que acreditavam ser relacionamentos prejudiciais com seus pais. "As pesquisas demonstram que a maioria dos filhos adultos acredita que foi melhor assim", segundo Coleman. Mas, embora uma melhor saúde mental e a sensação de mais liberdade sejam resultados comuns do distanciamento, Pillemer argumenta que a decisão pode também criar sentimentos de instabilidade, humilhação e estresse. "O rompimento ativo e intencional de laços pessoais é diferente de outros tipos de perda", explica ele. "Além disso, as pessoas perdem os benefícios práticos de ser parte de uma família: apoio material, por exemplo, e a sensação de pertencerem a um grupo estável de pessoas que se conhecem bem." Sentimentos de solidão e vergonha parecem ter se exacerbado durante a pandemia para muitas pessoas que se distanciaram da família. O "boom do Zoom" permitiu que algumas famílias se sentissem mais próximas e mantivessem contato com mais regularidade, mas pesquisas recentes no Reino Unido sugerem que os adultos com laços cortados sentiram ainda mais falta da vida em família durante o lockdown. Outros estudos indicam que o Natal e outras festas religiosas são períodos muito difíceis para membros que se afastaram da família. "Tenho minha própria família, meu companheiro e meus amigos próximos, mas nada substitui as tradições que você construiu com seus pais", concorda Faizah. Agora na casa dos 30 anos de idade, ela ainda acha o feriado muçulmano Eid al-Fitr (que marca o fim do jejum do Ramadã, o mês sagrado dos muçulmanos) particularmente difícil, apesar de ter se afastado da religião dos seus pais. "É muito delicado. A solidão é grande... e sinto muita falta da comida da minha mãe." Decidir não manter contato com os pais pode também ter efeitos muito fortes sobre as ligações e tradições familiares futuras. "Para mim, o que mais lamento é ver meus filhos crescendo sem os avós", afirma Scott. "Isso é preferível que ver [meus pais] dizendo — sabe-se lá o quê — para eles, [mas] acho que meus filhos sentem a falta deles." É claro que tudo isso tem impacto sobre os pais que foram excluídos das vidas dos seus filhos — e talvez dos seus netos — muitas vezes contra a vontade deles. "A maioria dos pais fica muito infeliz com isso", segundo Coleman. Além de perderem a referência da unidade familiar tradicional, eles tipicamente "descrevem profundos sentimentos de perda, vergonha e arrependimento". Scott afirma que a sua mãe recentemente tentou telefonar para ele. Mas ele respondeu com uma mensagem de texto dizendo que somente consideraria restabelecer contato se ela reconhecesse que os seus comentários haviam sido "terrivelmente racistas" e pedisse desculpas. Ele conta que, até agora, ela não o fez. "Mesmo se isso acontecesse, eu sempre limitaria o que dizer a eles sobre a minha vida e certamente supervisionaria todas as visitas com as crianças. Mas infelizmente, não vejo isso acontecendo", afirma Scott. Com as divisões políticas no centro das atenções em muitos países e o aumento do individualismo nas culturas de todo o mundo, muitos especialistas acreditam que rompimentos entre pais e filhos seguirão acontecendo. "Prevejo que ficará igual ou pior", afirma Coleman. "Os relacionamentos familiares serão baseados muito mais em buscar felicidade e crescimento pessoal e menos na ênfase às tarefas, obrigações ou responsabilidades." Já Pillemer argumenta que não deveríamos desistir de tentar superar conflitos, especialmente os ligados a diferenças políticas ou de valores (em oposição aos ligados a comportamentos abusivos ou prejudiciais). "Se o relacionamento anterior tiver sido relativamente próximo (ou pelo menos não conflituoso), acho que há evidências de que muitos membros da família podem restaurar esse relacionamento. E isso inclui, entretanto, definir uma 'zona desmilitarizada' na qual não se pode discutir sobre política", afirma ele. Para seu livro, Pillemer entrevistou mais de 100 pessoas que se distanciaram de seus familiares e conseguiram se reconciliar. Ele concluiu que o processo realmente era definido por muitos como "motor para crescimento pessoal". "É claro que isso não é para todos, mas, para algumas pessoas, superar os conflitos, mesmo se o relacionamento resultante fosse imperfeito, era fonte de autoestima e orgulho pessoal." Pillemer argumenta que são necessários estudos mais detalhados e atenção clínica para retirar o tema do distanciamento familiar "das sombras e levá-lo para a luz da discussão aberta". "Precisamos de pesquisadores para encontrar soluções melhores — tanto para as pessoas que querem se reconciliar, quanto para ajudar pessoas em distanciamento permanente." Scott vê com bons olhos o crescente interesse no assunto. "Acho que ajudará muitas pessoas", comenta ele. "Existe ainda um grande estigma sobre o distanciamento familiar. Analisamos muito essas questões no grupo: 'O que você diz para as pessoas?', 'como você trata do assunto durante um encontro?'" Ele reitera não estar disposto a se reconciliar com seus pais, a menos que eles reconheçam que foram racistas. "Isso da importância dos laços familiares é muito bom se você tem uma família agradável, mas, se você estiver rodeado de pessoas tóxicas, não funciona", conclui Scott. Scott, Sam e Faizah omitiram seus sobrenomes para proteger sua privacidade e a de suas famílias.
