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sociedade
A morte é mesmo inevitável?
Com tantos organismos aquáticos estranhos e maravilhosos movimentando os rios e oceanos, é muito fácil nos esquecermos de um animal muito discreto: a hidra. A hidra é um parente da água-viva, dos corais e das anêmonas, que vive na água doce. Seu nome vem da serpente da mitologia grega que podia fazer renascer suas cabeças. Na verdade, não há muito para se ver nela. Ela parece uma semente de dente-de-leão, com um corpo longo e um tufo de tentáculos em uma das extremidades. Mas a hidra tem uma propriedade marcante que a torna uma curiosidade da biologia: ela pode se regenerar. Se você cortar uma hidra em vários pedaços, cada um deles irá formar um novo indivíduo completo. Suas propriedades de regeneração atraíram o interesse dos biólogos que buscavam evidências da imortalidade na natureza. Por que essa espécie parece não morrer de causas naturais? Seria a morte mesmo inevitável? Fim do Matérias recomendadas O envelhecimento foi descrito em meados do século 20 como uma compensação entre a reprodução e a manutenção celular. Inicialmente, os corpos dos organismos usam seus recursos para crescer e permanecer saudáveis — para a manutenção das suas células. Na infância e na adolescência, a ênfase é fazer o organismo sobreviver e ficar o mais forte e saudável possível. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Depois da maturidade sexual, a prioridade passa a ser a reprodução. Isso porque a maioria dos organismos têm recursos limitados, de forma que priorizar a geração de filhotes pode ter, como consequência, a queda das condições de saúde. O salmão, por exemplo, nada contra a corrente dos rios para a desova e morre logo em seguida. Todos os recursos são gastos para dar ao salmão a melhor chance de chegar ao campo de desova. E, assim que chega, ele aproveita a oportunidade da melhor forma possível. A possibilidade de o salmão nadar de volta para o mar e sobreviver por mais um ano, fazendo a mesma viagem para desovar de novo, é tão remota que a seleção natural nunca favoreceria esses indivíduos. E, de qualquer forma, eles já transmitiram seus genes uma vez, com sucesso. Mas a compreensão atual de por que os seres vivos morrem é um pouco mais específica. Quando os organismos atingem a maturidade sexual, a força da seleção natural enfraquece e começa o processo de envelhecimento, que leva, por fim, à morte. O objetivo desse processo não é abrir caminho para a geração seguinte, o que poderia ser "cativante, do ponto de vista do altruísmo", segundo Alexei Maklakov, professor de Biologia Evolutiva e Biogerontologia da Universidade de East Anglia, no Reino Unido. Ao longo da vida, nossos genes colecionam mutações. Algumas são completamente aleatórias, enquanto outras são o resultado da nossa alimentação ou de fatores externos, como a luz ultravioleta. A maioria dessas mutações é inofensiva e muito poucas serão úteis. Antes da maturidade sexual, "qualquer mutação genética que reduza a probabilidade de um organismo se reproduzir ou que chegue a matar o organismo antes da reprodução, será vigorosamente rejeitada pela seleção natural", afirma Gabriella Kountourides, bióloga evolutiva do Departamento de Antropologia da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Mas, depois que o organismo atinge a maturidade sexual, ele é capaz de transmitir seus genes para a geração seguinte. Nesse momento, a força da seleção natural é enfraquecida. Voltando ao exemplo do salmão, ele faz um trabalho muito bom para chegar à idade adulta e reproduzir-se. Seus filhotes provavelmente também terão a chance de lutar pela desova. Se ocorresse uma mutação genética no salmão depois da desova que aumentasse aleatoriamente seu período de vida, significando que ele sobreviveria por mais um ano (mesmo que isso fosse extremamente improvável), esses filhotes não teriam nenhuma vantagem particularmente significativa sobre seus irmãos. O salmão já tem uma geração (sem a mutação) espalhada por aí. Do ponto de vista da seleção natural, o benefício de continuar os esforços necessários para permanecer saudável depois da reprodução é pequeno. Por isso, os genes que oferecem essa possibilidade não estão sujeitos às pressões da seleção para que se tornassem mais comuns. "O indivíduo gostaria de ficar vivo. Mas, neste ponto, a seleção natural não se dedica tanto, já que não há nada mais para oferecer à geração seguinte", explica Kountourides. É claro que nem todos os organismos são tão radicais quanto o salmão, que desova uma vez na vida. Alguns sobrevivem um pouco mais, para ter mais filhotes. A maioria das mutações do DNA terá consequências negativas ou não terá nenhum efeito. Os nossos corpos são capazes de reparar parte dessas lesões do DNA, mas nossa capacidade de reparação deteriora-se com a idade, devido à escassa força da seleção natural. Por isso, o envelhecimento e a morte acontecem de duas formas: o acúmulo de mutações negativas devido à fraca seleção natural e as mutações que podem ter sido vantajosas para a reprodução, mas que se tornam negativas à medida que a idade avança. A mutação genética do câncer de mama (BRCA) pode ser um exemplo. Sabemos que ela aumenta significativamente o risco de câncer de mama e do ovário, mas ela também foi relacionada ao aumento da fertilidade das mulheres que possuem as mutações. Por isso, talvez a mutação genética BRCA ofereça uma vantagem reprodutiva no início da vida, seguida por maiores riscos à saúde posteriormente. Mas, como a seleção natural enfraquece após a maturidade sexual, a vantagem reprodutiva supera a desvantagem. "O que quer que aconteça no início da vida supera o que acontecer após a idade reprodutiva, pois o potencial reprodutivo é o que realmente interessa", segundo Kaitlin McHugh, bióloga da Universidade do Estado de Oregon, nos Estados Unidos. A senescência celular, quando as células param de dividir-se, pode ser outro exemplo de uma vantagem no início da vida que traz uma desvantagem com mais idade. A senescência nos protege contra o câncer porque pode evitar a multiplicação de células com lesões do DNA. Mas, ao longo dos anos, as células senescentes podem acumular-se nos tecidos, causando lesões e inflamações, e são precursoras de doenças relativas à idade avançada. Embora a maior parte das espécies realmente envelheça, existem exceções. Muitas plantas, por exemplo, exibem "senescência desprezível", e sabe-se que algumas espécies vivem por milhares de anos. Um exemplo particularmente curioso é a árvore chamada Pando, na Floresta Nacional Fishlake, em Utah, nos Estados Unidos. Pando é, na verdade, uma colônia de álamos-trêmulos machos, geneticamente idênticos, unidos por um único sistema de raízes. Ela cobre uma área de mais de 400 mil m2, e estima-se que pese mais de 6 mil toneladas. Estimativas indicam que ela pode ter mais de 10 mil anos de idade. Já um parente da hidra — a imortal água-viva — tem uma forma criativa de garantir a longevidade. Ela é capaz de voltar do seu estágio adulto para o estado de pólipo em caso de ferimento, doença ou estresse. "Mas você precisa se perguntar se [ainda] é o mesmo indivíduo ou algo diferente?", questiona McHugh. Existe também a indicação de que algumas espécies ficam mais bem sucedidas com a idade — o que é conhecido como "senescência negativa". Mas suas evidências são vagas, segundo Maklakov. "Se a ecologia da espécie for tal que a reprodução, por alguma razão, é geralmente baixa ou se o indivíduo não puder se reproduzir no início da vida, isso altera a forma de operação da seleção", afirma. Exemplos podem ser encontrados em animais que se acasalam em haréns, como as morsas e os cervos. Um macho pode controlar todo um grupo de fêmeas. O tamanho do grupo e, portanto, o número de filhotes podem aumentar com o tamanho e a idade. Com isso, seu potencial reprodutivo continua aumentando. Embora seja verdade que algumas espécies podem manter sua destreza reprodutiva com a idade, elas não são exemplos reais de senescência negativa. Os estudos que afirmaram o contrário provavelmente estão errados, segundo Maklakov. E, por fim, uma morsa não conseguirá manter o controle do harém indefinidamente. O sexo pode desempenhar um papel curioso na forma como envelhecemos. Mulheres que têm sexo regularmente começam a menopausa mais tarde, segundo um estudo de Megan Arnot e Ruth Mace, do University College de Londres. Elas sugerem que este é um exemplo de compensação — a energia gasta na ovulação pode ser mais bem usada pelo resto do corpo se não houver chance de gravidez. Mas, no restante do mundo animal, ser mais fértil parece acelerar o envelhecimento. Morcegos que têm mais filhotes vivem por menos tempo que aqueles com ninhadas menores, por exemplo. Pode ocorrer que eles invistam tudo o que têm quando têm a oportunidade de reproduzir-se. "Existe essa compensação de tempo, em que os organismos que se reproduzem muito cedo na vida não têm o mesmo desempenho na idade avançada", explica McHugh. Mais uma vez, a hidra é uma exceção a esta regra. Suas taxas de fertilidade aparentemente não diminuem ao longo da vida. E existem também as espécies com grandes diferenças de tempo de vida entre os sexos. Tipicamente, formigas, abelhas e cupins têm um rei ou rainha que pode ser altamente fértil e ter vida longa, em comparação com seus trabalhadores estéreis. Neste caso, por que o custo da reprodução não reduz seu tempo de vida? A resposta pode estar no fato de que o rei ou rainha é protegido de muitas das ameaças enfrentadas pelos trabalhadores. A diferença de estilo de vida entre eles é tão grande que as teorias de envelhecimento não se aplicam da mesma forma. Se a reprodução tem tanta influência sobre o nosso tempo de vida, por que os seres humanos vivem por tanto tempo depois que muitos de nós paramos de ter filhos? A hipótese da avó sugere que é importante que os parentes mais idosos permaneçam vivos, porque a reprodução é uma atividade cara e perigosa. Uma avó pode garantir a sobrevivência de alguns dos seus próprios genes investindo nos seus netos. Por isso, sua vida mais longa pode trazer vantagens do ponto de vista da seleção natural. "Famílias que têm as avós à sua volta têm aptidão reprodutiva muito mais alta, talvez porque a mãe pode concentrar-se em ter mais filhos enquanto as avós ajudam a criar os que já nasceram", afirma Kountourides. Mas, como os netos recebem apenas 25% dos genes de cada avó, elas têm com os netos o mesmo parentesco que têm com seus sobrinhos. "Pode simplesmente ser que, no passado, não houvesse mulheres suficientes que sobrevivessem até poder reproduzir-se com 50 anos de idade. Por isso, a seleção do que acontece com a reprodução humana aos 50 anos foi muito, muito lenta", segundo Maklakov — retornando ao princípio central do envelhecimento, de que a seleção natural enfraquece após a reprodução. Muito do que acontece conosco em idade avançada pode não ser agradável, mas não existe uma força intensa na evolução para ajudar a nos proteger. Este texto (em português )foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-62562118
2022-08-20
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-62562118
sociedade
Cientistas descobrem como destruir 'produtos químicos eternos' que podem causar câncer
Os cientistas associaram a exposição às substâncias, em certos níveis, a sérios riscos à saúde, incluindo câncer e defeitos congênitos. As substâncias químicas conhecidas como PFAs (compostos perfluoroalquil e polifluoroalquil) são usadas ​​em centenas de objetos do cotidiano, como embalagens de alimentos, panelas antiaderentes, capas de chuva, adesivos, papel, tintas e maquiagem. Existem cerca de 4.500 desses compostos à base de flúor. Sua resistência a água, gordura e sujeira os torna altamente úteis. No entanto, são essas propriedades que os tornam tão difíceis de destruir. Eles foram identificados em níveis baixos na água da chuva em todo o mundo - mas se eles se infiltrarem na água ou no solo em alto nível, podem se tornar uma séria preocupação. Fim do Matérias recomendadas Pesquisas continuam em andamento para determinar como diferentes níveis de exposição podem levar a vários efeitos à saúde. "Existe uma associação entre exposição e resultados adversos em todos os principais sistemas orgânicos do corpo humano", disse Elsie Sunderland, professora de química ambiental da Universidade de Harvard, nos EUA, à BBC News. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os métodos existentes para destruir PFAs, como a incineração, não tiveram muito sucesso - eles exigem temperaturas extremamente altas, o que é caro. A nova pesquisa, de cientistas da Northwestern University, nos EUA, afirmam ter feito o "aparentemente impossível" e destruído PFAs usando baixa temperatura e produtos baratos. Isso pode ser muito útil para ajudar as comunidades que sofrem de contaminação de alto nível, de acordo com o professor Sunderland, que não faz parte da equipe de pesquisa. A razão pela qual os PFAs têm sido historicamente tão difíceis de destruir é porque eles contêm muitas ligações de carbono e flúor - as ligações mais fortes da química orgânica. Mas são essas ligações que permitem repelir líquidos e tornam essas substâncias úteis para as indústrias farmacêutica e alimentícia. A equipe de pesquisa, liderada por Brittany Trang, identificou um novo mecanismo para quebrar os PFAs usando um produto químico comum chamado hidróxido de sódio - usado em produtos domésticos como sabonetes ou analgésicos. Eles atacaram um grupo de átomos mais fracos de oxigênio que ficam no final da cauda longa das ligações carbono-flúor. O processo efetivamente "decapitou o grupo da cabeça da cauda" e o PFAs começou a desmoronar, deixando apenas produtos inofensivos. Trang diz que os resultados são "empolgantes devido à simplicidade - embora ainda não reconhecida - da nossa solução". "Pode ser um avanço se for (uma operação) de baixo custo", disse a líder de política química e membro da Royal Society of Chemistry, Camilla Alexander-White, à BBC News. A equipe de cientistas espera que, com mais pesquisas, o PFAs possa ser filtrado da água potável e esse novo método seja aplicado para destruir os contaminantes. No entanto, o tratamento de altas concentrações de PFAs é apenas uma parte da solução. Com o PFAs permanecendo em produção, ele pode continuar a se acumular em níveis baixos em peixes e outros animais selvagens, pois não pode ser decomposto naturalmente com muita facilidade. O dr. Alexander-White defende que os reguladores e fabricantes parem de usar PFAs. O novo método foi aplicado aos 10 tipos mais proeminentes de PFAs, mas a Agência de Proteção Ambiental dos EUA identificou mais de 12.000. William Dichtel, um dos coautores e professor de química da Northwestern continua esperançoso: "Existem outras classes que não têm o mesmo calcanhar de Aquiles, mas cada uma terá sua própria fraqueza".
2022-08-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62602486
sociedade
Os surfistas que despertaram a ira do prefeito de Veneza
Duas pessoas filmadas surfando no canal mais movimentado de Veneza desencadearam a ira do prefeito da cidade italiana. Os vídeos provocaram indignação quando compartilhados online. O prefeito de Veneza, Luigi Brugnaro, ofereceu um jantar grátis a quem identificasse a dupla e pediu punição para eles. A imprensa local informa que as duas pessoas foram localizadas e multadas. O wing surfing é um esporte aquático que consiste em surfar com uma prancha que tem uma quilha grande — é movido a vento e se desenvolveu a partir do kitesurf, windsurf e surf. Geralmente têm propulsores elétricos embutidos. O surf, juntamente com outros esportes, como stand up paddle ou canoagem, é proibido no Grande Canal de Veneza. Fim do Matérias recomendadas Mas isso não impediu os dois entusiastas dos esportes aquáticos de passearem de pranchas pelo centro histórico da cidade. Em gravações postadas na internet, os dois são vistos surfando em suas pranchas elétricas enquanto as pessoas observam com a partir de barcos próximos. Um dos surfistas parece estar tirando fotos com seu celular antes de cair na água. Depois que os vídeos provocaram críticas de usuários online, o prefeito de Veneza ecoou os comentários, dizendo que a dupla zombou da cidade e deveria ser identificada. "Para aqueles que os viram, ofereço um jantar", escreveu ele em um tuíte em que os chamou de "idiotas prepotentes". Uma investigação policial foi aberta e Brugnaro mais tarde escreveu no Twitter que os dois haviam sido identificados. No entanto, ele não mencionou nada sobre o jantar. As pranchas dos dois atletas, avaliadas em cerca de US$ 25 mil (R$ 130 mil), foram confiscadas, informou o jornal local Il Gazettino. Além disso, ambos foram multados por colocarem em risco a segurança da navegação no canal e foram expulsos de Veneza. Eles podem enfrentar processo penal por terem prejudicado a imagem da cidade.
2022-08-18
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62589065
sociedade
O movimento 'bumerangue' dos funcionários que estão voltando para antigos empregos
Quando o profissional de RH Chris foi procurado por uma empresa concorrente do setor de energia para liderar um novo projeto de administração, ele considerou que seria uma mudança de carreira que ele não podia recusar. "Minha empresa atual ainda não estava pronta para isso", afirma Chris, que mora em Calgary, no Canadá. "Era uma grande oportunidade de ganhar experiência fazendo algo que não teria sido possível de outra forma." A mudança ocorreu em 2020 e tudo saiu bem. Chris — cujo sobrenome é omitido para garantir sua segurança no emprego — assumiu o cargo e comandou o projeto. E, nos dois anos que se seguiram, ele acumulou técnicas e conhecimento mais profundos que o ajudaram a avançar rapidamente na carreira. Até que, com um cargo mais alto e salário maior, Chris estava pronto para um novo desafio — que ele encontrou no seu antigo empregador. Em 2022, ele se tornou um funcionário "bumerangue", ao retornar para a mesma empresa de antes, mas em um cargo superior ao que ele tinha quando saiu. Fim do Matérias recomendadas Na verdade, foi uma promoção. "Fui convidado a voltar para um cargo maior e mais amplo devido às experiências que consegui ganhar nos dois anos em que estive fora", explica ele. Nos meses após o seu retorno, Chris afirma que conseguiu manter bom desempenho no cargo superior desde o início, devido ao seu conhecimento institucional. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em vez de um passo para trás, voltar ao seu antigo ambiente de trabalho fez avançar sua carreira, permitindo alavancar redes de contato e relacionamentos pré-existentes na sua empresa, explorando ao mesmo tempo as experiências adquiridas na outra companhia. "Foi ótimo — é como andar em uma bicicleta maior e mais incrementada, com mais recursos", explica ele. "Eu saí inicialmente, não porque não gostasse do meu empregador; eu vi a chance de subir mais rapidamente e aproveitei." A maioria das pessoas que sai de um emprego termina definitivamente seu relacionamento com a empresa, mas nem sempre este é o caso. Na verdade, após a Grande Renúncia (a tendência que levou um grande número de profissionais americanos a deixar seus empregos durante a pandemia de covid-19), vem disparando o número de pessoas retornando para seus antigos ambientes de trabalho, como funcionários "bumerangues". Algumas empresas estão até incentivando essa prática, com redes de ex-funcionários especialmente projetadas para recontratações. E, embora o retorno a um cargo anterior possa ser motivado pelo arrependimento, em casos como o de Chris, é simplesmente a decisão lógica a ser tomada. Como esses funcionários já saíram da empresa uma vez, faz sentido que eles retornem? E se as empresas começarem cada vez mais a tentar recontratar antigos funcionários, aonde isso nos levaria em relação à evolução do mercado de trabalho? Décadas atrás, as empresas se ouriçavam com a simples ideia de recontratar antigos funcionários, especialmente com a estigmatização enraizada sobre funcionários que pulam de um emprego para outro. "Algumas empresas tinham políticas formais proibindo as recontratações", segundo J. R. Keller, professor de estudos de recursos humanos da ILR School da Universidade Cornell, em Nova York, nos Estados Unidos. "Os gerentes responsáveis pelas contratações acreditavam que trazer esses funcionários de volta indicava que eles estariam recompensando a deslealdade e incentivaria outros empregados a sair." Mas as enormes reduções de pessoal depois da recessão no início dos anos 1980 abalaram essa mentalidade. Movimentar-se estrategicamente pelo mercado de trabalho para progredir na carreira tornou-se algo mais comum, segundo Keller. "Quando se tornou padrão construir carreiras em diferentes empresas, os próprios gerentes de RH começaram a mudar de emprego ao longo do tempo", conta ele. "Por isso, menosprezar um grande candidato, simplesmente porque ele havia saído anteriormente para uma oportunidade melhor, parecia contraproducente." Essa mudança de mentalidade fez com que as recontratações aumentassem ao longo dos anos. Mas a Grande Renúncia fez surgir um pico. No Reino Unido, dados da plataforma LinkedIn analisados pela BBC demonstram que 5% de todas as novas contratações em 2021 foram de ex-funcionários retornando. E, nos Estados Unidos, uma análise de cerca de 32 milhões de históricos profissionais de membros da rede social LinkedIn demonstra que esses profissionais representaram 4,3% de todas as contratações no ano passado, contra 2% em 2010. E a velocidade desse fenômeno também é crescente. O profissional "bumerangue" americano levou em média 17,3 meses para retornar a um antigo empregador em 2021, contra 21,8 meses em 2010. Keller afirma que o crescimento pode ser atribuído, em parte, à recente agitação do mercado de trabalho. Em alguns casos, maior rotatividade geralmente indica que mais profissionais agora querem seus antigos empregos de volta ou estão interessados em retornar para um antigo empregador. Em uma pesquisa realizada em 2022 pela empresa de recrutamento Robert Half, 29% dos empresários britânicos consultados relataram aumento do número de ex-funcionários pedindo para voltar para sua antiga empresa. "Alguém pode ter saído de uma empresa e percebido que a grama do vizinho não é mais verde, ou ter sido forçado a sair por razões pessoais decorrentes da pandemia", explica Keller. "Por isso, eles querem voltar ao cargo que ocupavam antes com bom desempenho e que eles apreciam ainda mais depois de passar um tempo fora. E, com as redes sociais, é mais fácil manter contato com um antigo patrão do que antes." Embora alguns profissionais tenham ficado com saudades dos seus antigos empregadores após a Grande Renúncia, a crise de contratação que se seguiu coincidiu com a busca de novos talentos pelos recrutadores, para preencher as vagas existentes. E, cada vez mais, as empresas se voltam para seus ex-funcionários. Nicola Thomas, gerente de talentos da agência de marketing digital iCrossing, com sede em Brighton, no Reino Unido, afirma que acompanha ativamente seus antigos funcionários como fonte de recrutamento. "Antes da crise de contratação, os 'bumerangues' não eram totalmente descartados, mas, agora, os recrutadores precisam pensar em novas formas de ampliar sua busca por talentos", afirma ela. "O candidato perfeito pode muito bem ser um ex-funcionário; você nunca sabe quando alguém vai querer voltar". Em alguns casos, os profissionais podem encurtar o caminho até o topo simplesmente ganhando uma promoção em outro lugar, para depois voltar para a empresa anterior com um cargo melhor e salário mais alto do que eles teriam se tivessem apenas permanecido. "Se um ex-funcionário tiver saído de forma positiva, passado algum tempo fora e adquirido maiores conhecimentos e experiência em outro lugar, retornar para um cargo superior torna-se uma forte possibilidade", afirma Thomas Um desses profissionais é o diretor de otimização de mecanismos de busca da agência de marketing digital iCrossing, Cameron Lyall. Ele deixou a empresa por um curto período para chefiar um departamento em uma empresa concorrente, até retornar em cargo superior. "O emprego não era o que eu esperava. Logo percebi que não tinha muitas oportunidades de progresso", explica ele. "Por isso, entrei em contato com meu antigo gerente e perguntei se haveria uma oportunidade de voltar. Eu sabia que estavam sendo abertos novos cargos e tive a sorte de voltar em um cargo um pouco acima do que eu tinha quando saí." Além do progresso na carreira, Lyall acrescenta que voltar trouxe benefícios psicológicos. Ele é grato por estar de volta a um emprego do qual ele gosta. "Eu realmente me senti energizado ao voltar. Retomei os mesmos clientes e contas que antes, mas com a visão renovada de como eu gostava de trabalhar na empresa", diz. Do ponto de vista de recursos humanos, contratar ex-funcionários em cargos superiores pode fazer sentido, financeiramente ou para a logística da empresa. A pesquisa de Keller com mais de 2 mil funcionários "bumerangues" em uma empresa americana de assistência médica em 2021 demonstrou que o desempenho dos "bumerangues" superou de forma consistente o dos contratados externos, com benefícios mais evidentes nos dois primeiros anos da recontratação. "Os 'bumerangues' podem ter bom desempenho a partir do momento em que chegam", afirma Thomas. "Eles já trabalharam para você, entendem sua cultura e seus valores e, provavelmente, têm também relacionamentos existentes dentro da empresa." O professor de administração John Arnold, da Universidade do Missouri, nos Estados Unidos, afirma que esse tipo de contratação faz sentido em cargos que, muitas vezes, exigem profundas qualificações e conhecimentos especializados, como a área de tecnologia. "Se uma empresa concentrar-se em contratar apenas bons 'bumerangues' e eles voltarem e apresentarem bom desempenho rapidamente, é uma grande vantagem — particularmente em setores com grande curva de aprendizado que exige muito tempo e treinamento", explica Arnold. A recontratação pode geralmente parecer uma situação na qual todos ganham — o empregador e o funcionário que retorna. Mas a transição nem sempre é perfeita. Para os profissionais que ficaram na empresa enquanto os colegas saíram, um ex-funcionário que retorna imediatamente para um cargo superior ou com salário mais alto pode prejudicar os ânimos. "Nós não sabemos como os atuais funcionários reagirão à chegada dos 'bumerangues' à sua equipe, se poderá haver um sentimento de inveja que prejudique o apoio ou a ajuda", afirma Keller. E um funcionário que saiu para se afastar dos desafios da organização pode encontrar-se enfrentando os mesmos problemas que havia quando ele saiu, segundo Arnold. A pesquisa de Arnold indicou que os funcionários "bumerangues" muitas vezes deixam seus empregos pelos mesmos motivos. "Quando esses 'bumerangues' saem [da empresa] pela segunda vez, muitas vezes eles fornecem a mesma razão de antes", explica ele. "Às vezes, os profissionais acreditam que tudo será melhor na segunda vez, mas não é necessariamente o que acontece." Os profissionais "bumerangues" também costumam receber menos atenção. Retornar a um antigo empregador significa que existe maior pressão por desempenho em comparação com os recém-chegados. "Os funcionários 'bumerangues' geralmente tendem a ter melhor desempenho, mas também são mais propensos a serem demitidos que os contratados externos — os gerentes esperam que ele conheçam a empresa assim que chegarem", afirma Keller. "Enquanto os recém-chegados podem receber o benefício da dúvida, o recontratado que não atender às expectativas provavelmente será dispensado." Pode também existir uma janela de tempo limitada para retornar a um emprego. Os gerentes responsáveis por contratações podem receber funcionários depois de alguns anos fora da empresa, mas Thomas afirma que existe também um ponto de não retorno para os ex-funcionários. "Quanto mais tempo houver passado desde a saída do candidato, maior a probabilidade de que ele esteja apegado a práticas mais antigas", segundo ela. "A empresa pode ter mudado nesse período e agora ser uma organização onde ele não será mais capaz de adaptar-se." Nicola Thomas afirma que tem havido uma mudança de geração no posicionamento das empresas com relação à estabilidade dos funcionários. E, por sua vez, os empregadores estão cada vez mais deixando a porta aberta para os funcionários que saem, um dia, poderem retornar. "As pessoas agora querem ter experiência em diferentes empresas e subir a escada da carreira o mais rápido possível", segundo ela. "Em um mundo onde existem mais cargos altamente técnicos com conhecimentos específicos, existe um limite para a quantidade de pessoas que você pode considerar — e descartar antigos funcionários pode significar a perda de uma enorme oportunidade." J. R. Keller afirma que o possível constrangimento causado pelo retorno ao emprego está diminuindo, tanto para o empregador quanto para o funcionário. "À medida que vemos maior abertura entre as empresas para contratar 'bumerangues', também haverá menos estigmatização, do ponto de vista do funcionário, no seu retorno para um antigo empregador", explica ele. Keller acredita que, ao longo do tempo, esse tipo de funcionário ganhará mais importância no mercado de trabalho e será uma fonte de contratação mais relevante. "A compreensão agora é que todos estão procurando melhores oportunidades", afirma ele. "Se uma companhia quiser os melhores profissionais e, por acaso, eles forem ex-funcionários, elas devem abrir-se para eles." A forma como alguém sai de uma empresa define, em grande parte, o sucesso do seu retorno. Chris e Lyall, dois funcionários "bumerangues", salientam a importância de sair de uma empresa em bons termos. "Para ter sucesso, é importante não fechar nenhuma porta e manter uma relação forte e positiva [com os ex-empregadores]", acrescenta Chris. "Voltar pode definitivamente fazer avançar uma carreira."
2022-08-18
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-62587816
sociedade
Endividado? Como funcionam os métodos 'avalanche' e 'bola de neve' para pagar dívidas
Hipoteca, automóvel, eletrodomésticos, cartões de crédito... dívidas se acumulam e, sem saber como, ficamos com a corda no pescoço. Isso está acontecendo com cada vez mais pessoas em todo o mundo. A dívida privada mundial aumentou 13% do PIB (Produto Interno Bruto, soma de bens e serviços de um país) global em 2020, o maior aumento nas últimas duas décadas, informou o Fundo Monetário Internacional (FMI) neste mês. Em alguns países da América Latina, a maioria da população deve dinheiro a entidades financeiras, como é o caso do Peru, onde mais de sete em cada 10 pessoas afirmaram estar endividadas em uma pesquisa recente da consultoria Datum. E nos Estados Unidos, a dívida com cartões de crédito atingiu um recorde de US$ 890 bilhões neste mês, depois de crescer US$ 100 bilhões em um único ano, segundo o Federal Reserve (Fed, o banco central americano). Fim do Matérias recomendadas Quando os compromissos de pagamento acumulam, muitos devedores adotam estratégias para cumprir suas obrigações da forma mais inteligente possível. Dois dos métodos mais recomendados pelos especialistas são conhecidos como "avalanche" e "bola de neve". Explicamos abaixo em que consistem. Se você é uma pessoa equilibrada, paciente e calculista, sua estratégia é a avalanche. Primeiro, você deve fazer uma lista de todas as suas dívidas e ordená-las da maior para a menor taxa de juros. Seu objetivo é pagar o mínimo exigido de todas elas. E para aquela que tiver mais juros, dedique todo o dinheiro extra que puder a cada mês até pagar. Por exemplo, se sua hipoteca tem uma taxa de 8%, a do televisor que você comprou é de 12%, a do seu carro é de 15% e a dívida do seu cartão de crédito é de 25%, contribua com todos os recursos que puder para saldar este último, sempre cumprindo os pagamentos mínimos das demais. Quando você tiver zerado o saldo devedor do cartão, use seu orçamento extra todo mês para cobrir o pagamento do carro, depois a televisão e, finalmente, a hipoteca. A eficácia da avalanche está nas taxas de juros, que na maioria dos empréstimos representam uma parte significativa das mensalidades. Quanto maior a taxa, maior a quantidade de dinheiro que é dedicada a cobrir os custos dos juros e menos corresponde ao capital ou ao valor do próprio produto. Com esse método, você economizará dinheiro evitando que as contas com as taxas de juros mais altas continuem a aumentar sua dívida indefinidamente. A matemática não mente. Mas a matemática não é tudo. Uma situação de dívida pode causar altos níveis de estresse, por isso a psicologia é um fator a levar em conta. Ver as dívidas aumentando ao longo do tempo pode ser desmotivador e prejudicar seus esforços para alcançar o saldo zero desejado. Veja o caso acima: você tem uma hipoteca de US$ 100.000 (cerca de R$ 515 mil), acabou de comprar a TV por US$ 1.000 (cerca de R$ 5,5 mil), tem US$ 5.000 (cerca de R$ 25,8 mil) em seu carro e deve US$ 10.000 (cerca de R$ 51,6 mil) em cartões de crédito. Se o seu primeiro objetivo é quitar a dívida do cartão de crédito, mas sua renda está apertada, pode levar anos para alcançá-lo e, sem uma dura disciplina, você pode jogar a toalha no meio do caminho. Então você pode ir para a estratégia de bola de neve. Primeiro, faça a lista de suas dívidas como no caso anterior, mas não as ordene por taxa de juros e sim por valor. Claro, faça os pagamentos mínimos para todas, mas dedique todo o dinheiro adicional que puder para cobrir aquele com um valor menor até pagar. No caso em questão, você deve fazer o possível para pagar primeiro pela TV. Um objetivo alcançável, certo? Ao atingir a primeira meta, você logo veria os resultados de seus esforços, o que o motivaria ainda mais a continuar pagando o carro, o cartão de crédito e a hipoteca, nessa ordem. Embora de um ponto de vista puramente matemático, a bola de neve seja menos eficiente que a avalanche, segundo especialistas ela pode alcançar os mesmos resultados ou melhores. Também existe a possibilidade de combinar os dois métodos: primeiro paga a menor dívida e, com a motivação do primeiro sucesso, passa para a estratégia de avalanche para enfrentar o restante de suas dívidas. Para o acadêmico e especialista financeiro mexicano Norman J. Wolf, ambas estratégias podem ser válidas, desde que haja renda estável. E, caso tenha acumulado um valor muito alto, "outra opção razoável é consolidar a dívida com um único banco", diz. Entrevistado pela BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC), Wolf, que é professor da Universidade Nacional Autônoma do México, dá alguns conselhos para administrar as suas dívidas da maneira mais inteligente possível. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O primeira passo é saber o que estamos contratando quando compramos algo. É preciso olhar a tabela de amortização e, se não entender, pedir orientação a um especialista." Essa tabela mostra todos os pagamentos a serem feitos no empréstimo, como quanto capital e juros devem ser pagos e qual é a dívida pendente em cada período. "A longo prazo, o que buscamos primeiro é pagar o capital: poder fazer grandes pagamentos que saldem o restante a pagar e que assim os juros diminuam", diz Wolf. O especialista garante que, em um momento inflacionário como o atual, o melhor é "dar prioridade àquelas amortizações em que se paga mais capital primeiro e sobra juros no final", dados que devem constar na tabela de amortizações. E, no caso de ter que escolher entre bola de neve ou avalanche, ele se inclina mais para a segunda. "Você pode ver qual é a taxa de juros mais agressiva, e eu diria: pague primeiro as dívidas com a taxa mais alta e depois pague as dívidas com a taxa menor."
2022-08-18
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62582972
sociedade
Sem 'vozes na cabeça': como é ter uma mente silenciosa?
"Hoje descobri que nem todo mundo tem um monólogo interior, na própria cabeça — e isso arruinou meu dia." Esse foi o título de um texto de blog que apareceu há algum tempo e provocou um acalorado debate tanto na mídia quanto nas redes sociais. Aqueles que descobriram as tais "vozes na cabeça" começaram a olhar com desconfiança para os indivíduos ao redor que não partilham da mesma experiência. "Como assim? Você não tem um monólogo interior?... Claro que tem. Todo mundo tem!" "O que, vozes na mente? Eu não!" Fim do Matérias recomendadas A conclusão, de ambos os lados, era muitas vezes a mesma: "Você é tão estranho..." O blog trouxe à tona uma parte específica de nossas vidas mentais chamada fala interior, ou aquela conversa silenciosa que muitos temos com nós mesmos enquanto fazemos as atividades diárias. Coisas como "você não deveria ter dito isso a ele" ou "não posso esquecer de comprar tomates" ou "vou deixar isso para amanhã porque quero dormir." Claro, para quem vive algo semelhante, isso faz parte do dia a dia. Trata-se de algo tão normal quanto é para pessoas como Justin experimentar a vida de uma maneira completamente diferente. Em sua paisagem mental, "não há literalmente nada". "Há uma sensação de vazio. Não há imagens, ruídos, vozes, narrativas. Tudo totalmente calmo, como se nada estivesse acontecendo." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E não é só isso: entre a presença de vozes e a ausência de qualquer "ruído" na mente, há pelo menos três variantes do mundo interior dos humanos, um território tão difícil de explorar que permanece em grande parte desconhecido. A mente de Mary, por exemplo, não está cheia de palavras nem completamente vazia. Na definição dela, é um lugar que pode ser alcançado por uma escada em espiral que começa atrás da orelha esquerda. "É como o sótão de uma casa muito bonita, pequena e imponente. É de carvalho, acredito. Pode haver um pouco de mogno, mas acho que é basicamente carvalho — acho que não posso comprar mogno — e ele é cheio de coisas, como caixas de armazenamento, telas, filmes e fotografias", descreve. "Suspeito que exista uma porta nos fundos, mas acho que não passei por ela. É um lugar tranquilo. Não é perceptível, exceto pelo fato de estar dentro da minha cabeça." Como aqueles que vivem com seus monólogos internos, Mary sempre esteve convencida de que todos tinham um sótão semelhante, até que percebeu o contrário durante uma conversa com a filha. "Nós estávamos falando sobre lembrar de sonhos e eu disse: 'Bem, é um pouco como quando você entra naquele quarto dentro da sua cabeça', e ela disse: 'Um quarto na sua cabeça? Você é tão esquisita, mãe'. Fiquei surpresa, mas simplesmente aceitei que esse conceito realmente poderia soar um pouco estranho." Charles Fernyhough, escritor e psicólogo da Universidade de Durham, no Reino Unido, ficou satisfeito e intrigado com a reação à postagem de blog. "Estudei o discurso interior durante grande parte da minha carreira e, de repente, as pessoas estavam delirando sobre algo que, para mim, sempre pareceu um ramo negligenciado da psicologia." Negligenciado, talvez, porque nosso mundo interior nos é tão familiar que raramente prestamos atenção nele. "Quando fazemos isso, descobrimos que é algo muito variado, o que significa que não devemos supor que os mundos internos de outras pessoas tenham alguma semelhança com o nosso", diz o especialista. "Quase todo mundo passa a vida pensando que as experiências dos outros são como as suas", diz o professor Russell T. Hurlburt, que passou a carreira inteira tentando capturar o que chama de "experiência interior pura". Foi justamente a investigação de Hurlburt que provocou furor nas mídias sociais. "É difícil não supor que todos passam pelo mesmo que você, porque nunca temos a chance de ver a experiência interior de outra pessoa." "Eu mesmo dediquei parte da minha vida estudando o tema, mas as únicas sensações que experimentei diretamente são as minhas." Uma pessoa que teve a oportunidade de viver em dois desses estados de espírito foi Lauren Marks, autora do livro "A Stitch of Time" (Um Ponto do Tempo, em tradução livre para o português). Marks relata que "passou muito tempo repetindo falas ou prevendo uma conversa que poderia acontecer" em sua mente. "Eu queria silenciar aquela voz, mas não foi fácil." "Eu era atriz, diretora e estudante de doutorado em Nova York, então meu discurso interior era rápido, neurótico, implacável e problemático." "Em agosto de 2007, saí em turnê com um show no festival de Edimburgo, na Escócia. Eu estava com alguns amigos em um bar, cantando um dueto de karaokê, rindo e tudo mais até que eu deixei de ser eu mesma." "Eu simplesmente desmoronei. Foi como se cada parte de mim tivesse sumido em um instante", relata. "O próximo momento do qual eu tenho uma boa memória é ver meus pais ao lado da minha cama no hospital. Eles me disseram que eu foi diagnosticada com um aneurisma cerebral e passei por uma cirurgia." "Parecia completamente impossível e estranho. Mas não era ruim. Eu não me sentia nada mal. Tudo parecia diferente, eu só não sabia como." "Mas então ficou claro para mim que a diferença era que eu não tinha mais minha voz interior 'dizendo' o que eu estava pensando." "Grande parte da minha experiência depois do aneurisma foi de tranquilidade. Um silêncio absolutamente penetrante e fortificante", classifica. "Eu não me ouvi dizer: 'Serei capaz de terminar meu doutorado? Serei capaz de viver de forma independente no futuro?", questionou. "E quando reflito sobre os momentos mais pacíficos de toda a vida, essas três semanas no hospital escocês são sempre os que vem à mente." Marks aprecia tanto a experiência que, no final do livro em que relata o caso, ela escreve: "A linguagem é uma das coisas mais bonitas do mundo. A única coisa mais bonita é o silêncio que a precede". Mas a autora acrescenta que o retorno das vozes da cabeça permite que ela funcione melhor. Justin, por sua vez, vive nesse mundo livre de conversas mentais. "Quando fico sozinho, o que acontece em quase 100% do tempo, estou em um lugar tranquilo e relaxante." "É como ter uma ilha, mas tudo ao redor é um oceano imenso, desconhecido e profundo. E acho que o que acontece é que estou mais sintonizado com esse tipo de oceano de inconsciência que circunda a ilha." "Às vezes, se alguém me interrompe, fico um pouco ressentido por ter sido tirado deste lugar e trazido de volta ao mundo real de conversas e palavras." Para Maria, cuja mente é inundada de imagens o tempo todo, "não ter nada na cabeça deve trazer uma paz de espírito e é admirável". "Deve ser uma vida muito reconfortante. Mas não tão colorida quanto a que tenho dentro da minha cabeça." "Gostaria de poder mostrar a alguém meu 'sótão mental', porque é cheio de coisas e é tão emocionante... Se eu pudesse baixá-lo em um computador de alguma forma, seria maravilhoso." Essas mentes silenciosas, além de livres de imagens ou sons, podem se manifestar com sentimentos e também com algo que não tem qualidade sensorial. Não há palavras, imagens ou sensações. É algo que Hurlburt chama de "pensamento simbolizado". Porém, por mais encantadoras que pareçam as histórias de Lauren, Mary e Justin, será que o silêncio é sempre bom? "Para que servem todas essas palavras, se elas não estão fazendo algo útil?", questiona Fernyhough. "As pesquisas mostram que as conversas que temos conosco parecem ter se desenvolvido a partir dos diálogos que mantemos com os outros à medida que envelhecemos. "É por isso que evito termos como 'monólogo interior' ou 'a voz na sua cabeça'", explica o especialista. Estudar como as crianças falam em voz alta enquanto jogam ou resolvem um quebra-cabeça foi o que levou Fernyhough a abordar o discurso interior, ainda como estudante de doutorado. "Esta forma de falar em voz alta é conhecida como discurso privado. A ideia é que gradualmente ela se transforme numa fala silenciosa à medida em que envelhecemos." "Assim como o discurso privado, o discurso interior parece ter seus benefícios: ele pode nos ajudar a planejar o que vamos fazer e refletir sobre o que fizemos. Também pode expressar nossos sentimentos, nos preparar para a ação e nos repreender se fizermos algo estúpido", complementa o professor. Fernyhough acrescenta que esse costume ajuda a narrar e a organizar as memórias do passado ou as reflexões sobre o futuro. Ainda não é bem compreendido por que algumas pessoas acabam com a cabeça cheia de palavras e outras não. Independentemente do que pesquisas futuras possam mostrar, ao menos uma coisa já sabemos sobre o discurso interior: seja a mente "falante" ou "silenciosa" não existe uma delas que é considerada normal ou padrão pela ciência.
2022-08-17
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62532854
sociedade
O que sabemos sobre Maria, mãe de Jesus
É o feriado mais importante do verão em boa parte da Europa. Tudo para na Itália, na Espanha, em algumas regiões da Alemanha e da Suíça, na Áustria, em Portugal, na Eslovênia, na França, na Bélgica e na Romênia, por exemplo. Trata-se da Festa da Assunção de Maria, o dia em que, segundo a tradição católica, Nossa Senhora, a mãe de Jesus, teria subido aos céus de corpo e alma — uma morte incorruptível, segundo a crença. De lastro histórico, a festa em agosto acabou se apropriando do maior feriado pagão de Roma antiga: a Feriae Augusti, nome depois reduzido para Ferragosto. Era a festa do imperador Augusto, instituída por ele no ano 18 a.C. como dia de descanso para os camponeses depois das semanas intensas de trabalho. Já sobre a biografia da mãe de Jesus, pouco se sabe que não sejam os registros bíblicos — ou seja, profundamente contaminados por uma visão simbólica — e a tradição eclesiástica construída nos séculos seguintes — enviesada por uma verdadeira teologia mariana. "Não acredito que seja possível inferir verdades históricas, saber quem foi Maria, a mãe de Jesus", comenta o historiador André Leonardo Chevitarese, professor do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autor dos recém-lançados Jesus de Nazaré: o que a história tem a dizer sobre ele e Jesus, o mago: um olhar (ainda) negligenciado sobre Jesus de Nazaré, entre outros. Fim do Matérias recomendadas Ele aponta como a provável primeira menção a uma mãe biológica de Jesus a carta escrita pelo apóstolo Paulo ao povo dos Gálatas. "Ele fala sobre o processo de encarnação de um ser angélico no seio de uma mulher, como quem diz que Jesus nasceu de uma mulher. É um documento dos anos 50 do primeiro século", contextualiza. "Mas não fala nada além disso. Nem sequer fala o nome da mãe de Jesus." Pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, a vaticanista Mirticeli Medeiros concorda que "as fontes sobre 'Maria histórica' são bem escassas". "Além do Evangelho e dos Atos dos Apóstolos, juntamente com a literatura apócrifa, já que o Protoevangelho de Tiago, e o Protoevangelho de Bartolomeu são alguns exemplos, não há nenhuma outra fonte que descreva sua trajetória, do ponto de vista histórico", salienta ela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas há indícios que permitem acreditar que ela teria se tornado esposa de José ainda adolescente, como era praxe entre famílias judaicas daquela época. "Segundo a literatura apócrifa, que mencionamos, ela teria sido apresentada a José aos 14 anos de idade", afirma Medeiros. "Agora seguindo a práxis da época, a mulher deveria ser dada em casamento logo cedo porque era considerada 'fonte de inquietação para os pais'. Sendo assim, segundo a visão da época, melhor que ela fosse prometida já no começo da puberdade. Algumas chegavam a ser apresentadas a seus futuros maridos a partir dos 12 anos de idade. Sendo assim, Maria, como qualquer outra moça da época, pode ter se casado com 14 ou 15 anos, no máximo." "Especialistas defendem que, como mandava a tradição da época, Maria foi prometida a José quando tinha por volta de 12 anos", conta o estudioso de hagiologias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos. "Isso não deve espantar. Essa ideia de que Maria foi prometida a José muito nova é compatível com a tradição. E isso nos permite supor que ela teria nascido por volta do ano 18 a.C." Pesquisas mais contemporâneas, vale ressaltar, costumam situar o nascimento de Jesus como algo ocorrido por volta do ano 4 a.C. — e não, como era de se supor, no ano 0. Conforme frisa Chevitarese, "há um modelo que normalmente se aplica para casamentos" desta época e neste contexto. "Comumente, as mulheres chegavam à idade do casamento a partir da primeira menstruação. Portanto, aos 12, 13 anos elas normalmente estavam aptas a casar", explica. "Do ponto de vista modelar dos casamentos mediterrâneos, a jovem conhecia o futuro esposo no dia do casamento. A ideia de namorar inexistia. Essas meninas viviam junto à família e, portanto, só iriam conhecer o marido muitas vezes na cerimônia. O matrimônio era uma relação de acordo entre as famílias", diz o historiador. Segundo Chevitarese, eram três as razões que costumavam alinhar esses acordos: favorecimentos políticos, ganhos econômicos ou relações de auto-ajuda. "Em se tratando de famílias de camponeses, é de se esperar que fosse a auto-ajuda a motivação dessas famílias", conclui ele. "Do ponto de vista modelar, essas mulheres aos 16, 17 anos já são mães de dois ou de três filhos", contextualiza. O historiador lembra que essa situação acabava legando ao homem a responsabilidade de "educar sexualmente a sua jovem esposa", nesse contexto. Mais velho, o futuro marido já seria alguém maduro. "Era alguém que poderia e deveria ter experiência sexual, com as chamadas prostitutas. Enquanto a mulher, no caso Maria, deveria saber cuidar de uma casa, fazer comida, isso é a educação que a mãe teria de ter dado a ela", diz. "Uma educação de subordinação em relação ao homem, ao futuro marido." Chevitarese lembra que as referências à mãe de Jesus nos evangelhos são todos registros feitos posteriormente å morte dela. "Marcos [o evangelista] escreveu nos anos 70 do século 1. Acho muito dificil que ele esteja falando de uma mulher historicamente comprovada", defende o historiador. "A seguir, temos referências à Maria nos evangelhos de Mateus, de Lucas e de João, mas isso tudo é material bastante tardio. Há de se ter um certo cuidado e não jogar todas as fichas no que se fala sobre ela como sendo um dado historicamente comprovado. Há um enorme viés teológico em todas essas falas", atenta Chevitarese. Ele sugere, portanto, partirmos do "enquadramento" para tentar entender a biografia de Maria. "O enquadramento corretíssimo é Jesus como judeu de nascimento, vida e morte. Portanto, sua mãe era uma mãe judia. Quando consideramos os dados arqueológicos advindos de Nazaré, publicados pelo [pesquisador britânico] Ken Dark agora em 2020 e em 2021, Maria bem como seu filho Jesus eram judeus de características tradicionais, alinhados ao templo de Jerusalém", diz o historiador. "Possivelmente uma família camponesa. O pai [José], também, um judeu de origem camponesa." Chevitarese lembra também de um ponto que pode justificar o fato de José, sempre apresentado como alguém mais velho, não aparecer nas narrativas de Jesus adulto. Para isso, ele recorre a pesquisas realizadas pelo historiador e teólogo irlandês John Dominic Crossan que "aventou a possibilidade de essa ausência ser em razão de uma violenta repressão do exército romano ocorrida ao lado da pequena aldeia de Nazaré". "Os romanos, para reprimirem uma revolta camponesa, dizimaram os indivíduos que eles consideravam responsáveis. Crossan sugere que José possa ter morrido nessa repressão", acrescenta. Esse ponto conferiria um outro fator biográfico para Maria: a jovem judia também era viúva. Havia se tornado viúva muito cedo. Maerki atenta para o fato de que Maria, não sendo uma mulher cristã, mas judia, teria tido um papel fundamental para a educação moral de Jesus. "A concepção de Maria cristã é uma construção eclesiástica, feita por padres, monges, teólogos. Maria era judia, frequentava a sinagoga. A ideia de uma Maria cristã, de uma cristandade em torno de Maria é um produto da Idade Média", salienta. "Algo importante na tradição judaica é o papel da mãe, de importância ímpar. A mulher judia é responsável por transmitir a tradição religiosa, os valores judaicos para os filhos. A mulher judia é uma mulher extremamente importante, influente no seio familiar", ressalta Maerki. "Por mais que não tenham função de destaque em relação ao poder, em uma sociedade onde o poder está na mão dos homens, não podemos esquecer que as mulheres eram as responsáveis pela educação dos filhos." "Então podemos imaginar Maria como uma mulher importante na formação de Jesus, naquilo que Jesus se tornaria enquanto homem", conclui o hagiólogo. "Talvez seja a grande influência na concepção moral e ética do homem Jesus. E isso a coloca em lugar de destaque na história da salvação." Essa "história da salvação" é quando Maria transcende a figura humana para se tornar uma figura quase divina, uma instituição fundamental do cristianismo. Segundo Medeiros, "o culto a Maria e sua colocação no projeto divino" é algo que começa a surgir já no século 2, quando o bispo Inácio de Antioquia descreve "a estirpe de Jesus, se referindo diretamente a Maria. "Depois vem [no mesmo século, o também bispo] Irineu de Lyon, que contrapõe as figuras de Eva e Maria", conta a vaticanista. "Eva, no caso, a que 'gerou a morte', em referência ao pecado. E Maria, que pela sua adesão ao projeto salvífico, disse sim à vida, a Jesus." A oração da Ave-Maria, ressalta a pesquisadora, aparece originalmente escrita em grego no século 3, como um dos muitos hinos marianos. "Na minha concepção, a figura de Maria é uma das mais complexas do cristianismo e, quiçá, de toda a tradição religiosa. Há várias fontes e vários elementos que entram em cena para a formação da personagem Maria", pontua Maerki. "Além da tradição bíblica, há a própria tradição eclesiástica que foi se firmando com o passar do tempo. A construção de alguns dogmas, algumas verdades de fé que foram sendo construídas pela própria Igreja, por decretos papais, por encíclicas, ideias que foram desenvolvidas e aceitas, tornaram-na uma personagem complexa e difícil de ser compreendida em profundidade." Um desses dogmas é o da virgindade da mãe de Jesus. Isto porque, com o passar do tempo, Maria passou a ser vista como alguém cujas necessidades humanas não seriam compatíveis. "A figura humana de Maria foi perdendo espaço com o avançar da história", diz Maerki. "Ela se torna tão importante quanto mãe de Jesus, que é Deus, que isso a vincula a um caráter excepcional, alguém além dos seres humanos comuns. Ela chega a ser quase uma divindade", explica ele. "Obviamente que isso não é canônico. A Igreja Católica não considera Maria uma deusa, mas o destaque que ela ganhou na tradição a distancia daquilo que podemos chamar de uma mulher comum", acrescenta ele. Isso explica essa necessidade de apagar, por exemplo, a sua sexualidade. "Isso começa a ficar problemático", afirma Maerki. "Tudo o que é humano a respeito dela começa a ser negado. O que gera uma série de polêmicas, como aquela de que Jesus teria tido irmãos ou irmãs, algo mencionado no Novo Testamento e que a Igreja Católica sempre procurou defender [interpretando o trecho como uma tradução para primos e primas, em vez de irmãos e irmãs] que Maria teve um único filho, Jesus." Aí vem para a questão da morte de Maria. Como alguém acima dos seres humanos comuns, ela não poderia ter tido uma morte comum, com restos mortais perecendo sob a terra em algum túmulo. Veio a ideia da Assunção de Maria. A festa do 15 de agosto. Embora fosse uma tradição antiga das igrejas Católica Romana, Ortodoxa, Ortodoxas Orientais e partes da Anglicana, a doutrina só foi formalizada em 1950, em documento do papa Pio 12. O texto diz que "tendo completado o curso de sua vida terrestre, foi assumida, de corpo e alma, na glória celeste". A celebração, contudo, já existia muito antes, como ressalta Medeiros. "A festa, em si, foi instituída tardiamente, no século VII, pelo Papa Sérgio I. Mas já era celebrada no Oriente, por monges da Palestina por volta do século V. É uma das mais antigas festas marianas, sem dúvida. A Igreja Católica só declarou a Assunção de Maria um dogma em 1950, com o Papa Pio XII", pontua ela. "Há uma referência no Lecionário Gregoriano do século 8, em que a festa já era chamada de Assunção da Bem-Aventurada Maria", diz Maerki. Chevitarese ressalta que essa "ideia da assunção de Maria de corpo e alma para o céu não se apoia em nenhum autor dos quatro primeiros séculos". "Surgiu já no período medieval", diz ele, situando "resquícios" da história entre os século 5 e 10. O que é obviamente inegável, por razões puramente biológicas, é que Maria tenha morrido. Sobre a longevidade dela, contudo, só há hipóteses. "Há indícios de que Maria, após a formação da primeira comunidade cristã, que ocorreu logo após a morte de Jesus, teria passado seus últimos dias em Éfeso, atual Turquia, onde foi assistida por João, discípulo de Jesus e autor de um dos quatro evangelhos", diz Medeiros. "Outra tradição sustenta que ela, embora tivesse vivido em Éfeso, teria voltado para Jerusalém, onde morreu com cerca de 50 anos de idade", acrescenta ela. "Sobre o Monte Sião, os arqueólogos encontraram alguns epígrafes de peregrinos que passavam pelo local para venerar um túmulo antigo, datado do século 1, que foi atribuído a Maria, e sobre o qual foi construída uma basílica a ela dedicada." A vaticanista lembra que, neste lugar, ainda de acordo com uma antiga tradição, teria acontecido a "dormição de Maria", episódio narrado em vários manuscritos do século 4. "Mas o documento que sobressaiu entre eles, no qual aparece que Maria morreu 'como qualquer ser humano, mas foi arrebatada, de corpo e alma, gloriosamente aos céus' foi o Dormitio Mariæ, apócrifo atribuído a São João evangelista. É por meio desse escrito que começa a crença na Assunção de Maria, a partir do século 5, mais ou menos", contextualiza ela. Biblicamente, Maria teria testemunhado a crucificação e morte de seu filho Jesus. E teria participado da primeira comunidade cristã, ou seja, integrado aquele grupo de seguidores que iniciaram a propagação do cristianismo. "Tudo incerto", enfatiza Maerki. "Mas alguns estudiosos apontam que ela teria morrido por volta do ano 40, com cerca de 58 anos." "Não temos como inferir com qual idade ela morreu", sentencia Chevitarese. "Não há qualquer projeção que nos permita isso. Os evangelhos associam Maria ao momento da crucificação. Mas eu não arriscaria." O historiador considera que essa narrativa possa ter sido construída de forma a dar um sentido ao papel da mãe de Jesus. "As expectativas de vida de uma mulher eram infinitamente menores, havia muitos riscos naquela época, sobretudo durante os processos de gravidez e parto", frisa ele.
2022-08-15
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62523987
sociedade
A regra 80:20 e outros truques para manter a casa organizada
Você está desesperado por não conseguir manter a casa arrumada? Se sim, este artigo pode ajudar. Clea Shearer e Joanna Teplin são uma dupla especializada em organização conhecida pelo programa Organize-se com The Home Edit, disponível no Netflix, no qual elas entram na casa das pessoas e transformam um quarto bagunçado e lotado em algo bonito e funcional. Além da série de TV, The Home Edit é uma marca de estilo de vida que oferece "serviços completos de organização" em várias cidades dos Estados Unidos e foi adquirida no início deste ano pela empresa Hello Sunshine, da atriz Reese Witherspoon. Shearer e Teplin são as autoras do best-seller The Home Edit Life e criadoras de várias linhas de produtos. Fim do Matérias recomendadas "A edição é uma parte muito importante do nosso sistema", afirma Teplin. "Colocamos esse nome porque trata-se de um passo crucial para o nosso programa." A palavra em inglês "edit", que aparece no nome da atração televisiva, significa "edição" na tradução para o português. "A edição é uma ferramenta muito poderosa e não custa nada." "Primeiro, coloque tudo que você tem à mostra, para que você possa ver. Em seguida, faça uma contagem e um inventário de tudo o que você usa, precisa e ama, e se livre das coisas que não se enquadram em uma dessas três categorias." "Cada um tem seu próprio método", diz Teplin. "Mas o nosso é sobre simplicidade e a criação de sistemas duráveis, de fácil manutenção e não muito específicos." "Não se trata apenas de você. Não torne o sistema tão meticuloso que outras pessoas não consigam arrumar as coisas. Se os sistemas são simples, todos conseguem segui-lo." "Os sistemas ficam melhores quando são simplificados. Um exemplo é quando colocamos uma cesta ao lado da porta para colocar os sapatos", diz Shearer. "Eles precisam estar perfeitamente alinhados? Não. Se é importante para você que seja assim, o problema é seu e cabe a você cuidar disso." "Todos deveriam poder participar de um sistema. Se você achar que ninguém mais adere a ele, provavelmente é porque trata-se de algo muito complicado." "Utilize caixas e contêineres para organizar as coisas", sugere Teplin. "A regra absoluta aqui é rotular. Rotule tudo, especialmente as coisas que você não pode ver dentro de uma caixa. Use recipientes transparentes para as coisas que você precisa ver." "É importante que você armazene os suprimentos e os objetos de uma maneira que faça sentido para o espaço, os itens e a rotina diária." "Nas gavetas, misture divisórias pequenas e grandes para se adequar às medidas exatas e ao que você deseja guardar nelas." "Isso geralmente não funciona desde o início, então sinta-se à vontade para mover o conteúdo até ficar satisfeito com o resultado final." "Nossa regra geral com contêineres é que, se você deseja manter uma casa organizada a longo prazo, nunca deve ter um espaço mais de 80% lotado", diz Clea. "Você sempre deve deixar 20% vazio." "É como quando você come: você não quer se encher 100% porque vai se sentir desconfortável e não vai sobrar espaço para a sobremesa. Nesse caso, deixar um espaço livre na casa vai fazer bem." "Ter um espaço que não esteja mais de 80% cheio dá uma folga. E se algo novo entrar no armário, na despensa ou na cozinha, haverá um lugar para colocá-lo sem ter que remover as coisas imediatamente." "Torne a arrumação funcional e depois deixe as coisas bonitas", diz Shearer. "Exiba qualquer item que faça você se sentir mais feliz e mais criativo. Pode ser qualquer coisa, desde fotos de família, um papel de parede divertido ou livros organizados nas cores do arco-íris." "Antes de mais nada, ele [o arco-íris] é lindo, ninguém pode contestar isso", diz Joanna. "Esse é um belo sistema que usamos especialmente para as crianças, porque permite que elas saibam onde colocar as coisas. Se ainda não aprenderam a ler, elas sabem que livros laranja sempre podem ser encontrados numa certa ordem." "É um sistema que realmente une forma e função." "Pense realmente em quem está usando o sistema", orienta Teplin. "A ideia é remover o máximo de barreiras possível desde o início, então não coloque itens no alto, de modo que você sempre precise de uma escada para alcançá-los." "Por outro lado, pense em tentar remover os obstáculos pelo caminho, para que todos na casa possam mantê-la arrumada." "Dispositivos eletrônicos como impressoras e laptops vêm com muitos fios conectados", diz Shearer. "Usar protetores e organizadores para os cabos ajuda a manter tudo menos confuso." "Aconselhamos também adicionar etiquetas em todos os fios, o que impedirá que você desligue o Wi-Fi quando apenas pretendia desconectar um outro dispositivo." "Vá devagar e comece pequeno", aponta Shearer. "Não comece com um grande projeto. Entenda primeiro todas as etapas, o processo de edição, como categorizar e como manter as coisas funcionando ao longo do tempo." "Não há muitos atalhos quando se trata de organizar, e eu gostaria que houvesse. Afinal, seria muito mais fácil se pudéssemos pular para a parte boa. ​​Mas lembre-se, trata-se de um processo, e você realmente não pode pular nenhuma etapa dele", conclui a especialista.
2022-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62540473
sociedade
Quem foi Vitrúvio, genial arquiteto militar que inspirou obra icônica de Leonardo da Vinci
Há pouco mais de 2 mil anos, um soldado e engenheiro aposentado escreveu o livro que provavelmente é o mais influente da história da arquitetura. Trata-se do arquiteto romano Vitrúvio. Sua principal obra De Architectura — também conhecida como Os Dez Livros da Arquitetura — é o tratado mais antigo sobre essa disciplina de que se tem notícia. A obra inclui não apenas conselhos práticos para projetar e construir templos e residências, educar e a capacitar arquitetos, mas também um incrível conjunto de informações sobre a tecnologia e engenharia romana, desde máquinas de guerra até aquedutos e relógios de água. As teorias de Vitrúvio influenciaram o design e a construção ao longo dos séculos. Seus conceitos de beleza e harmonia foram particularmente seguidos pelos grandes arquitetos do Renascimento. As estruturas do arquiteto italiano Andrea Palladio, as residências, basílicas e pontes de Veneza, outros edifícios de épocas posteriores em estilo palladiano, como o Salão de Banquetes do Palácio de Whitehall, em Londres, e a Casa Branca, nos Estados Unidos — todos eles devem sua inspiração a Vitrúvio. Fim do Matérias recomendadas Suas discussões sobre a relação entre as proporções perfeitas da arquitetura e do corpo humano inspiraram um dos desenhos mais famosos do Renascimento: o Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci. Suas ideias permaneceram fundamentais para a arquitetura até o século 18 — e, segundo alguns, até muito tempo depois. A maior parte do que se conhece sobre Vitrúvio é o que se pôde extrair do seu livro e de menções feitas por escritores que viveram pouco depois dele. Estima-se que ele tenha nascido entre 80 e 70 a.C., na Roma Antiga. Seu nome completo era Marco Vitrúvio Polião, mas não existe certeza sobre seu primeiro e último nome. Por isso, foi simplificado como Vitrúvio. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele viveu em um período de turbulência política. Depois de décadas de guerras civis, Roma passava por uma transição, deixando de ser uma república para se tornar o que hoje é chamado de Império Romano. Novos grupos sociais estavam surgindo e alcançando posições de poder, às quais antes não tinham acesso. Vitrúvio combateu na Gália sob o comando de Júlio César e presenciou em seguida a ascensão do imperador César Augusto — filho adotivo do primeiro —, a quem dedicou seu livro De Architectura. Em sua obra, ele deixa subentender que foi protegido da irmã de César Augusto, Otávia, e que, além de servir no exército, construiu uma basílica em Fano, na costa do mar Adriático. Existem também evidências de que ele foi ativo em setores da engenharia e que provavelmente inventou um calibrador de canos para aquedutos. O novo imperador César Augusto estava interessado não apenas na conquista do mundo conhecido, mas também em construções que ampliassem a majestade do império, segundo Alice König, professora de estudos latinos e clássicos da Universidade St. Andrews, na Escócia. "Apesar da comoção e da guerra civil, o império romano vem se expandindo. Há muita riqueza entrando em Roma, além de novas influências culturais. Muitos romanos ricos estão construindo residências no litoral e existe grande aumento do interesse pela arquitetura", explica König. "Vitrúvio imaginou que seria o momento de publicar seu livro, como forma de auxiliar César Augusto nas suas aspirações de grandeza e construção", acrescenta a professora. De Architectura é composto de 10 livros. Seu objetivo principal é estabelecer o que faz um arquiteto, que espécie de educação é necessária, os tipos de edifícios e estruturas que competem a ele projetar, os princípios e ideias sobre a construção e a importância de imitar a natureza como ponto de partida fundamental para o design. Vitrúvio defende que a arquitetura está no mesmo nível das outras profissões consideradas nobres, como a oratória e o direito. Seus primeiros livros oferecem uma longa relação de características e disciplinas que o arquiteto deve dominar. Estas disciplinas incluem a matemática, a geometria, a música (para conhecer a acústica) e a filosofia (para ser justo e entender a natureza). E o arquiteto também deve conhecer história — em resumo, deve ter cultura. "Vitrúvio afirma que o arquiteto que tenha subido todos os degraus desses estudos pode alcançar o templo da arquitetura. Ele deixa implícito que a arquitetura está acima de todas essas outras disciplinas", explica Alice König. Um dos seus conceitos mais influentes é a chamada Tríade Vitruviana — a noção de estabilidade, utilidade e beleza (firmitatis, utilitatis, venustatis) como as três qualidades de uma estrutura. Elas se unem para criar algo belo, coerente, em harmonia com a natureza. Não se pode ter uma sem a outra. Esta noção ficou famosa ao longo da história como base da boa arquitetura, equilibrando a necessidade com a estética para criar algo que seja belo. Para Vitrúvio, a beleza reside na apreciação do mundo natural. - A educação, qualificação e princípios do arquiteto: incluem o planejamento urbanístico e a arquitetura em geral. - Materiais de construção: suas origens, funcionalidade e detalhes. - Matemática e proporções: fundamentos da arquitetura clássica. - Estilos arquitetônicos: dórico, jônico e coríntio. - Edifícios públicos: incluem teatros e edifícios administrativos, além de conselhos sobre a acústica. - Residências: sua localização, segundo o clima e orientação das moradias conforme suas funções. - Ornamentação, calçadas e murais: incluindo a origem e o uso das cores. - Fontes de água e aquedutos. - Ciências que influenciam a arquitetura: astronomia, geometria, matemática e filosofia. - Engenharia e construção: máquinas, dispositivos e armas de guerra. Estes mesmos princípios são aplicados tanto aos templos e outros edifícios públicos quanto às residências particulares, especialmente às casas dos mais ricos. Os livros 6 e 7 tratam da decoração interior, da pintura das paredes e do reboco. Vitrúvio ensina que cada cômodo deve atender ao seu propósito e ser perfeitamente orientado. As bibliotecas devem ser voltadas para o norte, para que os livros não fiquem úmidos. Os refeitórios, para o oeste, para aproveitar o sol poente. As casas devem ser posicionadas de forma a ajustar-se ao clima do local onde estão sendo construídas. Os três últimos livros eram os que mais interessavam a Vitrúvio — particularmente o último, sobre as armas de guerra. O arquiteto tinha muito interesse na mecânica e nos detalhes das armas. Mas o leitor atual tem muita dificuldade de entender, uma vez que as ilustrações foram perdidas e o uso do idioma não é muito claro e preciso. "Acredito que ele estivesse tentando criar uma nova linguagem", avalia Serafina Cuomo, professora de história da Universidade de Durham, na Inglaterra. "Nada disso existia antes em latim, e grande parte da terminologia técnica que ele tentou empregar não existia." Cuomo afirma que, às vezes, Vitrúvio tenta transliterar termos gregos ou inventá-los em latim. "É um esforço enorme para criar uma nova linguagem técnica para a arquitetura." Não existem referências de que ele tenha sido lido na sua época, mas Plínio, o Velho, na sua grande enciclopédia do mundo natural do ano 17 d.C., menciona Vitrúvio como fonte em três ocasiões, relacionadas a madeiras, pigmentos e pedras. E, 30 anos depois, Frontino menciona o arquiteto como autoridade no tamanho ou calibre dos encanamentos. Já nos séculos 3 e 4, há referências esparsas que começam a mencioná-lo como a autoridade mais importante da arquitetura na Antiguidade, incluindo uma carta do século 5, escrita pelo poeta e escritor galo-romano Sidônio Apolinário. "Sua influência na Idade Média foi esporádica", diz Cuomo, certamente porque as descrições de templos pagãos feitas por Vitrúvio não eram compatíveis com aquela era do Cristianismo. "Mas o seu verdadeiro apogeu foi o Renascimento." Tudo começou com a descoberta, em um monastério na Suíça, de uma cópia do livro de Vitrúvio feita no século 9°. A cópia foi levada a Florença, onde ocorria uma importante conferência com a participação de figuras importantes, como Filippo Brunelleschi (responsável pela cúpula da catedral florentina) e, especialmente, o erudito genovês Leon Battista Alberti, fascinado pela arte e pela arquitetura. "Quando os arquitetos renascentistas o conhecem, Andrea Palladio em particular, suas igrejas cristãs começaram a se parecer com templos gregos", afirma Robert Tavernor, professor emérito de arquitetura e urbanismo da London School of Economics (LSE), no Reino Unido. "O Renascimento foi um resgate do mundo clássico e pretendia se afastar da barbárie da arquitetura gótica", acrescenta Tavernor. "Palladio fala, em um tratado, sobre a necessidade de expulsar os godos da Itália." Mas as ideias de simetria e proporcionalidade foram as que influenciaram uma das imagens mais conhecidas do Renascimento: o Homem Vitruviano, de Leonardo da Vinci. "Vitrúvio acreditava que o corpo humano era um microcosmos da harmonia universal, uma analogia de tudo o que era perfeito na natureza", explica Tavernor. Ele tomou as ideias de Pitágoras e Platão sobre os números perfeitos, que podem ser vistos nas proporções da forma humana. O comprimento dos pés representa um sexto da altura do homem ideal e temos 10 dedos. As teorias pitagóricas e platônicas afirmam que o seis é um número perfeito, porque é a soma de um, mais dois, mais três. E o 10 também é perfeito, pois é a soma de dois, mais três, mais quatro. Tudo isso pode ser visto na forma humana. "Ele também afirma que a geometria provém da forma humana. Por isso, a figura traçada por Leonardo produz a noção do homo quadratus — a figura com os braços e pernas estendidos e inscritos dentro de um círculo e um quadrado. Rodeado pela geometria", explica Tavernor. É um exemplo das proporções humanas, em que um dedo está para a palma da mão como esta, para o cotovelo. "A ideia é que essas figuras perfeitas são a base da arquitetura perfeita", destaca o professor. A influência de Vitrúvio prosseguiu ao longo dos séculos. Todos os tratados de arquitetura até meados do século 18, sem exceção, fazem referência a Vitrúvio. E nos anos 1950, o arquiteto, projetista e urbanista franco-suíço Le Corbusier projetou o "Modulor", um sistema de medidas baseado nas proporções humanas, inspirado no conceito vitruviano — aparentemente, uma indicação de que as ideias do antigo arquiteto romano permanecem sendo um modelo para alguns arquitetos modernistas.
2022-08-14
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sociedade
Imigração para o Canadá: crise, violência e facilidade de residência fazem fluxo de brasileiros explodir
No Brasil, a pernambucana Paula Affonso, de 39 anos, era advogada com carreira estável no serviço público federal. No Canadá, precisou bater ponto como operária de fábrica. Seu marido, José Arlan, de 43 anos, também advogado, trocou os ternos pelo macacão de peão de obra. Após quatro anos no exterior, eles têm hoje uma casa com piscina, dois carros e nenhum arrependimento. O casal e os três filhos estão entre os 11.425 brasileiros que se tornaram residentes permanentes do país em 2021, um aumento de 116% em relação aos 5.290 de 2019, último ano antes da pandemia. O aumento fez com que o Brasil se tornasse o sétimo país que mais exportou residentes permanentes para o Canadá no ano passado. Segundo dados do órgão de imigração canadense, o Immigration, Refugees and Citizenship Canada (IRCC), em 2020 o Brasil já começava a se destacar, mesmo diante do recuo generalizado na imigração causado pela pandemia. Fim do Matérias recomendadas Naquele ano, os brasileiros apareceram pela primeira vez na lista das dez nacionalidades que mais imigraram para o Canadá, na 9ª posição, com 3.695 residências permanentes concedidas. Neste ano, até 17 de julho, já são 4.110. "A crise econômica e a violência no Brasil são elementos centrais que motivam a saída do país. Soma-se a esse contexto a polarização política, que faz com que as pessoas tenham cada vez menos confiança no futuro do Brasil", aponta Leonardo Paz, analista de Inteligência Qualitativa no Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getulio Vargas (FGV). Mas o caminho é árduo para obter a permissão para viver de forma definitiva no Canadá. "Eu ficava oito horas em pé por turno, colocando pepperoni em pizzas em uma fábrica e começava de madrugada. Depois emendava mais quatro horas como assistente de marketing em outra empresa", lembra Paula. Ela também foi lavadora de pratos em uma cafeteria e balconista de loja de lingerie, além de assistente administrativa e jurídica, funções que acumulava com a de estudante de Marketing no Fanshawe College, em London, cidade na Província de Ontário. Fazer um curso de nível superior no Canadá, como Paula, foi o caminho escolhido por 43,5% brasileiros que se tornaram residentes permanentes no país em 2021, segundo o IRCC. Isso porque, além de preparar o estudante para o mercado de trabalho local, um diploma canadense conta pontos no Express Entry, sistema online do governo que avalia os candidatos a imigrantes. A pontuação leva em conta fatores como idade, nível de inglês e francês, formação acadêmica e trajetória profissional para escolher quem receberá a residência permanente. "Cada vez mais, o Canadá prioriza quem estudou e trabalhou no país. Na visão do governo, essas pessoas já estão inseridas na cultura local, suprindo a necessidade de mão de obra", afirma Camilla Lopes, diretora da agência de intercâmbio educacional Hi Bonjour, que levou mais de 5 mil brasileiros para o Canadá desde 2013. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para atrair estudantes internacionais, o Canadá concede permissão de trabalho em meio período durante os estudos. Além disso, o cônjuge pode trabalhar em período integral, e os filhos têm acesso à escola pública gratuita. Os benefícios permitem que as famílias consigam ter renda em dólares para cobrir as despesas do dia-a-dia. Ao concluir o curso, o estudante tem direito ao Post-Graduation Work Permit (PGWP), permissão para trabalhar em tempo integral no Canadá por até mais três anos. "É geralmente neste período que a residência permanente é conquistada", ressalta Lopes. Muitos imigrantes, porém, desistem e voltam para o Brasil. Os motivos incluem não aguentar a rotina pesada ou ver as economias em reais acabarem. "Nunca vivi como turista. Nunca torrei dinheiro. Conheço gente que quebrou e voltou. Quem se dedica na fase inicial é recompensado depois", conta Paula, acrescentando que, antes da residência permanente, o marido cogitou desistir algumas vezes. "No inverno, só com os olhos de fora, o frio na obra é um desespero. No verão de 40 graus, ele já chegou em casa desidratado", diz. Porém, motivado pela alta remuneração na construção civil, Arlan segue firme. "Este tipo de emprego, assim como os de eletricista, marceneiro e operador de máquina, não é malvisto aqui como é no Brasil. Não é preciso ter títulos para ganhar muito bem e ser respeitado", observa a pernambucana. Paula se formou na faculdade em 2020, dois anos após chegar ao Canadá. "A vida é outra depois da formatura, quando o estudante também pode trabalhar em período integral", afirma. Atualmente, ela é consultora educacional para interessados em iniciar a jornada no Canadá com visto de estudante. Além disso, é empresária no ramo de aluguel de imóveis e profissionalizou sua página no Instagram (@paulanocanada), onde dá orientações sobre vida no país para cerca de 25 mil seguidores. "Nunca imaginei que iria empreender no exterior, mas aqui isso foi possível", diz. Imigrar através dos estudos exige investimento financeiro. Um curso de dois anos em uma faculdade pode chegar a cerca de R$ 150 mil, fora as despesas com documentação, passagens aéreas, aluguel de moradia, mobília e roupas de inverno, entre outras. "Nossa carreira no Brasil nos possibilitou ter uma reserva financeira para investir nesse sonho. Não temos uma vida de luxo, mas temos uma vida muito melhor que a que tínhamos lá. Consigo pagar por um carro que jamais teria, conseguimos viajar no final do ano, ver a família no Brasil..." A maior recompensa pelo esforço, segundo Paula, é ver os filhos completamente adaptados ao país e com um futuro cheio de oportunidades. Os gêmeos Jabes e Carolina, de 18 anos, chegaram no Canadá com 14, completaram o ensino médio e foram aceitos em universidades. Ele cursa Ciências Políticas na Universidade de Toronto, e ela, Medicina na Western University, em London. O caçula Davi chegou no país com 5 anos sem falar uma palavra sequer em inglês. Aos 8, faz sucesso no Instagram da mãe dando dicas sobre vocabulário e pronúncia correta no idioma. "Saber que, assim como eu, meus filhos têm oportunidade de crescimento profissional e pessoal, além de ver crianças como o Davi brincando na rua, sem medo de violência, é algo que não tem preço", conclui Paula. Segundo a consultora de imigração Juliana Klapouch, não só famílias que desejam criar os filhos em um local seguro buscam o país. "Hoje, vejo também jovens talentos que não estão tendo oportunidades profissionais no Brasil e querem aproveitar as que são oferecidas por um país de primeiro mundo", constata a sócia da Klaps Immigration Consulting. Foi o caso de Giovanna Barino, de 35 anos, que é professora de inglês, e do marido, Vitor Rigoni, de 34 anos, que trabalha como desenvolvedor de software. Eles chegaram ao Canadá em junho de 2017 já como residentes permanentes. No mês passado, após cinco anos no país, deram um passo além: conquistaram a cidadania, com direito a voto e passaporte canadense. A decisão de sair do Brasil foi tomada em 2016 pelo casal, que vivia em Vitória, no Espírito Santo. "Nossa vida não ia para a frente. Tínhamos estudado bastante, eu cheguei a fazer um mestrado, e começamos a notar que, sem um 'QI', sem pessoas que 'adiantassem' a nossa vida, estaríamos fadados a ter o mesmo destino dos nossos pais: trabalhar muito e conquistar pouco", diz Giovanna. O casal não tinha recursos para pagar por estudos no exterior, mas tinha o perfil ideal para imigrar direto: menos de 30 anos de idade, alto grau de escolaridade e excelente nível de inglês. "Escolhemos o Canadá porque nos encaixávamos, porque era o país que nos dava oportunidade de ir direto do Brasil sem medo de precisar voltar", acrescenta Giovanna. Ao se fixarem em Vancouver, na Província de British Columbia, viram sua vida profissional decolar. Em paralelo, criaram o blog Casal Nerd no Canadá, em que contavam detalhes sobre seu processo de imigração. Vitor trabalhou em dois negócios locais até que, há um ano e meio, foi contratado pela multinacional Shopify, a maior empresa de tecnologia do Canadá e uma das maiores plataformas de comércio eletrônico do mundo. "Logo de cara, mesmo no primeiro emprego, quando ainda ganhava pouco em relação aos canadenses, minha renda já era muito superior a qualquer renda que já tive no Brasil", afirma. Giovanna, por sua vez, deu aulas de inglês para estrangeiros em cursos de idiomas e em uma ONG. "Mas o blog cresceu, e muita gente interessada em imigrar como nós pedia para ter aulas com ela", conta Vitor. A dupla abriu, então, a empresa Casal Nerd no Canadá, especializada em cursos de inglês, à qual Giovanna se dedica integralmente. Muito conteúdo gratuito é oferecido também no Instagram para mais de 47 mil seguidores. Para atrair cada vez mais estrangeiros, o país oferece cerca de 70 modalidades de imigração voltadas para diferentes perfis. "O Canadá é uma sociedade multicultural e que entende a importância dos imigrantes para a prosperidade do país", afirma Kaplouch. Ela explica que, além dos prLogramas federais, há os das Províncias, que selecionam candidatos de acordo com a necessidade local de mão de obra. Em fevereiro, o ministro de Imigração, Refugiados e Cidadania do Canadá, Sean Fraser, apresentou um novo plano com a meta de receber 1,2 milhão de pessoas até 2023, 20% a mais do que o objetivo para 2020. Segundo dados de 2020 do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, os Estados Unidos ainda são o destino principal de brasileiros que vão morar fora, com 1,77 milhão de pessoas com green card. O Canadá aparece em nono entre as maiores comunidades brasileiras no exterior, com 121 mil residentes permanentes, mas a tendência de crescimento chama atenção. "O Canadá facilita a imigração, ao contrário dos Estados Unidos. Durante o período do governo Trump, houve um endurecimento muito forte das políticas para imigrantes. E o governo Biden, diferentemente do que se imaginava, não desarticulou essas políticas; tentou limitar só um pouco as mais violentas, como a de separar pais e filhos em centros de detenção de imigrantes", explica Paz. A saudade é, em muitos casos, a maior dificuldade enfrentada por brasileiros no Canadá. Supera até mesmo as temperaturas congelantes, a comida com tempero diferente, a dificuldade no idioma e o dinheiro que desaparece na conversão de reais para dólares. "Passar o Natal longe da família foi uma das coisas que mais me afetou no início. A gente aqui não tinha família e amigos... Nos primeiros seis meses, nossa rotina era só trabalhar, comer e dormir, sem qualquer vida social", lembra Vitor. Para Paula, os domingos são até hoje os dias mais difíceis. "Era o dia em que eu ia almoçar com meu pai, comia o cozido da minha mãe, ria com minhas irmãs, abraçava meus amigos", diz. Ela conta que teve uma crise de choro quando, após três meses de Canadá, ouviu uma música de Ivete Sangalo no celular enquanto limpava a casa. "A saudade é o preço que o imigrante paga. E não é barato."
2022-08-14
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sociedade
O que causa mais danos, inflação ou recessão?
É preciso apagar o fogo antes que ele fique fora de controle. Esse parece ser o lema dos países atingidos pela gigantesca inflação que assola o mundo — e que recentemente bateu recordes de décadas. A Alemanha está com o nível mais alto de inflação em quase meio século — e lida com uma crise energética derivada da guerra na Ucrânia. Os Estados Unidos e o Reino Unido alcançaram o aumento de preços mais elevado dos últimos 40 anos. A América Latina, por sua vez, também está sob pressão devido à escalada do custo de vida. No Brasil, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), considerado a inflação oficial do país, teve queda de 0,68% em julho, após ter registrado alta 0,67% em junho. Com isso, o país registrou uma deflação - inflação negativa -, a primeira depois de 25 meses seguidos de alta de preços. No ano, porém, a inflação acumulada é de 4,77%. No acumulado nos últimos 12 meses a taxa desacelerou para 10,07%, contra os 11,89% registrados nos 12 meses imediatamente anteriores. Fim do Matérias recomendadas Ou seja: os "bombeiros" da economia estão correndo para conter esse fogo antes que ele se torne incontrolável. Os especialistas encarregados pela política fiscal e monetária dos países tentam buscar uma solução, mas não podem se descuidar de outra fonte de perigo: a recessão. Mas o que a inflação alta tem a ver com a recessão econômica? Quando a inflação é desencadeada, os bancos centrais aumentam as taxas de juros (o custo do crédito) para desencorajar a compra de bens ou serviços. É uma política que busca reduzir o consumo, com a esperança de que os preços caiam. Com esse mecanismo, a inflação fica mais controlada, mas, ao mesmo tempo, o crescimento econômico é desacelerado. Se a desaceleração for muito grande, porém, a economia paralisa e as chances de o país entrar em recessão aumentam. Diante desse dilema, as autoridades têm que trabalhar numa verdadeira corda bamba e se perguntar a todo momento: até quando é possível aumentar os juros sem sufocar demais a economia? Esse equilíbrio precário entre inflação e recessão é o que faz os economistas tentarem apagar um incêndio sem jogar mais combustível no outro. Daí vem a pergunta: a inflação é pior do que a recessão econômica? "Não é tanto o que é pior, mas o que é a primeira coisa a ser enfrentada. Acredito que um país que quer manter a estabilidade macroeconômica não pode arcar com uma inflação alta", argumenta Juan Carlos Martínez, professor de economia na IE Business School, na Espanha. "Uma recessão é um mal menor do que uma inflação persistente na economia", avalia o especialista, numa entrevista à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC para a América Latina. Benjamin Gedan, vice-diretor do Programa Latino-Americano do Wilson Center e professor da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, também defende que a redução do custo de vida é uma prioridade. "As duas coisas são ruins, mas a inflação é mais difícil de superar em muitos casos", aponta. A inflação alta crônica, acrescenta, impõe muitos custos à sociedade — o que não está relacionado apenas à crise econômica. "Isso também cria tensões sociais, pois os trabalhadores exigem aumentos salariais recorrentes, os proprietários impõem aumentos de aluguel e os comerciantes decidem aplicar repetidas elevações de preços", exemplifica Gedan. José Luis de la Cruz, diretor do Instituto de Desenvolvimento Industrial e Crescimento Econômico (IDIC) do México, entende que o controle da inflação pode levar muitos anos, enquanto as recessões, pelo menos nos últimos anos, têm sido superadas com mais rapidez. "Neste momento, é fundamental conter a inflação porque as experiências dos últimos 50 anos nos mostram que uma espiral inflacionária acaba por desencadear uma recessão", lembra o economista. "Você pode enfrentar uma recessão sem que isso implique em inflação, mas, no outro caso, a inflação acaba levando a uma crise." Os Estados Unidos, por exemplo, "estão pagando o preço de um erro", avalia de la Cruz, porque as autoridades deixaram passar muito tempo antes de aumentar os juros para controlar o consumo e o investimento. Dessa forma, a demanda permaneceu alta e os preços continuaram subindo, sem eliminar os incentivos para continuar gastando, analisa o especialista. Assim como em outras partes do mundo, a América Latina também sofre com a onda inflacionária. Em países como o Chile, a inflação atingiu a marca histórica de 13,1% (a maior em quase três décadas), seguida por Brasil e Colômbia, onde essa taxa supera os dois dígitos. Países como Peru e México, onde a espiral inflacionária é um pouco menor, também sofreram as consequências de preços elevados, que estão deixando marcas profundas nos setores mais vulneráveis da sociedade. A Argentina, que apresenta um problema crônico de inflação, tem uma ferida aberta com um aumento de 64% no custo de vida anual. Diante desse cenário, os bancos centrais da região têm aplicado aumentos históricos nas taxas de juros para tentar aliviar a pressão (ou diminuir a força do fogo). Em tempos econômicos bons, muitos governos costumavam estabelecer uma meta de inflação na faixa de 2% a 4%. Porém, com o custo do crédito em disparada, essas metas foram deixadas de lado, pelo menos por enquanto. O Brasil, por exemplo, está com taxas de juros de 13,7%, enquanto no Chile o custo dos empréstimos subiu para um máximo histórico de 9,7%. Restam poucas opções para as pessoas que aspiravam comprar uma casa com empréstimo bancário, ou para os empreendedores que planejavam renovar equipamentos, expandir as operações ou iniciar novos projetos de investimento. Claramente, o tempo do "dinheiro barato", ou seja, dos empréstimos mais acessíveis, ficou no passado. O aumento do custo do crédito tem sido tão rápido e profundo que os economistas esperam ver os primeiros resultados disso em breve. De fato, em países como os Estados Unidos e o Brasil, a inflação deu uma trégua e diminuiu ligeiramente, aumentando as expectativas de que os preços poderiam ter atingindo o patamar máximo. "O pior de tudo é que a inflação tem o efeito de um imposto sobre os pobres, que têm pouca poupança e geralmente trabalham no setor informal, com baixa capacidade de proteger o poder de compra", explica Gedan. Dada a pobreza generalizada na América Latina e o gigantesco setor informal, os impactos da inflação são particularmente graves na região. Nesse sentido, as autoridades não hesitaram em aumentar as taxas de juros, especialmente devido aos episódios de escalada de preços na América Latina nas últimas décadas. "Dados os traumas recentes ​​da região com a hiperinflação e o desejo de preservar a credibilidade conquistada com muito esforço dos bancos centrais, não é surpreendente ver uma ação rápida em muitos países para conter os aumentos de preços", diz o especialista. Embora a inflação e a recessão sejam duas ameaças econômicas, nos Estados Unidos o debate se concentrou em quanto e com que velocidade o Federal Reserve (o equivalente ao banco central em outros países) deve continuar a aumentar as taxas para impedir a escalada dos preços. Criticado por não ter agido antes, o órgão embarcou em uma série de aumentos de juros neste ano. E como esses aumentos freiam a economia, a pergunta que muitos estão fazendo é se o país entrará ou não em recessão. Os EUA já passam pelo que se conhece como "recessão técnica", o equivalente a dois trimestres consecutivos de contração econômica. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas nos EUA, esses números negativos não representam uma verdadeira recessão, de acordo com os padrões usados pelo país. Quem define esse estágio econômico por lá é uma organização independente chamada National Bureau of Economic Research (NBER). A instituição conta com a participação dos principais economistas, que se reúnem regularmente e analisam todas as variáveis ​​que podem afetar um processo de recessão. A definição que eles usam está longe de ser uma fórmula matemática: "[A recessão é] Um declínio significativo na atividade econômica que se espalha por toda a economia e dura mais do que alguns meses." A abordagem do comitê de economistas é que, embora cada um de três critérios (profundidade, espalhamento e duração) deva ser contemplado individualmente até certo ponto, as condições extremas relacionadas a um critério podem compensar parcialmente as indicações mais fracas dos outros. Justamente por não ser uma fórmula infalível, há muito debate nos Estados Unidos sobre se o país está realmente caminhando para uma recessão ou se não chegará a esse estágio. As mais altas autoridades do país (responsáveis ​​pela política fiscal e monetária) têm se mostrado otimistas, argumentando que o mercado de trabalho continua forte. Em julho, a inflação caiu ligeiramente (de 9,1% para 8,5%), dando um certo alívio nas previsões que consideravam inevitável uma recessão no país.
2022-08-13
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sociedade
Por que as relações abertas estão cada vez mais comuns
Dedeker Winston tem relacionamentos não-monogâmicos há mais de uma década, mas nunca havia visto tanto interesse pelos relacionamentos abertos quanto agora. Este assunto é tradicionalmente um grande tabu em muitos lugares, incluindo nos Estados Unidos, onde ela mora. Em 2014, quando lançou seu podcast Multiamory, ela e seus coprodutores precisaram decidir se usariam seus nomes reais no programa sobre relacionamentos não-monogâmicos. "Naquela época, havia apenas um ou dois outros podcasts que realmente abordavam este assunto", afirma Winston, que é consultora de relacionamentos. "E as pessoas que produziam e apresentavam aqueles podcasts adotavam pseudônimos." Mas as coisas mudaram. Por volta de 2016, Winston notou uma "explosão de interesse sobre relacionamentos não monogâmicos". Isso foi cerca de um ano depois de ela ter começado a trabalhar como consultora especializada neste tipo de relacionamento. "Foi quando percebi a maior mudança. De repente, muitas pessoas online estavam dispostas a falar sobre relacionamentos não-monogâmicos", ela conta, "e expressar interesse nesse tipo de coisa." Fim do Matérias recomendadas Sarah Levinson, psicóloga especializada em sexualidade e dinâmica dos relacionamentos da Creative Relating Psychology Psychotherapy, de Nova York, nos Estados Unidos, também observou aumento do interesse por relacionamentos abertos na última década. "Era algo muito mais desconhecido 10 anos atrás. Agora é incrivelmente comum", afirma ela. Esses relatos e alguns dados demonstram o crescente interesse pelos relacionamentos consensualmente não-monogâmicos, incluindo os relacionamentos abertos. Especialistas afirmam que muitos fatores sociais e culturais levaram a uma maior adoção dos estilos de relacionamento não tradicionais e que a pandemia também pode estar influenciando esse processo. Mas, embora o interesse pelos relacionamentos abertos possa estar aumentando, os especialistas estão divididos sobre qual pode ser a sua real abrangência — pelo menos, por enquanto. Para Levinson, existem muitas formas de relacionamentos não-monogâmicos. "Pode ser desde viver com diversos parceiros e compartilhar despesas até oferecer 'passe livre' para um caso uma vez por ano quando seu companheiro viaja, por exemplo, para um evento profissional em outro Estado." Os relacionamentos abertos são um tipo de relacionamento não-monogâmico, mas muitas pessoas tendem a diferenciá-los de outros tipos, como o poliamor. O poliamor muitas vezes significa ter diversos relacionamentos sérios ao mesmo tempos. Já os relacionamentos abertos são mais frequentemente associados a pessoas que têm um parceiro principal mas podem ter outros relacionamentos mais casuais, principalmente sexuais, com outras pessoas. Em outras palavras, os relacionamentos abertos são menos concentrados nas conexões emocionais com pessoas fora de um relacionamento principal, mas sim nas conexões sexuais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para algumas pessoas, isso significa sair em encontros casuais e ter relações sem compromisso com outras pessoas além dos seus parceiros principais. Para outras, o relacionamento aberto significa apenas "passes livres" ocasionais para ter uma noite ou uma rápida saída sexual. E, ainda para outras pessoas, o acordo parece incluir mais trocas — como ter sexo com outros casais como um casal, mas não sair para encontros separadamente. Winston também inclui entre os relacionamentos abertos os casais que "preferem não saber", nos quais os dois membros de um casal permitem que o outro tenha relações sexuais com outras pessoas — mas eles simplesmente não querem discutir essas experiências entre si. Outros termos, como "monogamish" (algo como "quase monogâmico", em português), que foi popularizado pelo colunista sobre sexo e relacionamentos norte-americano Dan Savage há vários anos, podem ter definição coincidente com algumas dessas três formas de relacionamento aberto. Savage discutiu seu relacionamento quase monogâmico no seu podcast — os parceiros são comprometidos entre si, mas ainda têm sexo sem compromisso com outras pessoas. Pessoas de todos os tipos estão se abrindo para relacionamentos abertos. Levinson conta que, ao longo dos últimos anos, tem visto "muita diversidade" entre as pessoas que fazem parte de relacionamentos abertos nas suas sessões — tanto em termos de classe social quanto em termos de raça, gênero e orientação sexual. Mas ela admite que, como psicóloga trabalhando em Nova York (uma cidade bastante progressista) sua amostragem é diferente daquela que pode ser encontrada em outras partes mais conservadoras dos Estados Unidos. Já entre a base de clientes de Winston (os ouvintes do seu podcast e os visitantes do seu website), muitas das pessoas interessadas ou que participam de relacionamentos abertos tendem a ser relativamente jovens, com 25 a 45 anos de idade. E muitas delas identificam-se como queers, bissexuais e/ou pansexuais. Mas, no seu trabalho, ela já atendeu clientes interessados ou que praticam relacionamentos abertos com idades que variam desde 19 até a casa dos 70 anos de idade. "As pessoas que batem à minha porta cobrem todo o espectro", ela conta. As tendências dos aplicativos de relacionamentos ajudam a destacar o aumento do interesse pelos relacionamentos abertos. De um lado, houve o surgimento de plataformas concentradas especificamente na não-monogamia, incluindo relacionamentos abertos, para atender à crescente curiosidade. Mas até os aplicativos de relacionamentos mais tradicionais, como o OkCupid, viram um pico no interesse em relacionamentos abertos. "Embora a maioria dos participantes do OkCupid busque relacionamentos monogâmicos, a quantidade de usuários buscando relacionamentos não monogâmicos aumentou em 7% em 2021", afirmou à BBC um representante do OkCupid. Dentre mais de um milhão de usuários britânicos do OkCupid que responderam à pergunta "você consideraria ter um relacionamento aberto?", 31% responderam "sim" em 2022, contra 29% em 2021 e 26%, em 2020. Também os dados de 2022 do aplicativo de relacionamentos Hinge demonstraram que um em cada cinco usuários do Hinge "consideraria" tentar um relacionamento aberto, enquanto um em cada 10 já teve esse tipo de relacionamento. A diretora de ciência do relacionamento do Hinge, Logan Ury, afirma que pode ser um efeito da pandemia, já que ela acredita que "foi a oportunidade perfeita para fazer uma pausa e pensar mais no que queremos". Psicólogos e outros profissionais, como Sarah Levinson e Dedeker Winston, também observaram aumento. Winston afirma que grande parte do recente interesse que ela viu nos relacionamentos abertos vem dos millennials, que simplesmente estão "questionando a forma como foram criados" — na maioria dos casos, para acreditar que o casamento monogâmico de longo prazo é o objetivo dos relacionamentos íntimos. Levinson acredita que esta pode ser uma consequência da tendência geral para a abertura da mente. "Como sociedade, estamos todos com a mente mais aberta para todo tipo de identidades menos convencionais... as pessoas estão mais dispostas a questionar as construções sociais de forma geral." E isso também abriu a porta para que as pessoas questionem seu próprios desejos. Quando "você continua escolhendo a monogamia e não está funcionando... você começa a ficar curioso sobre [se] existe outra forma", explica Levinson. E, para quem tiver curiosidade, existem mais recursos do que nunca. Winston acrescenta que, ao lado da "explosão do interesse" por relacionamentos abertos, existe uma "explosão de criadores de conteúdo e pessoas escrevendo sobre isso na imprensa... em aplicativos, em encontros comunitários". Isso significa que as informações sobre relacionamentos não- monogâmicos são amplamente acessíveis - não em "diários pessoais online velhos e empoeirados nos cantos da internet", onde Winston afirma que precisava procurar informações mais de uma década atrás. Apesar de haver mais pessoas adotando acordos não-monogâmicos e maior visibilidade sobre os relacionamentos abertos, a percepção geral ainda é negativa. "As pesquisas, incluindo as de opinião pública, indicam que a postura relativa à não-monogamia consensual, de forma geral, é principalmente negativa, embora pareça haver tendência mais positiva nos últimos anos", segundo Justin Lehmiller, membro de pesquisa do Instituto Kinsey, nos Estados Unidos, e apresentador do podcast Sex and Psychology. Essas atitudes negativas podem não impedir as pessoas de pensar em ter relacionamentos abertos, mas podem impedi-las de adotá-los. Na sua pesquisa sobre fantasias sexuais, por exemplo, Lehmiller concluiu que "a maioria das pessoas já fantasiou ser não-monogâmico de alguma forma, como participando de trocas de casais, abrindo seu relacionamento ou adotando o poliamor". Mas ele acrescenta que "relativamente poucas pessoas estão praticando isso na vida real". Não existem dados pós-pandemia sobre quantas pessoas adotaram esse tipo de relacionamento, mas uma pesquisa canadense de 2019 estimou esse número em cerca de 4% — e um número similar surgiu em um estudo de 2018 nos Estados Unidos. Sarah Levinson acredita que, em parte, isso seja consequência de uma percepção enraizada de que os relacionamentos abertos são geralmente considerados "não saudáveis". Entre seus colegas terapeutas, Levinson observa que muitos ainda consideram a "dupla" ou a "bolha do casal" como sendo "a única forma viável de ter uma conexão segura". Ela sente que essas posturas podem "segregar as pessoas que acham que esta é uma opção viável para elas". Crenças religiosas também podem impedir as pessoas de ingressar em relacionamentos de namoro e/ou sexuais com mais de uma pessoa de cada vez, bem como as normas culturais de certas comunidades. Mesmo assim, Dedeker Winston observa que as pessoas, particularmente millennials e da Geração Z, continuam a afastar-se da ideia de que um parceiro pode atender a todas as suas necessidades (algo que é incentivado pelo conceito tradicionalmente monogâmico do casamento). Ela indica o aumento do número de amigos platônicos que decidem viver e criar filhos juntos e a redução das taxas de casamento, para indicar uma possível mudança social futura na forma em que as pessoas se dedicam aos relacionamentos. "As pessoas estão se abrindo mais para a criação dos relacionamentos que fazem mais sentido para suas vidas", afirma Winston. Por razões similares, Levinson concorda que haverá um aumento contínuo das "estruturas criativas de relacionamento", mas não acredita que elas se tornarão um fenômeno global. Muitas culturas em todo o mundo impõem dificuldades para as pessoas que pretendem abrir seus relacionamentos e o tabu permanece presente. Já o chefe de comunicações globais do OkCupid, Michael Kaye, tem uma opinião diferente. Para ele, "os comportamentos que vemos entre as pessoas que namoram hoje em dia sempre existiram. Mas as pessoas estão ficando mais abertas e transparentes sobre a sua identidade [e] sobre o que elas querem em um relacionamento. Acho que, a cada ano que passa, estamos julgando os outros um pouco menos."
