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sociedade
O multimilionário que cresceu em cortiço e fez fortuna com apostas
O bilionário britânico Peter Done nunca se esquece de seu irmão mais velho, Fred, pressionando um travesseiro contra o seu rosto durante uma briga quando eram crianças. Os dois dividiam a mesma cama. E foi assim até completarem 15 anos. Suas duas outras irmãs também dormiam no mesmo quarto. A família Done vivia em uma pequena casa em Ordsall, conhecida como a "favela de Salford", na área metropolitana de Manchester, no norte da Inglaterra. "Até hoje tenho claustrofobia por causa do travesseiro", ri Done Júnior. "Provavelmente fui um pouco atrevido e ele era maior do que eu." Mas foi o relacionamento bem-sucedido com seu irmão que seria a chave para o seu sucesso profissional. Os irmãos encontraram um caminho para sair da pobreza ao construir um império de casas de apostas, acumulando uma fortuna familiar de bilhões de libras e tornando-se uma presença regular na lista dos mais ricos do jornal inglês Sunday Times. Os irmãos Done deixaram a escola aos 15 anos. No entanto, eles encontraram emprego em uma rede de lojas de apostas em Manchester. Como pubs, esses estabelecimentos prosperavam em áreas pobres. Eles só foram legalizados no Reino Unido em 1961. Havia preocupações com seu impacto social, bem como com a própria moralidade do jogo. Aos 17 anos, Peter já estava gerenciando uma casa de apostas, embora legalmente não pudesse entrar em suas instalações. O proprietário do estabelecimento o valorizou por sua habilidade em matemática. Ele cuidava da contabilidade, mentalmente analisando os números, lucros e prejuízos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No fim dos anos 60, esses locais eram intimidadores para se trabalhar — mesmo para um adolescente. Eles eram dominados por homens e a decoração muitas vezes lembrava a de uma prisão. O ambiente podia se tornar violento a qualquer momento, mas especialmente depois das 15h de um sábado, quando as pessoas saíam dos pubs, lembra Peter. "Você não podia mostrar fraqueza", diz ele, "porque então esses caras durões perceberiam que você era muito dócil." Tanto Peter quanto Fred mostraram talento para administrar esses lugares e, quando Peter fez 21 anos em 1967, os dois abriram sua própria casa de apostas. Eles a compraram por 4 mil libras — sendo 1 mil libras o dinheiro do depósito que Peter havia economizado para comprar uma casa com sua mulher. Chamaram-na de Betfred. Ele diz que não ficou com medo de correr esse risco porque já tinha seis anos de experiência na área e sempre acreditou que poderia administrar uma casa de apostas melhor do que seus patrões, se tivesse oportunidade. Foi nessa época que Peter diz ter aprendido lições que valoriza até hoje. A principal, diz, é sempre o atendimento ao cliente, porque é isso que traz as pessoas de volta. "Chamamos nossos clientes de 'senhor' e naquela época isso não acontecia". "Se um apostador tivesse uma grande vitória, o bookmaker costumava jogar o dinheiro nele e dizer, 'não volte mais!' enquanto nós diríamos: 'aqui está o seu dinheiro, aproveite!' "Eles ficaram surpresos. Mas sabíamos que eles voltariam e, com o tempo, o bookmaker sempre ganha." Os irmãos também não gostavam da decoração de muitas casas de apostas naquela época. Pareciam "casebres", lembra Peter. "Elevamos o nível, tínhamos tapetes", conta. A fórmula deu certo e os irmãos compraram gradualmente mais lojas, sendo as primeiras administradas por suas irmãs, consolidando o negócio da família. Em meados da década de 1980, eles tinham mais de 70 lojas. Mas foi um incidente durante essa expansão constante que levou Peter a deixar o mundo das apostas para trás. Os irmãos tiveram que resolver extra-judicialmente um lítigio com um funcionário de uma nova loja que estavam assumindo. O processo deixou feridas que demoraram para cicatrizar. Isso os