2021-12-15
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-59656561
sociedade
Engenheiros espaciais e neurocirurgiões não são mais inteligentes que a média, mostra estudo
Um estudo conduzido no Reino Unido chegou à conclusão de que engenheiros espaciais e neurocirurgiões não são necessariamente mais inteligentes do que a população em geral. Existe uma espécie de mística entre os falantes da língua inglesa em torno dessas duas profissões, frequentemente inseridas em expressões do dia a dia como sinônimo de coisas difíceis e complicadas. Os cientistas expõem que a motivação inicial do trabalho era justamente entender se a percepção popular estava fundamentada na realidade e verificar se essas duas atividades tinham alguma superioridade intelectual sobre as outras. Questionar os estereótipos, na visão dos pesquisadores, também poderia trazer benefícios no recrutamento de novos talentos para essas duas áreas, que devem enfrentar falta de mão de obra nas próximas décadas. O experimento contou com a participação de 329 engenheiros aeroespaciais e 72 neurocirurgiões, que foram submetidos a uma série de tarefas para testar suas habilidades cognitivas em seis esferas diferentes. Os testes tiveram como parâmetro o Great British Intelligence Test, originalmente desenvolvido no Imperial College, em Londres. Foram analisados componentes como memória de trabalho e o processamento da atenção e das emoções e considerados fatores como idade, sexo e experiência no setor. Os resultados foram comparados entre os dois grupos e com um banco de dados previamente coletados com informações de 18 mil britânicos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os achados mostraram, por exemplo, que os neurocirurgiões pontuaram significativamente mais do que os engenheiros espaciais na resolução de problemas semânticos, como a definição de palavras raras. Os engenheiros aeroespaciais, por sua vez, tiveram um desempenho melhor do que os "rivais" nos testes de atenção e em tarefas de manipulação mental, como a rotação de imagens mentais de objetos. Quando comparados com o banco de dados da população em geral, no entanto, os cientistas espaciais não apresentaram diferenças significativas em nenhum domínio específico. Os neurocientistas, por outro lado, pontuaram de forma diferente em duas áreas: a velocidade de resolução de problemas foi mais rápida, mas a recuperação de lembranças na memória foi mais lenta. O ritmo mais rápido para a resolução de problemas, entre as hipóteses levantadas pelos pesquisadores, poderia se dever à "natureza acelerada da neurocirurgia" ou ser "um produto do treinamento para tomada de decisão rápida em situações em que o tempo é crítico, embora menos provável". "É possível que neurocirurgiões e engenheiros aeroespaciais sejam desnecessariamente colocados em um pedestal", conclui o estudo. "Outras especialidades podem merecer estar nesse pedestal, e os trabalhos futuros devem ter como objetivo determinar a profissão mais merecedora."