2022-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-62476758
sociedade
'Vendi o caminhão e vim para Portugal': alta do diesel e inflação levam caminhoneiro a sair do país
Aumento no preço do diesel, inflação e consequente queda acentuada do poder de compra. Esses foram os principais motivos que fizeram o caminhoneiro Reinaldo Moretti, de 53 anos, deixar a cidade mineira de Extrema, na divisa com São Paulo, e se mudar para Portugal há dez meses. "Eu tinha um caminhão no Brasil, mas ele estava me fazendo só afundar em dívidas. Mesmo sem gastar dinheiro à toa e sem ter vícios, eu pagava muito caro pelo diesel e para fazer a manutenção do veículo. Pensei que eu precisava me desfazer do caminhão o quanto antes. Caso contrário, não teria dinheiro nem para reformar o motor dele, que custa em torno de R$ 40 mil", diz. Reinaldo não pensou duas vezes antes de trocar de país. "Eu desanimei e me desfiz do caminhão para vir para Portugal. Usei o dinheiro para pagar todas as contas e dívidas. Depois da venda, fui trabalhar como empregado em uma empresa, carregando leite, até conseguir viajar", afirma. O caminhoneiro Reinaldo conta à BBC News Brasil que já tinha morado em Portugal, de 2001 a 2005, e voltou ao Brasil na época por problemas familiares. Fim do Matérias recomendadas Agora, ele voltou para Portugal depois da filha, do genro e da neta. E hoje diz que o Brasil foi um bom lugar para se morar até 2010, quando começou a "dar uma caída". "Naquela época, a economia estava boa e aproveitei para comprar um caminhão. Mas depois foi só afundando (a economia). Como tenho amigos que moram aqui na Espanha, Itália, Holanda e Inglaterra, eles sempre falavam para eu voltar", lembra. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os amigos também usavam a diferença cambial como argumento para que Reinaldo se mudasse para Portugal. O caminhoneiro disse ter sido convencido, mas conta que os documentos que ele usava na primeira passagem pela Europa estão vencidos. Isso faz com que ele ganhe menos porque, sem eles, não tem permissão para sair de Portugal. Ainda assim, ele prefere se arriscar a ficar parado na cidade de Braga, onde mora. Ele conta ter sido multado duas vezes em apenas um mês. A soma das infrações foi de 1.100 euros, o equivalente a R$ 5,8 mil. "Por isso, estou trabalhando no doméstico e me arriscando. Uma das multas que levei foi por não ter o curso obrigatório para caminhoneiros. A outra foi não ter cartão tacógrafo, exigido para que os caminhoneiros registrem as horas trabalhadas", afirma. Hoje, ele disse ter recebido uma proposta para trabalhar na Croácia, para onde deve se mudar. "Eu vou pegar a documentação da Croácia. Vou pegar residência lá. Eu vou fazer um treinamento na empresa, assim como outros dois amigos meus que já estão lá, e depois de um mês, saem os papéis e começo a trabalhar viajando entre países", afirmou. Para Reinaldo, a vida em Portugal é muito melhor quando comparada à que ele tinha no Brasil. "Um casal que trabalha aqui consegue ter uma vida muito melhor. Come-se bem. Mas quem vem sem emprego garantido precisa estar programado. É necessário trazer bastante dinheiro porque o custo de vida é alto. E meu conselho é vir para ficar legalizado porque é chato demais passar por uma situação dessa. Não posso nem fazer uma entrega internacional sob o risco de ser preso." Ele conta que transportar uma carga entre países é muito mais rentável e o valor do frete pode até dobrar. Ele ainda disse que o transporte internacional obedece a leis trabalhistas mais rígidas, como trabalhar apenas 9 horas por dia e folgar no fim de semana. Mas por mais que ele goste de viver em Portugal, Reinaldo diz que sente vontade de voltar para o Brasil por conta da saudade. "A minha esposa está no Brasil. Falta um ano e meio para ela se aposentar e os pais dela também vivem lá. Eu tenho muitos (fatores) que me fazem querer voltar para o Brasil."
2022-08-12
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61388766
sociedade
Como 'a mulher mais rica da Ásia' perdeu metade de sua fortuna em 1 ano
Há anos, a fortuna dela tem sido o centro das manchetes, comentários e cálculos além da China. Yang Huiyan, de apenas 41 anos, não é apenas a mulher com maior fortuna naquele país, mas também a mais rica de toda a Ásia. Desde que herdou um império imobiliário de seu pai há mais de uma década, sua riqueza continuou a crescer. Mas as coisas mudaram em 2022: no ano passado, sofreu um verdadeiro declínio. Segundo cálculos do Bloomberg Billionaires Index, Yang viu seu patrimônio líquido cair mais de 52% no ano passado. Em 2021, a Bloomberg estimou a fortuna da empresária em cerca de US$ 33,9 bilhões (cerca de R$ 173 bilhões), que caiu para cerca de US$ 16,1 bilhões (cerca de R$ 80 bilhões) nas estimativas de julho passado. Fim do Matérias recomendadas Analistas econômicos viram isso não apenas como um sinal sombrio do estado em que se encontra o mercado imobiliário da China, mas também como um grande alerta sobre o futuro da segunda maior economia do mundo. É que o setor imobiliário do país apresentou sérios problemas com a queda dos preços da habitação, a diminuição da demanda de compradores e uma crise de inadimplência que afetou alguns grandes empreendedores imobiliários desde 2020. A situação chegou a tal ponto que até alguns bancos ficaram sem dinheiro, o que causou protestos em algumas cidades do país asiático. E enquanto Yang continua sendo a mulher mais rica da Ásia, sua posição começou a balançar. De acordo com a Bloomberg, ela é seguida pela empresária de fibra química Fan Hongwei, que também possui ativos avaliados em cerca de US$ 16 bilhões. Mas quem é Yang Huiyan e como ela conseguiu uma das maiores fortunas do mundo? Nascida em 1981 em Shuntak, distrito da cidade de Foshan, na província de Cantão, no sul da China, Yang é filha de um dos homens mais ricos do país asiático: Yang Guoqiang. Criada em uma das famílias mais poderosas da China, ela teve uma excelente educação e foi enviada para os Estados Unidos durante a juventude. Ela se formou em 2003 em Artes e Ciências pela Ohio State University. Ao retornar à China, ele herdou de seu pai em 2007 a maioria das ações da Country Garden Holdings, a maior incorporadora imobiliária da China em vendas. Fundada em 1992 em Cantão, a Country Garden Holdings se tornou um sucesso após seu IPO (sigla para Initial Public Offering, ou oferta pública inicial, o lançamento de acões na bolsa de valores) em Hong Kong e levantou cerca de US$ 1,6 bilhão, aproximadamente o mesmo que o Google após seu IPO nos EUA em 2004. Embora conhecida por ficar fora dos olhos do público e por levar uma vida discreta, Yang é o centro de inúmeras manchetes dentro e fora da China. Um dos casos mais notórios ocorreu em 2018, quando o vazamento de documentos legais conhecidos como "Os papéis do Chipre", mostrou que ela havia obtido a cidadania cipriota em 2018, apesar de a China não reconhecer a dupla nacionalidade. Estudiosos do mercado chinês descrevem Yang como uma mulher criativa com visão de negócios. Em junho do ano passado, o International Hospitality Institute a reconheceu em seu ranking das pessoas mais poderosas da indústria hoteleira global. No entanto, seu negócio já começava a mostrar sinais de fraqueza. É que a situação do mercado imobiliário no país se complicou desde 2020, não só por causa da pandemia de coronavírus, mas também porque as autoridades chinesas tentaram conter o endividamento excessivo no setor imobiliário. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Isso deixou as grandes construtoras expostas a uma batalha para efetuar os pagamentos e as forçou a renegociar com seus credores. A crise se agravou quando a Evergrande, empresa imobiliária mais endividada da China, deixou de pagar seus títulos em dólar no final de 2021, após meses de problemas de liquidez. Na esteira disso e até agora neste ano, vários outros grandes incorporadores, incluindo Kaisa e Shimao Group, também buscaram proteção dos credores. A crise se agravou nas últimas semanas, depois de ter sido noticiada uma "greve de compradores", depois de milhares de pessoas terem deixado de pagar suas hipotecas devido a atrasos no início das obras de construção das casas. Com a demora da entrega das residências, os incorporadores não começaram a receber os pagamentos das hipotecas no tempo planejado. Tudo isso levou a Country Garden, que se mantinha bem nos primeiros meses da pandemia, também a enfrentar um problema de liquidez, a ponto de em julho passado ter que vender ações com desconto de quase 13% para captar recursos. E o cenário de longo prazo não parece positivo para Yang, para a fortuna dela ou para a empresa que representa. Em um relatório de julho passado, a agência de classificação de risco S&P estimou que as vendas de imóveis na China poderiam cair em um terço este ano devido a greves de hipotecas, movimento coletivo em que compradores resolveram suspender o pagamento de hipotecas de imóveis cuja construção não cumprisse o cronograma de entrega. Enquanto isso, a Capital Economics, uma empresa independente de pesquisa econômica com sede em Londres, previu que "sem vendas, muitos outros incorporadores entrarão em colapso, o que é uma ameaça financeira e econômica" para a China.
2022-08-12
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62512753
sociedade
'Meu marido me proibiu de fazer laqueadura, mesmo após 5ª gestação'
Este texto foi publicado no dia 14 de abril de 2022 e atualizado no dia 11 de agosto de 2022 Depois do quinto filho, a cuidadora de idosos Monica (nome fictício), na época com 32 anos, quis fazer uma laqueadura para não engravidar novamente. O risco de morrer no parto, os graves problemas financeiros e as mudanças no corpo motivaram a decisão. No entanto, alegando questões religiosas, o marido a impediu de fazer o procedimento. "O velho testamento diz 'casai e multiplicai-vos'. Muitos irmãos pregavam com base nisso e meu marido seguia o mesmo pensamento. Ele me disse que eu não faria a laqueadura e quis saber o porquê do meu desejo pelo procedimento. Eu entendi aquela situação como um 'eu que mando' e fiquei passada", contou ela à BBC News Brasil. Monica teve mais um filho, totalizando três homens e três mulheres. Fim do Matérias recomendadas A Câmara dos Deputados aprovou em março, e o Senado no dia 10 de agosto, um projeto de lei que derruba a obrigação de consentimento entre marido e mulher para a realização de laqueadura, no caso delas, e da vasectomia, no caso dos homens. O texto também prevê a permissão da laqueadura durante o parto, para juntar os dois procedimentos, minimizando sequelas decorrentes das cirurgias. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O projeto também prevê a diminuição de 25 para 21 anos a idade mínima para fazer o procedimento. Para virar lei, ele ainda precisa ser sancionado pelo presidente Jair Bolsonaro (PL). Caso essa lei já tivesse sido aprovada há algumas décadas, Monica, hoje com 43 anos, acredita que teria feito outras escolhas. "Vivemos em tempos diferentes. Mas se eu pudesse olhar no espelho, eu diria para mim mesma: 'vai estudar e buscar uma profissão. Vai se amar mais ainda, se valorizar'. Eu também não teria me casado tão cedo. Teria cuidado mais de mim mesma", afirmou. Monica conta que o casal discutiu diversas vezes por conta das constantes negativas do marido em permitir a laqueadura. Ela lembra que, depois de muitas brigas, ele finalmente aceitou receber atendimento médico para fazer uma vasectomia. Mas, sem conseguir agendar uma consulta no sistema público de saúde, o procedimento não foi realizado "e o sexto filho veio". Moradora de uma favela de São Paulo, Monica diz que a família enfrentou dificuldade financeira e chegou a "faltar alimento". "A gente passou por muita dificuldade financeira. Com tanta criança em casa na época, só o meu marido, que é porteiro, podia trabalhar. A gente teve mais filhos e a situação começou a apertar. Passamos a ter que escolher: a gente comia ou alimentava os filhos", afirmou. Na época, o marido de Monica começou a trabalhar em dois empregos para complementar a renda. Mesmo assim, enquanto a favela se desenvolvia e a maior parte dos moradores passou a erguer casas de alvenaria, a família continuou vivendo num barraco de madeira. "Imagine não ter leite para dar aos filhos. A gente usava só roupas doadas. As contas apertaram a ponto de faltar alimento. Algumas vezes, fomos à casa da minha cunhada para encher a mamadeira com leite para dar aos nossos filhos com fome", lembrou a cuidadora. Depois do quarto filho, contou Monica, começaram as primeiras discussões com o marido por conta da ideia de fazer uma laqueadura. Ele ficou desempregado e o que salvou a família de uma situação ainda mais desesperadora de fome foi a renda que o filho mais velho conseguiu, após ser contratado como atendente em uma banca de jornal. "Ele (filho) praticamente sustentou a nossa casa. Meu marido passou a usar o carro que a gente tinha para fazer carreto e eu fiz bicos faxinando e cuidando de crianças. Fiz o que pude pelos meus filhos." Hoje, ela conta que a família está numa situação bem melhor, com a maior parte dos filhos trabalhando. Ela acredita que esse projeto para realizar a laqueadura sem a permissão do marido é apenas um passo em benefício das mulheres. Lílian Leandro, diretora-executiva do Instituto Planejamento Familiar, afirmou que a dificuldade de acesso à laqueadura causa um impacto profundo na vida das mulheres mais pobres. "Isso é uma porta de entrada para diversos outros problemas, como aumento da pobreza, criminalidade e violência doméstica. Gravidez na adolescência, por exemplo, faz garotas deixarem a escola. Essa evasão faz com que a gente tenha um grau de escolaridade menor e mais gastos públicos. Nós temos um custo anual de R$ 4,1 bilhões por conta da gravidez não planejada, de acordo com estudo publicado na National Library of Medicine, nos Estados Unidos." Para Lílian, a possível sanção do presidente traz avanços, mas ainda não resolve o problema do planejamento familiar no Brasil. "Precisamos de informações sistematizadas e de agilidade nesses processos. Recebemos muitos relatos de dificuldade de agendamento e até na realização do procedimento. O que tem que prevalecer é a vontade e o direito de escolha que definirão o futuro da mulher. Quando e quantos filhos ela quer ter", argumentou Lílian. Além dos problemas financeiros e de planejamento familiar, Monica conta que as gestações também causaram diversos problemas de saúde. "O corpo sente as mudanças. Com elas, surgem os problemas de saúde. Depois do meu quarto filho, o médico disse que eu morreria se passasse por mais um parto. Isso também me trouxe consequências emocionais. Precisei ter jogo de cintura para cuidar de casa, filhos, marido e igreja. Você fica sempre por último porque a prioridade são eles", disse a dona de casa. Ela disse que, depois de tantas gestações, sentiu o corpo "desmontar". "Os órgãos não aguentam. Dói tudo. É uma pessoa crescendo dentro de você, então isso mexe com tudo, fora e dentro", conta ela. Monica disse ter passado a "viver", depois de ter completado 40 anos, quando a maior parte dos filhos chegou à idade adulta. Ela conta que se casou com 18 anos, quando estava grávida do primeiro filho. Seis anos depois, ela já tinha quatro. Mas, na época, o casal nem cogitava fazer uma laqueadura. "Quando a gente casou, não podíamos fazer uma operação ou usar outro método de evitar filhos. Conforme fomos nos envolvendo na nossa igreja, a Assembleia de Deus, essas regras entraram na cabeça do meu marido e na minha. Só depois do sexto filho, a gente caiu na real. Mas aí já era tarde", disse. A dona de casa disse que essa doutrina de proibir contraceptivos definitivos foi derrubada, e que hoje é seguida apenas por poucas pessoas que frequentam a mesma igreja que ela. "Mas ainda tem pessoas com isso na cabeça. Pensam que a mulher foi feita para ter filhos e encher a casa. Muitos evangélicos ainda têm essa mentalidade." A especialista em planejamento familiar Lílian Leandro explica que, atualmente, para conseguir fazer laqueadura depois de um parto de risco, a mulher precisa de um laudo assinado por dois médicos para validar que ela pode morrer, caso tenha mais um filho. "Eles vão colocando obstáculos e muitas vezes a mulher desiste. Muitas não têm dinheiro para condução ou com quem deixar o filho. Quando aprovam, ainda pedem 30 dias de prazo para realizar o procedimento. A intenção é que a paciente tenha mais tempo para refletir, por se tratar de um procedimento irreversível. Falam isso para uma pessoa com mais de 25 anos e pelo menos 2 filhos", afirmou Lílian. Ela vê esse processo como uma falta de respeito à decisão da mulher, principalmente as mais pobres. "A gente não vê casos assim nas classes A e B. As dificuldades que as mulheres menos favorecidas têm de acesso à Lei de Planejamento Familiar é muito grande. As mulheres que têm condições vão para o hospital e fazem o parto, pelo plano de saúde ou rede particular, e já fazem a laqueadura junto com a cesária quando a indicação clínica da mãe evolui para isso", afirmou. Já as mães mais pobres, explica ela, precisam voltar para a fila do SUS após o parto para fazer um novo procedimento. Lílian conta que, muitas vezes, elas já estão grávidas novamente quando a laqueadura é finalmente agendada. Ao comentar o passado e refletir se tomaria outras decisões caso tivesse a mentalidade que possui hoje, Monica disse que gostaria de ter apenas dois filhos. "Eu não teria tantos filhos. Os mais velhos passaram aperto mesmo. Como temos essa lei, ou ele (marido) assinaria para permitir a laqueadura ou casaria com outra pessoa. Isso acontece por culpa dos maridos e da sociedade. Vivemos em um mundo machista no qual a mulher tem que parir e estar sempre disponível", afirmou. A dona de casa faz questão de deixar clara a felicidade de ter cada um de seus filhos. "Eu não me arrependo de ter os meus filhos. Eles são tudo o que eu tenho. A maternidade é o momento mais especial de uma mulher. É quando uma pessoa sai de dentro de você, cria asas e voa. Mas isso me fez parar de estudar e nessa parte me arrependo. Meus filhos foram um impedimento na minha vida. Com as condições que a gente tinha, precisei parar de trabalhar para cuidar deles e deixar meu marido trabalhar para tentar sustentá-los", afirmou. Ela conta que não quer que as três filhas passem pela mesma situação e diz que as orienta com frequência. A mais velha teve o primeiro filho com 21 anos, em 2021. A mãe aconselha para que ela tenha, no máximo, mais um. "Não quero me meter na vida delas, mas elas precisam ser independentes. Ser diferente de mim. Quero que elas estudem, trabalhem e tenham profissão", afirmou. A deputada autora do projeto, Carmen Zanotto (Cidadania-SC), disse em entrevista à BBC News Brasil que acredita na sanção do presidente Jair Bolsonaro (PL). Ela apresentou o projeto em 2014. A deputada afirmou que, após a aprovação, os maiores desafios serão fazer com que a população tenha conhecimento de seus direitos e os reivindiquem nos serviços de saúde - e que o governo os cumpra. "O SUS tem capacidade para atender a todos esses casos. Só será necessário priorizar os mais urgentes. As pessoas precisam conhecer e cobrar os seus direitos." Carmen afirma que esse projeto é um grande avanço para a vida dessas mulheres. "Quantas 'Monicas' como a que você entrevistou nós temos? São mulheres que gostariam de ter direito de escolha e tomada de decisão. Isso não é controle de natalidade. É dar o mesmo direito a todos". *A BBC News Brasil optou por ocultar o identidade da entrevistada
2022-08-11
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-60901125
sociedade
Vídeo, O resgate de 4 mil cachorros que seriam usados como cobaias nos EUADuration, 1,33
Quase 4 mil beagles estão à procura de novos lares após o que se acredita ser um dos maiores resgates de cães nos Estados Unidos. Esses animais de estimação estavam sendo criados em um canil em Cumberland, no Estado da Virgínia. Eles eram vendidos a empresas farmacêuticas para serem usados ​​em experimentos com medicamentos. O canil foi fechado devido a violações dos direitos dos animais. Agora, instituições de caridade tentam realocar os cães. A empresa por trás do canil, a Envigo RMS, foi processada em maio pelo Departamento de Justiça dos EUA, que alegou a prática de vários atos de crueldade contra animais. Os inspetores descobriram que alguns cães estavam sendo mortos em vez de receber cuidados veterinários para condições que seriam facilmente tratáveis. Eles também estavam sendo alimentados com comida que continha vermes, mofo e fezes. Algumas mães que amamentavam não recebiam qualquer alimento. Vinte e cinco filhotes morreram por exposição ao frio. A empresa negou as acusações, mas anunciou que fecharia o canil e doaria os cães para a instituição de caridade Humane Society, informou a rede americana CBS News.
2022-08-11
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62512287
sociedade
'Sonhava em ser bailarina, mas perdi uma perna': o duro recomeço de mulheres que sofreram amputação
A fisioterapeuta Jéssica Araújo Reolon viu sua vida mudar após uma viagem em família, que culminou em um grave acidente de carro, no interior do Mato Grosso. Na época, ela tinha 12 anos. Desgovernado, o carro caiu em um buraco e se chocou contra um poste, que caiu e derrubou o fio de alta tensão. "Eu estava sentada no banco do lado esquerdo, e quando desci do carro pisei com o pé esquerdo. E foi justamente a perna que perdi", relembra. O choque durou poucos segundos, mas Jéssica ficou consciente e sentiu o corpo queimando. Quando a sensação amenizou, tudo já tinha acontecido. "Eu abri o olho e meu pai e o amigo dele já tinham falecido, a minha madrasta estava desmaiada e a minha irmã desesperada para buscar ajuda", relata. Ela teve queimaduras de até 4º grau no corpo e não pôde ir ao velório do pai. "No hospital já não tinha mais sensibilidade alguma no pé e de alguma maneira eu já sabia que não voltaria a senti-lo", diz. Depois foi transferida de hospital e o médico disse que precisava amputar. "Foram três meses lutando, porque eu quase morri, fiquei em coma induzido, passei por duas cirurgias de amputação, cheguei a pegar uma bactéria hospitalar", descreve. Fim do Matérias recomendadas Além disso, a falta do pai dificultou todo o processo. "Foi a fase mais difícil, porque eu queria de volta uma das pessoas que eu mais amava e ainda amo", lamenta a fisioterapeuta. "Eu tinha muito medo, achava que a minha vida tinha acabado, que não ia mais estudar, fazer amizades, sair e ter a vida de uma adolescente normal", diz Jéssica. Para Nara Siqueira Damaceno, psicóloga do Hospital de Doenças Tropicais da Universidade Federal do Tocantins, vinculado à Rede Ebserh (HDT-UFT/Ebserh) é fundamental respeitar e viver os próprios sentimentos. Segundo ela, o sentimento vivido por Jéssica é esperado nesses casos. "Porque a nossa autoestima é muito ligada a validação, a aceitação social", explica a especialista. E nesse contexto uma série de fatores precisam ser levados em conta, como a personalidade, a história de vida, condição social, se a pessoa vai conseguir levar uma vida semelhante a que tinha antes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Jéssica explica que, apesar das dificuldades de lidar com as pessoas, é compreensivo que elas perguntem o motivo da sua amputação. "Eu já recebi comentários maldosos ou ouvi pessoas fazendo perguntas mal-intencionadas, mas entendi que não é sobre o que o outro pensa ou fala, é sobre o que eu penso de mim mesma", avalia. Hoje, aos 26 anos, ela é fisioterapeuta especializada em amputados, trabalha, mora sozinha, faz academia, corre, dirige, sai com os amigos. "É esse nível de independência e autonomia que eu busco para os meus pacientes, porque eu sei que é possível, independente da condição", destaca. Para ela, talvez a pessoa não viva como antes, mas pode viver até melhor. "Porque quando você passa por coisas desse tipo, você aprende a valorizar coisas que antes não valorizava", afirma a jovem fisioterapeuta. Natural de Araraquara (SP) Amanda Rebouças dos Santos, tem 29 anos, é enfermeira e faz residência na área de oncologia. "Eu sempre gostei de sair e de dançar bastante. Sempre fui extrovertida, independente e fazia as minhas coisas sem precisar da ajuda de ninguém", diz. Aos 21 anos, Amanda havia saído para trabalhar de moto quando foi atingida por um carro. Ao chegar ao hospital, ela ainda não sabia da gravidade da situação. "Quando a minha mãe chegou, ela começou a chorar desesperadamente, e aí comecei a chorar junto", conta. Amanda teve uma sepse (infecção generalizada) que começou a necrosar no pé e foi subindo. Ela conta que o médico que lhe atendeu na emergência foi direto ao dizer que se ela não amputasse iria morrer. "E eu disse para: tá bom, só não deixa muito curtinho", diz. Apesar do susto, a jovem enfermeira conta que não hesitou. "A minha situação era vida ou morte. Então para mim perder um membro era menos importante do que perder a vida", garante. E por causa da sepse, a área ficou aberta (sem qualquer tipo de ponto) e ela precisava fazer curativos na "carne viva", sem a pele, com os nervos aparentes, para não piorar a infecção. "Na época, os médicos não sabiam o nível da infecção, então, eu tive que voltar várias vezes para o centro cirúrgico para ir tirando o tecido que não era saudável, por isso não podia fechar", conta. Após ter enfrentado o processo de aceitação, um novo desafio: fazer a prótese. "No hospital eu conheci pessoas maravilhosas que fizeram com que eu me apaixonasse pela enfermagem. Com a amputação eu escolhi a minha profissão para retribuir o que elas fizeram por mim e poder transmitir isso para outras pessoas", conta. "E depois que me formei eu consegui trabalhar nesse mesmo hospital e falar com essas pessoas", diz emocionada. Com o tempo, Amanda decidiu que só aceitaria a opinião de pessoas que se importavam com ela. "Isso facilitou muito o meu processo de aceitação, porque depois que você é amputada não tem como as pessoas não olharem, isso é um fato. E as pessoas que ligam para a opinião de outras pessoas sofrem muito mais, porque os olhares são terríveis", afirma. Logo no início, Amanda teve a recomendação de fazer natação para ajudar na fisioterapia. Mas ela foi além e chegou a participar de competições. "Eu comecei a competir pela cidade de Araraquara e era a única menina. Isso era uma coisa que nunca imaginei que faria depois da amputação. E eu nado até hoje", relata. Ela comenta também que conheceu o atual namorado antes da amputação, mas quando foi colocar a prótese o levou, ainda como amigo, para ver sua reação. "Quando é amputada você precisa saber se a pessoa vai se adaptar e saber lidar com as situações. Eu fazia o teste, colocava e tirava a prótese, mostrava o coto, para ver se ele reagia de uma forma diferente. É muito importante saber se o seu parceiro vai estar sincronizado e te aceitar da forma como você é", afirma. Pesquisa inédita realizada pela Sociedade Brasileira de Angiologia e de Cirurgia Vascular (SBACV) mostrou que mais de 245 mil brasileiros sofreram amputação de membros inferiores (pernas ou pés) entre janeiro de 2012 e março de 2022. De acordo com os especialistas, mais da metade desses casos envolvem pessoas com diabetes. Adriana de Souza Carvalho, de 57 anos, começou a fazer atividades extracurriculares muito cedo. Entre elas estava o ballet, que não demorou muito até se tornar sua grande paixão. Isso por volta de 1977, em São Lourenço, cidade do interior de Minas Gerais. E o seu sucesso na dança a levou à famosa peça "Lago dos Cisnes" como a principal bailarina. Mas um dia após completar 17 anos foi vítima de um grave acidente de moto, que resultou na morte do seu então namorado e do condutor da outra moto. Já Adriana, devido aos ferimentos, ficou 40 dias internada e teve que amputar a perna esquerda. "Quando recobrei um pouco a consciência, três dias depois, eu nem sabia que tinha amputado. Mas depois, na mesma hora que o médico contou, eu pensei: 'meu ballet, acabou a minha vida", recorda-se. Para a psicóloga Damaceno, os medos e incertezas fazem parte do processo de aceitação e precisam ser respeitados. "A perspectiva que essa pessoa tinha sobre ela, agora não tem mais, e a gente olhando de fora pode parecer uma perda pequena se comparado à vida, mas para aquela pessoa, aquilo pode ter um impacto muito maior do que se imagina", explica a especialista. O choque inicial para Adriana foi a parte mais difícil, pois a dança era algo que havia escolhido para a sua vida. Mas ela não estava sozinha, além o apoio incondicional dos pais, a jovem contou com o carinho do seu médico ortopedista. "Ele sempre ia na minha casa e se despedia falando assim: 'não deixa a peteca cair', e aquilo me fortalecia", relembra emocionada. Adriana conta que no começo caiu várias vezes, porque "esquecia" que não tinha mais uma perna. "Então é um processo de reabilitação muito difícil. Eu vivi um momento bem forte", relata. Na época, ela fez uma prótese particular, que durou cerca de 10 anos. Depois, começou a usar as que são oferecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). "Como moro em uma cidade pequena, as pessoas aumentam muito as coisas e começaram a dizer que eu tinha perdido até o útero, mas fora isso nunca sofri preconceito", relata aos risos. Aos 20 anos Adriana se casou e teve um filho que nasceu com paralisia cerebral. Depois teve outro, que veio ao mundo saudável. Hoje, ambos são formados em universidades. Atualmente mora com os pais, dedica-se ao trabalho manual pintando telas com aquarela, e a alguns projetos sociais. "Eu andei de bicicleta pela cidade toda por muito tempo. Hoje eu nado e consigo dirigir carro normal, sem ser adaptado", conta. Contudo, as próteses começaram a machucá-la, o que a fez aderir ao uso de muletas. Recentemente, porém, ela concorreu em um concurso da Össur, empresa de próteses e órteses, para ganhar uma nova. E venceu. Agora, ela pôde dar adeus as muletas que a acompanharam pelos últimos sete anos. Recém-formada em nutrição, Milena Nenemann, tem 22 anos, mora em Rio Negro (PR) e, apesar da timidez, conta que passou pela adolescência como qualquer outra jovem: estudava, saía com os amigos, viajava. Entretanto, faltando apenas duas semanas para entrar na faculdade, aos 17 anos, teve uma pneumonia bacteriana. "Foi tudo muito rápido. comecei sentindo uma falta de ar, febre, dor de garganta e pensei que era uma gripe. Depois de uma semana, fui ao médico e ele disse que não era nada", conta. Mas os sintomas pioraram rapidamente e pouco depois ela foi internada direto na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), onde entrou em coma por 15 dias. Durante esse tempo, os médicos demoraram um pouco para diagnosticá-la. "E nisso a doença foi evoluindo, meus órgãos foram parando, eu tive um choque séptico e não circulou oxigênio nos membros, que acabaram necrosando", relata a jovem nutricionista. Mesmo assim, os médicos aguardaram uma leve estabilidade e conversaram com ela, antes de fazer as cirurgias. "Tiveram que amputar para salvar a minha vida", diz. Milena teve as duas pernas abaixo do joelho amputadas, o braço direito e os dedos da mão esquerda. "As pessoas nem acreditam quando conto, mas eu recebi essa notícia de uma forma muito boa, porque vi que estava entre a vida e a morte", enfatiza. Depois, ela saiu do hospital e se deparou com uma realidade completamente diferente. "Eu cheguei em casa sem perna, sem mão e eu não conseguia fazer nada. Precisava dos meus pais para ir ao banheiro, andar, tudo", relembra. Esses, sem dúvida — foram os momentos mais difíceis, viver a sensação de dependência, período que durou cerca de cinco meses, até fazer as próteses. "O luto não diz respeito apenas a morte física de uma pessoa, é muito mais do que isso, ele é a perda de algo que era significativo que precisa ser respeitado e vivido. Só assim esse processo realmente passa", salienta a psicóloga do Hospital de Doenças Tropicais da Universidade Federal do Tocantins, lembrando que quando isso não acontece há um risco de o luto se instalar e passar a ser crônico, podendo levar, inclusive, a quadros de depressão. "No começo doía muito e cheguei a pensar que não iria conseguir, mas uma semana depois eu já estava andando, porque a amputação abaixo do joelho é bem mais fácil," salienta. Cerca de um mês depois, ela colocou as próteses da mão e começou treinar para escrever e se maquiar. "Recentemente eu coloquei meu pé de salto, parece algo fútil, mas eleva muito a autoestima", comenta, além de confessar que não é fã de exercícios físicos, mas costuma fazer bicicleta para fortalecer os músculos da perna. Ela atribui a forma como lidou com a situação a fé e a sua família. "Eu acredito muito em Deus e creio que ele me deu muita força, assim como a minha família e meus amigos. Sem eles, eu não estaria onde estou hoje", afirma. Mesmo assim, esse processo não foi fácil. "No início eu não gostava quando saía nas ruas e as pessoas ficavam me olhando, eu me sentia um ET. Agora já acostumei", garante. Atualmente, ela mora com os pais e aguarda o registro no conselho de nutricionistas para atuar na profissão. "Esse é o meu sonho e eu já tive vários relacionamentos, mas eu quero um que dê certo agora", conclui, aos risos.
2022-08-09
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62430496
sociedade
'Como saber se meu celular é 5G?': as perguntas sobre a chegada da tecnologia ao Brasil
Em meio à chegada do 5G a algumas regiões do país, o tema tem sido cada vez mais comentado e buscado na internet. Nos últimos sete dias, uma das perguntas mais procuradas no Google foi "como saber se meu celular é 5g?", segundo dados do Google Trends, que dimensiona as buscas na plataforma. Até o momento, a tecnologia já está disponível nas seguintes cidades brasileiras: Brasília (DF), Belo Horizonte (MG), Porto Alegre (RS), João Pessoa (PB) e São Paulo (SP). De imediato, usuários vão se beneficiar de uma maior velocidade de conexão, tanto para baixar quanto para enviar arquivos pelo celular, além de um tempo de resposta mais ágil e maior estabilidade. A previsão é de que a nova geração da internet móvel esteja disponível em todo o país nos próximos anos. Fim do Matérias recomendadas Apesar de ser cada vez mais divulgado, o tema ainda desperta inúmeras dúvidas. Abaixo, a BBC News Brasil responde a algumas das principais perguntas que têm sido feitas sobre o assunto. É a próxima geração de conexão de internet móvel que oferece velocidades para baixar e enviar arquivos muito mais rapidamente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O 4G funciona com velocidade média de 17,1 Mbps (megabits por segundo), e pode chegar a até 100 Mbps. Já o 5G pode chegar a até 1 e 10 Gbps (gigabits por segundo, ou 1 bilhão de bits por segundo), ou seja, até 100 vezes mais que o 4G. A comunicação (ou tempo de resposta, como chamam os profissionais da área) do 5G é bem maior: 1 a 5 milissegundos contra 50 a 70 milissegundos do 4G", detalha Eder Carlos Amador, coordenador do curso de Ciência da Computação da Faculdade Anhanguera. Essa tecnologia permitirá que as atividades com smartphones sejam feitas com muito mais rapidez. Em termos práticos, o 5G permite, por exemplo, baixar um filme de alta definição em mais ou menos um minuto. Usuários de videogames devem notar menos atraso — ou latência, termo usado por especialistas — ao pressionar um botão e ver o efeito na tela. Os vídeos móveis devem ser quase instantâneos e sem falhas. As videochamadas devem se tornar mais claras e "travar" menos. Dispositivos de saúde podem monitorar seu organismo em tempo real, alertando os médicos assim que surgir qualquer emergência. Muitos pensam que o 5G será crucial para que veículos autônomos se comuniquem entre si e leiam mapas e dados de tráfego ao vivo. Imagine enxames de drones cooperando para realizar missões de busca e resgate, avaliações de incêndio e monitoramento de tráfego, todos se comunicando sem fio uns com os outros e com bases terrestres em redes 5G. "A tecnologia abre uma gama de possibilidades, principalmente no campo da internet das coisas. Os carros poderão ter sensores de alta precisão para evitar acidentes, semáforos nas ruas poderão ser interconectados para melhorar o trânsito, as nossas casas poderão ser equipadas com uma infinidade de objetos inteligentes para executar diversas tarefas. Aquelas cenas de ficção científica de que tudo no nosso dia a dia será permeado pela tecnologia, isos parece mais próximo do que nunca", afirma Amador. Não são todos os celulares que têm acesso ao 5G. Os aparelhos que possuem essa tecnologia já vêm com essa característica diretamente da fábrica, afirma Luiz Puppin, gerente do Centro de Treinamentos da empresa de tecnologia FiberX. "Desde 2019, alguns aparelhos já começaram a vir com essa tecnologia. Eles chegaram importados ao Brasil. Para ativar essa opção tem que estar em uma região em que haja uma antena que ofereça esse sinal", explica. É necessário que a operadora ofereça o serviço 5G. Na atual fase, os celulares que possuem 5G são aqueles que têm um pouco mais de tecnologia para suportar essa nova frequência. Essas informações estão disponíveis nas fichas técnicas dos aparelhos. "Os aparelhos celulares precisam suportar essa tecnologia, igual na época do 4G. Hoje é até mais fácil encontrar celulares com 5G. Quando essa tecnologia começou a ser implementada, só existia nos aparelhos mais sofisticados. Mas hoje em dia já tem até em aparelhos de cerca de R$ 2 mil", afirma Puppin. Com o tempo, espera-se que todos os modelos incorporem a compatibilidade, assim como aconteceu com o 4G, usado comercialmente no Brasil pela primeira vez no fim de 2012. O mundo está se tornando móvel e estamos consumindo mais dados a cada ano, principalmente com o aumento da popularidade do streaming de vídeo e música. O espectro de banda, usado para serviços de internet, está ficando congestionado, levando a falhas no serviço, especialmente quando muitas pessoas na mesma área estão tentando acessar serviços móveis ao mesmo tempo. O 5G é muito melhor para lidar com milhares de dispositivos simultaneamente, de celulares a sensores de equipamentos, câmeras de vídeo e luzes de rua inteligentes. "Com o 5G podemos ter cidades mais inteligentes, coisa que o 4G não consegue em larga escala. O 5G vai conseguir suportar coisas como medir água, gás ou energia a distância e outras tecnologias que já existem, mas não podem ser usadas em larga escala porque o 4G não consegue por não suportar tanto volume de dispositivos simultâneos por quilômetro quadrado", diz Puppin. No Brasil, as principais faixas da tecnologia de 5G foram compradas pelas gigantes Claro, Tim e Vivo. E operadoras locais também compraram faixas especificamente nas regiões que operam. "Essas grandes operadoras vão cobrir o Brasil inteiro", explica Puppin. "Os dados (do 5G) são transmitidos por ondas de rádio mais curtas, por isso, para a cobertura ser efetiva, é preciso um número maior de antenas distribuídas em um menor espaço geográfico - mas que transmitem os dados de forma muito maior e mais rápida. A tecnologia permitirá - acredite - que até 1 milhão de dispositivos estejam conectados em uma área de apenas um quilômetro quadrado", diz Amador. Não há data exata para que o 5G chegue a todo o país, mas a expectativa é de que o sinal chegue a todos os municípios brasileiros com até 30 mil habitantes até o fim de 2029. Mesmo nas cidades em que já chegou, o 5G não está presente em todas as áreas. Em São Paulo, por exemplo, a cobertura está concentrada no centro expandido, entre as marginais do Tietê e do Pinheiros, além de mais uma parte da zona oeste e o início da zona sul da cidade, conforme a Anatel. A área de maior concentração de antenas de 5G em São Paulo é onde há maior concentração de prédios empresariais, polos de empregos e famílias com maior poder aquisitivo, segundo a Folha de S.Paulo. "Essa tecnologia foi implantada em algumas localidades escolhidas nessas cidades, as áreas que são mais economicamente viáveis ou mais politicamente expostas. O Brasil tem um tamanho que vai demorar muito pra uma cobertura uniforme 5G. Se você está em uma área com 5G, andou e saiu da área de 5G, o celular não perde a conexão, ele entra na rede 4G normalmente e continua navegando. Você só vai perder a velocidade do 5G e vai voltar ao 4G", explica Puppin.
2022-08-05
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62444084
sociedade
‘É cruel seu filho fugir de você’: o que é misofonia, transtorno auditivo que pode devastar famílias
É muito provável que o ranger de unhas arranhando um quadro ou um vidro metálico lhe dê arrepios, como acontece com muitos de nós. Às vezes basta imaginar essa situação para sentir o incômodo. São sons de alta frequência e são tão desagradáveis ​​ao ouvido humano que podem causar reações negativas no cérebro, alterando temporariamente o humor e o controle do indivíduo. Mas imagine se você não suportasse um som simples, como um estalar de lábios, ou um suspiro, ou alguém mastigando, e sua primeira reação fosse atacar a fonte daquele som ou correr para se esconder? É o que acontece com quem sofre de misofonia, um transtorno investigado há poucos anos e que envolve sensibilidade e reatividade a estímulos sonoros que, no nível mais grave, podem ser devastadores para quem sofre e seus familiares. A BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) coletou as experiências dolorosas de duas mulheres cujas vidas foram afetadas por esse mal: a mãe de um jovem com o transtorno e outra que sofre com isso desde criança. Fim do Matérias recomendadas Também conversamos com um psicólogo clínico e um neurocientista para tentar esclarecer a origem dessa condição auditiva, quais pesquisas foram feitas e o que a ciência está procurando para encontrar uma terapia adequada. (Os nomes das pessoas afetadas foram alterados para proteger sua identidade) Grace, de 59 anos, mora em Minneapolis, Minnesota, nos Estados Unidos, onde é professora universitária. Ela está casada há quase 30 anos e tem três filhos; dois rapazes de 25 e 19 anos e uma filha de 23. "Eu diria que tivemos uma vida familiar tipicamente feliz, com problemas que seriam considerados normais", diz à BBC News Mundo. Até que ela começou a notar um comportamento curioso em seu filho mais novo. "Quando Matthew tinha cerca de 12 anos, ele começou a desenvolver uma vida cada vez mais distante de mim... Ele passava mais tempo com o pai, quando tinha um problema recorria a ele", diz ela. "Eu atribuí isso aos interesses dele, ao quão diferente ele era de mim." Ele gostava de estar ao ar livre, andar de bicicleta, sair com os amigos e praticar esportes, enquanto ela se sente atraída pela vida acadêmica, pela leitura. Grace até brincava com o marido que o menino parecia ser filho somente dele. Eles ficaram com essa ideia, "trágica em retrospectiva", destaca Grace, porque se eles soubessem que estava relacionado a um problema mais sério, talvez pudessem ter sido capazes de intervir mais cedo. Porque quando Matthew tinha cerca de 15 anos, a situação ficou mais dramática: o jovem começou a fugir de Grace. "Se eu entrasse em uma sala em que ele estava, ele saía correndo. Ou se agachava em um canto até que eu saísse", descreve. "O pior era no carro, quando eu o levava para a escola ou para um compromisso. Ele ficava todo curvado, puxava o capuz do moletom e não falava comigo." Grace perguntava a ele o que estava acontecendo, mas o menino não conseguia articular e respondia "nada". "Essa evasão me fez sentir como se ele me odiasse, e isso foi devastador para mim", diz. "Morávamos na mesma casa, mas eu quase nunca o via, quase não o ouvia falar, ele literalmente desapareceu naquela fase aguda. Ele também emagreceu muito, estava muito estressado, parecia atormentado, miserável." Algo estava acontecendo e eles não conseguiam descobrir. Até que marcaram uma consulta com um psicólogo e foi aí que receberam o diagnóstico: misofonia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Misofonia é um termo relativamente novo que descreve um distúrbio auditivo que não é claramente compreendido, diz Zachary Rosenthal, psicólogo clínico e professor do Departamento de Psiquiatria e Neurociência da Duke University, nos Estados Unidos. Envolve um tipo de sensibilidade e reatividade a estímulos sonoros e/ou sinais visuais repetitivos. Os sons são tipicamente, mas nem sempre, feitos por outras pessoas, seja com seus rostos, lábios, narizes ou gargantas, diz Rosenthal à BBC News Mundo, e costumam ocorrer em ambientes onde a pessoa afetada se sente presa, como alguém mastigando uma maçã em um ônibus. Esses sons são descritos como "gatilhos" porque provocam ou desencadeiam uma reação intensa na pessoa que se incomoda com a situação. O termo vem do grego e significa literalmente "ódio ao som", e embora tenha sido adotado após cuidadosa consideração, o psicólogo o considera infeliz. "As pessoas com misofonia não necessariamente têm ódio, mas experimentam uma gama de emoções e respondem com comportamento emocional, cognitivo e fisiológico que acontece quase automaticamente e elas não podem controlar..." "Aqueles que sofrem de misofonia veem a pessoa que faz um barulho que os afeta "como um urso agressivo", e seu corpo reage como se fosse uma ameaça significativa, que desencadeia o instinto de fuga ou luta, e que eles são incapazes de fugir", diz Rosenthal. O transtorno pode levar à incapacidade e nos casos mais graves é devastador, tanto para o indivíduo quanto para sua família. "A primeira lembrança da minha infância é de um evento que me causou uma reação misofônica. Minha mãe foi o gatilho", diz Diana à BBC News Mundo. "Estávamos sentadas assistindo televisão quando ela me disse que queria me contar um segredo. Sendo uma garota, eu estava animada com sua cumplicidade." "Mas o que ela fez foi colocar um monte de batatas fritas na boca e mastigá-las perto da minha orelha." Diana atualmente tem 52 anos, é casada e tem dois filhos. Ela conviveu com a misofonia por toda a vida. Ela não sabe exatamente quantos anos tinha quando sua mãe fez o que ele imagina ter sido uma brincadeira. Ele só se lembra da fúria que lhe causou e como gritou, chorou e sofreu cólicas. A partir de então, sua relação com a mãe foi muito estranha. "Ela sempre fazia barulho porque sabia que eu teria uma reação. Aparentemente ela achava engraçado, porque não parava de fazer isso." Ela admite que chegou a odiar a mãe, literalmente. "Não é como as crianças que dizem 'eu odeio minha mãe e meu pai' às vezes. Não, eu absolutamente a odiei. Desenvolvi um total distanciamento emocional." Ela fez o que pôde para evitá-la. Ficou o maior tempo possível em seu quarto, aprendeu a comer muito rápido para poder se levantar da mesa o quanto antes e, assim que cresceu, saía sempre que podia. Diana era a caçula de seis irmãos. Os adultos já haviam saído de casa e, além de sua mãe, havia apenas sua irmã, 5 anos mais velha, e seu pai, a quem ela sempre recorria para abraçar e se sentir protegida. Mas os gatilhos começaram a aumentar (como costuma acontecer) e havia momentos em que sua irmã e seu pai também podiam desencadear uma crise nela. Já adolescente, após uma provocação, sua mãe ficou furiosa com a reação dela e exigiu que se ele não tivesse nada de gentil para dizer, que não falasse com ela. "Foi quando eu parei de falar com ela. Eu não disse uma palavra para ela por dois anos." Apesar dessa situação, seus pais nunca a levaram para terapia e ela nunca confrontou sua mãe (já falecida) com a situação. "Eu assumi que eu era um ser monstruoso e maligno, algo muito comum entre aqueles que sofrem de misofonia. Eu não sabia que era uma condição, achava que era uma falha na minha personalidade e sofri em silêncio." Cerca de 10 anos atrás, os pesquisadores Sukhinder Kumar, da Universidade de Iowa, nos EUA, e Tim Griffiths, da Universidade de Newcastle, no Reino Unido, realizaram um estudo no qual tocaram um conjunto inteiro de sons para voluntários classificarem de acordo com o quão suportáveis ​​eles eram. Ao mesmo tempo, eles observaram por meio de ressonância magnética (RM) a atividade cerebral de quem experimentou aquela gama de sons e a correlacionaram com a avaliação pessoal que fizeram de cada som. O que eles descobriram foi uma interação em duas regiões-chave do cérebro: o córtex auditivo (a parte associada à audição) e a amígdala ou corpo amigdaloide, uma estrutura geralmente envolvida em processos emocionais e mais especificamente na atribuição de valências emocionais ou psicológicas a certos eventos ou estímulos. "Essas duas regiões se alimentavam de informações", disse à BBC o neurocientista Phillip Gander, que continua explorando o estudo de seus colegas Kumar e Griffiths. "Uma região dizia 'eu tenho esses tipos de sons' e a outra região estava dizendo 'eu realmente não gosto deles e essa é a reação que você deveria ter'", explicou Gander, especialista em distúrbios auditivos no Universidade de Iowa. Em relação à misofonia, suas apurações, e a de Kumar e Griffiths, indica que as regiões ativadas do cérebro têm a ver com mecanismos de controle e aprendizado e, muito importante, com mecanismos que englobam a experiência do nosso mundo interior. "Se relaciona a como o nosso mundo externo (percepção) corresponde ao nosso mundo interno (interocepção) e como nosso cérebro avalia esses eventos." Grace e seu marido tiveram a sorte de encontrar um bom psicólogo familiarizado com a misofonia muito perto de onde moram. Eles fazem sessões familiares e individuais. Mas, embora tenha dado a eles ferramentas para entender Matthew, ainda é uma situação difícil de enfrentar. "Sou uma pessoa inquieta, me movo muito", diz Grace. "E antes de falar faço um som quase inaudível, uma leve apiração que provoca meu filho, como também pode acontecer quando ele vê meu maxilar se mexer." "É algo que me faz sentir horrível, me parte o coração. Não há nada mais cruel do que seu próprio filho fugir de você, se esconder em um canto e cobrir o rosto", detalha. "O que mudou com a terapia é que tento lidar melhor com o fato de ser constantemente a fonte dessa repulsa", diz Grace. A família também reorganizou a casa. Matthew ocupa o terceiro andar. Tem o seu próprio quarto, um banheiro e uma ampla sala. Ele vai para o local imediatamente quando chega do trabalho. Ele não fala ou vê sua mãe e eles se comunicam por texto ou e-mail. "Todas as noites eu mando um texto para ele para ver como ele está e, em seguida, geralmente mando um e-mail mais longo contando coisas sobre a nossa vida familiar." Quando Matthew tem algo urgente a dizer, ele para no corredor e Grace entra em um quarto ao lado, onde ela pergunta por mensagem de texto se ela pode responder ou se deve apenas escutar. Quando ele não está, sua mãe sobe ao terceiro andar para arrumar o local um pouco. Ela tem um caderno onde deixa recados para ele e toda semana coloca novas fotos da família, do filho e de todos juntos nos porta-retratos. "Parece ridículo, mas tento fazer coisas para incluir Matthew na vida cotidiana e lembrá-lo o quanto o amamos e que ele continua sendo uma parte central da família, mesmo que permaneça à margem". Em um Natal, por exemplo, ao abrir os presentes, Matthew e seus irmãos foram para a sala, enquanto Grace e o marido ficaram em outro andar assistindo-os em vídeo. Os filhos falavam com eles, os pais respondiam por mensagem. Por ser um fenômeno difícil de diagnosticar e sobre o qual há pouco conhecimento, não existem tratamentos bem desenvolvidos do ponto de vista científico, diz Zachary Rosenthal, da Duke University. "Quase tudo o que foi experimentado foi feito usando algum tipo de terapia cognitivo-comportamental (TCC)", que incluem intervenções que mudam os padrões de pensamento, aprendizado, gerenciamento corporal, regulação emocional, atenção e comunicação. Mas a misofonia é melhor compreendida como uma condição multidisciplinar, diz o especialista. "Não deveríamos nos concentrar apenas em um distúrbio psiquiátrico ou de saúde mental. Consultar um especialista em terapia cognitivo-comportamental é uma parte. A outra seria consultar um fonoaudiólogo que possa avaliar problemas ou processos auditivos", explica. Também recomenda conversar com o paciente sobre estratégias de escuta, onde dispositivos podem ser usados ​​nos ouvidos para proteger ou filtrar sons seletivos, que podem ajudá-los a funcionar em suas vidas e controlar o impulso de querer escapar. "É complexo. Não é um problema que vai ser resolvido em um só lugar. Há pessoas que talvez precisem consultar um neurologista. Ou até mesmo um terapeuta ocupacional." Diana encontrou ajuda após um árduo processo de busca. "Levei quase dois anos e centenas, senão milhares de telefonemas, para encontrar um profissional de saúde que tivesse ao menos ouvido falar disso", diz. "Em 2016, fui a uma fonoaudióloga que me fez um check-up completo e confirmou que eu realmente tinha misofonia". Mas como não há diagnóstico codificado, sua história reflete percepção auditiva anormal com o subtexto da misofonia. Começaram com um tratamento de aparelhos auditivos internos que geravam um ruído para tentar mascarar os sons que a incomodavam, mas não funcionaram. "Com o que sofremos, podemos usar ruído branco, rosa, marrom ou vermelho (sons de diferentes frequências) como forma de lidar com a misofonia, mas esses são todos gatilhos para mim", afirma. Com a ajuda de um terapeuta, ela continuou a procurar terapias ou maneiras de conviver com a condição. "Depois de todo esse esforço, cheguei à conclusão de que o que preciso é aceitar que isso faz parte de mim e que tenho que navegar pela vida da melhor maneira possível." "Criamos nossos filhos dizendo 'mamãe não gosta de certos sons'", diz Diana. "Eles podem comer pipoca, batatas fritas ou outros alimentos crocantes, mas precisam fazer isso em outro quarto. Isso tem sido o 'normal' de nossas vidas." Ela enfatiza que seu marido a apoia muito e geralmente pode lê-la muito bem e reconhecer seus gatilhos. Mas há sempre um fator de imprevisibilidade, que gera tensões no casamento. "Às vezes eu fugia para o quarto, ia para a cama e ficava sozinha e no escuro. É algo que eu preciso", diz ela. "Ele queria ser meu príncipe encantado e vir em meu socorro e não conseguia entender que eu precisava daquele tempo para mim e que se quisesse me ajudar tinha que me deixar. Mas ele já entende, é muito respeitoso e não entra no meu espaço sem antes perguntar", explica. Diana pratica exercícios para ajudar sua saúde mental. Ela gosta de escrever, fazer artesanato e assar. "Tenho um cachorrinho que me dá muito apoio emocional, mas 'não tenho vida social'", diz aos risos. "Isso é restrito a conversar com a minha melhor amiga no Facebook. Mas eu não saio e não como junto com ninguém." Com o apoio da família e do terapeuta, Matthew conseguiu superar algumas barreiras, com resultados que Grace admite ter surpreendido. Após um ano de separação total, a família começou a aprender como ficar reunida da maneira mais confortável para Matthew. E de repente ele começou a mandar mensagens para sua mãe perguntando onde ela estava na casa. "Ele me procurou e me deu um abraço. Foi algo imenso, incrível. Chorei por uma hora", conta, reconhecendo o preço que seu filho com certeza se arriscou a pagar por aquele contato. "Isso aconteceu quatro ou cinco vezes nos últimos dois anos, quando estamos em contato por cerca de 40 segundos, ele pode me abraçar, dizer que me ama e depois ir embora." Apesar das dificuldades, Matthew tem perspectivas e motivações em sua vida. Ele é um grande jogador de squash, a reverberação sonora da bola lhe traz alívio. Ele é um operador de ambulância e em breve será entrevistado para um cargo no Departamento de Bombeiros de St. Paul, Minnesota, um sonho que ele tem desde a infância, conta Grace. "Minha esperança é que ele desenvolva uma vida profissional feliz e tenha uma família. Eu realmente quero isso porque sinto que ele não teve isso aqui conosco", diz ele. "O triste é que eu não vejo que essa vida me inclua muito, a menos que algo mude drasticamente, como a minha presença física."
2022-08-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62327892
sociedade
Por que os vikings não eram como imaginamos
A cultura popular costuma representar os vikings como guerreiros ferozes, de cabelos loiros e olhos azuis, que navegavam pelo mar saqueando populações costeiras. Mas novos estudos científicos desmentiram esse mito. Um grupo internacional de geneticistas evolutivos conseguiu analisar a ascendência genética desses famosos guerreiros germânicos e chegou a conclusões surpreendentes sobre sua diversidade étnica. "Tudo começou quando conseguimos sequenciar o primeiro genoma humano antigo", segundo relatou à BBC o geneticista evolutivo dinamarquês Eske Willerslev, professor da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e da Universidade de Copenhague, na Dinamarca. "Isso nos forneceu uma enorme quantidade de informações de indivíduos que podemos usar para deduzir o passado do ser humano", segundo ele. "Depois que vimos que isso era possível, decidimos começar a explorar o passado humano em todo o mundo [para ver] como nos convertemos no que somos hoje." Fim do Matérias recomendadas Ao longo de seis anos, os pesquisadores analisaram restos humanos encontrados em mais de 80 sítios arqueológicos, incluindo túmulos vikings. Para entender o passado por meio do DNA antigo, a equipe sequenciou os genomas de 442 homens, mulheres, crianças e bebês da era dos vikings. Um dos especialistas que trabalharam no projeto - Martin Sikora, da Universidade de Copenhague - notou que os restos mortais onde o DNA estava mais preservado eram os dentes e um osso chamado petroso ou temporal, que faz parte dos ossos das orelhas e é particularmente duro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Extraindo o material genético dessas fontes, os especialistas conseguiram comparar o DNA desses povos com as sequências de DNA de mais de 1 mil indivíduos da Antiguidade e cerca de 4 mil seres humanos modernos. Este estudo - a maior análise genética de restos de vikings já realizada - demonstrou que seus genes provinham do sul da Europa e da Ásia. "O viking típico é descrito como um escandinavo grande, forte e loiro. Mas, na verdade, ser loiro era muito menos comum na Escandinávia na era dos vikings do que agora", explica Willerslev. "O período viking é caracterizado por um enorme interesse pelos vikings escandinavos pelo resto do mundo, mas um interesse muito limitado pelo que realmente estava acontecendo na Escandinávia." As rotas comerciais dos vikings estendiam-se, de um lado, até o Canadá e, do outro, ao Afeganistão, de forma que aquele povo, na verdade, tinha muito mais diversidade que o que se acreditava. Essa miscigenação com pessoas do sul e do leste diversificou sua composição genética, gerando uma variedade de aparências físicas. "Não é possível afirmar com certeza se houve um grupo geneticamente homogêneo que fosse muito escandinavo e igual em toda parte", afirma Sikora. "Na realidade, havia muita diversidade." O estudo também permitiu determinar que houve diversos grupos vikings que viajaram para diferentes partes do mundo. "Os dinamarqueses foram principalmente para a Inglaterra, os noruegueses foram para a Irlanda, Islândia e Groenlândia e os suecos foram para o Mar Báltico", explica Willerslev. A pesquisa também indica que a identidade viking não estava relacionada à origem genética ou étnica, mas sim a uma identidade social. "O fenômeno viking não é algo escandinavo, no sentido de que não é a etnicidade que determina se alguém é viking ou não. Trata-se de um estilo de vida", afirma o cientista que liderou o projeto. E, de fato, os pesquisadores descobriram vikings que "não tinham genes escandinavos". "Graças a este trabalho, estamos mudando a história e, ao mudar a história, também estamos alterando nossa identidade", pondera Willerslev. O cientista considera isso algo positivo. "Pelo menos, o debate agora é sobre identidade, que é um debate político, baseado na ciência real."
2022-08-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60133908
sociedade
As 43 domésticas sul-americanas que denunciam a Opus Dei por servidão e exploração
Disseram que elas tinham "vocação para santas", que foram chamadas a "servir a Deus". Então submeteram elas a jornadas de trabalho de até 15 horas, isoladas em residências, com uma rotina de oração e penitências que incluía banhos frios e autoflagelação. É o que dizem ter sofrido 43 mulheres da Argentina, Paraguai e Bolívia que, em setembro de 2021, denunciaram a organização católica ultraconservadora Opus Dei ("Obra de Deus", em latim) ao Vaticano por tráfico de pessoas, exploração e servidão. Agora, a ordem religiosa da região do rio da Prata — que inclui Argentina, Paraguai, Bolívia e Uruguai — anunciou a criação de uma "comissão de escuta e estudo", embora diga fazer isso por "uma motivação moral e não legal". "Acreditamos que é necessária uma área que nos permita começar a curar o que precisa ser curado", afirma a assessoria de comunicação da Opus Dei à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, sobre a criação da comissão. Questionada sobre as acusações, a ordem afirma que "não há notificação de denúncia por parte das autoridades eclesiásticas". "Ao final do período de escuta e estudo, a comissão apresentará suas conclusões e recomendações ao vigário regional, para que sejam tomadas as decisões cabíveis", acrescentou a organização. As mulheres, que ainda não foram à Justiça comum esperando colher mais depoimentos, segundo seu advogado, exigem indenização financeira e reconhecimento público da Igreja. Suas histórias têm pontos em comum: elas foram recrutados entre famílias de baixa renda quando tinham entre 12 e 16 anos e trazidas para Buenos Aires nos anos 1970, 1980 e 1990, com a promessa de receber educação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em vez disso, denunciam, receberam treinamento em tarefas domésticas e trabalharam sem pagamento para altos membros e sacerdotes da obra fundada pelo padre e santo espanhol José María Escrivá de Balaguer. A denúncia apresentada ao Vaticano afirma que "havia um plano de proselitismo" [esforço de converter pessoas a uma crença] e que tudo "foi feito com o conhecimento e consentimento das pessoas que detinham os poderes de organização e controle". "Não houve nenhuma reclamação trabalhista formal nos últimos 40 anos", responde a Opus Dei quando questionada pela BBC News Mundo. "Tampouco desde que foram realizadas as acusações públicas, tendo se passado quase um ano [desde as denúncias] e apesar de a Prelazia sempre ter estado à inteira disposição da Justiça", acrescenta. A BBC News Mundo não obteve resposta do departamento de imprensa do Vaticano ou de outras instituições da Igreja Católica em Roma. Alicia Torancio, uma das 43 denunciantes, reluta em colaborar com a comissão criada pelo Opus Dei. "Como esperam que alguém denuncie o abuso e a exploração a quem abusou e explorou?", diz à BBC. Torancio entrou na organização seguindo uma irmã mais velha que hoje também é uma das denunciantes. Ela ficou ali durante 13 anos. Entrou em 1994 com 16 e saiu em 2007, com quase 30. Agora, aos 44 anos, as marcas do que sofreu ainda estão presentes. "Nos últimos seis anos estive imersa em uma terrível depressão, me trataram com psiquiatras da organização e tive uma tentativa de suicídio. Disseram-me que esta era a minha cruz, o que eu tinha que pagar pelos pecadores, e que com meu sofrimento eu estava apoiando o trabalho apostólico. Eles só me deixaram ir quando eu não estava mais apta para trabalhar." Torancio nasceu e cresceu em Mercedes, a quase 700 km de Buenos Aires. Aos 10 anos, enquanto seus irmãos ficaram para trabalhar no campo com o pai, um trabalhador rural, ela e as irmãs foram enviadas para a casa de parentes na capital argentina para concluir o ensino fundamental e depois trabalhar como empregadas domésticas. Por meio de uma de suas irmãs mais velhas, que já trabalhava lá, ela conheceu um centro de formação para mulheres. "Ofereciam algo tentador, porque era uma casa onde se podia morar e receber treinamento", diz à BBC. Lá chegou Élida, a primeira Torancio a entrar na Opus Dei como numerária auxiliar, a categoria mais baixa de pertencimento à organização, a das "empregadas domésticas". Alicia Torancio não queria ser da Opus Dei. Mas conseguiu um emprego em uma residência masculina pertencente à organização. Como estava sozinha em Buenos Aires, ofereceram a ela alojamento na residência feminina onde ficavam todas as meninas que estudavam no Instituto de Formação em Estudos Domésticos (ICIED, na sigla em espanhol), a "escola de domésticas". "Quando você chega lá, eles começam a fazer sua cabeça. Dizem que você tem vocação para ser santa, que pode contribuir com o mundo com seu trabalho e que vai ajudar a mudar o mundo. E eu era muito idealista", lamenta. Após três meses, ela escreveu a "carta de admissão" às autoridades da organização: um texto à mão em que declarava sua vocação. Uma vez aceita, ela deixou de receber pelo seu trabalho e teve que começar a viver de um dia para o outro com as regras do "plano de vida" dos membros: acordar às 6 da manhã, tomar banho frio, rezar, estudar textos de Escrivá de Balaguer e trabalhar o resto do dia, sem remuneração. "Dizem que você oferece seu trabalho a Deus. Estava preocupada por não poder mais enviar dinheiro aos meus pais. Disseram-me: 'Você não precisa mais se preocupar com seus pais. Agora sua família é a Opus Dei'." Naquele momento, também nomearam uma diretora espiritual com quem ela devia conversar diariamente, e acrescentaram a obrigação de se confessar uma vez por semana a um padre. Recebeu também uma liga de arame com pontas, chamada cilício, e um chicote com um feixe de cordas trançadas e enceradas, a disciplina, juntamente com instruções de uso: usar o arame apertado na perna duas horas por dia e rezar, chicoteando-se nas costas uma vez por semana. Ela ainda tem as cicatrizes do cilício na coxa. Com a admissão, ela teve que ir para a "escola de domésticas". Era como uma escola secundária, mas com apenas três anos e sem diploma oficial. Elas tinham aulas de culinária, limpeza, costura e boas maneiras. As aulas eram das 14h às 19h. Os pais de algumas das meninas pagavam uma mensalidade. Aqueles que não podiam pagar, como Alicia, sentiam a responsabilidade de trabalhar mais para compensar o não pagamento. "Eles cortam seus laços com sua família e com o [mundo] lá fora, mas você também está proibida de fazer amizade com qualquer uma de suas colegas de classe. Eu também não podia compartilhar com minha irmã. Eles observam você o tempo todo e imediatamente chamam a sua atenção." O controle, diz ela, era exercido por meio de "correção fraterna": todos observam todos e relatam tudo o que veem aos diretores, que as corrigem. "Eles transformam você em uma máquina." Uma vez por ano ou a cada ano e meio, a deixavam viajar dois ou três dias para visitar os pais. Tinha que fazer um pedido especial; às vezes eles diziam sim e às vezes não. Quando recebia permissão, ela tinha de ser acompanhada por outra garota. "Você era infantilizada o tempo todo. Tinha que pedir permissão para as coisas mais bobas e não tinha dinheiro para se manter." No restante do ano, podia se comunicar por carta ou telefone. As cartas, tanto as que ela enviava como as que recebia, eram primeiro abertas e lidas pela diretora espiritual, conta Torancio. As transferências entre os centros da Opus Dei eram obrigatórias, mesmo entre províncias e países. Aos 20 anos, Torancio foi enviado para Laya, a maior residência de numerárias auxiliares do país, ao lado da sede principal da organização, "centro de estudos" por onde passam todos os membros do sexo masculino e onde também ficam as mais altas autoridades. Fica na Recoleta, bairro nobre de Buenos Aires. A sede é um grande edifício de nove andares. Ao lado está o prédio das empregadas. Pode-se ver da rua as janelas cobertas que não permitem que se veja o exterior ou o interior a partir do lado de fora. Através de uma ligação subterrânea, com portas duplas, as mulheres vão trabalhar todos os dias no edifício-sede — em horários específicos para evitar cruzar com os homens. Lá estão a cozinha, a engomaria, a tinturaria e a lavanderia. Elas também limpam os quartos e espaços comuns, como o oratório, salas de conferências, de jantar e de estar. Também costuram, bordam e fazem o que for preciso. Alicia Torancio chegou à maioridade e deu o passo final como membro da Opus Dei: a Fidelidade, que é a incorporação para a vida com compromissos de castidade, pobreza e obediência. Esse passo é para todos os membros celibatários, que não podem se casar, e ocupam as casas da obra: os numerários e numerárias, que são de alta hierarquia e profissionais das classes média e alta; e as numerárias auxiliares, mulheres de origem pobre que servem e cuidam dos outros. É o caso de Alicia. Acima de todos eles há uma cúpula de religiosos, mas eles são apenas 2% dos membros no mundo. A Fidelidade envolve o rito de colocar um anel como símbolo de união com a obra e compromisso com a pobreza, que inclui dar tudo o que se possui e se recebe: seja um presente ou o salário, no caso de quem trabalha fora das casas. Aos 22 anos, Torancio foi nomeada chefe de cozinha da sede: era responsável pelo cardápio, compras e serviço aos 100 homens que ali moravam. Foi aí que começou sua crise: "Era muita pressão e comecei a me sentir mal", lembra. Na Opus Dei há um manual para tudo. E qualquer questionamento é tratado como uma dúvida vocacional que tem uma resposta padronizada. "Qualquer dúvida vocacional era abordada pela instituição como um problema psicológico/psiquiátrico com consequente prescrição de psicofármacos para neutralizar a vontade", dizem as 43 mulheres na denúncia ao Vaticano. Os psiquiatras e psicólogos são sempre membros da organização. Alicia foi levada a um psiquiatra que disse que ela não tinha nada e que estava fingindo sua depressão. "O que eles sempre dizem é que se Jesus e os grandes santos suportaram tanta dor, como você pode não suportar?" Levaram-na para outro psiquiatra que decidiu tratá-la. "Me deram medicamentos, mas era sempre algo que funcionava no começo, mas depois voltava a piorar. Eu tomava sete ou oito comprimidos por dia. Ou mais. Eu era um zumbi e pesava 45 kg porque não conseguia comer. Caí em um 'poço' e comecei a ter pensamentos suicidas". Foram seis anos assim. "Eu não conseguia me levantar. Estava tão mal que em dado momento pediram permissão à minha família para me tratar com eletrochoque, mas felizmente eles disseram que não." Depois de uma overdose de medicamentos, ela foi internada em um hospital psiquiátrico e só então recebeu permissão para ir para casa com sua família. Foi aí que a decisão de sair começou a amadurecer. "Veja a lavagem cerebral que eles fazem, eu disse que estava indo embora porque estava prejudicando a imagem deles. Eu me sentia como uma inútil, que havia falhado com Deus. Isso é o que eles dizem." Quando voltou de Corrientes, escreveu a "carta de dispensa", porque, assim como para entrar, também é preciso permissão para sair da Opus Dei. Em ambos os casos, isso é feito por meio de um documento manuscrito que é enviado ao Prelado, autoridade máxima da organização, que reside na sede em Roma. É um edifício a poucos quilômetros do Vaticano. Ali está centralizado o controle dos 68 países em que a organização está presente. Quando saiu da Opus Dei, com quase 30 anos, Torancio tinha apenas uma mala e uma sacola com alguns objetos pessoais. Foi para Corrientes, para a casa dos pais, porque não tinha nada. Nos 13 anos em que esteve na Opus Dei, ela diz que nunca ganhou dinheiro pelo trabalho que fez. Não estava previsto pagamento. "Eles não nos diziam que estávamos trabalhando. Diziam que estávamos nos santificando, que o que Deus estava pedindo de nós era servir e que desta forma estávamos ajudando a transformar o mundo." Foi somente em 2005, com mudanças na legislação trabalhista argentina, que a Opus Dei passou a pagar às numerárias auxiliares. "Nos faziam assinar um recibo, nos mandavam sacar em um caixa automático e depois entregar tudo às diretoras. Não era possível guardar um centavo ", diz Alicia, que assim cumpria o voto de pobreza que a organização exigia. Por conta disso, ela tem os dois últimos anos de contribuições à Previdência. Nos outros 11 anos em que esteve lá, não há registro de sua passagem. "Elas eram membros da Opus Dei. Os católicos encarnam os valores do Evangelho de diversas maneiras. Os membros da Opus Dei fazem-no a partir do seu trabalho e da vida diária. Para as numerárias auxiliares, esse chamado ao trabalho materializa-se na sua escolha profissional de cuidado das pessoas e atividades ligadas à Prelazia", argumenta a organização à BBC Mundo. "Esse trabalho, como qualquer outro, é pago", afirmam. Sobre o sistema trabalhista, dizem que "a Opus Dei se adaptou às leis vigentes de cada época". "O trabalho realizado pelas numerárias auxiliares nos centros da Opus Dei foi ajustado às leis vigentes em cada época." "Eles têm que reconhecer publicamente o que fizeram conosco", afirma Torancio. "Há mulheres mais velhas com muitos problemas de saúde por causa do trabalho e que não podem sequer se aposentar."
2022-08-02
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62401002
sociedade
'Vamos falar a realidade das coisas': mãe negra conta por que decidiu falar de racismo desde cedo para os filhos pequenos
Quando os filhos ainda eram crianças, a arquiteta e escritora Joice Berth começou a falar sobre racismo com eles. Para ela, foi também uma forma de reparar uma dificuldade que enfrentou no seu passado: a falta de diálogo sobre o tema. "Sofri muito racismo na infância e na adolescência. Uma criança negra é muito vulnerável. Quando eu era criança, meus pais sabiam (sobre o racismo), davam algum tipo de orientação, mas não tanto. A família sabia, toda pessoa negra sabe, mesmo quem fala que não sabe. Alguns ficam em negação ou não querem abordar o tema com profundidade", diz Joice, hoje com 46 anos, à BBC News Brasil. Mãe de quatro filhos, um homem e três mulheres - com idades entre 26 e 20 anos -, ela conta que as conversas com os filhos desde pequenos foram uma maneira de tentar alertar sobre situações que poderiam enfrentar. "Desde cedo, pensamos (ela e o pai das crianças, já falecido): vamos falar a realidade das coisas e mostrar pessoas negras legais que a gente admira. A gente sempre trabalhou essa coisa de autoestima com eles e de escutar as reivindicações deles", comenta. Conforme os filhos cresciam, diz Joice, as conversas sobre o tema ficavam mais profundas. O diálogo entre pais e filhos sobre racismo voltou a ser debatido intensamente nos últimos dias após a repercussão de um ato racista contra dois filhos dos atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank. O casal estava em um restaurante em Portugal quando as crianças foram vítimas do ataque. Fim do Matérias recomendadas A agressora é uma mulher branca, que, segundo testemunhas, também ofendeu outros clientes negros. Ela foi levada para uma delegacia da Guarda Nacional Republicana, onde prestou depoimento e foi liberada. Nesta segunda-feira (1/8), a polícia de Portugal confirmou ao Jornal Hoje, da TV Globo, que recebeu uma queixa formal sobre o caso e abriu uma investigação. Ainda segundo o telejornal, a mulher pode pegar uma pena de seis meses a cinco anos de prisão - tudo depende de como a Corte Portuguesa vai enquadrar o caso. A atriz Giovanna Ewbank disse, durante a entrevista ao programa Fantástico, da TV Globo, que "fala muito sobre" racismo com os filhos. "É muito cruel pensar que Titi e Bless, que têm 9 e 7 anos, já têm que ser fortes. Que eles já precisam ser preparados para combater o racismo, sendo que com 9 e 7 anos são duas crianças que teriam que estar vivendo sem pensar em absolutamente nada", lamentou a atriz durante a entrevista. Ewbank disse ainda como o fato de ela ser branca pode ter mudado a forma como foi encarada a sua reação após os filhos serem vítimas do ato racista - a atriz enfrentou a responsável pelo ataque e contou que houve confronto físico. "Acho que ela nunca esperava que uma mulher branca fosse combatê-la como eu fui, daquela maneira. Eu sei que eu, como mulher branca, indo lá confrontá-la, a minha fala vai ser validada. Eu não vou sair como a louca, a raivosa, como acontece com tantas outras mães pretas, que são leoas todos os dias, assim como eu fui nesse episódio", disse Ewbank ao Fantástico. Joice afirma que se uma mãe negra reagisse de forma semelhante à atriz, a situação poderia ter outro contorno. "Se fosse uma mãe negra no Brasil, possivelmente iam depreciar, falar que é doida e agressiva, violenta e ocorreria um racismo triplo, envolvendo as crianças e a mãe." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Joice, conversar com os filhos sobre racismo foi um "um processo natural". "Não deveria ser, mas é. Enquanto o racismo reverberar na sociedade, não há como ignorar. É preciso lidar. Sou muito prática. Quando a gente tem que resolver um problema, é preciso resolver a fundo", diz. Ela relembra que a falta de diálogo com os seus pais em relação ao tema durante a sua infância e adolescência tornou ainda mais difícil enfrentar o preconceito. "Desde os cinco anos, quando entrei na escola, sofri racismo por conta do meu cabelo. A minha mãe fazia tranças e outras crianças queriam pegar. Os professores falavam que isso tumultuava as aulas. Além disso, sofri várias formas de racismo", relata. Durante a adolescência e o início da vida adulta, ela concluiu que o racismo não era "coisa da sua cabeça". Isso ocorreu, diz Joice, quando teve contato com o hip-hop e também ouviu outras pessoas negras, como os Racionais MC's, falando abertamente sobre o racismo. "Foi libertador. Vi que não é maluquice, que realmente existia um problema na sociedade e não comigo", diz Joice. E foi justamente essa ideia de que o problema está na sociedade que ela quis que os filhos entendessem desde pequenos. "Quando a gente começou a falar sobre racismo, eles (os filhos) ficaram mais quietos e ouviram. Conforme foram vivenciando as coisas, fomos estimulando o debate, até que se tornou uma constante em nossa casa", diz Joice. Ela se preocupou em incentivar a autoestima das crianças e fazer com que elas aceitassem suas características. "Conversamos também sobre colorismo (que define os negros de acordo com a tonalidade de pele e de outros traços físicos) e explicamos como a condição de ter uma tonalidade mais clara funciona sensivelmente diferente." Assim como outras tantas crianças negras, não demorou para que os filhos dela encarassem o racismo. Ela conta que eles logo foram alvos de apelidos jocosos e ouviram comentários preconceituosos. Essa situação, diz Joice, fez uma de suas filhas ficar mais calada e perder a vontade de estudar. "A minha filha chegou chorando porque falaram que o cabelo dela era uma vassoura, disseram que ela não tomava banho e por isso era daquela cor, que os pais dela eram macacos… Precisei fazer uma intervenção maior, fui na escola dela, falei com a diretora e pedi pra chamar os pais dos alunos para fazerem algo. Mobilizei a escola inteira", diz. "Depois do relato dela, outras crianças negras da escola, que era uma escola pública e tinha muitas outras crianças negras, também começaram a falar sobre o que passavam", relembra Joice. Já em relação ao filho, ela relembra que a situação mais marcante em relação ao racismo aconteceu quando ele foi parado pela primeira vez pela polícia. "O meu filho começou a ser parado pela polícia aos 17 anos. Lembro que na primeira vez ele chegou em casa meio pálido, extremamente abalado e não falou nada. Tomou banho e não quis comer nada, só deitou. Só depois de dois dias consegui que ele me contasse que foi parado pela polícia", relata. "Falaram que ele tinha roubado um celular. Ele disse que a sorte foi que isso aconteceu perto de onde ele pegava ônibus e as pessoas que estavam no ponto falaram que ele estava vindo do trabalho. Ele ficou bem mal depois disso e voltou para as atividades normais aos poucos, mas com medo", diz Joice. Ela reflete que as mães de pessoas negras têm preocupações distintas quando se trata de filhos homens ou mulheres. "Quando é menino, a preocupação é com a abordagem policial. Quando são meninas, a principal preocupação é fazer com que a autoestima delas não seja destruída quando chegarem na idade de namorar." Mas nem sempre falar sobre racismo é tarefa simples para os pais. Muitos negros podem evitar abordar o tema com os filhos porque ísso também pode ser uma forma de mexer em feridas, avalia Joice. "Esse diálogo pode ser muito precário até porque muitas vezes os pais também estão muito machucados pelo racismo. Ao mesmo tempo em que falar sobre isso pode ajudar, também pode atrapalhar, porque acaba revivendo traumas dos pais, é inevitável." "Você vê sua filha chorando porque riram do cabelo dela e acaba lembrando quando riam do seu. Ou quando você vê seu filho sofrendo uma abordagem policial e lembra como ficava apavorada quando isso acontecia com seus irmãos ou com o seu pai", acrescenta. No caso de Joice, ela frisa que o racismo causou "feridas profundas", que até hoje fazem parte da vida dela. "Mas hoje tenho mais facilidade para falar com as pessoas sobre isso, até mesmo pelos caminhos que minha vida profissional seguiu", pontua. A arquiteta e escritora destaca: é fundamental entender que o racismo é uma situação que a pessoa negra vive, "não que ela causa". - Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62386331
2022-08-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62386331
sociedade
Os assassinatos da vida real que nem Agatha Christie conseguiu resolver
Um grupo de pessoas. Um lugar tranquilo. Uma morte. Um grande mistério. Um detetive inesquecível. Um grand finale em que todos os personagens envolvidos se reúnem para uma dramática revelação do desfecho. Este é um enredo familiar à legião de leitores de Agatha Christie, escritora britânica autora de 68 romances policiais traduzidos para mais de 145 idiomas. Uma mulher cativante que foi inspirada por mistérios da vida real, casos que nunca foram resolvidos e que ganharam sobrevida em suas obras. Alguns a intrigaram particularmente, não só porque a justiça não foi feita, mas porque os suspeitos, apesar de não terem sido condenados no tribunal, foram condenados pela opinião pública, carregando a pecha de culpados pelo resto dos seus dias — situação que a autora ilustrou na obra Punição para a Inocência. Na obra, a morte de Charles Bravo é um caso em aberto que levanta uma série de suspeitas e destrói a vida de inocentes, especialmente a de sua esposa, Florence. Em Um Crime Adormecido, por sua vez, a detetive Miss Marple aponta que o assassinato "não foi comprovado no caso Madeleine Smith", mas que muitos acreditavam que ela era culpada. Fim do Matérias recomendadas Mas quem eram essas mulheres e o que aconteceu? Alguns destes casos foram detalhados pelo programa de rádio e podcast da BBC Lady Killers, que conta as histórias de mulheres suspeitas de homicídio no século 19. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Madeleine Smith era uma figura da alta sociedade em Glasgow, na Escócia, na década de 1850. Ela vivia uma vida que parecia perfeita: ia a bailes e concertos, passeava pelas lojas nas áreas comerciais da cidade e passava os verões na casa de campo de sua família. Mas tinha um segredo: contra todas as regras da decência da era vitoriana (período de reinado da Rainha Vitória no Reino Unido, entre 1837 e 1901), ela embarcou em uma aventura amorosa com um homem dez anos mais velho que ela e, ainda por cima, um balconista imigrante, alguém muito abaixo de sua posição na hierarquia social. Seu nome era Pierre Emile L'Angelier. Ela o conheceu em 1855, quando tinha 19 anos. Em pouco tempo, se apaixonaram, passaram a trocar cartas com frequência e se tornaram íntimos. Dois anos depois, contudo, Madeleine ficou noiva de um rapaz escolhido por seus pais — alguém que, obviamente, frequentava os mesmos espaços que ela na aristocracia britânica. Quando Emile descobriu, os dois brigaram. Madeleine queimou as cartas trocadas entre eles e implorou a Emile que devolvesse as que ele tinha, temendo que pudessem eventualmente ser descobertas e arruinar sua reputação. De coração partido e com ciúmes, ele não apenas recusou o pedido, como também ameaçou enviar a correspondência a seu pai para expor o relacionamento. Em pânico, Madeleine pediu que eles se encontrassem. Na noite de 22 de março de 1857, Emile adoeceu e morreu por envenenamento com arsênico. Madeleine foi acusada de assassinato. Se fosse considerada culpada, seria enforcada. O julgamento causou alvoroço. Suas mais de 100 cartas, destinadas apenas aos olhos de seu amante, foram lidas em público para que todos ouvissem. As provas mais públicas de seu relacionamento, considerado escandaloso pela sociedade da época, foram produzidas com sua própria caligrafia e, de acordo com a Promotoria, representavam causa provável para o assassinato. "Sua visita de ontem à noite acabou. Eu ansiava tanto por ela. Como passou rápido. Querido Emile, te amo cada vez mais. Sou sua esposa, porque nunca poderei ser a esposa de outro depois de nossa intimidade." Ela tinha perdido a virgindade fora do casamento, algo que, naquela época, arruinava a vida de jovens — por ser considerado um impedimento para que se casasse com qualquer outra pessoa. Durante a investigação, a polícia descobriu que Madeleine havia comprado arsênico; segundo ela, para usar em sua própria pele. A acusação também contou com o depoimento de uma testemunha que disse que Emile lhe havia dito que Madeleine havia feito um chocolate quente para ele quando se encontraram pouco antes de sua morte. Essa teria sido a forma como Madeleine o teria envenenado. Com a ajuda do eminente toxicologista Sir Andrew Douglas Maclagan, a defesa contestou esse argumento. Não só é verdade que o arsênico pode ser usado como cosmético, disse o especialista, mas, para ser letal e indetectável quando ingerido, ele deve ser completamente dissolvido no fogo por meia hora. Tentar transformá-lo em chocolate quente seria ainda mais difícil. O júri emitiu o veredicto: o crime não havia sido provado. Madeleine não foi considerada culpada nem inocente. Ele estava livre, mas sua reputação estava maculada para sempre. Não havia escolha a não ser mudar de nome e desaparecer. Em 21 de abril de 1876, em uma residência luxuosa batizada de The Priory, no bairro de Balham, no sul de Londres, um advogado chamado Charles Bravo morreu de envenenamento após três dias de agonia. Ele bebera água contendo antimônio de potássio. Em seu leito de morte, ele não disse quem poderia tê-lo envenenado e permaneceu estranhamente calmo durante seus últimos dias. Os seis médicos que o trataram e os detetives encarregados do caso interpretaram seu silêncio como um sinal de que ele havia cometido suicídio. Ainda assim, amigos e familiares de Charles, não convencidos, exigiram outra investigação. Foi então que o caso começou a atrair atenção da imprensa. Inicialmente, os artigos de tabloides apontaram como suspeito um cocheiro demitido por Charles, que teria gritado em um pub que "o Sr. Bravo estará morto em cinco meses", e depois a dama de companhia Jane Cox, a quem supostamente Charles havia ameaçado demitir. Em pouco tempo, contudo, os holofotes se voltaram para sua esposa. Durante os três dias em que Florence Bravo testemunhou, os advogados da família Charles estavam ocupados descobrindo detalhes de um relacionamento que ela teve com o eminente Dr. James Manby Gully, médico cujos clientes incluíam Charles Darwin e Florence Nightingale. Com esses ingredientes, o que ficou conhecido como "o mistério de Balham" tornou-se um dos casos de assassinato mais sensacionais da era vitoriana, com cobertura diária em jornais e multidões se aglomerando no bairro para acompanhar a história. O inquérito acabou virando uma investigação sobre a moralidade sexual de Florence, que não se encaixava no roteiro prescrito para as mulheres da época. Aos 19 anos, ela tinha se casado com Alexander Ricardo, filho único de John L. Ricardo, o fundador da International Telegraph Company, no que os jornais descreveram como "a união de duas grandes famílias da Europa". Alexander era, contudo, um alcoólatra violento — e Florence decidiu se separar dele, apesar dos apelos de seus pais para que ela permanecesse no casamento. Antes que os papéis da separação fossem concluídos, Ricardo morreu de hematêmese (perda de sangue pela boca), desencadeada pela embriaguez, em um apartamento em Colônia, na Alemanha, que dividia com "uma companheira". Com a herança — e os cabelos tingidos de vermelho —, Florence viajou pela Europa com o Dr. Gully, casado e 37 anos mais velho que ela. Em 1873, ela sofreu um aborto espontâneo ou, segundo especulações, aborto induzido por Gully para evitar novos escândalos. O que quer que tenha acontecido deixou Florence muito doente, e a experiência a levou a terminar o relacionamento com o médico e buscar a reconciliação com os pais. Com a intenção de restaurar a posição da jovem na sociedade, sua dama de companhia, Jane Cox, planejou encontros com Charles, que acabaria se tornando seu segundo marido. Quando ele morreu, eles estavam casados ​​havia apenas 5 meses, mas o relacionamento já estava sob tensão. Charles tinha ciúmes de Gully e, apesar de ter obtido um acordo financeiramente favorável antes do casamento, estava frustrado por não ter controle ilimitado sobre a vasta fortuna de sua esposa, única razão pela qual tinha se casado com ela, segundo disse ao advogado em sua primeira visita após o casamento. Florence havia sofrido dois abortos consecutivos nesse curto espaço de tempo e, embora não se sentisse bem, seu marido insistiu que ela cumprisse com as "obrigações conjugais". No final, a investigação não conseguiu produzir provas suficientes para acusar alguém da autoria do crime. Florence nunca foi levada a julgamento. Para a opinião pública, entretanto, ela conseguiu se safar do assassinato do marido. "E, assim, Florence Bravo, abandonada por sua família, morreu sozinha por decorrência da bebida. A Sra. Cox, condenada ao ostracismo com três filhos pequenos, viveu até ficar velha sabendo que a maioria das pessoas que conhecia achavam que ela era uma assassina. Dr. Gully se viu arruinado profissional e socialmente", diz um personagem de Punição para a Inocência. "Alguém era culpado, e se safou. Mas os outros eram inocentes, e não se safaram." E esse culpado, segundo acreditava Agatha Christie, teria sido o médico. Sua teoria era que Gully havia prescrito remédios para Charles, que sofria de neuralgia e reumatismo, e que uma das pílulas do frasco estava envenenada com antimônio. "Sempre pensei que ele era a única pessoa que tinha um motivo avassalador e o tipo de personalidade certo: extremamente competente, bem-sucedido e considerado acima de qualquer suspeita", escreveu ela em uma carta ao editor do jornal Sunday Times Magazine em 1968.
2022-07-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61913881
sociedade
Por que Instagram desistiu dos planos de 'imitar' TikTok
O Instagram anunciou a suspensão do lançamento de novas funções do seu aplicativo após as críticas que recebeu de usuários, influenciadores e celebridades. Entre os novos recursos estava o aumento no conteúdo de vídeos recomendados, em um estilo similar ao aplicativo rival TikTok. Os modo de exibição da tela e o feed (onde ficam publicações de fotos e vídeos) foram criticados, porque usuários disseram que sentiram que não podiam ver fotos de amigos e familiares como antes. A Meta, empresa que controla o Instagram, disse que quer "um tempo" para fazer as mudanças corretas. A mudança do Instagram para mais conteúdo de vídeo parece responder à crescente popularidade do TikTok, onde os usuários postam e assistem a gravações em vez de fotos. Fim do Matérias recomendadas Segundo dados da empresa de análise digital Sensor Tower, o TikTok foi baixado mais de três bilhões de vezes em todo o mundo, tornando-se o primeiro aplicativo não pertencente à Meta a atingir esse número. O chefe do Instagram, Adam Mosseri, disse ao portal de notícias The Verge que a versão de teste de renovação do aplicativo será descontinuada gradualmente em algumas semanas. "Estou feliz por termos arriscado. Se não falharmos de vez em quando, não estamos pensando grande o suficiente ou sendo ousados ​​o suficiente", disse ele por meio de sua conta no Twitter. "Definitivamente, precisamos dar um grande passo para trás. Precisamos aprender e depois voltaremos com alguma ideia nova. Então, vamos trabalhar nisso", acrescentou. Mosseri já havia postado um vídeo explicando as mudanças, dizendo que vídeos em tela cheia seriam promovidos em vez de fotos. Mas depois de algumas críticas duras, ele esclareceu que eles continuarão "apoiando as fotos". Em resposta ao vídeo inicial de Mosseri, a modelo americana Chrissy Teigen disse que os usuários da plataforma "não querem fazer vídeos". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As irmãs Kim Kardashian e Kylie Jenner também compartilharam uma "petição" online para "fazer que o Instagram volte a ser o Instagram" em seus stories. Toni Tone, autora e criadora de conteúdo, postou como ficou frustrada com as mudanças e como o Instagram era muito melhor quando ela recebia conteúdo das pessoas que havia escolhido seguir. "Com base em nossas descobertas e feedback da comunidade, estamos pausando o teste de tela cheia no Instagram para que possamos explorar outras opções e estamos reduzindo temporariamente o número de recomendações que você vê em seu feed para que possamos melhorar a qualidade de sua experiência", disse um porta-voz da Meta à BBC. "Reconhecemos que as mudanças no aplicativo podem ter um ajuste e, embora pensemos que o Instagram precisa evoluir à medida que o mundo muda, queremos aproveitar o tempo para garantir que faremos isso bem", acrescentou.
2022-07-29
https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-62355855
sociedade
'Fiquei tetraplégico após um mergulho': o preocupante alerta sobre acidentes na água
Em 25 de dezembro de 2019, o comerciante Elder Souza celebrava uma nova fase da vida junto com a família. Ele e a esposa esperavam a chegada do primeiro filho do casal e queriam que os meses seguintes fossem de alegria e dedicação aos preparativos para o nascimento do bebê. Naquele Natal, Elder, hoje com 29 anos, havia se reunido com os familiares em um sítio no município de Bodoquena, no interior do Mato Grosso do Sul. No período da tarde, ele e os parentes foram para um rio da região. "Fiquei um pouco pra trás porque estava com a minha esposa grávida, e o acesso não é muito fácil. Todos os meus parentes foram chegando e entrando no rio", diz Elder à BBC News Brasil. "Quando cheguei no rio, notei que havia uma parte rasa e uma outra funda. Vi que o meu tio tinha pulado e caiu direto no fundo. Então, eu também queria pular direto na parte funda. Fui até um barranco próximo e corri para pegar impulso para saltar. Pulei de cabeça no rio. Bati a cabeça em um banco de areia e quase desmaiei. Senti tudo preto e na hora só pensei: não posso morrer, porque tenho o meu filho", conta o comerciante. Elder diz que os parentes pensaram, a princípio, que ele estava brincando quando não levantou da água. Porém, pouco depois, os familiares perceberam que algo estava errado. "Não conseguia sentir mais nada no meu corpo", relata o comerciante. Fim do Matérias recomendadas "O meu cunhado, que tem experiência em resgates, me puxou devagar e me levou pra beira do rio. Falei que não sentia o meu corpo. Então, pegaram uma tábua ali perto, me amarraram em cima, me levaram para um lugar fora do rio e buscaram por sinal para ligar para o Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência)", conta Elder. No hospital, os exames apontaram que ele havia sofrido uma grave lesão na medula e tinha perdido os movimentos abaixo do pescoço. "A gente constatou que o Elder estava tetraplégico. Era uma lesão medular completa", explica o neurocirurgião Adalberto Santiago Junior, que acompanhou o comerciante. Casos de pessoas que sofrem grave lesão na medula após mergulhar na água — seja em rio, mar, cachoeira ou piscina — não são considerados raros. Especialistas consideram que essa situação é recorrente. Entidades como a Sociedade Brasileira de Coluna (SBC) apontam o mergulho em águas rasas como uma das principais causas de lesão na coluna no país, principalmente durante o verão. "Esse problema ocorre quando dão aquele salto que chamam de pulo "de bico" ou de "ponta cabeça". Isso ocorre, principalmente, quando a pessoa desconhece completamente a água onde está se jogando. Pode ser um lago, um rio, uma praia ou uma piscina. Se a água for turva, é pior ainda porque a pessoa não enxerga nada", explica o ortopedista e traumatologista Orlando Righesso Neto, um dos coordenadores da SBC. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No hospital, Elder passou por uma cirurgia para fixação da coluna vertebral. "Uma vértebra dele que estava toda fraturada foi retirada e foi colocado algo como se fosse uma gaiola metálica no lugar, como se fosse um substituto para aquele corpo vertebral fraturado, junto com enxerto ósseo, uma placa e mais alguns parafusos para fixação definitiva, como se fosse uma fusão com as outras vértebras para virar um bloco ósseo fixo", explica Adalberto Santiago, que foi um dos responsáveis por realizar o procedimento no comerciante. O neurocirurgião frisa, porém, que essa cirurgia não significa que o paciente irá retomar os movimentos. "Mesmo sabendo que ele tinha uma lesão completa e considerada definitiva na medula, a gente fez essa estabilização porque ele tinha uma instabilidade na coluna que não o deixava, por exemplo, manter a cabeça sustentada", diz o médico. "Quando o paciente tem uma fratura instável na coluna, é preciso que ela seja estabilizada para devolver essa sustentação da cabeça. Embora a gente restabeleça a anatomia, retirando aquilo que comprimia a coluna, a recuperação dos movimentos depende do grau da lesão inicial", acrescenta o especialista. Depois da cirurgia, Elder notou que, assim como quando foi retirado da água, permanecia sem os movimentos dos braços e das pernas. Logo, foi informado que havia ficado tetraplégico. "Quando o médico me contou, no dia seguinte à cirurgia, eu pensei: bem, vamos ver o que vem pela frente. Sempre pensei positivamente", diz. Naquele momento, o rapaz que se considerava aventureiro e amava viajar começou a rever os objetivos para o futuro. Ele passou quase duas semanas no hospital. Ao receber alta, o comerciante passou cerca de três meses na casa dos pais. Depois, foi para a cidade em que mora com a esposa, Maira Lazarini, 35 anos, em Nova Andradina (MS). O retorno para casa é classificado por ele como o momento em que "a ficha caiu". "O mundo desabou pra mim. Ali precisei encarar a realidade e depender de uma cuidadora, uma pessoa que não era da minha família, até mesmo para me alimentar. Eu só queria a minha esposa, mas ela não podia me ajudar tanto porque o nosso filho estava prestes a nascer", diz Elder. Enquanto vivia a nova realidade, Elder ficou mais atento às histórias de lesões causadas por mergulho em água rasa. Ele passou a notar que seu caso estava longe de ser o único. "Vi vários relatos de pessoas que passaram por algo assim. Por exemplo, soube de um caso que aconteceu três dias após o meu e outro que ocorreu um mês depois", diz Helder. Segundo a SBC, o país não possui dados específicos sobre lesões causadas por esse tipo de situação. Os relatos médicos, conforme a Sociedade Brasileira de Coluna, apontam que a imensa maioria desses casos envolvem homens. Os mergulhos em águas rasas podem causar grave lesão medular quando a pessoa bate a cabeça ao pular. O trauma ocorre porque esse impacto comprime a coluna, o que causa a lesão que pode ter diferentes níveis — nos casos mais graves pode causar tetraplegia ou até mesmo levar à morte. "O problema é quando a pessoa se projeta para dentro da água de cabeça e desconhece a profundidade. A lesão acontece porque ela acaba atingindo o fundo, o corpo se projeta por cima do crânio e isso impacta a coluna cervical, que é muito frágil porque é composta por ossos pequenos. Dependendo do nível que a coluna fica comprometida, isso pode interromper a respiração espontânea e levar à morte", comenta o traumatologista Orlando Righesso. Ele menciona que lesões do tipo podem ocorrer também em acidentes automobilísticos ou quedas. "Tudo isso pode causar lesão cervical quando o pescoço torce", diz o médico. Nos casos da água, Righesso frisa que outro risco é que a pessoa pode morrer afogada se não receber ajuda com urgência, já que perde os movimentos dos membros após o impacto. Entre as orientações para coibir acidentes do tipo na água estão conselhos como evitar mergulhar em água turva ou desconhecida, não mergulhar após consumir bebidas alcoólicas ou substâncias que atrapalhem os reflexos e não empurrar pessoas para dentro da água. Os especialistas destacam que caso precise ajudar uma pessoa acidentada, é preciso evitar que ela mexa a cabeça para não piorar a lesão e é fundamental buscar uma forma de imobilizar o pescoço, além de chamar ajuda médica com urgência. A tetraplegia, apontam especialistas, costuma ser uma situação irreversível. "Se for uma lesão parcial ou incompleta da medula, depois de muito tratamento e fisioterapia a pessoa pode voltar a andar com ajuda de muleta ou andador. Mas em caso de tetraplegia, quando há a lesão completa da medula, os casos são irreversíveis. Até o momento não existe cura para a tetraplegia, não há nada que possa reverter uma lesão medular completa. Já há testes com células-tronco, mas nada certo até o momento", diz Righesso. Para tentar evoluir nos movimentos, Elder faz fisioterapia com frequência. Ele comemora que conseguiu, nos últimos anos, controlar um pouco mais o tronco e também parte dos braços. Mas o comerciante considera que ainda está muito distante de seu objetivo. "Espero ficar independente o máximo que conseguir. É difícil precisar de alguém para tomar banho, dirigir, me alimentar ou até tomar água. É muito melhor fazer as coisas com as nossas próprias mãos", diz. Atualmente, Elder retomou a rotina de trabalho na loja de roupas que tem junto com a esposa. Para as atividades do cotidiano, ele recebe o apoio de uma cuidadora. "Levanto cedo e a cuidadora me leva para a loja. Ela chega, me tira da cama, faz a higienização, coloca roupa, me ajuda a tomar café…", detalha. Todo o acompanhamento que ele recebe é feito de modo particular. A família considera que o custo com a recuperação dele é uma das maiores dificuldades. "No primeiro ano, a gente passou se desprendendo de todo o recurso que juntamos, como carro, para custear o acompanhamento", detalha Elder. "O mais difícil é a falta de amparo. Não recebemos nenhum apoio (do poder público). Foi como se falassem: vai para casa, se virem para arrumar uma cama hospitalar, uma cadeira de rodas… A família correu atrás do que dava. Conseguimos pagar fisioterapeuta e o Elder teve um bom acompanhamento. Só conseguimos fazer um plano de saúde agora, porque nenhum aceitava a gente após o acidente. Precisamos entrar no Procon para que o plano aceitasse a gente", diz Maira, esposa de Elder. Para ajudar a custear os gastos, o casal costuma fazer diversas ações nas redes sociais, como rifas. Apesar dos problemas, Elder considera que as dificuldades foram amenizadas pelo nascimento do filho, hoje com dois anos. "Ele foi a luz no fim do túnel e a minha alegria. Depois do nascimento dele, aprendi a me adaptar melhor a essa nova realidade", diz. Mesmo tendo ouvido que dificilmente conseguiria retomar plenamente os movimentos, Elder ainda tem esperança de que possa surgir um tratamento que possa ajudá-lo a voltar a andar.
2022-07-29
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62217069
sociedade
Vídeo, Orfanatos na Ucrânia: crianças amarradas e homens em berçosDuration, 2,31
A BBC teve acesso a algumas instituições na Ucrânia onde há maus-tratos de pessoas com deficiência. Cerca de 100 mil crianças e jovens vivem nessas instituições, que são anteriores à guerra com a Rússia. Entidades de direitos humanos dizem que a Ucrânia não deve ser aceita dentro da União Europeia até que feche essas instituições. O governo ucraniano prometeu uma série de reformas nos últimos anos, reconhecendo que seu sistema precisa mudar.
2022-07-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62342149
sociedade
'O verão também é nosso': a campanha do governo espanhol para combater preconceito contra mulheres
O Ministério da Igualdade da Espanha lançou uma campanha para incentivar mulheres preocupadas com a aparência a ir à praia neste verão. "O verão também é nosso", diz o slogan da campanha, que retrata cinco mulheres de diferentes formas e tamanhos relaxando na praia, sendo uma delas de topless e mastectomizada (retirada total ou parcial da mama). Segundo o Instituto das Mulheres, que dirigiu a campanha, é uma tentativa de mostrar que todos os corpos têm valor. Antonia Morillas, diretora da entidade, disse que as expectativas sobre a aparência afetam não apenas a autoestima das mulheres, mas negam seus direitos. "Todos os corpos são válidos e temos o direito de aproveitar a vida como somos, sem culpa ou vergonha. O verão é para todas!", escreveu Irene Montero, ministra da Igualdade da Espanha, em sua conta pessoal no Twitter. Fim do Matérias recomendadas Na mesma rede social, a ministra de Direitos Sociais do país, Ione Belarra, disse: "Todos os corpos são corpos de praia. E montanha. Nossos corpos devem ser cuidados, respeitados e apreciados". Mas a campanha não agradou a todos. Houve quem perguntasse se ela deveria ser ampliada para incluir homens fora do chamado "padrão de beleza". Já o político de esquerda Cayo Lara disse que a campanha era o "cúmulo do absurdo", tentando "criar um problema onde não existe".
2022-07-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62329064
sociedade
70 anos da morte de Evita: o destino extraordinário e macabro do corpo de Eva Perón
A vida de María Eva Duarte de Perón, mais conhecida como Evita, foi tão mítica que inspirou um dos musicais mais populares da história. Neste 26 de julho, quando se completam 70 anos de sua morte, a ex-primeira-dama permanece como a mulher mais famosa da Argentina. Lendária não foi apenas a vida da mulher de Juan Domingo Perón, o fundador do movimento peronista. A morte de Evita também. Dois milhões de pessoas foram às ruas para acompanhar a passagem de seu caixão. Seu velório durou duas semanas. Mas não acabou aí. O corpo da ex-primeira-dama enfrentou uma odisseia até chegar ao seu atual local de descanso, no cemitério da Recoleta, bairro da elite de Buenos Aires. A atriz que deixou sua carreira para se tornar "mãe dos pobres", que cultivou tanto adoração quanto ódio entre os argentinos durante os tempos de seu marido no poder, morreu aos 33 anos em razão de um câncer de colo do útero. Fim do Matérias recomendadas O nível de fervor que ela gerou e a importância simbólica de Evita para o peronismo foi tal que, pouco antes de sua morte, o Congresso lhe concedeu o título de Chefe Espiritual da Nação. Perón queria que sua segunda esposa fosse embalsamada e que seus restos mortais descansassem no Monumento ao Descamisado, um mausoléu faraônico que seria construído especialmente para Evita. A conservação do corpo foi confiada ao prestigiado anatomista espanhol Pedro Ara, que começou a tarefa poucas horas depois da morte dela. No entanto, transformar Evita em "uma estátua" - como Ara registrou em suas memórias - levaria muitos meses. Enquanto se planejava a construção do gigantesco mausoléu, o médico fazia seu trabalho no segundo andar da Confederação Geral do Trabalho (CGT), principal central sindical da Argentina, para onde o corpo havia sido levado após o histórico funeral. Ara completou sua tarefa um ano depois, mas o mausoléu ainda era apenas um projeto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os planos tomaram um rumo inesperado em 1955, três anos após a morte de Evita, quando Perón foi derrubado por um golpe militar durante a chamada Revolução Libertadora, que proibiu o peronismo por quase duas décadas. O presidente deposto fugiu para o exílio, mas o corpo de Evita permaneceu na CGT, sob os cuidados de Ara. O que aconteceu em seguida ficou em segredo por 16 anos, e só seria revelado décadas depois graças a investigações jornalísticas e livros como Santa Evita (1995), de Tomás Eloy Martínez, que acaba de ser transformado em série pela plataforma Star+. Um dos trabalhos que foram mais a fundo foi realizado por Miguel Bonasso, jornalista, político e ex-integrante da guerrilha peronista Montoneros. Também serviu de roteiro para o documentário Evita - La Tumba Sin Paz (Evita - O Túmulo Sem Paz, em tradução livre), realizado em 1997 pelo cineasta e atual ministro da Cultura da Argentina, Tristan Bauer. Segundo Bonasso, os militares que derrubaram Perón queriam se certificar que o corpo que jazia na CGT era de fato o de Evita e não "uma boneca de cera". "Para a avergiuação, nomearam uma comissão de médicos notáveis, que ​​extraíram um pedaço de tecido da orelha esquerda para exame histopatológico e cortaram um dedo para [conferir] a impressão digital", diz o documentário sobre as duas primeiras mutilações sofridas pelo cadáver de Evita. Depois de realizar os exames, que incluíram uma série de raios-X, foi confirmado que o corpo pertencia à ex-primeira-dama e que Ara conseguiu preservá-lo "com todos os seus órgãos internos". O medo de que os peronistas tentassem roubar o corpo para "usá-lo como uma tocha para incendiar o país" levou os militares a arquitetar um sinistro plano secreto: sequestrar o corpo de Evita e escondê-lo. O general Pedro Eugenio Aramburu, que comandou a Argentina entre 1955 e 1958, confiou a operação ao tenente-coronel Carlos Moori Köenig, chefe do Serviço de Inteligência do Exército (SIE). Segundo o historiador argentino Felipe Pigna, que escreveu dois livros sobre Eva Perón, a ordem era sequestrar o corpo e dar-lhe "um enterro cristão, que não poderia significar outra coisa senão um enterro clandestino". Mas Moori Köenig desobedeceu ao presidente. Seus homens levaram o corpo em uma caixa comum e sem identificação e tentaram escondê-lo em diferentes partes de Buenos Aires. No entanto, seus movimentos foram seguidos por membros da nascente resistência peronista, que observavam o caminho furtivo do corpo e deixavam velas e flores - segundo Pigna, da planta Myosotis, mais conhecida como "não me esqueça" -, indicando que eles sabiam do paradeiro do corpo. Em seu site elhistoriador.com.ar, Pigna contou como o crescente nervosismo dos sequestradores acabou causando uma tragédia, fato também registrado no livro Santa Evita. Quando Moori Köenig colocou o corpo embalsamado aos cuidados pessoais de seu vice, major Eduardo Arandía, o caixão com o corpo de Evita foi escondido no sótão da casa que dividia com a esposa e a filha pequena. "A paranoia impediu o major Arandía de dormir", diz Pigna. "Uma noite, ele ouviu barulhos em sua casa na avenida General Paz, 500, e, acreditando que era um comando peronista que vinha resgatar o corpo, pegou sua pistola 9 milímetros e esvaziou o pente em um vulto que se movia na escuridão: era sua esposa grávida, que caiu morta no local." Após esse episódio, Moori Köenig levou o corpo de Evita para uma pequena sala ao lado de seu escritório, onde o colocou na posição vertical, escondido dentro de uma caixa que originalmente continha material para transmissões de rádio. Pigna e Bonasso concordam que o coronel tinha uma obsessão pelo cadáver de Evita, que também exibia "como troféu". Mas uma das pessoas a quem Moori Köenig mostrou o corpo, a jovem María Luisa Bemberg - que mais tarde se tornaria uma cineasta premiada - ficou horrorizada e revelou o segredo a um amigo de sua poderosa família que tinha um importante cargo militar. Foi assim que o presidente Aramburu descobriu o segredo. Assim, ele substituiu Moori Köenig e nomeou em seu lugar o tenente-coronel Héctor Cabanillas, um duro antiperonista que havia organizado ataques frustrados contra o ex-presidente no exílio. Cabanillas propôs retirar o corpo do país e em 1957 iniciou a Operação Transferência, também conhecida como Operação Evasão. Entrevistado para o documentário Evita - La Tumba Sin Paz, Cabanillas, morto em 1998, explicou que sua decisão de levar o corpo para o exterior não se baseou apenas em informações que indicavam que "os comandos peronistas estavam preparados para resgatar o cadáver e usá-lo como uma bandeira política para seus propósitos". Ele também temia "pessoas do governo que pretendiam desaparecer com o corpo", seja jogando-o no rio (uma prévia dos "voos da morte" da ditadura argentina da década de 1970) ou "explodindo o prédio" do Serviço de Inteligência do Exército para que os restos mortais sumissem. Foi decidido transferir o corpo para a Itália, objetivo que, disse Cabanillas, foi alcançado "graças à intervenção ativa e muito especial da Igreja [Católica]". "Um representante de Sua Santidade [o papa] interveio diretamente para abrir o caminho", disse o militar sobre a operação - tão secreta que nem o presidente sabia dos detalhes. O representante do Vaticano comprou um túmulo em um cemitério comunal em Milão e ficou encarregado de processar os papéis para a chegada do corpo. Em abril de 1957, o caixão de Eva Perón foi transferido de navio para Gênova, fazendo-o passar como o de uma viúva italiana que havia morrido na Argentina chamada María Maggi de Magistris. Pigna conta que os dois homens encarregados da transferência tiveram um susto quando chegaram ao porto genovês, pois encontraram uma grande multidão esperando a chegada do navio e temiam que fossem adoradores de Evita (que havia sido muito popular durante suas visitas à Itália e à Espanha nos anos 1940). Mas o grupo aguardava por partituras do compositor Giuseppe Verdi que viajavam no mesmo navio e haviam sido repatriadas do Brasil. O caixão foi transferido para Milão, onde os restos mortais foram finalmente enterrados no cemitério Maggiore. Evita passaria 14 anos enterrada sob uma lápide falsa. Para não levantar suspeitas, uma freira chamada Giuseppina foi até paga para levar flores ao túmulo. "Tia Pina", como era conhecida, "nunca soube que levava flores para Eva Perón", diz Pigna, que a entrevistou. O destino dos restos mortais de Evita foi um mistério para os argentinos até 1970. Naquele ano, um grupo de jovens Montoneros sequestrou e assassinou o ex-presidente Aramburu, acusando-o, entre outras coisas, de ter feito o corpo desaparecer. Em meio à crise e ao crescente poder da juventude peronista, o novo líder militar do país, general Alejandro Lanusse, propôs um "Grande Acordo Nacional" com Perón e - como sinal de boa vontade - ofereceu devolver ao ex-presidente exilado os restos mortais de sua segunda esposa. Lanusse pediu a Cabanillas que organizasse a Operação Devolução. No final de 1971, o corpo foi exumado e levado por estrada para a residência de Perón em Madrid. De acordo com a investigação de Bonasso, o ex-presidente tirou fotos do corpo da ex-mulher no local, revelando 35 ferimentos diferentes. Mas essas imagens permaneceram ocultas. Bonasso também afirma que, enquanto o corpo permanecia na residência de Perón na capital espanhola, sua jovem terceira esposa, María Estela Martínez - mais conhecida como Isabel -, realizava cerimônias secretas de "transmutação de poder", de mãos dadas com o seu braço direito, José López Rega, conhecido como "o bruxo" pelas suas conexões com o esoterismo. A intenção era receber "o carisma de Evita" (mas não há provas de que tal episódio tenha de fato ocorrido). Após o retorno de Perón à Argentina, em 1973, e o triunfo nas eleições daquele ano, com Isabel como vice-presidente, cresceu a pressão para que os restos mortais de Evita fossem repatriados. Mas isso só aconteceu depois da morte do fundador do peronismo, em 1974. Em um macabro "olho por olho", o que finalmente fez o corpo embalsamado de Eva Perón retornar à Argentina foi o roubo de outro cadáver: Aramburu, o homem que havia encomendado o sequestro da ex-primeira-dama. A mesma guerrilha que havia executado Aramburu roubou seu corpo do cemitério da Recoleta e exigiu como resgate que o novo governo de Isabel Perón trouxesse de volta a "companheira Evita". Isso aconteceu e, em novembro de 1974, o corpo da ex-primeira dama retornou definitivamente ao seu país, onde foi mumificado, restaurado e exibido junto ao de seu marido - ele, em caixão fechado - na cripta funerária da Quinta de Olivos, a residência presidencial. A ideia de Isabel era criar um grande mausoléu - o Altar da Pátria - para abrigar os restos mortais de ambos e de outros heróis nacionais, mas esse projeto também foi interrompido. Com menos de dois anos de governo, os militares a derrubaram e voltaram ao poder na Argentina, dando origem ao regime mais sangrento do país. O novo governo entregou os restos mortais de Evita aos Duarte, a família da ex-primeira-dama, que a enterrou sob rígidas normas de segurança no mausoléu da família na Recoleta, onde já estavam sua mãe e seu irmão Juan. Foi assim que a "mãe dos pobres" foi parar em uma local no cemitério mais caro e exclusivo de Buenos Aires e, ainda hoje, 70 anos depois de sua morte, segue como o mais visitado.
2022-07-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62311886
sociedade
O que é verdade - e alguns mitos - sobre como as cores influenciam nosso comportamento
O nosso mundo está repleto das mais diversas cores, mas certos tons podem ter impacto surpreendente sobre a nossa capacidade de concentração, nosso humor e até sobre os sabores que sentimos. Alguns anos atrás, uma curiosa tendência começou a se espalhar pelas prisões na Europa e na América do Norte. Elas começaram a pintar algumas das celas de rosa. Isso se tornou tão comum que, em 2014, uma em cada cinco prisões e delegacias da Suíça tinha pelo menos uma cela pintada com um tom forte dessa cor. Essa decoração não era uma decisão estética, nem para agradar aos criminosos, mas sim refletia um estudo científico dos anos 1970. Foi nessa época que o pesquisador Alexander Schauss convenceu uma unidade correcional da Marinha americana a pintar de rosa algumas das suas celas de detenção. Sua teoria, baseada nos seus próprios experimentos, era que a cor poderia causar influências positivas sobre o comportamento dos seus ocupantes, reduzindo e acalmando seu estresse. Fim do Matérias recomendadas Os resultados indicaram que ele estava certo. Um memorando redigido pelo Departamento de Pessoal Naval dos Estados Unidos afirmou que os prisioneiros precisavam de apenas 15 minutos de exposição à cela rosa para reduzir seus comportamentos agressivos e potencial de violência. Testes em outros centros de detenção aparentemente confirmaram suas descobertas e, após sua publicação em 1979 e 1981, a tonalidade que ele usou — inicialmente produzida empregando 473 ml de tinta vermelha semi-brilhosa para uso externo e um galão (4.546 ml) de tinta látex de cor branca para uso interno — começou a espalhar-se por presídios de todo o mundo, por suas propriedades de mudar o humor dos detentos. Esse tom de rosa (denominado oficialmente P-618, mas que Schauss chamava de Rosa de Baker-Miller, em homenagem aos diretores do centro de detenção naval onde foi testado pela primeira vez) ficou conhecido por vários nomes, desde "rosa da cela da embriaguez" até "rosa calmante", nos diversos lugares do mundo onde foi usado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Só há um problema: os resultados de Schauss nunca foram reproduzidos com sucesso. "Houve um estudo em 2015, conduzido de forma adequada e sob condições controladas, que não encontrou nenhuma evidência de que o rosa reduza a agressividade", segundo Domicele Jonauskaite, pesquisadora de cores da Universidade de Viena, na Áustria. Já um estudo do Estabelecimento Penitenciário de Pöschwies, na Suíça, envolveu 59 detentos do sexo masculino e não encontrou diferença nos níveis de agressão dos detentos em celas pintadas de branco e de rosa. Mesmo com os questionamentos sobre o aparente efeito tranquilizante do rosa, a rapidez da sua adoção reflete algo profundo na psique humana sobre o poder das cores. E talvez não seja um equívoco. Existem evidências de que as cores podem influenciar o nosso comportamento sem percebermos — e de formas surpreendentes. E a cor também pode ser usada para desmoralizar alguém ou um grupo. Um dos vestiários do estádio de futebol americano da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, ficou conhecido por ter sido totalmente pintado de rosa — até os vasos sanitários — como tentativa de prejudicar o espírito competitivo da equipe visitante, com base nos experimentos de Schauss. A eficácia dessa ação até hoje não foi determinada. As estatísticas parecem indicar que, no período em que existiu o vestiário rosa, o percentual de vitórias em casa do time de Iowa era maior do que a média. Mas pode haver muitas outras razões para esse desempenho (talvez eles simplesmente tivessem um time melhor, por exemplo). Algumas cores talvez possam ser usadas, por exemplo, para nos fazer agir. Uma pesquisa, por exemplo, examinou quantas vezes uma viajante com o veículo quebrado foi levada de carona pelos carros que passavam. Quando a viajante com problemas — na verdade, alguém da equipe de pesquisa — vestia uma camisa vermelha, ela conseguia carona com mais frequência do que quando vestia outras cores. Demonstrou-se assim que o vermelho gera reações emocionais mais imediatas, mas talvez devido à chamada Teoria de Berlin-Kay, apresentada pelo trabalho de dois pesquisadores americanos nos anos 1960. Resumidamente, eles descobriram que o vermelho era sempre a terceira palavra designativa de cor a evoluir em quase 100 idiomas estudados, depois do branco e do preto. Quanto mais tempo o nome de uma cor era usado, maior quantidade de associações, significados e nuances ele adquiria. Assim, a cor propriamente dita ganha mais impacto. Muitas das pesquisas sobre como as cores podem afetar o comportamento humano são contraditórias. Alguns estudos apontam que elas podem influenciar desde o nosso humor e as emoções até a velocidade dos batimentos cardíacos e mesmo a nossa resistência física. Descobriu-se, por exemplo, que tons de vermelho brilhante geram maiores níveis de excitação e podem até impedir a sonolência. Experimentos também indicaram que tarefas monótonas, como conferir textos, podem ser realizadas com maior eficiência em escritórios vermelhos. Já tarefas criativas, como redigir artigos, são mais bem realizadas em cômodos azuis. Mas há um outro estudo que concluiu que tanto o vermelho quanto o azul também podem nos distrair ao tentar realizar tarefas. E outros sugerem que certos tipos de personalidade, como as pessoas introvertidas, podem ser mais suscetíveis a influências externas, como as cores do ambiente. Essas contradições levaram alguns pesquisadores a aconselhar que não se colocasse muita ênfase nas afirmações sobre os benefícios terapêuticos e psicológicos das diferentes cores, afirmando que ainda existem evidências insuficientes para apoiá-las. Mas existem algumas áreas em que as cores possuem clara influência sobre o nosso cérebro. Elas podem, por exemplo, alterar a forma das experiências com nossos outros sentidos, como o paladar e o olfato, ou até as nossas preferências musicais. O que o vermelho parece transmitir, de forma bastante consistente, é o sabor doce. Um estudo com mais de 5.300 pessoas de todo o mundo concluiu que bebidas vermelhas são mais frequentemente consideradas as mais doces, independentemente do local de origem dos participantes. Marie Wright, principal profissional de aromas global da empresa ADM Nutrition — uma multinacional processadora de alimentos e bebidas — relembra um teste com um produto específico com sabor de morango idealizado pela companhia. Os voluntários tiveram dificuldade para detectar mudanças do teor de doçura ao provar o sabor. Mas, quando Wright e seus colegas apresentaram o líquido com tom de vermelho mais brilhante em vez de aumentar o seu teor de açúcar, os participantes começaram a informar que o sabor era mais doce. "Nós descobrimos que você pode deixar algo mais doce se sua cor for mais brilhante", afirma Wright. "É como uma maçã vermelha brilhante. Antes de morder, você já espera que ela seja mais doce." Ela conta que a cor mais brilhante pode enganar tão bem o cérebro que foi possível reduzir os níveis de açúcar de algumas receitas em 10-20%, embora os resultados desses testes nunca tenham sido publicados em revistas científicas até o momento. Mas é importante ter cautela com as cores e a nutrição. Existem evidências de que as cores podem alterar a nossa experiência com os alimentos, mas não necessariamente causar impactos sobre os níveis de consumo a longo prazo. O psicólogo Charles Spence, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, estuda como os nossos sentidos interagem entre si e é o autor de um livro sobre a ciência da alimentação. Ele afirma que grande parte das influências interligadas entre as cores, o paladar e a sensação na boca vem de associações sociais arraigadas que estabelecemos ao longo da nossa vida diária. Ele afirma que a maioria dessas associações vem do marketing e das embalagens, mas também das nossas experiências com os alimentos que ingerimos todos os dias. Uma coisa é certa: nós realmente comemos primeiro com os olhos. Quando vemos um produto colorido artificialmente, nós formamos todo tipo de suposições e expectativas antes mesmo que ele chegue perto da nossa boca. Podemos esperar que um picolé azul brilhante, por exemplo, tenha gosto de framboesa porque fomos treinados a esperar isso com os outros picolés daquela cor — e é interessante notar que consumidores taiwaneses poderão associar a cor azul clara com sabor de menta, enquanto jovens britânicos esperariam sabor de framboesa. E, quando os chefes de cozinha ou companhias alimentícias brincam com essa associação automática, eles interferem na forma em que experimentamos os alimentos, segundo Spence. Se o picolé azul tiver sabor de laranja, por exemplo, provavelmente levará mais tempo para os consumidores identificarem esse sabor - embora a literatura científica ainda esteja debatendo se isso realmente pode alterar a intensidade do sabor que experimentamos, com alguns estudos encontrando efeitos e outros, não. Outro estudo examinou como a cor de um rótulo de garrafa de vinho influencia a forma em que voluntários perceberam o sabor do vinho tinto no seu interior. Rótulos vermelhos e pretos, por exemplo, aumentaram a probabilidade de o vinho ser descrito como "picante". É estranho observar que as cores podem também transmitir outros tipos de informações sensoriais. Imagine que apareça no seu navegador um anúncio de uma toalha. A maciez é imediatamente palpável, quase como se você pudesse senti-la na sua tela. Mas essa sensação felpuda pode não se dever à alta definição da imagem, mas ao seu tom pastel, pelo menos segundo o trabalho da professora Atefeh Yazdanparast Ardestani, da Faculdade de Administração da Universidade Clark, em Massachusetts, nos Estados Unidos. "Quando fecho meus olhos e penso em maciez, certas cores vêm à mente — normalmente, cores mais claras, como rosa claro e azul claro", segundo ela. "Essa era a minha questão: qual é a relação entre o sentido da visão e o do tato?" Em outras palavras, as cores podem transmitir dureza ou maciez sem a experiência do toque? Ardestani fez então alguns testes. Ela pediu a voluntários que escrevessem as cores que observavam ao imaginar maciez e ficou claro que elas espelhavam os seus próprios tons, inclinados para o pálido. Ela então pediu aos voluntários que observassem diferentes cores, três de cada vez. Todas elas tinham a mesma intensidade, ou saturação, mas variavam entre claro e escuro. Ao receberem adjetivos para descrevê-las, o tom mais claro foi selecionado como o mais macio em 91,2% dos casos. Embora suas descobertas ainda estejam sendo analisadas no setor acadêmico para publicação como parte de um estudo científico maior, ela menciona trabalhos similares com voluntários turcos e libaneses, que chegaram a conclusões parecidas. Ardestani estudou voluntários norte-americanos. Por isso, se os seus resultados forem aprovados no escrutínio acadêmico, eles indicarão que a maciez pode ter associação estrutural com cores mais claras, não apenas semântica ou linguística. "Quanto mais escura a cor que vemos, mais intensa é a sensação táctil", segundo ela. Ardestani especula que, em termos de evolução, talvez as cores mais escuras tenham servido como algum tipo de aviso para os nossos ancestrais, "alertando-os para que ficassem em segurança". O trabalho mais amplo de Ardestani concentra-se na tomada de decisões pelos consumidores e ela queria saber como essas descobertas podem desenvolver-se fora do laboratório. Por isso, ela idealizou um novo teste, desta vez pedindo aos voluntários que observassem produtos em uma tela em pares — ambos com a mesma cor, mas um deles em tom muito mais claro. Estes foram deliberadamente produtos em que o toque pode ser importante para tomar decisões de compra, como toalhas, roupas de cama e sofás. "Observamos que, sim, a cor mais clara resulta em maior antecipação da maciez, que se traduz em maior intenção de compra", segundo ela. Os voluntários também estavam dispostos a pagar mais pelos objetos que percebessem como sendo mais macios. O que parece acontecer é que o nosso cérebro usa as cores como sinais visuais para compensar o toque. E elas são empregadas com grande influência por quem quer nos vender coisas — o papel higiênico, por exemplo, normalmente é oferecido fora do alcance das nossas mãos em embalagens plásticas, quase sempre de cor pastel clara. Ardestani afirma que "90% das nossas avaliações iniciais de produtos são baseadas nas cores". Enquanto tons mais claros sugerem maciez, cores intensas indicam quantidade, segundo Karen Schloss, psicóloga da Universidade de Wisconsin-Madison, nos Estados Unidos e uma das principais pesquisadoras das cores do mundo. Schloss ajudou a idealizar a teoria da valência ecológica para entender por que favorecemos certas cores em detrimento de outras. Ela indica legendas em gráficos de dados ou mapas. As cores escolhidas — mais especificamente, sua intensidade — podem usadas em associação para manipular como você interpreta as informações. "As pessoas deduzem que as cores mais escuras indicam quantidades maiores, o que foi muito bem utilizado na maior parte dos mapas da pandemia que observei — mais casos ou mortes são representados em cores mais escuras", afirma ela, citando seu próprio trabalho e o de outros pesquisadores sobre como o nosso comportamento é condicionado para fazer essa correlação. Mas Schloss adverte que associações como essa podem causar problemas. Se os dados forem apresentados utilizando cores mais claras para quantidades maiores, eles podem levar as pessoas a entender de forma errônea o que estão observando. E, se o mapa surgir na tela por um único segundo, "você interpretará que o escuro é mais, e não o claro", mesmo se não forem esses os dados reais exibidos. E Schloss demonstrou que as cores podem também ser usadas para o bem — para incentivar melhor comportamento comunitário, por exemplo. Sua pesquisa recente analisou os significados que atribuímos às cores. "Quisemos entender como a associação que as pessoas fazem às cores influencia suas expectativas, para poder antecipá-las, projetar as cores para coincidir com elas e assim facilitar sua interpretação", afirma ela. Schloss e seus colegas usaram cestos de reciclagem como base para um experimento específico. Imagine seis desses cestos, com o mesmo tamanho e formato, cada um marcado para uma categoria diferente com sinais escritos com "vidro", "metal", "composto" e assim por diante. Schloss imaginou que mudar a cor do cesto poderia sutilmente transmitir seu propósito, ajudando a padronizar o comportamento e minimizar erros de seleção. E, quando ela e sua equipe mostraram aos voluntários imagens de seis cestos com cores diferentes e pediu a eles que os marcassem como achassem correto, surgiu um padrão. Algumas cores foram particularmente associadas a uma categoria: os cestos marrons e amarelos, por exemplo, rapidamente sugeriram lixo. Mas outras apresentaram associação mais fraca. O vermelho, por exemplo, não foi imediatamente relacionado a nenhuma categoria, mas houve uma leve tendência de rotular os cestos vermelhos com "plástico", quando se pediu aos participantes que escolhessem um dos seis. Por isso, Schloss afirma que o significado das cores é contextual. Um único cesto branco pode obviamente sugerir papel, enquanto um único cesto vermelho teria pouco significado. Mas, tomadas em conjunto, seis lixeiras com cores diferentes podem interagir entre si e comunicar muito mais, de forma mais sutil. Outros estudos demonstraram que as cores podem ter impacto direto sobre o desempenho, especialmente entre as crianças. Quando crianças com oito e nove anos de idade conduziram uma série de tarefas na presença de tons diferentes, pesquisadores concluíram que seu desempenho geral era significativamente pior perto do vermelho em comparação com o cinza, que foi usado como base de comparação. Para conseguir novas ideias, tente aulas em espaços verdes. Existe um estudo sobre criatividade que indica correlação entre a criatividade das crianças e a presença da cor verde, como plantas. E, se você quiser fazer uma criança se concentrar, você pode tentar pintar uma sala de aula com uma paleta vibrante para incentivar seu desempenho de leitura. "Tudo isso indica que as cores são muito mais poderosas do que pensávamos", conclui Karen Schloss.
2022-07-26
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-62290719
sociedade
A onda de venezuelanos que buscam asilo na gelada Islândia
Emilet Neda Granados gosta de se deitar na grama úmida do parque Hellisgerði — mais conhecido como o parque das flores — no sul de Reykjavik, capital da Islândia. De alguma forma, esse ritual a faz lembrar da brisa das praias de La Guaira, a cidade venezuelana onde nasceu. "Adoro rios, água, praia e me lembro de tudo isso neste lugar." A distância entre La Guaira e Reykjavik é de 6.800 km, que Emilet tenta evocar apenas fechando os olhos e pensando no mar que banha a cidade natal dela. Quando volta a abri-los, levanta-se com dificuldade e, para andar, tem de travar uma batalha com a perna direita, que mal consegue mexer. Oito meses atrás, enquanto ela reformava seu pequeno apartamento no centro de Reykjavik, uma tábua caiu no meio de seu pé direito, quebrando-o. Desde então, ela iniciou um périplo médico que a levou à depressão — o pé dela ainda não está curado. A partir dali, começou sua rotina de deitar na grama do Hellisgerði para se conectar de olhos fechados com sua Venezuela natal e esquecer a dor por um tempo. Fim do Matérias recomendadas "Passei maus bocados. A única coisa que sei é que, se eu tivesse a minha aguardente de cobra e a minha loção de arnica, estaria curada em um mês", diz. "Melhor dizendo, se eu estivesse na Venezuela, não teria passado por isso." Emilet, como milhões de venezuelanos, fugiu do país devido à crise econômica e política que devastou a Venezuela na última década. O curioso é que uma ilha, mais próxima do Círculo Polar Ártico do que do Caribe e onde no inverno há apenas quatro horas de sol e temperaturas próximas a 20 graus abaixo de zero, se tornou um dos destinos escolhidos pelos venezuelanos para começar uma nova vida. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo o governo islandês, em 2019 e 2021 a Venezuela foi a nacionalidade com maior número de pedidos de asilo aceitos e, até agora, em 2022, só foi superada por outra nacionalidade cujo território está em xeque: a Ucrânia. "Há alguns anos, especialmente desde 2017, os venezuelanos desfrutam do que se chama de proteção subsidiária. Esse é um tipo de asilo que leva em consideração a situação do país mais do que os casos individuais", explica Francisco Gimeno, líder do projeto da Cruz Vermelha Islandesa, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Em 2019, a Islândia aceitou 180 pedidos de asilo de venezuelanos, acima de outras nacionalidades, como iraquianos ou sírios. Em 2020, esse número, por conta da pandemia, foi reduzido para 104, mas em 2021 dobrou em relação a 2019, com 361 casos. E, até abril de 2022, já existiam 265 pedidos aprovados para venezuelanos. Isso ocorre em um país onde a população total é de cerca de 365 mil pessoas. "Esse é um número muito importante, levando em conta quão diferentes são o clima, a língua e, principalmente, a distância entre a Islândia e a Venezuela. Mas muitos deles se adaptaram bem a um país como este", acrescenta Gimeno. No entanto, o aumento do fluxo migratório levou as autoridades islandesas a tentar mudar o procedimento de asilo para os venezuelanos. O escritório de Migração da Islândia indica em um documento enviado à BBC News Mundo que, em dezembro de 2021, foi publicada "uma notificação sobre uma mudança na prática administrativa em relação aos pedidos de proteção internacional de cidadãos venezuelanos". E essa mudança não é uma boa notícia para os imigrantes: aponta radicalmente que, devido à "melhoria das condições" na Venezuela, os cidadãos do país não mais receberiam proteção subsidiária e passariam a ter de argumentar individualmente. "Essa decisão, que também foi tentada em 2020, foi denunciada perante um tribunal islandês. No caso do ano passado, foi revertida quando foi explicado que a situação dos direitos humanos naquele país continua delicada, mas este ano estamos aguardando a decisão do tribunal", explica Gimeno. Emilet sabia que precisava deixar a Venezuela quando seu salário como radiologista, no Centro de Saúde La Guaira, mal dava para comprar alguns utensílios de limpeza. "Naquela época, em 2015, meu pai e um sobrinho, recém-nascido, morreram", lembra. "E como o hospital ficou sem suprimentos para atender os pacientes, tudo o que fazia era aparecer, entrar na sala de raios-X e chorar o dia todo", lembra ela. Embora ela também trabalhasse nos fins de semana organizando festas infantis para complementar o salário, ela decidiu que era melhor deixar o país. Seu primeiro destino foi o Peru, "mas lá passei mais fome do que na Venezuela". "Com um amigo, pesquisamos e percebemos que a Islândia poderia ser um bom destino. Então comecei a me preparar." Além da amplitude dos regulamentos de asilo, a Islândia também é reconhecida globalmente como um dos países "mais amigáveis" para imigrantes. De acordo com pesquisa da Gallup publicada no ano passado, ela fica em segundo lugar, atrás apenas do Canadá. Em 2019, ela finalmente desembarcou no aeroporto de Keflavík, na capital islandesa, e juntou a papelada para pedir asilo. Em alguns meses, ele conseguiu a aprovação. "Senti que tinha chegado à terra prometida: eles nos deram um lugar, ajuda." Mas a pandemia da covid-19, em março de 2020, interrompeu repentinamente tudo isso. Não havia trabalho e ela ficou mal. Quando a economia estava se recuperando, no início de 2021, ocorreu seu acidente no pé. "E eu caí em uma depressão muito forte. Meu pé quebrou primeiro no topo, depois se abriu pela parte de baixo e meses se passaram e não cicatrizou. Havia algo errado." Emilet leva a mão à cabeça ao falar sobre a questão médica. Ela diz que, quando foi ao pronto-socorro para examinar seu pé após o acidente com a tábua, ouviu que não havia fratura e poderia voltar para casa. "Não sei se me entenderam ou não. Primeiro não registraram a fratura e, depois, quando finalmente me engessaram, não entenderam que eu era uma mulher que tinha acabado de entrar na menopausa e que precisava de um tratamento vitamínico para curar minha perna", conta. Um dos diagnósticos que recebeu dos médicos que a trataram é que o atraso na cura teve causas psicológicas, o que para alguns especialistas representa um dos principais desafios enfrentados por quem foge de um país como a Venezuela e chega a um país como a Islândia: reparar seu trauma enquanto se ajusta a um país totalmente diferente do seu. "Muitas das pessoas que chegam da Venezuela estão muito prejudicadas", diz Alma Serrato, psicóloga que trabalha na assistência social aos refugiados que chegam à Islândia. "Alguns foram vítimas de violência, mas, acima de tudo, é muito difícil para eles processarem que esses ataques ou a razão pela qual você foge de seu país são causados ​​pela entidade ou pelas pessoas que deveriam estar encarregadas de cuidar e dar proteção", pensa. E enquanto processam a distância de suas raízes, muitos dos venezuelanos têm que enfrentar uma espécie de renascimento em um país totalmente oposto ao que viviam. "São pessoas que veem a neve pela primeira vez. E precisam aprender coisas tão básicas quanto se vestir para o frio. Aprender coisas no seu nível de adulto responsável, mas logo volta a ser um garotinho novamente. Aprender a andar no gelo, na neve, a comer, a falar." Falar. Para muitos, aprender islandês tornou-se um desafio para a integração. "Não sei o que os vikings estavam pensando quando formaram essas palavras nessa língua", brinca Emilet. No segundo andar de um prédio branco, no meio de um shopping center no centro de Reykjavik, está o Multikulti, um centro de estudos de idiomas. Um dos requisitos da Islândia para as pessoas que recebem proteção internacional é frequentar cursos de islandês oferecidos pelo governo. Naquela tarde, a sala está cheia de venezuelanos. Há um intervalo de 15 minutos. A maioria deles coloca café quente em uma caneca e conversa, como é frequentemente o caso na comunidade imigrante hoje em dia, sobre possíveis mudanças na política de asilo. Um deles comenta que ouviu um boato de que houve muitos roubos no país cometidos por venezuelanos (informação que não é confirmada pela polícia) e que talvez isso dê origem a uma mudança de política que está sendo avaliada. Emilet, que é uma das alunas do curso, ignora a conversa e se concentra no papel com a palavra "nautakjöt", que significa bife em islandês, que faz parte do novo vocabulário diário dela. "O islandês é uma língua de raízes germânicas muito difícil de aprender, principalmente para quem fala espanhol, por vários motivos: não evoluiu muito nos últimos anos e a construção das palavras é totalmente diferente do espanhol", explica Mariel, professor multicultural. E dá o exemplo com um animal: o pinguim. "Em inglês, você diz penguin... e em islandês você diz mörgæs, que vem de 'mor' ou gordura e 'gaes', ganso. Em outras palavras, ganso obeso. O islandês não quer se parecer com nenhuma outra língua e por isso é tão difícil de aprender." Para ela, o problema subjacente é que o país não estava preparado para receber os venezuelanos. "Você pode ver, por exemplo, que não há dicionário islandês-espanhol e não há textos educativos para ensiná-lo, então isso é uma dificuldade", acrescenta. E isso tem consequências diretas na adaptação dos recém-chegados. "Obviamente, as pessoas que vêm protegidas não são todas iguais, há diferentes níveis de educação e de experiência de trabalho, mas se não fala islandês é muito difícil entrar no mercado de trabalho ou, em outros casos, estudar em uma universidade", destaca Gimeno. Isso foi vivido na própria carne por Angelei Quintero. Ela chegou em 2019 e recebeu asilo político após alguns meses, mas, como não fala islandês, tem sido difícil para ela ter acesso a um emprego estável desde que chegou ao país. "Na Venezuela, trabalhei como oficial da Polícia Metropolitana de Caracas por vários anos e, depois, quando foi absorvida pela Polícia Nacional Bolivariana", diz ela. Ela esteve na polícia durante as violentas manifestações de 2017 contra o governo de Nicolás Maduro e foi ali que a vida dela virou de cabeça para baixo. "No meu perfil do WhatsApp, coloquei uma foto de um líder social que morreu durante os protestos que tinha a mensagem 'Abaixo a ditadura'. Um colega meu me denunciou e eles iniciaram um processo." Ela sentiu que deveria fugir. "Eles iam me prender. E eu sabia que um preso político na Venezuela nunca sai da cadeia." Entre as opções que ela tinha, estavam vários países nórdicos, que tinham políticas amistosas em relação aos refugiados. "Escolhi a Islândia", diz ela, ainda vestida com o uniforme do supermercado Krónan, onde começou a trabalhar meio período há algumas semana. Primeiro emprego estável dela desde que chegou à ilha. A Islândia, localizada cerca de 1.500 km ao norte da Noruega, é habitada principalmente por colonos escandinavos que fugiram dos vikings no final do século 9 e baseia sua indústria em duas atividades fundamentais: pesca e turismo. Ambas as indústrias combinadas representam 19% do PIB do país e o turismo é a indústria óbvia em que muitos recém-chegados entram - ou tentam entrar. "Para entrar na indústria do turismo, é preciso falar pelo menos inglês e eu não sabia. Isso me causou muita angústia", diz Angelei. E sua angústia tinha um impulso: quando ela partiu, os dois filhos dela permaneceram na Venezuela. E ela precisava arrecadar dinheiro suficiente para levá-los. Mesmo com as limitações na hora de se comunicar adequadamente — conheceu um namorado falando pelo tradutor do celular — e às restrições de socialização impostas pela pandemia de covid-19, somava-se outra dificuldade: o clima. "O inverno na Islândia é muito duro. Há dias inteiros em que não se vê luz solar. E nós somos da Venezuela, imagine", diz. Em 1990, uma enorme escultura em forma de barco, feita de aço inoxidável, foi erguida em uma das praias de Reykjavik, lembrando os primeiros viajantes que chegaram ao país. A escultura, conhecida como Solfar ou "os viajantes do Sol", obra do escultor islandês Jón Gunnar Árnason, tornou-se um símbolo da cidade. O verão acaba de começar e as dezenas de turistas que se dirigem à enorme escultura para tirar foto são surpreendidos por uma aula de ginástica. Um grupo que se move ao ritmo da salsa de Marc Anthony. Diante de um grupo de ginastas se exercitando ao lado da escultura icônica da cidade está Caryna Bolívar. Ela é da Venezuela, de Caracas, mas não faz parte da diáspora criada pela crise recente. Ela chegou antes: há 20 anos deixou seu país natal com a ideia de morar em Nova York. E acabou na Islândia. "Vi como a população de venezuelanos aumentou e acho que todos concordamos que o clima é muito difícil de lidar: o inverno é muito longo. Faz frio o ano todo. Mesmo agora no verão", diz. Caryna dá aulas de Zumba e ginástica em diferentes partes de Reykjavik e viu que o inverno, onde as temperaturas podem cair para -30°C, leva até mesmo os próprios islandeses à depressão. "Você não vê a luz do sol durante meses e esse aspecto para quem vem de um país tropical como a Venezuela, onde há sol o ano todo, pode ser chocante." Alberto Marcano concorda com isso. Ele foi para a Islândia há dois anos. Deixou a Venezuela por motivos econômicos e se refugiou no Chile. Mas então surgiu o surto social de outubro de 2019 no país do Cone Sul. "Decidi sair porque não queria que minha filha, que estava prestes a nascer, ficasse cercada por aquele ambiente onde eles estavam destruindo tudo", diz ele. Alberto, que também é conhecido por seu apelido Kuzco e sua profissão de comediante, ficou famoso por seus tutoriais no YouTube sobre a vida no país nórdico. Neles, explica como é a língua, as principais atrações turísticas, o que é necessário para sobreviver, mas também como é o cotidiano de um venezuelano na Islândia. "Eu acho que o clima é muito mais difícil que a língua... No final, a língua se aprende, mas o clima continua o mesmo", diz. "Só há luz por cerca de três horas e há aquela escuridão total que dura de dezembro a março. Isso é muito difícil porque parece que você nunca consegue acordar e vai como um zumbi pela rua, como se estivesse entre dormir e acordado." Angelei teve que superar a impressão de que a escuridão lhe causava - e não tanto o frio - através da experiência dele como policial: "Pode ter sido as longas horas de plantão, mas já consigo controlar muito bem quando fico com sono", conta. Essa capacidade de se adaptar a horários e condições extremas permitiu que conseguisse uma série de empregos até juntar dinheiro para levar seus dois filhos. Depois de dois anos separados, Angelei os viu novamente e os abraçou em dezembro de 2021. "Foi um momento muito emocionante", diz ele enquanto enxuga as lágrimas. E tê-los por perto agora lhe permite dizer que emigrar para a Islândia foi a melhor decisão que já tomou. "Quando eles vão para a escola eu não me preocupo se eles vão ser sequestrados ou não. A Venezuela que eu conheci, e na qual eu cresci, não existe mais. É uma memória." "E é muito difícil voltar ao que não existe mais."
2022-07-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62261220
sociedade
Vídeo, 'Viajo pelo mundo com 3 gatos nos meus ombros'Duration, 1,55
Os gatos Spongecake, Donut e Mocha aos poucos se acostumaram à bagunça de aeroportos e viagens de avião e viraram acompanhantes nas férias de seu dono, o advogado Dan Nguyen. Hoje, essas viagens fazem sucesso no TikTok. Nguyen explica que seus gatos puderam viajar somente depois de um longo período de treinamento gradual. A recomendação é que pessoas que desejem viajar com seus animais de estimação consultem seus veterinários antes — e também chequem com antecedência as recomendações e limitações de companhias aéreas e dos lugares de destino.
2022-07-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62304605
sociedade
O fotógrafo que registrou intimidade de narcotraficante Pablo Escobar
Trinta anos atrás (em 22 de julho de 1992), o narcotraficante colombiano Pablo Escobar fugia da La Catedral — a prisão onde estava detido com seus seguidores, depois de entregar-se voluntariamente ao governo da Colômbia. Ele seria morto a tiros pelas autoridades em um telhado da cidade colombiana de Medellín, sua cidade natal, pouco mais de um ano depois. E, em julho deste ano, também está sendo publicado o livro El Chino: La vida del Fotógrafo Personal de Pablo Escobar ("O chinês: a vida do fotógrafo pessoal de Pablo Escobar", em tradução livre), do colombiano Alfonso Buitrago — um álbum fotográfico e relato da vida de Edgar Jiménez, que conheceu Escobar ainda jovem e, anos depois, captou com sua câmera os momentos mais íntimos do poderoso chefe do Cartel de Medellín. Edgar Jiménez, conhecido como El Chino ("O Chinês"), foi recentemente entrevistado pelo programa de rádio Outlook, do Serviço Mundial da BBC, sobre esses primeiros anos de amizade na adolescência e como ele restabeleceu sua relação com Escobar, que o contratou para fotografar sua fantástica fazenda, seu zoológico e seus eventos pessoais e familiares. Essa relação estendeu-se desde a "era de ouro" do narcotraficante (como chama o fotógrafo), quando era considerado um benfeitor dos pobres, até a campanha que o elegeu para o Congresso e, por fim, a onda sangrenta de violência de Escobar contra o Estado colombiano. Mesmo depois de acompanhar por vários anos um dos homens mais procurados pela Justiça, ingressar no seu círculo interno, beber com seus impiedosos pistoleiros e saber das atrocidades que eles haviam cometido, Jiménez nãos se arrepende da sua relação próxima com Escobar. Fim do Matérias recomendadas "O narcotraficante não era eu", declarou ele à BBC. "Estava desempenhando uma atividade legal, que era a fotografia." Esta é a história do fotógrafo que teve acesso a um dos mais famosos e perversos personagens do século 20, durante um período dramático da história da Colômbia e do mundo. Edgar Jiménez e Pablo Escobar conheceram-se em 1963, durante o primeiro ano do Ensino Médio no Liceu Antioquenho, uma instituição pública de classe média e baixa, mas considerada de muito boa qualidade. Eles tinham 13 anos e formaram uma amizade típica de colegas de classe: havia camaradagem, praticavam esportes juntos e conversavam nos intervalos. "Fomos muito amigos", segundo Jiménez. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A princípio, Escobar não se destacava muito. "Pablo era um estudante comum. Nem bom, nem péssimo", recorda Jiménez. "Isso não significa que não fosse inteligente, mas suas preocupações eram de outra natureza." Já com cerca de 16 anos de idade, era possível notar que tanto ele quanto seu primo Gustavo Gaviria (que estudava na mesma escola) "eram muito ansiosos para conseguir dinheiro" e começaram a negociar cigarros de contrabando. "Nós, estudantes, tínhamos recursos econômicos de baixos a medianos. Escobar e Gaviria, também, mas eram os que tinham mais dinheiro devido a suas atividades dessa índole", relata Jiménez. Por falta de disciplina acadêmica, Pablo Escobar foi reprovado no quarto ano do Ensino Médio, que precisou cursar novamente em outra instituição. Por não estarem mais na mesma sala, nem no mesmo ano, os amigos começaram a distanciar-se e perderam contato. Edgar Jiménez havia se interessado por fotografia graças a um laboratório muito bem instalado e a uma oficina de fotografia na escola. Quando se formou e entrou na universidade para estudar Engenharia, dedicou-se a fotografar eventos sociais para custear seus estudos. Já Escobar formou-se bacharel um ano depois, mas estava aparentemente frustrado por não conseguir emprego — até que disse à sua mãe que não procuraria mais trabalho, mas jurou a ela que conseguiria seu primeiro milhão antes dos 30 anos de idade. "Foi ali que ele tomou a decisão de tornar-se bandido e delinquente — com cerca de 19, 20 anos", conta Jiménez. Os dois ex-colegas voltaram a encontrar-se somente em 1980. Jiménez já era fotógrafo profissional e estava cobrindo um evento no município de Puerto Triunfo, a cerca de três horas de Medellín. Foi quando um amigo, que era funcionário público, convidou-o a conhecer uma fazenda esplêndida que havia naquela região. Era a fazenda Nápoles, agora conhecida internacionalmente como o extravagante complexo campestre de Pablo Escobar. Já na porta de entrada, havia um pequeno avião, supostamente usado para "coroar" seu primeiro carregamento de cocaína para os Estados Unidos. Jiménez conta que ficou assombrado com as dimensões da fazenda — cerca de 3.000 hectares — que incluía uma zona de selva por onde passava um importante afluente do rio Magdalena, o maior da Colômbia. Tinha ainda cerca de 30 lagos, um lugar para touradas, uma grande pista de aterrissagem, heliporto e hangar. Mas o mais memorável era o espetacular zoológico com "a fauna mais representativa de todos os continentes". Da Austrália, por exemplo, havia emus, casuares e cangurus; da África, havia zebras, rinocerontes, antílopes, elefantes, girafas e hipopótamos. Escobar tinha um aviário com uma grande quantidade de aves magníficas. Além dos faisões, pavões e periquitos, havia "araras de todas as cores, papagaios pretos que haviam custado uma fortuna e uma arara azul de olhos amarelos que havia custado US$ 100 mil [cerca de R$ 550 mil]". Os lagos estavam repletos de todos os tipos de cisnes, gansos, patos, pelicanos e até botos-cor-de-rosa do Amazonas. "Para quem não estava acostumado, era como estar em um safári na África, porque os animais andavam em liberdade e eram muito bem cuidados", recorda o fotógrafo. Pablo Escobar reconheceu imediatamente seu antigo colega de escola e o abraçou efusivamente. Quando soube que era fotógrafo, ele o contratou para que tirasse fotos dos animais do zoológico. Escobar queria montar um inventário com as imagens de todos os seus cerca de 1.500 animais. "Ali começou minha nova relação com Pablo. De 1980 até sua morte", conta Jiménez. Foi uma longa tarefa, que incluiu diversas visitas à fazenda, já que ele tirava fotos de cerca de 50 a 100 animais e regressava depois de 15 ou 20 dias para continuar fotografando. Ele se sente muito orgulhoso das fotos que tirou, particularmente dos primeiros hipopótamos que chegaram à fazenda e agora são "pais, avós e tataravós desses hipopótamos que estão disseminados por uma grande região da Colômbia" e são considerados uma espécie invasora. Ele recorda momentos engraçados. Certa vez, uma avestruz arrancou com uma bicada um cigarro do seu assistente e Jiménez a fotografou como se a ave estivesse fumando. Mas também houve momentos arriscados. Jiménez fotografou um casuar, uma das aves mais perigosas do mundo, com suas patas afiadas como facas e capazes de partir um ser humano. "Não sabia e tirei fotos a um metro de distância. Ele me olhava fixamente. Se me atacasse, teria me matado", relembra ele. Também aconteceu o mesmo quando foi perseguido por avestruzes (que também dão potentes golpes com a pata). Jiménez precisou escapar movendo-se em zigue-zague, até que um trabalhador as interceptou e ele conseguiu escapar ileso. Entre 1980 e 1984, além de organizar o catálogo fotográfico dos animais, Jiménez registrou os eventos sociais e familiares de Pablo Escobar e seus parentes próximos. Ele ingressou no seu círculo mais íntimo. Jiménez também o acompanhou nas atividades cívicas, na distribuição de dinheiro para os pobres e na construção de moradias. As classes populares adoravam o chefão do tráfico por essas ações e ignoravam suas atividades ilegais. O fotógrafo era "muito bem pago" pelo seu trabalho e, embora conhecesse a origem do dinheiro, Jiménez garante que não se arrepende de nada em sua relação durante esses anos que ele chama de "o lado bom, nobre e gentil de Pablo Escobar". Ele conta que, no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, os "mafiosos" que tinham muito dinheiro eram conhecidos, mas bem vistos na sociedade colombiana, não só nas camadas inferiores da sociedade, mas também nas altas esferas políticas e empresariais. "Havia conivência com os narcotraficantes. Eles geravam emprego, negócios e ajudavam muita gente", destaca Jiménez. "E os políticos que mantinham campanhas financiadas por Pablo nunca se perguntaram de onde vinha esse dinheiro." "O narcotraficante não era eu", afirma Jiménez. "Eu estava desempenhando uma atividade legal, que era a fotografia." Em 1982, Escobar entrou na política, tentando uma vaga na Câmara de Representantes. Naquele momento, embora se afirmasse que ele seria mafioso, "não se questionava nem se havia comprovado absolutamente nada", explica Jiménez, que aceitou acompanhá-lo e ser coordenador da sua campanha. "Imaginei que, se a política colombiana havia estado repleta de bandidos há 200 anos, por que outro bandido não poderia chegar à Câmara, ainda mais um que fazia obras sociais?", conta. A experiência política de Jiménez vinha da sua trajetória com a Aliança Nacional Popular (Anapo), um partido de esquerda que se dividiu depois de perder as questionadas eleições presidenciais de 1970. Alguns dos seus integrantes acabaram formando parte do movimento guerrilheiro M-19, responsável por alguns dos ataques mais espetaculares ao governo colombiano. Jiménez foi militante do M-19 desde o princípio. Era uma situação delicada para o fotógrafo, pois, naquela mesma época, o M-19 enfrentava um conflito violento com o Cartel de Medellín. Poucos meses antes, uma célula do grupo guerrilheiro havia sequestrado Martha Nieves Ochoa — do clã Ochoa, sócio de Pablo Escobar no narcotráfico. Devido a esse sequestro, o Cartel de Medellín patrocinou o grupo armado MAS (Morte aos Sequestradores), que foi parte da origem do paramilitarismo na Colômbia, e desatou uma guerra sangrenta. "Eu estava entre duas facções opostas em combate. Duas facções muito violentas", reconhece Jiménez. O fotógrafo conseguiu sair dessa encruzilhada, segundo ele, porque Escobar sabia da sua militância no grupo guerrilheiro, mas "tinha muito apreço" por ele. O narcotraficante sabia que o M-19 era uma guerrilha dividida em grupos e que uma célula independente havia realizado o sequestro de Martha Nieves Ochoa sem autorização E, por outro lado, Edgar Jiménez contou para a cúpula guerrilheira sobre seu trabalho na campanha de Escobar, o que pareceu apropriado para eles e favorável aos seus interesses. "As duas facções sabiam onde eu estava, o que estava fazendo e onde estava minha lealdade. Por isso, não aconteceu nada comigo", garante Jiménez. Ele acrescenta que, em parte, ele foi importante na aproximação entre o M-19 e o Cartel de Medellín para conter essa guerra que havia custado muitas vidas. Mas isso não trouxe o fim do derramamento de sangue. Em 1984, começou uma guerra entre o Cartel de Medellín e o Estado colombiano e o país entrou em um dos períodos de maior convulsão da sua história. O estopim foi o assassinato do então ministro da Justiça da Colômbia, Rodrigo Lara Bonilla, ordenado por Pablo Escobar. Lara Bonilla estava começando a lutar contra os cartéis do narcotráfico. Para Edgar Jiménez, esse fato foi o "divisor da vida de Escobar, [entre] o antes e o depois". O antes era o que ele chama de "era de ouro" do narcotraficante, quando suas atividades não eram associadas à violência, mas sim a "benefícios sociais". O que veio depois foram anos de atentados a bomba e assassinatos de jornalistas, magistrados, militares e policiais. "Com essa violência desenfreada, com esses assassinatos e crimes, eu não podia estar de acordo. Nunca", relatou ele. "Mas também não podia fazer nada, já que eu não era parte do Cartel de Medellín, eu não pertencia àquela estrutura." E ele garante que também não podia denunciá-lo, porque com certeza seria morto. Depois do assassinato de Lara Bonilla, Jiménez foi ainda duas vezes à fazenda Nápoles. A visita de que ele mais se lembra foi em 24 de fevereiro de 1989 — o ano mais violento da história recente da Colômbia. Ele foi fotografar o 13° aniversário do filho de Escobar, Juan Pablo. Ali ele tirou uma foto do capo que ele afirma ser a mais significativa, porque revela muito sobre o momento por que ele passava. "A festa foi muito íntima, com a participação apenas dos familiares e amigos mais próximos", segundo o fotógrafo. Escobar havia se afastado da festa e estava completamente absorto em seus pensamentos, olhando para baixo. Foi quando Jiménez tirou a foto. Aquela imagem, segundo Edgar Jiménez, capta as "profundas reflexões de Pablo, que, naquele momento, enfrentava todo tipo de problemas devido à intensa perseguição contra ele [e] muito provavelmente estavam relacionadas àquela série de acontecimentos trágicos que se aproximavam." "Essa foto eu relaciono com o que veio em seguida", afirma Jiménez. O que veio em seguida foi o assassinato do candidato à presidência Luis Carlos Galán, a derrubada de um avião de passageiros e os atentados a bomba contra as instalações do Departamento Administrativo de Segurança e do jornal colombiano El Espectador. Perseguido pelo exército e pela polícia da Colômbia, além do chamado Bloco de Busca, e com sua extradição exigida pela CIA e pela Agência de Combate às Drogas dos Estados Unidos (DEA, na sigla em inglês), Pablo Escobar decidiu entregar-se às autoridades colombianas, depois de conseguir um acordo segundo o qual ele cumpriria uma pena de prisão e o Estado garantiria sua segurança sem extraditá-lo. Foi um golpe de astúcia do capo. A prisão foi construída sobre uma montanha, segundo suas próprias especificações e repleta de luxos — incluindo uma jacuzzi, sala de bilhar, bar, aparelhos de televisão, móveis importados e um campo de futebol. E, dali, ele continuou cometendo crimes, convocando seus seguidores e até assassinando alguns deles. Até que, por pressão da promotoria pública, o governo ordenou o traslado de Escobar e seus companheiros reclusos para uma "prisão de verdade", mas eles conseguiram escapar facilmente em 22 de julho de 1992, por um muro de gesso construído especificamente para esse fim. Foi quando começou novamente a caçada implacável ao chefe do Cartel de Medellín, até sua morte a tiros em um telhado na cidade de Medelín, em 2 de dezembro de 1993. Naquele momento, Edgar Jiménez encontrava-se no seu laboratório de fotografia no centro de Medellín. Pelo rádio, ele tomou conhecimento da notícia que estava dando a volta ao mundo. Jiménez confessa que seus sentimentos foram contraditórios. De um lado, ele sentiu tristeza por alguém que, mesmo sendo um criminoso que causou tantos danos (como ele bem sabia), não deixava de merecer o afeto mútuo existente entre eles desde a infância. "Comigo, Pablo sempre se comportou muito bem, pessoalmente e como amigo", garante ele. "Foi uma dor para mim que alguém com sua capacidade e inteligência, que havia sido muito útil para a sociedade, tivesse tomado um rumo diferente." Mas, por outro lado, ele reconhece que sentiu alívio "pela sociedade colombiana, pois o país estava apreensivo" com os constantes atentados a bomba que causaram a morte de policiais e muitos civis inocentes, incluindo mulheres e crianças. "Pelo menos, toda essa violência terminava. Isso vi como positivo." Jiménez continuou em contato com a família de Escobar até o início dos anos 2000 — sua mãe e irmãos, além da família Henao da sua esposa, cobrindo eventos sociais. Mas sua vida sempre estará ligada ao antigo chefe do cartel de Medellín. "É o bandido mais famoso da história. Sua vida o transformou em lenda e sua morte, em mito. E eu, de alguma forma, faço parte disso", conclui Jiménez. Todas as fotos têm direitos reservados.
2022-07-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62300964
sociedade
É possível viver sem plástico?
Das 8,3 bilhões de toneladas de plástico virgem produzidas até o final de 2015, 6,3 bilhões de toneladas foram descartadas. A maior parte deste lixo plástico ainda está conosco, sepultada em aterros sanitários ou poluindo o meio ambiente. Microplásticos foram encontrados no gelo marinho da Antártida, nas entranhas de animais que vivem nas fossas oceânicas mais profundas e na água potável em todo o mundo. Mas e se pudéssemos usar uma varinha mágica e remover todo o plástico das nossas vidas? Para o bem do planeta, seria uma perspectiva tentadora — mas descobriríamos rapidamente o quanto o plástico se infiltrou em todos os aspectos de nossa existência. Será que a vida como conhecemos hoje é possível sem plástico? Os seres humanos usam materiais semelhantes ao plástico, como goma-laca — feita a partir da resina secretada pela fêmea do inseto Kerria lacca — há milhares de anos. Fim do Matérias recomendadas Mas o plástico como conhecemos hoje é uma invenção do século 20: o baquelite, o primeiro plástico feito a partir de combustíveis fósseis, foi inventado em 1907. Só depois da Segunda Guerra Mundial que a produção de plásticos sintéticos para uso fora das forças armadas realmente decolou. Desde então, a produção de plástico aumentou quase todos os anos — de dois milhões de toneladas em 1950 para 380 milhões de toneladas em 2015. Se continuar neste ritmo, o plástico poderá representar 20% da produção de petróleo até 2050. Hoje, a indústria de embalagens é de longe a maior usuária de plástico virgem. Mas também usamos plástico de muitas maneiras mais duradouras: em nossos prédios, meios de transportes e outras infraestruturas vitais, sem mencionar nossos móveis, eletrodomésticos, TVs, tapetes, telefones, roupas e inúmeros outros objetos do cotidiano. Tudo isso significa que um mundo totalmente sem plástico é irrealista. Mas imaginar como nossas vidas mudariam se de repente perdêssemos o acesso ao plástico pode nos ajudar a descobrir como criar um relacionamento novo e mais sustentável com ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nos hospitais, a perda do plástico seria devastadora. "Imagine tentar operar uma unidade de diálise sem plástico", diz Sharon George, professora de sustentabilidade ambiental e tecnologia verde na Universidade de Keele, no Reino Unido. O plástico é usado em luvas, tubos, seringas, bolsas de sangue, recipientes para amostras e muito mais. Desde a descoberta da variante da doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ) em 1996 — causada por proteínas defeituosas chamadas príons que podem sobreviver a processos normais de esterilização hospitalar —, instrumentos cirúrgicos ​​padrão reutilizáveis foram substituídos por versões de uso único para algumas operações. De acordo com um estudo, uma única cirurgia para retirada de amígdalas em um hospital do Reino Unido pode resultar em mais de 100 peças avulsas de resíduos plásticos. Embora alguns cirurgiões argumentem que o plástico de uso único é utilizado em excesso nos hospitais, muitos itens médicos de plástico são essenciais atualmente, e vidas seriam perdidas sem eles. Alguns itens de plástico do dia a dia também são vitais para proteger a saúde. Camisinhas e diafragmas estão na lista de medicamentos essenciais da Organização Mundial da Saúde (OMS), e máscaras faciais — incluindo máscaras cirúrgicas e respiradores à base de plástico, assim como máscaras de pano reutilizáveis ​​— ajudam a retardar a propagação do vírus causador da covid-19. "Uma máscara que você usa para covid está relacionada à nossa segurança e à segurança dos outros", diz George. "O impacto de eliminar isso pode ser a perda de vidas, se você eliminar em grande escala." Nosso sistema alimentar também desmoronaria rapidamente. Usamos embalagens para proteger os alimentos contra danos no transporte e para preservá-los por tempo suficiente até chegar às prateleiras dos supermercados, mas também para comunicação e marketing. "Não consigo imaginar como [o plástico] seria substituído completamente em nosso sistema", diz Eleni Lacovidou, professora de gestão ambiental da Brunel University London, no Reino Unido. E não são só os consumidores que precisariam mudar seus hábitos — as cadeias de suprimentos dos supermercados são otimizadas para vender produtos embalados e precisariam ser reformuladas. Enquanto isso, mercadorias altamente perecíveis submetidas a longas viagens entre a propriedade agrícola e o supermercado, como aspargos, vagens e frutas vermelhas, podem acabar sendo deixadas nos campos, sem serem colhidas. Se conseguíssemos resolver estes problemas da cadeia de suprimentos, frutas e legumes poderiam ser vendidos a granel, mas talvez precisaríamos comprar com mais frequência. Uma pesquisa da instituição britânica de redução de resíduos WRAP mostrou que as embalagens plásticas prolongavam a validade do brócolis em uma semana, quando mantido na geladeira, e das bananas em 1,8 dias, em temperatura ambiente — embora para maçã, pepino e batata, o plástico não fizesse diferença. Na verdade, a pesquisa descobriu que o desperdício de alimentos poderia até ser reduzido vendendo frutas, legumes e verduras a granel, pois permitiria que as pessoas comprassem apenas o que precisam. Até as latas de tomate e feijão sairiam de cena — elas possuem um revestimento interno de plástico para proteger a comida —, então teríamos que comprar leguminosas secas em sacos de papel e cozinhá-las em casa. "As pessoas contam demais em conseguir o que precisam da maneira mais fácil e conveniente", diz Iacovidou. "Acho que precisamos ficar um pouco desconfortáveis." A troca das embalagens plásticas teria efeitos colaterais ambientais. Embora o vidro tenha algumas vantagens sobre o plástico, como ser infinitamente reciclável, uma garrafa de vidro de um litro pode pesar até 800g, em comparação com 40g de uma de plástico. Isso faz com que as garrafas de vidro tenham um impacto ambiental geral maior em comparação com recipientes de plástico para leite, sucos de frutas e refrigerantes, por exemplo. Quando essas garrafas e frascos mais pesados ​​precisam ser transportados por longas distâncias, as emissões de carbono aumentam ainda mais. E se os veículos em que são transportados não contiverem plástico, eles próprios serão mais pesados, o que significa ainda mais emissões. De certa forma, porém, mudar a embalagem dos alimentos seria a parte mais fácil. Você pode comprar leite em uma garrafa de vidro, mas tubos de plástico são usados ​​na indústria de laticínios para levar o leite da vaca para a garrafa. Mesmo se você comprar legumes a granel, uma cobertura de filme plástico pode ter ajudado o agricultor que os cultivou a economizar água e manter longe as ervas daninhas. Sem o plástico, a agricultura industrial como conhecemos hoje seria impossível. Em vez disso, precisaríamos de cadeias alimentares mais curtas — pense em lojas de produtos agrícolas e agricultura apoiada pela comunidade. Mas com mais da metade da população global vivendo agora em cidades, isso exigiria grandes mudanças em onde e como cultivamos alimentos. Não seria uma tarefa impossível, diz Lacovidou, mas "temos que dedicar tempo para isso, e também temos que diminuir a quantidade de coisas que comemos". Viver sem plástico também exigiria uma mudança na forma como nos vestimos. Em 2018, 62% das fibras têxteis produzidas no mundo eram sintéticas, feitas a partir de substâncias petroquímicas. Embora o algodão e outras fibras naturais, como o cânhamo, sejam bons substitutos para algumas de nossas roupas, aumentar a produção para atender à demanda atual teria um custo. O algodão já cresce em 2,5% das terras aráveis ​​em todo o mundo, mas sua plantação é responsável por 16% do uso de inseticidas, colocando em risco a saúde dos agricultores e contaminando o abastecimento de água. Sem plástico, precisaríamos abandonar a chamada fast fashion em prol de itens mais duráveis ​​que podemos usar repetidamente. Também ficaríamos rapidamente sem sapatos. Antes do surgimento dos plásticos sintéticos, os calçados eram muitas vezes feitos de couro. Mas hoje há muito mais gente na Terra, e cada um de nós tem muito mais pares de sapato — 20,5 bilhões de pares de calçados foram fabricados em 2020. "Não poderíamos ter sapatos de couro para todas as pessoas do planeta... isso não é viável", diz George. Haveria, no entanto, vantagens em um mundo sem plástico: escaparíamos dos efeitos nocivos que ele tem em nossa saúde. Transformar petróleo e gás em plástico libera gases tóxicos que poluem o ar e impactam as comunidades locais. Além disso, as substâncias químicas adicionadas durante a produção de plástico podem perturbar o sistema endócrino, que produz hormônios que regulam nosso crescimento e desenvolvimento. Duas das mais bem estudadas substâncias químicas conhecidas como desreguladores endócrinos, são os ftalatos, usados ​​para amolecer o plástico, mas também encontrados em muitos cosméticos, e o bisfenol A (BPA), usado para endurecer o plástico e comumente utilizado no revestimento de latas. "Embora estes ftalatos ou BPA sejam importantes para a estrutura do plástico, eles não estão quimicamente ligados a ele", explica Shanna Swan, professora de medicina ambiental e saúde pública da Escola de Medicina Icahn do Hospital Monte Sinai, em Nova York. Isso significa que quando estas substâncias químicas são usadas ​​em embalagens de alimentos, elas podem se infiltrar no próprio alimento — e acabar em nossos corpos. Alguns ftalatos podem diminuir a produção de testosterona, reduzindo a contagem de espermatozoides e aumentando os problemas de fertilidade nos homens. O BPA, por outro lado, imita o estrogênio e tem sido associado a um risco maior de problemas reprodutivos nas mulheres. Mas os efeitos vão além da fertilidade. "A amplitude das influências potencialmente disruptivas dos desreguladores endócrinos é impressionante", escreve Swan em seu livro, Count Down. "Eles têm sido associados a inúmeros efeitos adversos à saúde em quase todos os sistemas biológicos, não apenas no sistema reprodutivo, mas também nos sistemas imunológico, neurológico, metabólico e cardiovascular." A exposição a desreguladores endócrinos durante períodos críticos de crescimento fetal pode ter efeitos duradouros. "Se a mulher está grávida e é exposta a plásticos ou outras substâncias químicas que alteram o desenvolvimento do seu feto, essas mudanças são irreversíveis, permanentes", diz Swan. Isso significa que, embora parar de usar plástico reduzisse nossa exposição, seus efeitos ainda seriam sentidos pelo menos nas próximas duas gerações. "A exposição da sua avó é relevante para sua saúde reprodutiva e sua saúde em geral", adverte Swan. Em algum momento, gostaríamos de lidar com o plástico que já está nos oceanos. Será que algum dia conseguiríamos limpar tudo? "Você tem alguns materiais que estão no fundo do mar e não vão a lugar nenhum, são apenas parte do ecossistema", afirma Chelsea Rochman, professora assistente do departamento de ecologia e biologia evolutiva da Universidade de Toronto, no Canadá. Mas no caso dos plásticos flutuantes, acrescenta ela, temos uma chance de lutar. Os pesquisadores agora acreditam que a maioria dos plásticos que flutuam no oceano acabará sendo levado ou enterrado ao longo de nossas costas. No momento, alguns desses plásticos são removidos da costa com armadilhas para lixo e limpezas de praia à moda antiga. Manter essa remoção faria a diferença para a vida marinha. "Você teria menos animais que chegam à praia com plásticos em suas barrigas e menos emaranhados (em plástico)", diz Rochman. "Muito do que está sendo ingerido pelos animais não é o que está no fundo do mar, é o que está na costa." Retirar pedaços maiores de resíduos plásticos também impediria que eles se fragmentassem em microplásticos. A maioria dos microplásticos encontrados longe das costas é da década de 1990 ou anterior, sugerindo que pedaços maiores levam décadas para se decompor. Isso significa que, se simplesmente parássemos de adicionar poluição plástica nova aos oceanos amanhã, os microplásticos continuariam a aumentar nas próximas décadas — mas removendo também os detritos existentes, poderíamos interromper este aumento. "Talvez cheguemos a um momento em que todos os animais que tiramos da água não tenham microplásticos dentro deles", diz Rochman. Em um mundo sem plástico, fabricar novos tipos de plástico a partir de plantas pode começar a parecer tentador. Plásticos de base biológica que possuem muitas das mesmas qualidades dos plásticos petroquímicos já estão em uso. O ácido polilático (PLA) à base de amido de milho, por exemplo, é usado para fazer canudos quase idênticos a seus equivalentes de plástico de combustível fóssil — diferentemente dos canudos de papel que podem ficar encharcados antes de você terminar sua bebida. Os plásticos de base biológica podem ser feitos a partir de partes comestíveis de plantas, como açúcar ou milho, ou a partir de material vegetal impróprio para consumo, como bagaço, a polpa que sobra após a moagem da cana-de-açúcar. Alguns plásticos de base biológica, mas não todos, são biodegradáveis ​​ou compostáveis. A maioria desses plásticos ainda precisa, no entanto, de um processamento cuidadoso, muitas vezes em instalações de compostagem industrial, para garantir que não persistam no meio ambiente — não podemos simplesmente jogá-los no mar e esperar que corra tudo bem. Mesmo se tivéssemos criado a infraestrutura para compostá-los, os plásticos de base biológica podem não ser melhores para o meio ambiente — pelo menos não imediatamente. "Acho que inicialmente veríamos todos os impactos aumentarem", diz Stuart Walker, pesquisador da Universidade de Exeter, no Reino Unido, e autor de uma revisão recente de estudos sobre os impactos ambientais de plásticos de base biológica e de combustíveis fósseis. Desmatar a terra para dar lugar às plantações impactaria os ecossistemas e a biodiversidade. Fertilizantes e pesticidas vêm acompanhados de emissões de carbono e podem poluir rios e lagos locais. Um estudo mostrou que a substituição de plásticos feitos a partir de combustíveis fósseis por alternativas de base biológica pode exigir entre 300 e 1.650 bilhões de metros cúbicos de água (300-1.650 trilhões de litros) a cada ano, o que representa entre 3% e 18% da pegada hídrica média global. As lavouras de alimentos podem acabar sendo usadas para produzir plástico, arriscando a segurança alimentar. Uma vez que foram cultivadas, as culturas precisam de mais refino para atingir o equivalente biológico do petróleo bruto, o que requer energia, resultando em emissões de carbono. Mas tentar comparar os impactos ambientais do bioplástico com o do convencional é complicado, até porque os plásticos à base de combustíveis fósseis têm uma vantagem. "Fazemos estas coisas há tanto tempo numa dimensão tal que somos realmente bons nisso", diz Walker. "Com o tempo, isso mudaria e veríamos que, com os bioplásticos, as emissões seriam reduzidas". À medida que os países ao redor do mundo descarbonizem seu fornecimento de eletricidade, as emissões de carbono da produção de plásticos de base biológica vão diminuir ainda mais. No entanto, fazer plástico a partir de plantas não resolveria necessariamente os problemas de saúde decorrentes do material. Embora as pesquisas sobre o tema sejam escassas, é provável que aditivos semelhantes aos usados ​​nos plásticos convencionais também seriam usados ​​em alternativas de base biológica, observa Iacovidou. Isso porque as propriedades que os materiais precisam são as mesmas. "O destino dos aditivos é o que mais me preocupa", diz ela. Se os plásticos de base biológica forem misturados com resíduos de alimentos e compostagem, o que estiver no plástico entra em nosso sistema alimentar. É claro que substituir um material por outro não resolverá todos os nossos problemas com o plástico. Já existe um esforço para descobrir que plásticos são desnecessários, evitáveis ​​e problemáticos, com vários países, incluindo EUA, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e na região das Ilhas do Pacífico, com o objetivo de eliminá-los progressivamente. Para ir ainda mais além, podemos decidir usar apenas plásticos que realmente precisamos. Em um capítulo de um livro recente, George descreve uma estrutura para nos ajudar a descobrir que plásticos são vitais. Ao considerar se o item atende a uma necessidade essencial — como comida, abrigo ou remédio —, e também se reduzindo a quantidade de material ou substituindo o plástico por outra coisa afetaria seu uso, podemos começar a ver que tipos de plástico podemos (e não podemos) viver sem. Mas estes plásticos essenciais são específicos do contexto e não são imutáveis. Em alguns lugares, a única água potável segura vem em garrafas de plástico, por exemplo. "Isso significa que precisamos desenvolver infraestrutura de água potável lá, para que não precisemos depender de água engarrafada, mas agora [o plástico] é necessário", diz Jenna Jambeck, professora de engenharia ambiental da Universidade da Geórgia, nos EUA. Pensar em todo o ciclo de vida de quaisquer novos materiais, incluindo o que fazemos com eles quando não servem mais ao seu propósito, seria essencial."Nós meio que esquecemos que a reciclagem não é o padrão-ouro do que podemos fazer com as coisas quando não precisamos mais delas", afirma Walker. Em parceria com colegas da Universidade de Sheffield, no Reino Unido, ele investigou os impactos ambientais de recipientes descartáveis ​​e reutilizáveis das comidas para viagem. Eles descobriram que um recipiente de plástico durável só precisaria ser usado entre duas e três vezes para ser melhor, em termos de impacto climático, do que um de polipropileno de uso único, mesmo levando em consideração o processo de lavagem. Os recipientes de aço inoxidável atingiram o mesmo ponto de equilíbrio após 13 usos — as comidas para viagem, felizmente, não precisariam ser uma coisa do passado em um mundo sem plástico. A maior mudança que enfrentaríamos, então, seria reavaliar nossa cultura do descartável. Precisaríamos mudar não apenas como consumimos certos itens — de roupas e alimentos a máquinas de lavar e telefones —, mas também como os produzimos. "Somos muito rápidos em comprar algo barato e descartável, enquanto deveríamos fazer as coisas para que sejam compatíveis, e haja mais padronização, para que possam ser trocadas e consertadas", avalia George. Sem plástico, talvez tenhamos que mudar até a maneira como falamos sobre nós mesmos. "Consumidor é inerentemente um termo de uso único", observa Walker. Em um mundo em que as embalagens são reutilizadas e reaproveitadas, e não jogadas fora, podemos nos tornar cidadãos. Talvez também descobríssemos que, apesar de todo o bem genuíno que o plástico faz, nem todas as mudanças no estilo de vida que ele possibilitou foram positivas. Se são as embalagens plásticas que nos permitem almoçar em movimento, e os dispositivos repletos ​​de plástico que nos deixam sempre contactados, sem ele nossa agenda pode precisar ser um pouco menos frenética. "Se tudo isso desaparecesse, a vida desaceleraria", diz Jambeck. "Seria tão ruim assim?"
2022-07-24
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-61907270
sociedade
Clarão rosa no céu intriga cidade da Austrália e revela plantação secreta de maconha
Quando um brilho rosa iluminou o céu da noite em uma cidade australiana nesta semana, a moradora Tammy Szumowski diz que se perguntou se o apocalipse havia chegado. "Eu estava apenas sendo uma mãe legal e me mantendo calma, dizendo às crianças: 'Não há nada com que se preocupar'", disse ela à BBC. "Mas, na minha cabeça, eu me perguntava: o que diabos é isso?" Era a luz emitida de uma fazenda de cannabis nos arredores da cidade de Mildura, no sudeste da Austrália. Mas, como outros moradores que ficaram atordoados, a mente de Szumowski inicialmente foi para outro lugar: uma invasão alienígena? Um asteroide? Fim do Matérias recomendadas "Minha mãe estava no telefone, e papai no fundo dizia: 'É melhor eu me apressar e tomar meu chá porque o mundo está acabando'." "E a mamãe disse: 'Qual é o sentido de tomar seu chá se o mundo está acabando?'" Outra moradora, Nikea Champion, primeiro pensou que era uma lua vermelha realmente brilhante - antes de perceber que a luminosidade vinha do solo. "Todos esses cenários do fim do mundo estavam passando pela minha cabeça", disse ela à BBC. "Eu estava tendo um grande momento Stranger Things - eu estava tipo: Vecna? É você?", disse ela, referindo-se ao vilão da série da Netflix. A cannabis medicinal foi legalizada na Austrália em 2016, mas o uso recreativo da droga é proibido. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Existem poucas instalações de cultivo, e suas localizações são secretas por razões de segurança - o que não é mais o caso desta fazenda. Luzes avermelhadas são usadas para ajudar a plantação a crescer. Normalmente, cortinas que bloqueiam a passagem de luz são arriadas ao entardecer. Na quarta-feira, elas não funcionaram, revelou um porta-voz do fabricante Cann Group. E, porque a noite estava nublada, as luzes criaram aquele efeito, que podia ser visto a quase uma hora da instalação. "Eu achei engraçado... poderia ter sido algo muito mais legal, mas basicamente eram apenas luzes de cultivo de maconha medicinal", disse Champion. Szumowski disse que eles também "deram boas risadas". Apesar do pânico inicial, ela ficou impressionada com a beleza do show de luzes: "Acho que foi ótimo - eles deveriam fazer isso com mais frequência".
2022-07-22
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-62270246
sociedade
O que é o 'aprendizado supersticioso', que nos leva a copiar hábitos de 'ricos e famosos'
Quase toda semana, surge um novo artigo descrevendo os comportamentos de um indivíduo de sucesso - com a promessa implícita de que, usando as mesmas técnicas, nós também podemos conseguir fama e fortuna. Parte dos seus conselhos é relativamente bom senso. Muitas vezes, você vai ficar sabendo que os principais presidentes de empresas, como Elon Musk, começam a trabalhar cedo, pulam o café da manhã e dividem seu tempo em tarefas pequenas e viáveis. Ariana Huffington, da empresa americana Thrive Global, prioriza o sono em nome da produtividade, incluindo um ritual na hora de dormir em que ela desliga todos os aparelhos. Outras figuras inspiradoras mantêm hábitos mais peculiares. Comenta-se que Bill Gates, por exemplo, balança para frente e para trás na cadeira enquanto raciocina - um meio corporal de concentrar a mente que, ao que parece, contagiou a diretoria da Microsoft. Gates também era muito específico na escolha dos seus cadernos de anotações: ele fazia questão de usar blocos de papel amarelo. Voltando na história, Charles Dickens costumava carregar uma bússola para que pudesse dormir voltado para o norte - o que ele acreditava colaborar para que escrevesse de forma mais produtiva. E Beethoven contava exatamente 60 grãos de café para cada xícara que ele tomava para alimentar seu processo criativo. Por que as pessoas de sucesso seguem hábitos tão excêntricos? E por que temos tanto interesse em aprender sobre eles e imitá-los na nossa vida diária? Fim do Matérias recomendadas A resposta está em um processo psicológico poderoso conhecido como "aprendizado supersticioso". O cérebro está sempre procurando associações entre dois eventos. Geralmente, isso é correto, mas, às vezes, confunde coincidência com causalidade, o que nos leva a atribuir o sucesso a algo arbitrário - como a cor do bloco de anotações ou o número de grãos no café - e não ao talento ou à dedicação ao trabalho. E, quando sabemos dos triunfos dos demais, muitas vezes acabamos também copiando seus hábitos, incluindo os rituais arbitrários que eles adquiriram com o próprio aprendizado supersticioso - um fenômeno conhecido como "imitação excessiva". Isso não quer dizer que os hábitos resultantes sejam completamente isentos de benefícios. Ao nos fornecer um sentido de autodeterminação, a adoção de rituais - incluindo os comportamentos totalmente aleatórios que aprendemos ou pegamos emprestado das pessoas que admiramos - pode nos ajudar a superar a ansiedade e até trazer um impulso considerável para o nosso desempenho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os estudos científicos do aprendizado supersticioso começaram no final dos anos 1940, com uma importante pesquisa do psicólogo norte-americano B. F. Skinner. Ele se interessou pelo processo de aprendizado por condicionamento, que usamos para ensinar os animais a fazer truques. Se você quiser ensinar um cão a sentar, por exemplo, dá a ele um petisco sempre que abaixar as patas traseiras. Em pouco tempo, o cão aprende a relacionar a recompensa ao comportamento e irá se sentar quando você mandar. Skinner se perguntou se os animais também poderiam associar comportamentos aleatórios a recompensas. Por exemplo, se um animal se movimentasse de uma forma específica quando recebesse oferta de comida, ele poderia imaginar que o alimento fosse uma recompensa pelo movimento? E, neste caso, repetiria o mesmo movimento várias vezes se continuasse a ter sucesso? Para descobrir, Skinner pegou um grupo de pombos famintos e instalou um dispositivo que os alimentava em intervalos regulares na sua gaiola. E, de fato, os pombos logo começaram a ter comportamentos peculiares sempre que ficavam com fome. "Um foi condicionado a girar no sentido anti-horário em volta da gaiola, fazendo duas ou três voltas entre cada reabastecimento [de comida]", escreveu ele. "Outro pressionava a cabeça repetidamente em um dos cantos superiores da gaiola." Você poderá se perguntar por quanto tempo a ave continuaria com esse comportamento até ficar desiludida. Mas as regras simples da probabilidade indicam que o alimento sempre viria novamente enquanto a ave repetia esse ritual, o que reforçava a ilusão de que seu comportamento estaria influindo de alguma forma no fornecimento de comida. Skinner descreveu o comportamento das aves como uma espécie de superstição e especulou que um processo psicológico similar definiria muitos rituais humanos. Os resultados iniciais de Skinner foram questionados por outros cientistas, mas experimentos posteriores confirmaram significativamente sua ideia geral. Parece que nosso cérebro está sempre procurando associações entre nosso comportamento, nosso ambiente e as recompensas que buscamos - e, muitas vezes, pode chegar a conclusões erradas. "A superstição é um tipo de comportamento repetitivo que surge a partir de algo que normalmente é muito bom - a capacidade de previsão do cérebro", segundo Elena Daprati, neurocientista da Universidade de Roma Tor Vergata, na Itália. As pesquisas de Daprati trouxeram mais evidências a favor dessa teoria. Em um estudo, sua equipe demonstrou que diferenças individuais do aprendizado implícito - a capacidade do cérebro de detectar padrões de forma inconsciente - podem explicar por que algumas pessoas são mais propensas a formar hábitos supersticiosos do que outras. Em uma tarefa, por exemplo, os participantes observaram uma série de formas surgindo em uma tela. Todas as vezes, eles precisavam identificar rapidamente se eram formas idênticas ou diferentes das anteriores. O que os participantes não sabiam é que, a partir da cor da forma anterior, era possível prever onde apareceria a forma seguinte na tela. Os participantes que aprenderam a detectar esse padrão conseguiam concentrar sua atenção e fazer sua escolha com mais rapidez. Antes do teste, participantes também responderam a um questionário para medir o quanto eles eram supersticiosos na sua vida diária. Se os comportamentos supersticiosos fossem realmente um subproduto da nossa capacidade de formar associações, poderíamos esperar que pessoas mais supersticiosas se saíssem melhor no teste. E foi exatamente esta a conclusão de Daprati. "Os indivíduos supersticiosos geralmente detectam essa indicação e a utilizam", afirma ela. Na vida diária, esse aprendizado associativo pode nos levar a usar uma caneta "da sorte" que parece gerar boas notas nas provas ou um terno específico que sentimos que nos garante uma boa entrevista de emprego. As tarefas criativas são especialmente cheias de incerteza, o que pode explicar por que pessoas como Gates, Beethoven e Dickens adotavam comportamentos específicos para fazer seus pensamentos fluírem. Depois de estabelecidos, os rituais decorrentes do aprendizado supersticioso podem estender sua influência para além do seu criador. Emilia Rovira Nordman, professora de Marketing da Universidade de Mälardalen, na Suécia, destaca um exemplo do setor acadêmico. Ela conta que é notoriamente difícil que um estudo novo seja aceito por uma publicação de prestígio. Por isso, pesquisadores muitas vezes justificam seus sucessos e fracassos com razões fictícias. Eles então transmitem esses conselhos para seus colegas e alunos, de forma que outras pessoas começarão a adotar as mesmas regras arbitrárias para preparar e apresentar seus estudos. Algo similar pode estar ocorrendo em escala muito maior, graças à imprensa, quando um bilionário, um escritor de prestígio ou um atleta de nível internacional nos conta sobre a sua rotina diária. Alguns dos seus comportamentos terão sido adquiridos por aprendizado supersticioso, e nós podemos seguir esses conselhos como se fossem verdade absoluta. Uma razão básica para isso é o fato de que seres humanos são criaturas sociais. Estamos sempre dispostos a procurar pessoas com status mais alto em busca de conselhos. Diversos estudos na última década demonstraram que temos a tendência de "imitar excessivamente" quando aprendemos algo com outras pessoas, copiando todas as suas ações, mesmo quando não há razão óbvia e lógica para um ato específico. Muitas vezes, simplesmente nem questionamos a razão para fazer algo - simplesmente consideramos que deve ter um propósito. Com essa tendência, pode ser apenas natural que, ao ler a biografia de um escritor famoso ou assistir a uma entrevista com um bilionário, sejamos tentados a copiar ritos e rituais peculiares, esperando poder, de alguma forma, atingir o mesmo sucesso, sem reconhecer que diversos outros fatores - incluindo a própria sorte - teriam influenciado suas conquistas. Em alguns casos, quando associações errôneas influenciam a tomada de decisões em alto nível, o aprendizado supersticioso pode sair caro. Um estudo entre empresas suecas de biotecnologia concluiu que dois presidentes de empresas que haviam associado certas estratégias de marketing ao sucesso repetiam religiosamente as mesmas etapas nas suas novas empreitadas - mesmo que não houvesse razão lógica para acreditar que aquela abordagem específica funcionaria novamente. "Sua capacidade de ligar ações a resultados foi empregada incorretamente", afirma Rovira Nordman, uma das autoras do estudo. Ela sugere que, sempre que precisarmos tomar uma decisão importante, devemos aplicar nosso pensamento crítico para questionar as nossas premissas e suas evidências. "Você deve desconfiar de tudo", diz ela. Mas, muitas vezes, os rituais que adquirimos exigem pouco esforço. Afinal, contar os grãos de café não causa nenhum mal, exceto pela perda de tempo. E, quer você tenha aprendido sozinho ou copiado de outras pessoas, a rotina em si pode ajudar você a sentir-se mais concentrado e determinado. "[Os rituais] podem reduzir o estresse e dar a sensação de que você está no controle", diz Nordman. Daprati sugere que esta pode até ser a razão que nos leva a persistir com esses comportamentos. Embora a associação inicial ao sucesso possa ter sido uma ilusão, o pensamento positivo que esse comportamento produz realmente melhora o nosso desempenho na ocasião seguinte, o que nos faz repeti-lo cada vez mais. Um estudo demonstrou que jogadores de basquete costumam ter maior precisão nos arremessos quando cumprem uma "rotina prévia" específica, como girar ou beijar a bola. Outros estudos concluíram que pedir aos participantes que realizem pequenos rituais pode trazer vários benefícios - desde melhorar o desempenho acadêmico até deixá-los mais afinados no karaokê. De certa forma, é um pouco como o efeito placebo na Medicina - a sensação de que você está fazendo algo positivo pode alterar os próprios resultados. Considerando essas descobertas, não precisamos nos envergonhar dos nossos pequenos rituais diários. Se a ação não custa nada e ajuda você a se sentir um pouco mais no controle do seu dia, é perfeitamente racional que você continue. Sejam eles inspirados pelas experiências do passado ou imitações dos seus ídolos, os rituais arbitrários podem impulsionar você para chegar um pouco mais perto do sucesso que almeja. * David Robson é autor de 'O efeito da expectativa: como o seu pensamento pode transformar a sua vida' (em tradução livre do inglês).
2022-07-21
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-62255094
sociedade
'É possível ser gorda e feliz': a modelo argentina que luta contra gordofobia
Agus Cabaleiro se define como uma militante do amor próprio. A influenciadora digital argentina de 27 anos, formada em Publicidade, modelo e criadora de conteúdo, é conhecida por seus milhares de seguidores como Online Mami. Cabaleiro é ativista do movimento de positividade corporal, que desafia padrões de estética e incentiva que as pessoas amem seus corpos, independente da forma deles. Ela compartilha mensagens desse tipo em sua conta no Instagram com milhares de seguidores e também em outras plataformas, assim como em seu livro "Te lo digo por tu bien. Sobre ser gordas y ocupar espacios con libertad" ("Te digo para o seu bem. Sobre ser gorda e ocupar espaços com liberdade", em tradução literal). A ativista conversou a BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) sobre a sua luta contra a gordofobia.. Fim do Matérias recomendadas BBC News Mundo - Quero começar pelo seu livro: "Te digo para o seu bem". Por que esse título? Agus Cabaleiro - É uma frase que acredito que todas, todes, escutamos, independente do tamanho do nosso corpo. Obviamente está muito relacionado a viver e crescer com um corpo gordo, onde as pessoas te recomendam coisas, te dão conselhos ou te dão dicas "para seu bem" e muitas vezes com amor, com boas intenções, mas que basicamente denotam gordofobia. BBC News Mundo - Que tipo de coisas eles disseram para você "para seu próprio bem"? Cabaleiro - Quando eu era mais nova, minha mãe e minha avó me falavam muito "coma um pouco menos porque você vai engordar, estou falando isso para o seu próprio bem" e também falavam muito sobre as roupas. "Não use calças brancas, não use algo tão apertado, algo tão curto, estou dizendo isso para seu bem." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Mundo - Como você entende a gordofobia em sua experiência pessoal? Cabaleiro - A gordofobia é basicamente aversão, medo de pessoas com corpos gordos e de ser gordo também. Há muita gordofobia internalizada. BBC News Mundo - Você diz em seu livro que quer que as pessoas percam o medo da palavra "gordo". Por quê? Cabaleiro - Somos educados a entender a palavra "gordo" como um insulto, quando na verdade é um adjetivo como magro, alto, baixo etc. Os problemas são todas as noções que associamos à palavra gorda e à palavra magra. Quando pensamos em alguém gordo, ou nos ensinam o que é, pensamos em alguém que não é saudável, que é burro, desajeitado, que é feio, que não faz exercícios, etc. E, ao contrário, quando alguém é magro, pensamos que é saudável, que se ama e que se cuida. Isso é dessa forma porque somos ensinados assim desde que nascemos. Tantas pessoas dão voltas pela palavra gordo e procuram eufemismos como "gordinho" ou "grande" para evitar dizer que alguém é gordo ou não se reconhecer como gordo. BBC News Mundo - Por que a palavra em si é tão importante? Cabaleiro - Para mim é muito importante, justamente para tirar o estigma que existe. Me lembro de ter 14 ou 15 anos, em plena adolescência, e que me dava uma espécie de cãibra no estômago quando ouvia a palavra gorda e não podia nomeá-la, não podia escrevê-la. Ou seja, era nesse nível. É como algo muito forte com a palavra em si, com o som, é muito curioso como fenômeno. Então, no começo do livro, eu digo que um dos objetivos é perder o medo dessa palavra, porque ser gordo não é nada mau, é apenas um adjetivo. É uma descrição do seu corpo. BBC News Mundo - Em sua conta no Instagram, você se define como militante do amor próprio. O que significa isso? Qual é a mensagem mais importante que quer passar? Cabaleiro - A mensagem mais importante é que é possível viver uma vida plena com o corpo que tem, qualquer seja o seu tamanho. E que pode realmente ter uma relação de amor consigo mesmo e com o seu corpo porque você pode ter tolerância, respeito e ter amor próprio. Essa é a minha mensagem, é possível viver uma vida plena e feliz, não importa o tamanho do seu corpo. BBC News Mundo - Voltando à sua adolescência, disse em outras entrevistas que passava o verão morrendo de calor com jeans. Quais coisas deixava de fazer? Cabaleiro - Deixei de fazer milhões de coisas por ter um corpo gordo, porque me ensinaram que não podia fazer. Quando era criança havia um monte de roupas que não podia usar porque não tinha o meu tamanho e hoje ainda há um monte de coisas que tampouco posso usar porque não há o meu tamanho. E hoje em dia, como quando eu era adolescente, há lugares físicos nos quais não posso entrar, por exemplo, há pistas de dança onde eles não te deixam entrar. BBC News Mundo - Como não te deixam entrar? Cabaleiro - Isso aconteceu toda a minha vida, sinto que é algo que acontece em toda a Argentina e em todo o mundo. Há lugares para sair para dançar. Há circuitos de danceteria e bares. E aconteceu comigo toda vez que tentei entrar (em lugares do tipo) e que claramente não era bem-vinda. Eles deixam todas as suas amigas entrarem e te deixam de lado, e te dizem, bem, espere e tenha sua carteira de identidade na mão. Já cheguei a esperar 40 minutos durante a noite na porta de um lugar para que viessem com desculpas para não me deixarem entrar. E há momentos em que eles literalmente dizem "seus amigos não me disseram que uma garota gorda estava vindo com eles". Isso aconteceu comigo quando eu tinha 16 anos e aconteceu comigo há dois anos no período pré-pandemia, essas coisas não mudam. BBC News Mundo - Aconteceu muitas vezes? Cabaleiro - Aconteceu todas as vezes em que fui (a esses lugares). Não vivenciei isso mil vezes, porque não fui mil vezes expor a minha saúde mental e a minha integridade por causa de uma danceteria. Te fazem entender que esse lugar não é para você, porque se você não entra uma, não entra duas vezes e não vai mais, e é assim que eles segmentam. BBC News Mundo - Você já foi capa de uma revista, é modelo, tem sua linha de roupas e comemora dizendo "não ser uma pessoa gorda, mas uma mulher gorda". Porém, diz também que "se é gorda não te classificam como mulher". Ao que você se refere? Cabaleiro - Como mulheres, temos que cumprir basicamente quatro condições, senão você não está cumprindo o seu papel. Essas condições são basicamente ser mães, esposas, bem-sucedidas e sensuais - o que não significa dizer que são fáceis, mas algo bonito de ver, um objeto. Mas as mulheres gordas nem se qualificam para serem solicitadas por essas coisas. Aqui na Argentina, homens que estão com gordas são chamados de "comegordas", eles dizem "você está comendo uma gorda". Isso é muito depreciativo. Ser bem-sucedidas? É impossível, porque todas as mulheres gordas "são desajeitadas". Na verdade, a boa aparência que pedem nos trabalhos é basicamente ser alto, magro e branco. Mãe? Tampouco, porque te dizem que "você vai morrer antes que o garoto chegue ao ensino médio". É incrível, existem ativistas gordas muito famosas nos Estados Unidos que postam uma foto com seus filhos porque foram ao zoológico, e as pessoas dizem "que mau exemplo você é porque está ensinando a eles que não precisa se cuidar" ou "você vai morrer antes que seu filho chegue ao ensino médio". Então, as mulheres gordas estão em um degrau abaixo. Porque basicamente veem uma gorda antes de ver uma pessoa, esse é o problema. BBC News Mundo - Algumas pessoas fazem comentários negativos em suas redes. Como responde às críticas? Cabaleiro - Dos comentários negativos que chegam às minhas redes, 80% têm a ver com saúde. Nos outros 20% te chamam diretamente de "gorda feia", "morre"... Há muita confusão sobre o tema da saúde. Em primeiro lugar, ser gordo não é uma doença. A OMS [Organização Mundial da Saúde] define como fator de risco, não uma doença em si. Mas, por exemplo, brancos são mais propensos a ter câncer de pele do que negros, e não vemos campanhas do dia mundial contra ser branco. Por ser um fator de risco, não colocamos alguém que é branco no Instagram "você está normalizando ser branco e está passando um recado ruim". Por que com corpos gordos sim? Não existe doença que todos os corpos gordos tenham e não existe doença que afete apenas corpos gordos. Diabetes e colesterol alto são sempre mencionados, mas tem muita gente que tem diabetes e colesterol que não é gorda, e nem todo gordo tem diabetes e colesterol. Por outro lado, além do debate se um corpo gordo é saudável ou não, para mim é bom pensar nessa questão de por que uma pessoa gorda feliz é tida como um mau exemplo. Quando as pessoas veem meu conteúdo não pensam que vão comer muito ou deixar de ir à academia para serem gordas. O que as pessoas entendem quando veem meu conteúdo é que você pode ter uma vida plena e feliz com qualquer corpo. BBC News Mundo - Você também falou de experiências ruins quando vai ao médico... Cabaleiro - Os médicos muitas vezes atribuem qualquer coisa que está acontecendo com você à gordura. Então, eles te mandam para casa sem fazer nenhum teste e mandam você emagrecer, caminhar todos os dias e fazer dieta. E você vai para casa pensando que esse é o problema, quando talvez a razão e o gatilho para essa doença ou o que está acontecendo com você seja outra coisa. E isso é muito perigoso. É uma loucura, e ainda está acontecendo muito. BBC News Mundo - Estávamos falando das reações negativas, mas também há muitas reações positivas. A quem você atinge com sua mensagem? Cabaleiro - Felizmente, minha mensagem chega a muitas pessoas de muitos gêneros, de muitos tamanhos de corpo, de muitas idades. Meninas que são 10 anos mais novas que eu, que são adolescentes, que são mães e que talvez tomem meus conteúdos como ferramentas para criar suas filhas, ou meninos ou meninas que são muito magros, mas a mensagem ainda os atinge da mesma forma, o que é ótimo. BBC News Mundo - Você disse que "ninguém está a salvo" de críticas, porque elas podem ser direcionadas a um adolescente porque ele é gordinho ou a uma menina magra porque ela não tem muitos seios e dizem que ela é uma "tábua". Cabaleiro - Não é tudo a mesma coisa. Uma coisa é ser ensinado que você não é atraente e outra coisa é não ter acesso à saúde, não ter acesso à roupa, não ter acesso ao trabalho, que é o que acontece no caso dos corpos gordos, independentemente do gênero. Mas, na realidade, o padrão hegemônico afeta a todos porque sempre falta algo ou sempre sobra alguma coisa, então, você tem que comprar tal produto ou seguir tal dieta e ninguém está salvo disso. Porque o negócio é que ninguém é salvo e que todo mundo tem que comprar algo ou fazer alguma coisa e gastar dinheiro com isso, é uma indústria BBC News Mundo - Há dias em que você ainda acha difícil se ver dessa forma positiva que transmite? Cabaleiro - Óbvio, ser ativista não salva a sua vida. Às vezes eu recebo mensagens que fazem com que eu me sinta mal. Não me acontece uma vez, acontece mil vezes, porque há mensagens tão ofensivas que é muito complexo não se importar. Então, obviamente há momentos em que o que não incomodava em seu corpo vai incomodá-lo ou um comentário vai te pegar mais que o outro. Para mim, se incomodar com o seu corpo não é ser uma ativista ruim, que não gosta de si, mas seria bom começarmos a ter mais tolerância e mais respeito por nós mesmos. BBC News Mundo - Como você faz quando mensagens negativas são enviadas? Cabaleiro - Um passo muito importante para mim e que ajuda muito no diálogo interno é buscar representatividade, buscar pessoas parecidas comigo. Achamos que nosso corpo está errado porque vemos corpos iguais e o nosso é diferente, quando na realidade, dentro da diversidade corporal, existem milhões de pessoas, milhões de corpos, cores, alturas, pesos etc. BBC News Mundo - E além de buscar representatividade? Cabaleiro - Eu acho que um pouco quando você se sente mal e é uma coisa de um dia, uma coisa momentânea, é bom deixar pra lá. Se você está triste ou algo te afeta, não é ruim, é uma emoção normal da vida e é muito difícil desmantelar realmente tudo o que nos foi ensinado. Para mim é bom começar a fazer pequenas coisas para desenvolver nossa autoestima e desenvolver respeito e tolerância por nós mesmos. É começar a se encorajar, a talvez usar uma roupa que você não estava empolgado porque, não sei, eles te ensinaram que fica ruim em você, que não te favorece ou que marca algo que você não gosta. É se olhar diante do espelho. Até os 18 anos, eu não tinha espelhos em minha casa e, agora, minha casa está cheia de espelhos. Porque não queria me ver e agora eu quero me ver. Tem dias que quero muito me ver porque adoro, e tem dias que não quero me ver, e é bom entender que isso é normal e que faz parte do processo.