2021-12-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59653748
sociedade
90% dos brasileiros ganham menos de R$ 3,5 mil; confira sua posição na lista
Por favor, atualize seu navegador para visualizar este interativo Informe se você recebe 13° salário e férias e inclua sua renda mensal bruta, ou seja, antes do desconto de impostos, no campo de pesquisa. A calculadora determinará sua renda anual e onde ela se encaixa na distribuição de renda da população brasileira. Os dados informados não precisam ser exatos e não serão guardados, reproduzidos ou compartilhados pela BBC News Brasil. Renda maior A base de dados utiliza renda anual. A calculadora multiplica a renda mensal informada por 12 ou por 13,3, caso o usuário informe que recebe 13º salário e férias, e a localiza dentro da distribuição de renda aproximada da população brasileira. A calculadora foi elaborada com base nos dados estimados pelo economista Marcelo Medeiros, utilizando os dados da distribuição de renda de 2012 atualizados com a inflação acumulada até maio de 2021. Os primeiros 90% (ou seja, o patamar que vai da base até os 10% mais ricos) da distribuição de renda correspondem aos dados da Pnad do IBGE; os últimos 10% da distribuição (especificamente os 10% mais ricos) são dados do Imposto de Renda. Foi utilizado o ano de 2012 porque ele precede a recessão de 2014-2016, que alterou a distribuição de renda e cujos efeitos ainda não estão totalmente dissipados. Design: Cecilia TombesiProgramação: Marcos Gurgel, Zoë Thomas, Shilpa Saraf, Adam Allen, Laura McGowan e Kieran CrowleyReportagem e texto: Camilla Veras MotaAgradecimentos: Camilla Costa e Sally Morales Um ano atrás, o ator Bruno Gagliasso escreveu em suas redes sociais que precisava "bater um papo com você, meu irmão branco. Um papo reto aqui entre nós que não somos o topo da pirâmide, mas estamos bem distantes da base". Nos comentários, os internautas questionaram o topo da pirâmide ao qual o artista se referia. Se ele, dono de uma pousada na ilha de Fernando de Noronha, de restaurantes e de uma marca própria de roupas não estava no topo, quem está? A base da pirâmide é relativamente homogênea — 90% dos brasileiros têm renda inferior a R$ 3,5 mil por mês (R$ 3.422,00) e 70% ganham até dois salários mínimos (R$ 1.871,00, para um salário mínimo de R$ 998,00 em 2019), ainda segundo o levantamento. Dentro do grupo dos mais ricos, contudo, o espectro é bem diversificado. Tomando a faixa da pesquisa do IBGE, de R$ 28 mil, o grupo dos 1% mais ricos inclui desde alguns profissionais liberais como advogados e engenheiros e a elite do funcionalismo público — promotores, procuradores, auditores da Receita —, a empresários, artistas e, finalmente, os milionários e bilionários que aparecem nas listas dos mais ricos do país. Talvez por isso, muitos não se enxerguem como parte do topo da pirâmide. A pesquisa Nós e As Desigualdades, realizada pela Oxfam em parceria com o Instituto Datafolha, pergunta desde 2017 aos brasileiros, em uma escala de 0 a 100, se eles se acham "muito pobres ou muito ricos". As três edições do levantamento realizadas até agora apontam na mesma direção: quem está no topo pode ter uma visão bastante distorcida da realidade. A pesquisa de dezembro de 2020 apontou que, entre aqueles com renda superior a 5 salários mínimos, 75% disseram achar fazer parte da metade mais pobre do país. Para se estar entre os 10% mais ricos do país, contudo, a renda média parte de três salários mínimos, de acordo com os parâmetros da pesquisa. Isso porque o Brasil é um país em que muita gente vive com muito pouco. Para se estar entre os "mais ricos", do ponto de vista da distribuição de renda, não é preciso tanto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esse descolamento entre percepção e realidade, entretanto, não é exclusividade do Brasil. "Os estudos sobre percepção mostram que as pessoas tendem a se classificar no meio, como classe média. Pouca gente se classifica como pobre ou como rica", diz o professor visitante na Universidade Columbia, nos EUA, e pesquisador da desigualdade Marcelo Medeiros. Mas por quê? Estudiosa do tema, Asli Cansunar, professora do departamento de Ciência Política na Universidade de Washington, nos EUA, ressalta que esses resultados são observados pelo menos desde os anos 1970. A explicação é relativamente simples. A grande maioria das pessoas