2022-07-21
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62231340
sociedade
A mãe que teve que adotar o próprio filho para ter sua guarda legal
"Só pode haver uma mãe" na certidão de nascimento. Foi o que um funcionário de um cartório em Cambridge, no Reino Unido, disse a Sarah Osborne quando sua companheira deu à luz. Depois de ter sido negado a ela o direito de constar como mãe na certidão de nascimento, Sarah foi forçada a adotar o próprio filho. Agora, o Supremo Tribunal do Reino Unido revogou a ordem de adoção, anulou a certidão de nascimento original e decidiu que ela deve ser reconhecida como mãe no documento. Após a decisão da Justiça, Sarah, de 48 anos, afirmou que estava "contente e ansiosa para ser registrada como mãe do meu filho, que é o que sempre fui". Na época do nascimento, em 2014, a lei era clara que casais de mulheres do mesmo sexo do sexo que tivessem um filho por meio de fertilização in vitro — e que deram consentimento para serem consideradas progenitoras — deveriam aparecer na certidão de nascimento do filho. Fim do Matérias recomendadas Mas quando Sarah e sua companheira, Helen Arnold, foram registrar o nascimento no cartório, ela foi informada que não poderia ser incluída na certidão. O funcionário disse que, a menos que Sarah fosse o pai, o que ela "claramente não era", seu nome não poderia constar no documento. "A atitude desrespeitosa, indigna e impertinente do funcionário me fez sentir estúpida por pedir ou esperar aparecer como mãe", declarou Sarah, "como se eu fosse uma estranha qualquer na rua." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A família foi informada que Sarah teria que realizar uma adoção como "madrasta" quando a criança estivesse com 6 meses. Várias reuniões com assistentes sociais foram marcadas em 2015 para avaliar sua aptidão para ser mãe. Ela teve que ouvir que a adoção de uma criança "não deve ser subestimada", precisou passar por uma verificação de antecedentes criminais e solicitar uma ordem judicial para adoção, que foi concedida em novembro de 2015. Só quando o casal teve o segundo filho em 2018, e Sarah foi registrada como mãe, que elas perceberam que algo estava errado. "Sarah nunca deveria ter precisado adotar nosso filho", disse Helen. "Sempre fomos mães dos nossos filhos, e é revoltante que tenhamos passado pelo processo doloroso e humilhante de Sarah ter que adotar." O advogado da família, Jeremy Ford, elogiou as mulheres por renunciarem ao direito ao anonimato — e "chamarem atenção nacional para esta questão, porque pode haver outros casais que sofreram a mesma injustiça". O Conselho do Condado de Cambridgeshire disse que reconhece o impacto dos acontecimentos. "Esperamos que a audiência de hoje forneça um caminho claro a seguir, para permitir que as medidas legais necessárias sejam tomadas para obter um registro de nascimento que nomeie ambas as partes como progenitoras", disse um porta-voz do conselho. "Reconhecemos o impacto que isso teve na família e agradecemos a oportunidade de trabalhar com o cartório em uma revisão para tentar impedir que qualquer família ou autoridade local volte a estar em uma situação semelhante."
2022-07-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62238468
sociedade
O país onde ter cachorro ou gato pode em breve dar cadeia
"Ele olha para mim com seus olhos inocentes e lindos. Está me pedindo para eu o leve para passear, mas não me atrevo. Acabaremos presos." A iraniana Mahsa tem um cachorro, mas agora teme sair com ele. Isso se deve uma nova onda de apreensões de animais domésticos na capital do Irã, Teerã. E as autoridades não visam apenas os pets, mas também os donos, que podem ser presos. Em Teerã, a polícia anunciou recentemente que passear com cães em parques era crime. A proibição foi justificada como uma medida para "proteger a segurança do público". Fim do Matérias recomendadas Ao mesmo tempo, o Parlamento iraniano poderá aprovar em breve o projeto de lei de Proteção dos Direitos do Público contra os Animais, que restringiria a possibilidade de ter animais de estimação em geral. Segundo o projeto de lei, a posse de animais de estimação estaria sujeita a uma autorização emitida por uma comissão especial. Também impõe uma multa mínima de cerca de US$ 800 (R$ 4,3 mil) para a "importação, compra e venda, transporte e manutenção" de vários animais, incluindo pets comuns, como gatos, tartarugas e coelhos. "Os debates em torno desse projeto de lei começaram há mais de uma década, quando um grupo de parlamentares iranianos tentou aprovar uma lei para confiscar todos os cães e entregá-los a zoológicos ou deixá-los em desertos", diz à BBC Payam Mohebi, presidente da Associação Veterinária do Irã e um crítico da proposta. "Ao longo dos anos, eles mudaram isso algumas vezes e até discutiram punição corporal para donos de cães. Mas o plano deles não chegou a lugar algum." Ter cães sempre foi comum nas áreas rurais do Irã, mas os animais também se tornaram um símbolo da vida urbana no século 20. O Irã foi um dos primeiros países do Oriente Médio a aprovar leis de bem-estar animal, em 1948, e o governo financiou a primeira instituição para melhorar os direitos dos animais. Até a antiga família real do país tinha cães como animais de estimação. Mas a Revolução Islâmica de 1979, que derrubou o xá Mohammad Reza Pahlavi, mudou muitos aspectos da vida dos iranianos e seus cães. Os animais são considerados impuros pela tradição islâmica. Aos olhos do novo regime, os cães tornaram-se também um símbolo da "ocidentalização". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Não houve uma regulamentação sólida sobre possuir cães", diz Ashkan Shemirani, veterinário de Teerã, à BBC. "As forças policiais prendem pessoas por passearem com seus cães ou até mesmo carregá-los em seus carros com base em sua interpretação do que poderia ser visto como símbolos da ocidentalização". Shemirani conta que as autoridades até criaram uma "prisão" para os animais apreendidos. "Ouvimos muitas histórias de horror daquele lugar", diz. "Os animais foram mantidos por muitos dias em áreas abertas, sem comida ou água adequada, enquanto os donos dos cães passavam por todos os tipos de problemas legais". Os desafios econômicos do Irã após anos de sanções ocidentais também ajudam a explicar o novo projeto de lei. As autoridades proibiram a importação de alimentos para animais de estimação por mais de três anos como parte de um esforço para preservar as reservas de moeda estrangeira do país. Em um setor dominado por marcas estrangeiras, isso significou um aumento substancial dos preços, principalmente após o surgimento de um mercado clandestino. "Somos altamente dependentes de pessoas que contrabandeiam alimentos secretamente", diz à BBC o proprietário de uma clínica veterinária na cidade de Mashhad. "Os preços agora são cinco vezes maiores do que há alguns meses." Ele alega que a ração produzida localmente não é de boa qualidade. "A qualidade é muito ruim. As fábricas usam carne ou peixe barato, até ingredientes vencidos", diz. Mas a nova legislação não se destina apenas aos cães. Os gatos também estão incluídos em uma lista de animais — até crocodilos são mencionados. Isso apesar de o Irã ser o berço dos gatos persas, uma das raças mais famosas do mundo. "Você acredita que agora os gatos persas não estão seguros em sua terra natal?", pergunta à BBC um veterinário que vive em Teerã. "Não há lógica por trás dessa lei. Os radicais querem mostrar seus punhos de ferro para as pessoas." Mohebi, presidente da Associação Veterinária Iraniana, descreve o projeto de lei de "vergonhoso". "Se o Parlamento aprovar a lei, as próximas gerações vão se lembrar de nós como pessoas que baniram cães porque são cães e baniram gatos porque são gatos." Pessoas como Mahsa estão genuinamente preocupadas com o futuro de seus animais de estimação. "Não ouso pedir autorização para ter meu 'filho'", diz ela. "E se eles recusarem meu pedido? Não posso deixá-lo na rua."
2022-07-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62235771
sociedade
Experimento conclui que ensinar mindfulness para adolescentes na escola não funciona
Um experimento no Reino Unido tentou ensinar as crianças a meditar e a viver o momento presente, em vez de se preocuparem com o futuro ou pensarem no passado. Mas a maioria dos adolescentes respondeu com uma palavra comum aos jovens: "chato". Mindfulness — a prática que de prestar mais atenção no momento presente por meio dos próprios pensamentos, sentimentos e do mundo ao redor, com o objetivo de melhorar o bem-estar e a saúde mental — vem ganhando adeptos em todo o mundo. No Reino Unido, autoridades de saúde e educação achavam que o mindfulness poderia ajudar principalmente na adolescência — fase da vida de grande vulnerabilidade em que surgem os primeiros problemas mentais. Um grupo de pesquisadores de algumas das universidades mais prestigiadas do mundo, como Oxford e Cambridge, na Inglaterra, criou um experimento: eles decidiram ensinar mindfulness em algumas escolas secundárias do país para analisar seus efeitos sobre os jovens. E o resultado foi um tremendo fracasso. Fim do Matérias recomendadas O estudo — publicado no periódico científico Evidence-Based Mental Health — conclui que dar aulas de mindfulness para adolescentes na escola para aumentar o bem-estar é, em geral, perda de tempo. A técnica de realizar pequenas meditações e exercícios não contribuiu para melhorar a saúde mental dos jovens mais do que as escolas já faziam fazendo. Milhares de alunos e centenas de professores de 85 escolas secundárias participaram da experiência. A maioria dos alunos demonstrou pouco interesse em utilizar o método, que descreveram como "chato". Os pesquisadores dizem que os resultados, apesar de decepcionantes, são úteis. E indicam que, embora a atenção plena ainda possa ajudar alguns alunos, oferecê-la universalmente nas escolas seria um fracasso. O estudo recomenda explorar outras intervenções que possam ser úteis, como fornecer ajuda mais específica de saúde mental. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mindfulness é um método que visa ajudar as pessoas a se concentrarem no que realmente está acontecendo no momento, em vez de se preocuparem com o que já aconteceu ou com o que pode vir a acontecer. Seus defensores dizem que a técnica, que é baseada em meditação, pode ajudar as pessoas a aproveitarem mais a vida e a se entenderem melhor, em vez de ficarem presas a pensamentos negativos e nocivos. Os alunos que participaram do estudo receberam várias aulas de mindfulness durante um semestre. Eles também foram solicitados a utilizar a técnica em casa, mas muito poucos o fizeram. Um dos pesquisadores do estudo, o professor Mark Williams, da Universidade de Oxford, observou que, em média, os alunos praticaram mindfulness apenas uma vez ao longo do curso de 10 semanas. "É como ir à academia só uma vez e esperar entrar em forma", explicou Williams. "Mas por que eles não praticaram [mindfulness]? Muitos deles acharam chato." Já entre os professores, muitos deles acharam a prática de mindfulness útil para o seu próprio bem-estar. Para Dan O'Hare, da British Psychological Society, "é importante não encarar as sessões de mindfulness como uma panaceia ou como um produto 'de uso imediato' que pode ajudar os adolescentes e seus professores a se tornarem 'mais resistentes', sem levar em consideração todos os demais fatores que podem influenciar nas suas vidas, como o ambiente escolar." "Também não podemos ignorar o fato de que adolescentes e professores passaram por dois anos muito difíceis [por causa da pandemia]. Dadas as circunstâncias em que vivemos e os estresses que isso gera, talvez não seja totalmente surpreendente que a amostra do estudo não tenha apresentado uma grande melhora no bem-estar", diz O'Hare. Essa pesquisa reforça a importância de se coletar dados para descobrir se um método realmente funciona, diz Julieta Galante, da Universidade de Cambridge. Os pesquisadores achavam que o experimento poderia ser eficaz com base em vários estudos que foram feitos em pequena escala. No entanto, diz ela, "precisamos ter muita certeza do benefício antes de lançar qualquer intervenção universal de saúde". "As descobertas não descartam completamente o potencial da terapia baseada em mindfulness para jovens: como acontece com qualquer terapia, ela funciona para algumas pessoas, mas não para todas. O importante é determinar quem pode se beneficiar dela, quando e como", diz a professora Stella Chan, especialista da Universidade de Reading.
2022-07-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62190873
sociedade
Os profissionais que ganham tardes de sexta-feira livres durante o verão
Durante o verão, muitos profissionais querem que o fim de semana comece o mais cedo possível. Enquanto a maioria dos trabalhadores precisa aguardar o fim do expediente na sexta-feira, um pequeno grupo tem liberdade para começar o fim de semana mais cedo nos Estados Unidos. São as "sextas-feiras de verão" - um benefício que algumas empresas concedem, permitindo que funcionários parem de trabalhar mais cedo ou tirem o dia de folga, nos meses de junho, julho e agosto (o verão do Hemisfério Norte). Trata-se de um grande privilégio, segundo Vicki Salemi, consultora do site de Recursos Humanos Monster.com. Ela teve sextas-feiras de Verão pela primeira vez em um emprego em Nova York. "Era maravilhoso, porque toda sexta-feira à tarde eu visitava o Museu Metropolitano de Arte." Além de conceder mais tempo de descanso, Salemi explica que o benefício incentiva o comprometimento e o ânimo dos profissionais. Também tira proveito do baixo movimento no verão em muitos escritórios - os funcionários e clientes muitas vezes tiram férias durante esses meses, de forma que há menos trabalho a fazer. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Estudos demonstram que a produtividade no trabalho diminui muito no verão por esses motivos. Não existem muitos dados concretos sobre o histórico das sextas-feiras de verão. Alguns relatos indicam que elas tiveram origem em Nova York nos anos 1960. Como em um episódio da série de TV Mad Men, os executivos de publicidade saíam mais cedo às sextas-feiras para viajar para os Hamptons, região badalada ao leste de Long Island. Um registro antigo pode ser encontrado em um artigo sobre esse benefício publicado pelo jornal The New York Times em 1988. "Do ponto de vista da gerência, as horas de verão são aceitáveis porque têm duração limitada e - ao contrário de aumentos salariais ou maior cobertura de planos saúde - elas não se tornam parte permanente do pacote de benefícios salariais." Atualmente, as sextas-feiras de verão ainda têm forte associação com Nova York, onde elas são comuns entre os trabalhadores em setores como o financeiro, de imprensa e tecnologia. Mas, nos últimos anos, se espalharam para além de cidade e ficaram mais comuns. Dados indicam que cerca de 10% das companhias americanas ofereceram o benefício em 2015. E, em 2017, 42% das mil empresas listadas pela revista Fortune ofereciam sextas-feiras de verão. Mas, como sabem muitos profissionais, isso é um luxo que não está disponível para todos. É algo que depende principalmente do setor de atividade. "Não é algo distribuído igualmente no mercado de trabalho. Definitivamente, são os profissionais do conhecimento, com alta formação, que trabalham em escritório, [em setores] onde o verão tem pouco movimento", afirma Stephan Meier, professor de Administração da Columbia Business School, em Nova York. Muitos locais de trabalho têm na sexta-feira o mesmo nível de atividade dos outros dias da semana - hotéis e hospitais, por exemplo -, e tirar essa folga não é uma opção. Salemi também indica o comércio eletrônico, a logística e a indústria como exemplos onde as sextas-feiras de verão não funcionariam. E existem ainda setores que enfrentam pico de trabalho no verão. Como exemplo, uma das duas semanas de moda anuais de Nova York ocorre no final do verão ou no início de outono, e os profissionais de moda têm trabalho dobrado nesta época. As sextas-feiras de verão também tendem a beneficiar funcionários permanentes e excluir empregados com menos benefícios, como freelancers ou terceirizados. Salemi ressalta que, se os chefes estiverem de folga e os freelancers não receberem trabalho, estes profissionais poderão ganhar menos dinheiro, especialmente se forem pagos por hora (ou por tarefa). "Isso pode trazer impactos para o seu dia e seu fluxo de trabalho, para sua renda e receita", afirma ela. E, mesmo para aqueles que se beneficiam da política, as sextas-feiras de verão perdem o sentido se os chefes derem mau exemplo trabalhando, como ocorre com qualquer outro benefício que ofereça maior tempo de folga. "Em algumas culturas de empresas, pode haver pressão" para não tirar sextas-feiras de verão, afirma Salemi. Um chefe que pressiona tacitamente seus funcionários a permanecer no escritório ou verificar mensagens quando deveriam estar de folga elimina completamente o propósito das sextas-feiras de verão. Mas um benefício assim pode se tornar mais comum? Alguns especialistas dizem ser possível, porque os desejos e exigências dos profissionais mudaram - e ganharam voz - durante a pandemia. Afinal, a covid-19 demonstrou que os profissionais valorizam a flexibilidade, e as sextas-feiras de verão certamente se enquadram nisso. E podem ajudar as empresas a gerenciar o estresse dos funcionários. "As sextas-feiras de verão são um benefício pré-pandêmico em alguns setores, mas representam uma forma simples para que empregadores evitem o esgotamento dos funcionários, ajudando-os a atingir o equilíbrio depois de vários anos em que trabalho e vida pessoal misturaram-se com o trabalho remoto", afirma Alison Sullivan, do site de carreiras Glassdoor. Vicki Salemi concorda que as sextas-feiras de verão melhoram a saúde mental e reduzem o burnout. Já Stephan Meier considera o benefício "uma estratégia de retenção", porque alguns funcionários podem valorizar isso mais do que dinheiro, especialmente se a diferença salarial for relativamente pequena. Meier afirma que isso pode tornar as sextas-feiras de verão mais comuns. Para ele, "cada vez mais empresas estão descobrindo o que motiva as pessoas" em termos de benefícios - e não são mesas de pingue-pongue ou comida grátis. Ele afirma que as sextas-feiras de verão "são algo que nem todas as empresas podem oferecer com sucesso, de forma que aquelas que realmente as promoverem terão uma vantagem competitiva". Além disso, em uma era de imensas mudanças no ambiente de trabalho, alimentam outro debate que vem ganhando força em meio à pandemia: se as empresas poderiam introduzir a semana de trabalho de quatro dias. "As sextas-feiras de Verão podem ser um teste" para semanas de trabalho mais curtas ao longo do ano, segundo Salemi. Meier concorda: "Acredito plenamente que existe uma forma de podermos descobrir o quanto conseguimos fazer em quatro dias. Vamos dar às pessoas mais sextas-feiras de folga: sextas-feiras de outono, de primavera". Mas, por enquanto, as sextas-feiras de verão seguem sendo um benefício cobiçado - um tempo de folga precioso, apenas para alguns felizardos. Mas que certamente agradaria a quase todos. "O verão não dura para sempre. Ele passa muito rápido", afirma Salemi. "Por isso, vamos aproveitar."
2022-07-18
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62186586
sociedade
O modelo matemático usado para encontrar corpos de desaparecidos nos rios da Colômbia
Como o corpo de um desaparecido se transforma dentro de um rio da Colômbia? Há alguns anos, a microbiologista colombiana Luz Adriana Pérez e a antropóloga forense Ana Carolina Guatame fizeram essa pergunta durante um projeto de pesquisa envolvendo vítimas do conflito armado em território colombiano. E o questionamento surgiu a partir dos depoimentos que coletavam: dezenas deles apontavam os grupos paramilitares como os principais responsáveis pela violência — os corpos sem vida eram jogados nos rios para evitar que fossem encontrados. De fato, um comandante paramilitar, Ever Veloza, mais conhecido como HH, disse certa vez: "Se eles tirassem a água do rio Magdalena, encontrariam o maior cemitério do país". Até agora, as autoridades colombianas informaram que mais de mil corpos de pessoas consideradas vítimas do conflito que afetou o país por mais de 50 anos foram resgatados dos rios colombianos. Fim do Matérias recomendadas "Mas pelas histórias que ouvimos e segundo os dados oficiais, esse número é muito maior", diz a microbiologista Pérez, que trabalha para a fundação Equitas, à BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC). Então, ela e Guatame começaram a se fazer perguntas: como você procura um corpo em um rio? Como você pode fazer essa busca com uma grande quantidade de água em movimento? "Nosso primeiro esforço ao trabalhar nessas questões é tentar dar respostas a quem procura informações sobre seus entes queridos", diz Pérez. "E descobrimos que, devido à complexidade da busca nos rios e lagoas, não havia um modelo semelhante ao que havia sido feito na busca de pessoas desaparecidas embaixo da terra." E assim nasceu o projeto de criar o primeiro modelo matemático capaz de encontrar os corpos dos desaparecidos nos cursos d'água da Colômbia. No entanto, assim que as duas cientistas começaram a planejar o projeto, perceberam que precisavam formar uma equipe multidisciplinar, incluindo de matemáticos e mecânicos de fluidos a antropólogos forenses e até arqueólogos subaquáticos. "Só com nossas especialidades científicas sabíamos que não conseguiríamos cobrir tudo o que tínhamos como objetivo. Precisávamos de mais pesquisadores de outras ciências." Um dos principais desafios foi medir a água: seu movimento na natureza, mas também aquelas dinâmicas que a afetam e estão relacionadas a eventos sociais e humanos, como um conflito armado. Ou seja, um campo de pesquisa totalmente novo. Assim, decidiram se juntar ao o Instituto de Águas da Universidade Javeriana, na Colômbia, liderado pelo engenheiro e especialista em hidrodinâmica ambiental Jorge Escobar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Nunca tínhamos trabalhado com isso, mas fomos movidos pela responsabilidade social de fazer algo com nossa capacidade de ajudar a responder a essas perguntas", diz Escobar à BBC News Mundo. "A primeira coisa que tivemos que encontrar foi um rio onde, além de ter relatos de corpos que foram jogados ali, também tinha as condições mínimas de segurança para poder realizar nossas investigações", explica. Depois de vários meses, o rio escolhido foi La Miel. Esse afluente do Magdalena, localizado no departamento (Estado) de Caldas, cerca de 500 quilômetros a oeste de Bogotá, tinha a particularidade de estar em uma área de conflito entre os municípios de Norcasia e Samaná. "Mas também, por fazer parte do afluente de uma represa, nos permitia de alguma forma ter uma corrente controlada por vários meses do ano", explica Escobar. Tanto a equipe liderada por Pérez e Guatame quanto a de Escobar passaram vários meses nas margens do rio, dentro de suas águas e até embaixo delas. "O principal foi fazer uma caracterização do rio", explica. Os rios são geralmente compostos por três acidentes hidráulicos: redemoinhos, jatos (as quedas d'água que podem ser pequenas ou grandes) e remansos (onde a corrente do rio é mais calma). Caracterizar o rio, explica, é ver onde se localiza cada uma desses acidentes. Depois, com esses pontos bem identificados e com a ajuda de fotos de satélite, passaram a medir o que acontecia com um corpo ao percorrer o curso d'água e se deparar com esses acidentes. "Usamos um 'dummy' (manequim ou boneco) que batizamos de Emilio. E medimos tanto o movimento da água nesses pontos como o movimento do 'dummy' para poder estabelecer várias conclusões", destaca Pérez. Todas essas medições e a posterior análise desses dados duraram cerca de dois anos, incluindo o período da pandemia de covid-19, e deixaram um modelo feito a partir da matemática pelo qual o rio e seu "comportamento" podem ser recriados. O estudo mostrou pontos de interesse onde poderiam estar os corpos ou restos mortais dos desaparecidos. Esses locais receberam o nome de unidades geomorfológicas de interesse forense, ou UGIF. "Mas, acima de tudo, isso nos dá certos padrões que podem ser aplicados a qualquer corpo d'água na Colômbia onde for realizado esse tipo de busca", assinala Escobar. No entanto, foi fundamental considerar um detalhe: o corpo humano, ao contrário do manequim, nem sempre flutua. "Ao ter o UGIF com as medições feitas no rio, tivemos que incorporar os dados subaquáticos nesse modelo: o que acontece com o corpo quando ele afunda e, mais importante, quando se decompõe", observa Pérez. Para isso, os membros da equipe fizeram duas coisas: primeiro chamaram o arqueólogo Carlos del Cairo, especialista em exploração submarina, e depois colocaram o corpo de um porco em vários pontos do rio para ver o efeito da água no processo de decomposição de tecidos orgânicos. Para Del Cairo, que havia trabalhado na descoberta de vários naufrágios coloniais na costa caribenha colombiana, o trabalho no rio trouxe várias exigências diferentes. "Você passa de um trabalho em uma superfície de pesquisa de centenas de metros quadrados com boa visibilidade para um rio com visibilidade mínima em algumas partes", explica Del Cairo. No entanto, o que representou um desafio maior foi encontrar padrões para rastrear elementos como ossos ou restos de roupas como cintos ou tiras, pedaços de calças ou camisas. "Tivemos que adaptar nossos equipamentos de medição em superfícies subaquáticas para encontrar objetos um pouco mais incomuns. Não é o mesmo que procurar jarros ou restos de barcos", explica. Todos os dados obtidos — entre a exploração realizada por Del Cairo e os resultados da decomposição do animal — conseguiram completar a fase inicial do projeto, que já havia avançado com a caracterização do rio. "Esses dados primeiro nos permitiram ter maior certeza sobre os possíveis locais de interesse para a nossa pesquisa, mas também ajudaram a consolidar os padrões para ter um modelo de previsão para a busca por restos humanos na água", disse Puerta. Assim, a equipe selecionou vários pontos no leito do rio La Miel. "Com esses pontos, esperamos realizar uma busca real pelos corpos dos desaparecidos no La Miel nos próximos meses, para concluir o desenho do modelo matemático", explica Pérez. Essa pesquisa, apontam os cientistas, destaca a relevância que a água tem no país. "Cerca da metade da área territorial da Colômbia é água: mar, rios, lagos. Portanto, se vamos nos esforçar para buscar a verdade sobre o que aconteceu no país, é fundamental apoiarmos esses processos científicos para dar respostas que possivelmente estão no curso dos rios da Colômbia", explica Escobar. "A Colômbia foi construída a partir de seus rios", conclui Del Cairo. "Por isso não podemos fugir da responsabilidade de procurar maneiras que ajudem a reconstruir o que aconteceu no país."
2022-07-18
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-62173809
sociedade
A estudante de medicina que perdeu os movimentos após AVC e conseguiu concluir a graduação
Para Elaine Luzia dos Santos, de 33 anos, a formatura em medicina representa uma vitória que vai bem além da conquista acadêmica. Ela é a primeira pessoa com tetraparesia a se formar em medicina no Brasil, pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), na cidade de Cascavel. Em 2014, a paranaense perdeu a fala e todos os movimentos nas partes inferior e superior do corpo, quando ainda cursava o terceiro ano. Ela precisou reaprender do zero como chegar até a faculdade, como ter uma rotina de estudos e até desenvolver uma relação no atendimento aos pacientes. "O diagnóstico inicial foi de síndrome do encarceramento do tipo incompleta [em que a pessoa tem total consciência e memória preservados, porém sem os movimentos] e isso gera uma tetraparesia, que é diferente da tetraplegia por manter discreta lateralização do pescoço", relembra o irmão de Elaine, Mário Lucas dos Santos, que também é médico. Ele diz que a irmã sempre foi uma pessoa muito saudável. "Descobrimos depois uma mutação em um gene da protrombina [proteína produzida pelo fígado] que faz com que tenha uma predisposição maior a formar coágulos". Fim do Matérias recomendadas Em novembro de 2014, Elaine sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) que a deixou com tetraparesia, sem movimentos nos membros superiores e inferiores e também um quadro de anartria, ou seja, sem a capacidade de comunicação verbal. O irmão de Elaine conta que desde o primeiro momento em que a médica pôde se comunicar, voltar às aulas sempre foi sua sua principal preocupação. "Ela fazia muitas coisas ao mesmo tempo e queria retomar logo a sua vida", relata Lucas. Hoje, o movimento dos olhos é a chave para que Elaine consiga se expressar: ela utiliza uma ferramenta conhecida como prancha alfabética, que forma as palavras de acordo com a forma que ela pisca. A ferramenta é uma tabela dividida em cinco linhas, cada uma contendo um grupo de letras, Elaine pisca quando a intérprete diz a letra necessária para construir o que ela quer comunicar. O modelo original sofreu algumas alterações para facilitar o seu uso no cotidiano. "Meu sentimento é de gratidão a todos que passaram no meu caminho, a todas as mãos e vozes emprestadas e principalmente aos pacientes que confiam suas vidas aos meus cuidados", contou Elaine, em entrevista à BBC News Brasil, que ocorreu por meio da prancha alfabética e com o auxílio de uma intérprete. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Essa é a segunda graduação de Elaine, que também é formada em farmácia pela mesma universidade. Na medicina, a médica passou por diversas fases de adaptação em seu processo de retorno após o AVC. Uma delas, inclusive, foi a fase de querer ser invisível, para que os colegas não notassem sua presença. O longo processo de inclusão em sala de aula, lembra ela, culminou nos últimos dias da graduação, quando ela quis que todos soubessem da sua história para incentivar outras pessoas que tenham alguma limitação a realizar seus sonhos. Para conseguir acompanhar as aulas, ela também contou com o apoio de oito professoras de educação especializada durante a graduação. A docente de atendimento educacional especializado Clarice Palavissini conheceu Elaine em 2017, quando ela ainda não dominava os movimentos do pescoço e cabeça e não controlava a saliva. Ela conta que o atendimento começava desde a chegada da Elaine ao estacionamento do Hospital Universitário do Oeste do Paraná (HUOP), com o auxílio no desembarque, condução da cadeira de rodas, acompanhamento das aulas teóricas e práticas e auxílio na comunicação com docentes, discentes e pacientes. "No estágio da Elaine, foi realizado um rodízio entre os profissionais do Programa de Educação Especializada (PEE), sempre com bom ânimo. No início fazíamos a mediação para ensinar a comunicação. Quando a comunicação já estava boa, eles interagiam entre si, me solicitando em alguns casos de incompreensão", explica Clarice. Como os demais acadêmicos de sua turma, Elaine era avaliada ao longo do estágio, tanto em frequência às aulas quanto realizando provas escritas. A diferença é que Elaine, por ser pessoa com deficiência, tinha 50% a mais de tempo que os outros acadêmicos. A equipe do programa a acompanhava e ela piscava as respostas e enquanto Clarice assinalava ou transcrevia as respostas. Elionesia, irmã de Elaine, destaca que o caso bem-sucedido da irmã não reflete apenas a imensa força de vontade que ela tem, mas também as políticas públicas voltadas a alunos como ela. "É importante dizer que não basta somente força de vontade, mas são necessárias políticas públicas. Sem a Lei de inclusão provavelmente a minha irmã não conseguiria, ela demanda muitos cuidados que são supridos pela família, mas se não houvesse o pessoal da equipe especializada ela não teria acesso à universidade", explica. De acordo com o coordenador do PEE, Ivan José de Pádua, a inclusão da pessoa com deficiência no ensino superior está dando certo na universidade porque há espaço para que elas falem sobre as suas reais necessidades. "A Elaine realizou as mesmas atividades que os outros acadêmicos do curso de medicina fazem, com o apoio do PEE. Que foram sendo construídas com os colegas e profissionais junto com ela", explica Ivan. Centenas de pessoas passaram pelo programa de diferentes campus: Cascavel, Toledo, Marechal Cândido Rondon, Foz do Iguaçu e Francisco Beltrão, e vários alunos foram e são atendidos, eles fazem parte do programa, do colegiado, discutem os encaminhamentos, produzem artigos e publicam livros. "O lema é da Nações Unidas: 'Nada para nós, sem nós'. Eu tenho deficiência visual e já passei pelo programa como aluno, é necessária a nossa participação para garantir o acesso e melhorar o que é de direito das pessoas com deficiência. Para conseguir esses espaços, escrever a legislação e ainda lutar para que essa legislação seja implementada, seja praticada", ressalta. A Lei Brasileira de Inclusão (LBI) afirma em seu Art. 27, que a educação é um direito da pessoa com deficiência e que o sistema educacional deve ser inclusivo em todos os níveis. Mas, na prática, muitas instituições de ensino não cumprem essas obrigações. O Ministério da Educação colocou a acessibilidade como um dos requisitos para credenciamento, recredenciamento, autorização, reconhecimento e renovação de cursos superiores. As universidades precisam estar acessíveis e seguindo a legislação em vigor para poderem oferecer seus cursos. Caso não ofereçam acessibilidade no ensino superior, elas perdem pontos e correm até mesmo o risco de não ter seu credenciamento autorizado. "Nós ficamos tristes por algumas coisas que vemos. A maioria dos locais não são preparados, não têm acesso, falta muita empatia nas pessoas, às vezes algumas pessoas olham com olhares de preconceito", diz Lucas. Com o surgimento de matérias sobre Elaine, o irmão leu comentários do tipo "ah, por isso que atrasa o hospital". "Por incrível que pareça, eu li esse tipo de comentário, mas faz parte, a gente sempre teve que lidar com isso, mas eu fico feliz que a grande maioria enxerga com bons olhos toda a superação da minha irmã. A inclusão é essencial. E só nos damos conta muitas vezes quando nós precisamos", desabafa. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o percentual de pessoas com deficiência nas universidades não chega a 1%, embora elas representem 8,4% da população com dois anos ou mais de idade. Houve um crescimento de 70% no número de matriculados por meio das reservas de vagas. O Censo Superior da Educação mostrou que o número de matriculados com cotas passou de 2.962 (0,04%) em 2017, para 5.033 (0,06% do total de matriculados) em 2018. Apesar do crescimento, esse número só representa 0,52% do total de matriculados em cursos de graduação do ensino superior, com 43.633 estudantes em 2018. Para que o número cresça ainda mais nos próximos anos é essencial que as pessoas conheçam seus direitos e exijam que as instituições de ensino superior cumpram seu papel diante da Lei. "Nós não queremos ser a primeira e com certeza não ser a última, mas ser uma instituição que oportunizou e fez parte da história da Elaine. E que outras 'Elaines' pelo país, independente do seu curso, tenham essa mesma oportunidade, seja na graduação, no mestrado ou doutorado, é importante lembrar que as instituições têm a obrigação, quando eu falo de inclusão, eu falo de inclusão para tudo e para todos", ressalta Araujo. De acordo com o IBGE, conforme dados divulgados em 2021, existem mais de 17 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. O preconceito ainda é um dos fatores que afasta esse grupo do mercado de trabalho, mas não é o principal. Quase 68% da população com algum tipo de deficiência não têm instrução ou possui ensino fundamental incompleto, o que torna difícil a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho. Ainda segundo o levantamento feito pelo IBGE, apenas 28,3% das pessoas com deficiência em idade de trabalhar (14 anos ou mais) se posicionaram na força de trabalho brasileira. Entre as pessoas sem deficiência, o índice sobe para 66,3%. Segundo o coordenador do curso de Medicina da Unioeste, Allan Araujo, Elaine sempre participou de todas as atividades: teóricas, ambulatoriais e de centro cirúrgico. Ela nunca colocou restrições e toda universidade, o Hospital Universitário e servidores colaboraram para a formação. Foi essencial o Programa de Atendimento Educacional Especializado que possui profissionais capacitados e interessados em dar aos alunos o suporte para formação. A partir de agora, o sonho de Elaine é especializar-se em radiologia, ela conta. "Eu gostaria de me especializar em radiologia, por ser uma área que eu posso atuar com relativa liberdade, sem depender de muito auxílio. Nessa área de atuação poderei usar meu conhecimento adquirido ao longo do curso, posso fazer diagnósticos por imagens, precisarei apenas de alguém para digitar o laudo", conta Elaine. O professor Allan explica que são inúmeras possibilidades do exercício da medicina e que ela sempre passou muito bem pelas avaliações, esteve no centro cirúrgico, observando e fazendo perguntas dentro da mobilidade que ela tem, além de interagir com seu grupo. "Mas nós sabemos que ela não vai parar em radiologia, Elaine vai ser o exemplo de uma médica que vai muito além de qualquer limite que nós possamos imaginar ou visualizar, ela nos ensinou sobre a inclusão no curso de medicina, nós temos muitas dificuldades com muitos alunos e ela fez a gente aprender muito. O curso de medicina se sente honrado de tê-la como aluna", diz.
2022-07-16
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61101740
sociedade
Como combater 3 hábitos que nos deixam esgotados silenciosamente
Você está tão exausto que é difícil até mesmo encontrar palavras para descrever essa sensação, ainda que já tenha se certificado de que não possui nenhum problema de saúde? Talvez você já tenha seguido o clássico conselho: tenha uma dieta equilibrada, se exercite e durma o suficiente. Porém, há certos hábitos do cotidiano que podem estar afetando seu vigor, e você sequer suspeita disso. Entre esses silenciosos sabotadores de energia estão velhos conhecidos, como sentar na posição errada ou adiar as refeições. Fim do Matérias recomendadas Há, inclusive, alguns elementos que podem ser considerados inesperados entre esses sabotadores. Para explorá-los, conversamos com a psiquiatra Leela R. Magavi, diretora médica regional do Community Psychiatry and MindPath Care Centers, na Califórnia, nos Estados Unidos. Assistir a filmes ou séries é algo que fazemos para relaxar, então perguntamos a Magavi por que especialistas como ela incluem essas atividades na lista de possíveis fatores que causam cansaço mental. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Como seres humanos, somos criaturas emocionais, e muitos de nós somos empáticos e captamos os sentimentos dos personagens de programas de TV e filmes", explica. "Eles podem nos lembrar experiências dolorosas da nossa vida, qualquer tipo de deficiência, fraqueza, perda ou insegurança, e tudo isso pode causar muitas emoções associadas, como tristeza, ansiedade, medo, raiva, que podem nos afetar ainda que estejam no nosso subconsciente", acrescenta. "Então, quando você assiste a muitos desses programas de TV, mesmo que não sinta que está pensando abertamente sobre isso, esses sentimentos estarão sob a superfície. Enquanto você está trabalhando, enquanto você está com sua família, essa grande quantidade de emoções pode tomar conta de você e fazer com que se sinta esgotado o dia todo sem que perceba", diz. Magavi diz que algo semelhante pode acontecer depois de assistir a ou ler notícias, "porque elas te levam a pensar sobre o que está acontecendo no mundo". Porém, ela esclarece que isso não significa que é ruim assistir televisão ou ler jornais. O antídoto "O que recomendo para combater esse cansaço é, depois de ler ou assistir a algo, processá-lo, seja por meio de um diário ou de uma escrita expressiva (anotar seus pensamentos e sentimentos para entendê-los com mais clareza), ou conversando com um amigo ou familiar." "Isso permite que as emoções saiam, para que não as internalize e não consumam sua energia." Mas nem sempre você tem tempo para se cuidar tanto... Existe um método mais simples? "É bom fazer um 'check-up' mental consigo mesmo: que emoção este artigo ou programa de TV causou em mim? Isso pode ser muito rápido e fácil de fazer". "Por exemplo, se você acabou de assistir O Rei Leão e se sente triste porque o pai morreu, isso pode fazer com que você se preocupe com a morte das pessoas que você ama. Mas, ao fazer um 'check-up' mental, poderá se lembrar que todos à sua volta estão fazendo todo o possível para que possam se manter saudáveis." "Algo tão curto como isso pode te ajudar a não internalizar essas emoções e a não se deixar bombardear por elas." A exceção Ler histórias em livros físicos, no entanto, pode ter o efeito oposto ao das telas. "Não só não tem a luz azul da tela, que causa cansaço ocular e dores de cabeça, como quando você lê, precisa usar a sua própria imaginação, por isso muitas pessoas acham que a leitura, mesmo que seja muito emocional, é muito terapêutica e tranquilizadora." O esporte pode ser considerado algo que entretém, tira da rotina, mas que também pode ser um elemento prejudicial para a energia sob alguns aspectos. "Torcedores fanáticos podem ficar muito absortos no esporte e aceitar vitórias e derrotas como suas, sentindo-se excessivamente tristes e desmoralizados ou eufóricos." "Qualquer emoção extrema costuma ser desgastante: a felicidade intensa pode esgotar muitos dos circuitos do cérebro; a tristeza profunda pode estar relacionada à ansiedade, que sobrecarrega o cérebro e faz você se sentir muito cansado." O antídoto "O importante é estar consciente do que você está sentindo", diz a especialista. "Se você está muito emocionado, pergunte a si mesmo: preciso fazer uma pausa, um lanche, um banho rápido... o que preciso fazer para me acalmar no momento?" "Respire fundo, faça alongamentos e caminhe um pouco", aconselha. Planejar é uma maneira de controlar a realidade, de organizar a vida, de conter o caos na sua vida. Mas, novamente, algo que instintivamente colocaríamos no pacote de coisas que causam alívio pode justamente causar estresse. Nesse caso, aplica-se novamente a afirmação de que (quase) tudo em excesso é ruim. O planejamento é muito útil - até certo ponto. Estar constantemente exposto a uma agenda cheia de obrigações pode causar aumento da ansiedade e afetar negativamente a memória e a velocidade de processamento de informações. "Algumas pessoas passam tantas horas organizando horários e listas que não são capazes de viver conscientemente e desfrutar de suas vidas. Sempre estão preocupadas, porque se atrasaram nisso, não estão em dia com aquilo e acabam deixando de sentir autocompaixão e gratidão pelas coisas que conseguiram realizar naquele dia." "Isso pode causar muitos sentimentos de tristeza, desmoralização ou fadiga." "Em algumas pessoas, isso transborda para os sonhos." "Tenho pacientes adultos que sonham que vão chegar tarde na escola, que não terminaram a tarefa... Há muitos sonhos que os levam a regressar à infância, onde sentem que estão constantemente atrasados, e isso faz com que eles não se sintam bem na manhã seguinte." O antídoto "Sempre recomendo passar de cinco a dez minutos apenas pensando sobre quais são os principais objetivos do dia e, no final do dia, mesmo que não tenham sido alcançados, não gaste muito tempo pensando neles. Pense naqueles que foram alcançados, em por que eles são importantes", diz Magavi. A psiquiatra também recomenda não fazer planos com muita antecedência, "porque a vida está sempre evoluindo, e é importante ser flexível". "Quando as pessoas planejam a longo prazo, elas simplesmente antecipam que tudo em seu mundo desconhecido funcionará como um relógio para atingir esse objetivo a tempo." "Mas, se algo muda em sua família, em seus amigos, em seu trabalho e eles não conseguem atingir esse objetivo, eles se sentem completamente sobrecarregados." Um truque é planejar o obrigatório - reuniões, compromissos, festas familiares - e deixar o resto do tempo o mais livre possível.
2022-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62144907
sociedade
'É como se não ter filhos fosse uma tragédia': o estigma contra mulheres que não são mães
Toda vez que a roteirista Jaqueline Vargas responde 'não' à pergunta "Você tem filhos?" ouve um longo e pesaroso "Ahhhhhhhh!". "É como se não ter filhos fosse uma tragédia", diz. Passado o susto inicial, logo surgem os primeiros questionamentos: "Quem vai cuidar de você na velhice?" e "Por que você não adota uma criança?" são os mais recorrentes. E não é só isso, conta ela. As pessoas ainda lhe questionam se ela tem algum problema de saúde e, por último, propõem soluções infalíveis. "A grande maioria tenta ajudar a resolver essa falta de filho. A possibilidade de simplesmente não querer ser mãe é uma das últimas que surgem e quase sempre para encerrar o assunto", acrescenta. Autora de filmes, novelas e séries, como Predestinado (2022), Floribella (2005-2006) e Sessão de Terapia (2019-2021), Jaqueline Vargas acaba de lançar o livro Aquela que Não É Mãe (Buzz Editora). Nele, reúne poemas ("No paraíso não existem mães / No paraíso não existem filhos / No paraíso apenas existem") e reflexões ("Não é uma doença o que eu sinto. Não é uma doença não querer ter filhos. Eu não quero ter filhos") sobre o tema. A decisão de não ter filhos, conta a roteirista, veio aos poucos. Primeiro, ainda jovem, aos 18 anos. Depois, voltou a pensar no assunto aos 33. E, por fim, perto dos 40, resolveu assumir. A família não criticou sua decisão. Mas, por outro lado, sempre incentivou a maternidade. Não só a família, mas a sociedade, que sempre associou a figura materna a algo único, sagrado, imaculado: "o momento mais lindo na vida de toda mulher", dizem... "Quando uma mulher abre mão de ser essa criatura sagrada para ser só uma mulher, como se isso fosse pouco, causa assombro. Afinal, sempre foi incumbida de várias funções, como cuidar da casa, dos filhos, dos idosos e por aí vai. A mulher como cuidadora de si mesmo é algo relativamente novo", observa. "Para muitas pessoas, a mulher que não quer ter filhos é uma mulher estranha, que causa assombro. E, diante do assombro, muitas pessoas podem ser hostis". Fim do Matérias recomendadas Mulheres sem filhos não estão livres de sofrer ataques ou enfrentar preconceitos. No dia 12 de outubro de 2021, a jornalista Ana Paula Padrão estava na casa de uma amiga quando, lá pelas tantas, pensou em postar uma foto linda com o filhinho pequeno dela. Em vez disso, publicou um texto no Instagram que dizia: "Hoje é Dia das Crianças e não há crianças em casa. Eu não tive filhos. E, acredite em mim, a vida sem filhos não é uma vida vazia…". Para surpresa da jornalista, o texto viralizou nas redes sociais. "Para mim, é um assunto muito natural. Mas percebi que destampei uma caixa de tabus. A repercussão me surpreendeu", relata a apresentadora do programa MasterChef, da Band. No texto, Padrão conta que já sofreu um aborto espontâneo. Diz ainda que, hoje em dia, entende que a vontade de engravidar estava mais relacionada à pressão social do que a um desejo pessoal. "Quando me perguntam se tenho filhos, digo que não com tamanha tranquilidade que isso desarma as pessoas", prossegue Padrão. "Não sou e não pareço ser uma mulher triste. Não me sinto incompleta. Minha vida é feliz e bastante divertida. Acima de tudo, sou quem eu queria ser", garante. "É difícil criticar uma pessoa realizada como eu por não ter seguido uma expectativa coletiva. Essa cobrança não me afeta. Fala mais sobre quem cobra do que sobre as minhas escolhas". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No Brasil, 37% das mulheres em idade fértil (dos 15 aos 49 anos) não pensam em ter filhos em nenhum momento. E 81% não pensam em ter filhos pelo menos nos próximos cinco anos. Entre as entrevistadas, 56% estão em uma relação estável e 74% trabalham integral ou parcialmente. É o que aponta uma pesquisa realizada pela farmacêutica Bayer, com apoio da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e do Think About Needs in Contraception (TANCO). O estudo entrevistou 726 ginecologistas e 7 mil pacientes (1,1 mil brasileiras). "Ainda hoje, mulheres que não querem ter filhos são obrigadas a escutar que são egoístas ou questionadas se têm algum trauma psicológico", constata a antropóloga Mirian Goldenberg. "O mais curioso é que as próprias mulheres cobram de outras mulheres que elas sejam mães. Como se a maternidade fosse a única escolha legítima ou, ainda, a mais legítima de todas". Goldenberg sabe do que está falando. Ela nunca teve filhos. E já escreveu até crônica sobre o assunto, Ter ou Não Ter Filhos: Eis a Questão, de 2017. "Apesar da cobrança social e da pressão das amigas, decidi, desde muito jovem, que não teria", diz o texto. Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ela conta que, no seu caso, não houve um momento em que decidiu não ser mãe. Ela simplesmente nunca teve esse desejo. Seus dois ex-maridos queriam. Tanto que, depois que se separaram, tiveram. "Nunca me senti cobrada. Nem pela minha família, nem pelos meus ex-maridos. Me senti cobrada, sim, pelas minhas amigas e por outras mulheres". Em 2012, a professora do Departamento de Psicologia Clínica da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), Thássia Souza Emídio, publicou um estudo, Elas Não Querem Ser Mães: Algumas Reflexões Sobre a Escolha Pela Não Maternidade na Atualidade, em parceria com a aluna Thaís Gigek. À época, as pesquisadoras entrevistaram seis mulheres, entre 30 e 55 anos, que não quiseram ter filhos. Em vez da maternidade, priorizaram outros projetos, como a carreira profissional, por exemplo. "Nossa sociedade, machista e patriarcal, não consegue enxergar a mulher para além do seu papel de mãe. No entanto, há diferentes possibilidades. O percurso feminino é plural. Outros ideais de vida podem ser configurados. É preciso romper com essa norma social que conecta o feminino à maternidade", afirma Thássia. Nos EUA, mulheres sem filhos ganharam termos próprios: "childless" e "childfree". Quem explica a diferença é a psicóloga Kate Kaufmann, autora do livro Você Tem Filhos? — Como As Mulheres Vivem Quando a Resposta É Não (Editora LeYa). "Childless são as mulheres que queriam ter filhos, mas nunca tiveram. E childfree, aquelas que optaram por não ter", distingue. Kate e o marido, Dan, fazem parte do primeiro grupo. Eles bem que tentaram, mas não conseguiram engravidar. "Paramos quando os médicos disseram que nosso próximo passo era a fertilização in vitro", confessa. "Para mim, era antinatural e proibitivamente caro". Hoje, o casal cria ovelhas numa comunidade rural em Portland, no Oregon. Já Karen Malone Wright, fundadora do site theNotMom ("Não Mães", em livre tradução) e organizadora do NotMom Summit ("Encontro de Não Mães"), prefere classificar as mulheres sem filhos em "por escolha" ou "por acaso" ("By choice" ou "by chance", no original). Segundo o censo de 2014, 47% das americanas entre 15 e 44 anos não tiveram filhos. O site da instituição, fundada em 2012, lista algumas não mães famosas, como a escritora britânica Virginia Woolf (1882-1941), a estilista francesa Coco Chanel (1883-1971), a pintora mexicana Frida Kahlo (1907-1954), a atriz americana Katharine Hepburn (1907-2003), a ex-primeira dama argentina Eva Perón (1919-1952)... Na edição de 2017 do NotMom Summit, realizado em Cleveland, Ohio, a palestrante convidada foi a psicoterapeuta britânica Jody Day. Ela é criadora do termo "NoMo" (sigla para No Mothers) e autora do livro Living the Life Unexpected: How to Find Hope, Meaning and a Fulfilling Future Without Children, inédito no Brasil. Day queria ter filhos, mas, solteira aos 43 anos, depois de dois relacionamentos, se deu conta de que não conseguiria realizar seu sonho. Hoje, aos 57, mora na Irlanda com seu segundo marido, a mãe e um cachorro. Em 2011, ela cofundou a Gateway Women, grupo de apoio para mulheres que não puderam engravidar. Em 2016, segundo o Instituto de Estatísticas Britânico (ONS, em inglês), 18% das mulheres do Reino Unido não pensavam em ter filhos. Em 1991, esse índice era de 9%. No Brasil, já existem iniciativas do tipo, como os grupos on-line Sem Filhos ou Não Nasci Pra Ser Mãe. Para a roteirista Jaqueline Vargas, a troca de vivências pode trazer muitos benefícios. E pelas mais variadas razões. Ela enumera algumas: em primeiro lugar, porque fica evidente que você não é a única a não querer ter filhos. Segundo, porque um ambiente de afinidades gera mais segurança e liberdade para se expor sem medo de julgamento. E terceiro porque, ao verbalizar e escutar, temos a possibilidade de ressignificar essa "verdade absoluta" que tem sido imposta às mulheres ao longo da história. "Quanto à culpa, mais do que aliviá-la, a troca pode levar ao entendimento de que não existe culpa", afirma Vargas. A escritora Thalita Rebouças entendeu que não tinha vocação para ser mãe lá pelos 30 anos. "Foi uma decisão consciente", afirma a apresentadora do The Voice Kids que, volta e meia, ouve a mesmíssima pergunta: "Você não se arrepende?". "Acho um tremendo absurdo! Dá vontade de perguntar a quem teve: 'E você, se arrepende?' Optei por não ter e não me arrependo. Por que a gente tem que ter filhos? Já reparou que ninguém cobra isso dos homens?". Seu talento como escritora infantojuvenil, relata em entrevistas, já foi colocado em dúvida pelo simples fato de não ter filhos. Certa ocasião, alguém deixou escapar: "Está grávida? Já estava na hora!". "Fazer filho é fácil, educar é que são elas!", costuma responder. Ter filho para deixar com babá? De jeito nenhum! Autora de best-sellers como Tudo Por Um Popstar (2003), Fala Sério, Mãe! (2004) e Ela Disse, Ele Disse (2011), entre outros, Rebouças explica que não queria abrir mão de sua vida noturna, quando gosta de varar a madrugada escrevendo livros e roteiros, para cuidar da prole. "Não querer ter filhos não é crime. Pelo contrário. É uma decisão difícil. Uma decisão de amor ao mundo, de amor ao próximo e de amor a si próprio".
2022-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62144903
sociedade
'Alma gêmea' e outros 6 'mitos' sobre relacionamentos
Quantas vezes você se sentou com um amigo para conversar sobre um relacionamento, seja dele, seu ou até mesmo de outro casal? Ou talvez você se interesse por reality shows onde o objetivo é supostamente encontrar o amor. Para muitos de nós, a dinâmica dos relacionamentos românticos é absolutamente fascinante. Mas por quê? Foi o que o programa da Woman's Hour, da BBC Radio 4, no Reino Unido, perguntou a Susanna Abse, presidente do Conselho Psicanalítico Britânico (BPC, na sigla em inglês). Seu livro Tell Me the Truth About Love: 13 Tales from the Therapist's Couch (Diga-me a verdade sobre o amor: 13 contos do sofá do terapeuta, em tradução livre) é baseado em seus mais de 30 anos de experiência em terapia para casais que enfrentam obstáculos em suas vidas amorosas. Fim do Matérias recomendadas "Os relacionamentos são centrais em nossas vidas. Eles nos dão mais alegria e nos causam mais dor quando as coisas dão errado", diz Abse. "Cada relacionamento é diferente e estabelecer regras sobre como as pessoas conduzem suas vidas amorosas geralmente não ajuda muito. No entanto, muitas vezes vale a pena ser curioso e questionar nossos relacionamentos com outras pessoas." "Dito isso, é compreensível que queiramos ler e assistir a conteúdos que reflitam nossas próprias vidas e talvez nos ajudem a entender coisas que às vezes parecem muito difíceis de entender", diz. Segundo Abse, existem certos mitos ultrapassados ​​que se repetem e raramente contribuem de forma favorável para o desenvolvimento de nossa vida amorosa. "A crença de que existe apenas uma pessoa para você não é comprovada empiricamente e foi refutada pela experiência da maioria das pessoas", diz a especialista. "No entanto, a ideia de uma 'alma gêmea' talvez carregue alguma verdade." "Não se trata de destino ou misticidade, mas sim de pessoas que nutrem fortes sentimentos por estarem de alguma forma poderosamente entrelaçadas com outras." "Talvez seja porque ambos os parceiros sofreram uma perda precoce ou ambos têm preocupações semelhantes sobre o que realmente significa estar perto de alguém", diz Abse. "Esse sentimento de 'alma gêmea' está frequentemente presente no processo de se apaixonar, e talvez ajude você a dar seu coração a alguém sem ficar muito assustado." "As pessoas desenvolvem seus relacionamentos de maneiras diferentes", afirma a autora. "Em alguns casos, há quem veja a outra pessoa e se apaixone imediatamente por ela, de forma muito romântica." "Outras pessoas, talvez por serem mais cautelosas, desenvolvem um relacionamento ou uma amizade por um longo período de tempo. Elas podem se conhecer e não se apressar para criar um relacionamento amoroso." "Mas acho que para a maioria das pessoas, esse sentimento de se apaixonar é uma experiência de ligação muito importante. Pode ajudar a superar a hesitação em entrar em um relacionamento, tornar-se íntimo ou se comprometer com alguém, o que pode ser assustador", afirma. "Essa faísca é como um bônus contra algumas das preocupações que todos nós temos sobre nos apaixonarmos." "No entanto, é preciso se lembrar que não apenas cada pessoa, mas também cada relacionamento é diferente. Só porque você não se apaixonou magicamente não significa que o relacionamento não vai se desenvolver e crescer." "Normalmente, essa ideia está fadada ao fracasso", diz Susanna Abse. "Você provavelmente encontrará uma resistência considerável ao tentar ativamente mudar seu parceiro, que pode ser manifestada de forma passiva em vez de aberta." "No entanto, relacionamentos próximos nos mudam e há muitas coisas que cada parte pode aprender com a outra na esfera emocional, bem como nos aspectos práticos da vida cotidiana." "Que sorte você tem se for esse o seu caso!", diz a especialista. "A maioria das pessoas acha os relacionamentos alegres e desafiadores". "Quase todos os relacionamentos de longo prazo passam por momentos difíceis, e fazer o que você pode para superá-los juntos muitas vezes aprofunda o vínculo de um casal", comenta. "Agora, se você costuma acabar em relacionamentos nos quais se sente desconfortável ou sente que tudo foi rápido demais e quer mudar de ideia, lembre-se de que você é alguém que precisa de tempo." "Talvez você tenha uma tendência a aceitar coisas que provavelmente não quer, então aprenda sobre você e as coisas com as quais você se sente confortável." "Eu não acho que existam regras rígidas e rápidas, mas definitivamente não se permita se sentir pressionado a fazer coisas que você não quer fazer." "Emoção também implica perigo, não é?" "Se você está realmente empolgado e se apressa demais para entrar em um relacionamento, também é possível que vá se apressar para sair dele." "É ótimo quando sentimos que podemos nos recuperar rapidamente. Mas com o passar dos anos, as pessoas podem se sentir menos capazes de lidar com esses altos e baixos efusivos em relacionamentos que começam e terminam." "Se você teve muitos relacionamentos emocionantes, mas um pouco decepcionantes, pode se tornar um pouco mais cauteloso e levar as coisas mais devagar", diz. "É bom lembrar que empolgação é ótimo, mas o prazer também é muito importante. E à medida que se envelhece, alguns desses prazeres podem ser um pouco mais tranquilos e planejados." "Infelizmente, isso não acontece com frequência", diz Abse. "Planejar um casamento pode aproximar alguns casais, mas também pode ser uma fonte de grande tensão. Casar não salvará um relacionamento que está em apuros." "E o mesmo vale para ter filhos." "É muito gratificante para muitas pessoas, mas todas as evidências indicam que não ajuda muito na satisfação do relacionamento. Passar de dois para três apresenta muitas complicações e as necessidades dos bebês muitas vezes têm precedência sobre as necessidades do parceiro." "Se o relacionamento é forte e o casal sabe lidar com decepções e diferenças, os anos de paternidade podem ser maravilhosos." "E eles também podem esperar mais prazeres quando as crianças saírem de casa". "É uma aposta de alto risco, especialmente se você não está falando sério sobre terminar", diz a especialista. "Mas às vezes você pode chegar a um ponto em um relacionamento em que precisa dizer: 'Há coisas que eu quero e se você não as quer, talvez agora seja a hora de nos separarmos'." "Se você é uma mulher na casa dos trinta e realmente quer ter filhos e tem um parceiro que está enrolando para isso, pode ser obrigada a enfrentar a realidade, por mais dolorosa que seja." "Mas não acho que você deva constantemente dar ultimatos em um relacionamento. Eles envolvem uma ameaça de abandono, e a ameaça de abandono tende a prejudicar muito o relacionamento."
2022-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62144389
sociedade
Os profissionais que não conseguem emprego por serem 'superqualificados'
Quando Emily quis abraçar a carreira dos seus sonhos, ela imaginou que a melhor opção seria se candidatar a um cargo administrativo inicial e buscar promoções a partir daí. Havia uma vaga aberta em uma empresa importante de entretenimento em Londres, e seus cinco anos trabalhando em outras multinacionais significavam que ela atendia a todas as exigências. A estratégia parecia estar funcionando. O setor de recursos humanos da empresa entrou em contato com Emily em questão de dias. Mas havia boas e más notícias. "Eles disseram que meu currículo era impressionante e que eu era uma candidata excepcional", segundo ela. "Mas, na entrevista, me disseram que eu era qualificada demais - que rapidamente acabaria entediada em um emprego abaixo da minha experiência." Em compensação, a empresa prometeu a Emily um novo cargo. Mas, no fim, isso não deu certo. Emily então ficou presa em um emprego do qual queria sair e se viu em um beco sem saída: era qualificada demais para um cargo inicial na carreira que ela desejava e não tinha experiência suficiente para se candidatar a uma vaga em um cargo equivalente ao seu. Fim do Matérias recomendadas Emily - identificada apenas pelo primeiro nome para proteger sua segurança no emprego - ficou frustrada com todo esse processo. "Eu preferia ter assumido o cargo do anúncio original", ela conta. "Talvez eu tivesse achado o trabalho fácil, mas nada impediria a companhia de me promover se eles me achassem boa. Ouvir que eu era 'boa demais', no início, foi lisonjeador. Mas, quando percebi que não havia conseguido o emprego, eu me senti ludibriada." À primeira vista, ser superqualificado para um emprego pode parecer algo positivo. Um candidato com mais experiência logicamente seria colocado no topo da pilha de currículos. E, para um empregador, contratar um funcionário que exceda as exigências para o cargo parece ser um golpe de sorte. Mas não é assim que geralmente funciona. Na verdade, ser qualificado demais às vezes pode ser um motivo para ser descartado pelas empresas. Talvez contra sua própria intuição, os empregadores muitas vezes rejeitam candidatos com base no excesso de conhecimento e experiência - mesmo com a dificuldade de encontrar talentos disponíveis no mercado. À medida que os trabalhadores progridem nas suas carreiras, eles normalmente assumem cargos mais importantes, gradualmente construindo seus caminhos para postos de chefia ou executivos. Mas, quanto mais alto voam os funcionários, menos alternativas de trabalho eles têm disponíveis. "Eles caminham em direção ao topo da pirâmide", explica Terry Greer-King, vice-presidente para a Europa, Oriente Médio e África da empresa de cibersegurança SonicWall, com sede em Londres. "Quanto mais experiência eles ganham, menor é o seu leque de oportunidades. Tentar algo diferente exigiria voltar à base da pirâmide." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Às vezes, os funcionários querem dar um passo atrás para seguir adiante. Pode ser para uma mudança de carreira, como no caso de Emily, ou porque um trabalhador experiente, lutando para subir o próximo degrau da escada, decide por um movimento lateral ou para baixo, projetando um ganho futuro. Circunstâncias pessoais também podem influenciar essa questão. Uma transferência ou retorno ao trabalho após uma pausa na carreira pode levar um trabalhador a aceitar um cargo inferior. Mas, embora essas circunstâncias possam parecer boas razões para os candidatos, encontrar trabalhadores candidatando-se para cargos aparentemente "abaixo" do seu nível atual na carreira pode ser um sinal de alerta para os recrutadores. Para Greer-King, o currículo de um candidato excessivamente qualificado pode indicar que ele muda de empregos com frequência ou que permanece estagnado, causando suspeitas. "Para contratar alguém, você precisa ser paranoico", segundo ele. "Se alguém estiver descendo um ou dois níveis e provavelmente já lidou com as demandas do cargo, você precisa fazer perguntas sobre sua motivação." Existem candidatos que conseguem explicar com sucesso seus motivos e convencer as empresas de que realmente desejam dar esse passo atrás, mas outros podem ter dificuldade em convencer recrutadores de que um cargo mais baixo não os deixará insatisfeitos. A preocupação é que o funcionário superqualificado logo sinta que não tem desafios, ficando entediado e ansioso pela próxima mudança. "Quando alguém entra em uma empresa, pode levar de três meses a um ano para que seja totalmente produtivo", explica Greer-King. "Mesmo alguém superqualificado para o cargo não consegue chegar e fazer o trabalho de cara. É preciso entender a cultura, os processos e a tecnologia. Por isso, investir todo esse tempo em alguém, apenas para que saia seis meses depois, não é a decisão mais inteligente na hora da contratação." Os funcionários em cargos superiores em setores onde a escada corporativa está bem estabelecida, como a consultoria administrativa, podem ser particularmente vulneráveis aos perigos da qualificação excessiva. "Alguém pode ter profunda experiência em um campo, candidatar-se a um emprego em outro e acabar apenas ouvindo da equipe de recrutamento que deveria candidatar-se a um cargo mais alto", afirma Davis Nguyen, fundador da escola de treinamento My Consulting Offer, com nos Estados Unidos. "Mas, se a empresa não tiver um cargo aberto [naquele nível], o candidato acaba sendo rejeitado." Para rejeitar esses trabalhadores, os empregadores podem alegar que eles têm experiência demais para o cargo. Ou, às vezes, eles informam que simplesmente não são os mais adequados para a empresa. "Os empregadores querem contratar a pessoa certa, no momento certo, que possa crescer no cargo, desenvolver-se e amadurecer", segundo Greer-King. "Os funcionários geralmente querem desafios. Com isso, eles tendem a ser mais felizes e permanecer por mais tempo." É claro que empregadores espertos conseguem achar formas de aproveitar trabalhadores superqualificados. Greer-King afirma que especificamente as pequenas empresas, menos limitadas pelas hierarquias e estruturas corporativas, são mais capazes de contratar funcionários com qualificações altas demais. "As startups[empresas de tecnologia iniciantes] são ágeis e têm flexibilidade", segundo ele. "Elas podem contratar um candidato superqualificado e justificar essa contratação com um cargo e salário adequados para sua experiência." Empregadores ágeis podem também contratar trabalhadores qualificados demais e promovê-los rapidamente, antecipando-se a eventuais sentimentos de tédio, segundo Shelley Crane, diretora na empresa de recursos humanos Robert Half, com sede no Reino Unido. Desta forma, as empresas beneficiam-se da experiência do funcionário, mantendo sua motivação e comprometimento de longo prazo. "Alguém 'bom demais' para o cargo será apenas benéfico para a companhia no curto prazo", segundo ela, "a menos que haja excelentes oportunidades de crescimento interno." As empresas podem também ser mais dispostas a acomodar trabalhadores superqualificados mais jovens. Greer-King afirma que seus motivos para uma mudança para baixo podem ser justificados mais facilmente. "Quanto mais idade você tiver, maior o prejuízo em uma posição júnior - e é mais provável que sua necessidade imediata seja financeira. Contratar um candidato com mais idade também significaria que ele estará não apenas sendo chefiado por alguém com menos experiência, mas também por mais jovem do que ele - o que pode criar questões estruturais", explica ele. No momento, a crise de contratação em algumas partes do mundo significa que os empregadores não podem mais ser tão seletivos com relação aos trabalhadores superqualificados. Greer-King reconhece que eliminar candidatos com experiência excessiva é mais difícil quando a luta pelos talentos é mais intensa. Mas Crane afirma que as empresas estão mais concentradas em preservar os funcionários atuais, e que candidatos superqualificados ainda estão sendo rejeitados. "No mercado atual, pode ser caro e demorado encontrar alguém novo", afirma ela. "E quando funcionários superqualificados saem da empresa, ela normalmente volta para o ponto de partida." Os trabalhadores ansiosos por mudanças podem ser tentados a reduzir deliberadamente seus conhecimentos ou omitir experiências no currículo, mas Shelley Crane não aconselha essa prática. Como o histórico profissional do candidato provavelmente será discutido na entrevista de emprego, qualquer desonestidade pode ser descoberta mais adiante no processo. "Nunca é uma boa ideia enxugar seu currículo", afirma ela. Crane também aconselha os profissionais, de forma geral, a não se candidatar a cargos para os quais são qualificados demais: "Se candidatar a diversos cargos abaixo do seu nível de conhecimento e ser rejeitado pode ter um efeito catastrófico sobre a confiança". Ter paciência e procurar emprego com determinação pode trazer recompensas, mas a realidade é que há candidatos experientes que podem não ter sucesso - e não por culpa deles. Isso pode ocorrer com funcionários de nível sênior, especialmente aqueles que trabalharam em uma mesma empresa por muito tempo. "Eles podem ter se enraizado na cultura de outro ambiente de trabalho", afirma Terry Greer-King. "Isso os torna menos maleáveis." Mas o inconveniente de ser qualificado demais pode prejudicar qualquer pessoa, como aconteceu com Emily. Embora nunca tenha conseguido o cargo ideal, ela acabou se voltando para a carreira que desejava, encontrando um cargo em uma empresa de entretenimento menor que acabou se tornando uma promoção com relação ao seu emprego anterior. Mas a experiência de ser considerada qualificada demais para o emprego dos seus sonhos a fez questionar sobre as razões que levam uma empresa a preferir abrir mão de uma boa trabalhadora como ela, que estava feliz por começar por baixo e disposta a agregar valor àquela companhia. "Candidatei-me ao cargo porque realmente acreditava que poderia oferecer muito para aquela empresa", afirma ela. "Era minha escolha. Dizer que eu era superqualificada retirou aquela escolha de mim."
2022-07-12
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-62127190
sociedade
'Estupro em hospital não é caso isolado', diz advogada
Um médico anestesista foi preso em flagrante acusado de estuprar uma paciente que estava anestesiada durante um parto cesárea no Hospital da Mulher, em São João de Meriti, no Rio de Janeiro. Imagens foram gravadas pela equipe de enfermagem do hospital com um celular escondido na sala de cirurgia. No vídeo, segundo o portal G1, que teve acesso ao material, Quintella Bezerra coloca o órgão sexual na boca da paciente, que estava inconsciente. O ato não foi percebido na hora pela equipe que realizava o parto porque um lençol é normalmente estendido na vertical em procedimentos para isolar a cabeça da paciente do resto do corpo. De acordo com a Polícia Civil, a quem as enfermeiras entregaram a gravação, elas estavam desconfiadas da conduta do médico porque ele teria induzido uma sedação mais alta do que o necessária em outras pacientes grávidas. Fim do Matérias recomendadas De acordo com o portal G1, Bezerra esperou o marido da vítima sair da sala de cirurgia com o bebê nos braços para então cometer a violência. Em nota ao mesmo portal, os representantes legais de Bezerra na ocasião disseram que se manifestariam após ter acesso a depoimentos e provas relacionados ao caso. Posteriormente, o advogado informou à BBC News Brasil que se retirou do caso, e a reportagem ainda não conseguiu localizar os novos representantes de Bezerra. "Apesar de ser chocante, violências dentro de hospitais e clínicas são um reflexo da cultura do estupro e da estrutura misógina da sociedade. Em qualquer situação que dá acesso ao corpo de meninas e mulheres a homens, vai haver profissionais que vão se aproveitar disso", diz a advogada Isabela Del Monde, uma das fundadoras da Rede Feminista de Juristas e coordenadora do movimento #MeTooBrasil. Foram 1.239 registros de estupros e 495 de casos de assédio sexual, violação sexual mediante fraude, atentado violento ao pudor e importunação ofensiva ao pudor. "O número certamente é maior, tendo em vista a ausência de dados de 18 unidades federativas e o fato de que apenas 10% dos estupros são registrados no Brasil", diz a publicação. "É mais comum ouvirmos relatos de abusos feitos por ginecologistas ou por profissionais do ramo da estética, pela maior proximidade com o corpo das pacientes, mas não quer dizer que não ocorra em outras situações", aponta Fábio Couto, advogado especialista em Direito Criminal pela Universidade Gama Filho (UGF), no Rio de Janeiro. De acordo com o artigo 217-A do Código Penal, que define a punição em casos de estupro de vulnerável (caracterizado como qualquer ato libidinoso), o crime cometido pelo anestesista pode resultar em 8 a 15 anos de prisão. "Como a vítima não tinha condições de reagir ou de entender o que estava acontecendo, caracteriza-se como estupro de vulnerável, o que é um agravante, mesmo ela tendo mais de 14 anos", explica Couto. "Neste momento, é apenas uma suposição, mas os relatos e imagens mostram que a conduta dele é muito direcionada, sugerindo um modus operandi, ou seja, uma forma de atuar que pode indicar que não foi a primeira vez que ele cometeu esse tipo de crime", diz o advogado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para proteger a privacidade do paciente, ambientes hospitalares não têm câmeras. Mas a gravação de uma imagem ou um som de uma situação na qual você esteve presente, explica a advogada Isabela Del Monde, é considerada uma prova lícita. "Já se a pessoa saiu do local, mas deixou o celular, com o intuito de espionagem, é considerada uma prova ilícita", diz. "Mas levando em conta a gravidade do caso, acho difícil a prova não ser aceita. Fica claro de que não foi uma espionagem com o intuito de prejudicar o médico e chantageá-lo, por exemplo. De acordo com os relatos, se trata de gravação por suspeita de ato indevido, ilegal e criminoso, para ser usado como evidência." Procurado pela reportagem, o Conselho Federal de Medicina (CFM) informou que caberá ao Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (Cremerj) tomar providências sobre o caso, conforme o previsto na legislação brasileira. Em nota, o Cremerj confirmou que recebeu as denúncias e abriu imediatamente um procedimento cautelar para suspensão imediata do médico, devido à gravidade do caso. "Também está sendo instaurado processo ético-profissional, cuja sanção máxima é a cassação do exercício profissional do médico", disse o órgão. O CFM e o Cremerj não responderam, até o momento, sobre o número de denúncias da mesma natureza recebidas no último ano ou em qualquer período de tempo, no Rio de Janeiro ou em território nacional.
2022-07-11
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-62130203
sociedade
Por que cada vez mais pessoas estão vivendo até os 100 anos?
Os familiares de Josefa Maria da Conceição começaram a suspeitar que algo estava errado quando, no início de 2022, ela parou de pedir um cigarro. Isso aconteceu logo depois de a agricultora brasileira aposentada comemorar o que sua família diz ser seu aniversário de 120 anos. "Minha mãe fumou a vida toda", relata Cícera, um das quatro filhas ainda vivas de Josefa. Ao longo da vida, a brasileira teve 22 filhos. "À medida que ela ficou mais velha, tentamos fazê-la desistir do fumo, mas minha mãe sempre ameaçou que compraria os cigarros por conta própria." Fim do Matérias recomendadas Os familiares apontam que recentemente Josefa parece muito menos enérgica do que em anos anteriores, quando ela ganhou fama ao aparecer em reportagens de TV como "a mulher mais velha do mundo". O título de pessoa mais velha do mundo atualmente pertence a Lucile Randon, uma freira francesa conhecida como Irmã André, de 118 anos. Entre os homens, o recordista é o venezuelano Juan Vicente Mora, de 113 anos. Mas Irmã André tem muitos concorrentes ao título: nas últimas décadas, o número de pessoas que se tornaram centenárias aumentou consideravelmente. Em 1990, apenas 92 mil pessoas atingiram esse marco — o que, mesmo assim, não era pouca coisa. O ser humano percorreu um longo caminho em termos de expectativa de vida graças aos avanços em uma série de áreas que nos deram melhores medicamentos, boa alimentação e condições de vida vantajosas em comparação com nossos ancestrais. Em média, uma pessoa que nasceu em 1960 (o primeiro ano em que a ONU começou a manter dados globais sobre longevidade) tinha uma expectativa de vida de 52 anos. Ainda assim, chegar a 100 anos não é pouca coisa: as pessoas que atingiram essa idade representavam apenas 0,008% da população mundial em 2021, segundo os dados da ONU. Atualmente, não se espera que a maioria dos seres humanos em todo o mundo desfrute de um aniversário de platina (75 anos), já que a expectativa de vida média global atual está em 73 anos. O quadro muda muito de país para país, no entanto. A expectativa de vida média no Japão, por exemplo, é de 85 anos, enquanto alguém na República Centro-Africana costuma viver apenas 54 anos. Além disso, a maioria das pessoas que chega à velhice provavelmente será atormentada por doenças crônicas. Lord explica que, em média, os homens passam os últimos 16 anos de vida lidando com condições que vão de diabetes a demência — para as mulheres, esse tempo sobe para 19 anos. Comemorar 100 aniversários é ainda mais difícil. Nos Estados Unidos, um estudo de longo prazo da Universidade de Boston estimou que apenas 1 em cada 5 milhões de americanos atinge o estágio "supercentenário" — quando se ultrapassa os 110 anos. Essa taxa, porém, vem aumentando. Em 2010, os pesquisadores americanos contavam cerca de 60 a 70 pessoas nessa faixa etária. Em 2017, esse número havia se expandido para 150. Os "supercentenários" naturalmente atraem muita atenção dos cientistas que estudam o envelhecimento humano. "Esses indivíduos desafiam o que acontece com a maioria das pessoas na velhice. E ainda não temos certeza do porquê", diz Lord. Além da longevidade, os supercentenários se destacam por terem uma saúde relativamente boa para a idade. Josefa Maria, por exemplo, não precisa de medicação regular e ainda come carne vermelha e doces, segundo a família. É claro que as memórias dela estão confusas e a visão se deteriorou, mas a filha Cícera admite que, às vezes, ainda fica perplexa com a condição de saúde de sua mãe. "Ela não pode andar tanto quanto antes e temos que carregá-la ou trocar as fraldas dela, como um bebê. Mas ainda estou surpresa de que minha mãe tenha vivido tanto tempo para alguém que fumava desde a infância e que tinha décadas de trabalho duro", diz. O que intriga ainda mais os especialistas em idade é o fato que algumas pessoas que chegam aos 100 anos não são exatamente um exemplo de boas práticas em saúde. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Como mencionado anteriormente, Josefa fumou a maior parte da vida e cresceu na pobreza de uma região socialmente carente do Nordeste brasileiro. Mais surpreendentemente, um artigo de 2011 publicado no periódico científico Journal of the American Geriatric Society, que estudou um grupo de 400 judeus americanos com 95 anos ou mais, encontrou uma profusão de maus hábitos. Quase 60% dos participantes eram fumantes contumazes, metade deles tinha sido obesa durante a maior parte da vida e apenas 3% eram vegetarianos. "Há algo excepcional sobre eles. Porque muitos fazem exatamente o oposto do que sabemos que pode ajudar alguém a viver mais", acrescenta o especialista. Os cientistas suspeitam que a genética desempenha um papel importante na longevidade. Centenários (e supercentenários) parecem capazes de se proteger contra o desgaste que afeta os mais jovens com o passar do tempo. Eles também se mostram capazes de compensar até mesmo hábitos pouco saudáveis ​​que levam a maioria de nós à morte precoce. Especialistas como Lord e Farragher estão trabalhando para identificar essas vantagens biológicas, que não são tão óbvias quanto se poderia pensar. Outro estudo com centenários judeus, este divulgado em 2020, mostrou que os indivíduos tinham tantas variantes genéticas que podem causar doenças tardias quanto a população em geral. O número crescente de pessoas chegando a 100 também levou os cientistas a questionar se os limites da longevidade humana também serão estendidos. Até esta data, a pessoa mais velha conhecida foi Jeanne Calment, da França, que morreu em 1997 aos 122 anos e é oficialmente a única a ter vivido além dos 120. Pesquisadores da Universidade de Washington, nos EUA, afirmam que a longevidade extrema atingirá novos limites neste mesmo século — e possivelmente resultará em casos de pessoas que assoprarão 125 ou até 130 velas nos bolos de aniversário. "Acreditamos que é quase certo que alguém quebrará o atual recorde de idade e que é bem possível que alguém possa viver até os 126, 128 ou 130", estima Michael Pearce, estatístico e coautor do estudo. Pearce e o professor Adrian Raftery usaram o International Database on Longevity, uma base de dados sobre expectativa de vida, para simular os limites de longevidade para as próximas décadas. Eles concluíram que há uma probabilidade próxima dos 100% de que o recorde de Calment será batido e uma chance de 68% de que alguém comemorará em breve um aniversário de 127 anos. No entanto, há muitas perguntas que a ciência ainda precisa responder para entender completamente o quebra-cabeça do envelhecimento. Especialistas como Richard Siow, diretor de Pesquisa de Envelhecimento do King's College London, no Reino Unido, acreditam que esse entendimento é crucial para abordar questões de qualidade de vida com uma população global cada vez mais envelhecida — a ONU estima que o mundo já é habitado por mais pessoas com mais de 65 anos do que por crianças com menos de 5 anos. "A grande questão aqui não é discutir quanto tempo podemos viver, mas como podemos retardar o início do declínio relacionado à idade e permanecer saudáveis por mais tempo do que agora", aponta Siow. "Dessa forma, se tivermos a sorte de chegar à velhice, podemos aproveitar esses anos em vez de vivê-los em sofrimento." Organizações como a HelpAge International, uma rede que oferece apoio a idosos em todo o mundo, apontam que essa filosofia é crucial para ajudar a abordar o envelhecimento da população como uma oportunidade, e não como um fardo para os sistemas de saúde e bem-estar social. "Essa visão fatalista que fala do envelhecimento como um problema não é o nosso alvo", argumenta Eduardo Klien, porta-voz da HelpAge. "Os idosos com boa saúde oferecem um enorme potencial para as sociedades de várias maneiras, inclusive na economia." Enquanto isso, pense na rainha Elizabeth 2ª. A monarca britânica, ela mesma quase uma centenária aos 96 anos, teve um aumento na carga de trabalho durante os últimos anos. Isso porque é um costume no Reino Unido que pessoas que completam 100 anos recebam uma carta da soberana. A proporção de centenários no Reino Unido atingiu um recorde em 2020 e a tendência é que esse número só cresça daqui em diante. No Brasil, segundo o último Censo do IBGE, em 2010, havia quase 24 mil centenários. *Com reportagem adicional de Josué Seixas.
2022-07-11
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sociedade
Celina Guimarães: a professora que se tornou a primeira brasileira a votar
Há exatos 50 anos, em 11 de julho de 1972, morria uma pioneira: a professora potiguar que entrou para a história como a primeira eleitora mulher registrada a votar no país. Mas não foi só pela participação nas urnas que Celina Guimarães Viana (1890-1972) demonstrava ser uma cidadã à frente do seu tempo. "Ela exerceu protagonismo ativista em seu trabalho, sendo uma professora que, naquele início de século, praticava uma educação progressista", comenta a socióloga e cientista política Mayra Goulart, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Além disso, ela atuou como juíza de futebol entre 1917 e 1919 — muito possivelmente, foi a primeira mulher brasileira a apitar jogos, embora não haja registro oficial. O protagonismo de Viana no que tange à participação feminina no processo político brasileiro não pode ser elencado como um fator isolado. "Não foi uma conquista individual, mas resultado de estratégia, articulação política e avanço do movimento feminista no país", avalia a socióloga e cientista política Joyce Martins, professora na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), coordenadora do Observatório Abrapel (da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais) e autora do livro 'O novo jogo eleitoral brasileiro'. "O contato deste [movimento] com congressistas do Rio Grande do Norte foi fundamental para que Celina e outras mulheres potiguares pudessem se alistar", acrescenta ela. "Isso porque, naquela época, os estados tinham autonomia em matéria de legislação eleitoral e não havia nada na Constituição do país que efetivamente proibisse as mulheres de votar." Fim do Matérias recomendadas Em 25 de outubro de 1927, entrou em vigor uma nova legislação no Rio Grande do Norte para regular o serviço eleitoral. As novas normas estabeleciam o fim da "distinção de sexo". No mês seguinte, Viana, que vivia na cidade de Mossoró, deu entrada em seu pedido de alistamento eleitoral. Segundo pesquisas realizadas pelo escritor e advogado potiguar João Batista Cascudo Rodrigues (1934-2009), o despacho, assinado pelo juiz de direito Israel Ferreira Nunes, afirmou que "tendo a requerente satisfeito as exigências da lei para ser eleitora, mando que inclua-se na lista de eleitores". O documento, escrito a mão, com caneta tinteiro em folha pautada, acabou incluído no acervo do Museu Histórico Lauro da Escóssia, em Mossoró. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O despacho foi assinado no dia seguinte ao pedido feito pela professora, conforme informações publicadas no Dicionário Mulheres do Brasil, de Schuma Schumaher e Erico Vital Brazil. "Antes, muitas, muitas, mulheres em várias partes do país haviam pedido alistamento e receberam negativas", conta a historiadora Teresa Cristina de Novaes Marques, professora da Universidade de Brasília (UnB) e autora do livro 'O voto feminino no Brasil'. "O debate sobre o voto feminino vinha aumentando desde os trabalhos constituintes, que ocorreram em 1880 e 1881 e deram origem a uma reforma significativa no sistema eleitoral brasileiro, instituindo o título de eleitor, o voto direito para vários cargos, proibindo o voto dos analfabetos e garantindo que todo brasileiro com título científico pudesse votar, sem mencionar sexo", contextualiza Martins. Goulart ressalta que é preciso situar esse direito concedido a ela dentro do "bojo do movimento sufragista que ocorria no Rio Grande do Norte". Era um ativismo que ecoava o trabalho realizado pela bióloga, educadora e feminista Bertha Lutz (1894-1976). "Bertha Lutz capitaneava essa luta em um momento em que vinha sendo regulamentado anteprojeto da Constituição de 1932 [que tornaria o sufrágio feminino um direito em todo o país]", pontua Goulart. Tal movimento ganhou a adesão de alguns homens, entre eles o advogado, jornalista e político Juvenal Lamartine de Faria (1874-1956), que ocupou postos de deputador, senador e governador do Rio Grande do Norte. "Ele fez parte dessa articulação. Foi um tipo de feminismo que se articulava com lideranças masculinas. E Lamartine já se encantava com a ideia do voto feminino", comenta Goulart. Quando o congresso estadual do Rio Grande do Norte preparava uma nova lei eleitoral, em 1927, Lamartine de Faria mandou um telegrama solicitando que ficasse claro que ambos os sexos teriam direito ao voto. E por isso ali o voto feminino se tornou possível antes do que no restante do país. "Justino Lamartine era um político do Rio Grande do Norte que somava vários mandatos como deputado federal quando foi contatado pelas feministas da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino", explica Novaes Marques. "Em 1927, ele deixou o mandato de senador e concorreu ao governo do seu estado, com sucesso. Negociou com o judiciário local promover o alistamento das mulheres potiguares que preenchessem os requisitos legais aplicáveis aos homens. Isso representava uma manobra para esticar os limites do federalismo em vigor". E a primeira votação a contar com essa participação feminina foi justamente a "eleição complementar para a vaga de senador deixada por Juvenal Lamartine", conta a historiadora, sobre a lacuna havida quando o político se tornou governador. "Mas o pessoal não desistia, né?", comenta ela. "[Logo em seguida] a comissão de verificação do Senado que tinha a competência para averiguar o resultado eleitoral decidiu anular os votos das mulheres do Rio Grande do Norte." "Sempre que as mulheres avançam, minimamente, em direção ao alcance da cidade, ainda hoje conquistada de modo incompleto, há reação", argumenta Martins. "O voto de Celina, e das suas conterrâneas que votaram pela primeira vez na mesma eleição, foi considerado 'inapurável'. Qual a diferença mais notável entre aquele tempo e o atual? Os direitos políticos das mulheres se tornaram incontornáveis. No Brasil, questionam-se as cotas ou a reserva de financiamento do fundo partidário, mas já não há condições políticas ou sociais para a defesa do impedimento ao voto ou à candidatura de mulheres." Para o sociólogo e cientista político Paulo Ramirez, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o ato de Celina Guimarães Viana precisa ser compreendido como algo que "abriu brechas" em uma "sociedade de cunho patriarcal, com valores machistas", como a brasileira. "[A partir de então], outras mulheres se inscreveram para passar a votar. Muitas, apoiadas por advogados, começaram a reivindicar o direito de votar. Antes de 1932 [quando houve a nova Constituição], chegou-se a um ponto em que vários juízes de vários estados decretaram a impossibilidade de as mulheres votaram. Essa situação seria revertida com a Constituição e a universalidade do voto, independentemente do gênero". Goulart ressalta que se o título de eleitor de Viana abriu um precedente, é preciso entendê-lo dentro de "um processo de luta de movimentos sociais que estavam buscando o voto feminino". "O voto dela não é um voto isolado, que instaura o processo. É resultado de um processo", afirma a professora. Pioneirismos não eram novidade na vida de Celina Guimarães Viana. Nascida em Natal, mudou-se para Acari, em 1912 e, dois anos mais tarde, para Mossoró, na companhia do marido, o também professor Elyseu de Oliveira Viana — ambos se conheceram na Escola Normal de Natal. Em Mossoró, assumiu a educação infantil no grupo escolar. Segundo a socióloga Mayra Goulart, em suas aulas Viana aboliu uma prática comum na época: os castigos físicos para punir alunos. "E incorporou o teatro como forma de exercer a docência", afirma. "É interessante que ela tenha sido protagonista não só na dimensão eleitoral e política, mas tenha trazido isso na dimensão da sociedade, na escola, ou seja, na instituição fulcral para o avanço de um ideário progressista." Por sua profissão, ela "tinha um grande status na época", ressalta Martins. Ramirez lembra que tanto ela quanto seu marido eram "ativos no processo educacional". "Ela viveu em uma cidade de muita luta política e caráter emancipatório", contextualiza o sociólogo. "Como professora e leitora de jornais, ela era consciente. Não necessariamente liderou um movimento feminista, mas, claro, acabou servindo de inspiração para os movimentos feministas na busca de ampliação de direitos políticos." "Seu nome inspira o feminismo até hoje em termos de ampliação da participação da mulher na luta política. Como pioneira, ela se tornou um modelo de tudo aquilo que as mulheres ainda têm para adquirir politicamente no país", conclui Ramirez. O futebol também se tornou um elemento trazido por ela para a sala de aula. Com seus estudantes, ela encarregou-se de traduzir as regras do esporte importado da Inglaterra, inclusive procurando sinônimos em português para nomes das posições de de lances do esporte. Em um tempo em que era comum que personalidades de respeito na sociedade fossem chamadas para atuar como árbitros em partidas, foi nessa época que ela se tornou, muito provavelmente, a primeira mulher a apitar jogos de futebol no Brasil, entre 1917 e 1919. "Ela foi pioneira por trabalhar no espaço público, por dedicar-se ao conhecimento, por defender o voto das mulheres, por ter sido também juíza de futebol", acrescenta Martins. "Ela foi influenciada pelo movimento feminista daquela época, por Bertha Lutz, pela Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Mas é complicado dizer que se tornou 'uma ativista feminista' quando olhamos o termo com os olhos de hoje. O feminismo naquela época tinha outras preocupações. Lutava pelo mínimo: para que as mulheres fossem consideradas gente, para que fossem percebidas como sujeitos de direito."
2022-07-10
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sociedade
O delirante e fascinante mundo dos micropaíses
Em um subúrbio de Sydney em 1981, o adolescente George Cruickshank e dois amigos pintaram uma linha divisória no quintal dele e declararam a área de 10 metros quadrados como território provisório do Império de Atlantium. Após ser coroado imperador George 2º, Cruickshank emitiu uma declaração unilateral de independência do Estado da Austrália. O trio hasteou uma bandeira, e a micronação de Atlantium passou a existir oficialmente. Atlantium é uma das mais de cem micronações em todo o mundo. Uma micronação é um Estado soberano autoproclamado que carece de uma base legal para sua existência. Como consequência, elas não são reconhecidas pelos Estados-nação estabelecidos, mas isso não as impede de incorporar as solenidades, a pompa e até mesmo as estruturas de governança deles. A imitação não é necessariamente uma forma de bajulação, no entanto. Os fundadores das micronações, como Cruickshank, buscam desafiar a noção de um Estado-nação demonstrando o quão artificial são. Fim do Matérias recomendadas "A ideia de um Estado-nação soberano com autoridade total sobre seus cidadãos dentro de fronteiras definidas é apenas um desenvolvimento bastante recente e levou a todos os horrores do século 20", diz Cruickshank. Enquanto o interesse dos outros cofundadores de Atlantium acabou esmorecendo, Cruickshank se viu cada vez mais envolvido nos assuntos de sua micronação. Emitiu selos, cunhou moedas e notas, nomeou representantes diplomáticos e desenhou uma série de bandeiras e insígnias. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Também adotou um sistema de calendário decimal que divide o ano em 10 meses. E, em 2008, comprou uma propriedade rural de 80 hectares a cerca de 350 km de Sydney, que se tornou a capital administrativa de Atlantium. O imperador passa a maior parte dos fins de semana em Concordia, na província de Aurora, onde redige declarações políticas e troca cartas com outros líderes de micronações e "representantes diplomáticos não acreditados" de Atlantium nos Estados Unidos, Singapura e Suíça. O hino nacional de Atlantium leva o nome da província e é um trecho de uma sinfonia do compositor do século 19 Camille Saint Saens. Atlantium apoia o direito à livre circulação internacional irrestrita, por isso não emite vistos para visitantes como eu, que vêm para ficar na capital, listada no Airbnb como "o menor país da Austrália". A propriedade de 0,75 km² consiste em mata nativa e em uma cabana que funciona como sede do governo. Uma agência de correios adjacente vende moeda, selos e cartões postais, que podem ser colocados em uma caixa postal vermelha. Uma pirâmide de 4 m de altura é usada para fins cerimoniais. E, perto da fronteira sul com a Austrália, cangurus se alimentam dos arbustos que margeiam o Lago De Hollanda. O território de Atlantium tem o dobro do tamanho do Vaticano, e seus 3 mil "cidadãos" são provenientes de 100 países, embora a maioria nunca tenha posto os pés ali. Atlantium atende aos quatro critérios de um Estado, conforme definido pela Convenção de Montevidéu de 1933, diz Cruickshank. Tem uma população permanente (se você contar seus 3 mil cidadãos remotos, mas Cruickshank está lá todo fim de semana), um território definido, um governo e a capacidade de se relacionar com os demais Estados. Até o momento, no entanto, outras nações estão menos dispostas a interagir com Atlantium, e ainda está longe de ser reconhecida como nação. "Um fundador de micronação pode dizer que satisfaz a definição do direito internacional de ser um Estado", afirma Harry Hobbs, professor da Universidade de Sydney e coautor de um novo livro chamado Micronations and the Search for Sovereignty ("Micronações e a busca por soberania", em tradução livre). "O problema é que carece de uma base legal para exercer a soberania sobre um território." A falta de reconhecimento não incomoda Cruickshank. "Atlantium não está lutando pelo reconhecimento legal como um Estado soberano. O objetivo é fazer as pessoas questionarem a existência de Estados-nação tradicionais", explicou Cruickshank quando nos encontramos no escritório de representação de Atlantium em Sydney (que é a sala de estar de seu apartamento). Quando a rainha Carolyn da Ladônia subiu ao trono em 2011, o imperador Cruickshank enviou uma mensagem de felicitação. "George foi rápido em estender sua mão amiga e me convidou para participar de uma conferência de micronações em Londres", diz ela. A Ladônia foi fundada em 1996 após uma disputa legal prolongada entre autoridades locais na Suécia sobre um conjunto de esculturas construídas pelo falecido Lars Vilks. Sua primeira rainha havia reinado por 14 anos quando deixou de desempenhar suas funções abruptamente. Na época, Carolyn Shelby era ministra. "A Ladônia estava enfrentando uma crise constitucional porque não tínhamos rainha, e os herdeiros da rainha não responderam às nossas tentativas de contatá-los", explica ela de sua residência em Chicago, nos EUA. Com a abdicação da rainha à revelia, foram realizadas eleições para encontrar uma nova. A constituição da Ladônia estipula que a mesma nunca será governada por um rei. "Historicamente, as mulheres levaram a pior quando se trata de serem governantes, então os fundadores da Ladônia queriam reverter essa tendência", diz a rainha Carolyn. "Também acreditava-se que garantir que o trono fosse ocupado por uma mulher serviria como uma força pacificadora e estabilizadora para a monarquia." A rainha Carolyn viajou para a remota capital da micronação, Nimis, na Suécia, para a cerimônia de coroação. Nimis é uma série de esculturas de madeira em uma reserva natural que cobre uma área de apenas 1 km² — e só é acessível a pé. No entanto, milhares de pessoas fazem a peregrinação até ali todos os anos. A filha de 26 anos da rainha Carolyn, a princesa herdeira Greta, vive em Montreal e é a próxima na linha de sucessão ao trono. "Me tornei rainha quando ela tinha 16 anos e, na época, ela achava isso estúpido, mas está crescendo dentro dela. Ela participou de alguns eventos de Estado em meu nome." A Ladônia tem atualmente 27 mil cidadãos registrados, a maior parte da Suécia, Estados Unidos e Rússia. Sua página de solicitação de cidadania ressalta que o certificado de cidadania não pode ser usado para viagens ou para obter direitos trabalhistas. É "um gesto de apoio à liberdade de expressão e às artes, aos ideais que estão na base desta micronação". "As pessoas amam a Ladônia porque é um sistema de governo que elas escolheram", diz a rainha. "Compartilhamos a visão de um mundo que queremos construir juntos." Regularmente são realizadas discussões sobre a compra de terras para os cidadãos da Ladônia viverem. "É uma questão de dinheiro. As terras perto da Ladônia são excessivamente caras. Nossos cidadãos querem que compremos terras na Espanha ou na Itália. Mas devemos comprar terras em um país que não vá nos engolir e nos esmagar." Parte do seu papel é garantir que a comunidade da Ladônia não provoque a ira das autoridades e ameace sua própria existência. "Estamos zombando das estruturas existentes. Se você se leva muito a sério, começa a atrair atenção negativa de nações maiores. Ninguém quer separatistas em suas fronteiras", diz ela. Cruickshank vê consternado como alguns fundadores de micronações levam a situação longe demais. O Principado de Hutt River, na Austrália Ocidental, surgiu em 1970, quando Leonard Casley tentou se separar da Austrália devido a uma disputa sobre cotas de produção de trigo. Em 1977, o príncipe Leonard, como ficou conhecido, declarou guerra brevemente ao saber que estava sendo perseguido por dívidas fiscais não pagas. Hutt River ganhou o título de micronação mais antiga do mundo, mas acabou com uma fatura de imposto de US$ 2,2 milhões. Calsey abdicou em favor do filho em 2017 e, em 2020, foi forçado a vender a propriedade e dissolver o outrora bem-sucedido local turístico para pagar a dívida. "O príncipe Leonard era um cara astuto, mas também tinha algumas ideias estranhas. Me deu alguns documentos com cálculos numerológicos e referências cabalísticas estranhas que foram basicamente projetadas para mostrar que ele é algum tipo de pessoa especial", diz Cruickshank. Um infortúnio semelhante aconteceu com Peter Fitzek, que contesta a legitimidade do Estado alemão e fundou uma micronação perto de Berlim chamada Reino da Alemanha em 2013. Assim como no caso de Calsey, o ego parecia ter tomado conta de Fitzek. "É bastante claro que esse cara acredita em sua própria publicidade", afirma Cruickshank. "Quando você entra neste tipo de território — quando você começa a acreditar nisso — fica um pouco perigoso." Em 2017, Fitzek foi condenado a quase quatro anos de prisão por operar um banco sem licença e peculato. "As micronações que enfrentam mais problemas são aquelas que agem como se estivessem competindo com outro Estado", diz Harry Hobbs, da Universidade de Sydney. "Os Estados não querem abrir mão da jurisdição sobre o território que consideram seu, ou que podem querer no futuro." O limite entre fantasia e realidade muitas vezes se torna nebuloso. A rainha Carolyn costumava trabalhar com informática no Chicago Tribune, onde uma editora brincava instruindo os estagiários a ficarem de pé quando a "rainha" entrasse na sala e nunca darem as costas para ela. "Um dia entrei na redação e uma estagiária se levantou e estava tentando fazer os outros se levantarem também. Outra vez, levou algo até minha sala: me entregou e depois meio que fez uma reverência e se retirou", relembra. Até então, a rainha Carolyn não tinha conhecimento do que a editora estava dizendo às pessoas sobre ela. E achou a troca com a estagiária divertida. Cruickshank descreve Atlantium como um "projeto de arte performática sustentado". "Sou inteligente o suficiente para saber que não sou um monarca real com poder real", diz ele. "Mas quanto mais pessoas aceitam algo como um fato, mais se torna real. As pessoas me tratam com deferência em eventos oficiais e recebo cartas me chamando de 'Vossa Majestade Imperial'. Não posso ser irreverente em resposta." Há também a possibilidade de mal-entendidos trágicos, diz Hobbs. "Houve casos em que pessoas que estão escapando de situações desesperadoras pagam uma taxa para se tornarem cidadãs, e então a micronação tem que dizer a elas que não é um país real. E a pessoa diz: 'Que tipo de piada é essa?' É aqui que entra na vida real." A Austrália foi apelidada de "capital das micronações do mundo" porque tem mais de uma dúzia delas. Algumas são divertidas, como Atlantium, enquanto outras foram formadas com um objetivo específico em mente. O Reino Gay e Lésbico das Ilhas do Mar de Coral foi formado em 2004 em resposta à recusa do governo australiano em reconhecer os casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Ganhou uma atenção significativa da mídia e foi dissolvido em 2017, quando os australianos votaram a favor da legalização do casamento homossexual. Hobbs acredita que o micronacionalismo é consistente com a cultura australiana, que "celebra zombar da autoridade". "A Austrália é bastante segura de sua soberania. É um continente com uma população escassa. O governo meio que diz: 'Nós realmente não nos importamos, contanto que você continue pagando impostos e siga as regras de trânsito'." A Nação Tribal Yidindji está buscando um tratado com o governo da Austrália e retificar a constituição da Austrália que não reconhece os povos indígenas. Tem 200 cidadãos, mais da metade dos quais são indígenas. A terra reivindicada fica no estado de Queensland e se estende por 80 km até o mar. "O objetivo do tratado é resolver o passado", diz Murrumu Walubara Yidindji, na qualidade de ministro do Comércio e Relações Exteriores. "Estamos dizendo: 'Olha, vocês não precisam mais roubar nossas coisas. Vamos resolver o passado e garantir o futuro'." Em 2014, o ex-jornalista mudou de nome, entregou seu passaporte australiano, destruiu seus cartões de banco, documentos relativos à aposentadoria e cuidados de saúde. Membros do governo de Yidindji entregaram em mãos o tratado ao governo australiano em 2017 — no entanto, Walubara ainda aguarda uma resposta. "O governo australiano é muito lento", diz ele. "Enquanto isso, continuaremos a nos desenvolver como nação. Somos donos do lugar, e não temos dúvida quanto a isso." Walubara enfatiza que Yidindji não é uma micronação, mas "a nação original". Hobbs concorda, dizendo: "Não chamo de micronação porque há uma base legítima para sua reivindicação de soberania. Os povos indígenas estão nesta terra há 60 mil anos". Nenhuma micronação conseguiu se tornar um país — mas isso não significa necessariamente um fracasso. O sucesso depende do que uma micronação se propõe a alcançar. A República Livre e Independente da Frestônia foi formada no oeste de Londres em 1979, depois que as autoridades ameaçaram 120 moradores com despejo formal. Muitos haviam ocupado ilegalmente as casas vazias da Freston Road. Frestônia tinha seu próprio jornal, e o serviço postal honrava os selos postais frestonianos. O 'ministro-sombra' da Fazenda, Geoffrey Howe, do partido da oposição, publicou uma carta de apoio. Frestônia ganhou até uma disputa legal sobre sua alegação de não fazer parte do Reino Unido para fins de exibição de filmes. Conseguiu proteger a área do desenvolvimento e existiu até 1983. "Causou uma agitação política que forçou o governo a mudar seus planos", diz Hobbs. Enquanto isso, o Reino de Elgaland e Vargaland reivindica soberania sobre as áreas entre as fronteiras de países ao redor do mundo. "Isso faz você pensar nas regiões fronteiriças, em vez de no próprio território", diz Hobbs. Ainda mais à esquerda são os Estados Livres Ambulatórios de Obsidia, que nada mais são do que uma rocha obsidiana de um quilo que sua fundadora, a marechal Yagjian, carrega em uma maleta oficial do Estado. Formada em 2015, a micronação afirma estar "localizada na confluência do feminismo e da geografia". "O futuro das micronações é sombrio se o objetivo é criar um Estado, porque isso nunca funciona", diz Hobbs. "No entanto, o aspecto da comunidade é brilhante. Sempre haverá pessoas que gostam de criar uma comunidade de indivíduos com ideias semelhantes e se envolver em práticas diplomáticas. Tem a diversão de desenhar uma bandeira, criar um hino nacional, se vestir como rei, rainha ou imperador e assinar pactos de não agressão."