não consome informações sobre estatísticas econômicas no dia a dia. Na falta de dados técnicos, a maneira de colocar sentido no mundo é por meio de comparações — é olhar em volta e se comparar aos amigos, familiares, às celebridades na TV ou, mais recentemente, aos influencers do Instagram. O problema, nesse caso, é que a amostra é enviesada, já que o cotidiano está, de maneira geral, dominado por imagens que nos levam a associar o topo da pirâmide à ostentação: alguém que dirige um carro importado, que faz viagens internacionais, que consome produtos de luxo. "E quando você se compara a essas pessoas, claro, vai dizer: 'Imagina, eu não sou rico, sou classe média! Sou apenas alguém que está se esforçando para comprar um carro novo e conseguir viajar nas férias'. Na vida real, entretanto, se você olhar as estatísticas, vai ver que está ganhando muito mais do que muita gente no seu entorno", destaca a pesquisadora. Para além das percepções individuais, a própria noção de riqueza é subjetiva. Não há um consenso acadêmico sobre o que seria uma "linha de riqueza", por exemplo. Ser rico é ter dinheiro suficiente para poder parar de trabalhar? É morar em um determinado bairro da cidade? É ter um carro importado? "A definição do que é ser rico é uma ferramenta, depende do que se quer fazer com ela", pontua Medeiros. Cansunar também ressalta que a noção de riqueza é relativa - e pode variar inclusive dentro de um mesmo país. No Reino Unido, ela exemplifica, ganhar mais do que as 80 mil libras por ano (R$ 590 mil) que colocam alguém entre o 1% no topo da pirâmide não necessariamente significa uma vida confortável em Londres para quem tem de pagar aluguel. A própria pirâmide de rendimentos — que, aliás, não contabiliza a riqueza estocada em patrimônio, a recebida em herança — pode variar, a depender da metodologia. O IBGE usa suas pesquisas domiciliares, que, tradicionalmente, acabam subestimando a renda de quem está no topo. Seja por uma questão ligada à segurança, por constrangimento ou porque realmente não sabem quanto ganham na ponta do lápis, os mais ricos acabam informando valores menores aos recenseadores do instituto. "O IBGE faz um trabalho fantástico, mas esse é um fenômeno que acontece no mundo inteiro. Então as pesquisas do IBGE captam muito bem, vamos dizer, os 90% mais pobres da população", pontua o sociólogo e pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) Pedro Ferreira de Souza. "Nos 10% mais ricos, quanto mais para cima, maior a subestimação", afirma o especialista, que é autor do livro Uma História da Desigualdade, vencedor do prêmio Jabuti em 2019. Por isso, pesquisadores como Souza utilizam também os dados da Receita Federal do Imposto de Renda, que captam melhor a renda que vem de investimento e aplicações financeiras, por exemplo. Entre os 5% mais ricos, conforme os cálculos que ele fez com dados de 2015, a renda média apontada pelo levantamento do IBGE era 25% menor do que usando o IRPF. Para o 1% mais rico, a linha de corte nos dados do IBGE era 45% menor do que no IRPF — pouco menos da metade. Ainda que a linha de corte, na prática, seja provavelmente superior aos R$ 28 mil apontados pela Pnad Contínua, o topo da pirâmide ainda é formado pelo grupo heterogêneo que inclui dos "super ricos" a profissionais liberais e parte do funcionalismo público. O teto para o salário dos servidores federais é hoje de R$ 39 mil. Muitos, contudo, recebem valores superiores com a inclusão de benefícios como auxílio alimentação e moradia. "Se você ganha um salário muito alto, e em alguns casos muito acima do teto — principalmente no poder judiciário, a gente vê que é comum — com o tempo vai acumular renda e isso vai virar rendimento de capital", acrescenta o sociólogo. "O público leigo às vezes acha que todo funcionário público, ou pelo menos todo funcionário público federal, está no 1%. Tem um exagero grande aí, mas também não é de todo falso, certamente tem muita gente da elite do funcionalismo e, vamos ser sinceros, da elite política [no 1%]." Como estudioso da desigualdade, encontrada no Brasil em nível "extremo", o pesquisador acredita que esse possa ser um bom parâmetro para se definir riqueza no Brasil. "Onde está a concentração de renda que torna o Brasil muito diferente da Europa? Bom, está no topo. É ali o 1%, os 5% mais ricos, talvez em algum grau você possa falar que são os 10% mais