2022-07-09
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-61548383
sociedade
Vídeo, A inusitada história da 1ª greve de prostitutas na FrançaDuration, 4,09
Em 1975, centenas de profissionais do sexo buscaram refúgio em igrejas francesas para protestar contra abusos da polícia. A manifestação marcou o primeiro protesto organizado da categoria. Na época, autoridades policiais vinham aplicando multas como medida de repressão a mulheres que procuravam clientes nas ruas. Algumas delas eram presas por não terem condições de pagar a multas e acabavam sendo separadas dos filhos. A paralisação começou na igreja de Saint-Nizier, em Lyon, e se espalhou para outras cidades francesas, incluindo a capital, Paris. Para contar detalhes sobre esse movimento, o programa Witness Story, da BBC, ouviu o padre Christian Delorme, que apoiou as manifestantes em Lyon. Confira.
2022-07-08
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62102759
sociedade
Como supersafra e 'fake news' popularizaram suco de laranja industrializado
Para muitas pessoas, a caixa de suco de laranja é presença constante na mesa do café da manhã, ao lado do chá e do café. Ao longo dos anos, ela manteve uma fama de fazer bem à saúde e poucos ficam pensando nisso, a não ser quando somos lembrados do teor de vitamina C dentro daquela caixa. Mas não é bem assim. E talvez você não saiba, mas o suco de laranja processado, como bebida diária, é algo relativamente recente. Seu atual status de fenômeno mundial é uma criação de comerciantes do século 20 que tiveram que lidar com um lote enorme de laranjas sem ter para quem vender. No início dos anos 1900, as laranjas da Flórida e da Califórnia, nos Estados Unidos, disputavam a atenção dos comerciantes americanos. As frutas eram transportadas para toda parte e consumidas frescas ou transformadas em suco dentro de casa, produzindo um delicioso elixir com cor de mel. A Califórnia produzia laranja-de-umbigo e Valência, que é melhor para a produção de suco. A Flórida produzia quatro variedades, todas fornecendo sucos de boa qualidade. Até que, em 1909, surgiu um problema para os produtores: uma supersafra de laranjas tão grande que o mercado não era capaz de absorvê-la. A solução mais viável naquele momento foi transformar as frutas em suco, em vez de restringir sua produção. Fim do Matérias recomendadas O suco de laranja produzido comercialmente era disponível apenas em latas. Mas o suco de laranja enlatado não tinha sabor fresco, o que foi um obstáculo para a demanda. Apenas 4,5 gramas (cerca de uma colher de chá) de suco de laranja em lata foram consumidos por pessoa nos Estados Unidos em 1930, segundo a historiadora Alissa Hamilton no seu livro Squeezed ("Espremida", em tradução livre), enquanto cerca de 8,6 kg de laranjas in natura foram consumidos por pessoa no mesmo ano. Seja como for, as laranjas (em suco ou de outra forma) viraram tema de intensas campanhas publicitárias nos anos 1920, quando a descoberta das vitaminas era uma novidade. A vitamina C era o motivo perfeito para aumentar o consumo de laranjas. Mas as coisas realmente saíram de controle quando o famoso bioquímico Elmer McCollum levou a público uma misteriosa enfermidade que, segundo ele, era resultante da ingestão de muitos alimentos "produtores de ácidos", como o pão e o leite: a acidose. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na verdade, a acidose é causada por uma série de fatores e não pode ser curada com a ingestão de alface e cítricos, como afirmava McCollum. Mas isso não impediu que a indústria cítrica se aproveitasse desse novo temor. A jornalista Adee Braun, em reportagem para a revista americana The Atlantic, cita um folheto publicitário da marca de refrigerantes de laranja Sunkist: "Estela parecia não ter vitalidade; ela nem se esforçava para ser simpática; por isso, ela não atraía os homens... 'Acidose' é a palavra na ponta da língua de quase todos os médicos hoje em dia." "A cura era simples: consumir laranjas em qualquer forma e em todas as oportunidades possíveis", segundo Braun. "E a Sunkist garantia ao leitor com medo da acidose que não havia limites para o consumo de laranjas." Os médicos passaram a combater essas ideias e o foco logo se voltou para as vitaminas. O desejo de abraçar qualquer fantasia a serviço das laranjas permaneceu. Naquela época, o suco ainda era enlatado e estava longe de ser popular. Mas o governo, especialmente o Departamento de Cítricos da Flórida, estava disposto a investir em experimentos. Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), o Exército americano havia buscado uma forma de cítrico que evitasse que os soldados o descartassem de forma velada das suas rações. Essa busca levou a um programa de pesquisa em busca do suco de laranja palatável. Tentar condensar o suco de laranja, como se faz com o leite, gerou resultados tristemente memoráveis. "A alta temperatura queimou o seu brilho, produzindo uma mistura marrom viscosa que não tinha sabor fresco", segundo Alissa Hamilton. Mas evaporar parte da água sob pressão, misturando uma parte de suco fresco no concentrado e congelando em seguida, teve mais sucesso. O suco fresco recuperou o concentrado moderno, produzindo algo que valia a pena beber — ainda que muito longe da versão fresca não diluída. A inovação chegou enquanto os produtores da Flórida enfrentavam novamente a superprodução da fruta. Mas a promessa de uma nova forma de fabricação de suco que pudesse ser mantido congelado e reconstituído na casa das pessoas fez com que eles aumentassem ainda mais a produção. Eles intensificaram o plantio de laranjeiras nos anos 1940. As laranjas viraram concentrado congelado e, eventualmente, suco resfriado — a denominação da indústria americana para o produto refrigerado. Se o suco pudesse ser mantido em estase, aguardando para ser servido nos copos dos consumidores, a única tarefa restante seria incentivar a demanda ao máximo possível. E não importava se esse suco fosse diferente de um copo de frutas frescas espremidas. Quando o escritor americano John McPhee chegou a um hotel na Flórida para uma viagem jornalística mais de 50 anos atrás, ele percebeu que, mesmo na terra das laranjas, o suco fresco era uma lembrança distante. "Ao lado do hotel, ficava um restaurante que tinha laranjeiras, carregadas de frutas, espalhadas pelo estacionamento", escreveu ele no seu livro Oranges ("Laranjas"). "Saí para jantar e, como eu pretendia ficar por algum tempo e aquele era o único restaurante da vizinhança, verifiquei se havia disponível suco fresco para o café da manhã." "A garçonete, aparentemente desatenta sobre o pedido que eu havia acabado de fazer, explicou que eles nunca recebiam pedidos de suco de laranja fresco. '[O suco] fresco é azedo ou aguado demais, ou tem algum outro problema', contou ela. 'O congelado é igual todos os dias. As pessoas querem saber o que vão tomar.' Ela parecia conhecer o seu trabalho e comecei a verificar que aquilo era verdade — que eu também poderia parar de pedir suco de laranja fresco, já que poucos restaurantes na Flórida servem a bebida", relatou o escritor. O suco de laranja industrializado somente ganhou popularidade quando as empresas começaram a acrescentar aromatizantes, óleos e essências ao suco velho para dar o sabor do fresco. Essa prática gerou ações judiciais questionando se o produto resultante poderia ser considerado "natural", mas, nessa época, os consumidores norte-americanos já estavam acostumados com o sabor, convencidos da necessidade de suco de laranja para acompanhar um café da manhã completo e não tinham mais o hábito de espremer as frutas. O estilo de vida atribulado do século 20 também presenciou uma mudança mais abrangente em favor de alimentos convenientes que não precisam de muita preparação, o que pode ter aumentado o apelo do suco industrializado. Foram necessárias algumas décadas, com o apoio da publicidade e da tecnologia de processamento, para que o excesso de laranjas, em vez de ser descartado, passasse a formar seu próprio produto de forma estável, ultrapassando em muito as vendas das próprias laranjas in natura. "Todos os dias (entre laranjas e tangerinas), 5% dos americanos consomem uma fruta cítrica fresca", segundo um relatório do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, publicado em 2003. "E 21% consomem suco de laranja." Em 2021, 21% dos sucos críticos exportados pelo Brasil foram destinados aos Estados Unidos. O principal mercado do produto brasileiro é a União Europeia, que concentra 66% das exportações do país — total de 865 mil toneladas, segundo dados da associação brasileira de exportadores de sucos cítricos (CitrusBR). A primeira doença descoberta como dependente de fatores nutricionais foi o escorbuto. O navegador francês Jacques Cartier descreveu a enfermidade entre indígenas do Canadá e em parte da sua tripulação. Posteriormente, o médico escocês James Lind publicou um tratado sobre o escorbuto e indicou o uso de suco de limão para seu tratamento. Atualmente, sabemos que essa patologia se deve à deficiência de vitamina C, também chamada de ácido ascórbico (que significa "antiescorbuto") — e, por isso, esse tratamento era recomendado. Desde então, o estudo das vitaminas e seu papel para evitar certas enfermidades talvez tenha sido o maior marco da história das pesquisas biomédicas sobre nutrição. Além do escorbuto, existem outras enfermidades diretamente relacionadas à falta de vitaminas. Algumas são o beribéri (vitamina B1), pelagra (B3), anemia (B9 ou B12, independentemente), xeroftalmia (vitamina A, causando a cegueira) e raquitismo infantil ou osteomalacia em adultos (ambos associados à carência de vitamina D). Essas vitaminas chegam ao corpo de diversas maneiras, mas principalmente por meio dos alimentos, que atuam como transportadores de nutrientes. O sistema digestivo é responsável por liberar esses nutrientes da matriz alimentar para que o intestino possa absorvê-los. Uma vez em nossas células, os nutrientes participam de vários processos biológicos que permitem seu funcionamento adequado. As vitaminas C e E, por exemplo, são antioxidantes, o que as protegem dos danos oxidativos. O ferro é essencial para a hemoglobina transportar oxigênio no sangue. A vitamina C, que costuma ser encontrada em frutas cítricas, pimentões, morangos, batatas, couve de bruxelas e brócolis, contribui para o funcionamento do sistema nervoso, do sistema imunológico e do metabolismo energético. Mas o que a vitamina C não faz, não importa o quão antioxidante seja, é prevenir o envelhecimento ou resfriados. Segundo o sistema de saúde pública do Reino Unido (NHS), adultos de 19 a 64 anos precisam de 40mg de vitamina C todo dia (já que o corpo não consegue armazená-la). Por outro lado, o NHS afirma que a ingestão de quantidades grandes de vitamina C (mais de 1.000mg por dia) pode causar diversos problemas de saúde, como dor abdominal, diarreia e gases. Em geral, essa ingestão excessiva ocorre por meio de suplemento de vitaminas encontradas facilmente em farmácias.
2022-07-06
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sociedade
'Não posso abandonar meus alunos': os professores ucranianos que viraram soldados e continuam dando aulas
É uma manhã comum de segunda-feira na Ucrânia e Fedir Shandor está iniciando a sua conexão com a internet para dar as suas aulas online. O professor universitário tem ensinado de forma virtual desde o início da pandemia de covid-19. Nos últimos meses, Shandor continuou lecionando de modo online também por outro motivo: ele está na linha de frente do conflito com a Rússia. O homem de 47 anos se inscreveu no Exército após a invasão russa, mas estava preocupado porque queria que seus alunos continuassem estudando. O resultado disso? Ele dá aulas duas vezes por semana em seu celular sobre temas como turismo e sociologia diretamente das trincheiras. "Tenho ensinado há 27 anos. Não posso simplesmente abandonar isso. É nisso que sou bom", diz ele à BBC. Fim do Matérias recomendadas Shandor tem ensinado enquanto integra as Forças Armadas desde o início da invasão russa na Ucrânia em fevereiro. Ele se alistou porque queria lutar pelo seu país e proteger a sua esposa e a filha deles. "Tinha que deter os russos antes que viessem à minha casa", diz. Sua dedicação ao trabalho também o ajudou a manter altos números de participação nas suas aulas. "Mesmo os estudantes que antes faltavam às aulas, agora assistem a todas", diz uma de suas alunas, Iryna, de 20 anos. "Ele sempre nos disse que temos que ser inteligentes, que estamos lutando por uma nação inteligente", acrescenta a jovem. Mas ensinar nas trincheiras não é fácil, e os alunos tiveram que se acostumar a ouvir os bombardeios ao fundo. "Durante uma aula, os sons eram muito altos e os alunos escutavam tudo. Logo me escondi nas trincheiras e continuei ensinando", conta. Em meio ao conflito, ele também conseguiu mostrar a seus alunos os estilhaços e ensinar sobre diferentes mísseis. As aulas de Shandor também são uma novidade para seus companheiros soldados, que muitas vezes acompanham esses momentos e tiram fotos dele no trabalho. Uma dessas fotos, na qual ele aparece segurando o celular em uma trincheira, foi compartilhada na internet e viralizou na Ucrânia. Desde então, vários artistas de todo o país fizeram desenhos e caricaturas do momento. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Shandor não é o único professor que luta na linha de frente do conflito. Segundo o ministro da Educação da Ucrânia, Serhiy Shkarlet, cerca de 900 professores se juntaram às Forças Armadas até agora. "Estamos orgulhosos de cada um deles", disse. "Também temos pessoas que se juntaram às forças armadas da Ucrânia no Ministério da Educação", acrescentou o ministro. Outro caso é o de Anton Tselovalnyk. As aulas dele foram canceladas nas duas primeiras semanas de guerra, mas depois de um tempo, as escolas onde ele havia trabalhado começaram a enviar mensagens pedindo ajuda. O homem de 42 anos respondeu imediatamente, optando por ensinar diretamente das trincheiras ou nos alojamentos próximos. Nada pode impedi-lo, nem mesmo o frio. Ele conta que no início não se tratava de ensinar as crianças, mas de conversar e apoiar uns aos outros. "As crianças costumavam ir à escola todos os dias e de repente tudo parou". Tselovalnyk tem ensinado seus alunos, que vão do Ensino Fundamental ao Ensino Médio, sobre arquitetura. "O mais importante agora é manter a conexão entre seu passado e seu futuro. Ensinar agora também é assim para mim", diz. Uma de suas alunas, Viktoria Volkova, de 17 anos, diz que as aulas de Tselovalnyk são divertidas e ajudam a manter o bom humor entre os estudantes. "É a melhor distração", diz a jovem. Ela conta que seu professor, muitas vezes, mostra para a classe o entorno do local onde está, conta sobre as trincheiras que ele ajudou a construir e os lugares onde senta para observar as estrelas. "Ele é atencioso e carinhoso durante as aulas. Sempre pede comentários e tenta tornar o assunto interessante para a gente", acrescenta Volkova. Outros professores, como Maksym Kozhemiaka, usam seus conhecimentos médicos para ajudar os militares na Ucrânia. O professor de traumatologia da Universidade Estadual de Zaporizhzhia, de 41 anos, percebeu que poderia ser útil no hospital militar da cidade e se ofereceu para ajudar. Depois de alguns dias trabalhando no local, descobriu uma maneira de ajudar seus alunos a continuar seus estudos também. "Pensamos que poderíamos fazer aulas online", diz ele. "Já tínhamos experiência de ensino online durante a covid", pontua. E assim, após as duas primeiras semanas difíceis da guerra, Kozhemiaka retomou o ensino permitindo que seus alunos o observassem virtualmente enquanto ele fazia cirurgias. Ele usa uma combinação de aulas ao vivo e realidade aumentada para que os estudantes participem e discutam cirurgias mesmo em suas próprias casas. "Temos ensinado médicos e jovens estudantes a tratar as feridas de combate", explica ele. Daryna Bavysta acompanha as aulas virtuais de Kozhemiaka e afirma que tem aprendido muito. "Agora entendo tudo o que acontece na sala de cirurgias", comenta. "Maksym explica tudo durante suas cirurgias ao vivo online: o que ele está fazendo e como", diz. Mas ela está preocupada com o seu professor. "Não é apenas psicologicamente difícil, mas também fisicamente: você quer dar tudo para as pessoas que está tratando. Nossos soldados", diz. Para Kozhemiaka, abandonar as aulas não era uma opção. "Ensinar é o trabalho da minha vida", diz ele. "Não podia desistir. Estávamos no caminho certo como país antes da guerra e ainda estamos, então precisamos lutar juntos por nossa vitória e permanecer unidos". "É importante continuar trabalhando no que fazia antes. Por que uma guerra deveria nos parar?" Colaboração de Svitlana Libet.
2022-07-04
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sociedade
Bombeiro que evitou 57 suicídios cria técnica agora usada em 20 Estados
Em 2005, na avenida Campanella, na zona leste de São Paulo, o major Diógenes Munhoz, que faz parte do Corpo de Bombeiros de São Paulo, atendia a uma ocorrência relativamente comum para sua equipe — uma pessoa havia subido em uma torre de transmissão de sinal de celular com a intenção de cometer suicídio. Poderia ser o fim de uma vida, mas não foi. O "tentante", como o major explica que é correto chamar quem antes era designado como "suicida", desistiu, e o episódio acabou dando a Munhoz uma ideia que salvaria, a partir dali, muitas outras vidas. "Percebi que ainda que a pessoa desistisse do ato, não tinha um desfecho necessariamente positivo. Nós — e digo não só minha equipe, mas também policiais militares e profissionais do SAMU, que também atendem esses casos — não tínhamos instruções para nos importarmos com aquela pessoa a fundo. Era tratado simplesmente como um chamado: você distraía a pessoa e a agarrava, para acabar com a ocorrência. Não se importava com o que aconteceria depois", conta Munhoz. Outras opções usadas pelas equipes de emergência eram mangueiras de água com potência forte e tiros de taser (que causa choques), que tinham como objetivo afastar o tentante do perigo, mas na avaliação do major, só agravavam a situação, sem oferecer qualquer acolhimento à pessoa. Naquela torre do bairro Vila Campanela, o profissional ficou com a pessoa em risco por seis horas. Nos primeiros trinta minutos, era o major do corpo de bombeiros de São Paulo e um tentante. Fim do Matérias recomendadas "Depois, eu passei a conhecer aquele homem. Ingressei em seu mundo e na sua história, e eu começo a compreender que ele tem uma vida repleta de sofrimentos, angústias, e também de vitórias. Depois de uma hora ali em cima, a última coisa que eu gostaria é que o Alcides (nome fictício) morresse." Munhoz procurou o CVV (Centro de Valorização da Vida), ferramenta pública que realiza apoio emocional e prevenção do suicídio. Lá, teve as primeiras lições sobre acolhimento, escuta compassiva, e começou a ler e a escrever sobre o tema, e a participar de simpósios e palestras. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Foram dez anos de estudo até que o major criasse uma técnica humanizada para assistência a pessoas que tentassem tirar a própria vida. Com base em pesquisa e experiência, montou, como seu projeto de mestrado, um curso que hoje já é aplicado em serviços de emergência público de 20 Estados brasileiros e é aberto a profissionais de outras áreas, como médicos, psicólogos, e outras profissões que lidem com o tema diretamente ou indiretamente. Diógenes Munhoz evitou, diretamente, o suicídio de 57 pessoas — e estima que esse número tenha sido significativamente maior por meio de outros profissionais que utilizam a técnica de humanização. "Vi a face da morte 57 vezes e garanto que ela não é bonita. Ela é triste, cinza, opaca e a gente precisa estar lá para acolher e abraçar essa pessoa. Ajudar a fazer com que esta pessoa entenda que existem fatores de proteção que podem ajudá-la a dar prosseguimento à vida, e que ela não consegue enxergar a luz do final do túnel simplesmente porque não passou do meio do túnel." "Apesar de eu ter dado o pontapé inicial, o curso só se tornou possível porque contei com a ajuda de muitos profissionais. Sempre digo que o pódio é solidário, não solitário." No 2º semestre, a técnica vai ser exportada para fora de Brasil. Uma equipe do Corpo de Bombeiros de Portugal receberá o treinamento. São 40 horas de aula divididas em um período de uma semana, e que passam por sete tópicos, incluindo o histórico da abordagem técnica, estatísticas do país, aspectos técnicos e fases da abordagem de dissuasão, diferenças entre grupos de tentantes, prevenção do suicídio e um módulo mais amplo, sobre saúde mental. "Quem passa pelo treinamento aprende, entre outras coisas, a distinguir os tipos de tentantes, que são classificados entre agressivos, psicóticos ou depressivos. Existem sete ferramentas de linguagem e sinais corporais que o abordador pode utilizar. A grande 'sacada' da técnica é que não vou falar com depressivo da mesma forma, com os mesmos gestos, que faria ao abordar uma pessoa psicótica", aponta Munhoz. Outra mudança que ocorreu após a criação do curso é o encaminhamento do tentante. Antes, a pessoa era levada ao pronto-socorro mais próximo. Na maioria das vezes, não era atendida por um psiquiatra, mas por um clínico geral. Hoje, prevê-se o encaminhamento para o CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) e a possibilidade de internação. "Quando essa pessoa era só medicada e liberada, são grandes as chances de ela tentar suicídio de novo." O major é doutorando em saúde mental no Centro de Altos Estudos de Segurança da PMESP (Polícia Militar do Estado de São Paulo), e atualmente e sua pesquisa é focada nos resultados que a técnica já alcançou no Estado de São Paulo. "Os levantamentos apontam um ganho de ao menos 23%. Se salvarmos uma vida, toda uma carreira já estaria paga. É só perguntar para a mãe daquela pessoa. Mas 20% de ganho, em um estado que registra 2.500 ocorrências por ano, de acordo com o Corpo de Bombeiros (sem levar em conta as ocorrências anotadas pela polícia militar e SAMU), é algo muito significativo." Em duas ocasiões, Munhoz foi procurado posteriormente por pessoas que salvou. "Já teve um rapaz que era cientista, que me escreveu nas redes sociais. E em uma palestra, quando eu acabei a palestra, um rapaz se levantou, fez um discurso e findou dizendo que estava ali só porque eu o tirei do lugar onde ele tentou o ato. Foi bem emocionante." Segundo a ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria), cerca de 97% dos suicídios têm ligação com transtornos mentais, especialmente a depressão. No Brasil, a doença é um problema de saúde pública. O país é o quinto com maior incidência, apresentando um número de casos superior ao de diabetes, segundo Pesquisa Vigitel 2021, do Ministério da Saúde. Além disso, dados da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) apontam um aumento de 167% da utilização de serviços relacionados à saúde mental de 2011 a 2019. Em casos de depressão resistente ao tratamento — quando há falha de dois tratamentos anteriores administrados em dose e tempo adequados — estima-se elevação do risco de morte por suicídio em sete vezes. Já o levantamento realizado pelo Instituto Ipsos a pedido da Janssen, empresa farmacêutica da Johnson & Johnson, que ouviu 800 pessoas com ou sem relação com a depressão de 11 Estados brasileiros, revela que entre os diagnosticados entrevistados, o tempo médio para procurar ajuda foi de 39 meses (três anos e três meses). A demora ocorreu, principalmente, por falta de consciência de se tratar de uma doença (18%), resistência (13%) e medo do julgamento, reação dos outros ou vergonha (13%). "Essa demora no tratamento para a depressão pode trazer consequências devastadoras, como a cronificação da doença, agravamento dos sintomas, diminuição da eficácia dos tratamentos, perda de anos produtivos, impacto econômico e severa diminuição da produtividade, e todo um prejuízo em seu convívio familiar e social. A depressão precisa ser levada à sério", afirma Cintia de Azevedo Marques Périco, professora de psiquiatria da Faculdade de Medicina do ABC e integrante da Comissão de Emergenciais Psiquiátricas da ABP (Associação Brasileira de Psiquiatria). Dados da pesquisa da Janssen demonstram que ainda há falta de entendimento sobre sua gravidade e seu impacto na vida do paciente e de todos ao seu redor: apenas 10% acreditam que a depressão é uma doença com base biológica (e repercussões físicas no corpo). Outros 35% não acham que pode ser tratada com medicamento e 36% acreditam que para superar a doença é preciso força de vontade. "No senso comum, existe uma banalização daquilo que se entende por ser psicológico, com uma falsa ideia que não precisa de tratamento. No entanto, atualmente sabemos o quanto ter uma função psíquica alterada impacta no indivíduo como um todo. Não tratar a depressão como uma doença grave e que pode resultar em uma emergência psiquiátrica pode trazer sérias consequências para os pacientes e para a própria sociedade", afirma Périco.
2022-07-01
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sociedade
A jovem cientista brasileira premiada na França por pesquisas para popularizar consumo de plantas silvestres
"Hoje nós comemos pouquíssimas coisas. No Brasil e no mundo, nossa alimentação é baseada em poucas espécies convencionais. Isso é muito negativo do ponto de vista nutricional. Se conseguirmos fazer novos alimentos chegarem à mesa das pessoas, teremos uma diversificação de nutrientes e de opções alimentares", diz à BBC News Brasil a etnobióloga pernambucana Patrícia Medeiros, que acaba de receber em Paris um importante prêmio científico internacional por suas pesquisas que visam popularizar o consumo de plantas silvestres para diversificar a dieta dos brasileiros. Ela foi uma das 15 ganhadoras, selecionadas por um júri de especialistas de vários países, a receber o prêmio International Rising Talents, concedido a jovens cientistas mulheres pela Fundação L'Oréal em parceria com a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Medeiros recebeu 15 mil euros (cerca de R$ 84 mil) para investir em seus estudos. Medeiros, que tem um doutorado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e leciona Agroecologia e Engenharia Florestal na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), estuda as relações entre as pessoas e plantas. Ela se interessou pelas plantas alimentícias não convencionais (as chamadas PANCs) motivada pelo desejo de trabalhar com as comunidades extrativistas e auxiliá-las a ampliar sua renda. As plantas não convencionais são aquelas que não são conhecidas nos centros urbanos. Muitas delas são vendidas em feiras locais, como no interior do Alagoas, diz ela, mas nem chegam à capital. Suas pesquisas têm como base um tripé que leva em conta aspectos ecológicos (o manejo sustentável das plantas e frutas silvestres), sociais e nutricionais. Fim do Matérias recomendadas O objetivo é derrubar as barreiras que limitam o consumo de alimentos poucos conhecidos em centros urbanos ou subaproveitados como o araçá, jenipapo, taioba, cambuí, ouricori e pimenta rosa, entre outros. Primeiro, ela identifica, junto às comunidades locais, quais espécies têm potencial para se tornarem mais populares. Depois, realiza estudos ecológicos e com consumidores para descobrir quais são as plantas silvestres mais aceitas, qual é o público-alvo (perfil de potenciais compradores), quais as melhores estratégias, inclusive de marketing, para apresentar esses produtos e para que eles cheguem aos centros urbanos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela costuma, por exemplo, fazer associações para entender como as pessoas escolhem o que vão comer, se é pelo nome, pela aparência ou pelo cheiro. O objetivo de Medeiros é auxiliar pequenos agricultores a identificar, divulgar e comercializar plantas e frutas silvestres. "A popularização dessas plantas vai ampliar a renda das comunidades", diz a cientista, acrescentando que ao mesmo tempo isso permite diversificar os nutrientes e as opções alimentares, algo que ela afirma ser fundamental. "Estudos mostram que os alimentos convencionais têm deficiências de certos micronutrientes, como ferro e cálcio, minerais que precisamos na nossa alimentação. Pesquisas também indicam que as plantas silvestres têm muitos micronutrientes. Então seria uma forma de diversificar e não de substituir os produtos tradicionais", afirma a jovem cientista, de 35 anos. Os araçás, por exemplo, têm altos teores de vitamina C. Já o jenipapo é altamente energético e tem uma quantidade interessante de certos micronutrientes, como ferro é cálcio. Além disso, há pesquisas em curso que indicam que o jenipapo teria propriedades funcionais e auxiliaria a evitar algumas doenças. "Cada uma dessas plantas tem um perfil nutricional diferente. Se conseguirmos incrementar a dieta com várias delas, podemos ter um espectro grande na alimentação", ressalta Medeiros. Segundo ela, o Brasil ainda aproveita pouco seu potencial alimentar. Isso se dá pelo receio da população de consumir o que não é convencional. É a chamada "neofobia alimentar", o medo de comer coisas novas. Seu trabalho também inclui estratégias para driblar a neofobia alimentar que pode desestimular o consumo de plantas silvestres e de espécies frutíferas selvagens. "É necessário diversificar para não sobrecarregar determinadas cadeias de alimentos. Esse é o ponto chave", destaca. As pesquisas de Medeiros foram premiadas, segundo a Fundação L'Oréal, porque além de incluir novos produtos na alimentação, promovem a biodiversidade e a segurança alimentar, já que essas plantas são mais adaptadas aos seus ambientes, e reduzem ainda a necessidade de agrotóxicos e de fertilizantes devido ao fato de nascerem na natureza. A cientista pernambucana, que faz suas pesquisas em áreas de restinga da costa brasileira, diz que é necessário ainda diversificar a alimentação por conta das mudanças climáticas. Segundo ela, não se sabe o que ocorrerá nas próximas décadas e quais são os alimentos da agricultura convencional que estariam ameaçados e quais são as alternativas possíveis. "Quanto mais diversas forem nossas opções alimentares, há mais chances de ter elementos com os quais contar no futuro incerto. Há espécies mais resistentes às altas temperaturas e, principalmente, à ausência de chuvas." Ela afirma que estudos indicam que nos próximos 30 ou 50 anos o espaçamento entre as chuvas pode aumentar, o que causará problemas, sobretudo para a agricultura familiar, que muitas vezes conta com a água da chuva como principal fonte de irrigação. Para a cientista, que tem entre seus alunos trabalhadores rurais assentados, beneficiados pela reforma agrária, a agricultura familiar, que inclui os extrativistas, "é essencial para o provimento de alimentos de qualidade.". Ela diz que há preconceitos no Brasil em relação ao Movimento dos Sem Terra, mas são eles, defende, que produzem alimentos de qualidade e que "estão na vanguarda", representando "a chave para a transição para uma agricultura mais sustentável". Medeiros afirma que o governo brasileiro privilegia muito mais o agronegócio e deveria ter mais ações voltadas para os agricultores familiares, que têm, em sua visão, uma participação importante na produção de alimentos no Brasil. A cientista pernambucana, que havia vencido a edição nacional do prêmio da Fundação L'Oréal e, por causa disso, pôde concorrer à premiação internacional, conseguiu avançar em seu trabalho graças ao apoio financeiro do "Rising Talents" (Talentos Promissores, em tradução livre). "Isso me deu a possibilidade de fazer minha pesquisa da melhor maneira possível", afirma. "Não conheço muitos pesquisadores felizes no Brasil. Não temos financiamento. Os cientistas não estão conseguindo fazer suas pesquisas", lamenta ela, acrescentando que os investimentos na área caíram consideravelmente nos últimos anos. "Tem muitos pesquisadores que precisam de insumo, de material, de reagentes, que estão parados. A situação está seríssima. Precisamos prensar com urgência o que queremos para o país", afirma. "Um país que não tem ciência nem educação de qualidade não vai ter um protagonismo mundial no futuro. Para que esse protagonismo exista, é preciso ter cidadãos muito bem educados e uma ciência forte e ativa", acrescenta Medeiros. Em meio às dificuldades gerais da pesquisa científica no Brasil, as mulheres cientistas ainda são mais afetadas e enfrentam vários desafios, diz. Segundo Medeiros, elas sofrem desvantagens como o fato de ocupar menos cargos de importância em instituições acadêmicas e, por falta de apoio, têm menos tempo para se dedicar ao trabalho quando se tornam mães, o que não foi o seu caso. "Algumas desistem de continuar as pesquisas e acabam apenas lecionando. É preciso uma mudança da sociedade e das instituições", afirma. "O mundo precisa de ciência e a ciência precisa de mulheres", diz a Fundação L'Oréal, que apoia e capacita mulheres em três áreas: pesquisa científica, beleza inclusiva e mudanças climáticas.
2022-06-30
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sociedade
O que pode acontecer com profissional de saúde que divulga dados sigilosos
Antes de revelar publicamente que sofreu um estupro e que ficou grávida após o crime, a atriz Klara Castanho, de 21 anos, teve detalhes sobre sua situação vazados para a imprensa e para o meio artístico. No sábado (25/06), a atriz publicou em suas redes sociais um texto contando que foi vítima de violência sexual, que engravidou em consequência do estupro e que, mesmo tendo direito ao aborto legal, decidiu levar a gravidez até o fim e posteriormente entregar a criança para adoção. Klara disse que resolveu fazer o "relato mais difícil" de sua vida porque havia diversas pessoas comentando o seu caso publicamente e a atacando nas redes sociais - embora seu nome não tivesse sido revelado, outras informações e detalhes do caso tornavam possível sua identificação. A jovem disse ainda que, logo após o parto, enquanto ainda estava sob os efeitos da anestesia, foi abordada por uma enfermeira que teria especulado em voz alta sobre uma possível publicação das informações. Tanto a Constituição brasileira quanto as regras de sigilo médico protegem os dados de saúde dos pacientes, e uma violação da privacidade e do sigilo como a sofrida pela jovem é algo ilegal em diversas esferas. Fim do Matérias recomendadas "Em um vazamento de dados de saúde, temos não só a questão do sigilo profissional - as profissões da área de saúde tem normas próprias sobre o sigilo - quanto um dano moral é um ilícito por parte do hospital quanto à LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados)", afirma o advogado e doutor em direito José Luiz Toro, especialista em direito de saúde. Registros médicos e dados sobre saúde em geral são considerados dados pessoais sensíveis pela LGPD, diz Toro. Ele explica que o vazamento dessas informações - tanto no caso de uma pessoa famosa quanto no caso de alguém menos conhecido - pode gerar consequências em diversas esferas. Uma delas é o campo profissional - médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde têm o dever ético de manter sigilo quanto às informações dos pacientes. As entidades responsáveis por investigar situações de infração ética por parte de profissionais de enfermagem são o Coren (Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo) e o Cofen (Conselho Federal de Enfermagem). Tanto o Coren quanto o Cofen afirmam que estão apurando se teria sido uma enfermeira quem divulgou detalhes sobre o caso de Klara à imprensa. O Cofen divulgou uma nota manifestando "profunda solidariedade" à atriz e dizendo que tomará todas as providências para a identificação de responsáveis pelo vazamento. "Após ser vítima de violência sexual, (Klara) teve o seu direito à privacidade violado, durante processo de entrega voluntária para adoção, conforme assegura o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA)", diz a entidade. De acordo com o código de ética da enfermagem, infrações éticas podem ser punidas com advertência, multa, suspensão temporária do exercício profissional e - em casos mais graves - cassação do registro, ou seja, fim do direito de exercer a profissão. A possível penalidade aplicada no caso específico de Klara vai depender das investigações e das decisões do Coren e do Cofen. Segundo José Luiz Toro, um caso de vazamento de dados de saúde por profissional também pode dar direito a uma indenização na esfera da Justiça Civil. "Para isso acontecer, a pessoa que se sente lesada teria que entrar com um processo contra o profissional que fez o vazamento", afirma. "São questões relacionadas aos direitos de personalidade, à vida privada." O valor de indenizações por dano moral, no entanto, não costuma ser muito alto na Justiça brasileira - raramente ultrapassando os R$ 100 mil. "A jurisprudência tem sido modesta quanto a esses valores", explica Toro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um hospital de onde dados de saúde tenham sido vazados também pode enfrentar consequências legais, segundo Toro. Caso a vítima decida processar o hospital, a Justiça pode determinar que a entidade também faça uma indenização por danos morais. Além disso, a instituição também está sujeita a punições relativas à LGPD. Informações sobre saúde são considerados dados pessoais sensíveis, portanto têm direito a uma proteção extra dentro da Lei Geral de Proteção de Dados, explica Toro. Caso as autoridades de proteção de dados entendam que a instituição responsável por um vazamento cometeu uma infração da LGPD, explica o advogado, o hospital pode ter que pagar uma multa - que vai até R$ 50 milhões. O dinheiro, no caso, não iria para a pessoa lesada, mas para um fundo de proteção de dados. O hospital onde a atriz ficou internada, na região metropolitana de São Paulo, disse em nota que uma sindicância interna foi aberta para investigar o caso denunciado pela jovem.
2022-06-27
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61961007
sociedade
Aceito na Antiguidade, aborto é debatido desde a Grécia Antiga
Engana-se quem pensa que o direito ao aborto é algo novo. Na realidade, a prática era comum na Antiguidade — e foi uma mistura de avanço científico com domínio religioso cristão em sociedades de patriarcado consolidado que fez com que, com o passar dos séculos, a interrupção voluntária da gravidez passasse a ser estigmatizada e, muitas vezes, proibida. "Essa história longa da questão do aborto é bastante complexa porque envolve questões societárias, culturais e religiosas, mas também o grau de conhecimento científico em relação a como se dá o processamento de um novo ser humano no corpo", explica a socióloga Maria José Rosado, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e presidente da organização Católicas pelo Direito de Decidir. "A questão do aborto sempre existiu, por meio de várias práticas. Mas as aborteiras são personagens que aparecem raramente nos estudos porque é muito difícil encontrar registros para fazer um recorte historiográfico", diz a historiadora Maíra Rosin, pesquisadora na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Rosin ressalta que há relatos de mulheres "que praticavam abortos tanto para prostitutas como para outras mulheres que engravidavam fora do casamento". "Há todo um componente religioso e moral colocado ali, mais do que tudo a legislação do aborto está sempre colocada como forma a interferir no corpo da mulher", frisa ela. Tanto na Grécia como na Roma da Antiguidade, o aborto era visto como algo comum. A oposição à prática, quando havia, não se dava em defesa do embrião ou do feto, mas nos casos em que o pai argumentava que não queria ser privado do direito de um filho que julgava já ser seu. Vale ressaltar que eram sociedades em que a mulher era considerada propriedade de seu marido. Fim do Matérias recomendadas A possibilidade do aborto foi considerada inclusive por teóricos da época. O grego Aristóteles (384 a.C - 322 a.C) escreveu que "quando os casais têm filhos em excesso, faça-se o aborto antes que o sentido e a vida comecem". No seu entendimento, esse marco inicial da vida ocorreria de forma distinta no caso de meninos — a partir do quadragésimo dia da concepção — e de meninas — a partir do octogésimo dia. Na Bíblia, também há indicações de que o aborto era praticado nas sociedades antigas do Oriente Médio. Há uma menção no Livro do Êxodo e, principalmente, uma passagem no Livro dos Números. Nesta, está a instrução do que fazer "quando a mulher de alguém se desviar, e transgredir contra ele". "De maneira que algum homem se tenha deitado com ela, e for oculto aos olhos de seu marido, e ela o tiver ocultado, havendo-se ela contaminado, e contra ela não houver testemunha, e no feito não for apanhada", enfatiza a passagem. O texto orienta a apresentar essa mulher a um sacerdote e detalha um ritual com "água santa". Muitos interpretam essa passagem como o entendimento de uma prática abortiva. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Curioso é que, no princípio do cristianismo, a nova religião se apresentava como um porto seguro para mulheres que não queriam abortar, mesmo que estivessem gerando filhos de relacionamentos considerados ilícitos — em uma Roma onde a prática era disseminada. "A questão religiosa foi sendo construída ao longo do tempo. O mundo antigo era um mundo onde o aborto e o infanticídio eram práticas muito comuns. Isso aparece nos filósofos gregos e no mundo romano", pontua o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. "O cristianismo se apresenta como uma tentativa de acolher mulheres que não queriam abortar." "Na medida em que o cristianismo se aproxima e, depois, se apropria do Estado, a gente percebe que a visão cristã que antes era marginal passa a fazer prevalecer a visão contrária ao aborto", conclui Moraes. A camada teórica dessa discussão sempre foi a ideia de início da vida — ou, de forma religiosa, em que momento a alma seria colocada no novo ser. Para o mundo ocidental, na maior parte do tempo o consenso foi que isso ocorria em algum momento entre a semana 18 e a semana 20 da gravidez, justamente quando passa a ser possível perceber movimentações do feto no ventre materno. "Sobre a questão histórica, em que sociedade o aborto era aceito ou não, e como mudou, na verdade a história implica não só a cultura de sociedades tradicionais e antigas mas também o conhecimento, o que se sabia em épocas antigas a respeito do que seria uma gravidez", pontua a socióloga Rosado. Ela ressalta, por exemplo, que entre os indígenas pré-colombianos "não havia nenhuma restrição ao abortamento", e que a prática era "uma questão resolvida entre mulheres e, mais tarde, por parteiras que cuidavam, realizavam os abortos, muitos por meio de ervas, naturalmente, a partir de conhecimentos ancestrais". "O que aconteceu no Ocidente foi que a influência judaico-cristã se tornou muito forte, ao mesmo tempo em que se desenvolveu o domínio dos homens na sociedade, o patriarcado. Para nós, mulheres, a possibilidade de controlar aquilo que queremos ou não fazer com nossos corpos é fundamental", acrescenta a socióloga. Na América colonial, por exemplo, práticas de abortamento foram incorporadas mesmo por famílias de colonizadores. Em geral, contudo, era um tabu, mantido em segredo — seja por razões religiosas, seja pela moralidade, pois o procedimento costumava ser utilizado para interromper gravidezes oriundas de adultérios. No século 19, contudo, começaram a surgir leis específicas contra o aborto nos Estados Unidos. Em 1900, ali só era aceita a prática em casos de notório risco de vida para a mãe. Essas legislações ecoavam as discussões que vinham da Inglaterra, onde desde 1803 o aborto podia ser punido até mesmo com a pena de morte. Lá, o aborto em caso de risco de vida para a gestante só foi autorizado por lei a partir dos anos 1920. E se na Antiguidade mulheres procuraram refúgio no cristianismo para condenarem o aborto, na América do século 19, o incipiente feminismo foi a salvaguarda argumentativa para quem se posicionava contra a prática. A precursora da luta feminista Susan Brownell Anthony (1820-1906) considerava o aborto como "assassinato de crianças". A também ativista Alice Stokes Paul (1885-1977) classificou o aborto como "a exploração final das mulheres". O pano de fundo para essas visões é o mesmo que hoje condena o aborto, afinal: o prisma machismo da sociedade. Afinal, se o aborto era utilizado como uma tentativa de acobertar um adultério, como se a tal honra fosse maior do que o direito da mulher de ter aquele filho, as feministas precisavam lutar contra essa imposição. Hoje, se a criminalização do aborto impede que as mulheres exerçam o controle sobre seus corpos e tenham direito à escolha, as feministas entendem a necessidade de lutar pela liberação. "Em vários casos, não só no cristianismo, a principal causa para se criminalizar a prática não é a vida em questão, mas, na verdade, o poder dos homens", analisa a socióloga Rosado. "Porque aquilo que se desenvolvia no corpo feminino era considerado de alguma maneira propriedade dos homens. E, portanto, a mulher não poderia dispor desse ser que se desenvolvia sem o que o homem permitisse." "O controle do corpo da mulher está sempre colocado em pauta, está sempre pressuposto. E o [direito ao] aborto é fundamental porque temos de ter o direito de decidir sobre nosso corpo", afirma a historiadora Rosin. "Uma mulher não é um hospedeiro, não é uma chocadeira." "Em última instância, [praticar ou não o aborto] essa é uma decisão da mulher, não deveria, um tema tão espinhoso e tão delicado, um tema como este não deveria ser politizado nesse nível", diz Moraes. O historiador demonstra preocupação porque "a onda conservadora que vemos nos Estados Unidos" tem "reflexos aqui, porque o Brasil é uma cópia malfeita do que acontece lá, uma espécie de puxadinho". "É um tema que inicialmente quem assumia uma posição muito clara era a Igreja Católica, mas que os evangélicos acabaram copiando esse modelo também. Determinados grupos encontraram no assunto um tema catalisador, que aglutina, faz com que vire uma bandeira. São grupos mais conservadores, mais radicais, fundamentalistas", explica Moraes. "É um aspecto de manifestação de uma onda conservadora muita forte e os grupos conservadores no Brasil copiam esses exemplos norte-americanos tentando cooptar pessoas para essa causa, demonizando quem é contrário", complementa ele. "E essas mesmas pessoas que assumem uma posição 'a favor da vida', são pessoas que defendem a pena de morte. Há contradições nesse sentido." Rosado acrescenta que "essa discussão sobre uma vida" a partir da concepção "é moderna, muito recente". "Ela se desenvolveu naquele setor mais conservador da sociedade, que passou a penalizar as mulheres, criminal e religiosamente, considerando o aborto um delito sujeito a pena ou um pecado sujeito a uma pena simbólica", diz a socióloga. Para a antropóloga Debora Diniz, professora na Universidade de Brasília (UnB), "nunca foi uma questão sobre um processo evolutivo da sociedade", mas sim um indicativo de "maior ou menor fragilização democrática desde que começamos a tratar de direitos das mulheres e direitos humanos". "Desde o momento em que temos Estado com suas próprias leis, [permitir ou não o aborto] é um sinal de estabilidade democrática e de proteção aos direitos fundamentais", defende a pesquisadora. "O que está ocorrendo nos Estados Unidos parece um contraprocesso histórico de direitos fundamentais, porque houve uma fragilização democrática no período do governo [Donald] Trump."
2022-06-27
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61950222
sociedade
Por que as pessoas acreditam nas próprias mentiras?
O noticiário está repleto de pessoas que viveram uma mentira. O que distingue todas estas pessoas não são apenas as mentiras que elas contaram aos outros — mas as mentiras que devem ter contado a si mesmas. Fim do Matérias recomendadas Todas elas acreditavam que suas ações eram, de alguma forma, justificáveis e, contra todos os prognósticos, nunca seriam descobertas. Por diversas vezes, pareciam negar a realidade — e arrastaram outras pessoas para seus golpes. Você pode acreditar que este tipo de comportamento é um fenômeno relativamente raro e restrito a algumas situações extremas. Mas enganar a si próprio é algo incrivelmente comum e pode ter evoluído para oferecer alguns benefícios pessoais. Nós mentimos para nós mesmos para proteger a nossa autoimagem, o que nos permite agir de forma imoral, mantendo a consciência limpa. Segundo as últimas pesquisas, enganar a si próprio pode ter evoluído para nos ajudar a convencer os outros. Afinal, se começarmos a acreditar nas nossas próprias mentiras, fica muito mais fácil fazer com que outras pessoas também acreditem. Estas pesquisas podem explicar comportamentos questionáveis em muitos setores da vida — muito além dos golpes que chegaram às manchetes nos últimos anos. Compreendendo as diferentes razões que fazem com que as pessoas enganem a si mesmas, podemos tentar identificar quando isso está influenciando nossas decisões e evitar que essas ilusões nos desorientem. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Qualquer psicólogo dirá que o estudo científico do ato de enganar a si próprio é uma dor de cabeça. Você não pode simplesmente perguntar a alguém se está enganando a si mesmo, uma vez que isso acontece abaixo do nível de consciência. Por isso, os experimentos muitas vezes são bastante complicados. Vamos começar com a pesquisa de Zoë Chance, professora de marketing da Universidade de Yale, nos Estados Unidos. Em um experimento realizado em 2011, ela demonstrou que muitas pessoas enganam a si próprias inconscientemente para alimentar seus egos. Um grupo de participantes foi orientado a fazer um teste de QI, com uma lista das respostas impressas no final da página. Como se poderia esperar, essas pessoas tiveram resultados consideravelmente melhores que um grupo de controle que não teve acesso ao gabarito. Mas, aparentemente, eles não reconheceram o quanto haviam dependido da "cola" — já que previram que se sairiam igualmente bem em um segundo teste com outras cem questões, sem o gabarito. De alguma forma, eles haviam enganado a si próprios, pensando que sabiam as soluções dos problemas sem precisar de ajuda. Para confirmar esta conclusão, Chance repetiu o experimento com um novo grupo de participantes. Mas, desta vez, eles receberiam uma recompensa financeira por prever com precisão seus resultados no segundo teste. O excesso de confiança sofreria então uma penalidade. E, se os participantes estivessem conscientes do seu comportamento, poderia se esperar que este incentivo reduzisse sua autoconfiança. Mas, na verdade, o incentivo financeiro teve pouca influência para reduzir a autoconfiança exagerada dos participantes. Mas ainda assim eles enganaram a si próprios, achando que eram mais inteligentes do que na realidade, mesmo sabendo que perderiam dinheiro. Isso indica que as crenças eram verdadeiras, profundamente enraizadas e surpreendentemente fortes. Não é difícil observar como isso pode ser aplicado na vida real. Um cientista pode acreditar que seus resultados são reais, apesar de usar dados fraudulentos; um aluno pode acreditar que fez jus à sua vaga em uma universidade de prestígio, mesmo fraudando um exame. Enganar a si mesmo para melhorar a autoimagem vem sendo observado agora em muitos outros contextos. Uri Gneezy, professor de economia da Universidade da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos, demonstrou recentemente que enganar a si próprio pode ajudar a justificar possíveis conflitos de interesse no trabalho. Em um estudo de 2020, Gneezy pediu aos participantes que desempenhassem o papel de consultores de investimentos ou de clientes. Os consultores receberam duas oportunidades diferentes para que fossem analisadas — cada uma delas com diferentes riscos e benefícios. Eles também foram informados que receberiam uma comissão se o cliente optasse por um dos dois investimentos. Em um conjunto de testes, os consultores foram informados desta possível recompensa logo no começo do experimento, antes que começassem a estudar as diferentes opções. Embora aparentemente estivessem escolhendo a melhor opção para o cliente, eles ficaram muito mais dispostos a fazer a escolha mais favorável para eles próprios. Mas, nos demais testes, os consultores só foram informados sobre esta possível recompensa depois de terem tido algum tempo para ponderar os prós e os contras de cada opção. Desta vez, poucos decidiram deixar que a recompensa influenciasse sua decisão. Eles permaneceram fiéis ao seu objetivo de oferecer o melhor conselho para o cliente. Para Gneezy, o fato de que o conhecimento dos benefícios pessoais influenciou apenas a decisão dos participantes no primeiro cenário indica que eles enganaram a si próprios de forma inconsciente, alterando a forma como calculavam os riscos e benefícios sem que tivessem consciência da orientação. Eles acreditavam que ainda estavam agindo no interesse do cliente. No segundo cenário, seria necessária uma total mudança de raciocínio, o que teria sido mais difícil de justificar para eles próprios. "Eles simplesmente não conseguiriam se convencer de que estavam agindo de forma ética", afirma Gneezy. Portanto, enganar a si próprio é uma forma de proteger o senso de moralidade, segundo ele. "Significa que podemos continuar nos considerando uma boa pessoa" — mesmo se nossas ações indicarem o contrário. Esta forma de enganar a si próprio pode ser obviamente mais relevante para os consultores financeiros, mas Gneezy acredita que pode também ser importante para o setor de assistência médica privada. Apesar de ter boas intenções, o médico pode decidir inconscientemente que o tratamento mais caro seria melhor para o paciente — sem ao menos reconhecer que está enganando a si próprio. Talvez a consequência mais surpreendente de enganar a si próprio esteja relacionada com as conversas com os demais. Segundo esta teoria, quando enganamos a nós mesmos, ficamos mais confiantes no que estamos dizendo, o que nos torna mais convincentes. Se você estiver tentando vender um produto duvidoso, por exemplo, o defenderá melhor se realmente acreditar que é uma barganha de alta qualidade — mesmo se as evidências indicarem o contrário. Esta hipótese foi proposta pela primeira vez décadas atrás, e um estudo recente de Peter Schwardmann, professor de economia comportamental da Universidade Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, oferece fortes evidências a favor da ideia. Como no estudo de Chance, os primeiros experimentos de Schwardmann começaram com um teste de QI. Os participantes não receberam os resultados, mas, depois do término do primeiro teste, precisaram avaliar de forma privada como achavam que haviam se saído. Depois, fizeram um teste de persuasão: tiveram que ficar perante um júri de empregadores fictícios e convencê-los de sua destreza intelectual — com uma possível recompensa de 15 euros (cerca de R$ 78) se os juízes acreditassem que eles estavam entre os mais inteligentes do grupo. Algumas pessoas foram informadas sobre a tarefa de persuasão antes de avaliar a confiança no seu desempenho, enquanto outras foram informadas posteriormente. E, conforme a hipótese, Schwardmann concluiu que isso alterou a avaliação das suas capacidades. O conhecimento anterior de que eles teriam que convencer os demais resultou em um excesso maior de confiança nas suas capacidades, em comparação com os que não haviam sido informados. A necessidade de persuadir outras pessoas os levou a pensar que eram mais inteligentes do que na realidade. Schwardmann descreve isso como um tipo de "reflexo". E é importante ressaltar que os experimentos demonstraram que mentir para si próprio valeu a pena. A confiança excessiva sem fundamento realmente aumentou a capacidade das pessoas convencerem os empregadores fictícios. Schwardmann observou agora um processo similar em torneios de debate. Nestes eventos, os participantes recebem um tema e um ponto de vista aleatório para argumentar. Antes, eles têm 15 minutos para preparar seus argumentos. E, durante o debate, são julgados pela forma de apresentação da sua defesa. Schwardmann analisou as crenças pessoais dos participantes sobre os temas antes de receberem qual seria seu posicionamento, depois que começaram a formular seus argumentos e depois do debate propriamente dito. Em conformidade com a ideia de que enganar a si próprio evoluiu para nos ajudar a convencer os demais, ele concluiu que as opiniões pessoais das pessoas foram substancialmente alteradas depois que elas souberam qual lado do debate precisariam defender. "Suas crenças particulares migraram para o lado que eles haviam recebido apenas 15 minutos antes, para se alinhar com seus objetivos de persuasão", afirma Schwardmann. Depois do debate, os participantes também tiveram a oportunidade de destinar pequenas quantias em dinheiro para caridade, selecionando a partir de uma longa lista de possíveis organizações. Schwardmann concluiu que eles ficaram muito mais dispostos a escolher organizações alinhadas com o posicionamento dos seus argumentos, mesmo tendo sido escolhido inicialmente de forma aleatória. Muitas das nossas opiniões podem ter sido formadas desta maneira. Na política, pode acontecer de um apoiador a quem se solicita que defenda um ponto específico realmente chegue a se convencer de que esta é a única forma de abordar aquele ponto — não porque tenha apurado cuidadosamente os fatos, mas simplesmente porque foi pedido a ele que preparasse o argumento. Na verdade, Schwardmann suspeita que este processo pode estar por trás de grande parte da polarização política que vemos hoje em dia. De todas essas formas, o nosso cérebro pode nos levar a acreditar em coisas que não são verdadeiras. Enganar a nós mesmos nos permite inflar nossa opinião sobre nossas próprias capacidades, de forma que acreditemos que somos mais inteligentes do que todos à nossa volta. Isso significa que nós desprezamos as repercussões das nossas ações para outras pessoas, de forma que acreditamos estar geralmente agindo de acordo com a moral. E, ao nos enganarmos sobre a veracidade das nossas crenças, demonstramos maior convicção nas nossas opiniões — o que, por sua vez, nos ajuda a convencer os demais. Nós nunca saberemos o que realmente passou pela mente de Holmes, Sorokin ou Hayut e de outros autores de fraudes, mas é fácil especular como alguns destes mecanismos podem ter operado. Estes golpistas pelo menos parecem ter tido opiniões anormalmente positivas sobre suas próprias capacidades e seu direito de conseguir o que quisessem — e se eximiram com todo prazer das possíveis implicações éticas do que estavam fazendo. Holmes, em particular, parece ter acreditado no seu produto e tentou justificar o uso de dados enganosos. Apesar de todas as evidências indicarem o contrário, ela ainda declarou durante o julgamento que "as grandes companhias de dispositivos médicos, como a Siemens, poderiam facilmente reproduzir o que nós fizemos". Hayut, por sua vez, ainda afirma que é "o maior dos cavalheiros" e que não fez nada de errado. Schwardmann concorda que talvez seja possível que alguns golpistas vivam em mentiras incrivelmente elaboradas. Ele indica que alguns até demonstram uma espécie de raiva justificada quando são questionados, o que pode ser difícil de fingir. "Talvez seja um sinal de que eles realmente compraram suas próprias mentiras", afirma. Especificamente, o desejo de status social parece aumentar a tendência das pessoas de enganarem a si próprias. Quando elas se sentem ameaçadas pelos demais, por exemplo, elas ficam mais propensas a inflar sua percepção das próprias capacidades. Talvez, quanto maiores os riscos, maiores sejam as mentiras que conseguimos dizer a nós mesmos. Na maior parte das vezes, a autoilusão pode ser benéfica, pois permite que nos sintamos um pouco mais confiantes em nós mesmos que o justificável. Mas sempre vale a pena conhecer estas tendências, especialmente se estivermos tomando decisões que podem mudar a nossa vida. Você não quer se enganar sobre os riscos de fazer economias no seu trabalho atual, nem sobre a possibilidade de sucesso em uma mudança arriscada de carreira, por exemplo. Uma boa forma de cortar todos os tipos de vieses é "analisar o oposto" das suas conclusões. Esta técnica é exatamente o que parece: você tenta encontrar todas as razões pelas quais a sua crença pode estar errada, como se estivesse interrogando a si próprio. Diversos estudos mostraram que isso nos leva a pensar de forma mais analítica sobre uma situação. Em testes de laboratório, este raciocínio sistemático é comprovadamente muito mais eficaz que simplesmente dizer às pessoas que "pensem racionalmente". É claro que isso só é possível se você conseguir aceitar as suas falhas. O primeiro passo é reconhecer o problema. Mas talvez você ache que não precisa deste conselho — enganar a si próprio é algo que só aflige os demais, pois você é totalmente honesto consigo mesmo. Neste caso, esta pode ser a sua maior ilusão de todas.
2022-06-25
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-61757413
sociedade
Roe x Wade: o que muda com decisão da Suprema Corte dos EUA sobre aborto?
O aborto foi legalizado nos Estados Unidos após uma decisão histórica em 1973 no caso "Roe x Wade". Agora, a Suprema Corte - o órgão jurídico mais importante do país - anulou esse direito. O aborto pode instantaneamente se tornar ilegal em 22 Estados. Em 1969, uma mulher solteira de 25 anos, Norma McCorvey, usando o pseudônimo "Jane Roe", desafiou as leis de aborto no Texas. O Estado proibia o aborto por considerá-lo inconstitucional, exceto nos casos em que a vida da mãe estivesse em perigo. Fim do Matérias recomendadas Defendendo a lei antiaborto estava Henry Wade - o promotor público do Condado de Dallas -, daí o nome "Roe versus Wade". McCorvey estava grávida de seu terceiro filho quando entrou com a ação na Justiça. Ela alegou que havia sido estuprada. Mas a decisão foi desfavorável, e ela foi forçada a dar à luz. Em 1973, seu recurso chegou à Suprema Corte, onde seu caso foi examinado junto com o de uma mulher de 20 anos da Geórgia, Sandra Bensing. O argumento foi de que as leis de aborto do Texas e da Geórgia contrariavam a Constituição porque infringiam o direito da mulher à privacidade. Por sete votos a dois, os juízes decidiram que os governos não tinham o poder de proibir o aborto e que o direito da mulher de interromper sua gravidez era protegido pela Constituição A partir do caso, foi criado um sistema baseado em trimestres no qual: Também foi estabelecido que, no último trimestre, uma mulher podia obter um aborto, apesar de qualquer proibição legal, se os médicos atestassem ser necessário para salvar sua vida ou por questões de saúde. A Suprema Corte decidiu a favor da proibição do aborto no Mississippi após 15 semanas de gestação. Ao fazê-lo, acabou efetivamente com o direito constitucional ao aborto para milhões de americanas, porque Estados poderão agora proibir o procedimento novamente. Espera-se que metade introduza novas restrições ou proibições. Treze já aprovaram as chamadas "leis de gatilho", que automaticamente tornarão ilegal o aborto após a decisão da Suprema Corte. Vários outros provavelmente aprovarão restrições rapidamente. Há nove juízes na Suprema Corte, seis dos quais foram nomeados por presidentes republicanos. Um rascunho de um parecer de um deles, o juiz Samuel Alito, vazou em maio de 2022. No documento, Alito escreveu que decisão em "Roe x Wade" havia sido "extremamente errada". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mesmo antes da decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos, os ativistas antiaborto vinham obtendo algumas conquistas. Em 1980, a Suprema Corte confirmou uma lei que proibia o uso de fundos federais para o aborto, exceto quando necessário para salvar a vida de uma mulher. Em 1989, mais restrições foram aprovadas, incluindo permitir que os Estados proíbam abortos em clínicas estaduais ou por funcionários públicos. O maior impacto veio da decisão do tribunal no caso "Planned Parenthood x Casey", em 1992. Apesar de ter mantido a decisão de "Roe x Wade", estabeleceu que Estados podem restringir abortos mesmo no primeiro trimestre por razões não médicas. Como resultado, muitos Estados agora têm restrições, como exigências de que mulheres grávidas jovens envolvam seus pais ou um juiz na decisão do aborto. Outros introduziram períodos de espera entre o momento em que uma mulher visita uma clínica de aborto pela primeira vez e o procedimento real. O resultado é que muitas mulheres precisam viajar para fazer um aborto, muitas vezes para outros Estados, e pagar mais caro pelo procedimento. De acordo com o movimento pró-aborto, as mulheres pobres serão as mais penalizadas por essas restrições.
2022-06-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61929519
sociedade
Como uma pequena favela no Rio de Janeiro construiu sua própria rede de esgoto
A comunidade do Vale Encantado foi fundada no século 19 por trabalhadores nas plantações de café, antes da região ser reflorestada se tornando a Floresta da Tijuca, uma das maiores do mundo em perímetro urbano. Os bisavôs de Otávio Barros, hoje presidente da Associação de Moradores e da cooperativa do Vale, mudaram-se para a região justamente para trabalhar nas plantações — e as gerações seguintes dedicaram-se a outras atividades, como agricultura e floricultura. "Eu sou da quarta geração. Também teve uma fase de extração do granito, que causou desmatamento. Mas em 1989 as empresas foram embora. Muitas pessoas que vieram para trabalhar não se adaptaram e foram junto. Ficaram mais as famílias originarias." Após 150 anos o Vale Encantado se encontrou isolado na floresta, sem poder mais ganhar a vida através da extração de recursos naturais do entorno. Hoje, de acordo com o último censo realizado pela associação de moradores, cerca de 100 pessoas compondo 40 famílias moram nas 27 casas da comunidade. Fim do Matérias recomendadas Em 2005, após a visita do francês Jérôme Auriac, presidente de uma ONG de desenvolvimento sustentável que atua no Brasil, Barros começou a considerar a ideia de que o Vale Encantado poderia ser um bom destino para o turismo sustentável, atividade que ajudaria a comunidade a gerar renda. "Em 2007, após eu e um colega já estarmos formados como guias, um dos turistas que nos visitava perguntou se poderia tomar banho na cascata. Eu expliquei que não, porque o esgoto da comunidade era despejado ali. Seguimos com o passeio, mas aquilo me incomodou. Comecei a procurar alguma forma de melhorar o sistema de canalização, apesar de não ter conhecimentos técnicos", diz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para os moradores, um esgoto devidamente canalizado representava a presença de menos insetos, roedores, e um risco menor de transmissão de doenças, além da não contaminação das nascentes da região. Mas também ajudava em uma questão que os ameaçava de forma diferente. Em 2006, o Ministério Público do Estado do Rio entrou com uma ação civil pública e um pedido de liminar, contra a Prefeitura do Rio, em razão da ocupação das áreas do Alto da Boa Vista, onde o Vale Encantado está localizado. A ação não tinha como foco único a comunidade, mas a incluía como ameaça à preservação ao meio ambiente, o que fez com que o presidente da associação de moradores se sentisse ainda mais motivado a buscar soluções. Em 2011, um pesquisador da PUC (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro, onde Otávio Barros trabalhava como secretário do curso de graduação de matemática, indicou que ele conversasse com Leonardo Adler, engenheiro ambiental sanitarista que acumulava experiências que poderiam ajudar a comunidade. "Na época, só conversamos por e-mail. Eu passei algumas instruções, mas não chegamos a nos encontrar", diz Adler. Mas dois anos depois, o Vale Encantado recebia de uma ONG internacional uma primeira doação que contribuiria para o caminho de sustentabilidade que os moradores buscavam, um biodigestor para restos de alimentos que seria usado na espécie de restaurante da associação, que vende pratos típicos, como o "jacalhau" e a "torta de umbigo de banana" para turistas. Em seguida, a cozinha do restaurante usava o gás gerado pelo biodigestor para cozinhar. Para trabalhar na implementação da tecnologia, o engenheiro Leonardo Adler e outros voluntários passaram a integrar a rotina da comunidade. Apesar dos avanços, a maior contaminação no ambiente continuava. Com dificuldades para atender muitas regiões do Rio, seria difícil imaginar a concessionária chegar um dia com saneamento básico neste local pequeno e isolado. E isso afetava a qualidade de vida e a geração de renda local. Mas depois de ter mais profissionais experientes conhecendo a realidade dos moradores, em 2015, o biossistema de saneamento ecológico do Vale Encantado começou a ser desenvolvido através de uma nova parceria, desta vez com um edital da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), uma agência de fomento à pesquisa. O objetivo era a construção de um biodigestor de porte e tamanho apropriados, dimensionado para tratar o esgoto de todas as 27 casas do Vale Encantado, mas com o apoio inicial, apenas cinco moradias foram beneficiadas. O processo de arrecadar o dinheiro para completar as obras foi lento e a pandemia causada pelo coronavírus atrapalhou o planejamento, mas em 2021, com a ajuda de diferentes organizações sociais, a comunidade conseguiu recursos faltantes para realizar a conclusão do sistema conectando todas as casas à rede completa de saneamento. O tempo de espera serviu também para capacitar os moradores da comunidade para que eles mesmo fizessem a obra — sendo remunerados com parte do dinheiro levantado. De acordo com o engenheiro ambiental sanitarista Leonardo Adler, treinamentos foram feitos com a ajuda de um engenheiro civil e um encanador. Desde maio de 2022, o esgoto é coletado das residências e é levado a um tanque de concreto de forma arredondada, onde passa por dois processos naturais para a limpeza da água. "O sistema faz a degradação de matéria orgânica em ambientes sem oxigênio. Desse ambiente, as bactérias que se desenvolvem digerem a matéria orgânica e elas têm como subproduto dessa digestão o biogás. Na prática é a mesma coisa que acontece na nossa barriga — a digestão de uma parte líquida que saí por um lado, outra sólida, que é depositada no fundo do biodigestor, e então a criação do gás que, nesse caso, pode ser usado para as atividades da cozinha", explica Adler. O morador Otávio Barros conta que, antes do projeto, muitas casas usavam "fossa sumidouro", uma espécie de tanque ao lado de uma fossa, para armazenar seus dejetos. "A qualidade da água que descia cortando as casas era péssima e formava poças proliferando mosquito e roedores. Agora, a água é muito limpa. Os moradores estão satisfeitos e não tiveram custo algum. Acho que meus antepassados estariam orgulhosos", diz. Seu sonho, conta ele, é que o Vale Encantado possa se tornar um ponto turístico para gerar renda para as famílias que são mais vulneráveis. Seu próximo passo é criar uma pousada para visitantes. Além disso, Otávio está passando por um curso de instalações hidrossanitárias, do qual Leonardo Adler é um dos professores, e cogita aproveitar os conhecimentos adquiridos nos últimos anos para participar de outros trabalhos como o que foi feito em sua comunidade.
2022-06-23
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61835087
sociedade
'Pensei que me matariam': a história do 1º gay do Catar a sair do armário
Nas Mohamed teve que manter a homossexualidade em segredo por muitos anos para sobreviver no Catar, país onde nasceu, apesar de "saber disso desde pequeno". "Lembro que eu tinha uns 11 ou 12 anos e já pensava nisso, mas não sabia o que realmente significava ser gay", diz ele, que hoje tem 35 anos, em entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. "Não tinha acesso a nada. Não tinha internet, não tinha comunidade gay na minha cidade e não estava exposto a nada. Não entendia o que estava acontecendo comigo." Inicialmente, ele decidiu ignorar e reprimir quaisquer pensamentos relacionados a sexo e sua orientação sexual. Preferiu se concentrar nos estudos da faculdade de medicina e na religião; era uma pessoa "extremamente religiosa", que sabia o Alcorão de cor. Fim do Matérias recomendadas Assim, ele passou sua adolescência e os primeiros anos da vida adulta — durante os quais teve apenas de ignorar os conselhos de que deveria arrumar uma esposa. "Muitos de nós somos pressionados a nos casar muito jovens, às vezes antes dos 20 anos. Para mim, o mais difícil foi tentar resistir à pressão ao meu redor para me casar", revela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Tinha que dar uma boa razão para não querer me casar, para que não suspeitassem." Foi durante uma viagem a Las Vegas, aos 22 anos, que ele confirmou que era "definitivamente" gay. Em uma boate LGBT+, ele se sentiu realmente livre pela primeira vez. "Percebi que não tinha nenhum tipo de tendência ou desejo de fazer sexo heterossexual. Fiquei em choque. Comecei então a ler e aprender mais sobre mim e o que significava ser homossexual", diz ele. Mas depois de voltar ao Catar, ele teve de reprimir completamente o desejo sexual que havia despertado nele. "Eu vivia com um medo constante. Pensei que me matariam se soubessem que sou gay, se isso se tornasse público. Os crimes de honra são muito tribais no Catar. Algumas famílias fazem isso, outras não, e o governo tenta não intervir." Ao terminar a graduação em 2011, aos 24 anos, Nas tomou a decisão de se mudar "temporariamente" para os Estados Unidos, onde passaria três anos fazendo residência para concluir sua formação profissional como médico. Nunca mais voltou. Após concluir sua residência em um hospital em Connecticut e uma bolsa de pesquisa no Estado da Pensilvânia em 2015, ele solicitou asilo na Califórnia, dizendo que seria perseguido em seu país por causa de orientação sexual. Mas antes de pedir asilo, ele ligou para os pais para explicar por que não voltaria ao Catar. "Confessei a eles que era gay e que não me sentia seguro em casa, que não achava que poderia voltar. Tivemos uma grande briga e depois conversamos mais algumas vezes, mas nunca acabava bem", explica Nas. Ele conta que, infelizmente, o relacionamento com os pais terminou naquele primeiro telefonema. "Por tradição e vergonha, imagino que eles inventaram uma história para o resto da família. Não sei o que contaram a eles, mas acho que agora todos sabem o verdadeiro motivo da minha saída, graças às minhas entrevistas." Nas Mohamed ganhou notoriedade neste ano depois de falar publicamente sobre sua homossexualidade. Muitos deram a ele o título de "1º catariano a sair publicamente do armário", depois de conceder entrevistas a diferentes meios de comunicação. Ele explica que decidiu sair do armário agora justamente porque a Copa do Mundo, que acontece no fim deste ano no Catar, colocou os holofotes sobre este país e sobre todas as denúncias de abusos de direitos humanos e de minorias que são regularmente reportadas no Estado árabe. No início do ano, Nasser Al Khater, executivo-chefe da Copa do Mundo FIFA 2022 no Catar, garantiu em entrevista coletiva que todos os torcedores serão bem-vindos no Catar, desde que respeitem as tradições do país. "Gostaria de garantir a qualquer torcedor, de qualquer gênero, orientação (sexual), religião ou raça, que tenha certeza de que o Catar é um dos países mais seguros do mundo e todos são bem-vindos aqui", disse ele. "As demonstrações públicas de afeto são mal vistas, não fazem parte da nossa cultura, e isso se aplica a todos." Mas várias associações, como a European Gay & Lesbian Sport Federation, reclamaram que as garantias de segurança para pessoas LGBTQ+ no Catar continuam inadequadas meses antes do início da Copa do Mundo. Nas afirma que não saiu do armário para contar sua própria história, mas para tornar conhecida a de todos os membros da comunidade LGBT+ no Catar. "É muito perigoso sair do armário quando você é catariano, e estou me preparando para isso há meses", completa. Ele conta que, por meio do seu trabalho recente como porta-voz da comunidade LGBT+ no Catar, percebeu o quão grande é a comunidade em seu país natal. Mas todos ocultam sua sexualidade e têm medo de falar sobre o assunto ou confessar a alguém. Segundo ele, isso acontece porque a polícia do Catar tem uma equipe dedicada a "caçar" pessoas LGBT+ — e quando encontram um membro da comunidade, pegam seu telefone e vasculham seus contatos para tentar localizar outros. "Conheço gays que nem sequer sabem que outras pessoas próximas ao seu círculo são (gays), pois é muito perigoso para uma pessoa LGBT+ conhecer outra." Ser gay é ilegal no Catar. De acordo com o artigo 296 do seu código penal, as penas para relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo variam de 3 a 5 anos de prisão a até pena de morte — embora não haja provas de que penas de morte tenham sido aplicadas para relações sexuais consensuais realizadas de forma privada entre adultos do mesmo sexo. Nas afirma que dentro da comunidade gay do Catar reina a censura e nada é transparente, mas ele garante que nem todos vivem sob as mesmas condições. "Há pessoas LGBT que vivem bem. São uma minoria de sorte, porque são muito ricas, com famílias muito grandes, e são aceitas a partir do princípio que tem que ser um segredo de família." Mas ele acrescenta que até mesmo estas pessoas vivem com muitas limitações em relação ao que podem fazer — e algumas costumam ter problemas de saúde mental. "Muitos de nós não tivemos a mesma sorte, e coisas horríveis aconteceram conosco." Nas afirma que, embora não more mais no Catar, ainda teme por sua vida. Ele recebeu uma enxurrada de insultos e ameaças de morte depois de tornar pública sua homossexualidade. "Mesmo morando aqui em San Francisco (na Califórnia) não me sinto seguro. Porque há muito ódio e violência contra nós", acrescenta. Ele teve que fechar quase todas as suas redes sociais para reduzir o número de mensagens de ódio que recebe diariamente, com exceção de uma conta do Instagram que usa como plataforma para seu ativismo. Mas assim como chegam mensagens de ódio, ele também recebe agradecimentos. "Me agradecem por ser a voz de muitas pessoas que não podem falar. Muita gente da comunidade LGBT+ e muitos aliados de todas as classes sociais no Catar entraram em contato comigo." O governo dos EUA concedeu asilo a Nas em 2017 após uma intensa batalha judicial. Desde 2015, ele fez de San Francisco sua casa e diz que nunca poderia voltar ao Catar. "Sem dúvida alguma me maltratariam na chegada. Acho que minha própria família me mataria pelo que estou fazendo. Há pessoas me dizendo no Instagram que, se eu pisar lá, vão me ajudar a conhecer Alá", afirma. Ele acrescenta que também pode ser processado pelo governo do Catar por "infringir a lei". Nas espera que sua história sirva para informar muita gente sobre o quão "atrasada" a sociedade do Catar é em termos de liberdades e direitos da comunidade LGBT+. E faz um apelo aos estrangeiros que visitarão o Catar durante a Copa do Mundo para que não se escondam, pois insiste que a visibilidade é importante. Ele também espera que isso sirva para que outros catarianos gays e transexuais tenham histórias documentadas para mostrar como evidência se planejam buscar asilo em outros países onde possam viver livremente. "Somos uma população que precisa de ajuda e apoio. O que está acontecendo no Catar não afeta apenas os catarianos, mas a comunidade LGBT+ em todo o mundo", observa. "Precisamos que nossos direitos sejam universalmente respeitados, que onde quer que formos sejamos tratados com igualdade e como seres humanos com direitos, não como criminosos. Precisamos de mais vozes."
2022-06-23
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61894518
sociedade
O casal que reza para que coração do bebê que esperam pare de bater após aborto negado
Andrea e Jay nunca pensaram que estariam nesta situação: rezando para que o coração de sua filha pare de bater antes que Andrea desenvolva uma infecção potencialmente mortal. O casal, dos Estados Unidos, estava de férias em Malta quando Andrea Prudente, grávida de 16 semanas, começou a perder sangue. Os médicos disseram que a placenta estava parcialmente descolada, e sua gestação não era mais viável. Mas o coração do bebê ainda batia — e em Malta isso significa que, por lei, os médicos não podem interromper a gravidez. Há uma semana o casal está esperando, confinado em um quarto de hospital. "Estamos sentados aqui com o entendimento de que, se ela entrar em trabalho de parto, o hospital entrará em ação. Se o coração do bebê parar, eles vão ajudar. Fora isso, eles não vão fazer nada", conta Jay Weeldreyer à BBC pelo telefone. Fim do Matérias recomendadas A voz dele está cansada e irritada. Ele teme que a condição de Andrea possa mudar rapidamente a qualquer momento. "Com a hemorragia e a separação da placenta do útero, com a membrana totalmente rompida, e o cordão umbilical do bebê projetando do colo do útero da Andrea, ela corre um risco extraordinariamente alto de infecção, o que poderia ser evitado", diz ele. "A bebê não pode viver, não há nada que possa ser feito para mudar isso. Nós a queríamos, ainda a queremos, nós a amamos, desejamos que ela pudesse sobreviver, mas ela não vai. E não só estamos na situação em que estamos perdendo uma filha que queríamos, como o hospital também está prolongando a exposição da Andrea ao risco", acrescenta. A única esperança deles é uma remoção médica de emergência para o Reino Unido — paga pelo seguro de viagem. Em 2017, outra turista teve que ser transferida para a França para fazer um aborto de emergência. Mas, para as mulheres de Malta, esta não é uma opção. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A ilha tem algumas das leis mais rígidas da Europa quando se trata de aborto: interromper uma gravidez é ilegal, inclusive quando o feto não tem chances de sobrevivência. É uma lei que a advogada Lara Dimitrijevic, presidente da Women's Rights Foundation em Malta, vem combatendo há anos. "As mulheres aqui raramente têm voz", diz ela. "A prática geral é que os médicos ou deixam o corpo expulsar o feto por conta própria, ou — se a paciente fica muito doente e desenvolve sepse — eles então intervêm para tentar salvar a vida da mãe." "Sabemos que, em média, há dois ou três casos como este todos os anos, mas depois que a Andrea tornou sua história pública nas redes sociais, começamos a ver muitas outras mulheres se apresentando e compartilhando suas experiências." Dimitrijevic diz que a lei precisa mudar porque uma prática como esta não é apenas um risco para a saúde das mulheres, é também um trauma psicológico para elas e suas famílias. A BBC entrou em contato com o governo de Malta e a administração do hospital para comentar o assunto, mas não obteve retorno. Depois de seis dias, esperando que uma das duas coisas terríveis aconteça, Jay me diz que ele e sua esposa estão exaustos. "Este procedimento poderia ter sido feito em duas horas, sem colocar Andrea em risco e nos permitindo viver o luto", diz ele. "Em vez disso, é esta coisa prolongada, em que você acaba com pensamentos realmente sombrios, pensando em como isso pode acabar?"
2022-06-23
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61907263
sociedade
'Fui tratado como macaco de circo': a infância traumática de criança superdotada
O espanhol Javier González Recuenco rapidamente percebeu que não era como o restante das crianças de sua escola. Por causa disso, foi vítima de bullying por anos e viu sua infância se transformar em um inferno. Sem família ou apoio educacional, ele conseguiu dar a volta por cima e aprender a viver com superdotação por conta própria. Agora, com 51 anos, casado e pai de três filhas, ele ajuda outros como ele. Recuenco é, atualmente, presidente — na Espanha — da Mensa, a associação internacional para superdotados, e participa de projetos como o documentário Las zebras, estopim para um debate naquele país europeu sobre como melhorar a vida de crianças superdotadas e de alta capacidade. A BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, conversou com Javier González Recuenco sobre sua vida. Confira seu relato. É terrível viver com um cérebro em operação contínua. Tenho uma anedota muito curiosa. Fim do Matérias recomendadas Meus colegas, meus sócios e as pessoas com quem trabalhamos não se preocupam mais quando estamos em uma reunião e estou fazendo outra coisa no meu celular. Todos sabem perfeitamente que estou envolvido no assunto. É como se você tivesse excesso de energia constante ou espaço no disco rígido e isso é terrível. É como uma espécie de hamster que está constantemente girando em uma roda. E não para. Colocar a mente em branco é muito complicado. É como se você tivesse uma gaiola de grilos que é caótica e impossível de manter coberta em silêncio, por assim dizer. Isso é todo dia, o tempo todo. Quando você adormece, o que acontece é que seu corpo entra em colapso fisicamente. Mas não é que você tenha alcançado a paz de espírito. Não há maneira para gerenciá-lo. Mas também não posso dizer que se trata de um inferno. Você se acostuma e pronto. Claro, você tem que se cercar de pessoas compreensivas. Elas têm que entender que você faz essas coisas inconscientemente. As pessoas ficam surpresas quando veem que você parece estar distraído ou fazendo outra coisa. Normalmente você tem que ter o cuidado de seguir algumas cortesias humanas básicas, porque as pessoas gostam quando olhamos nos olhos delas, para ter a sensação de que elas têm toda a sua atenção. A linha entre superdotação e a Síndrome de Asperger é bastante tênue. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quando criança, não tinha consciência de ser superdotado, embora começasse a ver sinais estranhos. Me tiraram de onde eu fazia creche (pré-escola, 3 a 5 anos) e me colocaram para ler com os alunos do segundo ano (7-8 anos). Sabia todos os nomes e sobrenomes dos meus colegas. Há uma série de coisas para as quais você não dá importância nessa idade, nem tem consciência disso. Minha infância foi bastante aterrorizante. Por isso, não cobro quando presto aconselhamento a pais de crianças superdotadas — gostaria que alguém tivesse feito isso com meus pais. Nasci como uma espécie de alienígena. Meus pais são de duas pequenas cidades em Cuenca (centro-leste da Espanha). Depois de dois anos em Madri, passei três anos na cidade de meus avós, Valera de Abajo, em Cuenca. Uma cidade de 2 mil habitantes. Ali, de alguma forma eu me sentia feliz, mesmo começando a ter problemas, porque obviamente já estavam ocorrendo coisas estranhas como só tirar nota dez ou querer organizar a biblioteca da escola. Saí de lá sem nenhum tipo de treinamento físico e desembarquei aos 12 anos, em 1982, em uma escola de Madri com uma hierarquia muito forte baseada na educação física, a escola Valdeluz. Sempre comento que há dois momentos críticos na infância das crianças superdotadas. Um é quando eles aprendem a andar de bicicleta. Qualquer coisa que fazemos, fazemos bem rapidamente. No entanto, a bicicleta é a primeira coisa a que você tem acesso quando pequeno que implica coisas como coordenação, equilíbrio... que não têm nada a ver com sua capacidade mental. A grande maioria tenta uma vez, cai, tenta de novo, cai e na segunda vez que cai diz que não gosta de andar de bicicleta, porque não gostamos de nos sentir incompetentes, não estamos acostumados a aceitar nossas limitações. O outro momento crítico é trabalhar em grupo. Há um certo momento em que o trabalho em grupo começa a aparecer na vida da criança e ela vê o trabalho de seus colegas e não acredita. Achamos que se trata de algum tipo de piada ou algo assim. Não é muito complicado entender porque você acaba não se tornando a pessoa mais popular da classe. Se você não é particularmente atlético ou de alguma forma não tem um conjunto de habilidades que compensem esse seu jeito, sua infância pode se tornar muito complicada. Esse foi o meu caso. Não tinha a sensação de ser diferente até chegar a Madrid. Percebi que era diferente da pior maneira. Passei a sofrer bullying — fui alvo de insultos e agressões. Foi bem difícil. Nesses momentos você se sente muito mal. Você tem a sensação de que seus pais não sabem de nada. Mostrava o boletim escolar a meus pais, eles ficavam felizes com as minhas notas altas e me davam um beijo na testa, enquanto eu só pensava em me jogar debaixo do próximo ônibus. Quando você tem essa idade, a escola é toda a sua vida e se a escola é um inferno, toda a sua vida é um inferno. Com o tempo, melhorei do ponto de vista físico. Aos 14 anos, não me destacava, mas já não era mais o saco de batatas de quando cheguei. O problema é que falava de uma forma muito afetada. Tinha uma voz sibilante. Você acaba sofrendo bullying por qualquer coisa, eles (outras crianças) sabem que você é diferente. Apesar de tudo, sou muito contrário a essas narrativas vitimizadoras de superdotação, porque há muitas pessoas que não sofrem o que sofri e se adaptam bem à vida na sociedade. A vida de superdotação não precisa ser um mar de dor. Mas sofri muito, porque o restante das crianças percebia que eu era diferente. Quando completei 15 anos, cresci 15 centímetros em um ano e de repente percebi que a violência funciona. É triste, mas verdade. Descobri que se fui o melhor, agora vou ser o pior. Decidi que a violência seria uma forma de me entrosar. De alvo de bullying, me tornei uma espécie de líder de um grupo de pessoas bastante complicadas. Não sou o único com essa experiência aterrorizante. Meu amigo Pepe Beltrán, que está comigo na diretoria da Mensa, teve sua vida salva por um professor quando entrou no meio de uma sala de aula — seus colegas estavam enforcando-o com a corda da persiana. Digamos apenas que para alguns de nós, a adolescência é um lugar cheio de lembranças ruins, porque as pessoas identificam rapidamente o diferente. Pelo menos isso acontece com os meninos, não sei muito bem qual é a dinâmica, por exemplo, com as meninas. Quando sofria bullying, nunca busquei apoio de professores ou de meus pais. Com o tempo, entendi. Tinha a sensação de que eles não tinham absolutamente nenhuma compreensão do que eu estava passando. Os professores, tampouco. Não sei porque foi assim. Acho que tinha um profundo entendimento de que não receberia nenhum tipo de ajuda de nenhum deles. Ou simplesmente não ousava ou tinha vergonha de admitir que outras crianças estavam abusando de mim. Não sei, é um conjunto de coisas. Também nunca falei com ninguém sobre minha intenção de me jogar debaixo de um ônibus. Poderia ter acabado sob as rodas de um ônibus? Sim, definitivamente. Apesar de tudo, meus pais perceberam que era diferente, mas para eles, era uma espécie de macaco de circo. Era uma daquelas crianças que falavam muito bem, muito articuladas. Era capaz de recitar muitas coisas de memória. Meus pais ficavam encantados. Era um aluno muito bom, não dava problemas. Também não contei nada a eles sobre o que estava acontecendo na escola, para ser honesto.Nunca tive uma conversa aberta com eles sobre isso, porque por muito tempo foi algo que me machucou muito e não consegui processar. Agora que consigo processar, não sei...Nunca falei com meu irmão sobre o que estava acontecendo na escola também. Sei que pode soar estranho. Mas este foi um processo pelo qual decidi passar sozinho. Era dois anos e meio mais velho que ele. Quando pudemos falar sobre esse tipo de coisa, já tínhamos 20 e 17 anos, respectivamente. Já tinha enterrado tudo no meu passado. Falei com ele quando já tinha processado tudo. Meu pai é uma pessoa que não lê nada, mas tem o curioso hobby de comprar livros. Uma das coisas que ele assinou por muito tempo foram alguns livrinhos que continham trechos de outros artigos que saíam em outras grandes publicações. Em um deles, havia um artigo sobre a Mensa e o li quando tinha 12 anos, mas naquele momento não fiz nenhum tipo de conexão mental. Não entendia tudo o que estava acontecendo comigo até chegar à faculdade. Porque, durante meu ensino médio, embora eu nunca tenha ficado em recuperação, meu desempenho foi medíocre, porque estava muito ocupado sendo uma espécie de "valentão" nas ruas. Quando entrei na faculdade raspando, não havia ninguém ali que eu tivesse de impressionar e eu podia me concentrar única e exclusivamente na minha tarefa. Terminei a licenciatura em Engenharia Informática sem esforço e depois fiz outra licenciatura, Administração de Empresas; esta à distância. Meu pai era uma pessoa que teve trabalhos muito variados até conseguir começar a trabalhar na Telefónica (operadora). O sonho de toda a vida do meu pai era que eu trabalhasse na Telefónica. Quando estava no primeiro ano da licenciatura, uma tarde ele me disse: "Ei, Javier, esta noite não chegue muito tarde, nem muito bêbado, porque amanhã você presta concurso". Tinha 18 anos. O concurso ao qual me inscrevi era de auxiliar de informática. Desde os 12 anos já me envolvia, possivelmente fugindo da realidade, em tudo o que tinha a ver com os primeiros computadores pessoais que chegaram à Espanha. Prestei concurso aos 18 anos, no primeiro ano da universidade. Cerca de 10 mil haviam se inscrito e eu terminei entre os 50 primeiros. Percebi que trabalhar para a Telefónica me dava acesso a todos os computadores que eu queria e permaneci nesse emprego. Passei alguns anos na empresa, onde também fui um dos fundadores da Telefónica Data (subsidiária do Grupo Telefónica) em 1995. Mais tarde, em 2002, montei uma start-up. No escritório, me tornei uma espécie de bichinho esquisito, porque tinha 19 e 20 anos, e entendia de computadores como ninguém. Enquanto o restante das pessoas que trabalhavam ali eram engenheiros de telecomunicações na casa dos 40 ou 50 anos, que não haviam tido acesso a computadores nem estavam tão à vontade quanto eu. Acho que foi aí que percebi que isso poderia ter algo a ver com o artigo que li quando tinha 12 anos e liguei os pontos. Procurei ver se havia algo assim na Espanha e descobri que eles estavam aqui desde 1984. Foi quando decidi me candidatar à Mensa, onde fiz as provas e entrei, em 1992. Entrei na Mensa quando já tinha terminado minha via crucis. Já tinha processado tudo na minha cabeça. Como disso, foi um processo completamente individual. Assim que cheguei onde cheguei e internalizei e digeri, poderia ter me perdido a qualquer momento. Poderia ter me jogado debaixo de um ônibus, poderia ter me acabado nas drogas, poderia ter me acabado no álcool. Tenho três filhas, de 14, 13 e 7 anos. Uma com certeza é superdotada e as outras duas, provavelmente, também são. Necessito que elas sejam crianças e se desenvolvam emocionalmente. Mas converso muito com a que é claramente superdotada. É importante que elas entendam que há mais delas no mundo e que somos nós que temos que nos adaptar. Se tivesse tido apoio, isso teria me poupado de muitos problemas. E mesmo assim, ela tem problemas de integração e enfrenta outras dificuldades na hora de fazer as coisas, porque empatia básica não é comum em dinâmicas de grupo. O grupo trabalha em uma velocidade e você em outra. Isso sempre cria atrito. Mas ela não tem o nível de desamparo e falta de compreensão do que está acontecendo que eu tinha. Ela está numa condição melhor do que eu. Se você tem um filho superdotado e com altas capacidades e não sabe como agir, Javier González Recuenco recomenda:
2022-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61844810
sociedade
As rodas sem ar que podem transformar pneus furados em coisa do passado
As imagens de carros trafegando com dificuldade com um pneu quase vazio, ou de uma troca de pneu no acostamento da estrada, ainda são comuns. Também é comum a despesa com a troca de pneus que se desgastaram prematuramente, talvez porque o motorista não tivesse verificado a pressão com a regularidade necessária. Às vezes parece que os pneus são o ponto fraco de um carro. Mas isso irá mudar algum dia? Estaríamos chegando perto do final da era das câmaras cheias de ar usadas nos veículos desde os anos 1890? Um produto projetado para ser indestrutível e, por isso, de difícil reciclagem? Em uma pista de testes em Luxemburgo, um carro Tesla modelo 3 está correndo em curvas fechadas, acelerando rapidamente e fazendo paradas de emergência - testes comuns. Mas o notável é que o carro usa quatro pneus sem ar, produzidos pelo fabricante norte-americano Goodyear. Fim do Matérias recomendadas Raios de plástico especiais sustentam uma fina e reforçada banda de borracha. Os raios flexionam-se e contorcem-se enquanto o carro segue adiante. Michael Rachita, gerente de programas da Goodyear para pneus não pneumáticos (NPTs, na sigla em inglês) não esconde as limitações do produto: "haverá ruídos e um pouco de vibração. Ainda estamos aprendendo como suavizar a direção. Mas achamos que o desempenho será surpreendente." E ele está certo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os carros elétricos e a mobilidade autônoma estão mudando as exigências com relação aos pneus. Empresas de entregas e serviços de transporte querem produtos que precisem de pouca manutenção, sejam à prova de furos, recicláveis e que tenham sensores para mapear as condições das estradas. O compartilhamento de carros e os serviços de busca por motoristas estão crescendo nas cidades. Um carro com o pneu furado é um carro que não está gerando renda. Segundo Rachita, "os pneus a ar sempre terão seu lugar, mas é necessário um conjunto de soluções. À medida que entramos em um mundo onde os veículos autônomos estão se tornando mais comuns e muitas cidades estão oferecendo estratégias de transporte como serviço, a importância de termos pneus livres de manutenção é imensa." Nos laboratórios da Goodyear, os pneus são testados 24 horas por dia, em diferentes cargas e velocidades. São milhares de quilômetros sem parar. Alguns raios se deformam, outros quebram, mas as estruturas continuam a funcionar com segurança, segundo Rachita. "É testar para aprender, testar e aprender", ele conta. "Mas estamos em um estágio que nos dá enorme confiança. Este é o caminho." Já o concorrente da Goodyear, a Michelin, vem trabalhando com a General Motors (GM) em pneus sem ar desde 2019. Em fevereiro, a imprensa noticiou que seu Sistema de Pneus à Prova de Furos Unique (Uptis, na sigla em inglês) poderá estrear em um novo carro elétrico Chevrolet Bolt planejado pela GM, possivelmente já em 2024. Os pneus Uptis são feitos de resina de alta resistência, embutida com fibra de vidro e borracha composta (a Michelin já registrou 50 patentes sobre esse material) para criar uma estrutura de rede que envolve uma roda de alumínio. Cyrille Roget, especialista em ciência e inovação do fabricante francês, não confirma as notícias sobre o Chevrolet Bolt, mas contou à BBC que a Michelin terá mais novidades para o final de 2022. A Michelin é líder de mercado no setor de rodas sem ar. Sua roda-pneu Tweel - do inglês tyre (pneu) + wheel (roda) - existe desde 2005 e é usada em veículos de baixa velocidade, como equipamentos agrícolas. Mas otimizar essa tecnologia para veículos rodoviários é um desafio completamente diferente, segundo Roget: "temos 130 anos de experiência e conhecimento aperfeiçoando estruturas infláveis como pneumáticos, [mas] a tecnologia sem ar é muito recente". E o Uptis é apenas uma etapa rumo a algo maior. A empresa que nos deu o boneco inflado da Michelin planeja criar, em alguns anos, um pneu que não tenha ar, conectado à internet, impresso em 3D e feito totalmente de materiais que podem ser fundidos e reutilizados. E, segundo a Michelin, ele não precisaria de manutenção, exceto por algumas recauchutagens ocasionais. O grande peso das baterias faz com que as estruturas sem ar sejam particularmente apropriadas para os veículos elétricos. "Você pode carregar mais peso com sensação mais confortável que com pneus a ar", afirma Rachita. Mas, por outro lado, os pneus sem ar têm maior contato com a rodovia, o que aumenta o atrito. Isso aumenta o consumo de energia para fazer os pneus se moverem, com consequências para a vida útil e a capacidade da bateria. E existe o ruído - o zumbido da borracha sobre o asfalto. "Como o som do motor não existe nos carros elétricos, os pneus tornam-se a principal fonte de ruído", segundo Matt Ross, editor-chefe da revista britânica Tire Technology International. Além disso, a rigidez dos raios plásticos transmite mais vibrações através da suspensão. Ele acredita que poderá ser preciso convencer os motoristas acostumados ao desempenho dos pneus a ar sobre o uso da nova tecnologia. Mais importante que a percepção dos consumidores, entretanto, é a decisão dos órgãos reguladores. Os governos exigirão rigorosos testes de segurança e a padronização das normas. E os fabricantes de pneus precisarão investir pesado em novas instalações de fabricação e no desenvolvimento de cadeias de fornecimento. Tudo isso levará anos. Os fabricantes de pneus esperam que os primeiros usuários em áreas específicas ajudem a popularizar a tecnologia. "Os pneus não-pneumáticos (NPTs na sigla inglesa) são particularmente interessantes para setores como o militar, de assistência a desastres, veículos de segurança e maquinário especializado", afirma Klaus Kraus, chefe de pesquisa e desenvolvimento na Europa da companhia sul-coreana Hankook. A Hankook divulgou a última versão do seu NPT i-Flex em janeiro. Menor que os pneus convencionais, a empresa afirma que seus raios de poliuretano entrelaçados em favo de mel formam uma inovação para suportar a tensão lateral e horizontal. A japonesa Bridgestone - líder mundial na fabricação de pneus - está interessada em aplicações industriais na agricultura, mineração e construção, onde poderá haver alta demanda de clientes que sofrem grande perda de produtividade com o desgaste dos pneus. Pelo menos inicialmente, os pneus sem ar terão um preço mais alto. Mas a capacidade de recauchutagem regular e impressão 3D poderá mudar esse jogo. Especialistas especulam que talvez os consumidores nem precisem comprar os pneus inicialmente. Eles seriam fornecidos de graça e o pagamento seria por quilômetro rodado, com sensores monitorando seu uso. É uma ilustração do caminho da tecnologia para o pneu do futuro, segundo Sosia Causeret Josten, analista da divisão de Inteligência de Pneus Sightline da Goodyear. Único contato entre a rodovia e o veículo, os pneus oferecem enorme potencial. Talvez, graças aos algoritmos e à computação em nuvem, os veículos conectados possam fornecer informações sobre os locais onde o governo precisa fazer reparos em rodovias ou depositar cascalho durante os invernos mais frios. Outro exemplo são os sistemas de freios automáticos. "Se o sistema de freio antitrava (ABS, na sigla em inglês) souber que o veículo está usando pneus de verão com metade do uso, ele pode reagir com maior rapidez. Essa vantagem pode ser importante no futuro com os carros autônomos, quando o veículo precisa reagir sozinho", afirma ela. É claro que nem toda essa tecnologia precisa ser exclusiva dos pneus sem ar. E nem todos os fabricantes estão convencidos de que os NPTs são o futuro. "No momento, acreditamos que os pneumáticos são a melhor opção para a maioria dos veículos", segundo Denise Sperl, diretora de pesquisa e desenvolvimento de pneus automotivos do fabricante alemão Continental. Os pneus sempre precisarão "atender simultaneamente diversas exigências de segurança, conforto, desempenho e sustentabilidade" e a borracha a ar permanece sendo o melhor consenso, segundo Sterl. A Continental está desenvolvendo um sistema autoinflado, com bombas e sensores nas rodas que ajudam a manter a pressão nos níveis ideais. Como todos os fabricantes, a companhia alemã está procurando produtos "mais verdes". Poliéster de garrafas plásticas recicladas será usado em breve nos seus pneus de qualidade superior. E a Continental e a Goodyear estão pesquisando um tipo de planta dente-de-leão que produz látex similar às seringueiras. Mas as alternativas sustentáveis aos materiais convencionais são disponíveis apenas "de forma limitada", segundo Sperl. Há uma razão para os pneumáticos serem usados por tanto tempo: eles funcionam melhor. "Seguimos convencidos disso", conclui ela.
2022-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-61848995
sociedade
'Desculpe incomodar, mas…': 5 conselhos para cultivar a arte da comunicação assertiva
Espero que você não se importe que eu diga isso... Sinto muito incomodá-lo... Desculpe, tenho muito o que fazer, mas se você quiser... Essas são frases clássicas que costumam ser usadas quando pedimos ou expressamos o que queremos de maneira pouco clara ou de forma indireta — e, há mais de quatro décadas, objeto de estudo da psicóloga e escritora Anne Dickson, que ensina o poder da comunicação assertiva. Em suas próprias palavras, a comunicação assertiva é aquela "direta e clara, mas não violenta". "Isso é importante. Você não anula, diminui ou menospreza alguém, mas se comunica colocando suas necessidades e às do interlocutor como iguais." "Significa que você deve assumir responsabilidade pelo que quer e ter clareza sobre isso", acrescenta a psicóloga. "Imagine que alguém o criticou — ninguém gosta de ser criticado — e colocou um rótulo em você: que você colabora pouco, por exemplo", ilustra ela. "Uma opção é reagir abruptamente e ficar na defensiva, atacar a outra pessoa, apontar suas falhas. E aí você se envolve em uma pequena batalha." Fim do Matérias recomendadas "Outra opção seria dizer: 'Não concordo muito que eu não esteja cooperando. É muito genérico. Estou interessado no que você quer dizer, mas você pode ser mais específico?'" "Esse é apenas um exemplo — você mantém um diálogo em vez de simplesmente encerrar a conversa." Isso não significa que você deixe seus sentimentos de lado, enfatiza a especialista. Estar consciente sobre eles "é uma parte muito importante, porque, se não o fizermos, tendemos a distorcer nossa linguagem corporal ou tom de voz, a maneira como olhamos para alguém — e esse tipo de coisa comunica três quartos do que expressamos, não apenas palavras." Assim, a especialista compartilha 5 dicas rápidas para melhorar a assertividade da nossa comunicação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast 1) Dê espaço a si mesmo para refletir "Muitas vezes é difícil para nós dizer 'não' de cara quando alguém nos pede alguma coisa", diz Dickson. "Em vez de balbuciar algo vago ou concordar com algo que você não quer fazer e depois ter que inventar uma desculpa, dê tempo a si mesmo. Se você sentir alguma hesitação quando perguntado sobre algo, diga claramente: 'Eu não sei. Eu gostaria de uma hora (um dia ou uma semana) para pensar sobre isso." "Dessa forma, você tem uma chance de elaborar melhor sua resposta sem a pressão do momento." 2) Reconheça seus sentimentos "Aprenda a identificar e reconhecer um sentimento (ansiedade, desconforto, raiva, dor) sem se autocensurar. Reconhecer seus sentimentos é um primeiro passo importante na comunicação assertiva, porque fingir não sentir algo enfraquece e distorce o que você quer dizer." "Depois de fazer isso, você pode aprender a expressar seus sentimentos em palavras." 3) Ouça o que sua intuição lhe diz "Se sua intuição lhe diz que você não pode confiar em uma pessoa ou situação, essa é a sua realidade." "Confie em sua voz interior em vez de dizer a si mesmo que você deve ser racional ou se apegar a uma fantasia que você gostaria que fosse real." 4) Não tente ser querido o tempo todo "A necessidade de aprovação mina nossa autoridade." "Sair de uma situação com seu respeito próprio preservado também inspirará respeito nos outros, o que em muitas situações é mais apropriado do que fazer com que as pessoas gostem de você o tempo todo." "Pratique o exercício da autoridade de forma não-agressiva. Quando você emite decisões, dá instruções ou faz críticas com clareza, um compromisso com a igualdade significa dar à outra pessoa o espaço para expressar sua resposta ao que você diz." 5) Espere até ter atenção plena "Nunca comece a falar com alguém enquanto está olhando para uma tela, está ao telefone, lendo um jornal ou conversando com outra pessoa — ou seja, quando não está prestando atenção em você." "É preciso prática, e você provavelmente vai se sentir desconfortável enquanto espera. Mas se começar a falar enquanto a atenção de alguém está em outro lugar, isso envia uma mensagem sutil de que o que você está dizendo não vale a pena ouvir." Dickson começou a trabalhar com esse tema no início dos anos 1980, quando muitas mulheres viviam com medo de serem rotuladas de dominadoras, más ou irritantes quando expressavam o que queriam, fosse um aumento de salário ou um pedido de ajuda ao parceiro nas tarefas domésticas. Seu livro A Woman in Your Own Right ("Uma Mulher em Seu Próprio Direito", em tradução literal) se tornou um clássico da literatura feminista e foi reeditado várias vezes desde então. Mas será que a comunicação assertiva ainda é uma habilidade que as mulheres precisam aprender, agora que parecem mais confiantes? "O que falta ainda é uma compreensão de como lidar com as coisas quando elas acontecem", disse ela à BBC. "Uma coisa é se sentir confiante nas redes sociais e promover sua imagem. Mas não importa a sua idade, você ainda enfrenta uma situação estrutural." "Digamos, por exemplo, que uma mulher esteja no topo de sua profissão - talvez ela seja uma médica de muito sucesso. Mas, quando confrontada com um colega ou chefe, ela pode se sentir intimidada, desconfortável, sem saber o que dizer." "Por quê? Porque o homem nunca terá dúvidas sobre seu direito de estar no topo, já que ele tem séculos de tradição atrás de si. E uma mulher mais jovem, mesmo que tenha sido criada com um senso de gênero muito mais igualitário, ainda pode entrar em um emprego em que se desdenha de seu trabalho ou se pede que ela faça atividades menores em vez da função para a qual foi contratada." "Uma das coisas mais empoderadoras é saber lidar com situações como essas."
2022-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61854663
sociedade
Natação barra de competições femininas as atletas trans que passaram por puberdade masculina
A Federação Internacional de Natação (Fina) anunciou no domingo (19/6) a decisão de barrar a participação de atletas transgênero das competições de elite em categorias femininas caso tenham passado por alguma das etapas da puberdade masculina. Para que possam entrar nas competições femininas, conforme as novas regras, as atletas precisam ter feito a transição de gênero até os 12 anos de idade. A mudança foi definida durante o congresso geral extraordinário da Fina, em Budapeste, onde acontece o campeonato mundial de natação. Aprovada com 71% dos votos dos 152 membros da federação, foi descrita pela entidade como "apenas um passo em direção à total inclusão" de atletas transgênero. Em paralelo, a federação informou que vai criar uma categoria aberta para atletas trans. Mais cedo, os membros da Fina haviam discutido as conclusões do relatório de uma força-tarefa sobre o tema composta por figuras importantes do mundo da medicina, do direito e do esporte. Fim do Matérias recomendadas "A abordagem da Fina na elaboração desta política foi ampla, baseada na ciência e na inclusão. E, mais importante, enfatizando a equidade competitiva", declarou Brent Nowicki, diretor-executivo do órgão. O presidente da federação, Husain Al-Musallam, afirmou que a organização está tentando "preservar os direitos de nossos atletas de competir", mas também "proteger a equidade competitiva". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "A Fina sempre acolherá todos os atletas. A criação de uma categoria aberta significará que todos terão a oportunidade de competir em nível de elite. Como isso ainda não foi feito, a federação precisará abrir o caminho. Quero que os atletas se sintam incluídos e capazes de desenvolver suas ideias durante esse processo." A ex-nadadora Sharron Davies, que se posiciona contra a participação de atletas transgênero na elite da natação feminina, disse estar "orgulhosa" do esporte e da federação. Em uma manifestação no Twitter, a britânica agradeceu a Fina "por se basear na ciência, conversar com os atletas e treinadores e defender um esporte justo para as mulheres". "A natação sempre acolherá a todos, não importa como você se identifique, mas a equidade é a pedra angular do esporte", completou. Já a organização Athlete Ally, um grupo de defesa dos direitos LGBT que organizou uma carta de apoio à nadadora americana trans Lia Thomas em fevereiro, classificou a nova política como "discriminatória, nociva, não-científica e não-alinhada com os princípios do COI [Comitê Olímpico Internacional] de 2021". "Se realmente queremos proteger os esportes femininos, devemos incluir todas as mulheres", pontuou o grupo em seu perfil no Twitter. A mudança vem na esteira de uma decisão semelhante anunciada na quinta-feira (16/6) pela União Ciclística Internacional (UCI), entidade reguladora do ciclismo. O esporte também limitou o espaço para participação de atletas trans nas competições, dobrando o período de tempo para que uma atleta trans possa competir depois de concluída sua transição de gênero. A regra anterior estabelecia que os níveis de testosterona da atleta deveriam estar estáveis em patamar inferior a 5 nanomoles por litro por um período de 12 meses antes da competição. Com a mudança, o nível de testosterona permitido caiu para 2,5 nmol/L e o período de tempo dobrou para 24 meses. O debate em torno da participação de atletas trans nas competições de esportes aquáticos ganhou os holofotes com o caso da americana Lia Thomas. Thomas nadou pela equipe masculina da Pensilvânia por três temporadas antes de iniciar a terapia de reposição hormonal em 2019. Desde então, quebrou recordes com a equipe de natação da universidade. Mais de 300 atletas universitários, da equipe dos EUA e nadadores olímpicos assinaram uma carta aberta em apoio a Thomas e a todos os nadadores transgênero e não-binários, mas outros esportistas e organizações expressaram preocupação em torno da questão. Algumas das colegas de equipe de Thomas e seus pais escreveram cartas anônimas apoiando seu direito à transição, mas acrescentando que julgavam ser injusto ela competir como mulher. O USA Swimming, órgão regulador da natação nos EUA, atualizou sua política para nadadores de elite em fevereiro para permitir que atletas trans participem de competições e estabeleceu critérios com objetivo de reduzir quaisquer vantagens desleais, incluindo testes de nível de testosterona nos 36 meses antes das competições. No ano passado, a levantadora de peso Laurel Hubbard, da Nova Zelândia, tornou-se a primeira atleta abertamente transgênero a competir em uma Olimpíada em uma categoria de sexo diferente daquele com que nasceu. Para o fisiologista e especialista em desempenho humano Michael Joyner, "a testosterona na puberdade masculina altera os determinantes fisiológicos do desempenho humano e explica as diferenças baseadas no sexo na performance humana, consideradas claramente evidentes aos 12 anos". "Mesmo que a testosterona seja suprimida, seus efeitos de melhoria de desempenho serão mantidos." Ativista, pesquisador e advogado, Adrian Jjuuko ressalta que a mudança anunciada pela Fina "enfatiza que nenhum atleta é excluído de competições da federação ou de estabelecer recordes com base em seu gênero legal, identidade de gênero ou expressão de gênero". Assim, "[a categoria aberta proposta] não deve se tornar uma categoria que se soma aos níveis já existentes de discriminação e marginalização contra esses grupos. Vejo esta política como apenas o primeiro passo para a inclusão e apoio total à participação de atletas transgênero e de gênero diverso em esportes aquáticos, e há muito mais a ser feito." Sandra Hunter, fisiologista do exercício especializada em diferenças de sexo e idade no desempenho atlético, argumenta que, "dos 14 anos para cima, a diferença entre meninos e meninas é substancial. Isso se deve às vantagens desenvolvidas devido às adaptações fisiológicas da testosterona e à presença do cromossomo Y". "Algumas dessas vantagens físicas são de origem estrutural, como altura, comprimento dos membros, tamanho do coração, tamanho do pulmão e serão mantidas, mesmo com a supressão ou redução da testosterona que ocorre na transição do masculino para o feminino." A ex-campeã olímpica e mundial de natação Summer Sanders defende a existência de categorias femininas e masculinas e, em paralelo, de categorias para mulheres trans e homens trans. "A competição justa é um ponto forte e básico de nossa comunidade - essa abordagem preserva a integridade do processo esportivo existente hoje, no qual milhões de meninas e mulheres participam anualmente." A conversa em torno da inclusão de mulheres trans no esporte feminino divide opiniões dentro e fora do mundo do esporte. Muitos argumentam que as mulheres trans não devem competir em categorias femininas por conta das vantagens físicas que possam ter; outros argumentam que o esporte deveria ser mais inclusivo. O presidente da World Athletics (Associação Internacional de Federações do Atletismo), Lord Coe, disse que a "integridade" e o "futuro" do esporte feminino se tornariam "muito frágeis" se as organizações esportivas cometerem erros no desenho dos respectivos regulamentos para atletas transgênero. O cerne do debate em torno da presença de mulheres trans nas competições femininas envolve o complexo equilíbrio entre inclusão, equidade esportiva e segurança - essencialmente, se mulheres trans podem competir em categorias femininas sem que tenham uma vantagem desleal ou que apresentem uma ameaça de lesão para as concorrentes. Mulheres trans têm que aderir a uma série de regras para competir em esportes específicos, incluindo, em muitos casos, reduzir seus níveis de testosterona a uma certa quantidade e por um determinado período de tempo antes de competir. Há preocupações, no entanto, como destacado na decisão da natação, de que as atletas continuem tendo uma vantagem física ao passarem pela puberdade masculina, mesmo que posteriormente reduzam seus níveis de testosterona.
2022-06-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61860367
sociedade
Depressão pós-parto masculina: condição silenciosa que afeta milhões de pais
Para David Levine, o divisor de águas veio quando ele imaginou que tivesse sacudido seu bebê. O ano era 2013 e seu filho tinha duas semanas de idade. Ele o havia colocado em uma esteira "talvez de forma um pouco mais bruta do que deveria", relembra ele. Na época, incapaz de pensar com clareza, ele tinha certeza de que tinha errado. E, como pediatra, ele sabia que sacudir o bebê pode causar lesões cerebrais e até a morte. Ele ficou horrorizado. A dor e a frustração de Levine vinham se acumulando desde o nascimento da criança. Como muitos recém-nascidos, levou tempo para que o bebê se ajustasse ao mundo exterior. Mas, para Levine, a impressão era que ele chorava sem parar. "Eu levei para o lado pessoal, 'estou falhando, não estou fazendo meu trabalho aqui'", ele conta. "E também comecei a sentir que era dirigido a mim, que o meu filho estava chorando porque não gostava de mim." Fim do Matérias recomendadas Levine adorava crianças. Desde que começou sua carreira como pediatra em Nova Jersey, nos Estados Unidos, ele havia ouvido de vários pais: "você será um pai muito bom algum dia." Ele havia ficado entusiasmado quando sua esposa ficou grávida e deu à luz. Levine se sentia útil quando ela teve dificuldades para amamentar e podia usar seu conhecimento médico para ajudar a incorporar a fórmula na alimentação do bebê. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, depois, o seu papel mudou. Ele não precisava ser médico; ele precisava ser pai. E, quando surgiram as dificuldades com as tarefas práticas da paternidade, como fazer seu filho parar de chorar, Levine achou que a culpa fosse dele. "Foi quando as coisas começaram a se agravar", ele conta. Levine menosprezava seu filho e gritava com ele. Ele começou a ver imagens de violência com seu filho e consigo próprio. E não sabia como fazer as coisas melhorarem. "Eu dizia para a minha esposa que era o fim da nossa vida", relembra. "Tudo o que eu conseguia visualizar era o ciclo de desespero que seriam as nossas vidas." No seu trabalho como médico, Levine examinava as mães para diagnosticar possíveis casos de depressão pós-parto (DPP), uma doença depressiva que aparece no primeiro ano depois de dar à luz. Ela é normalmente considerada uma condição feminina. Mas poderia ocorrer também com os pais? Levine nunca havia ouvido falar nisso e não era o único. A DPP é uma condição de saúde mental que pode fazer com que as mães e os pais se sintam mal permanentemente, apáticos ou até com pensamentos suicidas no primeiro ano após o parto. É um fenômeno bem conhecido entre as mulheres, embora ainda permaneça subdiagnosticado em todo o mundo e nem sempre seja adequadamente tratado, o que às vezes traz consequências trágicas. O que é menos conhecido, mesmo entre os médicos, é que os homens também podem ter depressão pós-parto. Muitos dos recursos que podem ajudar no diagnóstico e tratamento da DPP (que vão desde os questionários de diagnóstico usados pelos médicos até as redes de apoio, como grupos de pessoas) foram estabelecidos para as mulheres. Mesmo os sintomas normalmente associados à depressão pós-parto costumam referir-se mais às mulheres do que aos homens. Acrescente-se a isso a estigmatização que os homens podem sentir ao expressar problemas de saúde mental e os especialistas afirmarão que não são apenas as mães que estamos deixando de diagnosticar com DPP. Milhões de pais deprimidos podem também estar desamparados. "Embora tenha aumentado a circulação de informações sobre as doenças mentais, como a depressão pós-parto nas mulheres, é fato que ela tem sido muito menos reconhecida nos homens", afirma Grant Blashki, consultor clínico da organização australiana de saúde mental Beyond Blue. Ainda assim, estima-se que cerca de 10% dos pais sofram depressão no primeiro ano após o nascimento do bebê, o que é o dobro da incidência dessa condição na população geral masculina. E há pesquisas que indicam que 10% talvez seja muito pouco. No período de três a seis meses após o parto, cerca de um em cada quatro pais exibe sintomas de depressão. Muitos pais também sofrem de ansiedade generalizada, transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e estresse pós-traumático, segundo Daniel Singley, psicólogo em San Diego, na Califórnia (Estados Unidos), especializado em problemas masculinos. Mas relativamente poucos desses homens expressarão seus problemas (ou mesmo acreditarão que têm um problema, para começar). "Na minha experiência, é interessante que, mesmo entre pessoas com boa escolarização ou profissionais de saúde, ainda haja alto nível de estigmatização sobre os problemas de saúde mental entre os homens", afirma Grant Blashki. "E isso pode resultar em negação, baixa procura de ajuda ou na sensação de que você deveria simplesmente resolver aquilo sozinho." Geralmente, os homens tendem a evitar cuidados médicos, mais do que as mulheres. No Canadá, por exemplo, pesquisadores concluíram que cerca de oito em cada dez homens não procuram assistência médica a menos que suas parceiras os convençam. Mas também existem, em muitos casos, sensações de constrangimento ou vergonha por ser um homem (especialmente um pai) com depressão. "[Os homens] realmente não querem buscar ajuda para a saúde mental, pois isso é estigmatizado e feminizado. E eles com certeza não querem buscar ajuda durante o período perinatal", afirma Singley. Ele prossegue explicando que, em casais heterossexuais com filhos, a mensagem normalmente recebida pelo pai é de que a gravidez e o parto fazem parte do universo feminino. Os pais podem ser excluídos das consultas pré-natal, dos cursos ou até do próprio parto. Quando estão presentes, muitas vezes são instruídos apenas a oferecer apoio, independentemente da ansiedade e do medo que eles também possam estar sentindo. Singley ressalta que esse tipo de mensagem ativa o estereótipo masculino de "prover e proteger", ignorando um elemento fundamental: os pais precisam apoiar as mães, mas eles também precisam de apoio. Como disse um pai aos pesquisadores de um estudo recente no Reino Unido, "olhando em retrospectiva, as instituições, a família e eu próprio nos concentramos em como eu apoiaria minha esposa e a ênfase era que eu permanecesse forte". É claro que existe a pressão dos estereótipos masculinos. Se os pais devem ser fortes e fornecer apoio, o que acontece com eles se tiverem depressão? No mesmo estudo britânico, outro participante afirmou que se "sentia um fracasso, não um verdadeiro homem". Outro perguntou: "que tipo de homem fica com depressão depois de ter um bebê?" E alguns eram ainda mais duros consigo próprios sobre receber tratamento. Um homem que recebeu licença do trabalho depois de um diagnóstico de problema de saúde mental afirmou que, quando ficou difícil formar uma nova rotina com o bebê, a sua depressão piorou, "pois eu senti que não estava apenas fracassando como pai, mas como marido". Já outros mencionaram preocupações com a possibilidade de suas parceiras os deixarem. "Ainda são frequentes muitos mitos sobre problemas de saúde mental como sinal de fraqueza ou algo que o homem deveria simplesmente poder resolver sozinho", concorda Blashki. "Esse tipo de mito pode ser intensificado pela sensação de que o homem deveria ser a parte forte durante essa grande fase de transição para a mãe e o bebê." Levine, por exemplo, só contou para sua esposa como era forte a sua DPP cerca de um ano mais tarde, quando, depois de conversar sobre DPP com um paciente, que indicou seu nome adiante, foi convidado a compartilhar sua experiência no programa de entrevistas de Charlie Rose, nos Estados Unidos. "Ela não sabia que eu tinha depressão", relembra. "Ela não sabia que eu tinha certos sentimentos com relação ao nosso filho. E ela também não sabia que parte da razão por que nunca contei a ela foi porque eu achava que cairia no seu conceito." "Os homens não falam sobre seus sentimentos, certo? Nós precisamos ser a rocha para nossas esposas. Eu não tinha ninguém com quem falar sobre isso. E achava sinceramente que, se eu contasse para ela, ela iria me deixar. E a minha esposa é uma pessoa maravilhosa", prossegue Levine. Outro obstáculo é o fato de que a depressão pós-parto muitas vezes é associada principalmente às mulheres. Por isso, é menos provável que um homem, ou as pessoas à sua volta, incluindo profissionais médicos, reconheçam os sintomas da DPP. É verdade que quem dá à luz tem mais possibilidade de ter depressão no período pós-parto que os seus parceiros. Um estudo concluiu que, em média, cerca de 24% das mães têm depressão, contra 10% dos pais. E também é verdade que parte dos motivos da DPP das mães são as mudanças hormonais no cérebro que acontecem ao dar à luz. Os sintomas também tendem a ser diferentes nos homens e nas mulheres. Enquanto a imagem comum da DPP pode ser uma mãe chorosa e incapaz de sair da cama, os pais com DPP são mais propensos a adotar comportamentos de fuga: aumentar a carga de trabalho, por exemplo, ou passar mais tempo ao telefone. E eles estão mais sujeitos a abusar de substâncias ou do álcool e a ser indecisos, irritáveis ou autocríticos. "Às vezes, [os homens] mostram o que chamamos de 'apresentação depressiva masculina mascarada', que parece um pouco diferente da forma típica em que pensamos sobre a depressão", afirma Singley. "Pode haver tendência à somatização", que é a presença de sintomas clínicos em vez de emocionais, como dores de estômago ou enxaquecas. Algumas pessoas afirmam que os pais não estão sofrendo DPP "real", mas sim depressão genérica, um pensamento exacerbado pelo fato de que os pais são mais propensos à depressão pós-parto se já tiverem sofrido depressão anteriormente. Embora haja alguma verdade nisso, é algo enganoso, segundo Michael Wells, professor do Departamento de Saúde da Mulher e da Criança do Instituto Karolinska em Estocolmo, na Suécia, e pesquisador de saúde pós-parto e DPP masculina. Na verdade, não só os pais são mais propensos à depressão pós-parto se tiverem sofrido depressão no passado, mas também as mães. "Não são só os hormônios", afirma Wells. Além disso, pesquisas recentes concluíram que os hormônios dos pais também se alteram desde o período pré-natal. Os níveis de testosterona dos pais caem durante a gravidez da parceira, por exemplo, enquanto o estrogênio aumenta mais para o final da gestação. E existem evidências de que a DPP paterna possa estar relacionada com essas alterações. Causas psicológicas à parte, mães e pais comprometidos enfrentam uma série de mudanças depois que o bebê nasce. "O ajuste ao novo bebê, mudanças no relacionamento, mudanças na vida sexual do casal, novas responsabilidades, lidar com o estresse do parceiro e pressões financeiras", afirma Blashki. "Pode ser, de forma mais geral, uma época de reflexão sobre a identidade da pessoa e muitos homens podem ficar preocupados com a responsabilidade necessária para cuidar de um bebê." Fatores de risco específicos podem também fazer com que alguns pais sejam mais propensos à DPP. Um deles é a saúde mental da parceira. O risco de o pai desenvolver depressão pós-parto é mais de cinco vezes maior se a mãe tiver DPP (e, se o pai tiver DPP, a mãe também é mais propensa a desenvolver a condição). Outros fatores de risco incluem a falta de estabilidade no emprego, gravidez não planejada, baixa satisfação no relacionamento, falta de informação sobre a gravidez e o parto, pouco apoio social, falta de sono e expectativas irreais da paternidade. É interessante observar que nós associamos a DPP aos pais novos, mas a pesquisa desenvolvida por Wells e seus colaboradores concluiu que não são apenas os pais de primeira viagem que apresentam risco de depressão pós-parto. Muitos pais com outros filhos também desenvolvem DPP. O fato de que mesmo alguém como Levine, que tinha um emprego e um casamento estáveis, nenhum histórico de problemas de saúde mental e pleno conhecimento médico sobre a gravidez e os bebês, pudesse ter DPP tão rápida e profundamente demonstra que essa condição pode afetar qualquer pessoa. De sua parte, Levine acredita que sua DPP tenha sido exacerbada por não compreender totalmente como pode ser difícil ser pai, ou qual era o comportamento normal dos recém-nascidos. Ele não percebeu que muitos bebês simplesmente acordam com frequência ou choram muito. E achava que a culpa era dele próprio. Isso soa muito familiar para Mark Williams, do grupo de apoio britânico Fathers Reaching Out. Quando seu bebê nasceu, em 2004, Williams, que mora no País de Gales, era trabalhador autônomo. Ele esperava voltar ao trabalho em duas semanas, mas nada saiu conforme o planejado. Primeiro, o parto da sua esposa foi traumático. "Tive um ataque de pânico na sala de parto e o médico disse que a minha esposa iria para a sala de cirurgia" para uma cesariana não programada, segundo ele. E, enquanto ela estava lá, ninguém disse a ele o que estava acontecendo. Ele achava que a esposa e o bebê iriam morrer. Depois desse incidente traumático, Williams foi lançado aos desafios da vida com um recém-nascido, sofrendo ainda a pressão de voltar ao trabalho "sem dinheiro e com a hipoteca para pagar". Sua esposa também teve forte depressão pós-parto. "Comecei a consumir álcool e evitar situações. Minha personalidade mudou", ele conta. Williams sentia raiva e era agressivo. Certa vez, ele socou o sofá com tanta força que quebrou a mão. Ele tomou conhecimento da DPP masculina em uma conversa casual com alguém na academia. A esposa daquela pessoa também teve DPP e os dois homens acabaram se sentindo deprimidos. Mas, quando Williams procurou saber quais tipos de grupos existiam para os pais, como havia para as mães, ele voltou com as mãos vazias. Ao longo dos anos, ele conseguiu superar sua depressão com terapia cognitivo-comportamental, medicação e mais apoio. Williams também recebeu diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Mas ele queria ter certeza de que, se outros pais superassem a estigmatização da DPP masculina e pedissem ajuda, eles poderiam encontrá-la. "Não havia nada para eles. Ninguém realmente falava sobre aquilo", ele conta. Em 2010, Williams lançou a Fathers Reaching Out, para conectar os pais e oferecer apoio e aconselhamento sobre saúde mental. Essa organização se dissolveu posteriormente por "falta de financiamento", segundo Williams. Ele rapidamente ouviu não apenas os pais, mas também suas parceiras. "As mães diziam 'meu marido está com muitas dificuldades, seu comportamento mudou desde a gravidez e o nascimento do bebê'", ele conta. Williams dedicou-se não só a apoiar outros pais, mas também ao ativismo. Ele dá palestras, trabalha com acadêmicos, escreveu um livro, criou o Dia Internacional da Saúde Mental dos Pais e fez lobby junto ao governo britânico para que oferecesse análises de saúde mental aos pais se a parceira sofresse de alguma condição de saúde mental, com sucesso. A consciência sobre a saúde mental em geral e a DPP masculina em particular aumentou, segundo Williams, mas não o suficiente. "Melhorou muito, mas ainda falta muito reconhecimento", afirma ele. "As orientações NICE [as recomendações nacionais de saúde e assistência da Inglaterra] não mencionam os pais. A OMS só tem informações sobre as mães, não sobre os pais. É preciso um grande impulso nacional, ou que alguma celebridade venha e realmente leve isso adiante", segundo Williams. Michael Wells destaca outro problema, que é o fato de que, como a DPP foi considerada um transtorno de saúde mental das mulheres por muito tempo, as ferramentas de diagnóstico utilizadas pelos profissionais de saúde (que normalmente consistem em um questionário a ser preenchido pela paciente durante a consulta) foram idealizadas para as mulheres. Ou seja, os médicos são menos propensos a detectar aquelas manifestações cruciais de DPP masculina e emitir o diagnóstico correspondente. E ainda existem profissionais da medicina que pensam que a DPP é um problema só das mulheres, segundo Wells. Ele conta: "falei [recentemente] com uma enfermeira e perguntei 'vocês estão diagnosticando pais?'. Ela respondeu 'não, os pais não ficam com depressão'. Para ela, tudo era hormonal e tinha a ver com dar à luz. Por isso, os pais não podiam ter." Não buscar ajuda pode ter um alto preço. Os homens dos países ocidentais têm quatro vezes mais propensão ao suicídio que as mulheres (naturalmente, não só devido à DPP). E existe também o efeito sobre as famílias. Os pais desempenham um papel fundamental no desenvolvimento inicial dos bebês. Um estudo demonstrou, por exemplo, que, se o pai sofrer de depressão no primeiro ano de vida de um bebê, a criança terá maior probabilidade de enfrentar mais dificuldades de comportamento, ter desenvolvimento mais fraco e menor bem-estar com quatro ou cinco anos de idade. Uma solução para ajudar no diagnóstico e tratamento da DPP, segundo os especialistas, é a inclusão dos pais, priorizando sua saúde mental além da saúde das mães, desde o princípio. Wells, por exemplo, descobriu na sua pesquisa que, quando os pais recebem mais apoio das parteiras, enfermeiras e das suas parceiras, eles têm menos possibilidade de desenvolver depressão. "O pai muitas vezes não recebe atenção dos médicos ou das enfermeiras", afirma David Levine. "Você estabelece essas famílias com a ideia de que a mãe é a mais importante e o pai é secundário. E isso não é verdade." "Minha esposa não sofreu depressão pós-parto; eu tive. Mas a minha depressão pós-parto poderia ter despertado DPP ou ansiedade nela. Ou, se ela tivesse tido [DPP], haveria 50% de possibilidade que eu também tivesse. E ninguém conta essas coisas. Os pediatras, que são os únicos médicos que normalmente veem os dois pais a todo momento, não estão diagnosticando essas famílias", prossegue ele. Daniel Singley acrescenta que também é importante deixar claro para os pais que eles precisarão de apoio. Esse apoio pode ser algo como procurar amigos que são pais. Ou podem ser grupos de pais, onde os homens se reúnem para falar sobre os desafios da paternidade. Além das comunidades presenciais, esses grupos também podem reunir-se online, como fazem os grupos organizados pela Postpartum Support International, norte-americana, ou pelo grupo de apoio britânico Pandas. Mas também é preciso que os homens se abram. Somente falando sobre os problemas de saúde mental poderemos desestigmatizá-los, ajudando a garantir que os homens consigam ajuda quando precisarem. Todos os especialistas estão de acordo neste ponto: Levine, Singley, Wells e outros. E eles acrescentam que o aumento da licença-paternidade e mudanças da cultura do ambiente de trabalho, para que passe a aprovar e não estigmatizar os pais que tirarem licença-paternidade, também fariam diferença. Os pais podem não precisar se recuperar fisicamente do parto como as mães, mas também precisam de tempo para ajustar-se. E a licença-paternidade pode também permitir que os pais se sintam mais empoderados e comprometidos, o que pode protegê-los contra a depressão pós-parto. Quando o filho de David Levine completou três meses de idade, ele tirou licença-paternidade. "Foram três semanas e meia em casa com ele que me causaram imenso impacto, pois eu era seu único cuidador, era responsável por ele e ganhei confiança nas minhas habilidades como pai", relembra ele. "Eu precisava alimentá-lo e vesti-lo, levá-lo no carro para encontrar minha esposa na cidade, ir à casa dos meus pais ou visitar um amigo para almoçar. Comecei a perceber que eu conseguia fazer essas coisas. E isso trouxe um grande impacto para a minha autoestima", ele conta. Levine afirma que, de forma geral, as pessoas também precisam ser mais honestas sobre a paternidade. Ele fala frequentemente às pessoas sobre o que ele chama de "a Grande Mentira": a ideia de que você pode ter tudo. Você pode trabalhar em tempo integral, ser pai em tempo integral e tudo parecerá como nas imagens brilhantes de quartos de bebê perfeitos e filhos sorrindo que você vê nas redes sociais. As pessoas muitas vezes pensam nisso sobre as mães. Mas também pode ocorrer com os homens, que podem ainda sofrer a pressão de gênero para prover financeiramente suas famílias. "Por isso, quando as coisas não parecem sair como você achava que deveriam parecer, você problematiza isso e diz 'devo ser eu. Eu devo estar estragando tudo. Porque vi pessoas lidando com isso a vida inteira'", explica ele. "Não deve ser motivo de vergonha dizer apenas 'sim, ser pai é difícil. Ser pai é divertido. Mas ser pai é difícil, especialmente no começo." Para Levine, o medo de admitir que ele tinha problemas fez com que precisasse de mais algumas semanas, e incentivo da sua esposa, para buscar ajuda. Ele falou com uma terapeuta na empresa onde trabalhava. Ela era especialista em depressão pós-parto e compreendia que os homens podiam ter DPP, mas nunca havia sido procurada antes por um paciente homem. Levine começou a fazer terapia cognitivo-comportamental. E, com a ajuda de uma enfermeira para o bebê à noite, ele começou a dormir melhor. Mas ele acrescenta que nem tudo eram flores. Quando seu segundo filho nasceu, quatro anos depois, Levine teve DPP novamente. Mas, desta vez, ele reconheceu os sintomas. Ocupando a diretoria de uma organização chamada Postnatal Support International desde 2018, da qual será vice-presidente a partir de julho, Levine irá falar sobre DPP masculina na convenção deste ano da Academia Norte-Americana de Pediatria. Ele conta sua experiência a todos os pais que chegam com um novo bebê. Sua missão é desestigmatizar a DPP masculina. Levine ainda sabe que tudo poderia ter sido muito diferente. "Quando passei por isso, se não fosse pediatra, se não tivesse o trabalho que eu tinha, é possível que eu não estivesse agora falando com você", relata ele. "Porque algo realmente terrível poderia ter acontecido." - Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e Unidades Básicas de Saúde (UBS) — clínicas da família, postos e centros de saúde; - Unidade de Pronto Atendimento (UPA 24h); - Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU 192); - Hospitais; - Prontos-socorros; Apoio emocional e prevenção ao suicídio:
2022-06-18
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61753907
sociedade
Por que homens são considerados líderes natos e mulheres não?
Quando o "potencial" define a ascensão na carreira, as mulheres parecem perder a disputa para os homens. Por quê? No seu livro Lean In: Women, Work and the Will to Lead (Faça acontecer: mulheres, trabalho e a vontade de liderar, na edição em português), a CEO (diretora-executiva) do Facebook Sheryl Sandberg afirma que a maioria dos homens se candidataria a cargos mesmo que atendessem a apenas 60% das exigências, enquanto as mulheres somente se candidatariam se atendessem a 100% delas. A afirmação de Sandberg foi desmentida posteriormente, por ter se baseado em episódios isolados, não em dados reais — mas essas estatísticas incompletas não desapareceram sozinhas. A frase já foi mencionada em dezenas de postagens virais, artigos e livros e é usada com frequência para comprovar que o potencial dos homens, de alguma forma, é mais valorizado que o das mulheres. Alguma coisa sobre a ideia ressoou tão profundamente nas pessoas que a sua falta de comprovação factual parece não importar — ela abordou um fenômeno que as pessoas vêm observando na própria vida. Surgem agora pesquisas indicando por que a ideia de que o potencial das mulheres é analisado de forma diferente com relação aos homens soa tão real para tantas mulheres. Um novo estudo demonstrou que as mulheres são frequentemente julgadas como tendo menos potencial de liderança que os homens, fazendo com que elas tenham 14% menos probabilidade de serem promovidas todos os anos. Fim do Matérias recomendadas A pesquisa analisou uma grande cadeia de varejo norte-americana e demonstrou que, embora as mulheres atinjam melhores avaliações de desempenho, elas tendem a receber baixas "avaliações de potencial" — uma medida de como seus chefes acreditam que elas poderão crescer e desenvolver-se no futuro. Decidir quem deve ser promovido pode ser algo complicado. Os candidatos precisam demonstrar forte desempenho no seu nível atual e seus chefes também devem acreditar que eles possuem a capacidade de ter bons resultados no nível seguinte. Mas o potencial não é facilmente demonstrado. As medições subjetivas que o determinam abrem a porta para o viés — e o resultado é que as mulheres muitas vezes saem prejudicadas. Alguns argumentam que os gerentes responsáveis estão simplesmente errados e suas inclinações inerentes tornam difícil imaginar mulheres como líderes. Outros afirmam que as mulheres também estão ficando para trás por não se autopromoverem. Mas a questão do mérito versus potencial simplesmente não aparece no ambiente de trabalho — e a solução dessa questão profundamente enraizada está longe de ser algo evidente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nos últimos anos, surgiram mais evidências de que as pessoas simplesmente não veem potencial nas mulheres da mesma forma que veem nos homens. Em um estudo de 2019, quase 200 participantes receberam uma seleção de currículos para um cargo de diretor em uma companhia de tecnologia fictícia. Metade deles salientava os sucessos atingidos pelos candidatos e a outra metade ressaltava o seu potencial. Os pesquisadores facilmente observaram um padrão: os participantes frequentemente avaliavam bem os candidatos homens se eles se concentrassem no seu potencial. Para as candidatas mulheres, valia o oposto — elas eram submetidas a padrões muito mais altos e seu potencial de liderança geralmente era menosprezado. "As características tipicamente associadas pelas pessoas ao sucesso de liderança, como assertividade e força, são também tipicamente associadas à masculinidade", segundo Felix Danbold, professor da Faculdade de Administração do Universidade College London, que estuda como os membros de grupos dominantes reagem ao aumento da diversidade no ambiente de trabalho. "Isso, aliado à cultura em que os homens já detêm a maior parte dos cargos de liderança, faz com que as pessoas imaginem mais facilmente que os homens têm sucesso para liderar. Eles também contam com o benefício da dúvida quando assumem um papel de liderança, enquanto as mulheres enfrentam o ceticismo permanentemente", afirma ele. As mulheres compõem quase a metade dos trabalhadores que entram no mercado de trabalho nos Estados Unidos, mas ainda preenchem apenas cerca de 21% dos cargos de diretoria. Os motivos desse afunilamento são complexos. As mulheres estão mais sujeitas a interromper suas carreiras que os homens, particularmente para priorizar responsabilidades com cuidados familiares. Elas também apresentam menos propensão a candidatar-se a cargos superiores, mesmo na própria empresa. Mas o viés inconsciente e a questão de mérito versus potencial permanecem sendo uma dificuldade significativa para as mulheres que esperam por uma promoção. "Os gerentes responsáveis pelas contratações podem fingir que estão analisando profundamente, mas provavelmente estão decidindo com base na sua intuição", afirma Danbold. "Isso se resume ao fato de que as mulheres não formam o protótipo dos cargos de liderança, o que significa que os gerentes provavelmente têm mais dificuldade para imaginá-las sendo bem sucedidas." Muitas vezes, as empresas menosprezam o potencial de suas funcionárias mulheres, mas muitos especialistas também acreditam que as próprias mulheres se subestimam. A afirmação de Sandberg pode não ser totalmente verdadeira, mas certamente existem dados que indicam que as mulheres são menos propensas a candidatar-se a promoções. Dados indicam que as mulheres tendem a promover menos o seu trabalho, avaliando seu desempenho como se fosse 33% inferior ao dos seus colegas homens com igual desempenho. Gerentes mulheres também são mais propensas a ter menos autoconfiança e menos expectativas de atingir níveis de diretoria ao longo da carreira. Os gerentes responsáveis por contratações podem estar deixando de ver potencial entre suas funcionárias mulheres, mas também é possível que as mulheres não estejam divulgando seu potencial da mesma forma que fazem seus colegas homens. "Comportamentos sociais enraizados fizeram com que as mulheres hesitassem mais para candidatar-se a cargos profissionais", afirma Suki Sandhu, especialista em diversidade e CEO da consultoria de inclusão e diversidade Audeliss and INvolve, com sede no Reino Unido. "Elas são mais propensas a autodepreciar-se e mencionam pontos onde não têm capacidades, em vez de destacar onde são capazes", afirma ele. "Elas também tendem a preocupar-se mais com questões como comprovar suas capacidades, enquanto seus colegas homens são mais confiantes nesse ponto." A questão de mérito versus potencial não aparece apenas no ambiente de trabalho tradicional. Zoë Chance, professora da Faculdade de Administração de Yale, nos Estados Unidos, indica a política como um exemplo de como o potencial das mulheres muitas vezes é subestimado. É comum vermos candidatos homens mais jovens nas eleições, mas as candidatas mulheres tendem a entrar na política com mais idade. Chance afirma que isso ocorre porque as mulheres passam anos acumulando experiência, realizações e reconhecimento antes de considerar-se — e serem consideradas — candidatas confiáveis. Os eleitores e os políticos poderão também agir de forma muito similar aos gerentes responsáveis por contratações. "As mulheres se sentem forçadas a competir com base no seu histórico, enquanto os homens podem competir com sua visão", afirma ela. "Não é coincidência que os políticos jovens que elegemos tendem a ser homens." A falha em ver o potencial das mulheres é consequência de décadas de comportamentos socioculturais profundamente enraizados. Mas é realista imaginar que isso pode ser desfeito? "O importante é concentrar-se em retirar o viés do sistema e não confiar que as pessoas eliminem suas orientações sozinhas, o que levaria muito mais tempo", afirma Chance. "As mulheres são menos dispostas a pedir aumentos e promoções — menos propensas a perceber que elas podem pedir — e é importante que os chefes das mulheres não esperem até que elas peçam alguma coisa." A ideia de que as mulheres não se apresentam suficientemente para promoções ou para falar sobre o seu potencial coloca sobre elas, injustamente, o ônus da solução do problema. Na verdade, nós deveríamos estar nos concentrando em resolver por que as mulheres não se sentem capazes de candidatar-se a promoções — e como as empresas podem garantir que elas sejam avaliadas com justiça quando estiverem concorrendo. Para que essa mudança ocorra, é fundamental desafiar nossas crenças sobre o que é a liderança, mas este pode ser um processo lento e intangível. Sophie Milliken, especialista britânica em recursos humanos e autora do livro The Ambition Accelerator ("O acelerador da ambição", em tradução livre), afirma que também existem medidas práticas que as empresas podem tomar para apoiar suas funcionárias mulheres e reescrever definitivamente a narrativa do mérito versus potencial. "É preciso sempre considerar o apoio específico de que as mulheres precisam no início da carreira", afirma ela. "Mentores podem funcionar bem, além de programas de desenvolvimento dedicados especificamente às mulheres." "Pode-se oferecer treinamento aos gerentes responsáveis por contratações, para incentivá-los a contestar suas próprias predisposições e ter critérios de avaliação robustos", prossegue Milliken. "Facilitadores independentes para contratar e promover funcionários podem [também] ajudar a contestar tendências de forma construtiva." Atualmente, a questão do mérito versus potencial é um círculo vicioso problemático. Quando as pessoas não veem mulheres suficientes em cargos de comando, pode parecer difícil acreditar que elas têm o necessário para liderar. Impulsionando mais mulheres para cargos de diretoria, as empresas podem provar que suas colegas, de fato, têm potencial. E o que elas fizerem quando chegarem lá também poderá ajudar a próxima geração de mulheres a atingir o topo das organizações.
2022-06-16
https://www.bbc.com/portuguese/revista-61783060
sociedade
Famílias enfrentam frio com fogueiras e garrafas pet com água quente na periferia de SP
O sol se põe, as temperaturas despencam e Marcos dos Santos Luz, conhecido como seu Nenê, de 44 anos, começa a juntar pedaços de madeira para acender uma fogueira no distrito de Marsilac, área rural no extremo sul da cidade de São Paulo. Sem dinheiro para comprar gás, ele aquece a água no fogo e enche garrafas pet para amenizar o frio de 5,6ºC registrado pelo Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE), da prefeitura, a menor no município. Enquanto a água borbulha na panela, ele senta ao redor da fogueira enquanto esfrega as mãos, ao lado do filho e do cachorro Faísca, que treme ao se afastar das chamas. Depois de encher as garrafas com água quente, ele as enrola numa toalha e coloca embaixo do cobertor, ao lado dos pés. A técnica apenas ameniza o frio, pois a casa onde seu Nenê mora com a família tem diversos pontos sem vedação, como vidros quebrados, frestas nas portas e espaços entre as telhas e a parede. Durante a madrugada, o vento passa por esses buracos e a família faz o que pode para se proteger. "Tem uns buracos que precisa tampar. A gente tampa os buracos do quarto com uns panos. Às vezes, a gente acorda no meio da noite, veste as blusas que tem e se embola. Veste duas, três calças, coloca blusas por cima. Pega o que tem e vai se arrumando. Já passamos muito frio nesse lugar", conta ele à BBC News Brasil. Os bairros de Parelheiros e Marsilac registram as menores médias de temperatura da cidade de São Paulo, por estarem numa área pouco habitada e muito próxima à Serra do Mar. Fim do Matérias recomendadas "De vez em quando, eu saio 4h para ir trabalhar e aqui está geando. A horta e a pastagem dos animais estragam tudo. Queima bananeiras e as árvores secam", afirmou seu Nenê. Antonina Aparecida de Castro Silva, de 72 anos, também mora em Parelheiros e adota uma série de medidas para amenizar o frio. "Não tenho torneira quente e o chuveiro nesse frio só fica morno. Então, tomo banho mais cedo e me agasalho muito porque eu sinto bastante frio no pé e na orelha. Sou de idade e sinto muito frio. Mesmo que esteja sol, a casa parece uma geladeira", contou ela. Ela conta que passou a dormir no quarto do meio da casa porque ele é menos atingido pelo vento. "O cômodo onde eu durmo é o único que não pega o vento do quintal, que atinge a sala de um lado e, do outro, o quarto do meu filho. Minha sobrinha me deu um pijama que aquece bem. Também coloco aquela cobra embaixo da porta para evitar o frio. A janela da cozinha é um vitrô basculante que não fecha direito, mas coloquei papel na fresta e agora melhorou", contou Antonina. Seu Nenê contou que recentemente a família dele cresceu de maneira não planejada e apertou as contas da família. Logo depois que seu Nenê e a mulher dele resolveram adotar o filho da nora dele, de pouco mais de um ano, o casal teve uma gravidez não planejada. Com duas crianças de colo em casa, uma de 4 meses, a família faz de tudo para economizar. "O gás agora está R$ 130, então a gente só usa para cozinhar o necessário, como a mamadeira para as crianças. Quando acaba, a gente recorre à lenha até para fazer a comida. A gente faz uma armação de bloco nas laterais e coloca uma grelha em cima. O vizinho da madeireira que me dá, mas pegamos na mata também", afirmou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com o último levantamento feito em 2020 pela Rede Nossa São Paulo, o bairro do Marsilac é o que mais aparece nas estatísticas negativas. Entre elas, a de maior tempo de deslocamento no transporte público. Enquanto um morador do Brás (centro) gasta, em média 31,3 minutos, em Marsilac esse número salta para 124,7 minutos. Segundo a Rede Nossa São Paulo, o distrito tem o maior coeficiente de mortalidade por doenças do aparelho respiratório. Também tem o maior coeficiente por câncer do aparelho digestivo (fígado e pâncreas). Seu Nenê diz que o bairro é esquecido pelo poder público. "A prefeitura não vem aqui, não. Não temos numeração na rua. Falam que vai arrumar a estrada, mas só fazem uma gambiarra e não voltam. Vivo aqui desde criança. Quem mora mais perto da serra passa tanto frio que precisa ir para o hospital", afirmou. Durante a visita ao local, a BBC News Brasil identificou no bairro postes sem luz. A rua onde seu Nenê mora também não é asfaltada. Ao ser questionado sobre qual é seu sonho, seu Nenê diz que "é terminar de reformar a casa para ter mais conforto". A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), informou que "realiza trabalho intensificado neste período de baixas temperaturas em todas as regiões da cidade. Em Parelheiros e Marsilac, localizados no extremo sul da cidade, foram distribuídos 668 itens de primeira necessidade, tais como cestas básicas, cobertores e colchões, no período que compreende os meses de abril e junho de 2022". A administração municipal disse ainda que distribuiu mais de 45 mil cobertores a pessoas que vivem em situação de rua. Questionada, a prefeitura disse que fará uma ronda no bairro do Emburá, no Marsilac, para saber se é necessário fazer algum reparo na rede e que "aguarda autorização para devidas providências de expansão da iluminação". A Subprefeitura de Parelheiros, responsável pelos distritos de Parelheiros e Marsilac, informou que a Estrada José Lutzenberg, próximo à casa dos entrevistados, será revitalizada por meio do Programa "Melhor Caminho", da Secretaria Estadual de Agricultura. A administração municipal disse que doou 128 cobertores nos dias 12, 13 e 14 de junho na região. A previsão do Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) é de que os próximos dias se mantenham com temperaturas baixas, com mínima prevista de 11ºC para esta quinta-feira (17/06) e 12ºC na sexta (18/06).
2022-06-16
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61820594
sociedade
Acumuladores compulsivos: o que é a síndrome de quem vive cercado por objetos inúteis
Xícaras, potes vazios, latas, bichos de pelúcia, potes de plástico, CDs... Na casa de Edward Brown, pode-se achar quase tudo. Empilhados uns sobre os outros sem nenhuma lógica aparente, os objetos que ele acumulou ao longo de sua vida tornaram sua casa um lugar difícil de habitar. "Não há espaço para as pessoas trocarem de roupa se vierem aqui", diz o homem de 60 anos de Blackburn, uma cidade industrial no norte da Inglaterra, à BBC. Edward reconhece ter um problema, mas demonstra dificuldade em lidar com ele. "(A tendência) de colecionar coisas às vezes sai do controle." Ele sofre da síndrome de acumulação compulsiva, transtorno mental que faz alguém ter grande dificuldade em se livrar de objetos que não têm valor ou são de pouca importância para outras pessoas. Fim do Matérias recomendadas "Essa dificuldade muitas vezes leva a uma desordem considerável, tornando um espaço intransitável" e onde "os quartos não podem ser usados ​​para o que foram projetados: você não pode usar a cozinha para cozinhar ou o quarto para dormir", diz Gregory Chasson, psicólogo e professor do Instituto de Tecnologia de Illinois, nos Estados Unidos. Desde jornais, revistas, recipientes de comida, sapatos e cabos, até guarda-chuvas ou tampinhas de garrafa. Coisas em bom estado ou destruídas pelo uso e tempo tornam-se objetos preciosos para o acumulador. Trata-se de uma condição que não faz distinção entre homens e mulheres, cultura ou situação socioeconômica. Ela afeta pelo menos 2,6% da população mundial, com percentuais maiores em pessoas com mais de 60 anos e naquelas com outros diagnósticos psiquiátricos, como ansiedade ou depressão, segundo a Associação Americana de Psiquiatria. E a gravidade de seus sintomas, segundo um estudo publicado no periódico científico Journal of Psychiatric Research, "ficou significativamente pior" durante a pandemia de covid-19. Outra característica importante é o forte impulso que as pessoas com esse transtorno têm de adquirir e guardar objetos. "Não é apenas o caos, mas também o desejo de comprar coisas ou colecionar objetos de graça, ou guardar objetos que entraram passivamente em sua vida", diz Christiana Bratiotis, professora da Escola de Trabalho Social da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá. "Eles querem preservá-los por causa das crenças que têm em relação a esses objetos e por causa da forte ligação emocional que têm com eles." Bratiotis diz que alguns de seus pacientes podem lhe dizer coisas como: "Esta coleção de objetos significa tanto para mim quanto minha irmã. E separar-se dela seria como cortar todos os laços com ela". "Representa parte da identidade deles", explica. Soma-se a isso a crença de que, um dia, eles podem precisar desses objetos, seja para o uso pretendido, para um uso alternativo ou como parte de um projeto criativo. Os perigos para a saúde de não abordar este problema são múltiplos e mais graves do que parecem, começando pelos físicos. "A acumulação compulsiva pode levar a todos os tipos de perigos: riscos de incêndio, riscos de queda, riscos de lesões e um tremendo risco de infestação que aumenta a chance de desenvolver doenças como a asma", observa Chasson. Em termos de saúde mental, deixa aqueles que a sofrem isolados socialmente: os afetados não falam a ninguém sobre uma condição "estigmatizada pela sociedade, que a interpreta como preguiça, imoralidade ou falta de padrões pessoais e não a entende como um problema de saúde mental", argumenta Bratiotis. Embora muitos de nós possamos nos identificar com a tendência de guardar objetos porque são bonitos, por precaução, porque nos trazem boas lembranças ou porque achamos que podemos encontrar algum tipo de uso para eles, isso não necessariamente nos torna acumuladores compulsivos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É importante entender que é um comportamento e, como tal, "ocorre em um continuum, variando de leve a grave", explica Bratiotis. Quando estamos diante de um caso de acumulação compulsiva ou simplesmente diante de uma pessoa com "alma de colecionador"? "Às vezes é difícil distinguir", diz Chasson, "mas torna-se um problema e uma condição diagnosticável quando causa prejuízo ou sofrimento para o indivíduo ou para aqueles ao seu redor." Também quando a atividade diária dentro de casa é impossibilitada pela desordem e pelo acúmulo. Você provavelmente tem na mente a imagem de uma casa cheia até o teto de coisas inúteis, onde não cabe um alfinete, com uma montanha de objetos acumulados que mal deixa espaço para seu dono — uma pessoa de meia-idade ou mais velha — passar pelo portão. Estes são os casos mais extremos e que chegam — por razões óbvias — ao noticiário e aos programas de TV. Para obter uma imagem mais precisa, é preciso recorrer a fotos como estas abaixo, que é um dos recursos usados ​​para avaliar quando a acumulação vira um problema de saúde mental. As imagens mostram uma sala, uma cozinha, um quarto, ordenadas de um a nove de acordo com o número de objetos acumulados, sendo a primeira sem desordem e nona a situação mais grave. Eles vêm de um estudo publicado no periódico científico Journal of Psychopathology and Behavioral Assessment em 2008 e indicam que, a partir da terceira foto, estamos na presença de um acumulador compulsivo. A acumulação de objetos, porém, é apenas a manifestação do problema, sua face mais óbvia. "Sob a desordem, tanto metafórica quanto literalmente, estão partes desse problema que são menos visíveis, mas ainda assim são fatores muito importantes para o desenvolvimento desse comportamento", explica Bratiotis. Existem certos traços de personalidade — dificuldade em tomar decisões, perfeccionismo e procrastinação— que, quando combinados, podem predispor um indivíduo a desenvolver o acúmulo compulsivo. "Sabemos que essas pessoas tomam decisões mais lentamente e questionam sua decisão quase imediatamente depois de tomá-la", diz ele. Não existe uma causa única para este distúrbio. "Não é apenas biologia evolutiva, não é apenas genética ou neurobiologia, mas todas essas coisas desempenham um papel", afirma o pesquisador. "Sabemos que o cérebro de um acumulador compulsivo funciona de maneira diferente", explica Bratiotis, observando que essas diferenças foram observadas em tomografias computadorizadas de pessoas que foram solicitadas a realizar tarefas que envolviam guardar e descartar bens. "Entendemos que a combinação dessas causas com algumas experiências de vida e, em particular, experiências em torno da perda é o que leva a esse problema", acrescenta, que apesar de se tornar evidente na meia-idade, começa a se desenvolver na infância ou na idade adulta. "Pesquisas sugerem que em mais de 50% dos casos o problema surge entre as idades de 11 e 20", diz Bratiotis. "Ele pode se manifestar com coisas como guardar objetos que outros consideram lixo, mas é acima de tudo o processo de pensamento e as crenças que os cercam", diz Chasson. O que acontece é que isso se torna óbvio mais tarde, acrescenta a psicóloga, porque as crianças normalmente têm pessoas que organizam as coisas por elas. Até hoje, não há cura para o transtorno de acumulação compulsiva. Mas o tratamento mais promissor é a terapia cognitivo-comportamental especializada na condição. O objetivo é mudar a maneira como as pessoas pensam para modificar seu comportamento e melhorar como elas se sentem. "Os resultados têm sido moderados. Não são irrelevantes, mas tampouco são totalmente bem-sucedidos", lamenta Bratiotis. Também se busca fazer "intervenções para reduzir a gravidade e o impacto de suas consequências, melhorar a qualidade de vida (da pessoa que sofre do transtorno) e manter os progressos", explica Chasson. "E há outras modalidades como grupos de autoajuda com facilitadores ou diferentes abordagens em grupo", acrescenta. Da mesma forma, há muito que a família ou amigos podem fazer para ajudar. Primeiro, você deve abordar o problema "com empatia e carinho, em vez de assumir uma posição acusatória", recomenda Bratiotis. "Você pode dizer 'estou preocupado com você morando nesta casa, porque sei que você está passando por algo difícil e não pode usar este corredor porque está bloqueado e não quero que você caia'. É diferente de dizer 'você precisa limpar este corredor porque você vai cair'", ressalva Bratiotis. Também é importante reconhecer que, por mais bem-intencionados que sejam, amigos e familiares nem sempre são as melhores pessoas para ajudar, acrescenta ela. Ainda assim, podem oferecer ao acumulador apoio na busca e obtenção de intervenção externa. Edward Brown, o acumulador de Blackburn, está lutando para melhorar sua situação e ajudou a criar um grupo de apoio em sua cidade para outras pessoas em condições semelhantes. Ele diz que está "entusiasmado para apoiar acumuladores compulsivos e ver suas vidas melhorarem".
2022-06-15
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61793025
sociedade
Amber Heard desabafa sobre 'ódio e hostilidade' nas redes sociais após julgamento contra Depp
"Não me importo com o que pensam de mim, ou que julgamentos eles querem fazer sobre o que aconteceu na privacidade da minha própria casa, no meu casamento, a portas fechadas." A atriz americana Amber Heard diz que não espera que o público entenda o que ela viveu em seu casamento com o ator Johnny Depp, relacionamento que terminou em 2017 e recentemente chamou a atenção após ações judiciais movidas por ambos que levaram a um julgamento midiático. "Não presumo que a pessoa comum deva saber dessas coisas. Portanto, não levo para o lado pessoal", disse à rede norte-americana NBC, na primeira entrevista após perder um julgamento contra Depp nos Estados Unidos. A atriz de 36 anos considera que "o ódio e a hostilidade" que recebeu na internet durante a sua batalha judicial é um sinal de que não houve um "retrato justo" do caso nas redes sociais. Depp a processou por difamação depois que Heard publicou um artigo em 2018 no The Washington Post no qual falava - sem nomear o ator - da violência física e emocional que experimentou em um de seus relacionamentos. Fim do Matérias recomendadas O júri considerou Heard culpada e concedeu uma indenização de mais de US$ 10 milhões a Depp por danos ao determinar que a atriz havia difamado o ex na questão central do abuso doméstico. Heard disse que vai recorrer. Um processo contra os advogados de Depp lhe deu direito a uma indenização de US$ 2 milhões em reparação de danos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em uma prévia da entrevista publicada pela NBC, a atriz americana disse que não leva os julgamentos públicos para o lado pessoal. "Mas mesmo alguém que tem certeza de que eu mereço todo esse ódio e hostilidade, mesmo que alguém pense que estou mentindo, não poderia me olhar nos olhos e me dizer que acha que houve um retrato justo [do caso ] nas redes sociais", disse. "Você não pode me dizer que pensa que isso foi justo", completou. A atriz disse que não culpou os sete jurados por decidirem contra ela, pois considerou que eles foram influenciados pela notoriedade pública de Depp, assim como pelo trabalho dos advogados dele para retratá-la como "uma pessoa sem credibilidade". "Como eles não chegariam a essa conclusão? Se haviam sentado naqueles assentos e escutaram durante três semanas os testemunhos incessantes e implacáveis de funcionários pagos", disse. "Não os culpo. Na verdade, eu entendo. Ele é um personagem querido e as pessoas sentem que o conhecem. É um ator fantástico." Ao ser questionada sobre o fato de que o trabalho dos jurados não era se deslumbrar com as figuras que tinham à frente, mas examinar fatos e provas, e que ao final não acreditavam no que ela havia dito, Heard insistiu em seu posicionamento. "Novamente: como poderiam, depois de escutar três semanas e meia de testemunhos sobre como eu era uma pessoa sem credibilidade, acreditar em uma palavra que saísse da minha boca?", questionou. A entrevista será exibida na sexta-feira (17/06) pela NBC nos Estados Unidos, mas a emissora adiantou que haverá mais prévias ao longo da semana.
2022-06-13
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61792510
sociedade
As armadilhas das 'férias ilimitadas' oferecidas por empresas
Você pode tirar quantas férias quiser? Parece ótimo — ou não! O banco de investimentos Goldman Sachs, com sede em Nova York, nos Estados Unidos, tomou recentemente uma decisão inesperada: a instituição concedeu férias remuneradas ilimitadas aos seus funcionários de nível sênior. Segundo um memorando recebido por diversos órgãos de imprensa, sócios e diretores-executivos poderão "tirar o tempo de descanso que for necessário, sem dias fixos de férias". Já os funcionários de nível júnior receberam mais dois dias anuais de férias e o banco afirmou que todos os empregados precisarão tirar, no mínimo, 15 dias de férias por ano. À primeira vista, esta parece uma iniciativa positiva por parte de uma empresa conhecida por suas jornadas de trabalho extenuantes e por sua cultura rigorosa. Afinal, férias remuneradas ilimitadas poderão oferecer aos funcionários sobrecarregados mais tempo para descansar e melhorar sua saúde mental e seu equilíbrio geral entre a vida pessoal e o trabalho. Além disso, uma política generosa de férias para os funcionários de nível superior poderá beneficiar os níveis mais baixos, podendo formar uma equipe de trabalho mais feliz e produtiva como um todo. Fim do Matérias recomendadas Mas o que parece um incrível benefício também traz ressalvas consideráveis. Os funcionários provavelmente só tirarão um bom período de férias se as empresas criarem um ambiente que os incentive a fazê-lo. Em algumas empresas que adotam as férias remuneradas ilimitadas, os funcionários acabam tirando férias menores, devido à pressão dos colegas e às expectativas verificadas sobre os períodos "aceitáveis" de férias. E os dados mais recentes demonstram que as férias remuneradas ilimitadas não são o benefício mais cobiçado pelos trabalhadores. Mais do que férias ilimitadas, a maioria das pessoas valoriza a flexibilidade, incluindo a possibilidade de trabalhar em casa. Seria essa regalia recém-introduzida o atrativo brilhante que os trabalhadores sempre desejaram ou um presente que ninguém pediu para receber? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A ideia é simples: em vez de um número fixo de dias de férias remuneradas todos os anos, os funcionários têm direito a um número infinito de dias, desde que combinem seus períodos de ausência com seus chefes. A política pretende conceder mais autonomia aos funcionários, para que gerenciem sua carga de trabalho e a vida pessoal, potencialmente gerando aumento do bem-estar, em benefício tanto do funcionário quanto da empresa. As férias ilimitadas ficaram muito mais comuns nos últimos anos. Elas começaram nas pequenas start-ups do Vale do Silício e se difundiram entre as empresas grandes, como a LinkedIn, Netflix e Bumble, até que chegaram a Wall Street. Mas ainda são algo muito raro: dados de uma pesquisa de 2021 indicam que apenas cerca de 4% das empresas norte-americanas oferecem férias remuneradas ilimitadas. Johnny C. Taylor Jr., presidente e CEO (diretor-executivo) da Sociedade de Gestão de Recursos Humanos (SHRM, na sigla em inglês), com sede nos Estados Unidos, afirma que ele e seus colegas preferem a expressão "férias em aberto", que capta com maior precisão os benefícios das férias remuneradas ilimitadas. "Não significa necessariamente semanas ilimitadas na praia", segundo ele. "Às vezes, elas servem para atender necessidades dos pais, fazer check-ups ou mesmo para tratar da saúde mental", permitindo que os funcionários tirem seu tempo de folga na forma e quantidade que eles acharem necessária. Algumas empresas colheram benefícios das férias remuneradas ilimitadas. Muitos funcionários da gigante industrial General Electric reagiram positivamente à regalia. O CEO da Netflix, Reed Hastings, detalhou em seu livro, publicado em 2020, que, embora tenha levado anos para que as férias remuneradas ilimitadas virassem realidade, ele acabou descobrindo que "a liberdade sinaliza aos funcionários que nós confiamos que eles irão fazer a coisa certa, o que, por sua vez, serve de incentivo para que eles se comportem com responsabilidade". Mas ainda existem diversas empresas que fizeram experimentos com as férias remuneradas ilimitadas e acabaram por eliminar essa política, considerada um fracasso. Os funcionários muitas vezes acabam tirando menos tempo de férias que o que teriam com a política fixa. Uma pesquisa de 2018 demonstrou que trabalhadores com férias remuneradas ilimitadas tiraram menos férias que aqueles com alocação fixa; e, segundo outra pesquisa, um terço dos trabalhadores norte-americanos com férias remuneradas ilimitadas sempre trabalha no período de férias. A empresa norte-americana de networking (formação de redes de contatos) Facet é uma das que abandonaram as férias remuneradas ilimitadas, depois de concluir que seus funcionários estavam tirando menos dias de férias. Já o CEO da empresa de recursos humanos Unknown, com sede em Londres, viralizou em uma postagem no LinkedIn explicando que a empresa cancelou seu programa de férias remuneradas ilimitadas porque as pessoas se sentiam culpadas e nunca tiravam dias de descanso. Agora, a empresa oferece 32 dias de descanso remunerado, para funcionários de todos os níveis. Parte do problema é que, em algumas empresas, tirar férias é algo que muitos funcionários não fazem com frequência - um fenômeno particularmente acentuado nos Estados Unidos. "As pessoas agora não tiram férias, mesmo quando elas se acumulam", afirma Peter Cappelli, professor de administração da Escola de Negócios Wharton da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e diretor do seu Centro de Recursos Humanos. "O motivo é a pressão sobre eles para que não tirem." Mas conceder férias remuneradas ilimitadas não faz com que esses problemas terminem. Na verdade, pode piorá-los ainda mais. Com as férias remuneradas ilimitadas, os trabalhadores tecnicamente não possuem dias de férias, já que não existe número fixo. Tudo deve ser definido com o chefe, caso a caso. Para os funcionários, definir qual é a quantidade "certa" de dias de férias remuneradas que deve ser solicitada depende, muitas vezes, de observar o comportamento dos colegas e dos chefes. Se os colegas estiverem tirando apenas 10 dias por ano, pedir mais pode parecer inadequado. As empresas que adotaram as férias remuneradas ilimitadas, segundo Cappelli, "mudaram de um modelo onde você as conquista - você realmente fez jus às férias - para outro em que você meio que [precisa] pedir. E não há nada que impeça o seu chefe de gritar com você se quiser tirar mais tempo de descanso, ou de puni-lo se o fizer." Além disso, as férias remuneradas ilimitadas retiram as salvaguardas que protegem os interesses dos trabalhadores se eles não puderem tirar férias. Não há dias remanescentes que a lei exige que os funcionários tirem no final do ano ou carreguem para o ano seguinte. E também não há dinheiro a receber para os trabalhadores que se demitirem com dias de férias remanescentes - o que faz com que as empresas economizem, segundo Cappelli. Tudo isso significa que é fundamental que as empresas tenham uma cultura de trabalho que promova o equilíbrio, se quiserem oferecer férias remuneradas ilimitadas - algo que tradicionalmente não caracteriza a Goldman Sachs, bem como outras companhias do setor financeiro. "Se uma empresa introduzir férias remuneradas ilimitadas, mas a cultura [da companhia] ainda promover a sobrecarga de trabalho, a adoção de uma nova política não irá mudar isso da noite para o dia. A empresa precisa incentivar o descanso e os gerentes devem adotá-lo nas suas próprias vidas", afirma Taylor, da SHRM. Mas isso pode levar tempo, considerando que a maioria dos funcionários sênior de muitas empresas grandes de Wall Street demonstram sua eficiência pela cultura exaustiva de longas horas de trabalho do setor financeiro. E muitos executivos ainda trabalham nas férias, de forma que não está claro se realmente os chefes irão tirar férias e incentivar esse comportamento para os funcionários de nível júnior. Por outro lado, também é importante que, para esses funcionários de nível inferior, a Goldman Sachs tenha concedido mais dias de férias remuneradas e também os obrigado a tirar pelo menos uma sequência de cinco dias de férias por ano. Estas podem ser mudanças "sinceras" para combater questões da cultura de trabalho da Goldman, mas podem não ser exatamente o tipo de flexibilidade que alguns dos funcionários de nível júnior desejam, segundo Sonia Marciano, professora clínica de administração e organizações da Escola de Negócios Stern da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos. Ela afirma que a empresa "irá receber [candidatos] de qualidade inferior, recém-saídos da faculdade, se outros empregadores chamarem a atenção, descobrindo como criar dias híbridos para seus funcionários". Embora os benefícios de férias adicionais, como as férias remuneradas ilimitadas, sejam um começo, os especialistas advertem que a discussão sobre como mudar a cultura do trabalho extenuante está longe de terminar. "Esta é uma história sobre o equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal", afirma Alec Levenson, cientista pesquisador sênior da Escola de Negócios Marshall da Universidade do Sul da Califórnia, nos Estados Unidos. "Oferecer benefícios adicionais para as pessoas sem cuidar das questões fundamentais sobre o quanto elas precisam trabalhar e por quanto tempo... não altera a situação."
2022-06-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61787448
sociedade
Por que futuro da humanidade pode depender da África
Acredita-se que nossa espécie, a Homo sapiens, tenha se originado há centenas de milhares de anos na África. Agora, o continente também pode ser a chave para o futuro da humanidade. É o que sugerem estudos populacionais que antecipam como será o mundo no final deste século. Para estimar como ficará a população mundial em 2100, especialistas fazem projeções com base em uma série de fatores, principalmente a chamada taxa global de fecundidade (conhecida pela sigla TFT), que é uma média do número de filhos nascidos vivos por mulher. Para que uma população cresça, ou pelo menos permaneça estável, é necessário, no mínimo, uma taxa de 2,1, ou seja, que o número médio de nascimentos seja de 2,1 filhos por mulher. Esse índice é conhecido como "taxa de fecundidade de reposição". A ideia por trás dela é simples: como as mulheres são quase metade da população, se cada uma delas tiver pelo menos dois bebês, a população mundial não vai diminuir. A taxa de reposição é de 2,1 filhos e não apenas 2, pois leva em conta que nem todos os bebês nascidos chegam à idade adulta e que, além disso, há uma leve tendência de nascer mais meninos do que meninas. Fim do Matérias recomendadas De acordo com as estatísticas da Divisão de População da Organização das Nações Unidas, as mulheres em todo o mundo tinham 5 filhos em média em 1950. Isso fez com que a população do planeta triplicasse em menos de um século - em breve, seremos 8 bilhões de pessoas. No entanto, fatores como a criação e divulgação de melhores métodos contraceptivos e a maior participação das mulheres no mercado de trabalho em muitos países, entre outros pontos, fizeram com que a TFT caísse para menos da metade. Em 2022, as mulheres do mundo têm 2,4 filhos, em média. Em muitos lugares, o número é menor. "Hoje, mais da metade da população mundial vive em países onde a fecundidade está abaixo do nível de reposição de 2,1 filhos por mulher, e grande parte dessa população vive em países com níveis de fecundidade muito baixos e em declínio", explica Sabrina Jurán, que é membro do Fundo de População das Nações Unidas (Unfpa). Isso levou os especialistas a projetar que a população mundial vai atingir o pico em algumas décadas e depois começará a cair. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há algumas estimativas de quando chegaremos ao pico populacional e quantos de nós vão estar vivos nesse momento, mas todas as previsões concordam que a humanidade vai encolher no próximo século. A ONU estima que o mundo vai chegar à beira de 11 bilhões de pessoas até 2100 antes disso. Outros estudos realizados na Áustria e nos Estados Unidos sugerem que o declínio vai começar mais cedo, em apenas meio século, e que a população não chegará a 10 bilhões. A projeção mais recente, realizada em 2020 pelo Institute for Health Metrics and Evaluations (IHME) da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, em estudo publicado na revista científica The Lancet, indica que, até o final deste século, 183 dos 195 países do mundo terão uma taxa de fecundidade abaixo dos níveis necessários para repor sua população. À primeira vista, esse declínio populacional pode parecer uma boa notícia, afinal, um mundo menos superpovoado poderia ser mais sustentável. Mas por trás dos números há uma realidade muito complexa: com cada vez menos jovens e uma população cada vez mais envelhecida, como os países vão manter suas economias ativas? E como a humanidade vai sobreviver? É neste contexto que muitos olham para o continente africano, em particular para os países da África Subsariana, como é conhecida a imensa região do centro e sul do continente, que agrupa 54 países. Ao contrário do que acontece no resto do mundo, sua população está crescendo exponencialmente. Esse ponto do planeta é considerado o berço da humanidade. As projeções indicam que a população da região vai dobrar até 2050, chegando a 2,5 bilhões de pessoas. Na prática, isso significa que, em menos de 30 anos, um quarto da humanidade poderia ser potencialmente africana. O crescimento populacional da África ocorre duas vezes mais rápido que o do sul da Ásia e quase três vezes mais do que o da América Latina. O que impulsiona esse crescimento é uma característica única desta região: na maioria dos países africanos, pelo menos 70% dos cidadãos têm menos de 30 anos. Isso contrasta fortemente com a situação no resto do mundo, onde a população está envelhecendo rapidamente. Nesse ponto, Jurán destaca o caso da América Latina e do Caribe, regiões com "o envelhecimento populacional mais rápido do mundo". A explosão demográfica da África levou a ONU a concluir que o continente "vai desempenhar um papel central na formação do tamanho e distribuição da população mundial nas próximas décadas". Alguns especialistas alertam que essa disparidade entre a África e o restante dos continentes causará mudanças profundas no mundo que conhecemos hoje. Em seu recente livro 8 Billion and Counting: How Sex, Death, and Migration Shape Our World (8 Bilhões e Contando: Como Sexo, Morte e Migração Moldam Nosso Mundo, em tradução livre), a pesquisadora Jennifer D. Sciubba, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington, destaca que na África Subsaariana a taxa de nascimentos é de 4,70 crianças por mulher, quase o dobro do índice mundial. Enquanto isso, na maior parte da Europa, do Leste e Sudeste Asiático, Oceania, América do Norte e grande parte da América Latina, a taxa de fecundidade já caiu abaixo do nível de reposição. De acordo com Sciubba, isso está criando a maior lacuna demográfica da história. Por um lado, diz, estão os países que lideraram a economia mundial durante o século passado e hoje estão se tornando sociedades envelhecidas. Por outro lado, estão as nações mais pobres e menos poderosas do planeta, onde a maioria da população é jovem. A autora destaca que essa divisão será um fator-chave para impulsionar as relações políticas, econômicas e sociais nas próximas duas décadas. Por sua vez, François Soudan, editor do semanário francês Jeune Afrique, alertou sobre esse fenômeno em um artigo intitulado "O futuro da humanidade será menos branco e cada vez mais africano". "Até 2100, uma em cada três pessoas no planeta terá nascido na África subsaariana. A Nigéria ultrapassará a China em população, tornando-se o segundo maior país depois da Índia", disse no texto publicado no jornal The Africa Report, citando o trabalho do IHME. Esse estudo projeta que, enquanto nações como Japão, Espanha, Itália, Portugal, Tailândia e Coréia do Sul verão suas populações reduzidas pela metade até o final do século, a população da África Subsaariana vai triplicar. As projeções da ONU são ainda maiores, prevendo que a população africana chegará a 4,3 bilhões em 2100, o equivalente a quase 40% da população mundial. Para Soudan, o fato de a idade média no continente africano ser de "19 anos, contra 42 na Europa" conduzirá inevitavelmente a um fenómeno migratório. "A única saída potencial para a Europa, onde os aposentados superam os trabalhadores por um fator de duas vezes e onde as mortes superam os nascimentos, é contar com um fluxo constante de imigrantes, com a maioria dos recém-chegados vindo do único continente que ainda tem um crescimento população: África", disse. De acordo com as estimativas citadas por ele, para manter sua população nos níveis atuais, a Europa precisa integrar "entre 2 e 3 milhões de imigrantes" por ano. Os dados mais recentes publicados pela Comissão Europeia mostram que 1,92 milhões de pessoas imigraram para os países da União Europeia (UE) em 2020, mas 960 mil pessoas deixaram a região. "Sem migração, a população europeia teria sido reduzida em meio milhão em 2019, já que 4,2 milhões de crianças nasceram e 4,7 milhões de pessoas morreram na União Europeia", esclarece a UE. "A realidade é que, na lógica capitalista pura, os governos europeus deveriam incentivar a imigração, e até cortejar os imigrantes com bônus em dinheiro", diz Soudan. Em vez disso, diz, países europeus criam "uma miríade de obstáculos à imigração". Segundo o livro de Sciubba, hoje apenas entre 2% e 4% da população mundial vive fora de seu país de origem, algo que pode mudar drasticamente no futuro. "Com o tempo, teremos muito mais pessoas de ascendência africana em muitos outros países", diz Christopher Murray, diretor do IHME e coautor do estudo publicado no The Lancet. Mas que impacto terá para África ser a principal fonte de juventude num mundo cada vez mais envelhecido? Os especialistas estão divididos. Alguns acreditam que o continente "mais negligenciado do planeta" poderia usar sua vantagem sobre países com populações em declínio para aumentar o poder econômico e geopolítico. Nesse sentido, citam o forte aumento dos investimentos chineses no continente africano, com a construção de portos, aeroportos, rodovias e escolas, entre outras infraestruturas. "O peso dos números (da população) deve levar a uma reinvenção dos países africanos e suas populações", disse Edward Paice, diretor do Africa Research Institute e autor de Earthquake of Youth: Why African Demography Should Matter (Terremoto da Juventude: Por que a demografia africana vai ser importante, em tradução livre). Em uma coluna de opinião publicada em janeiro passado no jornal britânico The Guardian, Paice exortou a comunidade internacional a deixar de lado suas "representações estereotipadas" e "marginalização" da África. O especialista antecipou que a importância demográfica do continente "vai afetar a geopolítica, o comércio global, o desenvolvimento tecnológico, o futuro das religiões dominantes no mundo, os padrões de migração e quase todos os aspectos da vida". Em vez disso, os mais pessimistas alertam que, sem mais educação, desenvolvimento e, acima de tudo, criação massiva de empregos, o crescimento exponencial da população africana pode levar a piores níveis de desemprego, pobreza, conflito e radicalização religiosa. Uma das visões mais alarmistas é a de Malcolm Potts, professor da Escola de Saúde Pública da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. Em 2013, ele previu que a área conhecida como Sahel, a parte norte da África Subsaariana, "poderia se tornar a primeira parte do planeta Terra sofrendo de fome em grande escala e conflitos crescentes à medida que uma população humana crescente ultrapassa os recursos naturais em declínio." Para François Soudan, no final das contas, "o destino da África dependerá em grande parte do que os líderes do continente fizerem hoje". "Se a África quiser manter sua sociedade dinâmica, ousada e criativa. Ou seja, aqueles mais propensos a se aventurar no arriscado caminho da emigração - e colher os benefícios de seu dividendo demográfico fora do âmbito do discurso político, então o continente deve enfatizar a educação, programas de capacitação profissional e políticas de criação de empregos voltadas para o futuro, bem como um melhor planejamento familiar", conclui.
2022-06-13
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61753061
sociedade
As vítimas atraídas por ilusão de dinheiro fácil em golpe de empréstimo na Índia: 'Fiz dívida em 33 aplicativos'
Quando Raj pegou empréstimo de US$ 110 (cerca de R$ 530) no último mês de março, pensou que resolveria rapidamente seus problemas financeiros. Mas não foi assim. O homem, que vive na cidade indiana de Pune, no Estado de Maharashtra, é uma das centenas de vítimas do golpe de empréstimos pela internet, que está crescendo no país. Assim como muitas pessoas, Raj (nome fictício) foi atraído pela rapidez e facilidade da aprovação do crédito - tudo o que precisou fazer foi baixar um aplicativo em seu telefone e fornecer uma cópia da carteira de identidade. Ele chegou a receber algum dinheiro, mas apenas metade do valor solicitado. E, três dias depois, a suposta empresa passou a exigir que ele pagasse três vezes o valor emprestado. O homem decidiu então recorrer a outros aplicativos para tentar quitar o que devia, o que acabou aumentando exponencialmente suas dívidas. Até que, em determinado momento, Raj devia mais de US$ 6 mil (R$ 29,3 mil) entre 33 aplicativos diferentes. Fim do Matérias recomendadas Os golpistas chegaram a ameaçá-lo requisitando pagamento. Raj afirma não ter ido à polícia por medo. Por meio dos aplicativos, os hackers tiveram acesso a todos os contatos e fotos armazenadas no telefone e ameaçaram enviar fotos de sua esposa nua para todos os números cadastrados no celular caso ele não lhes pagasse o que pediam. O homem decidiu então vender todas as joias da esposa para pagar os criminosos - e diz ainda estar com medo. "Acho que eles não vão me deixar em paz. Temo pela minha vida. Recebo ligações e mensagens ameaçadoras todos os dias", desabafa. Esse tipo de golpe tem se tornado comum na Índia. Apenas entre janeiro de 2020 e março de 2021, um estudo do Reserve Bank of India (RBI) - o Banco Central do país - identificou 600 aplicativos diferentes de empréstimos ilegais. O estado de Maharashtra, no oeste do país, registrou o maior número de reclamações relacionadas aos apps de empréstimo: 572 foram relatadas ao RBI. "Esses aplicativos prometem empréstimos sem complicações, dinheiro rápido, e as pessoas são atraídas sem perceber que seus telefones são invadidos, seus dados são roubados e sua privacidade é prejudicada", diz Yashasvi Yadav, inspetor geral especial de polícia no departamento de crimes cibernéticos de Maharashtra. "Acredito que o golpe esteja se espalhando porque muita gente na Índia não é elegível aos empréstimos no sistema bancário tradicional." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Muitos dos aplicativos são executados por meio de servidores na China, ainda que os golpistas estejam na Índia, diz o inspetor. Alguns dos criminosos já teriam sido identificados pela polícia por meio do rastreamento de suas contas bancárias e números de telefone, acrescenta Yadav. Um golpista com quem a reportagem da BBC conversou, contudo, disse ser relativamente simples evitar a detecção pelas autoridades. "Os desenvolvedores dos aplicativos, ou pessoas como nós, que trabalham para eles, são muito difíceis de rastrear. Todos nós usamos documentos falsos para conseguir um número de celular." "Operamos em toda a Índia. A maioria de nós não tem um local fixo para trabalhar. Tudo que eu preciso é de um laptop e uma conexão telefônica. Alguém como eu tem mais de dez números diferentes para usar para ameaçar o cliente." Este golpista em particular disse que os "funcionários" são treinados para encontrar pessoas "ingênuas e passando necessidade", a quem pagam apenas metade do valor pedido no financiamento. Como no caso de Raj, o golpista exigirá na sequência o pagamento de três vezes o valor enviado. Se a vítima não pagar, a pressão sobre ela aumenta rapidamente. "O primeiro passo é incomodar. Depois ameaçar. E então começa o jogo de chantagear a pessoa, com o acesso que temos aos dados do telefone", ele conta. "Muitos não procuram as autoridades por vergonha e medo." A BBC teve acesso a algumas das mensagens enviadas às vítimas. Algumas ameaçam contar à família e a colegas de trabalho sobre as dívidas, outras mais agressivas contêm ameaças envolvendo deep fakes - fazer e distribuir vídeos pornográficos usando a imagem do rosto da vítima. O governo tentou frear a onda de crimes pedindo ao Google, em maio do ano passado, que fizesse uma varredura nos aplicativos disponíveis em sua loja de aplicativos. Quase todos os smartphones na Índia rodam com o sistema operacional da empresa, o Android. Mesmo depois de excluídos da plataforma, contudo, os golpistas continuaram fazendo vítimas, desta vez usando mensagens de texto para anunciar os aplicativos. Após a divulgação de seu estudo, o Banco Central indiano pediu ao governo que apresentasse novas propostas para tentar conter os golpes envolvendo empréstimos pela internet. A entidade se dispôs a usar parte de sua estrutura para verificar os aplicativos. A expectativa é que o governo responda nas próximas semanas. Para alguns, contudo, as novas regras chegarão tarde demais. Segundo sua família, Sandeep Korgaonkar cometeu suicídio em 4 de maio devido às ameaças e assédio que vinha sofrendo de golpistas por trás de apps empréstimo.Segundo seu irmão Dattatreya, Sandeep nem havia chegado a pedir o crédito, mas só baixado o aplicativo. Criminosos passaram a telefonar para colegas de trabalho de Sandeep dizendo que ele tinha dívidas altíssimas e a manipular fotos suas para criar imagens falsas em que ele estaria nu - que foram encaminhadas para 50 de seus contatos. "O assédio não parou, mesmo depois que ele prestou queixa na polícia", diz Dattatreya. "Sua vida se tornou um inferno, ele não conseguia dormir ou comer." A polícia indiana está investigando o caso.
2022-06-13
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61739579
sociedade
Por que o azul é provavelmente a sua cor favorita, segundo a Ciência
Em 1993, o fabricante de giz de cera Crayola perguntou às crianças americanas qual era a sua cor de giz de cera favorita. A maioria delas escolheu diferentes tons de azul. Após sete anos, a empresa repetiu a experiência. E, novamente, sete tons de azul apareceram entre as dez mais escolhidas. Havia também roxo, verde e rosa. A predominância do azul não surpreende Lauren Labrecque, professora da Universidade de Rhode Island, nos EUA, que estuda o efeito da cor no marketing. Ela muitas vezes pede a seus alunos qual é sua cor favorita. Depois de ouvir a resposta, ela faz uma apresentação. "Já tenho um slide pronto que diz '80% de vocês disseram azul'", diz Labrecque. E ela geralmente acerta. Fim do Matérias recomendadas "Quando nos tornamos adultos, todos gostamos de azul. E parece ser algo intercultural", diz ela. Curiosamente, o Japão é um dos poucos países onde as pessoas dizem que o branco está entre suas três cores prediletas. Ter uma cor favorita é algo que tende a aparecer na infância. Pergunte a qualquer criança qual é sua cor favorita, e a maioria, com giz de cera na mão, estará pronta para responder. A verdade é que, com o passar do tempo, as crianças começam a criar afinidades com certas cores, de acordo com experiências que associam a elas. É provável que as crianças associem cores brilhantes — como laranja, amarelo, roxo ou rosa — a emoções positivas. Um estudo com 330 crianças entre 4 e 11 anos mostrou que elas usavam suas cores favoritas para desenhar personagens "agradáveis" e tendiam a usar preto para personagens "desagradáveis". Outros estudos, no entanto, não encontraram essa mesma relação, porque as associações entre emoções e cores estão longe de ser simples. Costuma se dizer que quando as crianças passam para a adolescência, suas escolhas de cores assumem um tom mais escuro e sombrio, mas não há muita pesquisa acadêmica sobre isso. Essas paletas de cores parecem convergir à medida que as pessoas viram adultas. Curiosamente, enquanto a maioria dos adultos diz preferir tons azuis, os adultos também têm uma cor menos favorita em comum: um marrom amarelado escuro. Basicamente, todos temos cores favoritas porque temos coisas favoritas. Pelo menos essa é a essência da teoria da valência ecológica, uma ideia proposta por Karen Schloss, professora assistente de Psicologia da Universidade de Wisconsin-Madison, nos EUA. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As cores estão longe de serem neutras. Em vez disso, os humanos atribuem significado a elas, principalmente por causa de histórias subjetivas, e assim criam razões pessoais para achar um tom repelente ou atraente. "Isso explica por que pessoas diferentes têm preferências diferentes pela mesma cor e por que sua preferência por uma determinada cor pode mudar com o tempo", diz Schloss. Em um dos experimentos, quadrados coloridos foram exibidos em uma tela. Os voluntários precisavam avaliar o quanto eles gostavam de cada um deles. Em seguida, as mesmas cores foram exibidas novamente, só que desta vez, em vez de quadrados, em objetos. Imagens amarelas e azuladas foram usadas com objetos neutros, como grampeadores ou chave de fenda. As fotos vermelhas e verdes foram deliberadamente distorcidas. Metade dos participantes viu imagens vermelhas que evocavam memórias positivas, como morangos ou rosas no Dia dos Namorados, enquanto as verdes foram projetadas para causar nojo, como saliva ou detritos em um lago. A outra metade viu associações inversas: feridas vermelhas em carne viva e colinas verdes ou de kiwi. Com essas imagens houve uma mudança na preferência de cores. Os voluntários escolhiam qualquer cor que fosse enfatizada positivamente, com pouca diminuição para o tom negativo. No dia seguinte, o teste foi repetido e a mudança induzida no experimento parece ter sido anulada pelas cores que os participantes experimentaram no mundo real. "Isso nos diz que nossas experiências com o mundo influenciam constantemente a maneira como vemos e interpretamos as cores", diz Schloss. "Pense nas preferências de cores como um resumo de suas experiências cotidianas e habituais com essa cor", acrescenta. A preferência geral pelo azul segue igual desde os primeiros estudos de cores registrados no século 19. E a maior parte de nossa experiência com cores provavelmente será positiva, como oceanos perfeitos ou céus claros. Pelo mesmo motivo, a pesquisa oferece uma pista de por que a cor marrom é a menos popular, pois está associada a resíduos biológicos ou alimentos em decomposição. A psicóloga experimental Domicele Jonauskaite estuda as conotações cognitivas e afetivas das cores na Universidade de Lausanne, na Suíça. Ela observou como as crianças costumam enxergar azul e rosa. O amor das meninas por formas cor-de-rosa atinge o auge por volta dos 5 ou 6 anos de idade e depois desaparece quando elas viram adolescentes. "Mas os meninos evitam o rosa a partir dos 5 anos. Elas pensam 'eu posso gostar de qualquer cor, menos de rosa'. É uma forma de rebeldia um menino gostar de rosa", diz. "E entre os homens adultos é difícil encontrar alguém que diga 'rosa é a minha favorita'." Alguns pesquisadores no passado sugeriram que essa preferência de cor ancorada no gênero é evolucionária: as mulheres, que eram as coletoras nas sociedades de caça, tinham preferência por cores associadas às bagas. Isso é uma besteira, diz Jonauskaite, que cita vários artigos recentes que analisam a preferência de cor em culturas não globalizadas, como aldeias na Amazônia peruana e um grupo de camponeses no norte da República do Congo. Em nenhum deles, as meninas demonstraram preferência pelo rosa. "Para se ter essa preferência, ou o contrário, é preciso haver uma codificação de identidade social", analisa. De fato, o rosa era considerado uma cor masculina estereotipada antes da década de 1920 e só passou a ser associada às meninas em meados do século 20. Quem se sente atraído por tons impopulares pode ter memórias positivas na infância relacionadas a essa cor, como o caso dos bebês dos anos 1970, que cresceram em uma época em que sofás marrons estavam na moda, diz Alice Skelton, do Sussex Color Group & Baby Lab, da Universidade de Sussex, no Reino Unido. Mas existe outra possibilidade. "Pode ser que enquanto alguns estão tentando alcançar a homeostase (estabilidade), outros buscam sensações", diz ela. "Pense no caso dos artistas, cujo principal trabalho é procurar coisas que desafiem seu sistema visual ou preferência estética." São eles que, sem dúvida, não vão escolher o lápis azul.
2022-06-13
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-61777269
sociedade
'Geração Disney' confunde amor com objeto de consumo, afirma psicanalista
Uma experiência arriscada, dolorosa, de altíssimo investimento e retornos completamente imprevisíveis. Ou então, a certeza da salvação, o propósito encontrado, a metade da laranja que completa o que faltava e adoça a vida. No drama ou na promessa, fato é que não paramos de falar de amor. Mas é ele que diz de nós, como demonstra a psicanalista, pesquisadora e professora universitária Ana Suy em seu recém-lançado livro A gente mira no amor e acerta na solidão (Paidós). "Nossa chegada ao mundo tem essa premissa: somos seres radicalmente desamparados. É o outro, com seu amor, seu leite, sua decisão, que faz furo nesse desamparo e assim nos liga à vida, a nós mesmos, ao resto das pessoas", escreve. Nesta entrevista à BBC News Brasil, Suy destaca as ambivalências e complexidades do amor, sustentado por um imaginário dominado pelo "e foram felizes para sempre", mas alimentado diariamente com a ideia de que o amor esteja à venda, como uma mercadoria. Fundamental para a vida de todos, o amor é origem, percurso e destino - inclusive, com desembarques e descarrilamentos. "O amor precisa de espaço, de distância, de brechas. O amor é ponte. Que sentido tem de fazer ponte num mesmo continente?" Fim do Matérias recomendadas Confira os principais trechos da entrevista. BBC News Brasil - No livro você argumenta o quanto o amor é uma vivência criada a partir do impossível, que é encontrar a parte que nos falta. A partir disso, podemos pensar que as propagandas do amor são "enganosas", na medida em que prometem o que nunca será alcançado? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ana Suy - A fantasia amorosa é uma fantasia de completude, é a fantasia de que poderíamos viver sem algum mal-estar, mal-estar esse que seria aniquilado pelo parceiro no amor. Nesse sentido, podemos pensar que o amor é um engano, uma vez que nele a gente acha ou sente como se tivesse encontrado algo de si no outro. Assim, o amor é narcísico. Amamos a sensação de nos sentirmos completos, realizados. No entanto, eu penso que o amor é mais do que isso, porque no amor, diferentemente da paixão, o outro dá notícias de que ele não se identifica completamente ao que idealizamos que ele seria. Então, talvez possamos dizer que as propagandas do amor são enganosas, mas não por culpa delas. O amor é enganoso. BBC News Brasil - E por que é tão fundamental que os seres humanos vivam essa impossibilidade? Suy - Porque senão o amor acaba! O amor é movimento, e não faz sentido nos movimentarmos se tudo está ali. O amor é ponte, precisa que duas porções de terra estejam distanciadas para que sua existência se justifique. O amor é linguagem, é preciso que algo não seja tão bem dito assim para que a palavra possa se relançar. É preciso que algo falte para que possamos ir ao outro. E se o outro tiver o que nos falta, nos fechamos em nós mesmos, fagocitando o outro, e o amor acaba. As histórias que são felizes e sem falta terminam com o "e foram felizes para sempre". E terminam mesmo. Se a história for ter continuação, algum desencontro precisará acontecer. No amor o impossível não cansa de dar suas caras e assim nos convocar a fazer reinvenções amorosas. BBC News Brasil - Uma palavra muito em voga é a empatia, colocar-se no lugar do outro para respeitá-lo. Porém, como você assinala, o amor convoca as pessoas à experiência de alteridade, que é justamente a de conviver e reconhecer o outro. Por que alguns amores são tão narcísicos e o que costuma acontecer quando se descobre que esse outro é diferente e tem desejos próprios? Suy - O amor é essencialmente narcísico, embora isso não seja tudo sobre ele. Se vemos uma pessoa com as lentes da paixão, vemos, sobretudo, a nós mesmos e por isso essa pessoa é apaixonante. Na medida em que essa pessoa vai nos frustrando, vamos nos decepcionando com ela, vamos encontrando com uma alteridade - não só na pessoa amada, mas em nós mesmos. Uma parceria amorosa onde se encontra alegria pode ser radicalmente diferente da parceria amorosa que se idealizou. Se a parceria amorosa se sustenta é porque cada um dos parceiros encontrou com uma brecha em sua própria imagem e decidiu ficar. Dito de outro modo, alguém que tem o ideal de fazer casal para ter filhos, por exemplo, mas encontra alguém que não quer tê-los e fica mesmo assim, às vezes discutindo muito, às vezes achando uma solução... Poxa, não seria mais fácil encontrar alguém que também quisesse ter filhos? Não era para ser simples? Acontece que, frequentemente, essa pessoa já encontrou várias outras que atendiam ao seu ideal (de ter filhos, por exemplo) e a coisa não rolou. Amamos com o inconsciente, não sabemos explicar as razões pelas quais amamos uma pessoa e não a outra. O amor é um mistério que, diga-se de passagem, amamos. Assim, não amamos apenas as pessoas, amamos o próprio amor - o que, muitas vezes, pode nos levar a ter grandes dificuldades para reconhecer quando o amor acaba e não pode mais ser reinventado. BBC News Brasil - Por que é comum que as pessoas se sintam desmoronando quando o amor acaba ou não é correspondido? Suy - Ao amar, perdemos narcisismo, porque endereçamos ao outro uma libido que seria do próprio eu. Assim, amar demanda ser amado. Se eu tenho fome e te dou meu pão, só saciarei a minha fome se você me der o seu pão. Por isso o amor demanda reciprocidade. Freud diz que o apaixonado é humilde. Isso porque para amarmos alguém, o presenteamos com aquilo que antes era amor próprio. Se esse circuito não funciona, então, se o outro não me ama, se o outro não me dá seu pão, eu sinto fome....de amor. A isso chamamos de sofrimento. O problema é que não sabemos como parar de amar alguém, aí nosso narcisismo vai ficando cada vez mais empobrecido. Não sabemos como parar esse sofrimento. Às vezes, no entanto, o circuito pode funcionar, eu te dou o meu pão, você me dá o seu, mas em algum momento ele pode simplesmente parar de funcionar. Isso é muito duro porque desmonta o nosso castelo de areia. Nós nos identificamos à imagem de que somos seres amáveis, de que somos seres amados. Essa é a estrutura do nosso narcisismo. Se o outro deixa de me amar, eu perco a imagem de que sou amável para o outro, e com isso perco a minha própria imagem, me perco de mim. Não por acaso dizemos que o luto é um "trabalho". Não se trata apenas de perder o outro, o que já seria muito, mas sobretudo, de perder quem eu era para o outro, quem eu achava que era para mim mesmo. É uma reinvenção de si. Há, ainda, uma outra camada importante de dizer, que é o fato de que quando um amor que funcionava para de funcionar, a gente perde também o ideal que tínhamos do que era o amor. Não é raro alguém sair de um relacionamento dizendo que não acredita mais no amor, que ficará só para sempre, e às vezes até fica mesmo. Recuperar-se da perda do ideal amoroso pode ser muito doloroso. BBC News Brasil - Há amor em relacionamentos abusivos? Suy - Acho difícil dizer isso porque a gente não tem clareza do que é o amor e também não tem do que é um relacionamento abusivo. Penso que esse termo tem se propagado, muitas vezes, de uma maneira moralista, como se pudéssemos legislar sobre o que é ou não é amor. É uma questão tão complexa! Fico tentada aqui a ir por um caminho simples demais e dizer que não, não tem, que amor é saudável, amor faz bem e que onde tem amor tem sempre respeito. Mas a verdade é que as fronteiras entre amor e outras coisas são sempre mais borradas do que gostaríamos. E se dissermos que em relacionamentos abusivos tem amor? O que isso mudaria? Isso justificaria tolher a liberdade do outro? De que serve o amor, se não há respeito? Então, acho que o que nos interessa é menos colocar o amor num polo e o relacionamento abusivo no outro, e mais tratar das ambivalências no amor. O ódio faz parte do amor, nos indica Freud. Mas como dosar esse ódio, como vivê-lo de modo que ele não mate o próprio amor ou o torne intolerável? É uma pergunta que se faz a cada caso. BBC News Brasil - Em sua opinião, de que é feito o imaginário contemporâneo das relações amorosas? Quais clichês, expectativas e comportamentos costumam estar presentes? Suy - Acho que muitos de nós somos da geração Disney, né? Que é a geração do e-foram-felizes-para-sempre, sem colocar em questão o que acontece quando se fecha o livro, quando o filme acaba. Confundimos amor com paixão. Junto a isso somamos nosso atravessamento pelo discurso capitalista que nos vende a ideia de que nós merecemos ser amados, que o amor está à venda. Confundimos amor com meritocracia e confundimos o par amoroso como um objeto a ser consumido. Assim, o outro precisa atender às nossas exigências, precisa estar de acordo com o objeto que gostaríamos de consumir. Só que se as coisas andam bem, o outro (e nós também, já que sempre somos o outro de alguém) vai dar provas de que ele não se reduz a um objeto, que tem vontades próprias e outras idealizações. Se podemos inventar um modo de acolher e ser acolhido com alguém que também encontra um jeito de fazer esse malabarismo, algo do amor pode vir a acontecer. Mas, respondendo à sua pergunta de modo mais direto, nosso imaginário é o de que o amor é a resposta, quando na verdade está mais para uma pergunta. BBC News Brasil - O que o isolamento, o medo e o desamparo instalados pela pandemia de covid-19 trouxeram para as relações amorosas? Suy - Certamente as relações amorosas foram e estão profundamente afetadas pelo enfrentamento da pandemia. Por diversos motivos. O primeiro deles é o mais prático, que diz respeito ao modo de viver a vida, à divisão de tarefas em casa. A pandemia escancarou o quanto em muitas casas as mulheres estavam sobrecarregadas em relação aos homens e o quanto isso não precisa mais ser engolido a seco por nós mulheres. Não por acaso, o número de divórcios aumentou. Se em outros momentos uma mulher precisava estar casada com um homem para poder votar, estudar, trabalhar, já não é mais preciso. Isso muda a relação que as mulheres têm com os homens, com suas parcerias amorosas, com o amor. Um segundo motivo tem relação com os valores. A pandemia nos colocou em xeque com a fragilidade da vida e isso é um baita convite a repensar o que fazemos do breve tempo que temos vivos. Muitos casais viveram isso em sintonias muito diferentes, ou apenas um deles viveu e o outro, não. Um terceiro motivo, ainda, é que o amor precisa de espaço, de distância, de brechas. Como disse ali em cima, o amor é ponte. Que sentido tem de fazer ponte num mesmo continente? O excesso de convivência certamente teve efeitos sobre os casais. O erotismo passa pelo encontro com um estrangeirismo no outro. E fica muito difícil isso quando se faz tudo juntos e o outro parece ser uma extensão do seu próprio corpo. BBC News Brasil - Freud, já na fundação da Psicanálise, anunciava a diversidade do amor e dos arranjos afetivos. Qual a importância de considerarmos, como sociedade, a pluralidade de referenciais? Suy - A sexualidade humana é errante. Diferente dos outros animais, que não são seres de linguagem e que por isso podem se orientar pelo instinto, os seres humanos não dispõem dessa facilidade. Assim, os animais vivem e se reproduzem por instinto, os seres humanos, não. O amor é justamente uma prova disso, do quanto a nossa sexualidade é errante. Uma mulher que deu à luz a uma criança pode não se tornar mãe dela, e outra pode vir a adotá-la e se tornar mãe dela, por exemplo. O amor é uma invenção que fazemos enquanto seres de linguagem. Assim, tratando-se de uma invenção, isso pode ser vivido de várias formas. Sabemos que a monogamia, por muito tempo, era uma forma de os homens saberem que os filhos que as mulheres tinham eram deles mesmos e não de outros homens. Afinal, uma mulher que dá à luz a uma criança sabe que o filho que foi parido veio dela, mas o homem nunca pode saber, a não ser que essa mulher não tenha outras relações sexuais, é uma questão de lógica, simbólica. Por muito tempo, esse foi o molde dos relacionamentos em nossa cultura, os homens podendo ter acesso a várias outras mulheres e as mulheres precisando se manter fiéis aos homens. Bom, isso está explodindo.... mulheres e homens querem ter outras experiências. Estão inventando outros modos de estarem com alguém. Mas não é como se soubesse muito disso, né? Há muito experimento e investigação. O que se tem descoberto é que nada nessa vida, com exceção da morte, é para "todo mundo". BBC News Brasil - Por que o amor entre pessoas do mesmo sexo suscita tanta intolerância em nossa sociedade? Suy - O amor homoafetivo escancara a errância de toda a sexualidade humana. A tese de Freud é de que temos horror ao sexual, ele chega a dizer que se pudéssemos nos reproduzir de outro modo que não pelo sexo, assim o faríamos. Bom, a aliança da ciência com a tecnologia nos mostra o andamento disso cada vez mais, uma vez que cada vez mais se recorre aos laboratórios para ter filhos, por exemplo. Se ficamos no reduto da igreja, encontramos justamente a premissa de que o sexo é feito para a procriação. Então, não vale usar método anticoncepcional, já que enfrentaríamos, de acordo com esses pressupostos, o horror do sexual com o objetivo de fazer a humanidade se perpetuar. A homossexualidade demonstra a fragilidade dessa narrativa, uma vez que demonstra que, enquanto seres de linguagem, fazemos parcerias amorosas e sexuais por motivos outros que não a perpetuação da espécie. Há quem não tolere a própria sexualidade e, não podendo reconhecer a alteridade que habita em si, localiza seu horror no outro, a fim de tentar destruir o que não suporta em si. BBC News Brasil - O interesse do público mais jovem, como os millenials, por sexo e relacionamentos amorosos tem caído, conforme pesquisas de comportamento e fenômenos como o sekkusu shinai shokogun no Japão. Um dos argumentos utilizados é o do medo de arriscar. O que há de temível no amor? Suy - Eis a comprovação da tese freudiana, do horror que temos ao sexual. O outro nos desorienta, mais fácil é lidar com nós mesmos ou com os objetos que a cultura nos oferece. Os gadgets, games, álcool e drogas são muito menos perturbadores. A relação com o outro é trabalhosa porque é um constante exercício de nos reinventarmos, de nos reposicionarmos, de nos rever como causa e consequência da relação com o outro. É cansativo! No entanto, no mito do Narciso vemos que ele morreu de amores por si mesmo e não que foi feliz consigo. Eis o que Freud afirma em seu texto Psicologia das massas e análise do eu - e que escolhi para ser a epígrafe do meu livro: "só o amor pelos outros nos salva do amor por nós mesmos". BBC News Brasil - O amor aos filhos costuma trazer à mente comportamentos de devoção e entrega total, como uma espécie de requisito para o ideal de amor. O que contribuiu para essa associação e o que ela pode provocar? Suy - Acho que especialmente a maternidade tem essa conotação, de um amor ilimitado, de um amor "verdadeiro", como se as outras modalidades amorosas ficassem aquém da experiência da maternidade. Isso tem relação com a ideia que perpassa o nosso imaginário de que uma mulher só se torna mulher, mesmo, ao se tornar mãe. Mas acho que hoje em dias os homens também têm sido afetados por esse ideal de amor parental. Para Freud, o amor dos pais é um modo deles se reaverem com a criança idealizada que eles foram para os próprios pais. Dito de outro modo, os pais projetam na criança a criança idealizada que eles mesmos não foram. Então, a criança nasce com a impossível tarefa de viver sua vida e ao mesmo tempo restabelecer, a seus pais, aquilo que cada um deles não viveu. Se o pai queria ser médico e não pode, caberá à criança sê-lo. Se a mãe queria ser engenheira e foi feliz sendo, caberá à criança seguir o caminho da mãe. Assim, enquanto filhos, cada um de nós precisará dar um calote nos pais. Na medida em que os pais podem perder o ideal de filho que eles tiveram, podem desenvolver uma relação de amor e intimidade com a criança da realidade, para além de suas idealizações. Mas se os pais não toleram que seus filhos sejam outras pessoas e desejam insistir que os filhos sejam extensões de si mesmos, com frequência temos aprisionamento dos filhos ou rompimentos dos laços para que os filhos possam viver suas próprias vidas. BBC News Brasil - A separação pode ser um gesto de amor? Suy - Acho que uma separação "bem-sucedida" é sempre um gesto de amor. E por "bem-sucedida" me refiro àquelas separações que vão desembocar no amor. No amor por si mesmo, num próximo amor, numa inspiração do que uma relação amorosa pode vir a ser para os filhos. Há quem não se separe, mas fique ligado pelo ódio. No amor sempre se trata de se separar. Mesmo quando as pessoas continuam juntas. É preciso se separar do outro constantemente para poder rever quem se é e então poder ou não encontrar novamente com o outro. BBC News Brasil - O envelhecimento traz consigo a ameaça da perda de muitos amores. O que pode ser feito para aplacar a solidão? Suy - Viver traz consigo a ameaça da perda de muitos amores. O envelhecimento realiza essas ameaças na medida em que se costuma viver muitas perdas. Recentemente, li Uma questão de vida e morte (Paidós), do Irvin D. Yalom e da Marilyn Yalom. Foi um livro que começou a ser escrito a quatro mãos, assim que ambos souberam que ela tinha um câncer em estado terminal. Na metade do livro Marilyn falece e Yrvin termina de escrever o livro sozinho. É um dos livros mais bonitos que li porque é um testemunho do que é viver uma vida ao lado de alguém e seguir vivendo mesmo sem esse alguém. Ao longo do livro, os dois contam do quanto se realizaram também em outros âmbitos: estudaram, escreveram, publicaram, tiveram muitas amizades. Penso que para enfrentar os fins, sejam dos amores ou das vidas, precisamos fazer valer nossa existência. "Viver uma vida bem vivida", termo usado pelos autores, é um bom norte. BBC News Brasil - O que as parcerias platônicas (modelo de relacionamento geralmente associado às parcerias amorosas, mas não há romance ou sexo) podem dizer do amor em nossa época? Suy - Acho que cada vez mais o amor e o sexo se desvinculam. Nunca foram a mesma coisa, a psicanálise nos ensina isso, mas o modo da cultura abordar amor e sexo velava sua separação. Com o advento das inúmeras modalidades de parentalidade que encontramos (seja via fertilizações in vitro, seja via adoções), fica cada vez mais claro que se pode viver a amizade em uma parceria, as experiências sexuais em outra e a parentalidade em outra, ainda. Também a importância das relações sexuais tem sido repensada, tanto para homens quanto para mulheres. No fim das contas, fico pensando se não estamos dando voltas em torno do mesmo lugar, encontrando muitos nomes novos e assim achando que estamos reinventando a roda. A amizade, a meu ver, sempre foi uma modalidade amorosa. De todo o modo, acho que podemos testemunhar a grande disponibilidade de inventar diferentes de vivências no plano amoroso. É surpreendente!