ricos, alguma coisa assim. Mas a concentração grande mesmo é bem no topo, então fazer esse recorte — falar em 1% da população, 5% da população, acho que não tem como dizer que não é rico, né? Isso exigiria umas cambalhotas retóricas que não são muito fáceis", avalia Souza. Chamar atenção para o topo, na avaliação do sociólogo, é importante especialmente por dois motivos. Primeiro, por uma questão política. Quando uma fração pequena da população concentra um percentual grande dos recursos, ela tende a "usar todos os meios possíveis para converter o poder econômico em influência política e, assim, conseguir enriquecer ainda mais". "Isso não é uma questão necessariamente de caráter individual, mas uma dinâmica social que a gente vê em diversos países — e atrapalha o funcionamento da democracia." Segundo, ele acrescenta, porque entender quem tem mais abre caminho para o desenvolvimento de políticas voltadas para melhorar o bem-estar dos mais pobres, como o financiamento de serviços públicos de transporte e saúde para atender essa população. "O jeito mais eficiente de fazer isso é pegar de quem tem mais, de onde o dinheiro tá em tese sobrando — pelo menos em algum grau, ninguém está falando em confisco, mas do padrão de Estados Unidos e Europa —, tributar onde tem mais dinheiro concentrado e gastar onde tem mais necessidades", avalia. "E para isso a gente precisa conhecer os mais ricos — e aí não adianta você também ter uma definição de riqueza que seja só o Neymar, né?"
2021-12-13
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57909632
sociedade
Por que carne enlatada que originou o termo 'spam' tem batido recordes de vendas
Há mais de 80 anos no mercado, o Spam - um enlatado que mistura presunto e carne de porco - registrou em 2021 recorde de vendas pelo sétimo ano consecutivo. O desempenho foi anunciado em dezembro de 2021 por Jim Snee, presidente da Hormel Foods, empresa americana dona da marca, em uma conferência para investidores durante a divulgação do resultado do grupo no timestre encerrado em outubro. Lançado em 1937, o enlatado é um clássico. Por ser barato e ter um prazo de validade bastante elástico, foi distribuído às toneladas durante a Segunda Guerra Mundial, usado para alimentar tanto as tropas americanas quanto civis europeus das nações aliadas aos EUA. E continuou sendo amplamente consumido nos anos difíceis que se seguiram ao conflito, quando muitos países tentavam se reconstruir e não havia grande disponibilidade de alimentos. Com o passar do tempo, o "apresuntado" virou sinônimo de ingrediente barato no ocidente - mas acabou se tornando uma iguaria na região da Ásia-Pacífico, o que explica em parte o sucesso da marca nos últimos anos. O Spam foi levado à Coreia do Sul pelo exército americano durante a Guerra da Coreia, nos anos 1950, como uma tentativa de fazer frente à escassez de alimentos durante o conflito. O enlatado foi de tal forma absorvido pela cultura sul-coreana, contudo, que virou ingrediente de um dos pratos favoritos do país: o "budae jjigae", ou "ensopado militar". No Ano Novo Lunar, ele é vendido nos empórios e supermercados como artigo de luxo, em embalagens especiais, usado pelos coreanos para presentear. O enlatado também tem um mercado grande no Estado americano do Havaí, onde é encontrado no cardápio de diversos restaurantes do arquipélago. É consumido no café da manhã com ovos e arroz, por exemplo, e em outras refeições misturado a arroz frito ou como uma espécie de sushi, o "Spam musubi". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A popularidade ganhada pela marca depois da Segunda Guerra acabaria, anos mais tarde, transformado seu nome em sinônimo de mensagens indesejadas, de lixo eletrônico. O uso da palavra como sinônimo de mensagem irritante e indesejada começou como uma piada entre os usuários da internet nos seus primórdios, mas rapidamente se tornou universal, como relatou à emissora de rádio americana NPR Finn Brunton, autor de Spam: A Shadow History of the Internet ("Spam: Uma História Secreta da Internet", em tradução livre). O sucesso recente da marca, hoje presente em mais de 80 países, motivou a Hormel Foods a estudar uma expansão do catálogo de produtos da família Spam, que deve chegar às prateleiras em 2023, disse Snee na conferência com investidores.
2021-12-11
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59625185