2022-06-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61751209
sociedade
IML troca corpos e mãe só enterra filha uma semana após morte em SP
Nove meses de gestação, compra de enxoval, reforma do quarto e todos os preparativos para a chegada do bebê. Mas a filha da vendedora Amanda Lima de Melo Santiago, de 22 anos, nasceu morta e abalou a família. Para agravar a situação, ao fazer o reconhecimento no Instituto Médico Legal (IML), a irmã de Amanda percebeu que o corpo não era o da sobrinha dela, Clarice, e que ela já havia sido enterrada por outra família. Depois de uma semana, a mãe conseguiu exumar o corpo da filha, fazer um velório de uma hora e enterrá-la na sexta-feira (10). O IML confirmou o erro, lamentou o caso e disse que vai investigar e identificar os culpados pela falha. "Eu queria estar pelo menos aliviada, mas sabe quando você não consegue aceitar? Hoje era para (Clarice) estar fazendo sete dias de felicidade, mas vou enterrar minha filha", disse Amanda. Procurado pela BBC News Brasil, o Instituto Médico Legal confirmou o erro. Em nota, informou que "lamenta o ocorrido e esclarece que já prestou toda assistência à família. Todas as providências junto à funerária e ao Poder Judiciário já foram tomadas para corrigir a situação". Fim do Matérias recomendadas O IML disse ainda que "o caso será apurado e, se comprovada inconformidade com os procedimentos exigidos pela legislação, a Corregedoria e as Autoridades serão acionadas para as devidas providências. Da mesma forma, será oficiado o SVO para verificar as responsabilidades a fim de que tal situação não mais ocorra". A Polícia Civil afirmou que também investiga o caso no núcleo Corregedor de Taboão da Serra e que "todos os envolvidos serão ouvidos na unidade para esclarecimentos e apuração de eventual responsabilidade administrativa". Depois do parto da filha natimorta no hospital Family, em Taboão da Serra, na Grande São Paulo, o corpo foi encaminhado ao IML da mesma cidade. Mas Amanda permaneceu internada, em observação. Ela disse que não queria ver o corpo da filha. Mas pediu que o marido tirasse uma foto para ter como registro. "Eu queria saber como ela era, porque ela existiu", contou Amanda à reportagem. No IML, o reconhecimento foi feito pela irmã dela, Andressa Lima Santiago, de 21 anos. Ela recebeu, do marido de Amanda, a foto para confirmar a identidade do bebê. "Minha madrasta entrou para reconhecer o corpo junto comigo. Mas o Gustavo, da funerária que a gente contratou, chamou nós duas e falou que o peso da neném não estava correto. Quando eu fui ver, não tinha como ser a Clarice. A bebê que estava lá era prematura e o que chamou atenção foi que alguns membros ainda estavam se formando", disse Andressa Santiago. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela disse ter entrado em desespero e contou que, em seguida, o funcionário do IML ligou para a funerária e confirmou que os corpos haviam sido trocados. Segundo ela, o responsável pediu para que a família esperasse uma hora e meia, pois eles levariam o corpo da Clarice de volta para que fizessem o velório. Mas ela já tinha sido enterrada por outra família. "A gente chamou a polícia e fomos para a delegacia. Eles fizeram um B.O. e identificaram o pai que tinha enterrado a nossa bebê por engano", afirmou Andressa. O homem relatou para a família que também tinha estranhado o fato de a criança ser grande, mas que reconheceu o corpo, pois não tinha visto o feto anteriormente, que tinha 30 semanas e pouco mais de 1,5kg. A bebê de Amanda, que nasceu com um parto normal com fórceps de alívio (quando ele já está no canal vaginal), tinha 39 semanas e 3,5kg. "O pai da menina prematura disse que os funcionários do IML falaram para ele que só tinha aquele bebê para reconhecimento. Nem fizeram questão de olhar, mas a filha dele estava na geladeira. Ele disse que chegou até a questionar o motivo de ela estar mais gordinha, mas falaram que é assim mesmo, que 'quando morre, incha'", afirmou Amanda à BBC News Brasil. Para fazer a exumação do corpo, velar o bebê e depois enterrar, a família precisou contratar um advogado e entrar com uma ação na Justiça. A ordem judicial para realizar o procedimento foi expedida uma semana após o equívoco do IML e a exumação foi feita horas antes de a família celebrar a missa de Sétimo Dia de Clarice. O feto, que pensavam ser inicialmente da Clarice, permaneceu esse tempo todo no IML e também foi enterrado pela família verdadeira após o novo reconhecimento. Amanda e o marido dela já têm uma filha de 3 anos. Planejando a chegada de Clarice, o casal fez mudanças na casa onde mora na favela de Paraisópolis, zona sul de São Paulo. Eles decidiram adaptar e decorar o cômodo onde dormiam, que é maior, para as duas filhas. "Não consigo nem entrar no quarto e não quero me desfazer das coisas dela. Mesmo não tendo condições de comprar tudo novo, a gente comprou todo o enxoval. Com oito meses de gestação, eu comecei a lavar tudo e passar todas as roupas, saída da maternidade, e agora está tudo lá", contou Amanda. Ela relatou que não teve nenhum problema no pré-natal e que durante a gravidez não foram identificadas alterações na saúde do feto. Amanda disse ter feito o acompanhamento da gravidez com a mesma médica da primeira gestação, no bairro onde ela mora, pois a considerava de confiança. Mas Amanda fez ressalvas em relação ao atendimento do hospital Family, em Taboão da Serra, onde aconteceu o parto. A vendedora contou que, por diversas vezes, ficou sozinha no quarto durante o trabalho de parto e que o hospital não a informou com clareza a causa da morte da bebê. "Na declaração de óbito dela, eles colocaram que a causa da morte foi por falta de oxigênio. Eu quero saber o que motivou essa falta de oxigênio, porque durante o pré-natal estava tudo certo. Ela respirava normalmente", afirmou Amanda, que disse querer uma resposta mais precisa sobre a causa da morte. Procurado, o hospital Family informou em nota que, "devido à impossibilidade de atestar a causa do óbito, a criança foi encaminhada ao IML da cidade de Taboão da Serra para verificação. O hospital abriu uma sindicância interna para apurar todos os atendimentos e procedimentos prestados a paciente". Ao final da entrevista à reportagem, Amanda disse que está muito abalada e que não entrou mais no quarto reformado para as filhas. Ela disse que sente como se estivesse vivendo um pesadelo. "Uma mulher sofre muito para ter um filho. Aí você perde e fica um vazio que ninguém ocupa, que não tem fim. Tem gente que diz que sou nova e posso ficar grávida de novo. Mas se eu engravidar de novo, é outra outra história que não apaga essa".
2022-06-10
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61766545
sociedade
Dieta vegana pode ser segura para crianças?
Em 2010, Ashish Kumar Jain estava no Reino Unido, trabalhando na área de tecnologia da informação. Na época com 28 anos de idade, ele encontrou um vídeo online que lhe causou profundo impacto. O vídeo descrevia as crueldades cometidas pela indústria de laticínios, especialmente contra os bezerros. Jain esperava pelo nascimento do seu primeiro filho e ansiava por voltar à Índia para acompanhar o parto. Ele convenceu a si mesmo e à esposa a adotar a alimentação vegana. E o casal, que mora na cidade de Indore, no Estado de Madhya Pradesh (região central da Índia), decidiu também criar seu bebê como vegano. Hoje, sua filha Arul é uma menina saudável com 11 anos de idade e ardente defensora do veganismo. Jain conta que criar Arul como vegana foi menos estressante do que responder às preocupações dos parentes sobre as suas escolhas. Segundo o pai, um fator que facilitou muito a transição foi o longo histórico indiano na alimentação sem carne. Essa tradição tende a ser vegetariana e não vegana, mas inclui lições úteis sobre como maximizar o poder nutricional das refeições de origem vegetal - o que pode beneficiar o crescente número de crianças e adultos veganos, não apenas na Índia, mas em todo o mundo. Estima-se que 400 milhões de pessoas na Índia (o que representa 39% da população do país) identifiquem-se como vegetarianas por razões religiosas e outros motivos, em comparação com apenas cerca de 5% nos Estados Unidos. Fim do Matérias recomendadas A dieta vegetariana não é igual à vegana. Ela normalmente inclui, por exemplo, laticínios, enquanto a dieta vegana evita todos os produtos animais. Mas o legado vegetariano da Índia resultou em uma culinária particularmente diversificada, com pratos de origem vegetal que são facilmente adaptados às preferências dos veganos. Aliada às novas descobertas científicas sobre dietas de origem vegetal feitas por pesquisadores em todo o mundo, essa experiência poderá também ajudar os pais a responder uma questão fundamental: a dieta vegana é segura para as crianças? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O veganismo vem ganhando força em todo o mundo, apoiado por campanhas como o "Veganeiro" (que incentiva as pessoas a serem veganas por um mês, em janeiro), além do aumento da consciência sobre os benefícios da alimentação livre de carne e laticínios para o clima do planeta. Cada vez mais pesquisas indicam que a alimentação de origem vegetal traz uma série de benefícios para a saúde dos adultos. Na Índia, o crescente movimento vegano tira proveito de uma antiga tradição. Influenciadores e grupos veganos nas redes sociais destacam o poder nutricional dos cereais, leguminosas e grãos locais. Os veganos da Índia trocam receitas tradicionais em grupos como Cooking with Millets, no Facebook ("Cozinhando com milhetes", em tradução livre). O grupo promove esse cereal que é endêmico na Índia. Influenciadores veganos promovem os benefícios de ingredientes antigos, como lentilhas, grão-de-bico e feijão-mungo. Em 2016, a Academia Internacional Alemã - um internato na cidade de Chennai, no sul da Índia - chegou às manchetes após tornar-se uma escola totalmente vegana. E, embora muitos vegetarianos indianos sigam consumindo produtos lácteos como ghee (manteiga clarificada), iogurte e paneer (queijo cottage), Jain indica que, no passado, nem sempre isso acontecia, pois muitos pratos tradicionais indianos não contêm laticínios. Mas, para as crianças, os riscos e benefícios da dieta vegana são um pouco mais complexos que para os adultos. O aspecto mais importante a ser considerado talvez seja que uma criança em crescimento precisa de nutrientes específicos para cada fase do seu desenvolvimento. Se esses nutrientes não forem fornecidos, as consequências podem ser perigosas, especialmente para as crianças mais jovens. A alimentação das crianças também precisa incluir alto teor de energia e nutrientes, já que as porções dos alimentos são menores. "As crianças e os bebês estão crescendo e se desenvolvendo rapidamente, especialmente na primeira infância. Eles têm enorme necessidade de certos nutrientes, mas seus estômagos são relativamente pequenos. Isso significa que os alimentos fornecidos devem oferecer o máximo de nutrientes e energia suficiente em volume relativamente pequeno", explica Mary Fewtrell, professora de nutrição pediátrica do Instituto de Saúde Infantil Great Ormond Street, do University College London (UCL). Para os bebês, o leite materno é considerado a melhor forma de fornecer a nutrição e a energia de que eles precisam para crescer, enquanto a dieta vegana precisa ser cuidadosamente planejada para garantir que atenda às necessidades das crianças maiores. De fato, o veganismo sem orientação já resultou em tragédias nessa faixa etária que, embora raras, poderiam ter sido evitadas. Em 2016, uma criança com um ano de idade, que recebia alimentação vegana, foi retirada dos seus pais em Milão, na Itália, depois que seus exames de sangue revelaram níveis perigosamente baixos de cálcio. A imprensa italiana noticiou que a criança, com um ano de idade, pesava o mesmo que um bebê de três meses e que seu nível de cálcio era apenas o suficiente para que ele conseguisse sobreviver. Em 2017, um tribunal da Bélgica condenou os pais de um bebê de sete meses que havia morrido de desidratação e desnutrição, depois que o menino recebeu uma dieta de leite vegetal feito de aveia, trigo sarraceno, arroz e quinoa. Para as crianças mais velhas, as pesquisas indicam que a alimentação vegana pode ter benefícios, mas também algumas desvantagens. Em 2021, um estudo publicado pelo American Journal of Clinical Nutrition comparou os efeitos da alimentação vegana, vegetariana e onívora sobre a saúde de crianças polonesas com 5 a 10 anos de idade. O estudo pesquisou 63 vegetarianos, 52 veganos e 72 onívoros (este último grupo teve alimentação diversa, que incluiu carne e laticínios). Malgorzata Desmond, a principal autora do estudo, agora é pesquisadora honorária do Instituto de Saúde Infantil Great Ormond Street do UCL. Segundo ela, "embora o número de crianças do nosso estudo fosse relativamente pequeno, este é o maior estudo do seu tipo já realizado especificamente com crianças veganas dessa idade - o primeiro que reuniu [mais de] 50 participantes em cada grupo de alimentação vegetal, comparando-os com onívoros cuidadosamente selecionados". Mary Fewtrell também foi autora do estudo, que identificou pontos bons e ruins para as crianças veganas. "A boa notícia é que, em comparação com os onívoros, as crianças veganas ficavam em melhor forma e tinham melhores índices de risco cardiovascular, como colesterol mais baixo", destaca ela. Isso pode colaborar para reduzir o risco de doenças cardíacas em fases posteriores da vida. "A desvantagem é que elas eram mais baixas e tinham menos massa óssea que o esperado para a sua idade." As crianças veganas tinham, em média, 3cm a menos de altura, mas isso não quer dizer que elas fossem raquíticas ou que seriam mais baixas para sempre, segundo Jonathan Wells, professor de antropologia e nutrição pediátrica do UCL e outro dos autores do estudo. "As crianças veganas tinham menos massa gorda e tendência a pesar menos", afirma Wells. "É possível que elas atingissem a puberdade um pouco mais tarde. Nós observamos que as crianças que atingem a puberdade mais tarde, na verdade, ampliaram seu período de crescimento, pois elas passam mais anos crescendo." Por isso, existe a possibilidade de que essas crianças fiquem mais altas quando ficarem adultas. A única descoberta que os pesquisadores consideraram preocupante foi a densidade mineral óssea comparativamente mais baixa das crianças veganas. "O osso atinge sua densidade ideal com pouco mais de 20 anos de idade. Por isso, se você não formar densidade óssea nessa idade, não conseguirá fazê-lo mais tarde", explica Wells. As pessoas com densidade mineral óssea mais baixa na idade adulta sentirão seus impactos na terceira idade, tornando-se mais vulneráveis a doenças como a osteoporose, já que os ossos lentamente ficam mais frágeis. "Por isso, a alimentação vegana pode ter mudado o perfil das doenças de maior risco para as pessoas à medida que envelhecem", segundo Wells. "Em vez de doenças cardiovasculares [doenças do coração], elas podem ter tendência a sofrer doenças dos ossos (ossos mais fracos). Mas isso não quer dizer que agora elas não sejam saudáveis." Algumas das conclusões do estudo foram surpreendentes. As crianças vegetarianas, por exemplo, apresentaram tendência a consumir mais produtos não saudáveis, como pizza e refrigerantes - um lembrete de que a alimentação vegetariana sozinha não é garantia de um menu saudável e equilibrado. E, como era de se esperar, os onívoros tiveram a ingestão estimada de proteínas mais alta e os veganos, a mais baixa. Mas os vegetarianos tiveram a ingestão estimada mais alta de cálcio (enquanto os veganos tiveram a mais baixa). Cerca de um terço das crianças do estudo com alimentação vegana ou vegetariana não receberam suplementos de vitamina B12, nem alimentos enriquecidos com vitamina B12 - embora esses suplementos sejam normalmente recomendados para pessoas com alimentação de origem vegetal. A Academia de Nutrição e Dietéticos dos Estados Unidos, por exemplo, afirma que dietas veganas e vegetarianas bem planejadas são apropriadas para todos os estágios da vida, incluindo a gravidez e a infância. Mas ela também acrescenta que os veganos precisam garantir a ingestão de vitamina B12, seja na forma de suplementos ou de alimentos enriquecidos. Uma conclusão possível é que algumas dessas dietas de origem vegetal poderiam ter melhores resultados se incluíssem ingredientes mais nutritivos. Ou, como os autores afirmam no estudo: "crianças veganas e vegetarianas precisam de orientação para comer de forma saudável, além de conselhos sobre suplementação". Em termos gerais, os estudos sobre dietas vegetais - vegetarianas, não apenas veganas - tendem a concluir que elas são seguras para crianças. Um estudo longitudinal envolvendo crianças com seis meses a oito anos de idade nos Estados Unidos concluiu que não há provas de diferenças clinicamente significativas no crescimento ou no estado nutricional de crianças com alimentação vegetariana, em comparação com as demais. Mas as crianças vegetarianas (a amostra também incluiu crianças veganas) apresentaram maior possibilidade de ficarem abaixo do peso. A Sociedade Alemã de Medicina Pediátrica e dos Adolescentes também adotou uma posição geral favorável em um estudo de 2019 sobre a alimentação vegetariana (incluindo vegana) para crianças e adolescentes. Ela afirmou que "as necessidades nutricionais das crianças e adolescentes em crescimento podem ser geralmente atendidas com uma dieta vegetal equilibrada", apenas acrescentando que a alimentação vegetariana na infância e na adolescência exige a supervisão de um pediatra e que os veganos devem receber suplementação de vitamina B12. E a alimentação baseada em carne também pode apresentar seus próprios riscos, devido aos hormônios encontrados na carne e no leite. Mas as evidências a este respeito são contraditórias. Os autores de uma análise de estudos sobre estrogênios no leite de vaca e seus potenciais efeitos à saúde humana afirmam que "na pecuária intensiva, a concentração de estrogênios no leite é mais alta devido aos longos períodos de ordenha". Eles indicam que a exposição a esses hormônios pode afetar as crianças, prejudicando seu desenvolvimento de formas que somente podem ficar evidentes na vida adulta - menor número de espermatozoides, por exemplo. Mas eles também argumentam que o leite traz uma série de benefícios para a saúde. A análise conclui que, embora a quantidade de estrogênios no leite de vaca seja baixa demais para prejudicar a saúde de humanos adultos, mais pesquisas são necessárias para determinar o impacto sobre as crianças, especialmente nos primeiros estágios de desenvolvimento. Nos últimos anos, a atenção global tem se voltado com frequência para as novidades de origem vegetal. Queijos veganos ou hambúrgueres sem carne facilitaram para muitas pessoas a mudança para uma alimentação mais baseada em plantas. Mas o foco sobre essas surpreendentes inovações pode nos fazer esquecer outros ingredientes que estão disponíveis há séculos e poderiam corrigir possíveis falhas nutricionais nas refeições das famílias veganas. Bhavya Chandra Prem, engenheira técnica com 33 anos de idade, cresceu no distrito de Kunnur, no Estado de Kerala (sul da Índia). Sua alimentação era predominantemente não vegetariana e incluía carne, galinha ensopada e parathas (um tipo de pão achatado indiano). Em 2014, depois de mudar-se para cursar a universidade na Espanha, Prem tornou-se vegana quase que da noite para o dia, quando uma amiga vegana que morava com ela perguntou: "por que você iria querer matar e comer algo que você ama?" Uma rápida pesquisa mostrou a ela a horrível realidade da indústria da carne e laticínios. "Assisti a alguns documentários, como Cowspiracy: O Segredo da Sustentabilidade e Earthlings [Terráqueos, no Brasil] e não podia viver uma mentira consumindo produtos de carne, leite ou peixe. Desde então, eu me tornei vegana e não olhei mais para trás", conta Prem, que agora vive na República Checa. Em 2020, quando soube que estava grávida, ela passou por enjoos matinais terríveis até o sexto mês de gestação e quase não conseguia manter nada no estômago, além de bolachas, arroz e sopa. Quando essa fase passou, ela começou a procurar alimentos veganos mais saudáveis e ricos em nutrientes, com o apoio do marido, que é italiano. O ginecologista de Prem disse que seguir uma dieta vegana não prejudicaria sua criança em crescimento, desde que ela comesse alimentos com alto teor de proteínas. "Eu comia diferentes tipos de dals [prato indiano preparado com leguminosas], lentilhas, legumes e toneladas de sopas vegetais, tofu e produtos de soja", ela conta. Seus pratos preferidos eram cherupayaru (curry preparado com feijão-mungo) e os ensopados típicos de Kerala, que costumam incluir leite de coco. Em novembro de 2021, seu bebê nasceu saudável com 3,6 kg e está se desenvolvendo bem, segundo ela. Prem destaca que não quer impor seus próprios valores éticos ao seu filho, mas vai apresentar a ele alimentos mais diversificados, sem carne, à medida que ele crescer. A nutróloga Edwina Raj, dos hospitais Aster CMI em Bangalore, no sul da Índia, indica que os alimentos tradicionais da Índia oferecem muitas opções para os veganos. "Temos visto veganos que dependem muito das farinhas refinadas e dos carboidratos", afirma ela. "Mas eles precisam concentrar-se nos carboidratos complexos. Nós indicamos as diversas variedades de arroz integral - vermelho, marrom e preto. Os pais veganos precisarão ter em mente que a necessidade de proteína na alimentação é de 1 g por kg de peso do corpo [por dia] e planejar as refeições adequadamente." Raj recomenda milhetes, lentilhas, ervilhas verdes secas e feijão como fontes de proteína de alta qualidade. A nutricionista pediátrica vegana Karla Moreno-Bryce, de Minneapolis, nos Estados Unidos, argumenta que, independentemente da culinária escolhida pela família, pode ser relativamente fácil planejar refeições veganas saudáveis. "Preparar refeições para crianças veganas exige apenas um pouco de atenção para garantir que os principais nutrientes (ferro, zinco, iodo, ômega 3, cálcio, vitamina D e vitamina B12) sejam oferecidos ao longo do dia com uma variedade de alimentos vegetais e suplementos alimentares", orienta ela. "É particularmente importante que todas as crianças veganas recebam um suplemento confiável de vitamina B12, preferencialmente quando começarem a ingerir alimentos sólidos. Essa substância não existe na natureza em alimentos vegetais e os suplementos, além de alimentos enriquecidos, são a fonte mais confiável para fornecer esse importante nutriente", segundo Moreno-Bryce. Ela afirma que, com a combinação correta de ingredientes, os pais podem oferecer versões veganas saudáveis de muitas culinárias diferentes. "Muitos pais veganos preocupam-se em garantir que as refeições dos seus filhos consistam de legumes e verduras. Embora sejam importantes e forneçam muitos nutrientes, eles não contêm as calorias [necessárias] para sustentar o crescimento e o desenvolvimento da criança." "Eu aconselho os pais veganos a concentrar-se em oferecer alimentos ricos em ferro (como feijão, lentilhas e tofu) e gordura (como abacate e manteigas de nozes), pois estes são dois nutrientes importantes durante os períodos de rápido crescimento", orienta Moreno-Bryce. Para atender às crescentes necessidades nutricionais da sua filha vegana na Índia, Ashish Kumar Jain procura verduras cultivadas na sua região, como os espinafres locais, methi (folhas de feno-grego), sementes de cominho, coentro e folhas de curry, além de sementes de gergelim, tofu e milhete, ricas em nutrientes. Jain substitui o leite por extratos de amêndoas e de coco e produz "queijo" de castanhas de caju e batatas, além de iogurte de leite de amendoim. "Nós nunca sentimos falta dos laticínios", ele conta. "E existem muitas razões para priorizar o veganismo, que vão além da alimentação e da saúde - a compaixão pelos animais, o clima e a sustentabilidade. O veganismo é um movimento de justiça social, além de ser uma escolha saudável." Importante: Todo o conteúdo desta reportagem é fornecido apenas como informação geral e não deverá substituir o conselho profissional do seu médico ou de outro profissional de assistência médica. A BBC não é responsável por nenhum diagnóstico, nem por ações tomadas pelos usuários com base no conteúdo deste site. A BBC não é responsável pelo conteúdo de nenhum site de internet externo mencionado, nem recomenda nenhum serviço ou produto comercial mencionado ou comercializado em nenhum desses sites. A BBC recomenda a qualquer pessoa interessada em realizar mudanças alimentares que consulte primeiramente o seu profissional de assistência médica. Consulte sempre o seu médico em caso de qualquer preocupação com a sua saúde ou com a saúde dos seus filhos.
2022-06-08
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-61726310
sociedade
A Ucrânia de Clarice Lispector: como nascimento e migração ilustram capítulo sombrio do povo ucraniano
A pequena Haia Pinkhasovna Lispector tinha um ano e três meses quando desembarcou no porto de Maceió, em Alagoas, em 1922. Acompanhada dos pais e das duas irmãs, ela migrou da Ucrânia para o Brasil logo após a Guerra Civil Russa (1918-1921). Em solo nordestino, as meninas foram rebatizadas com nomes brasileiros. A caçula, Haia, virou Clarice. E, 20 anos depois, se tornaria a famosa escritora Clarice Lispector — naturalizada brasileira nos anos 1940. De origem judaica, quase toda a família Lispector — não só os pais de Clarice, como também seus tios e primos — chegou ao Brasil fugindo das perseguições contra judeus na Ucrânia no início do século 20. "Os familiares que não saíram da Ucrânia naquela época certamente morreram. É o caso de um dos avós de Clarice, que teria sido assassinado em um pogrom", afirma a escritora Teresa Montero, uma das maiores biógrafas de Clarice Lispector. Os "pogroms" foram uma onda de ataques violentos contra judeus, com motivações políticas e religiosas, que varreu a Ucrânia nas décadas de 1910 e 1920. Fim do Matérias recomendadas Os Lispector foram alvo de um pogrom praticado por militares russos na aldeia onde moravam, em Chechelnyk, na província de Podólia, por volta de 1919. O episódio foi descrito no livro Clarice, Uma Biografia, do crítico americano Benjamin Moser. Segundo a obra, o ataque aconteceu durante uma viagem do pai de Clarice, o comerciante Pinkhas, e a mãe dela, Mania, teria sido estuprada e contraído sífilis. Clarice foi concebida neste contexto: a família acreditava, segundo uma crença popular, que uma gravidez poderia curar a doença de sua mãe. Não à toa, o nome Haia significa "vida" em ucraniano. A cura de Mania, contudo, não aconteceu, e ela morreu quando Clarice tinha dez anos. A escritora contou o episódio em uma crônica, publicada no livro A Descoberta do Mundo, de 1968: "(...) Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa culpa: fizeram-me para uma missão e eu falhei." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Os anos 1910 e 1920 foram difíceis para toda a Ucrânia, mas particularmente para a população judaica", afirma Jeffrey Veidlinger, professor de história e estudos judaicos da Universidade de Michigan, nos EUA. Ele explica que, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), a maioria dos judeus na Ucrânia, na época pertencente ao Império Russo, eram artesãos ou comerciantes pobres que viviam em pequenas aldeias e sofriam perseguições religiosas e políticas. "Durante a Primeira Guerra, os militares russos deportaram centenas de milhares de judeus das fronteiras do império russo, temendo que eles pudessem ser recrutados como espiões para os alemães", explica Veidlinger. A situação piorou a partir de 1917, com a Guerra Civil Russa instaurada com o fim do czarismo e a consolidação da Revolução Russa, liderada pelos bolcheviques. "Os pogroms mais letais foram praticados entre 1917 e 1921 por gangues armadas e unidades militares dos exércitos russos, ucranianos e poloneses", diz Veidlinger. Estima-se que mais de 100 mil judeus foram mortos durante os pogroms de 1917 a 1921, segundo o professor, e outros 600 mil foram forçados a fugir da Ucrânia. Com o desmantelamento do Império Russo, a Ucrânia e a Polônia vivenciaram um breve período de independência, mas também passaram por uma guerra civil em que judeus frequentemente eram alvos de saques e perseguições. "O Exército ucraniano e o Exército Branco [russos contrários à Revolução Russa] atacaram os judeus com a suspeita de que eram leais aos bolcheviques. Já os poloneses acusaram os judeus de serem leais aos ucranianos", descreve Veidlinger. A maior parte da violência contra os judeus, no entanto, foi cometida sob a acusação de que eles estavam do lado dos bolcheviques. "Os bolcheviques inicialmente atacaram os judeus sob a acusação de que eram capitalistas burgueses. Depois, o Exército Vermelho defendeu os judeus. Vários dos líderes bolcheviques mais visíveis, incluindo o chefe do Exército Vermelho, Leon Trotsky, eram conhecidos por terem origem judaica", completa Veidlinger, lembrando que o próprio Trotsky nasceu na Ucrânia. Depois do Holocausto cometido pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial (1941-1945), os pogroms são considerados o pior episódio antissemita da história. Teresa Montero lembra que, apesar de Clarice ter falado muito pouco sobre a sua origem, trechos de suas crônicas publicadas no Jornal do Brasil, onde foi colunista entre 1967 e 1973, tocam brevemente no tema. "Na Polônia, eu estava a um passo da Rússia. Foi-me oferecida uma viagem à Rússia, se eu quisesse. Mas não quis. Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo", escreve Clarice em uma crônica sobre suas viagens como mulher do diplomata Maury. A escritora também nunca se manifestou publicamente sobre os episódios políticos que marcaram a Ucrânia e a Rússia. "Não tem nenhum depoimento ou entrevistas em que Clarice tenha falado sobre a vida política da Ucrânia, nem sobre a União Soviética", afirma Montero. Uma das hipóteses sobre o silenciamento de Clarice diante das questões políticas do seu país de origem era o medo de ser deportada. "Quando entrevistei a tradutora Tati de Moraes, amiga de Clarice, ela me contou que a escritora tinha medo de ser deportada", lembra a biógrafa. Contudo, isso não significa que Clarice não tivesse uma postura política. "Ela [Clarice] foi fichada pela ditadura por ter participado da Passeata dos Cem Mil. Antes, ela já havia sido fichada pelo governo [Eurico Gaspar] Dutra, certamente por ser judia e de origem russa", ressalta Montero. A Passeata dos Cem Mil foi uma manifestação popular contra a ditadura militar e a favor da democracia, encabeçada por intelectuais, artistas e estudantes, em 1968, no Rio de Janeiro. Marcos históricos ocorridos na Ucrânia que foram contemporâneos de Clarice: - 1921: Parte da Ucrânia é incorporada à Polônia. - 1922: Ucrânia é incorporada à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). - 1953: a Ucrânia anexa a Crimeia. Quem seria responsável por narrar as memórias da família Lispector na Ucrânia seria a irmã mais velha de Clarice, a também escritora Elisa Lispector. "Elisa nasceu em 1911, era a mais velha das três irmãs. Clarice, a caçula, nasceu em 1920. Então, quem tinha memória do período na Ucrânia era Elisa, que chegou no Brasil já com 10 anos", diz Montero. No livro Retratos Antigos, publicado postumamente em 2011 (Elisa morreu em 1989, deixando a obra inédita), a escritora conta sobre os pogroms e a vida dos judeus na Ucrânia. "Como se iniciava um pogrom?, já me perguntaram por mais de uma vez, e eu não soube responder. Talvez porque eles mesmos, os que faziam os pogroms, não pudessem dizer", diz ela em um trecho do livro. Elisa escreve que as cidades permitiam que apenas uma porcentagem de judeus frequentasse a escola e universidade e que, apesar de terem o direito de morar nas cidades, "até nos pequenos vilarejos, nos casebres de madeira, nas ruas tortuosas de caminhos de lama, os judeus viviam segregados e com medo". "Hoje, falamos ucraniana, mas, na realidade, a nacionalidade da Clarice é russa, porque, na época do seu nascimento, a região pertencia ao Império Russo", explica Montero. A questão fica clara na carta que Clarice escreveu ao presidente Getúlio Vargas pedindo sua naturalização, em que afirma ser: "Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil há 21 anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo (...) Que não tem pai nem mãe — o primeiro, assim como as irmãs da signatária, brasileiro naturalizado — e que por isso não se sente de modo algum presa ao país de onde veio, nem sequer por ouvir relatos sobre ele. Que deseja casar-se com brasileiro e ter filhos brasileiros. Que, se fosse obrigada a voltar à Rússia, lá se sentiria irremediavelmente estrangeira, sem amigos, sem profissão, sem esperanças." Apesar do tom dramático, Teresa lembra que a carta foi escrita às vésperas do Brasil entrar na Segunda Guerra Mundial — o documento é de 3 de junho de 1942, e o país declarou guerra à Alemanha em 22 de agosto do mesmo ano — e que Clarice estava noiva do diplomata Maury Gurgel Valente, mas não podia se casar por ser estrangeira. "O Itamaraty não permitia que diplomatas se casassem com estrangeiros, e Clarice não era só estrangeira, era também russa", explica a biógrafa. A naturalização foi concedida um ano após a carta endereçada a Vargas. Cerca de duas semanas depois, Clarice e Maury se casaram. A escritora morreu em 1977, no Rio de Janeiro, tendo afirmado durante toda a vida adulta ser brasileira.
2022-06-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61489568
sociedade
Como Elizabeth 2ª enfrentou 3 crises que abalaram Reino Unido
Nesta semana, o Reino Unido comemora 70 anos do reinado da rainha Elizabeth 2ª, que, com amplo apoio popular, resistiu às transformações radicais vividas pelo país nas últimas sete décadas, tornando-se a pedra angular da nação. "A mudança tornou-se uma constante, gerenciá-la tornou-se uma disciplina em expansão", declarou a monarca em 2002 durante seu discurso por ocasião das comemorações de seu Jubileu de Ouro, quando admitiu que se considerava a guia do país em meio a tempos turbulentos. Quais foram essas transformações que Elizabeth 2ª enfrentou e conseguiu superar em seu longo reinado? Em 1953, com apenas 27 anos, a monarca foi coroada e apresentada ao mundo como um novo começo para um reino empobrecido que viu seu império se desfazer após os estragos da 2ª Guerra Mundial. "Não somos mais uma potência imperial, chegamos a um acordo com o que isso significa para nós e para nossas relações com o restante do mundo", admitiu, ao defender a consolidação a Commonwealth of Nations (Comunidade Britânica de Nações), grupo que reúne o Reino Unido e suas ex-colônias. Fim do Matérias recomendadas "A Commonwealth não é como os impérios do passado", explicou a rainha em sua mensagem de Natal em 1953. "É uma concepção completamente nova, construída sobre as mais altas qualidades do espírito humano: amizade, lealdade e desejo de liberdade e paz." Com essas palavras, Elizabeth 2ª reconheceu que a monarquia e o país precisavam se adaptar às sensibilidades do pós-guerra e aceitar o declínio do colonialismo. Apesar de na sua época haver quem visse na organização a certeza do declínio da influência britânica no mundo, a monarca manteve o entusiasmo por esse fórum internacional. "A esta nova concepção de uma associação igualitária de nações e raças me entregarei de corpo e alma todos os dias da minha vida", prometeu. No entanto, seus primeiros anos também coincidiram com as tensões sociais causadas pela chegada de imigrantes das ex-colônias no Reino Unido. Durante a década de 1970, a rainha, além de chefe de Estado e comandante-em-chefe das Forças Armadas, assumiu o papel de "consoladora-chefe" dos britânicos diante dos problemas que enfrentavam. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Somente em 1974, o Reino Unido mergulhou em uma onda inflacionária, em um momento de instabilidade política que provocou duas eleições gerais, e também sofreu uma sangrenta campanha de ataques perpetrados pelo grupo extremista Exército Republicano Irlandês (IRA, na sigla em inglês). "Ouvimos muito sobre nossos problemas, discórdia e incerteza sobre nosso futuro", disse ela. "Minha mensagem hoje é de encorajamento e esperança." Diante de uma sociedade polarizada e fraturada pela violência e pela crise econômica, a soberana queria que suas palavras e ações fossem vistas pelos britânicos como neutras e imparciais, embora também tenha usado sua fé cristã para encorajar seus súditos a encontrar conforto. "Boa vontade é melhor que ressentimento, tolerância é melhor que vingança, compaixão é melhor que raiva", disse ela. Com a queda do Muro de Berlim em 1989, Elizabeth 2ª considerou oportuno lembrar seus súditos de suas responsabilidades diante dessas mudanças históricas e alertá-los sobre os perigos de cair no triunfalismo. "Nós, que afirmamos ser do mundo livre, devemos examinar o que realmente queremos dizer com liberdade e como podemos ajudar a garantir que, uma vez estabelecida, ela permaneça", disse ela, em um discurso naquele ano. Em 1992, Elizabeth 2ª viu como o aniversário de suas quatro décadas no trono foi manchado pelo naufrágio dos casamentos de dois de seus filhos, depois de suportar por meses o constrangimento de ver escândalos de infidelidade sendo publicados pelos tablóides britânicos. E como se isso não bastasse, também teve que enfrentar o incêndio que reduziu a cinzas parte do Castelo de Windsor, sua residência habitual nos arredores de Londres. Assim, não causa surpresa que a monarca tenha descrito esse período como "annus horribilis". No entanto, Elizabeth 2ª tentou ficar de fora da briga e ignorar as manchetes. "A distância", refletiu a rainha, pode "dar uma dimensão extra ao julgamento, dando-lhe uma centelha de contenção e compaixão, até mesmo sabedoria, que às vezes falta nas reações daqueles cuja tarefa na vida é oferecer opiniões instantâneas". No entanto, seu maior desafio ainda estava por vir. A morte da princesa Diana, que era mulher de seu filho mais velho e herdeiro do trono, Charles, em um acidente de carro em Paris em 1997 desencadeou uma onda de críticas pelo silêncio e inação da família real ante o ocorrido. Muitos desses ataques foram dirigidos contra a rainha pessoalmente, já que grandes setores da sociedade britânica exigiam que ela se juntasse à dor que assolava o país. Inicialmente, a monarca e seu círculo mais próximo ficaram em sua residência escocesa em Balmoral, onde ela tradicionalmente passa o verão. Elizabeth 2ª ignorou os telefonemas, alguns do próprio governo do então primeiro-ministro Tony Blair, para que ela se dirigisse ao país. Seis dias após a morte da chamada "princesa do povo", ela voltou a Londres e falou ao vivo para a nação, vestida de preto fúnebre. "Como rainha e avó, quero dizer isso de coração (...) Esta semana em Balmoral, todos tentamos ajudar (os príncipes) William e Harry a aceitar a perda devastadora que eles e o restante de nós sofremos", disse ela, sendo a primeira vez em seu reinado que lhe foi permitido unir seus dois papéis: o público, de monarca, e o privado, de avó. No entanto, mesmo naquele raro discurso na véspera do funeral de Diana, amplamente coberto pela imprensa e que reuniu milhares de pessoas em Londres, a rainha manteve uma distância emocional, fiel à sua crença em como um monarca deveria se comportar. A decisão foi um risco, porque a fleumática sociedade britânica começou a equiparar cada vez mais autenticidade com expressão de sentimentos. No entanto, a soberana parece ter ganho a aposta, já que para o seu Jubileu de Diamante (60 anos de reinado) em 2012 ocupou uma posição incontestável nos corações da nação, situação que não se alterou nos últimos anos. Hoje, 81% dos britânicos têm uma opinião favorável a Elizabeth 2ª, segundo a mais recente sondagem do instituto de pesquisas Yougov. Apesar das mudanças e escândalos que permearam a instituição, em nenhum momento de seu longo reinado o republicanismo atraiu apoio popular significativo no Reino Unido. O futuro da Coroa parece assegurado, pois as mesmas sondagens revelam que seis em cada dez britânicos (62%) consideram que a monarquia é a melhor forma de governo.
2022-06-03
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61681472
sociedade
Vacina contra covid chega à rede privada; entenda como vai funcionar
Se no começo de 2021 ansiávamos pelo dia em que alguma vacina contra a covid-19 chegaria ao Brasil, passados 18 meses, a quantidade dos imunizantes em território nacional é suficiente para atender a toda a população - e com folga, o que abriu espaço para que doses chegassem ao sistema privado. O encerramento da "Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional pela Covid-19" pelo Ministério da Saúde impactou leis e normas estabelecidas para o enfrentamento da pandemia, permitindo que as vacinas licenciadas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) pudessem ser oferecidas pelos serviços privados de vacinação. A liberação, no entanto, não significa que uma nova dose deva ser tomada por qualquer um que deseje reforçar a imunidade. "Devemos respeitar as indicações do MS [Ministério da Saúde] sobre os grupos que precisam receber novas doses, porque a indicação deve ser sempre pautada em dados. Esses dados são embasados em necessidade epidemiológica, levando em consideração quem está em risco e o custo-benefício da vacinação", diz Flávia Bravo, diretora da SBIm (Sociedade Brasileira de Imunizações). Atualmente, as recomendações são de dose de reforço para adolescentes 12 a 17 anos, preferencialmente com a vacina da Pfizer, até a terceira dose para pessoas com mais de 18 anos e quarta dose para imunossuprimidos e idosos acima de 60 anos - com a previsão de ampliação da faixa etária para 50 anos ou mais em breve, de acordo com declarações recentes de Marcelo Queiroga, ministro da Saúde. Fim do Matérias recomendadas A legislação brasileira prevê que a aplicação de qualquer vacina que não esteja contemplada no PNI (Programa Nacional de Imunização) ou PNO (Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19) - ou seja, que não sigam o indicado acima - requer prescrição médica. "Não podemos inventar indicações que não são pautadas no MS e nem em licenciamento de bula. Se a clínica privada ainda assim resolver aceitar uma receita médica de uma pessoa que não tem o perfil indicado, o responsável técnico do lugar é corresponsável por algo que possa vir a acontecer com aquele indivíduo. O papel da clínica não é só aplicar, mas sim participar da farmacovigilância, registrar e acompanhar efeitos adversos, assim como saber como conduzir o paciente", aponta Bravo. A primeira a ser disponibilizada para a rede privada é a vacina de vetor viral fabricada pela AstraZeneca, importada dos Estados Unidos, cujo nome comercial é Vaxzrevia®. Ela está licenciada globalmente para uso a partir de 18 anos e tem mesma plataforma e formulação da vacina produzida pela Fiocruz: utiliza como vetor adenovírus de chimpanzé que carreiam genes que codificam a proteína S (Spike) do vírus Sars-CoV-2. A tendência, de acordo com a diretora da SBIm, é que outras fabricantes cheguem ao mercado privado com o passar do tempo. Na opinião de Flávia Bravo, sim, por ser mais uma possibilidade para a população. "É uma opção para quem não quer ir a uma unidade pública, ou para alguém, por exemplo, que tenha um problema de mobilidade e prefira ser atendido em casa. De qualquer forma, contribui para o aumento da cobertura vacinal, que se encontra estagnado." De acordo com a ABCVAC (Associação Brasileira de Clínicas de Vacinas), o preço de venda do imunizante na fábrica é de R$ 151, valor definido pela CMED (Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos). Cada clínica compõe então o seu preço pelo serviço da aplicação, que pode variar por região. "Estimamos que custe entre R$ 300 e 350 reais para o consumidor final, devido a custos com logística, armazenamento, seguro e aplicação", diz a nota destinada à imprensa. Ainda não há um levantamento que mostre quais clínicas têm ou pretender oferecer a vacina contra a covid-19. O acordo é feito diretamente entre o fabricante e o responsável pelo estabelecimento, e por isso, não há dados públicos que indiquem locais específicos. Para quem tem indicação de nova dose, o melhor é entrar em contato com a clínica. Algumas clínicas estão fazendo levantamento de pessoas interessadas nas doses antes de oferecer, já que um lote com 10 doses tem validade de 48 horas, e não forem aplicadas, precisam ser jogadas fora. "Seja no sistema público ou privado, desperdício de um produto tão valioso é um pecado", comenta Bravo. Assim como os postos públicos, as clínicas privadas têm o dever de registrar doses aplicadas no sistema integrado nacional, para contabilização de doses por grupo populacional, Estados e municípios, visando a avaliação de cobertura e análise de campanha e também a consulta do cidadão através do ConecteSUS. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com a OMS (Organização Mundial da Saúde), 21 países do mundo não haviam vacinado nem 10% de suas populações contra a covid-19 até o meio de abril. Ao todo, 68 países também não haviam atingido a meta de 40% de cobertura vacinal, que foi estabelecida pela entidade para o final do ano passado. No entanto, na avaliação da diretora da SBim, a missão de tornar a distribuição mais igualitária não cabe a um país específico, mas sim a entidades e organizações globais em acordo com fabricantes. "Nenhum país tem obrigação para comprar e dar. O que o Brasil tem uma produção que supre o nosso mercado no sistema público - se oferecêssemos de forma privada antes disso, aí sim, poderia ser considerado imoral. Essa visão cabe às organizações, e infelizmente o Covax [iniciativa cojunta da OMS, Aliança Gavi e CEPI, Coalition for Epidemic Preparedness Innovations que tem como objetivo distribuir vacinas a países que não têm], não fez tudo aquilo que esperávamos."
2022-06-03
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61686842
sociedade
4ª onda de covid: o que explica alta de casos no Brasil
O Brasil enfrenta agora o que especialistas consideram a quarta onda de covid. Em pouco mais de um mês, o país registrou uma alta de 78,3% nos registros de novos casos. Em 26 de abril, os dados mostravam uma média móvel de 14.600 novos diagnósticos nos últimos sete dias. Já em 31 de maio, o número saltou para 26.032. "Estamos observando esse processo desde metade de abril, mas com um ritmo maior agora. É o início de uma quarta onda, mas felizmente ainda não se compara ao que o Brasil já passou", diz Fernando Spilki, virologista e coordenador da Rede Corona-Ômica do MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações), que monitora e sequencia o genoma do vírus circulante no país. A presença de variantes com alta transmissibilidade, o relaxamento de medidas preventivas e a redução da imunidade contra a covid-19 meses após a vacinação são fatores que explicam o aumento de casos. Ao mesmo tempo, com a vacinação avançada, casos não têm mesma gravidade de ondas anteriores. O boletim epidemiológico da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) divulgado na quinta-feira (26/5) aponta que quase metade dos registros de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) foi decorrente da covid-19 no período entre 15 e 21 de maio. Fim do Matérias recomendadas De acordo com dados do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), mais de 40 mil brasileiros foram diagnosticados com covid-19 nas últimas 24 horas. O número, no entanto, pode ser bem maior, segundo especialistas. "Estamos enfrentando a quarta onda com um processo inédito. Nunca tivemos uma qualidade tão ruim de dados em termos de número de casos registrados. Testa-se e registra-se muito pouco. Além disso, com a possibilidade de autoteste, para evitar burocracias, vários acabam não registrando. Nunca navegamos tão às escuras", aponta Spilki. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na avaliação de Spilki, há diferentes fatores envolvidos. Entre eles, está a falta de iniciativa — tanto pública quanto individual - para tentar evitar infecções. "Muita gente parou de usar máscara, inclusive em ambientes fechados, então ficamos expostos à elevação de casos." "Além disso, nós não temos imunidade completa contra todas as variantes, e pela mudança de estação, as pessoas, já cansadas de usar máscara, tendem a ficar mais confinadas, em ambientes fechados." Outro ponto, bastante estudado por Spilki é a presença de variantes com alta transmissibilidade no território brasileiro, como a ômicron. "Variantes da ômicron, como a BA.2, associada a ondas na Europa, estão circulando em alguns locais, assim como a BA.2.12.1, que não está completamente espalhada em território nacional, mas já pode ser encontrada em alguns nichos e também é responsável por onda fora do país, nos EUA. Fora essas, temos ainda as recombinantes como a 'XQ', uma mistura da variante BA.1.1 E BA.2", explica Spilki. Essas variantes, de acordo com o especialista, geram preocupação pela capacidade de disseminação. "Elas facilitam o caminho para um processo de maior transmissão. Não esperamos 'chuva de mortes', como aconteceu antes, mas fica o alerta." Apesar da forte alta de novos casos, a média móvel de óbitos não tem passado de 200 mortes por semana, de acordo com dados do CONASS — um número expressivamente menor do que os índices observados antes da disponibilização dos imunizantes. "Nesse contexto, felizmente temos a vacinação. Não tanto em relação de transmissão, que é algo que a vacina não impede, mas sim mas para casos graves e óbitos — algo que o imunizante é capaz de evitar muito bem", afirma Spilki. Não há estudos recentes que analisem o perfil dos pacientes que vieram a óbito pela covid-19 nos últimos meses, mas pesquisas feitas em diferentes partes do mundo mostram que quem recebeu o esquema completo de imunização tem 20 vezes menos chance de morrer pela doença. É por isso que o Boletim do Observatório Covid-19 Fiocruz aponta como preocupante a estagnação no crescimento da cobertura vacinal na população adulta, além da desaceleração da curva de cobertura de terceira dose, especialmente pela adesão substancialmente menor de adultos à aplicação da dose de reforço. "As vacinas e o alívio do sistema de saúde têm contribuído para a redução da letalidade no Brasil e em diversos outros países que alcançaram altas coberturas de vacinação. Importante reconhecer, portanto, que a ampliação da vacinação, priorizando especialmente regiões com baixa cobertura e doses de reforço em grupos populacionais mais vulneráveis, pode reduzir ainda mais os impactos da pandemia sobre a mortalidade e as internações", diz o documento. Spilki defende que agora "temos que lidar com a pandemia com as ferramentas disponíveis". "É hora de definir estratégias de combate daquilo que o imunizante não consegue conferir, ou seja, diminuir a transmissão. Ninguém mais fala no Brasil em grandes lockdowns, em cancelamento de eventos ou atividades, mas precisaria repensar se a medida de remover máscaras foi correta. Sabemos que a exposição prolongada de um indivíduo ao outro é a principal forma de transmissão, então por que não usar máscaras?", diz. A infectologista do Vera Cruz Hospital reforça que, por mais cansadas que as pessoas estejam, é importante manter medidas de precaução. "O que devemos pedir é que as pessoas voltem a evitar aglomeração, não chegar perto das pessoas e sempre usarem máscaras em ambientes fechados. Caso apresentem algum sintoma respiratório, se ausentem do trabalho, testem e fiquem isoladas para que a gente interrompa a cadeia de transmissão do vírus", recomenda Vera Rufeisen.
2022-06-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61668830
sociedade
Como identificar um 'narcisista dissimulado' — e o que fazer se for seu colega de trabalho
Todos nós reconhecemos um narcisista, aquela pessoa interessada apenas nela mesma, quando o vemos: aquele colega que só conta vantagem, o chefe que reivindica só para si o crédito pelo trabalho da equipe, o contato que vive mostrando suas conquistas no trabalho nas redes sociais. Mas a verdade é que nem todos os narcisistas são egoístas em busca dos holofotes. Eles também existem em uma versão mais furtiva e amistosa: o narcisista dissimulado. Esses indivíduos possuem a mesma motivação básica dos narcisistas explícitos: eles anseiam pela atenção e pelo reconhecimento. Mas os narcisistas dissimulados procuram chamar a atenção de uma forma mais discreta e despretensiosa. Eles podem parecer amigáveis, mas sabem sabotar implacavelmente os demais em seu próprio interesse. Esse tipo de pessoa pode ser perigoso no ambiente de trabalho, pois os colegas podem ter dificuldade para distinguir seu comportamento nocivo. Mas, por sorte, especialistas afirmam que existem características comuns que podem identificar um narcisista dissimulado. E assim você poderá compreender como melhor interagir com ele - se realmente for necessário. Quando pensamos em narcisistas explícitos (também chamados de narcisistas "grandiosos"), costumamos idealizar alguém que pensa que é o centro do universo, para aborrecimento e prejuízo dos demais à sua volta. Fim do Matérias recomendadas No local de trabalho, os narcisistas podem representar um veneno. Eles manipulam os colegas para atingir seus objetivos, tomam decisões insensatas sem considerar o ponto de vista dos demais e podem estar focados apenas em se promover, em detrimento dos colegas. A sua desconsideração pelos demais é um dos motivos pelos quais conseguem progredir na carreira com tanta rapidez. Mas os narcisistas do tipo dissimulado - também conhecidos como narcisistas "vulneráveis" - são um pouco diferentes. Eles têm a mesma necessidade central de alimentar seu próprio ego a todo custo, mas seus métodos podem ser mais sensíveis. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Enquanto os narcisistas grandiosos podem estar pouco se lixando para os eventuais excessos na busca pela atenção almejada, os vulneráveis "não se sentem confortáveis com esse tipo de comportamento espalhafatoso", segundo Julie L. Hall, autora do livro The Narcissist in Your Life ("O narcisista na sua vida", em tradução livre), que escreveu especificamente sobre o narcisismo vulnerável. Os narcisistas do tipo vulnerável "tendem a querer ser vistos como 'gente boa': basicamente, de bom trato, alegres, agradáveis, generosos, podem ser prestativos - esse tipo de coisa", afirma Hall. Mas o inconveniente é que eles são calculistas: seu comportamento é caracterizado pela "agressividade passiva contínua", usando elogios sarcásticos, farpas dissimuladas, insultos disfarçados de humor, alfinetadas sutis ou fofocas pelas costas. Eles podem ficar quietos e estrategicamente fisgar elogios e reconhecimento. Eles podem presentear alguém visivelmente na frente dos demais, sempre verificando se todos estão testemunhando seu ato de generosidade. Eles podem "triangular" as conversas, trazendo uma terceira pessoa para direcioná-las e opor uns contra os outros, gerando conflitos. E, no trabalho, elas podem deixar você e um colega à vontade, apenas para falar mal de um para o outro, jogando um contra o outro, para que o narcisista vulnerável possa parecer o funcionário modelo da empresa. Para Hall, o que motiva esse comportamento é um sentido internalizado de vergonha, que eles compensam tentando fazer com que pareçam superiores. De fato, os narcisistas vulneráveis muitas vezes são inseguros e têm baixa autoestima, ao contrário dos grandiosos, que têm um senso inflado de si mesmos. Atualmente, ainda temos muito o que aprender sobre os narcisistas vulneráveis no ambiente de trabalho. A maior parte das pesquisas já realizadas concentra-se na personalidade narcisista explícita e grandiosa, segundo Chanki Moon, professor de psicologia da Universidade Leeds Beckett, no Reino Unido. Isso motivou Moon a estudar, em conjunto com Catarina Morais, pesquisadora em educação e psicologia da Universidade Católica Portuguesa, como o narcisismo vulnerável gera incivilidade no ambiente de trabalho. Em um estudo publicado em março, eles descobriram que os narcisistas vulneráveis são mais propensos a afirmar que eles mesmos foram vítimas de incivilidade no local de trabalho, sem considerar que o seu próprio comportamento (como suas alfinetadas e difamação) é indelicado com os demais. Moon e Morais concluíram que, devido à sua baixa autoestima e falta de compreensão das normas no local de trabalho, como respeito e honestidade, os funcionários com alto grau de narcisismo vulnerável são mais propensos a afirmar que sofreram grosseria, desrespeito ou descortesia dos colegas no trabalho. Aliás, se fazer de vítima desta forma é "supercomum - quase uma certeza" entre os narcisistas vulneráveis, segundo Hall. "A narrativa deles é tipicamente de vítima, o que permite que eles se livrem de qualquer situação e de qualquer responsabilidade. É sempre culpa de outra pessoa, alguém sempre foi injusto com eles." Hall afirma que os narcisistas grandiosos são mais óbvios e agressivos, praticam bullying sobre os demais ou monopolizam os holofotes. Já os narcisistas vulneráveis podem ser doces e insinuantes, manipulando suas vítimas por longos períodos até que estas percebam o que está acontecendo. "Os narcisistas vulneráveis podem nos prejudicar de forma mais invisível porque não estamos preparados para lidar com eles", afirma Moon. Ele acrescenta que são necessárias mais pesquisas para investigar isso com profundidade. "Você pode ser capaz de se proteger contra as ações de um narcisista grandioso porque seu comportamento narcisista é mais visível... o narcisismo vulnerável é mais difícil de identificar." Qual é a melhor forma de lidar com um narcisista vulnerável? Se você estiver tentando descobrir se alguém é realmente um narcisista vulnerável, analise o seguinte: como ele reage quando acontece algo de bom com você? Algo como uma promoção, um elogio de um chefe ou até mesmo quando você diz que está tendo um bom dia? "Ele fica feliz por você? Ele realmente fica feliz por você?", questiona Hall. "Esta é uma forma muito boa de detectar o narcisismo." Se você tiver a sensação de falsidade ou que ele está registrando alguma coisa sobre o assunto no seu arquivo mental, pare de falar com ele. Definir limites é fundamental contra qualquer tipo de narcisista e, como os vulneráveis costumam trabalhar melhor para manter uma aparência agradável ou inofensiva, é melhor errar por excesso de cautela. Se você tiver um deles no seu local de trabalho, é importante não revelar nenhuma informação que possa ser usada para prejudicar você. Os narcisistas se defendem atacando sutilmente os demais. "Não revele informações pessoais, pois eles estão sempre buscando informações sobre os demais para poderem ficar em vantagem, encontrando e explorando as vulnerabilidades das outras pessoas", explica Hall. Já para os próprios narcisistas vulneráveis, Moon e Morais indicam que o treinamento da inteligência emocional pode ajudá-los a aumentar a autoestima - e a baixa autoestima é a causa do comportamento tóxico. Moon afirma que, segundo seu estudo, "aumentar a autoestima é fundamental" para poder ajudar os narcisistas vulneráveis a reduzir a incivilidade no trabalho e, possivelmente, mudar seus hábitos prejudiciais. Estudos demonstraram que a inteligência emocional e a autoestima estão correlacionadas. Se uma delas melhorar, a outra também pode aumentar. Mas, enquanto você espera que isso aconteça, mantenha a guarda. "Eles estão sempre escondidos e se blindando", afirma Hall. "Você pode ter empatia e pena por eles, pois é uma forma própria de tragédia no ser humano. Mas, ao mesmo tempo, isso não é seguro. Eles são antagonistas e fundamentalmente perigosos."
2022-06-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61654950
sociedade
Muitas armas e poucas mortes: por que Noruega e Finlândia estão na contramão dos EUA
Como apontou o Children's Defense Fund, organização americana independente sem fins lucrativos, a violência armada é agora a principal causa de morte de crianças nos EUA. São nove disparos fatais em crianças por dia — ou seja, uma morte a cada duas horas e trinta e seis minutos, de acordo com a organização. Uma minoria destes assassinatos envolve disparos em escolas ou massacres, a maioria corresponde a homicídios individuais de crianças, ligados a crimes de rotina e à violência de gangues, e resultam predominantemente na morte de crianças afro-americanas e de grupos minoritários. Os EUA se destacam como um ponto extremamente fora da curva entre os países de alta renda. O número de crianças mortas por armas de fogo é 36,5 vezes maior nos EUA, em comparação com muitos outros países de alta renda, incluindo Áustria, Austrália, Suécia, Inglaterra e País de Gales, de acordo com uma análise publicada recentemente pelo New England Journal of Medicine. Fim do Matérias recomendadas Nos últimos anos, pesquisas internacionais também provaram conclusivamente que níveis mais altos de posse de armas estão intimamente associados a taxas mais altas de violência armada. Uma auditoria de todos os 50 estados dos EUA feita pelo Center for American Progress, organização de pesquisa e defesa de políticas públicas de tendência democrata, encontrou uma estreita correlação entre os estados com as leis de armas mais duras e os estados com as menores taxas de crimes com armas. Enquanto isso, uma pesquisa internacional comparou as leis nacionais de armas, as taxas de posse de armas de fogo e as taxas de violência armada. Os resultados são impressionantes, como sugere o gráfico abaixo: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Curiosamente, as sociedades europeias com taxas de posse de arma próximas às dos EUA, em termos de proprietários de armas para cada 100 pessoas (mas com rifles e espingardas de caça, em vez de pistolas), como a Finlândia e a Noruega, estão entre as sociedades mais seguras internacionalmente em relação à violência armada. Os pesquisadores falam sobre culturas de armas "civilizadas" e "descivilizatórias" — culturas em que a posse de armas está associada a valores tradicionais de respeito e responsabilidade, e outras em que a disponibilidade de armas em grande parte capacita os criminosos e desequilibrados, aumentando a violência e o caos. Altos níveis de coesão social, baixas taxas de criminalidade e altos níveis de confiança na polícia e nas instituições sociais internacionalmente parecem reduzir os níveis de homicídio por arma de fogo. O outro lado desta descoberta, no entanto, é que em países com alta taxa de posse de armas, como Finlândia, Suécia e Suíça, há taxas significativamente mais altas de suicídio usando armas de fogo. O Reino Unido e o Japão, com algumas das leis de armas mais rígidas do mundo, sempre registram as taxas mais baixas de homicídio por arma de fogo, principalmente em virtude de sua praticamente proibição de pistolas, a arma preferida dos criminosos. Em contrapartida, o número de mortos nos recentes massacres nos EUA foi muito exacerbado pelos autores terem usado rifles de assalto, com carregadores de munição maiores e capacidade de disparo rápido. Como resultado do novo foco internacional na pesquisa de controle de armas (houve uma época em que a única pesquisa acadêmica sobre armas de fogo ocorria nos EUA, e grande parte dela era financiada, direta e indiretamente, pela Associação Nacional do Rifle, um dos grupos de interesse mais influentes da política americana), questões mais amplas ficaram sob os holofotes. Os pesquisadores começaram a se concentrar menos na arma como uma variável independente e, em vez disso, começaram a abordar os contextos e as diferentes culturas de uso de armas de fogo. Também começaram a reconhecer, como os criminologistas sempre souberam, que a introdução de novas leis raramente muda algo por si só — os criminosos infringem as leis. Os pesquisadores de armas agora se concentram cada vez mais em "regimes de controle de armas" mais amplos, que têm um papel importante a desempenhar no aumento ou redução dos níveis de violência armada. Estes regimes incluem sistemas de policiamento e justiça criminal, sistemas de responsabilidade política, redes de segurança social, oferta educacional abrangente e culturas de confiança. E, como o gráfico acima sugere, embora os EUA sejam vistos como a cultura de armas mais excepcional entre as nações democráticas ricas, em termos de taxas de mortalidade, eles são ofuscados por muitas outras sociedades mais pobres e mais conflituosas, como a África do Sul, Jamaica e Honduras. As tentativas nos EUA de enfrentar os massacres, mas sem restringir a posse de armas nos últimos anos, incluem o aumento da vigilância — especialmente em escolas em que alunos, pais e professores fazem parte de uma rede que fica de olho em colegas e alunos. Eles procuram sinais de problemas e são capazes de soar o alarme. De forma mais ambiciosa, o Violence Project buscou compilar perfis de evidências, aprendendo com o que já sabemos sobre assassinos violentos e tentando prever até onde seu comportamento, engajamento nas redes sociais e declarações podem acender o alerta. No entanto, a evidência agora é indiscutível de que mais armas em um determinado país se traduz diretamente em mais violência armada. É significativo que a reação imediata ao massacre na escola de Uvalde tenha se concentrado em questões limitadas à segurança escolar e a um aparente atraso na intervenção policial, em vez de nos vários fatores subjacentes que tornam os EUA um lugar comparativamente perigoso para as crianças. *Peter Squires é professor de criminologia e políticas públicas da Universidade de Brighton, no Reino Unido.
2022-06-01
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61633760
sociedade
'Às vezes meu cão se alimenta e eu não': um relato sobre a pobreza no Reino Unido
Na tarde de um dia quente de maio na Inglaterra, Brian Turner pulou o café da manhã e o almoço. Ele diz que talvez conseguisse comer alguma coisa à noite. Turner, que tem 49 anos, mora com seu cão mestiço de poodle e jack russell em um apartamento térreo confortável no sudoeste de Ipswich, no leste da Inglaterra. Com 6 anos de idade, Rocky, o cão, é essencial na vida de Turner. Turner e sua companheira, Paula Macintosh, compraram Rocky quando ainda era filhote. Turner era um garçom altamente qualificado, mas interrompeu sua carreira em 2009 para cuidar de Macintosh, que sofria de graves problemas de saúde mental. Até que, em uma noite de fevereiro de 2019, Macintosh morreu de uma condição cardíaca que não havia sido diagnosticada anteriormente. Ela tinha 54 anos de idade. Alguns meses depois, morreu a mãe de Turner, Maureen. E, logo em seguida, veio a pandemia de covid-19. "Tem sido difícil", afirma ele. Fim do Matérias recomendadas Fotografias de Paula Macintosh ocupam lugar de honra em uma mesa lateral e uma pequena cesta de vime contendo suas cinzas repousa no parapeito da janela. Turner conseguiu viver por anos com muito pouco dinheiro. Ele acompanha incessantemente os preços em diversas lojas, vasculha as seções de alimentos com descontos nos supermercados e faz compras em grande volume quando possível. Desde a morte de Macintosh, ele vinha conseguindo comprar comida suficiente para ele e para Rocky com apenas 40 libras (R$ 240) mensais. Brian Turner ganha 642 libras (R$ 3,8 mil) de Crédito Universal - programa social do governo britânico similar ao Bolsa Família/Auxílio Brasil. Ele tem as seguintes despesas mensais: - aluguel do apartamento de um quarto de propriedade do município: 316 libras (R$ 1,9 mil); - eletricidade e gás: 100 libras (R$ 600) - água: 25 libras (R$ 150) - alimentação, plano veterinário e seguro para animais de estimação de Rocky: 100 libras (R$ 600) - sua alimentação, roupas, transporte e outros gastos eventuais: 100 libras (R$ 600) Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, com o aumento dos preços dos alimentos e das contas de consumo, não foi mais possível manter o orçamento. "Desde que saímos do lockdown, os custos simplesmente triplicaram", segundo ele. "O custo de vida foi para as nuvens. Estou precisando pedir ajuda para os vizinhos, amigos e para a família. E já usei bancos de alimentos algumas vezes." "Quando vou até a Citizens Advice [ONG britânica que oferece aconselhamento independente] buscar uma cesta básica, eles me dizem que estão limitando a quantidade de cestas básicas que recebo, para ter certeza de que estão sendo justos com todos e para não se tornar uma doação semanal para qualquer pessoa", prossegue Turner. "Às vezes, preciso vasculhar e recolher restos." E, como ele está longe de ser o único com dificuldades financeiras, a concorrência nas seções de alimentos com descontos ficou acirrada. "Outras pessoas estão no mesmo barco que eu", afirma ele. Diagnosticado com epilepsia e tomando medicação contra enxaqueca, as tentativas de Turner para conseguir um emprego não renderam frutos. Ele chegou a preencher até 15 formulários de emprego por dia para todo tipo de cargos e empresas, desde serviços de bufê até escritórios, mas não teve sucesso. "Falei com alguns empregadores e eles responderam que, por questões de seguro, não poderiam me contratar devido à minha condição de saúde", ele conta. Quase todo o dinheiro que sobra depois de pagar as contas é gasto em comida. Mas a compra mensal de alimentos que um ano atrás custava 40 libras (R$ 240) agora custa o dobro, segundo ele. Por isso, ele só tem dinheiro suficiente para comprar uma semana e meia de alimentos a cada mês. "Tem dias em que só faço uma refeição", relata Turner. "Eu não deveria fazer isso porque os meus remédios precisam ser tomados com alimento ou perto do horário das refeições. Às vezes, isso prejudica a medicação." Mas a rotina de alimentação de Rocky não foi afetada pelo aumento dos custos. "Às vezes, prefiro que meu cão coma e eu não", relata ele. Questionado se ele chegaria a doar Rocky para economizar dinheiro, Turner respondeu: "ele é a minha única razão de seguir adiante. É o tipo de cão que, se você quiser e precisar de um carinho, ele vem e dá esse carinho". "Preciso deixar de comer para conseguir pagar pela comida dele e agora tenho o suficiente para ele por uns dois meses. Depois disso, não sei o que esperar", segundo Turner. "Não fosse por ele, com certeza eu teria perdido o juízo." "Falei com muitas pessoas que estão enfrentando enormes dificuldades", ele conta. "Gostaria que os parlamentares tentassem viver com o Crédito Universal por três meses. Eles acabariam percebendo que não é o suficiente para sobreviver." O governo britânico afirma que compreende as pressões enfrentadas pelas pessoas no momento com o aumento do custo de vida. Como vem ocorrendo com cada vez mais pessoas em todo o Reino Unido e em outras partes do mundo, as preocupações de Turner com suas finanças agora são "permanentes". Sally Harrison, gerente de serviços profissionais da Citizens Advice de Ipswich, afirma que as pessoas dependem cada vez mais da instituição. "Eles costumavam nos procurar uma vez em busca do banco de alimentos porque estavam enfrentando um mês mais difícil", segundo ela. "Agora, está se tornando rotina. Eles nos procuram mês após mês porque não conseguem pagar suas contas. As pessoas estão preocupadas e entrando em pânico porque viram os enormes aumentos de preço dos combustíveis." Questionado sobre se teria qualquer dinheiro para momentos de lazer, Turner responde que não. Ele conta que não consegue sequer pegar um ônibus para o centro de Ipswich quando não tem razões suficientes para isso. Turner precisa esperar até ter vários motivos para ir à cidade e justificar o gasto. E as últimas férias que ele teve foram em 2015, quando saiu em um fim de semana prolongado para visitar seus familiares. Antes de morrer, Paula Macintosh pediu a Turner que lançasse suas cinzas ao mar. E esse último pedido segue sem ser realizado. No momento, ele não tem condições de arcar com os custos de alugar um barco ou mesmo de viajar para o litoral. "Ainda não posso fazer", segundo ele. "Quando as coisas se acalmarem, vou pensar nisso outra vez e espalhar suas cinzas."
2022-05-31
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61650261
sociedade
Chacinas em escolas são 'ponta do iceberg' da violência armada nos EUA, vê especialista
Apesar de já pesquisar sobre a violência armada nos Estados Unidos há quase meio século, Philip Cook ainda se sente devastado com massacres como o que matou 19 crianças e dois professores em uma escola do Texas em 24 de maio. "Sou avô de duas crianças do ensino fundamental e é muito fácil imaginar algo semelhante na escola que vão frequentar", diz Cook, professor de Economia e Políticas Públicas da Duke University, em entrevista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Coautor de livros como The Gun Debate: What Everyone Should Know (O Debate sobre Armas: o que Todos Devem Saber, em tradução livre), Cook associa diretamente massacres como o de Uvalde, no Texas, à proliferação de armas de fogo nos EUA, onde em média há pelo menos uma para cada homem, mulher e criança — em mãos de civis. Ele explica que a maioria das mortes por arma de fogo no país não ocorrem nas chacinas, mas são suicídios e homicídios que recebem menos atenção geral. E, no entanto, Cook considera a regulamentação de armas nos EUA inviável hoje. Fim do Matérias recomendadas A seguir, os principais trechos da entrevista com esse especialista que ganhou o Prêmio Estocolmo de Criminologia em 2020 por sua pesquisa sobre violência armada. BBC: Os massacres horríveis, como o do Texas, são o maior problema de proliferação de armas da América? Philip Cook: Quando temos mais armas e mais casas com armas, o resultado inevitavelmente será mais violência armada. O problema específico com tiroteios em massa, onde várias pessoas são mortas ao mesmo tempo, é a proliferação de armas de estilo militar, que agora são as armas populares vendidas em lojas especializadas. O que vimos é que essas armas, que podem disparar muitos tiros rapidamente, ficaram mais populares, e basicamente todos os tiroteios em massa são feitos com elas. O resultado é um aumento no número de tiroteios em massa e um enorme aumento no número de pessoas mortas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC: Mas as estatísticas mostram que os tiroteios em massa foram responsáveis ​​por menos de 2% das mortes por armas de fogo nos EUA no ano passado. A maioria foram suicídios e depois homicídios. Muitas das mortes por arma de fogo nos EUA são silenciosas para o povo? Cook: Certamente. Depende de como você define tiroteios em massa, mas por qualquer definição eles são menos de 2% das mortes associadas à violência armada. Em 2020, ano para o qual temos os melhores e mais recentes dados, quase 20 mil americanos foram mortos por armas de fogo em situações de assalto, em homicídios e cerca de 24 mil em suicídios. Esse total de 45 mil é extraordinariamente alto: não se compara a outros países ricos e desenvolvidos. A porcentagem de homicídios cometidos com armas de fogo nos EUA chega a 80%. Ou seja, quatro em cinco. Em meio à covid em 2020 tivemos um aumento de 30% na taxa de homicídios e isso se deveu essencialmente a um aumento de homicídios por arma de fogo. BBC: Então, talvez os tiroteios em massa sejam apenas a face mais visível de um fenômeno mais profundo na sociedade americana? Cook: Sim, há muito a aprender comparando tiroteios em massa com a violência mais rotineira que assola muitas cidades dos EUA. Em ambos os casos o dano não é contabilizado apenas pelo número de vítimas. As pessoas antecipam a violência, tomam medidas drásticas para tentar evitá-la e mitigá-la. Em todos esses casos, nosso padrão de vida piora. Para as crianças em idade escolar, isso significa que agora elas precisam passar por exercícios simulando ataques. Muitas vezes esses exercícios, que antecipam a possibilidade de um atirador invadir a escola, são traumatizantes. Temos que entender que muito mais pessoas veem suas vidas distorcidas e prejudicadas como resultado da ameaça. BBC: Esse fenômeno que você chama de "violência armada de rotina" nos EUA é amplamente ignorado? Cook: Acho que por ser tão rotineiro e por se concentrar em grupos desfavorecidos, tende a ser ignorado ou subestimado, embora o volume de tal violência seja incrivelmente alto. Acho que a melhor estimativa é que mais de 100 mil pessoas foram baleadas no ano passado, e cerca de 20 mil delas morreram como resultado de agressão criminosa. Este é um problema muito comum e, infelizmente, endêmico, que persiste há muito tempo. E o que temos que fazer é reconhecer que isso é um problema para todos nós, assim como tiroteios em massa, tiroteios em escolas. A ameaça se espalha e se torna um fardo para nossas cidades e nossos estados. BBC: Você conseguiu chegar a um número de quantas armas estão nas ruas dos EUA? Cook: Acredito que o número de armas em mãos de cidadãos não seja exatamente conhecido. Os EUA não registram armas na maioria dos estados e não há uma maneira direta de descobrir. Tentamos estimar por meio de pesquisas e a resposta é mais de 300 milhões de armas. Para colocar em perspectiva, isso nos diz que há pelo menos uma arma em mãos para cada homem, mulher e criança que vive nos Estados Unidos. BBC: E é provavelmente o país com a maior taxa de armas per capita… Cook: É a maior taxa de armas per capita, pelo menos em comparação com outros países igualmente prósperos e desenvolvidos. Não tenho certeza se temos uma ideia clara de quantas armas estão circulando em El Salvador ou no Brasil, já que é difícil medir lá também. Mas certamente temos muito mais armas em proporção à nossa população do que o Canadá ou qualquer um dos países da Europa Ocidental, Japão ou Austrália. BBC: Eu disse no início algo que parece lógico: que a ampla disponibilidade de armas em uma população leva a mais mortes relacionadas a armas. É isso que as evidências mostram? Cook: Sim, a evidência é muito forte tanto para suicídio quanto para tiroteio criminoso. Quando o número de domicílios com pelo menos uma arma de fogo - e principalmente com revólver - aumenta, isso está associado a um aumento no número de suicídios e homicídios. Claro, existem muitos outros fatores que também influenciam o número de suicídios e homicídios. Mas a presença de uma arma agrava a situação. BBC: A grande questão: o que fazer para mudar essa realidade e acabar com os tiroteios nos EUA? Cook: Acho que não há muito que possa ser feito na área de regulamentação de armas por dois motivos. Uma delas é que a política há muito dificultou muito o avanço em nível nacional. Desde a década de 1990 não houve um caminho a seguir com o Congresso e isso porque o Partido Republicano, por qualquer motivo, abraçou a ideia de que mais armas são melhores e se tornou um partido pró-armas. Portanto, eles estão em uma posição em que podem bloquear o progresso no Congresso e o farão desta vez. Acho que há uma possibilidade no nível estadual, em alguns estados onde os democratas estão no controle. O outro grande obstáculo na arena regulatória será a Suprema Corte, que em 2008 decidiu pela primeira vez no caso Heller que a Segunda Emenda da Constituição dos EUA fornece o direito pessoal de possuir uma arma de fogo para autodefesa. Esse direito será expandido pelo Tribunal que temos agora: seis dos nove membros parecem ser muito pró-armas e têm uma definição muito ampla da Segunda Emenda. O que fazemos quando eles tiram o recurso de regular as armas e as tornam mais difíceis de obter? Resta-nos a possibilidade de educar o público sobre os perigos de ter uma arma em casa, o que pode fazer a diferença para alguns. Além disso, teremos que confiar na polícia e na aplicação da lei. Em um discurso sincero após o tiroteio na escola no Texas, o técnico do NBA Golden State Warriors, Steve Kerr, disse que as pessoas nos Estados Unidos são "reféns" de senadores que se recusam a votar um projeto de lei que aumenta a verificação de antecedentes para comprar armas, que já foi aprovado pelo Câmara dos Deputados. O Senado é parte do problema? O Senado dos EUA é uma organização muito conservadora, no sentido de que representa os republicanos muito melhor do que os democratas em todo o país, com dois senadores de cada estado. Assim, os estados da Califórnia e Nova York, por exemplo, que têm uma população muito grande, têm apenas dois senadores, assim como os estados de Kentucky ou Kansas. O segundo problema é que, para aprovar uma medida de controle de armas, o Senado exige uma supermaioria de 60 votos em 100 por razões técnicas. E ele não tem esses votos para nada que imponha o controle de armas. BBC: Essa relutância no Congresso em restringir a posse de armas é devido ao que muitas vezes é chamado de 'lobby das armas'? Cook: Historicamente, o lobby das armas, e especialmente a National Rifle Association, tem sido muito influente, até porque conseguiram mobilizar grandes grupos de eleitores que acreditam que a liberdade de ter quantas armas desejarem é primordial. Hoje, não tenho tanta certeza de que a National Rifle Association seja o principal ator político. Eles tiveram uma série de escândalos, estão enfraquecidos economicamente. O que eu acredito é que o Partido Republicano agora assumiu esse papel e aceitou a agenda que o lobby das armas tradicionalmente tinha. BBC: Eu disse no início algo que parece lógico: que a ampla disponibilidade de armas em uma população leva a mais mortes relacionadas a armas. É isso que as evidências mostram? Cook: Sim, a evidência é muito forte tanto para suicídio quanto para tiroteio criminoso. Quando o número de domicílios com pelo menos uma arma de fogo - e principalmente com revólver - aumenta, isso está associado a um aumento no número de suicídios e homicídios. Claro, existem muitos outros fatores que também influenciam o número de suicídios e homicídios. Mas a presença de uma arma agrava a situação. BBC: A grande questão: o que fazer para mudar essa realidade e acabar com os tiroteios nos EUA? Cook: Acho que não há muito que possa ser feito na área de regulamentação de armas por dois motivos. Uma delas é que a política há muito dificultou muito o avanço em nível nacional. Desde a década de 1990 não houve um caminho a seguir com o Congresso e isso porque o Partido Republicano, por qualquer motivo, abraçou a ideia de que mais armas são melhores e se tornou um partido pró-armas. Portanto, eles estão em uma posição em que podem bloquear o progresso no Congresso e o farão desta vez. Acho que há uma possibilidade no nível estadual, em alguns estados onde os democratas estão no controle. O outro grande obstáculo na arena regulatória será a Suprema Corte, que em 2008 decidiu pela primeira vez no caso Heller que a Segunda Emenda da Constituição dos EUA fornece o direito pessoal de possuir uma arma de fogo para autodefesa. Esse direito será expandido pelo Tribunal que temos agora: seis dos nove membros parecem ser muito pró-armas e têm uma definição muito ampla da Segunda Emenda. BBC: O que fazemos quando eles tiram o recurso de regular as armas e as tornam mais difíceis de obter? Cook: Resta-nos a possibilidade de educar o público sobre os perigos de ter uma arma em casa, o que pode fazer a diferença para alguns. Além disso, teremos que confiar na polícia e na aplicação da lei. Em um discurso sincero após o tiroteio na escola no Texas, o técnico do NBA Golden State Warriors, Steve Kerr, disse que as pessoas nos Estados Unidos são "reféns" de senadores que se recusam a votar um projeto de lei que aumenta a verificação de antecedentes para comprar armas, que já foi aprovado pelo Câmara dos Deputados. O Senado é parte do problema? O Senado dos EUA é uma organização muito conservadora, no sentido de que representa os republicanos muito melhor do que os democratas em todo o país, com dois senadores de cada estado. Assim, os estados da Califórnia e Nova York, por exemplo, que têm uma população muito grande, têm apenas dois senadores, assim como os estados de Kentucky ou Kansas. O segundo problema é que, para aprovar uma medida de controle de armas, o Senado exige uma supermaioria de 60 votos em 100 por razões técnicas. E ele não tem esses votos para nada que imponha o controle de armas. Essa relutância no Congresso em restringir a posse de armas é devido ao que muitas vezes é chamado de "lobby das armas"? Historicamente, o lobby das armas, e especialmente a National Rifle Association, tem sido muito influente, até porque conseguiram mobilizar grandes grupos de eleitores que acreditam que a liberdade de ter quantas armas desejarem é primordial. Hoje, não tenho tanta certeza de que a National Rifle Association seja o principal ator político. Eles tiveram uma série de escândalos, estão enfraquecidos economicamente. O que eu acredito é que o Partido Republicano agora assumiu esse papel e aceitou a agenda que o lobby das armas tradicionalmente tinha.
2022-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61628545
sociedade
Chuvas em Pernambuco: 126 morreram e ao menos 2 estão desaparecidos
Pelo menos 126 pessoas morreram em Pernambuco devido às fortes chuvas nos últimos dias, segundo informações divulgadas pelas autoridades nesta quarta (01/06). Ao menos 2 pessoas estão desaparecidas. O número de desabrigados pela chuva chega a 6 mil. Há previsão de mais chuvas para o Recife ao longo de toda a semana, segundo Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). A Agência Pernambucana de Águas e Clima (Apac) diz que volume de chuva diminuiu, mas deve continuar com intensidade moderada na região metropolitana de Recife e na Zona da Mata até sexta-feira (3). A cidade ainda tem alto risco de alagamentos e deslizamentos de encostas, já que o solo já está bastante encharcado. Outras parte de Pernambuco e regiões da Paraíba e do Alagoas estão em alerta laranja - menos chuvas, mas ainda grande possibilidade de deslizamentos e alagamentos devido ao acumulado de chuvas. Recife esteve em alerta vermelho no fim de semana — o que significa volume de precipitação alto (acima de 60mm por hora ou 100mm em 24 horas) e grande possibilidade de acidentes e riscos de vida. Fim do Matérias recomendadas Ao menos 2 estão desaparecidos, mas o número pode pode ser maior. No domingo, moradores e equipes profissionais de resgate faziam intensos trabalhos de buscas no Jardim Monte Verde, área limítrofe entre o Recife e Jaboatão dos Guararapes. Nesta segunda, as forças de segurança, a Defesa Civil, o Exército e órgãos municipais estão atuando em 7 pontos de deslizamento da Região Metropolitana do Recife. A Região Metropolitana do Recife, a Zona da Mata e o Agreste de Pernambuco registraram nas últimas precipitações acima de 100 milímetros nos últimos dias. O governador Paulo Câmara antecipou a nomeação de 92 novos soldados do Corpo de Bombeiros que iriam tomar posse a partir de 6 de junho, para reforçar o trabalho de socorro às vítimas das chuvas. O governador também solicitou o apoio do Comando Militar do Nordeste com efetivo, embarcações e aeronaves para o serviço de busca e salvamento. "Mobilizamos todo o efetivo do Corpo de Bombeiros, da Defesa Civil Estadual, da Polícia Militar e da Assistência Social para o suporte aos municípios no atendimento às vítimas das chuvas. Estamos adiantando a nomeação dos novos soldados dos Bombeiros e também solicitei o apoio do Comando Militar do Nordeste", afirmou o governador, em nota. O presidente Jair Bolsonaro sobrevoou a cidade na manhã de segunda (30) e disse lamentar a tragédia. 6 mil desabrigados Mais de seis mil pessoas estão desabrigadas, segundo balanço divulgado pela Central de Operações da Codecipe na manhã de quarta.
2022-06-02
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61621022
sociedade
A relação entre as síndromes do impostor e de burnout
Pensar que você é ruim no trabalho é péssimo. E o pior é que deixa você sujeito ao burnout profissional. "As pessoas parecem achar que estou trabalhando bem, mas, na verdade, não sinto que seja verdade", afirma Fiona, gerente sênior na casa dos 40 anos de idade, que trabalha na indústria da construção no Reino Unido. "Você sempre acha que poderia fazer melhor e que as pessoas devem estar duvidando de você." Fiona (nome fictício para proteger sua reputação profissional) passou sua carreira lutando contra a síndrome do impostor — o medo de que ela, na verdade, não mereça seu sucesso. "Apesar de eu ter conquistado o cargo que ocupo, ainda não acredito em mim mesma. Parece que outras pessoas acreditam, mas simplesmente não acho que esteja certo", ela conta. A síndrome do impostor, também chamada de fenômeno do impostor, manifesta-se de várias formas em diferentes pessoas, mas normalmente deixa alguém com a crença inabalável de que é uma fraude intelectual, apesar de todas as evidências em contrário. Fim do Matérias recomendadas Pessoas com a síndrome do impostor acreditam que precisam trabalhar e produzir mais nos seus projetos para evitar que sejam descobertas. Elas podem atingir grandes resultados, mas poderão recusar desafios para evitar que fracassem em público. Elas atribuem o sucesso à sorte ou ao trabalho árduo, não à sua capacidade, e temem que isso só as levará a receber outras chances de tropeçar. Estudos indicam que até 70% das pessoas sofreram a síndrome do impostor no trabalho em algum momento da vida. Embora algumas pesquisas indiquem que a síndrome pode, às vezes, motivar as pessoas a atingir resultados, existem também amplas evidências de que o estresse gerado pode causar grande esgotamento, a ponto de criar pressões intensas sobre a saúde mental. Um estudo de 2016 demonstrou, por exemplo, que estudantes de medicina norte-americanos que se sentem impostores também apresentaram propensão a demonstrar "maiores níveis de exaustão [física], exaustão emocional, cinismo e despersonalização" — sintomas muito similares à definição de burnout pela Organização Mundial da Saúde (OMS). E uma pesquisa internacional recente com 10 mil trabalhadores do conhecimento — aqueles que usam principalmente seus conhecimentos, informações e inteligência para desenvolver seus trabalhos — realizada pela plataforma de administração do trabalho norte-americana Asana concluiu que 42% deles acreditavam ter sofrido síndrome do impostor e burnout ao mesmo tempo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Quando você observa um indivíduo que sofre da síndrome do impostor, ele é mais propenso a sofrer burnout. E as pessoas que enfrentam burnout são mais propensas a sofrer a síndrome do impostor", segundo Sahar Yousef, neurocientista cognitiva que pesquisa a produtividade no local de trabalho na Faculdade de Administração Haas da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, que colaborou com a pesquisa da Asana. Yousef afirma que é importante observar que a pesquisa foi realizada com pessoas que fizeram sua própria avaliação de burnout, uma síndrome clínica séria cuja recuperação pode levar meses. Mas, embora algumas pessoas possam ser rápidas demais para rotular-se com burnout (em vez de muito cansadas e estressadas), ficou claro que muitas se identificaram com as duas síndromes ao mesmo tempo. Não está totalmente claro, cientificamente falando, que as duas síndromes estejam cada vez mais se sobrepondo, segundo Yousef, mas um fator fundamental é que a síndrome do impostor manifesta-se de forma similar à terceira dimensão do burnout, definida pela OMS: "sentimento de ineficácia profissional". Como Fiona está descobrindo, quando alguém está sofrendo burnout, "parece que, não importa o que você faça, nada é suficiente. Você é a pessoa mais ineficaz da equipe", afirma Yousef. Ela acrescenta que isso é claramente similar à definição da síndrome do impostor. As tendências perfeccionistas de alguém com síndrome do impostor podem significar que todas as interações são marcadas por intenso estresse. O burnout pode instalar-se depois de "centenas, talvez milhares de ciclos de tensão sem fim", em que o indivíduo nunca teve a chance de recuperar-se mentalmente dos momentos de pressão. Clare Josa, fundadora de uma consultoria sobre a síndrome do impostor e autora do livro Ditching Imposter Syndrome ("Livrando-se da síndrome do impostor", em tradução livre), observa uma ligação clara entre a síndrome do impostor e o burnout, que ela atribui "ao mecanismo de luta, fuga ou congelamento do corpo que fica bloqueado". Seu estudo recente com 2 mil trabalhadores dos EUA e do Reino Unido levou um ano para ser concluído e revelou que 62% das pessoas enfrentavam a sensação de serem impostores diariamente, enquanto 18% descreveram-se como estando "de joelhos" frente ao estresse. Com base nas suas respostas a uma série de questões de avaliação, 34% dos participantes foram considerados em alto risco de burnout iminente. Ela concluiu que a síndrome do impostor "é um dos fatores mais importantes para prever o possível risco de sofrer burnout". Josa acredita que a correlação vem, em grande parte, da tática desenvolvida pelas pessoas para compensar ou mascarar a síndrome do impostor, como assumir trabalhos que não têm tempo para realizar, a fim de ganhar aprovação, ou evitar promoções por temerem a exposição. Como afirmou um participante da pesquisa: "sinto que sou o centro das atenções, que todos irão ver se eu cometer um erro. Por isso, faço o melhor que posso para que isso não aconteça." Uma pessoa que está tão "ligada em busca de ameaças" rapidamente verá essa situação afetar seu bem-estar, empurrando-a para o burnout, segundo Josa. Anne Raimondi, diretora de operações e de negócios da Asana, afirma que, segundo sua pesquisa, os trabalhadores da geração Z têm, neste momento, a maior propensão a afirmar que estão enfrentando a síndrome do impostor e o burnout ao mesmo tempo. Ela atribui isso aos desafios inéditos enfrentados pelos jovens que estão iniciando suas carreiras durante a pandemia. Impossibilitados de observar seus colegas pessoalmente e de ajustar-se à dinâmica do local de trabalho, sem fronteiras claras entre o trabalho e a vida pessoal e sem os "momentos de feedback e reafirmação" que são fundamentais para estabelecer a confiança profissional, Raimondi afirma que é fácil observar funcionários júnior começando a sentir que não pertencem ao seu trabalho e ficando sobrecarregados. Josa afirma que, embora os trabalhadores mais jovens possam expressar mais suas dificuldades, as gerações mais velhas também estão sofrendo. Um dos maiores gatilhos que ela identificou para a síndrome do impostor é a menopausa nas mulheres ou a promoção para posições sênior, entre os homens. E Josa acrescenta que as mães que trabalham são um grupo de alto risco para a síndrome do impostor e para o burnout. Existem também muitas pesquisas que indicam que pessoas que pertencem a minorias podem ser afetadas de forma mais aguda. Kelly Cawcutt, do Centro Médico da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos, afirma que a síndrome do impostor vem sendo observada há muito tempo como um fator para a alta incidência de burnout entre trabalhadores da área médica. Sua pesquisa indica que "preconceitos enraizados e falta de diversidade" na profissão podem significar que grupos sub-representados e minorias étnicas são particularmente afetados. Como exemplo, sabe-se que médicos negros enfrentam maior risco de burnout, em parte devido ao estresse da discriminação. Cawcutt afirma que "se nos dizem que não somos suficientemente bons, suficientemente inteligentes ou que não pertencemos - ou se somos levados a nos sentir dessa forma com microagressões —, esses preconceitos extrínsecos podem ser internalizados", alimentando a síndrome do impostor e, em prazo mais longo, o burnout. "Embora existam agora muitos esforços para combater esses preconceitos, eles ainda permanecem", afirma Cawcutt, criando o que a sua pesquisa chama de "ciclo negativo substancial" para o indivíduo. Segundo ela, isso demonstra a importância de tratar a síndrome do impostor e o burnout — e também os preconceitos enraizados — não como questões isoladas, mas como fenômenos relacionados que precisam ser enfrentados em conjunto, se quisermos resolvê-los. Josa afirma que, com relação ao indivíduo, o ponto de partida é combater a síndrome do impostor redefinindo a reação do cérebro ao estresse, "para que você não sofra aquele disparo inconsciente da reação de lutar, fugir e congelar". Mas, para evitar que a síndrome do impostor acabe disparando o burnout, ela afirma que as empresas precisam fazer mais para enfrentar culturas em que "tudo virou emergência" e as pessoas se sentem compelidas a ter desempenho superior, rangendo os dentes com as adversidades, em vez de serem honestas sobre o seu bem-estar. Yousef e Raimondi concordam que é fundamental incentivar os trabalhadores a estabelecer fronteiras cognitivas em torno do seu trabalho, para que eles tenham tempo de se recuperar mentalmente após períodos de tensão, rompendo esses ciclos de estresse. Os trabalhadores mais jovens, segundo Yousef, precisam de ajuda para se relacionarem com os mentores no trabalho e poderem aprender como se encaixar, eliminando já no princípio o sentimento de que seriam impostores. "Aqui, a prevenção deve ser fundamental", afirma ela. "Eu simplesmente adoraria que nossos filhos fossem educados já no ensino médio sobre o que acontece quando você trabalha demais." Mas, para pessoas como Fiona, a solução do problema é mais difícil do que parece. Ela foi aconselhada pelo médico a se afastar do trabalho, mas receia que, com isso, ela decepcione sua equipe ou simplesmente prove a si mesma e aos demais que "fui promovida além da minha capacidade". Em vez disso, ela continua lutando diariamente para "atravessar o atoleiro do trabalho", invejando as pessoas que parecem estar lidando bem com a situação. "Não seria uma boa sensação saber que você não vai se abalar tendo que sair para trabalhar todos os dias?"
2022-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/revista-61596766
sociedade
'Acordei com a chuva e em cinco minutos tinha perdido tudo', diz moradora do Recife
"Acordei com o barulho da chuva às quatro e meia da manhã. Eu, minha filha e minha mãe tentamos tirar a água, mas a correnteza vinha muito forte. Só deu tempo de pegar as crianças, os documentos, e sair. Em cinco minutos a água já estava no teto", diz Luana José, de 39 anos, moradora do bairro Monteiro, em Recife. Na casa de Luana, moravam também três crianças - pela agilidade em sair da casa, ninguém se machucou. A família foi uma das tantas afetadas pelas fortes chuvas e deslizamentos de terra causados pelas tempestades na região do Grande Recife. Nas últimas 24 horas, pelo menos 30 pessoas morreram, além dos outros cinco óbitos ocorridos na última quarta-feira (25/5), totalizando 35 vítimas. Todos os móveis, roupas e outros objetos da família de Luana ficaram na casa inundada. "Perdi tudo que juntei a vida inteira, agora não sabemos o que fazer. Tenho depressão e a situação não é nada boa." Fim do Matérias recomendadas Mas, de acordo com Luana, ela tem medo de sair do local, e após a água baixar, alguém tentar invadir a propriedade. "Sabemos que estão entrando em casas que ficaram destrancadas, por isso estamos aqui, sem comer nada o dia todo, olhando, mesmo que de longe", afirma a moradora, que ainda tem esperança de conseguir salvar algo que ficou na residência. De acordo com a Codecipe (Central de Operações da Coordenadoria de Defesa Civil do Estado de Pernambuco), assim como Luana e sua família, mais de 700 pessoas que residiam na região do Grande Recife estão desabrigadas. O Instituto Casa Amarela Social, que representa a ONG G10 Favelas em Pernambuco, é um dos grupos que auxilia famílias pobres de Recife, e está atualmente em campanha para arrecadar doações para as vítimas das chuvas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com chuvas ainda previstas para a região nas próximas horas, a depender da extensão da destruição causada pelos alagamentos, a saúde dos moradores ainda pode estar risco em médio e longo prazo. Com isso, a população pode ter seu sistema de água contaminado por escombros e esgoto, ambos contando com a possível presença de agentes biológicos nocivos. "Um risco bastante comum é ter o aumento dos casos da doença chamada leptospirose, causada por um microorganismo presente na urina do rato". Além do risco de ingestão direta de água contaminada pelo extravasamento do sistema de saneamento, há ainda a possibilidade de que, ao se deslocar de um lugar para outro, a pessoa que tenha qualquer tipo de ferida não cicatrizada — por menor que seja — se contamine por ter contato com a água ou com a lama. Sem o controle dos órgãos públicos e concessionária, a água potável que passaria por tratamento é oferecida com contaminação por esgoto, aumentando as chances de quadros associados às precárias condições de saneamento básico, como diarreia bacteriana, febre tifoide e hepatite. Mexer nos escombros também é perigoso por aumentar o risco de tétano. "É uma infecção causada pela bactéria Clostridium tetani, que é geralmente encontrada no solo, na poeira e em fezes de animais, e acessa o organismo através de ferimentos ou lesões de pele", afirmou a especialista.
2022-05-28
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61621023
sociedade
‘O clube do qual ninguém quer fazer parte’: como mãe que perdeu filha em massacre nos EUA transformou dor em ativismo
Enquanto os Estados Unidos assistiam nesta semana a mais um massacre em uma escola do país, depois que um atirador matou 19 crianças e duas professoras na cidade de Uvalde, no Texas, Lori Alhadeff pensava no que as famílias das vítimas terão de enfrentar nos próximos dias e meses. "Eles ainda nem conseguem processar o que está acontecendo. Terão de começar a preparar os funerais de seus filhos", diz Lori à BBC News Brasil. "É algo terrível, para a qual você nunca poderia se preparar. Essas famílias estão paralisadas, sua cabeça está rodando. Estão sentindo tanta dor e tanta raiva. Pelo menos foi isso que senti", afirma. A filha mais velha de Lori, Alyssa, tinha 14 anos de idade quando foi morta ao lado de outros 13 estudantes e três funcionários em um dos massacres mais chocantes do país, na escola secundária Marjory Stoneman Douglas, em Parkland, na Flórida, em 14 de fevereiro de 2018. "Você manda seus filhos para a escola e espera que eles voltem para casa seguros", diz Lori. Fim do Matérias recomendadas Ela conta que está participando de um esforço para enviar cartas às famílias afetadas pela tragédia na escola primária de Uvalde e lembra que, quando Alyssa foi morta, sua família também recebeu inúmeras mensagens de apoio. O massacre no Texas é a mais recente em uma longa lista de tragédias do tipo que se repetem há décadas nos Estados Unidos. É também o ataque com o maior número de mortos em uma escola americana desde 2012, quando um atirador matou 20 crianças e seis adultos na escola de Sandy Hook, na cidade de Newtown, em Connecticut. Pais e mães cujos filhos foram mortos em tiroteios em escolas acabam formando laços profundos, em uma rede de solidariedade que continua ganhando novos integrantes a cada tragédia. "Nós entramos para esse clube do qual ninguém nunca quis fazer parte", afirma Lori. "Temos uma conexão. Porque ninguém mais consegue entender ou sentir o que nós sentimos." Lori conta que as 17 famílias das vítimas de Parkland permanecem muito próximas. Sua família também mantém contato com outros pais e mães que perderam filhos em tiroteios anteriores em escolas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lori se emociona ao falar da filha. "Alyssa era uma menina incrível, bonita, cheia de vida. Ela amava a praia, o mar, os amigos. Era uma estudante excelente e jogava futebol. Ela vestia a camisa número 8. Era a menor em campo, mas com a maior voz, era a capitã do time." Até a morte da filha, Lori diz que era uma dona de casa comum. "Durante 14 anos, fui uma mãe em tempo integral, com três filhos. Eu cozinhava, limpava a casa, levava as crianças para as aulas de futebol", lembra. Mas, depois da tragédia em Parkland, tudo mudou. "Alyssa me inspirou a transformar minha dor em ação", afirma. "A dor de ter minha filha morta em um tiroteio na escola me fez chegar a esse ponto em que eu precisava fazer algo, ter uma voz para mudar as coisas, um lugar na mesa." Meses depois do massacre Lori foi eleita para conselho escolar do condado de Broward, divisão administrativa da qual Parkland faz parte, após uma campanha focada em melhorar a segurança nas escolas. Ela e o marido, Ilan Alhadeff, criaram uma organização sem fins lucrativos, Make Our Schools Safe ("Torne Nossas Escolas Seguras", em tradução livre), em homenagem à filha. O objetivo é melhorar os protocolos de segurança nas escolas. Os Alhadeff observam que, no dia do ataque em Parkland, não havia cerca para impedir que o atirador entrasse na escola, e a porta do prédio não estava trancada. "A sala em que Alyssa estava foi a primeira que o atirador atacou. Ela foi atingida imediatamente, mas depois que o atirador foi embora, houve um período de tempo durante o qual estava viva e poderia ter se movido até uma zona de segurança na sala de aula. Mas ela não sabia onde se esconder, não sabia onde ficava a zona de segurança", descrevem. "O que aconteceu? Não havia orientação. Quando o atirador retornou, nossa Alyssa foi atingida de novo… e de novo… e de novo." Os esforços dos Alhadeff já resultaram na aprovação em dois Estados de uma lei batizada com o nome de Alyssa e que prevê a instalação de botões de pânico nas escolas, conectados diretamente com a polícia. A lei já foi aprovada na Flórida e em Nova Jersey, e Lori espera que seja bem-sucedida em outros Estados. Outro de seus esforços, um projeto federal, prevê financiamento para melhorar diferentes aspectos de segurança nas escolas. Nesta semana, depois do massacre em Uvalde, as reações nos Estados Unidos seguiram o mesmo roteiro repetido há décadas no país após cada tragédia do tipo, com políticos democratas pedindo maior controle no acesso a armas e republicanos rejeitando restrições. O mesmo ocorreu após o tiroteio em Parkland, quando muitos dos estudantes sobreviventes encabeçaram uma nova onda de ativismo por leis que restrinjam o acesso a armas, com várias passeatas, protestos e outras ações. Mas o tema provoca muitas divisões, e é difícil aprovar leis do tipo no Senado. Diante dessa polarização, Lori diz que prefere concentrar seu ativismo em algo sobre o que a maioria das pessoas concorde, como a necessidade de melhorar a segurança das escolas. "Como a questão das armas provoca tanta polarização, sinto que nada acaba sendo feito", observa. "Eu respeito a luta (por restrições ao acesso a armas) de muitas das 17 famílias (de Parkland) e de tantos outros. Mas, no meu caso, sigo no tema de segurança nas escolas. Porque, no fim das contas, nossos filhos continuam indo à escola, e nós continuamos tendo que protegê-los", afirma. Os dois filhos mais novos de Lori hoje têm 15 e 17 anos. Ela conta que, logo depois da morte de Alyssa, começou a enviá-los à escola com mochilas à prova de balas. "Porque eu pensava que, se todo o resto falhasse, pelo menos eles teriam aquilo para se proteger."
2022-05-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61613941
sociedade
Está na hora de criminalizar a gordofobia?
Depois de um ano trabalhando em uma empresa de moda canadense, Courtney percebeu que estava sendo excluída de reuniões com fornecedores. "Me foi dito que ficar fora do escritório durante uma tarde inteira [encontrando fornecedores] não era um bom uso do meu tempo", ela lembra. Em agosto de 2018, 18 meses após ter começado a trabalhar na empresa, Courtney (cujo sobrenome foi omitido por motivos de privacidade) sentou-se com seu gestor para uma avaliação de desempenho. Ele passou os primeiros 10 minutos elogiando seu desempenho profissional, mas os 20 minutos seguintes pegaram Courtney de surpresa. "Ele disse que minha aparência estava afetando meu trabalho. Disse categoricamente que me achava gorda demais para estar no cargo que estava. Disse que ficava envergonhado de me ver perto dos nossos fornecedores em reuniões e que isso arruinava sua reputação." Fim do Matérias recomendadas O chefe de Courtney também falou que ela precisava começar a ir à academia e parar de usar roupas justas. Pediu a ela para comprar roupas novas e usar maquiagem todos os dias. "Fiquei muito chocada", diz ela. "Eu meio que só fiquei sentada lá, para ser bem honesta. Senti como se fosse começar a chorar." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Após a reunião, Courtney conta que as preocupações com a aparência afetaram significativamente seu trabalho e que ela ficou paranoica com o que os colegas pensavam. A discriminação baseada no peso no ambiente de trabalho ainda é legal em quase todas as partes do mundo, exceto no Estado americano de Michigan e em algumas cidades dos Estados Unidos, incluindo San Francisco e Madison, em Wisconsin. Em muitos países, características como gênero, raça, religião e orientação sexual são oficialmente protegidas por lei, o que significa que os empregadores não podem usá-las para discriminar. Mas, salvo pequenas exceções, esse ainda não é o caso do peso. É claro que muita gente sabe que incluir o peso como um fator para contratar candidatos ou promover funcionários não é correto. Mas este tipo de discriminação ainda acontece, seja abertamente ou nos bastidores, com base em vieses conscientes e inconscientes das pessoas. Pode ter um preço significativo, tanto econômica quanto mentalmente, para aqueles que a vivenciam. As medidas para combater legalmente a gordofobia avançam lentamente. Enquanto isso, esta forma insidiosa de discriminação continua difícil de ser erradicada. "A discriminação por peso pode ser vivenciada de muitas maneiras diferentes, algumas sutis e outras mais evidentes", explica Rebecca Puhl, professora do Departamento de Ciências do Desenvolvimento Humano e da Família da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos. "Vemos pessoas sendo discriminadas por causa do peso quando se candidatam a empregos. Elas são menos propensas a serem contratadas do que indivíduos mais magros com as mesmas qualificações." Embora não haja evidências para respaldar a ideia de que o peso está ligado a certos traços de personalidade, estereótipos alimentam estas decisões de contratação. Puhl cita um estudo de 2008 que mostrou que os candidatos a emprego com excesso de peso são vistos como sendo "menos agradáveis, menos emocionalmente estáveis ​​e menos extrovertidos do que aqueles que tinham um peso considerado 'normal'". Uma vez contratadas para um trabalho, as pessoas podem sofrer discriminação de peso de várias maneiras. Pode ser explícito, como a exclusão e os comentários dos quais Courtney foi alvo na empresa de moda. Um estudo de 2021, do qual Puhl foi coautora, ouviu 14 mil pessoas na Austrália, Canadá, França, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos que estavam participando de um programa de controle de peso: 58% disseram que haviam sido estigmatizados por seu peso por parte de colegas. Outras discriminações podem ser sutis. "Também vemos pessoas que foram preteridas para promoções ou estão sendo demitidas injustamente de seus empregos", explica Puhl. Um estudo de 2012 com profissionais de Recursos Humanos mostrou que eles eram mais propensos a desqualificar pessoas obesas para contratações e menos propensos a nomeá-las para cargos de supervisão. Na empresa de moda, Courtney viu outras pessoas com o mesmo cargo serem promovidas, enquanto ela permaneceu na mesma posição. "Qualquer pessoa na minha posição subia (na empresa) dentro de um ou dois anos", explica. A discriminação por peso se manifesta em todos os tipos de ambiente de trabalho, de acordo com Brian J. Farrar, advogado trabalhista da Sterling Employment Law. Mas ele diz que é especialmente prevalente em ambientes com foco na aparência física. "Você tende a ver mais onde os funcionários estão interagindo com os clientes", afirma. "Em um restaurante ou no varejo, você tende a ter potencialmente uma maior incidência de discriminação por peso." Há ainda um componente de gênero: Puhl diz que as mulheres são mais vulneráveis ​​à discriminação de peso no ambiente de trabalho. "[Elas] vivenciam não apenas em níveis mais altos, como também em níveis mais baixos de peso corporal", diz ela. "Para os homens, o IMC [índice de massa corporal] tem que aumentar bastante até desencadear o mesmo nível de discriminação por peso que afeta as mulheres." Puhl atribui isso a diferentes padrões sociais em torno do peso e atratividade entre os gêneros. Farrar concorda, observando que as expectativas de aparência física não são aplicadas universalmente entre funcionários do sexo masculino e feminino. A renda também pode desempenhar um papel na discriminação por peso, segundo ele, afetando desproporcionalmente profissionais com baixos salários. "Eles podem ser menos propensos a se manifestar e denunciar a discriminação", observa. "Isso pode fazer com que os empregadores tirem mais proveito deles." A discriminação de peso pode ter múltiplos impactos, tanto em termos de progressão na carreira de um profissional - o que está relacionado ao seu potencial de ganho - quanto na sua saúde mental. Do lado econômico, um estudo de 2011 mostrou que o aumento de uma unidade no IMC de uma mulher está correlacionado com uma diminuição de 1,83% no salário. Um estudo de 2018 indicou que estar em uma faixa de renda mais baixa pode aumentar o risco de obesidade, e que o inverso também é verdadeiro - ser obeso diminui a renda, com impactos mais pronunciados entre as mulheres do que os homens. O julgamento baseado no peso e as observações rudes também podem levar a comportamentos negativos de saúde, como distúrbios do sono e consumo de álcool, menos atividade física e maus hábitos alimentares. Para Courtney, ser julgada por seu peso levou a uma ansiedade grave que, junto a outros estresses cotidianos, fizeram com que ela tirasse uma licença médica de dois anos do trabalho. Especialistas como Puhl e Farrar, que representou funcionários em Michigan em casos de discriminação de peso no ambiente de trabalho, concordam que a legislação pode ter um impacto nessa questão. Nos Estados Unidos, há projetos de lei tramitando em Nova York e em Massachusetts, semelhantes às salvaguardas de Michigan, onde o peso é incluído como uma característica protegida na lei de direitos civis do Estado. Reykjavik, capital da Islândia, e algumas partes do Brasil - como em Recife e em Rondônia - também aprovaram leis que protegem as pessoas da discriminação de peso. Puhl nos lembra que a mudança é lenta por causa dos estigmas persistentes em torno do peso. "Se a sociedade continuar a colocar culpa pessoal nas pessoas por seu peso, e se essa culpa for considerada socialmente aceitável, a mudança política é muito desafiadora", diz ela. Mas ela acredita que Massachusetts "está bem perto" de aprovar uma nova lei. "Isso é algo importante, porque a lei de Michigan foi aprovada em 1976. Desde então, nenhum Estado aprovou nada. Se Massachusetts fizer isso, vai abrir as portas para outros Estados seguirem o exemplo." A legislação não é a única solução, é claro, porque não vai erradicar atitudes negativas generalizadas em relação ao peso. Mas, semelhante aos avanços anteriores em relação a gênero, raça e orientação sexual, a legislação faz diferença. "Vai acabar com o estigma do peso? Não, claro que não", diz Puhl. "Ainda vivemos na mesma sociedade e cultura em que há mensagens de que o peso é sobre responsabilidade pessoal, preguiça ou disciplina." Mas as proteções legais são importantes e necessárias para que ocorram mudanças sociais significativas. Courtney acredita que ter proteções contra discriminação de peso no Canadá não teria impedido sua experiência negativa no ambiente de trabalho, mas diz que a existência de leis teria sido reconfortante. "Acho que saber que existe uma legislação parece quase uma validação de que é errado ser discriminado pelo peso", diz ela. Depois de voltar ao trabalho da licença médica, Courtney continuou a sofrer bullying relacionado ao peso e a ouvir comentários negativos dos supervisores. Ela acabou sendo demitida - e se sente aliviada por estar fora de uma "situação tóxica". "Isso colocou muita insegurança na minha cabeça sobre minha capacidade de fazer meu trabalho, sobre a carreira que eu quero", explica Courtney. "Isso me fez repensar se sinto que sou capaz de trabalhar na indústria da moda em geral. Não acho que possa ter uma carreira duradoura se estiver sempre pensando que as pessoas estão me julgando." No Brasil, a gordofobia não é crime, mas pode ser enquadrada por injúria e danos morais, ou seja, o abusador pode ser processado nas esferas criminal e cível. Foi o que aconteceu com a bailarina Thais Carla que venceu o processo judicial que moveu contra o humorista Leonardo Lins após sofrer discriminação por estar acima do peso. Foi a primeira condenação direta por gordofobia e, segundo especialistas da área, pode representar um marco jurídico. No caso de Thais, ela ganhou indenização por danos morais.
2022-05-28
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sociedade
'Mães se penduravam no meu pescoço por ajuda': o que 'Supernanny' viu em 10 anos
Durante cerca de uma década, Cris Poli visitou diferentes lares pelo Brasil para ajudar os pais na relação com os filhos. No programa Supernanny, exibido pelo SBT, ela se tornou figura constante no imaginário de muitas famílias brasileiras. Não era incomum ouvir uma mãe ou um pai dizer que chamaria a Supernanny se o filho não obedecesse. A versão brasileira do programa criado na televisão inglesa estava prevista para durar cerca de um ano no Brasil, mas devido ao sucesso chegou a 10 temporadas. Mesmo após o fim do material inédito, a atração foi reprisada algumas vezes e até hoje é assistida no YouTube - onde acumula milhões de visualizações. Mais de cinco anos após o fim do programa, a ânsia por uma "super-heroína" para enfrentar os problemas relacionados aos filhos pequenos continua a mesma. Cris ainda recebe inúmeros pedidos de ajuda e passou a dar consultorias particulares de modo virtual a famílias de todo o país. Para ela, uma educadora argentina que nunca havia trabalhado na televisão, o programa foi uma mudança completa de vida. Cris deixou o serviço em uma escola cristã bilíngue em São Paulo para se arriscar diante das câmeras. A experiência é classificada por ela como positiva e de muito aprendizado. Fim do Matérias recomendadas A Supernanny acompanhou cerca de 150 famílias em diversos lugares do país. Eram duas semanas em cada casa, que incluíam dias de observação e outros de aplicação do método adotado no programa. Nessas casas, Cris notou dificuldades semelhantes que considera que persistem até hoje em muitos lares. O principal problema, avalia a educadora, está nos pais. "As famílias procuravam a Supernanny por conta das crianças, porém a primeira e maior mudança é nos pais, porque se os pais não mudam, a criança não muda", diz Cris à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Supernanny chegava aos lares após a família se inscrever por meio do site da atração. Na época havia milhares de pedidos de ajuda de todo o Brasil. "Quando eu chegava nas casas era tipo a tábua salva-vidas. As pessoas, principalmente as mães, se penduravam no meu pescoço, choravam e diziam: vem me ajudar, porque eu não sei mais o que fazer. Então tinha muita angústia e desespero", relembra Cris. "Essas famílias assinavam um contrato dispostas a expor os problemas delas na televisão em rede nacional. O que não é fácil e dá uma ideia do grau de desespero muito grande em que essas pessoas estavam", comenta. Para Cris, há vários problemas semelhantes nas famílias que visitou e em tantas outras. "Tinha e continua tendo (problemas parecidos): a falta de paciência dos pais com os filhos, problemas entre o casal que acaba refletindo na família - morando junto ou separado - e problemas relacionados a muito trabalho e pouco tempo ou quase nada para ficar com os filhos", diz Cris. "Isso traz uma série de dificuldades. Naquela época já era problema e hoje está pior, porque os pais trabalham muito, sempre muito ocupados e não têm tempo para cuidar dos filhos. E a responsabilidade da educação dos filhos acaba terceirizada ou para a escola. Mas essa responsabilidade da educação dos filhos é dever dos pais, a escola é parceira e trabalha junto, tem a função de ensinar e não de educar", completa a educadora. Outro ponto que ela ressalta é a falta de demonstração de afeto nas famílias. "Não duvidei nunca e nem duvido que esses pais amem os filhos. Mas esse amor precisa ser exteriorizado. A criança precisa saber e ouvir do papai e da mamãe: eu amo você", diz. Por meio do método da Supernanny, Cris tentou ajudar a resolver os diversos conflitos familiares. Mas para solucionar qualquer situação, ressalta a educadora, era fundamental que os pais estivessem dispostos a participar ativamente da vida das crianças durante o maior período possível. Além disso, os responsáveis deveriam dar continuidade ao que aprenderam durante o programa. Assim como outros países que também compraram o formato, a versão brasileira do programa Supernanny, que passou a ser exibido em 2006 pelo SBT, seguiu um manual criado pelos ingleses. Ali estava o método que deveria ser adotado e a forma adequada para lidar com os pais e as crianças. Com o passar dos anos, diz Cris, foram feitas algumas alterações pontuais para trazer características mais próximas à realidade brasileira na condução do programa. No entanto, o conteúdo em geral permaneceu o mesmo da versão inglesa. O "cantinho da disciplina", por exemplo, veio do formato original. Nesse método, que se tornou popular em lares brasileiros, os pais determinam quais regras os filhos devem seguir, como escovar os dentes após as refeições ou lavar as mãos antes de se alimentar. "Essas regras são estabelecidas pelos pais e transmitidas para as crianças. Se ela cometer o mesmo erro três vezes, você chama e diz: olha, te avisei, você sabe a regrinha, então vai ficar um tempinho no cantinho da disciplina para pensar. Quanto tempo fica? Se ela tiver dois anos, fica dois minutos. Se tiver quatro anos, fica quatro minutos…", detalha a educadora. "Se for além desse tempo (de um minuto para cada ano), a criança não tem condições de elaborar ou pensar aquilo que precisa ser ensinado. É um tempo pedagógico. Terminou esse tempo, vai lá e fala: entendeu por que está aqui? Não é preciso bater ou brigar, você vai conversar com a criança. E vai ser assim até ela entender esse processo de ensino", completa. Durante o programa, a Supernanny cria uma rotina para a família, aponta algumas regras que podem ajudar no cotidiano e há também um quadro com avaliações, no qual a criança pode conquistar um ponto se for obediente (ao atingir determinado pontuação ela ganha uma recompensa) ou perder um ponto se não respeitar as regras da casa (isso pode gerar pequenas punições). O método adotado no programa não é unanimidade e é apontado por alguns especialistas como uma forma autoritária de educar uma criança. Cris discorda dessas críticas e argumenta que o programa foi positivo para as famílias. "É natural, você tem um ponto de vista e tem gente que concorda ou que discorda. Eu aceito, porque não tenho a verdade absoluta disso. A única coisa que posso trazer como base de que estou certa naquilo é o resultado. As 150 famílias com problemas diferentes e históricos diferentes aplicados os mesmos princípios deram certo", rebate Cris. Ela diz que até hoje aplica um método semelhante em suas consultorias online. Ao defender as medidas adotadas na atração, Cris cita alguns casos de famílias que visitou durante o programa. Em um episódio, ela acompanhou dois irmãos que moravam com a mãe e os avós maternos. "A mãe trabalhava muito e esses garotos eram muito violentos, tanto que entrei lá e o mais velho, de quatro anos na época, me rejeitou, jogou as coisas contra mim e me agrediu mesmo. Mas eu fui dando amor para eles, brincando, fazendo métodos e trabalhos com eles para expressar amor. Nisso, a criança mudou comigo. Isso prova a carência", diz. "Os pais ficam estressados e, infelizmente, acabam descontando nas crianças, o que as torna violentas", comenta a educadora. Em outro caso, Cris acompanhou uma família na qual a mãe tinha muita dificuldade para demonstrar afeto. "Essa mãe tinha bastante disciplina e horário com os filhos, mas ela tinha muita dificuldade para se expressar emocionalmente por conta da primeira filha ter síndrome de Down e de muita exigência na vida dos outros dois filhos", comenta. "Isso teve que ser transformado também dando amor e trabalhando com a mãe. Ela chorou muito e falou muito comigo. No fim, deu tudo certo", diz. Em outra família, a irmã mais velha, na época com 18 anos, assumiu a responsabilidade sobre os dois mais novos após perderem os pais vítimas de câncer. "Ela estava sozinha com os dois irmãos e era um problema porque ela não era mãe, tinha só 18 anos. Os irmãos não reconheciam a autoridade dela, então era um problema de violência, rebeldia e desobediência", relembra a educadora. Em um dos programas, anos após a estreia, Cris revisitou algumas das primeiras famílias que acompanhou. Ela diz que algumas continuaram seguindo cerca de 80% de tudo o que a educadora ensinou no programa. "O que vi nesse retorno é que famílias que seguiram o princípio da necessidade de mudança continuaram aplicando o que levei. As famílias que não entenderam e voltaram atrás, tudo bem", afirma Cris. "No programa, eu ficava duas semanas na casa daquela família, então era um momento e uma idade, mas três anos depois a criança já não tem a mesma idade, muita coisa mudou e não dá pra permanecer 100% com aquilo que foi pactuado", afirma. Ela ressalta que as medidas precisam ser revistas conforme a idade das crianças avança. Mesmo cinco anos após o fim da versão brasileira, Cris ainda recebe inúmeros pedidos do público para que o programa retorne. A educadora, hoje com 76 anos, acredita que é pouco provável que a atração volte. "Acho que foi um ciclo que não tem como voltar", comenta. Porém, ela frisa que se o programa retornasse, seria fundamental se adaptar à realidade atual do país, em razão da pandemia de covid-19 e do atual cenário de crise econômica. "A pandemia machucou muito o relacionamento dos pais e dos filhos. Teve muita gente sem trabalho, muita gente que perdeu entes queridos, teve o conflito de estar todo mundo trancado em casa durante dois anos e tendo que conviver uns com os outros. Os pais trabalhando online, quando tinha trabalho. As crianças estudando online, quando tinha aula…", diz Cris. "Tudo isso mudou a dinâmica das famílias, fora o próprio estresse da pandemia, pelo trabalho, pela saúde e pelo período, por não saber o que iria acontecer. Foi bem traumatizante. Não foram dois meses, foram dois anos para começarmos a sair aos poucos", acrescenta a educadora. Além disso, ela pontua que o cenário atual também é impactado pela dura crise econômica brasileira: com índices de desemprego em alta, redução do poder de compra e muitas famílias com dificuldades até mesmo para conseguir os itens mais básicos da alimentação. "Vejo muitas crianças precisando de atenção dos pais que estão muito preocupados em trabalhar, trazer dinheiro para casa, trazer comida e comprar coisas básicas. Não estou culpando os pais, mas estou explicando a situação", diz. "Os pais trabalham muito e não há tempo para as crianças, que ficam com os avós ou na frente da televisão, do computador ou do celular", completa a educadora. O aumento do tempo que as crianças passam diante das telas é outro ponto que ela destaca sobre as mudanças dos últimos anos. "Pros pais ficarem tranquilos, celular e computador se tornaram solução", pontua. "Naquela época (do programa), a internet já era um problema, mas hoje cresceu muito com a disponibilidade dos celulares e das redes sociais. As crianças são colocadas na frente do celular ou da internet muito cedo, isso é prejudicial", declara. Ela comenta que a recomendação de especialistas é que crianças de 0 a 2 anos não tenham nenhum contato com telas. "O cérebro está em formação, os neurônios se multiplicando e a criança pequena é uma esponjinha e pega tudo o que você colocar pra ela. Essa criança precisa brincar, precisa de brinquedos interativos e estar com os pais", diz a educadora. "A partir dos dois anos, com controle, pode ser meia hora por dia, isso até uns seis ou sete anos. Depois pode ir aumentando aos poucos, mas precisa ter controle dos pais. O problema é que quando está em frente à tela, a criança fica quieta, não chama, não pede, não bebe, não come, não faz nada e não atrapalha o dia dos pais (ou dos responsáveis). Então, tem que haver um controle, uma supervisão e um horário", afirma. Como consequência da alta exposição às telas, ressalta Cris, há dificuldades para socializar, desobediência, a criança fica muito calada e pode apresentar problemas de comunicação. Diante desse cenário econômico e social dos últimos anos, Cris avalia que o atual momento - em que as escolas retornaram ao presencial e a vida parece voltar aos poucos ao normal - deve ser um período de recomeço na relação entre pais e filhos. "É um reaprendizado (para os pais) para voltar a montar os esquemas de acordo com a nova realidade. E os pais precisam entender que os filhos precisam deles", diz.
2022-05-26
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sociedade
Catarata: 'Achei que ficaria cega, mas cirurgia no SUS devolveu minha visão'
Aos 80 anos, a mineira Ana de Oliveira já tinha "aceitado" que as alterações que vinha percebendo na visão eram sinal de que o tempo estava passando. Até que um dia chegou à conclusão de que tudo tinha ficado embaçado demais. "Eu fechava e abria os olhos para conferir, e era como se visse as figuras 'amolecendo', não reconhecia nada. Fiquei assustada", lembra. Eram os efeitos da catarata, doença ocular que torna opaca a lente transparente que permite a entrada de raios de luz para a formação de imagem, que já estava em estágio avançado em seus olhos. Preocupada com a tia, que não conseguia mais costurar nem cozinhar - suas atividades favoritas -, Viviane, sobrinha de dona Ana, procurou ajuda do SUS (Sistema Único de Saúde). "Desde o primeiro processo até conseguirmos reverter o problema, ela foi piorando. Eu ia ao posto de saúde e até ligava para a prefeitura pedindo pra dar prioridade aos exames dela, que já estava quase perdendo a visão", conta. Fim do Matérias recomendadas Quando dona Ana, que mora em Santa Luzia (MG), foi finalmente encaminhada para a cirurgia, uma espera de mais de um ano, ela estava quase cega. "Embora seja reversível na maioria dos casos, se progride demais a catarata pode causar complicações que levam à cegueira", explica o oftalmologista Tiago Cesar, que realizou a operação na aposentada, que hoje tem 82 anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O último levantamento feito pelo CBO (Conselho Brasileiro de Oftalmologia), em 2019, mostra que a catarata responde por 49% da cegueira no país, embora o número de cirurgias tenha dobrado entre 2009 e 2019. A pesquisa também mostra que 74,8% das pessoas cegas no Brasil poderiam ter curado ou prevenido a condição se tivessem recebido tratamento apropriado a tempo. Entre 2019 e 2021, somando todas as regiões do Brasil, houve uma queda de 35% nos principais exames para detecção de catarata, mostram dados do CBO (Conselho Brasileiro de Oftalmologia). De acordo com Cristiano Caixeta, oftalmologista e presidente do Conselho, a queda era esperada, já que a doença, apesar de progressiva, costuma ser reversível. "Como a maioria dos pacientes com o quadro é idoso, não valia o risco de expô-los ao risco apresentado pela pandemia. Em 2021, começamos a voltar à normalidade na taxa de exames." "Quando o médico me disse que eu poderia ficar cega, me desesperei. Já tenho problema na coluna e no joelho, ando de bengala, então, sem visão, eu faria o quê?", diz ela. Dona Ana conseguiu, com a cirurgia em um olho de cada vez, recuperar completamente a visão. "Foi um alívio. Cheguei a achar que ficaria cega, mas consegui a cirurgia pelo SUS e não paguei nada. Voltei para casa e fiquei vendo as coisas, olhando para os cantinhos que estavam sujos e antes eu não enxergava. O médico só me pediu uns dias longe do fogão, e eu fiquei." Os sinais encontrados no exame oftalmológico de rotina são perda da percepção visual e alteração da transparência do cristalino. De acordo com Tiago Cesar, professor de cirurgia oftalmológica na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, a cirurgia para a correção da catarata, único tratamento possível para doença, é complexa do ponto de vista técnico, mas simples para o paciente. Com um bisturi, o cirurgião faz pequenas incisões na córnea, a primeira estrutura do globo ocular. Depois, com uma espécie de caneta bem fina, através de um equipamento ultrassônico, ele faz a remoção do cristalino, "lente natural" dos olhos e parte na qual a doença está presente. Por fim, coloca-se uma lente intraocular no mesmo local. "A pessoa dorme e a equipe médica, formada por cirurgião, anestesista, instrumentador e enfermeiro realiza o procedimento em um tempo de 20 a 30 minutos. A recuperação é rápida e os pacientes não costumam ter queixas de dor no pós-operatório. Não tem pontos ou suturas e já no primeiro dia a pessoa sente uma melhora significativa." "Quando a gente tira o tampão, geralmente a pessoa chora. É reabilitar um dos principais sentidos, ainda mais para um idoso que já perdeu outras funções do corpo. É comum, inclusive, antes do tratamento, que esses pacientes desenvolvam depressão associada", conta o médico. As causas da catarata não estão bem definidas, mas estudos epidemiológicos associam à idade. Não é possível prevenir a catarata com uma única ação ou tratamento específico. Além de influência genética, há fatores ambientais que podem contribuir com o aparecimento do quadro, como exposição a luz solar excessiva sem proteção, má alimentação e tabagismo.
2022-05-23
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sociedade
O bem-sucedido método para acabar com o bullying nas escolas
Lady Gaga, Shawn Mendes, Blake Lively, Karen Elson, Eminem, Kate Middleton e Mike Nichols — estas são apenas algumas pessoas que falaram sobre suas experiências como vítimas de bullying na escola e a dor que isso causou a elas na infância e em etapas posteriores da vida. Meus algozes na escola eram uma dupla de Daniels, na zona rural de Yorkshire. Eles tinham o hábito de imitar e zombar de tudo o que eu dizia, de modo que eu mal ousava falar em sala de aula. Qualquer pessoa que tenha sido vítima de bullying quando criança entenderá os sentimentos de vergonha que este tipo de experiência pode trazer. E as consequências não param por aí. Pesquisas recentes sugerem que os efeitos do bullying infantil podem durar décadas, causando mudanças duradouras que podem nos colocar em maior risco de problemas de saúde mental e físicos. Tais descobertas estão levando um número cada vez maior de educadores a mudar seu ponto de vista sobre o bullying — de um elemento inevitável do crescimento para uma violação dos direitos humanos de crianças. Fim do Matérias recomendadas "As pessoas costumavam pensar que o bullying nas escolas é um comportamento normal e que, em alguns casos, poderia até ser algo bom — porque forma o caráter", explica Louise Arseneault, professora de psicologia do desenvolvimento da Universidade King's College London, no Reino Unido. "Demorou muito tempo para [os pesquisadores] começarem a considerar o comportamento de bullying como algo que pode ser realmente prejudicial." Diante desta mudança de mentalidade, muitos pesquisadores estão testando vários programas para combater o bullying — com algumas estratégias novas e bastante animadoras para criar um ambiente escolar mais amistoso. Há poucas dúvidas de que o bullying é um sério risco para a saúde mental das crianças a curto prazo, com as consequências mais notáveis ​​sendo ansiedade elevada, depressão e pensamento paranoico. Embora alguns destes sintomas possam desaparecer naturalmente quando o bullying acaba, muitas vítimas continuam sofrendo um risco maior de problemas de saúde mental. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com um artigo recente da Harvard Review of Psychiatry, uma mulher que sofreu bullying quando criança tem 27 vezes mais chance de ter transtorno de pânico no início da vida adulta. Entre os homens, o bullying na infância resultou em um aumento de 18 vezes em pensamentos e comportamentos suicidas. "Existem todas essas associações, que são sólidas e reproduzidas em diferentes amostras", diz Arseneault. O bullying também tem consequências prolongadas na vida social das pessoas: muitas vítimas acham mais difícil fazer amigos na vida adulta e são menos propensas a viver com um parceiro de longo prazo. Uma possibilidade é que tenham dificuldade de confiar nas pessoas ao seu redor. "As crianças que sofreram bullying podem interpretar as relações sociais de uma forma mais ameaçadora", observa Arseneault. Por fim, há os custos acadêmicos e econômicos. O bullying prejudica as notas das vítimas, o que, por sua vez, reduz suas perspectivas de emprego — o que significa que são mais propensas à instabilidade financeira e ao desemprego no início da vida adulta e na meia-idade. A pesquisa de Arseneault sugere que o estresse resultante pode afetar o corpo por décadas após o ocorrido. Ao analisar dados de um estudo longitudinal de 50 anos, ela descobriu que o bullying frequente entre os sete e 11 anos estava associado a níveis acentuadamente mais altos de inflamação aos 45 anos. É importante ressaltar que a relação permaneceu mesmo depois que ela controlou uma série de outros fatores, incluindo alimentação, prática de atividade física e tabagismo. Isso é importante, uma vez que a inflamação elevada pode prejudicar o sistema imunológico e contribuir para o desgaste dos nossos órgãos, levando a condições como diabetes e doenças cardiovasculares. Juntas, estas descobertas sugerem que as tentativas de eliminar o bullying não são apenas um imperativo moral para aliviar o sofrimento imediato de crianças, como podem oferecer benefícios a longo prazo para a saúde da população. Quando eu estava na escola no Reino Unido nos anos 1990 e início dos anos 2000, não havia campanhas sistemáticas para combater o bullying de forma mais ampla. Os professores puniriam certos comportamentos — se fossem observados. Mas a responsabilidade era do aluno de relatar o problema, o que significa que muitos casos foram ignorados. Alguns professores endossavam tacitamente o bullying, fechando os olhos para casos óbvios, enquanto outros — uma minoria rara, mas tóxica — se aliavam ativamente aos agressores. Certos tipos de bullying acabam sendo tolerados porque refletem preconceitos sociais mais amplos. Por exemplo, uma proporção significativa de filhos de mães lésbicas relatou em um estudo ser alvo de provocações ou bullying por causa do seu arranjo familiar, embora o apoio parental tenha amortecido o impacto. Jovens LGBTQ também são mais propensos a sofrer bullying e outras agressões na escola. As escolas, no entanto, tendiam a ignorar o bullying homofóbico no passado. Felizmente, pesquisas em andamento podem fornecer agora algumas estratégias antibullying comprovadas que podem ajudar. O Olweus Bullying Prevention Program é um dos programas mais amplamente testados. Foi desenvolvido pelo falecido psicólogo sueco-norueguês Dan Olweus, que liderou grande parte das primeiras pesquisas acadêmicas sobre vitimização infantil. O programa se baseia na ideia de que casos individuais de bullying são muitas vezes produto de uma cultura mais ampla que tolera a vitimização. Como resultado, tenta abordar todo o ecossistema escolar para evitar que o mau comportamento prospere. Como muitas outras intervenções, o Programa Olweus começa com o reconhecimento do problema. Por este motivo, as escolas devem preparar um questionário para perguntar aos alunos sobre suas experiências. "Saber o que está acontecendo é muito importante e pode orientar seus esforços de prevenção ao bullying", diz Susan Limber, professora de psicologia do desenvolvimento da Universidade Clemson, na Carolina do Sul, nos EUA. O Programa Olweus incentiva a escola a estabelecer expectativas muito claras do que é um comportamento aceitável — e as consequências se violarem essas regras. "As [sanções] não devem ser uma surpresa para a criança", diz Limber. Os adultos devem atuar como exemplos positivos a seguir, que reforçam os bons comportamentos e mostram tolerância zero para qualquer forma de vitimização. Também devem aprender a identificar os locais dentro da escola onde o bullying é mais provável de ocorrer e supervisioná-los regularmente. "Todos os adultos da escola precisam de algum treinamento básico sobre bullying — as pessoas que trabalham na cantina, os motoristas de ônibus, os inspetores", indica Limber. As próprias crianças realizam reuniões nas salas de aula para discutir a natureza do bullying — e as formas como podem ajudar os alunos que são vítimas deste mau comportamento. O objetivo, com tudo isso, é garantir que a mensagem antibullying esteja enraizada na cultura da instituição. Ao trabalhar com Olweus, Limber testou o programa em vários cenários, incluindo a implementação em larga escala em mais de 200 escolas na Pensilvânia, nos EUA. Suas análises sugerem que o programa resultou em 2 mil casos a menos de bullying em dois anos. É importante ressaltar que os pesquisadores também observaram mudanças na atitude geral das populações escolares em relação ao bullying, incluindo maior empatia com as vítimas. Os resultados de Limber não são os únicos a mostrar que campanhas sistemáticas contra o bullying podem gerar mudanças positivas. Uma meta-análise recente, que analisou os resultados de 69 ensaios, concluiu que as campanhas antibullying na escola não apenas reduzem a vitimização, como também melhoram a saúde mental geral dos alunos. Curiosamente, a duração dos programas não pareceu prever suas chances de sucesso. "Até mesmo algumas semanas de intervenção foram eficazes", diz David Fraguas, do Instituto de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital Clínico San Carlos, em Madri, na Espanha, que foi o principal autor do estudo. Apesar das fortes evidências, estas intervenções ainda não foram incorporadas aos programas nacionais de educação da maioria dos condados. "Não estamos fazendo o que sabemos agora ser eficaz", diz ele. O bullying não acaba na escola, é claro, e Limber argumenta que os pais e cuidadores devem estar atentos a sinais que indicam que pode haver um problema. "Você deve ser proativo e puxar o assunto — não espere que ele apareça", diz ela. "Você pode fazer isso como parte de uma conversa do tipo: 'Como vão as coisas com seus amigos? Você tem algum problema?'." Ela enfatiza que o adulto deve levar a sério as preocupações da criança — mesmo que pareçam triviais de uma perspectiva externa —, ao mesmo tempo que mantém a cabeça fria. "Ouça atentamente e tente manter suas emoções sob controle enquanto escuta." O cuidador deve evitar fazer sugestões precipitadas de como a criança pode lidar com o problema, já que isso às vezes pode dar a sensação de que a vítima é de alguma forma culpada pela experiência. Se for o caso, o pai ou responsável deve iniciar uma conversa com a escola, que deve elaborar imediatamente um plano para garantir que a criança se sinta segura. "A primeira coisa é se concentrar nessa criança e em suas experiências." Crescer raramente será fácil: as crianças e os adolescentes estão aprendendo a gerenciar as relações sociais e isso virá acompanhado de mágoa e aborrecimento. Mas, como adultos, podemos fazer um trabalho muito melhor ensinando às crianças que certos tipos de comportamento nunca são aceitáveis: se há algum culpado, será sempre o agressor. Estas lições poderiam ter um impacto generalizado na saúde e na felicidade de muitas gerações futuras.
2022-05-19
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-61306052
sociedade
Homeschooling: o que muda com projeto aprovado na Câmara, mas que ainda vai ao Senado
A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (18/05) o texto principal do projeto de lei que regulamenta a educação domiciliar, também conhecida como homeschooling. O projeto é um dos mais polêmicos da chamada "pauta ideológica" do governo do presidente Jair Bolsonaro (PL). Foram 264 votos a favor, 144 contra e duas abstenções. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que é da base de apoio do governo, colocou o requerimento como primeiro item da pauta da quarta-feira. Com a aprovação, a tramitação do projeto terá seus procedimentos acelerados. Logo após a aprovação, Lira colocou o mérito do projeto em votação. Mesmo assim, ainda que ele venha a ser aprovado, o caminho para que a educação domiciliar vire lei e entre em vigor ainda é longo. Caso o projeto seja aprovado, o texto seguirá para o Senado, onde também precisará ser votado. Se o Senado aprovar o projeto sem alterações em relação ao texto que saiu da Câmara, ele seguirá direto para a sanção presidencial. Caso haja alterações, o projeto voltará para a Câmara. Esse processo pode demorar mais alguns meses ou até mesmo anos, a depender do ambiente político. Mesmo assim, a aprovação do regime de urgência pela Câmara mostra que há empenho da base de apoio do presidente para que o projeto avance. A educação domiciliar é uma reivindicação relativamente antiga de diferentes grupos de pais e educadores que defendem que o Brasil siga o caminho de países como os Estados Unidos onde há leis que permitem que as crianças possam ser educadas fora do ambiente escolar. Em 2019, o assunto foi incluído como um tema prioritário da agenda de Bolsonaro. Fim do Matérias recomendadas A pauta ganhou fôlego durante a pandemia de covid-19, quando milhões de estudantes em todo o país passaram a estudar de forma remota. No Brasil, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) preveem que os pais ou responsáveis são obrigados a matricularem crianças e adolescentes em estabelecimentos de ensino públicos ou privados. Quem descumpre essa determinação pode ser processado criminalmente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma ação sobre o tema. Na ocasião, a Corte determinou que a educação domiciliar no Brasil era ilegal, porque não havia nenhuma lei que regulamentasse o assunto. Dessa forma, caberia ao Congresso Nacional aprovar ou não uma lei federal sobre o homeschooling. O projeto que tramita na Câmara altera, justamente, alguns artigos da LDB e do ECA, regulamentando a educação domiciliar. A relatora do projeto na Câmara é a deputada Luiza Canziani (PSD-PR). No seu parecer, estão previstas algumas regras para a adoção da educação domiciliar, entre elas: - a educação domiciliar poderá ser escolhida desde que pelo menos um dos pais ou preceptor (pessoa indicada para educar) apresente diploma de ensino superior ou educação profissional tecnológica; - os optantes não podem ter condenações por crimes hediondos, contra crianças e adolescentes ou violência doméstica; - é preciso registrar as crianças em estabelecimentos de ensino que ofereçam a modalidade de educação domiciliar; - os estudantes serão submetidos a avaliações anuais; - caso o estudante seja reprovado duas vezes, os pais não poderão mais optar pela educação domiciliar. A pauta é defendida por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro como a ex-ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos Damares Alves, pré-candidata ao Senado pelo Republicanos do Distrito Federal. A ideia também foi defendida pelo ex-ministro da Educação Abraham Weintraub. Para o presidente da Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), Rick Dias, a aprovação do projeto é importante para milhares de pais que já adotam o homeschooling e que hoje estão na ilegalidade. "O Brasil precisa sair desse atraso e se juntar ao grupo dos países que já reconheceram o direito dos pais e a liberdade educacional. É muito importante entender que nós não somos contra a escola. Somos a favor da escolha. Nada mais justo que tirar as famílias educadoras desse limbo jurídico em que elas se encontram", disse Dias à BBC News Brasil. Dias afirmou ainda que os pais deveriam ter o direito de oferecer a educação domiciliar como forma de fornecer formação e valores condizentes com as suas crenças. Por outro lado, políticos de oposição e algumas organizações não-governamentais que atuam na área da Educação se manifestaram contra o projeto. Segundo a Todos pela Educação, a educação domiciliar é uma "medida equivocada", porque partiria da premissa de que a educação se limitaria à transmissão do conhecimento contido no currículo escolar. Isso ignoraria os impactos positivos da socialização que as crianças e adolescentes experimentam no ambiente escolar. Além disso, a entidade afirma que a medida poderia abrir espaço para "comportamentos de risco" na família como o abandono escolar, violência doméstica e outros tipos de abuso. A deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL-SP) aponta ainda que a educação domiciliar dificultaria a detecção de casos de abuso cometidos contra crianças. "Uma parte significativa dos casos de abuso é detectada justamente no ambiente escolar, por professores treinados para lidar com esse tipo de situação. Se essas crianças não vão para a escola, como é que esses casos viriam à tona?", indaga a parlamentar. Rick Dias, da ANED, rebate as críticas: "A maior parte dos casos de abusos contra crianças são denunciados justamente pelos pais. Além disso, não há nenhuma evidência científica de que crianças e adolescentes educados em casa são menos sociáveis. Eduquei meus filhos em casa e, hoje, eles estão perfeitamente inseridos na universidade e o no mercado de trabalho".
2022-05-19
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61501821
sociedade
San Miguel de Allende, a joia turística no Estado com mais assassinatos no México
Entre as pitorescas ruas de San Miguel de Allende, é preciso esquivar-se de centenas de turistas tirando selfies em frente às belas construções coloniais desse município na região central do México. Suas alamedas de pedra, galerias de arte, restaurantes encantadores e residências coloridas fizeram com que esse lugar se tornasse o paraíso do Instagram - e também de milhares de estrangeiros, especialmente aposentados norte-americanos, que fizeram dele seu segundo município ou até sua residência principal, atraídos pelo clima agradável e pelo custo de vida muito menor que o do seu país de origem. A fama de San Miguel atravessou fronteiras. Em 2021, ela foi considerada a melhor cidade do mundo pela revista Travel & Leisure e pelos leitores do site Condé Nast Traveler. Mas é interessante observar que, a poucos quilômetros de distância e no mesmo Estado mexicano de Guanajuato, encontram-se alguns dos municípios considerados os mais violentos do México. Trata-se, de fato, da região do país com maior incidência de homicídios em 2021. Como esse paraíso turístico consegue escapar da onda de violência que assola as regiões vizinhas? Fim do Matérias recomendadas Sentado em um restaurante na praça central de San Miguel de Allende, o norte-americano Malcolm Halliday prova uma sopa asteca, tipicamente mexicana. Em frente a ele, um grupo de turistas fotografa a impressionante catedral de estilo neogótico que se tornou o símbolo da cidade. "Parece o castelo da Disney", diz um menino boquiaberto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Halliday chegou a San Miguel quase cinco anos atrás, atraído pela vida cultural da cidade. "A cidade e o ambiente me encantam", afirmou ele em bom espanhol à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. "Nos Estados Unidos, também temos violência em algumas cidades, mas a verdade é que aqui não temos muitos problemas." Louise Gilliam, também norte-americana e moradora de San Miguel, concorda. "Em todo o tempo em que estou aqui, nunca presenciei nenhum ato de violência. Morei em Chicago, em Nova York, em Los Angeles... e tomava o cuidado de não ir até as zonas perigosas. Você encontrará crime em qualquer lugar aonde for, se não andar com cuidado", afirma ela em inglês. Eles reconhecem que seus familiares e amigos ficaram preocupados quando souberam da sua intenção de estabelecer-se na região central do México. "Muitos estrangeiros ficam surpresos. Eles acreditam que, depois do entardecer, aqui já não podem sair. Eles trazem esse paradigma e depois observam a realidade. É como dar-lhes a certeza de que sim, somos parte do México, mas, ao mesmo tempo, também não", segundo Tania Castillo, secretária de turismo de San Miguel de Allende. Mas o município - que foi um dos principais cenários da Guerra da Independência do México no século 19 e acolheu algumas das reuniões de conspiração na luta contra os espanhóis - nem sempre foi um atrativo turístico. No início do século 20, por exemplo, o local esteve a ponto de tornar-se uma cidade-fantasma, devido aos vários conflitos bélicos que flagelaram a região. Somente nos anos 1930 e 1940, começaram a chegar artistas e promotores que fundaram escolas de arte e galerias que foram atraindo estudantes e imigrantes norte-americanos. Segundo Castillo, o que torna hoje a cidade um dos melhores destinos do mundo é a sua arquitetura, grande quantidade de igrejas, sua rede gastronômica, artística, de vinhedos e hotéis de luxo, aliados ao estilo de vida que "combina o cosmopolita com a vida das pequenas cidades mexicanas". Em meio a uma patrulha realizada pelo município para conhecer a situação de segurança, o policial local Esteban López conta que suas ações, em sua maioria, são "incidentes menores", para atender casos de pessoas que discutem ou bebem nas ruas. "Imagine que somos uma ilha. Tudo o que é ruim acontece ao redor dela", resume o policial. De fato, a apenas 50 km de distância de San Miguel, encontram-se alguns dos municípios mais violentos do México, onde o governo desenvolveu uma estratégia para reduzir o número de homicídios - como é o caso de Celaya ou León - e cujos números de assassinatos são até 20 vezes mais altos que os de San Miguel. Mas a principal razão que faz com que San Miguel de Allende fique de fora do processo de violência de Guanajuato é por não estar localizada no corredor de extração de petróleo que atravessa parte do Estado. "O fluxo desses oleodutos é o que gera a violência pelo controle desse mercado ilegal. San Miguel está próxima, mas não passa por ali", indica o especialista em segurança Victor Sánchez. Essa linha em diagonal, também conhecida como "Triângulo das Bermudas", é formada por cerca de 15 municípios por onde passam os oleodutos da Petróleos Mexicanos (Pemex), que transportam o combustível ao longo do país. Embora, no passado, a região fosse dominada principalmente pelo cartel de Santa Rosa de Lima, a prisão do seu líder, o "Marro", em 2020, fez com que a organização perdesse força na maioria dos municípios, que agora são disputados por células do cartel de Sinaloa, Jalisco Nova Geração (CJNG) e Nueva Plaza. E, além da sua localização geográfica, existem algumas particularidades da infraestrutura de San Miguel que podem torná-la menos atraente para os grupos criminosos. "Suas características arquitetônicas impedem que esta seja uma cidade com determinados planos de desenvolvimento. Quando um município não tem vias expressas, não tem uma central de abastecimento e não é um centro de coleta de materiais que precise receber caminhões, ele não tem a infraestrutura necessária para a distribuição de produtos proibidos", explica o prefeito de San Miguel de Allende, Mauricio Trejo. "Somos uma bolha dentro do Estado", afirma ele, com orgulho. Para Sánchez, outro fator importante para explicar a falta de violência é o fato de que "não existe uma disputa declarada entre várias organizações criminosas, como vemos em outros municípios. A região do centro até o norte [de Guanajuato], onde está San Miguel, é uma zona totalmente controlada pelo CJNG." E, segundo o especialista, isso traz duas hipóteses. A primeira é que, como ocorre em tantos outros corredores turísticos, os grupos criminosos vendem produtos ilegais, como drogas, em pequena escala, aproveitando a presença de turistas e moradores estrangeiros. "Para a organização criminosa, é interessante não afugentar esses compradores com alto poder aquisitivo. Se começar a haver violência na região, os turistas deixarão de vir", salienta ele. A segunda hipótese, relacionada com a primeira, é que "como existe um fluxo de dinheiro considerável, negócios como hotéis e restaurantes que operam com dinheiro vivo podem servir de pontos de lavagem de dinheiro para a organização que controlar o município - e ela, por fim, também quer manter a paz para não chamar a atenção das autoridades". Mas o prefeito nega a presença do CJNG e de qualquer outra organização em San Miguel de Allende. "Não detectamos a ingerência de nenhum grupo criminoso. Não fomos pressionados nem ameaçados por nenhum grupo", afirma ele, taxativo. "A questão do varejo de drogas que pode ocorrer no município é combatida pela Guarda Municipal e por programas de denúncia e prevenção do uso de drogas", reconhece Trejo. "Mas o perfil dos turistas que temos por aqui é diferente, porque eles vêm procurando por cultura." Alguns desses turistas, como Aarón González, da Cidade do México, acreditam que tudo se deve a "acordos entre as autoridades e os grupos, porque é claro que [os grupos] não podem ter todo o controle, nem o governo pode controlá-los. Ou talvez possa, mas não o faz porque há interesses e eles preferem manter seus acordos", opina ele, sentado em um banco do parque central com sua esposa, ouvindo a música dos mariachis enquanto a noite cai. Diversos moradores que preferiram manter-se anônimos mencionaram para a BBC News Mundo a existência de práticas de extorsão, pressões ou cobrança de "taxas de segurança" junto aos comerciantes da cidade. "Uma amiga minha tinha um pequeno comércio, até que ela teve a ideia de vender [drogas] ali. Agora, já não tem o negócio, nem está lá. Disseram que ou ela pagaria pelo local, ou [ficaria sem] nada. Eles dão o dinheiro para você entrar no negócio, mas depois você precisa pagar de volta. Ela não pagou e assim fizeram", conta Paula Colunga, que vende raspadinha em frente à catedral. Mas o prefeito garante não ter recebido informação de nenhum comerciante que tenha sofrido extorsão recentemente. "Pode ser que ainda se sintam ofendidos pela época em que eram cobrados, mas, quando entramos [no governo municipal], percebemos que a maioria não se devia a grupos criminosos, mas sim a autoridades corruptas, que já foram demitidas ou estão sob investigação", afirmou ele. Para o prefeito Trejo, sua estratégia de segurança municipal é a responsável por San Miguel de Allende ter escapado da violência que domina boa parte do Estado de Guanajuato. Entre outros fatores, o prefeito destaca o centro avançado de vigilância C4, além da capacitação e da remuneração da polícia local, que ele afirma ser "a mais bem paga do Estado e uma das mais bem remuneradas de todo o país". "Também mantemos ajuda com os municípios vizinhos, para evitar o 'efeito barata' - para que, toda vez que houver alguma operação em uma cidade próxima, os delinquentes não venham refugiar-se em San Miguel", explica o prefeito. Mas, para o analista de segurança Victor Sánchez, "seria difícil atribuir o caso de sucesso de San Miguel à ação das autoridades, pois, se dependesse disso, teriam sido procuradas formas de reproduzi-la nas cidades vizinhas, onde a segurança é um fracasso considerável". Sánchez insiste que os verdadeiros motivos residem em questões alheias às funções do município, como a inexistência de grupos criminais rivais, sua própria localização geográfica e a alta concentração de estrangeiros e turistas, que faz com que tudo "funcione melhor se estiver pacificado". Mas a presença de estrangeiros de mais de 60 nacionalidades (totalizando cerca de 10% dos seus 180 mil habitantes) também teve outro efeito em San Miguel de Allende, como ocorre em tantas outras cidades com realidades similares: o aumento do custo dos aluguéis e de muitos serviços, como bares e restaurantes. "Para muitas pessoas, não é um problema econômico, mas talvez seja um desafio para aqueles que viviam aqui originalmente, já que o preço de tudo está subindo. Vamos ver... eu não posso resolver todos os problemas, estou aproveitando a vida aqui", afirma, dando de ombros, o norte-americano Malcolm Halliday. Por outro lado, como ocorre habitualmente, essa chegada de pessoas com maior poder aquisitivo também trouxe vantagens. Paula, a vendedora de raspadinha, reconhece que os mexicanos que trabalham para estrangeiros no município costumam receber melhores salários. "É ruim dizer isso, mas é assim. Já entre os mexicanos, quanto menos pagarmos as pessoas, melhor." Os milhares de estrangeiros que vivem em San Miguel de Allende também deixam outra pegada no município. Eles fundaram dezenas de ONGs que cuidam da educação até a saúde dental dos moradores mais carentes. Isso porque, por trás da bela arquitetura e dos hotéis de luxo frequentados pelos turistas, San Miguel esconde uma realidade muito diferente a poucos minutos do centro histórico, nos bairros da zona rural. Segundo dados do Ministério do Bem-Estar do México, mais de 44% da população de San Miguel vivem em condições de "pobreza moderada", enquanto outros 4% encontram-se em pobreza extrema. Quase duas a cada dez moradias não têm acesso à rede de esgoto. Jazmín Yanet Ramírez mostra com orgulho sua casa, onde passou a morar no início deste ano, na comunidade de San Miguel Viejo, uma região de ruas sem asfalto que não é visitada pelos turistas. "As pessoas que chegam ao centro de San Miguel não percebem que, nas áreas próximas, estamos nós que, na verdade, há muito tempo não vamos àquela região porque há muitos turistas... É uma pena, porque nem todos podem desfrutar do centro turístico igualmente", lamenta ela. Ramírez conta que ela e seu marido agora não precisam dormir no mesmo quarto com seus três filhos, como faziam antes. Eles já não se molham dentro de casa quando chove, nem temem que o telhado voe com o vento. E, sobre a falta de esgoto, sua nova casa conta com uma pequena fossa séptica e um sistema de recolhimento de água da chuva. Sua casa foi construída pela ONG Casita Linda, financiada por norte-americanos residentes em San Miguel e que ajudou 130 famílias da cidade nos últimos 20 anos. "É um clichê dizer que você quer devolver alguma coisa para o município que o acolhe, mas é uma forma muito honesta de dizê-lo. É uma forma de ajudar as pessoas", afirma Louise Gilliam, que é presidente da organização e mora há quase 20 anos em San Miguel. "A vida aqui é boa. "O clima é perfeito, é menos caro morar aqui... Eu digo aos meus filhos que estão no Texas que vendam suas casas e venham para cá", responde Gilliam, quando questionada sobre a influência da insegurança na sua vida. "Nunca mais voltarei para os Estados Unidos", conclui ela.
2022-05-16
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-61342286
sociedade
10 coisas que aprendemos com o maior estudo do mundo sobre a bondade
Embora o mundo possa não parecer um lugar muito benevolente, este pode ser justamente um momento de grande importância para atos de bondade. Em agosto de 2021, a BBC Radio 4 lançou o The Kindness Test ("Teste da Bondade", em tradução livre), um estudo online criado por uma equipe da Universidade de Sussex, no Reino Unido, liderada pelo psicólogo Robin Banerjee. As pessoas podiam escolher participar e, como mais de 60 mil colaboraram, passou a ser o maior estudo aprofundado do mundo sobre bondade. A seguir, 10 coisas que aprendemos sobre o tema: Três quartos das pessoas nos disseram que recebiam gestos de gentileza ou bondade de amigos próximos ou familiares com bastante frequência ou quase o tempo todo. Fim do Matérias recomendadas E quando perguntamos sobre a última vez que alguém foi amável com elas, 16% responderam que havia sido na última hora, e outras 43% disseram que foi no dia anterior. Qualquer que fosse a idade das pessoas ou onde quer que vivessem, a bondade era muito comum. Você não precisa escalar o Everest por caridade ou salvar alguém de um prédio em chamas (por mais maravilhosos que estes atos sejam) para praticar a bondade no dia a dia e fazer a diferença na vida das pessoas. Nosso estudo mostra que a maioria dos gestos de bondade são cotidianos. Ajudar as pessoas quando elas pediam foi o gesto de bondade mais relatado. Em seguida, veio fazer favores a amigos, abrir a porta para deixar as pessoas passarem, ajudar estranhos a pegar coisas que haviam deixado cair — e ter sentimentos de preocupação por pessoas menos afortunadas do que elas. As pessoas que participaram do The Kindness Test sentiram que, no que se refere ao que viveram até agora, os níveis de bondade permaneceram os mesmos (39%) ou diminuíram (36%). No entanto, a experiência durante a pandemia de covid-19 parece muito diferente, com dois terços das pessoas dizendo que este período sem precedentes tornou as pessoas mais gentis. Talvez por ter sido um período tão difícil, as pessoas dedicaram mais tempo para cuidar umas das outras e perceberam que pequenas gentilezas podem fazer muita diferença. Provavelmente não vai ser surpresa saber que as pessoas que recebem regularmente vários atos de bondade apresentam níveis mais altos de bem-estar. Mas o estudo também descobriu que quem realiza mais atos de bondade ou apenas percebe que outras pessoas estão realizando atos de bondade também apresenta níveis mais altos de bem-estar, em média. Este resultado está em sintonia com várias pesquisas anteriores que mostram que agir de forma amável nos faz sentir bem. A personalidade teve um grande impacto na frequência com que os participantes diziam ser amáveis com os outros, mas também em como as pessoas eram bondosas com elas. Uma escala de personalidade foi incluída no The Kindness Test, e as pessoas mais bondosas eram mais propensas a pontuar alto em extroversão, e também em agradabilidade e abertura. As pessoas com pontuação alta em abertura são imaginativas e curiosas, e gostam de ter experiências novas. Claro que estamos falando de médias, então você pode ficar na sua e não gostar de experiências novas, mas ainda assim ser muito bondoso. Quando perguntamos às pessoas onde os gestos de consideração e amabilidade ocorrem, a casa ficou em primeiro lugar, seguida por ambientes médicos, local de trabalho, espaços verdes e lojas. Os lugares em que as pessoas viram menos atos de gentileza foram online, no transporte público e na rua. A boa notícia é que as pessoas geralmente concordavam que a gentileza era valorizada no trabalho, especialmente no serviço social, na área de saúde, hospitalidade e educação. É claro que temos que confiar em autorrelatos neste estudo, então existe a possibilidade de que mulheres e pessoas religiosas sintam que devem dizer que são bondosas para ficarem bem. Mas muitas pessoas estão preparadas para admitir que não são muito benevolentes, por exemplo, e estudos anteriores mostraram que somos muito bons em julgar nossos próprios níveis de bondade. Então, estou inclinada a acreditar na palavra das pessoas. As pessoas foram questionadas sobre o que poderia impedi-las de serem amáveis, e a principal razão que elas deram foi que temiam que suas ações pudessem ser mal interpretadas. Os participantes também afirmaram que não tinham tempo suficiente para serem tão gentis quanto gostariam, e metade disse que as redes sociais desempenhavam um papel em impedi-los de serem mais gentil. O interessante aqui é que esta diferença entre quem fala e quem não fala com estranhos persistiu mesmo quando a personalidade foi levada em conta. Portanto, não é só que os extrovertidos sejam mais propensos a ser gentis e, por serem extrovertidos, são mais propensos a conversar com estranhos. Qualquer que seja a sua personalidade, quanto mais você fala com estranhos, então, em média, mais gentileza você recebe, mas também mais gentileza você percebe acontecendo ao seu redor. Quanto dinheiro as pessoas ganham não tem correlação com os relatos gerais de bondade. Mas também pedimos aos participantes que imaginassem que haviam recebido do nada 850 libras (cerca de R$ 5,3 mil) e perguntamos quanto deste dinheiro que caiu do céu poderiam doar. Enquanto alguns foram honestos o suficiente para dizer que doariam nada, a quantia média que as pessoas afirmaram que doariam foi de 252 libras (pouco mais de R$ 1,5 mil). As pessoas com renda mais baixa tendiam a dizer que doariam quantias menores, em média, o que faz sentido porque são as que menos poderiam se dar ao luxo disso, mas curiosamente os participantes com renda mais alta também doavam menos.
2022-05-15
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-61202965
sociedade
'Entendi privilégio branco ao descobrir passado de minha família durante escravidão'
Cerca de 200 anos depois que os seus ancestrais receberam uma grande indenização do governo britânico pela abolição da escravatura, a repórter da BBC Laura Trevelyan viajou até Granada, no Caribe, para descobrir como esse legado sombrio continua a reverberar até hoje. No alto dos morros da ilha caribenha de Granada, nos campos de uma antiga plantação mantida por pessoas escravizadas, há um sino de ferro fundido pendurado em uma árvore. Tocar o sino marcava o início de mais um dia de trabalho para aquelas pessoas do oeste africano, na colheita de cana-de-açúcar. Atualmente, a fazenda Belmont é um destino popular entre os turistas. É um lugar para desfrutar da cozinha local e visitar a loja de presentes. Nela, você pode comprar barras de chocolate artesanal estampadas com a imagem do sino da fazenda. Foi aqui que fiquei frente a frente com a brutalidade do passado - e o papel desempenhado por famílias como a minha. "Este é o som da escravidão", afirma D. C. Campbell, romancista granadino e descendente de trabalhadores escravizados. Ele pegou um par de algemas para crianças e o girou em suas mãos. O artefato, do acervo do museu nacional da ilha, teria sido usado em um navio que transportava pessoas escravizadas no infame trajeto entre o oeste africano e o Caribe. Fim do Matérias recomendadas Olhamos em silêncio para as algemas de adultos e crianças, o colar cervical que podia ser apertado até que a pessoa não conseguisse mais respirar e o chicote de couro que era usado até em mulheres grávidas. Tudo era muito sombrio e feito à luz do dia. "Estes eram instrumentos de controle e tortura", afirma claramente Nicole Phillip-Dowe, da Universidade das Índias Ocidentais. "Havia todo um sistema de controle para garantir que você conseguisse o trabalho que queria e os lucros que desejasse." A reação da produtora da BBC Koralie Barrau - norte-americana descendente de pessoas escravizadas no Haiti - ao observar esses artefatos foi intensa. "É revoltante. Eu olho esses colares, essas algemas para crianças, esses chicotes e poderia ter sido eu, cinco ou seis gerações atrás. Isso é o que os meus ancestrais precisaram suportar, é estarrecedor", declara ela. Phillip-Dowe explicou que os trabalhadores "desobedientes" eram punidos em público, para aterrorizar os outros trabalhadores escravizados para que se submetessem aos senhores de engenho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Estamos em Granada porque, há alguns anos, tomei conhecimento da minha ligação com esta ilha. Quando minha sexta avó Louisa Simon casou-se com Sir John Trevelyan em 1757, ela trouxe para o casamento a participação do seu pai, que era comerciante, em plantações de cana-de-açúcar de Granada, incluindo cerca de mil pessoas escravizadas. Eu descobri isso pouco tempo depois de 2013, quando os registros da Comissão de Compensação da Escravatura do Reino Unido foram disponibilizados online e meus parentes pesquisaram o banco de dados. Os registros revelaram os nomes dos 46 mil senhores de escravos que receberam compensação quando o Reino Unido aboliu a escravatura, em 1833. O pagamento da compensação aos senhores de escravos não saiu barato. Ele custou ao governo britânico 20 milhões de libras (cerca de 1,7 bilhões de libras em dinheiro de hoje, ou R$ 10,7 bilhões) - um valor imenso, que representou 40% do orçamento do governo em 1834. Em comunicações da família, soube que os Trevelyans receberam, pela perda da sua "propriedade" em Granada, cerca de 34 mil libras - equivalentes a cerca de 3 milhões de libras (R$ 18,9 milhões), em valores atuais. Lendo na minha casa (em Nova York, nos Estados Unidos) as diversas reações dos meus familiares no Reino Unido, eu me senti afastada do debate - e guardei tudo na gaveta mental das coisas difíceis demais para analisar. Até que não consegui ignorar mais. As análises sobre a questão racial nos Estados Unidos após a morte de George Floyd me forçaram a perguntar qual o real significado de meus ancestrais terem ficado sentados tomando chá na Inglaterra, enquanto lucravam com um sistema desumano de escravidão a mais de 6 mil quilômetros de distância. No verão de 2020, quando os protestos do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam, em português) dominaram as ruas de Nova York, percebi que o passado estava advertindo o presente que ele precisava ser confrontado. Se alguém tinha "privilégios brancos", com certeza era eu, descendente de senhores de escravos nas Antilhas. Minha própria posição social e profissional cerca de 200 anos após a abolição da escravatura tinha que estar relacionada aos meus ancestrais escravagistas que usavam os lucros das vendas de açúcar para acumular riqueza e subir na pirâmide social. Afinal, o pai do primeiro-ministro britânico da era vitoriana William Gladstone mantinha pessoas escravizadas e era parente distante do ex-primeiro-ministro do século 21, David Cameron. Não é coincidência que famílias britânicas importantes tivessem explorado pessoas escravizadas. Se um dos legados da escravidão nos Estados Unidos foi a brutalidade policial contra pessoas negras, fiquei imaginando qual teria sido o legado da escravidão em Granada. Eu precisava descobrir, mesmo se viesse a ser acusada de ser uma salvadora branca tentando resgatar sua consciência. E eu queria tentar encontrar um descendente de pessoas escravizadas pela minha família, para ver se o passado poderia ter ligações com o presente. Em 2021, após os protestos do movimento Vidas Negras Importam que se seguiram ao assassinato de George Floyd, o governo de Granada formou sua Comissão Nacional de Reparações pela Escravidão - e foi o último país do Caribe a fazê-lo. O presidente da comissão é Arley Gill, embaixador de Granada no Caricom, a comunidade que reúne 20 países do Caribe. Nós nos encontramos no histórico Forte Frederick, construído por trabalhadores escravizados para defender as lucrativas rotas comerciais das potências coloniais da Grã-Bretanha e da França. Enquanto conversávamos observando o resplandecente mar do Caribe, o embaixador Gill me contou como o assassinato de George Floyd foi "um estímulo profundo, não só para Granada, mas para todo o Caribe. As pessoas viram as imagens de um policial branco ajoelhado sobre o pescoço de um homem negro que implorava para respirar. E isso, por si só, realmente trouxe para dentro de casa as injustiças do racismo." Além de um pedido de desculpas formal do governo britânico pela escravidão, Gill gostaria de ver um pedido de desculpas da própria rainha. "A família real desempenhou um papel fundamental, aprovando e participando da escravidão e do comércio de pessoas escravizadas. Eles não podem ser eximidos de aceitar sua responsabilidade", afirma ele - e não é o único. Quando o príncipe William e sua esposa Kate viajaram para a Jamaica, em março de 2022, eles foram recebidos por manifestantes exigindo um pedido de desculpas do Reino Unido pelo comércio de pessoas escravizadas e o pagamento de reparações pela escravidão à sua antiga colônia. Já o príncipe Edward e sua esposa Sophie cancelaram no último minuto uma visita planejada para Granada em abril, aparentemente com receio de que também eles pudessem ser alvo de protestos contra a escravidão. E não há como ignorar as evidências do papel do Reino Unido no sofrimento trazido pela escravidão para Granada. A ilha tem um dos registros de pessoas escravizadas mais bem preservados do Caribe. No escritório de Nicole Phillip-Dowe na Universidade das Índias Ocidentais, na capital de Granada, Saint George's, nós nos debruçamos sobre livros de registros onde as autoridades registravam à mão os nascimentos e mortes anuais de pessoas escravizadas. A leitura dos registros da fazenda Beausejour, onde os Trevelyans eram senhores de escravos, era perturbadora. Alexander tinha apenas um ano de idade e morreu de obstrução intestinal. Harry, com 11 anos, morreu de sarampo. Lepra e disenteria eram causas de morte comuns. Phillip-Dowe explicou como a disenteria e o sarampo se espalhavam rapidamente devido aos compartimentos superlotados dos navios. "Muitas vezes, a causa da morte é descrita como sendo coceira. Imagino que provavelmente fosse sarampo e a criança teria se coçado de forma incontrolável", afirma ela. Os horrores da vida e da morte na plantação de Beausejour pareciam contrastar com o local, que é espetacular. Saint George's é conhecida como uma das cidades mais belas do Caribe. Ela fica em um porto em forma de ferradura, perto das encostas de uma antiga cratera vulcânica. O coração de Saint George's é Carenage, uma alameda frenética que contorna o porto. Era ali que atracavam os navios do oeste da África trazendo pessoas escravizadas, que surgiam após sua árdua viagem para que fossem vendidas e começassem a vida nas plantações. Eu precisava ver com meus próprios olhos a plantação de Beausejour - o local onde morreram essas crianças, Harry e Alexander, escravizadas pelos meus ancestrais. Enquanto dirigíamos pela encosta íngreme acima da Carenage, eu observava como o panorama de Saint George's é marcado pelas torres das igrejas católicas e anglicanas. É mais um legado de um passado no qual a Grã-Bretanha e a França lutavam pelo controle de uma ilha tão valiosa para os dois países. Ao norte de Saint George's, bem no alto da exuberante colina, fica a fazenda Beausejour, onde conheci D. C. Campbell. Seu romance Winds of Fédon ("Os ventos de Fédon", em tradução livre) descreve as horríveis condições em que as pessoas escravizadas eram mantidas em Granada e o sistema opressor da vida na plantação. Ficamos de pé na varanda da casa grande, observando as colinas onde a cana-de-açúcar um dia foi cultivada e os trabalhadores escravizados da minha família lutavam para colher a produção e transformá-la em açúcar para exportação. Existem algumas casas anexas em ruínas na propriedade, mas elas e a suntuosidade perdida da casa grande são as únicas indicações do seu passado. Campbell indicou um ponto onde teriam ficado os rolos metálicos, nos quais os trabalhadores escravizados alimentavam a cana-de-açúcar para que fosse prensada. Ele explicou que, se o dedo de um trabalhador ficasse preso no rolo, um oficial da plantação cortaria a mão do escravizado com um facão - para não arriscar que o corpo da pessoa fosse puxado para dentro do rolo, o que interromperia a produção de açúcar. "Eles preferiam que o escravo perdesse um braço e não a vida. Porque aquele ser humano com um braço ainda poderia voltar a trabalhar", afirma Campbell, explicando a amoralidade da economia. Ouvir essa descrição angustiante da vida na plantação de Beausejour foi chocante para mim. Teria a família Trevelyan na Inglaterra alguma ideia sobre o que enfrentavam seus trabalhadores escravizados? E, se soubessem, eles se importavam? O que os granadinos chamam de cenário monumental na sua ilha é entremeado de referências ao passado colonial. As ruas de Saint George's têm nomes de autoridades inglesas que eram senhores de escravos. A Comissão Nacional de Reparações de Granada recomendou que, até o 50º aniversário da independência de Granada do Reino Unido, em 2024, as ruas tenham suas denominações alteradas e recebam os nomes de granadinos importantes. Educar a juventude da ilha sobre a história da escravidão é outro objetivo da Comissão de Reparações. A vice-presidente da Comissão, Nicole Phillip-Dowe, levou-me para conhecer as alunas da escola do convento de São José em Saint George's. Enquanto ela me apresentava a uma sala de aula abarrotada como descendente de senhores de escravos em Granada, as meninas olharam para mim com forte interesse. Eu perguntei quem na sala era descendente de pessoas escravizadas. Todas as mãos se levantaram. Perguntei se minha família deveria pagar reparações para o povo de Granada porque nós tivemos pessoas escravizadas aqui. A resposta foi um ressonante "sim". Arley Gill está mapeando a questão de quais deveriam ser as reparações pela escravidão. Ele é categórico ao afirmar que as antigas potências coloniais deveriam investir na infraestrutura de Granada. Gill argumenta que é questão de justiça, considerando o quanto a escravidão contribuiu para a economia da Grã-Bretanha e da França. "As pessoas escravizadas foram raptadas. Elas foram mantidas em condições horríveis. E tudo isso, em muitos aspectos, estabeleceu a Revolução Industrial e alavancou o desenvolvimento das sociedades da Europa ocidental", defende ele. Gill indica a alta incidência de hipertensão e diabete em Granada e em outras ilhas do Caribe como mais uma herança da escravidão. Eu provei o delicioso prato nacional de Granada, chamado em inglês de Oildown. É um prato preparado em uma única panela - que era tudo o que os trabalhadores escravizados conseguiam cozinhar - feito de rabos de porco, peixe salgado e fruta-pão, rica em carboidratos. Gill argumenta que séculos de má alimentação geraram altas taxas de doenças crônicas. Investimentos em educação e saúde pelas antigas potências coloniais contribuiriam muito para desfazer parte desses danos. Depois de encontrar essas pegadas do legado da minha família como senhores de escravos nesta ilha, seria possível encontrar também algum descendente de trabalhadores escravizados pelos Trevelyans? As pessoas escravizadas, quando libertadas, muitas vezes recebiam os nomes dos seus antigos senhores. Por isso, a equipe da BBC começou procurando pessoas com o sobrenome Trevelyan, sem sucesso. Meus ancestrais nunca colocaram os pés na ilha de Granada, preferindo deixar as operações diárias das plantações a cargo do nosso parente por casamento com nome Hankey, que também era proprietário da fazenda. Por isso, é de se esperar que pessoas com o sobrenome Hankey fossem descendentes de trabalhadores escravizados da minha família. Talvez eu pudesse encontrar um membro da família Hankey e pudéssemos explorar nosso passado comum. Pois a loja de computadores de Saint George's chama-se Hankey's. Fica a poucos passos da praça do mercado onde pessoas escravizadas eram vendidas. Encontrar o dono da loja, Garfield Hankey, não foi fácil. Ele não tinha certeza se gostaria de falar comigo. Mas nosso motorista Edwin Frank, estudante dedicado da história de Granada, convenceu Hankey que era importante que nos encontrássemos cara a cara. Um tanto nervosa, expliquei a ele que meus ancestrais podem ter escravizado os dele. "Isso é profundo", respondeu ele. Expliquei que eu estava me debatendo com a informação de que minha família havia sido compensada em 1834 pela perda da sua "propriedade", enquanto as pessoas escravizadas não receberam nada. E perguntei a ele se isso era justo. "Claro que não", respondeu Hankey, animado. "Não foi justo. Acredito que os trabalhadores escravizados faziam o trabalho duro, eles é que deveriam receber alguma forma de compensação, na realidade." Esta é uma questão com a qual eu mesma me debati durante minha visita a Granada. O governo britânico nunca pediu desculpas formais pela escravidão, nem ofereceu o pagamento de reparações. Em declaração à BBC, o Foreign Office - o Ministério das Relações Exteriores britânico - afirmou: "a escravidão foi e ainda é abominável. O governo britânico já expressou profundo pesar pelo comércio transatlântico de pessoas escravizadas, que nunca poderia ter acontecido, e reconhecemos a forte sensação de injustiça que atinge os países afetados por ele em todo o mundo." Os argumentos contra e a favor de reparações são complexos e controversos. Eles envolvem o imperativo moral de fazer correções e dúvidas se esta seria a forma mais eficaz de lidar com a desigualdade racial. É certo esperar que pessoas que não foram responsáveis paguem o preço de decisões tomadas centenas de anos atrás? Algo que estou verificando pessoalmente é como posso colaborar com um fundo educacional que poderá beneficiar os estudantes de Granada. As meninas do convento de São José me disseram que isso demonstraria que eu me importava com o futuro delas e queria fazer compensações pelo passado. Enquanto eu lutava com a questão filosófica de se eu pessoalmente devia alguma coisa, procurei o conselho de Sir Hilary Beckles, historiador e vice-chanceler da Universidade das Índias Ocidentais, que é o presidente da Comissão de Reparações do Caricom. "A escravidão não está no passado", segundo Sir Hilary. "Nossos avós lembram que seus bisavós foram escravizados. A escravidão faz parte do nosso presente doméstico. A escravidão nega o acesso aos seus ancestrais. Ela deixa você nesse espaço vazio." Sobre a controversa questão de se existe algo que famílias como a minha deveriam fazer, Sir Hilary respondeu: "o que você está tentando reconciliar é o privilégio de um lado e a pobreza do outro. Nós herdamos a pobreza, o analfabetismo, a hipertensão, a diabete e a degradação racial - todas as faces negativas. Vocês herdaram riqueza, propriedades e prestígio." Perguntei a ele se, se eu der dinheiro para ajudar os estudantes de Granada em sua educação, isso não poderia ser considerado um gesto vazio. "Existe um grande significado simbólico", respondeu Sir Hilary. "Pense no impacto se todas as famílias de senhores de escravos fizessem a mesma coisa." No nosso último dia em Granada, nossa produtora Koralie Barrau e eu nos sentamos sobre as areias intermináveis da praia de Grand Anse com nossos anfitriões, Nicole Phillip-Dowe e D. C. Campbell. Campbell relembrou que Grand Anse é onde tudo começou - foi lá que os britânicos tentaram aportar pela primeira vez e tomar posse de Granada em 1609. Barrau disse que ela agora tem uma ideia concreta do que significa o conceito de reparação. "Como haitiano-americana residente nos Estados Unidos, ouço muito sobre reparações na comunidade negra. E, para mim, parecia realmente inalcançável. Vamos todos receber dinheiro? Como isso acontece? Mas, em uma ilha como Granada, com 110 mil pessoas, parece um pouco mais viável, um pouco mais real", afirma ela. "É importante reconhecer que foi cometido um crime", afirma Phillip-Dowe. "E, depois do pedido de desculpas, é simplesmente razoável que as potências coloniais que construíram sua revolução industrial com base na escravidão devolvam algo ao Caribe." Pergunto a ela se isso poderia desfazer o passado. "Não, não desfaz", responde. "E entendemos que você não pode voltar atrás, pegar um pincel e dizer que nunca aconteceu. Não podemos fazer isso. Mas podemos reconhecer que aconteceu. E podemos encontrar formas de reparar isso ao máximo possível." Perguntei a D. C. Campbell o que ele conclui quando pensa na escravidão e seu significado para o futuro de Granada. "Este é um esforço contínuo para encerrar a questão", respondeu ele. "Olhando para o futuro, a história precisa ser mantida viva para podermos aprender com ela. E existe uma lição significativa que podemos aprender com o sofrimento das pessoas escravizadas, em termos da sua resistência, fé e resiliência." Quando Barrau e eu nos despedimos deles, fiquei maravilhada com tudo o que vimos e aprendemos em Granada. As palavras de Nicole Phillip-Dowe quando devolvemos as algemas e o colar cervical da plantação ressoavam nos meus ouvidos. Ela disse: "pegar e sentir [estes instrumentos] estranhamente nos traz um sentido de reconhecimento. Isso faz parte da história e agora estamos tentando aprender com ela, curar as feridas e seguir adiante."
2022-05-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61431439
sociedade
Nistagmo: a condição que causa cegueira e levou cantor do Black Eyed Peas a passar por cirurgia
O cantor filipino-americano Allan Pineda Lindo Jr., conhecido por "Apl.de.ap" e integrante da banda Black Eyed Peas, nasceu com uma condição chamada de nistagmo, que é caracterizada por um movimento involuntário dos olhos. "Essa movimentação, conhecida popularmente como 'olhos dançantes', pode ser horizontal, vertical ou giratória, em um ou nos dois olhos. Pode acontecer o tempo inteiro ou quando de alguma forma ela é incentivada, por exemplo, se a pessoa tentar fixar o olho em um ponto específico ou abrir e fechar as pálpebras repetidamente", diz Danyelle Csettkey, oftalmologista, especialista em córnea e doenças externas e refrativas do HRO (Hospital de Referência Oftalmológica), no Maranhão. Quando a condição aparece antes dos seis meses de idade, ela é considerada congênita, como é o caso do cantor. "Pode ser por alteração na musculatura dos olhos, sem ter nenhuma anormalidade dos olhos em si, ou por causa de uma anormalidade no fundo do olho. Ou seja, ela pode ser tanto a causa quanto a consequência de uma baixa visual", explica Luisa Hopker, presidente da Sociedade Brasileira de Oftalmologia Pediátrica. Para Apl, o nistagmo era forte a ponto de fazer com que o músico fosse considerado legalmente cego. Em 2012, ele disse, em entrevista à ABC News, que não conseguia ver detalhes faciais. "Eu vou pelo som da voz ou consigo ver vultos, de forma que posso sentir quando alguém está perto." Além do quadro, ele também tinha um alto grau de miopia, que impede que a pessoa enxergue à distância — a depender da seriedade da condição, até a mão do próprio braço estendida em frente ao rosto pode se tornar desfocada. Fim do Matérias recomendadas "O nistagmo atrapalha um paciente míope no uso de lentes de contato, por conta da movimentação involuntária dos olhos, e também pode tornar incômodo o uso de óculos de grau", aponta Hopker. Por isso, Apl passou por cirurgia facorrefrativa, que usa técnica similar ao procedimento de retirada de catarata, para corrigir a miopia. "O médico retira o cristalino, parte do globo ocular, e substitui por uma lente artificial." A principal diferença, de acordo com Hopker, é que é necessário aplicar uma anestesia mais complexa do que a tópica (anestesia local), porque o olho pode se mexer involuntariamente durante a cirurgia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast À ABC News, o músico contou que a cirurgia melhorou sua qualidade de vida e que ele pôde enxergar melhor sua mãe — o que, segundo ele, foi o momento mais feliz da sua vida. A oftalmologista Danyelle Csettkey aponta, ainda, que a única cirurgia possível para o nistagmo não oferece uma cura para o problema. "Algumas pessoas conseguem estagnar a movimentação dos olhos com alguma determinada posição de cabeça, e quando a cirurgia é indicada, em raros casos, é com o objetivo de fazer com que essa posição mais confortável seja com a cabeça reta." Também existem outras terapias, todas focadas em melhorar a qualidade de vida do paciente. "Uma vez identificada a causa, o tratamento é direcionado ao problema de base. Às vezes o motivo é uma baixa de visão por uma lesão específica naquele olho, como por exemplo uma catarata. Há alguns tratamentos não cirúrgicos com exercícios dos músculos extraoculares, mas não há uma regra que indique a todos os casos", diz Tiago Cesar, professor de cirurgia oftalmológica na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais. Outra opção, de acordo com o médico, é o botox. "Não é a primeira linha de tratamento, mas quando temos um movimento involuntário, isso é causado por um músculo. A toxina botulínica já foi muito estudada e é considerada uma terapia comprovadamente eficaz para fazer a paralisação da musculatura."
2022-05-12
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-61431215
sociedade
Como o lixo pode revelar preferências e mudanças de hábito das pessoas
As coisas que as pessoas jogam no lixo podem revelar de tudo — desde a alimentação desregrada, passando por hábitos sexuais e até segredos da Coreia do Norte! Boiando sobre o esgoto, retida por um cabo convenientemente longo, lá estava uma pequena rede de pesca. Um funcionário municipal de Baltimore, nos Estados Unidos, inclina a rede suavemente no lodo fétido e retira da superfície seu prêmio tão cobiçado: um preservativo usado. No final dos anos 1980 (época do auge da epidemia de Aids nos Estados Unidos), uma equipe de especialistas de saúde quis monitorar se as pessoas estavam seguindo as recomendações de praticar sexo seguro. Para isso, eles começaram a contar os preservativos lançados no esgoto, que acabavam nas estações de tratamento. E, no início de 1988, os funcionários estavam encontrando 200 a 400 preservativos todos os dias. "Claro que não é um trabalho muito agradável, mas é importante", contou na época à agência de notícias Associated Press um supervisor de monitoramento da Aids da secretaria de saúde local. Desde então, autoridades de outros países vêm utilizando o mesmo método. Em 2006, trabalhadores dos esgotos de Eswatini (antiga Suazilândia) estimaram que o uso de preservativos havia aumentado em 50% naquele país africano. Fim do Matérias recomendadas Eles observaram que os contraceptivos têm o tamanho exato para obstruir o segundo conjunto de filtros das estações de tratamento, o que permite que eles sejam contados. Zâmbia também observou um grande aumento do uso de preservativos em 2015, quando milhares deles entupiram os esgotos da capital, Lusaka. O lixo pessoal, mesmo nas suas formas mais repugnantes, é outra fonte de dados sobre uma pessoa. Os resíduos, sejam eles lançados ao esgoto, descartados ou reciclados, carregam um mundo de informações sobre as escolhas e comportamentos das pessoas, que muitas vezes não podem ser obtidas de outra forma. As pessoas que se atrevem a examinar os detritos humanos são chamadas de "garbologistas" e seus esforços nos ajudam a entender de tudo, desde a saúde e as escolhas alimentares das pessoas até as ações de regimes políticos cheios de segredos. Existe uma clareza reconfortante no estudo do lixo, para o antropólogo Thomas Hylland Eriksen, da Universidade de Oslo, na Noruega. "Ele oferece uma janela muito direta e privilegiada para a forma de viver real das pessoas", afirma ele. O termo "garbologia" foi criado pelo escritor e ativista americano A. J. Weberman no início dos anos 1970, mas foi o antropólogo William Rathje, também americano, quem levou a garbologia para o terreno científico, poucos anos depois. No seu estudo agora famoso, The Tucson Garbage Project ("O projeto do lixo de Tucson", em tradução livre), Rathje e seus colegas vasculharam aterros sanitários, escavando e classificando grandes pilhas de resíduos descartados pelos moradores da cidade que fica no Estado americano do Arizona. Ele também comparou (mediante permissão) o conteúdo das latas de lixo de indivíduos com o que eles informavam em questionários sobre seus hábitos de comida e bebida — e descobriu que as pessoas claramente minimizam a quantidade de alimentos não saudáveis e de álcool que elas consomem. Nas décadas que se seguiram, a garbologia também viria a ajudar os pesquisadores políticos e historiadores frente à inexistência ou difícil acesso às fontes oficiais de informação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na década de 1990 e no início dos anos 2000, pesquisadores perceberam que eles poderiam desvendar a história da Revolução Cultural chinesa pesquisando pilhas de resíduos de papel jogadas fora por autoridades ou moradores locais. Jeremy Brown, historiador da Universidade Simon Fraser, no Canadá, foi um desses pesquisadores. Frustrado pelo acesso limitado que lhe foi concedido aos arquivos oficiais, ele ia todos os fins de semana aos mercados de pulgas de Tianjin, no norte da China, à caça de resmas de documentos descartados e agrupados para venda. Quando os vendedores dos mercados de pulgas souberam o tipo de coisas que ele estava procurando, eles passaram a procurar em pilhas de lixo. Graças aos esforços desses comerciantes, Brown conseguiu adquirir documentos que demonstravam, por exemplo, como a deportação de pessoas da área urbana para a zona rural havia sido orquestrada pelos governos locais. "Foi uma grande descoberta que nunca teria sido possível sem os mercados de pulgas, sem essas coisas que estavam a caminho da destruição", ele conta. Mais recentemente, a garbologia ajudou outras pessoas que tentavam pesquisar sobre um país ainda mais fechado e enigmático: a Coreia do Norte. Em fevereiro, o jornal inglês The Guardian noticiou que o professor sul-coreano Kang Dong-wan havia recolhido mais de 1,4 mil embalagens de produtos norte-coreanos, levadas pela água ao longo do litoral da Coreia do Sul. O interessante dessa pesquisa é que as embalagens de doces mais recentes eram coloridas e sofisticadas, indicando mudanças culturais sutis em um país onde a vida diária sofre fortes restrições. Enquanto isso, o arqueólogo Grzegorz Kiarszys, da Universidade de Szczecin, na Polônia, vasculhou o lixo encontrado em volta de algumas bases táticas abandonadas de armas nucleares soviéticas, esperando encontrar indicações sobre as atividades secretas realizadas no local. Ele afirma que técnicas remotas, como fotografias aéreas e varreduras a laser, além de imagens públicas de satélites dos anos 1960 e 1970, ajudaram-no a estudar alguns desses locais. Mas foi através da pesquisa do lixo encontrado nas antigas bases que ele conseguiu formar um panorama de como era a vida das pessoas que moravam ali. Os resíduos são, em grande parte, domésticos. Há muitas lâminas de barbear, batons, máscaras e sacos de leite em pó vazios — além de brinquedos, já que as famílias dos soldados haviam sido destacadas para esses locais. Curiosamente, ele encontrou brinquedos relativamente caros, como peças de Lego, que não eram disponíveis para o público em geral durante a era comunista na Polônia. "Parece que as autoridades soviéticas tinham algum acesso a moeda estrangeira", ele conta. O lixo, embora seja rapidamente esquecido pelos que o produzem, inevitavelmente age como uma expressão um tanto grosseira da sociedade. Leila Papoli-Yazdi, arqueóloga da Universidade Linnaeus, na Suécia, usou a garbologia para melhor compreender a demografia das pessoas que vivem na capital iraniana, Teerã. Pesquisando o lixo doméstico que é descartado nos cestos colocados nas esquinas da cidade, ela conseguiu detectar diferenças claras entre os diversos bairros. Havia, por exemplo, amplas evidências de uso de drogas nos bairros de renda mais baixa. Em uma região, ela e sua equipe se surpreenderam ao encontrar uma quantidade incomum de papel nos sacos de lixo que elas examinaram. Ocorre que a população local havia mudado nos últimos anos e agora representava um grupo de indivíduos da classe média que haviam sido malsucedidos, mas eram mais propensos a ler jornais que os moradores das classes mais baixas. "Os novos moradores, principalmente pessoas com formação, mas sem emprego, incluíam professores, trabalhadores desempregados [e] comerciantes falidos [que] não tinham mais condições de alugar uma casa nos bairros mais caros, devido à crise econômica da última década", escreveu Papoli-Yazdi em um estudo de 2021 descrevendo seu trabalho. Paralelamente a esses estudos acadêmicos, a garbologia tornou-se um instrumento atraente para as empresas. Nos anos 1970, havia uma marca de iogurtes popular no Reino Unido chamada Ski, que enfrentava a concorrência das marcas rivais Prize e Cool Country. Stephen Logue, empresário que foi gerente de produtos da Ski, relembra como a empresa contratou um escritório chamado Auditores da Grã-Bretanha (AGB) para conduzir uma "auditoria de cestos de lixo" em milhares de residências. As pessoas eram pagas para colocar embalagens de diversos produtos domésticos, incluindo iogurtes, em um cesto separado na hora de jogar fora. Analistas recolhiam regularmente os cestos e inspecionavam seu conteúdo, para ver quais marcas tinham maior consumo que outras. "Tudo era feito às claras", afirma Logue. Ele observa que o fato de que as pessoas sabiam que seu lixo seria examinado pode ter feito com que elas fossem mais seletivas sobre o que colocar no cesto separado, mas esse efeito talvez diminuísse ao longo do tempo. De qualquer forma, Logue conseguiu os dados que queria. "Conseguimos ver que a Ski estava indo bem", relembra ele. Rastrear as compras das pessoas ficou muito mais fácil com o surgimento dos códigos de barras e cartões de fidelidade, que permitem que os varejistas registrem cada produto vendido. As compras online oferecem dados ainda mais específicos. Mas, para quem trabalha em marketing, a garbologia também oferece uma interessante visão realista. Datha Damron-Martinez, professora de marketing aposentada da Universidade Estadual Truman em Missouri, nos Estados Unidos, afirma que, no seu trabalho como consultora, ocasionalmente ela costumava propor o uso da garbologia como forma de pesquisa de observação para empresas que quisessem conhecer mais sobre as tendências de consumo de uma população alvo. Ela e sua colega Katherine Jackson também usaram a garbologia como instrumento de ensino, em que os alunos traziam cestos de lixo dos seus quartos. Outros alunos, que não sabiam a quem pertencia o lixo, examinavam os cestos para tentar deduzir qual tipo de pessoa havia jogado fora aquelas coisas específicas. Damron-Martinez conta que frequentemente ficava surpresa com a quantidade de revelações que o processo trazia. Ela relembra um caso em que a namorada de um aluno havia colocado seu próprio lixo ao cesto sem o conhecimento dele. "Os alunos pegaram o lixo e disseram 'isso tem que ser o lixo de duas pessoas, por este motivo'", relembra Damron-Martinez. Mas vasculhar o lixo tentando conseguir uma vantagem competitiva no mercado nem sempre é uma boa estratégia. Em 2001, a multinacional Procter & Gamble (P&G) suspendeu um projeto de "mergulho no lixo" que pretendia conseguir informações sobre a Unilever, sua concorrente no setor de produtos para os cabelos. Embora a P&G insistisse em afirmar que não havia desrespeitado nenhuma lei, a empresa admitiu que a atividade estava "fora da nossa política rigorosa de obtenção de informações comerciais dos concorrentes". Pode haver um ponto perturbador sobre a garbologia, além do espectro de espionagem. Ela chama a atenção para a enorme quantidade de lixo disponível, esperando para ser escavado ou simplesmente retirado e analisado. O antropólogo Eriksen argumenta que as gigantescas pilhas de lixo que hoje sujam o planeta são sintomas do que ele chama de "modernidade superaquecida". "Tudo vem se acelerando", explica ele — do comércio até o lixo. "Existe algo sobre a forma em que a civilização global está sendo administrada — ou não está sendo administrada — que nos mostra que existem muitas coisas que estão fora de controle." Particularmente, as comunidades mais remotas e tradicionais às vezes produzem muito menos lixo. Um estudo de Ann Marie Wolf, diretora-executiva do Instituto de Pesquisa Ambiental Sonora em Tucson, no Arizona (Estados Unidos), e suas colegas analisou em 2003 os resíduos descartados pelo povo nativo americano Tohono O'odham. Os pesquisadores concluíram que eles representavam menos de um terço da média americana de lixo sólido diário de cada pessoa. E também continham muito menos material perigoso que o habitual em outras partes do país. Quem também calculou a ubiquidade e a toxicidade do lixo à nossa volta foi o antropólogo de saúde Jeremiah Mock, da Universidade da Califórnia em São Francisco, nos Estados Unidos. Ele nem precisou vasculhar o cesto de lixo de alguém. Mock simplesmente andou pelos estacionamentos no lado externo das escolas, recolhendo pontas de cigarros e vaporizadores. "Para minha surpresa, comecei a encontrar cápsulas e tampas de Juul (tipo de cigarro eletrônico) com muita rapidez e por toda parte", relata ele. Um estudo de 2019 descreveu como esses produtos representam cerca de um quinto do lixo relacionado ao fumo que ele encontrou em 12 escolas de ensino médio da Califórnia. Mock se lembra de levar para audiências públicas sacos do lixo que havia recolhido, de forma que os legisladores locais pudessem ver por si próprios. Enquanto eles observavam, o odor dos fluidos de vaporização emanava de dentro dos sacos: "Era literalmente tangível, eles olhavam as coisas e ficavam horrorizados", relembra Mock. Em 2019, muitas cidades da Califórnia proibiram a venda de Juul e de outros produtos de vaporização. A pesquisa de Mock continua e ele afirma que permanece preocupado com o volume de lixo relativo ao fumo que segue encontrando, especialmente considerando como ele pode ser perigoso. As pontas de cigarro podem conter substâncias químicas tóxicas, que incluem formaldeído, arsênio e chumbo. "Quando você olha os milhares de itens que encontramos jogados no lixo, é algo realmente espantoso", afirma ele. "Porque eles estão em toda parte." As pessoas agora enchem de lixo até os espaços virtuais. Jared Hansen, candidato ao grau de PhD em jornalismo e comunicação na Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, passou horas vagueando pelo jogo online Animal Crossing, procurando coisas que as pessoas jogaram fora — no ciberespaço. Graças a uma função que permite explorar cidades virtuais visitadas por outros jogadores sem interferir concretamente no jogo, Hansen conseguiu documentar exemplos de itens do jogo que as pessoas aparentemente perderam ou descartaram. "Havia evidências espalhadas entre as árvores de uma busca anterior para capturar uma abelha", escreveu ele em um estudo publicado em 2021. Ele se referia às diminutas colmeias digitais descobertas por ele, entre outros itens descartados em um pomar no jogo. De forma geral, suas descobertas refletem os longos esforços das pessoas que jogam Animal Crossing para adquirir objetos digitais e progredir no jogo. O lixo, escasso e associado a tarefas específicas, indica o comportamento parcimonioso de uma sociedade cuidadosa, argumenta ele, acrescentando que ele agora observa itens virtuais descartados em outros jogos multijogador online de outra forma. "Fico atento aos itens descartados que ninguém quer", afirma ele. "Por que isso está sendo desprezado?" Prestar atenção é o que realmente importa atualmente com relação ao lixo, já que quase ninguém pensa duas vezes sobre ele. A garbologia é fascinante pelo que pode dizer sobre uma pessoa ou uma sociedade. Mas, em outro nível, mais fundamental, é uma das poucas formas que temos de combater o imenso volume e complexidade das montanhas de lixo que estamos construindo. Os garbologistas estão entre as poucas pessoas que se preocupam em examinar essa massa descartada e esquecida. São eles que se ocupam de observar o quanto todos nós jogamos fora e perguntar: "O que significa tudo isso?".
2022-05-10
https://www.bbc.com/portuguese/geral-61399927