levou a investir em um novo negócio que terceirizava serviços de Recursos Humanos. A empresa ganharia o nome de Peninsula, da qual Peter é CEO há 35 anos. Sua sede recém-construída é um arranha-céu de vidro brilhante e domina o horizonte de Manchester, ao norte da estação Victoria. Do escritório de Peter, é possível avistar Ordsall, onde ele cresceu. A Peninsula se expandiu ao longo dos anos e agora tem mais de 3 mil funcionários, atendendo a mais de 100 mil empresas em todo o mundo, 40 mil delas no Reino Unido. Grupo Peninsula tem seu próprio escritório, ao norte da estação Victoria Recentemente, durante a pandemia, a base de clientes da empresa cresceu mais de 12%, à medida que empresas em todo o mundo tiveram que atualizar suas políticas de RH e segurança, seja sobre trabalho em casa, distanciamento social ou regras de vacinação. Com o tempo, sua aposta nesse setor parece ter valido a pena. No entanto, em meados da década de 1980, embora o futuro da empresa mostrasse sinais promissores, as oportunidades de sucesso não eram claras e os irmãos tiveram que fazer uma escolha. Quem a administraria? A decisão sobre quem deveria deixar a Betfred foi decidida como uma verdadeira aposta. "Fred disse 'vamos decidir no cara ou coroa'. Ele ganhou e disse 'vai embora', antes que eu pudesse dizer qualquer coisa", diz Peter, rindo. Assim, ele deixou a administração da Betfred para seu irmão mais velho, embora continue sendo seu principal acionista. Mas sua partida significou sair da sombra de seu irmão mais velho? Era, afinal, uma aposta em si mesmo? "Em primeiro lugar, desde quando éramos crianças, quando pressionava o travesseiro contra o meu rosto, queria me dominar, mas eu não deixava", diz Peter sem rodeios. Tratava-se então de um desejo de deixar para trás o estigma do jogo, que assola muitas comunidades e, principalmente, como os estudos têm mostrado, as áreas carentes onde ele cresceu? Peter diz que não foi o caso. "As apostas têm fama ruim, mas a grande maioria das pessoas que vai a uma casa de apostas o faz por diversão e não gasta mais do que pode." A explicação de Peter para deixar o setor em que iniciou sua carreira no mundo dos negócios é mais simples. Ele diz que preferia as possibilidades que se abriam no universo dos Recursos Humanos e se entusiasmava com o desafio de expandir um novo negócio. No entanto, Peter ainda usa as lições que aprendeu na adolescência nas casas de apostas, embora seu local de trabalho hoje em dia seja totalmente diferente. A configuração da Peninsula mais se assemelha a um típico call-center, com fileiras de pessoas lado a lado conversando em fones de ouvido. Tudo é claro e brilhante e as paredes estão cobertas de slogans motivacionais. E há tapetes. "É tudo uma questão de se atualizar e gerar receita constante", explica Peter, quando fala sobre as chances de sucesso do negócio. Os clientes da Peninsula não são diferentes dos apostadores de uma casa de apostas dos anos 60, nesse sentido. A qualidade do serviço determina se alguém volta. E é mais barato reter um cliente antigo do que conseguir um novo. Um conselho de negócios que Done aprendeu nos últimos anos, no entanto, é que você só consegue um bom serviço em escala se tratar bem seus funcionários e os incentivar — por isso, ele busca uma alta retenção de pessoal e adota uma política de recompensa ostensiva àqueles que prestam um bom serviço. Uma das recompensas pelo sucesso nos negócios é poder conviver com pessoas do clube de futebol Manchester United, time para o qual ele torce desde a infância. Peter é frequentador assíduo do estádio Old Trafford, junto com seu irmão, misturando-se com figuras importantes do clube, do passado e do presente. Um amigo próximo é o lendário treinador Sir Alex Ferguson, que lhe deu alguns conselhos memoráveis ​​quando passaram férias juntos há alguns anos. Ferguson disse: "Mantenha o controle e tome decisões, mesmo que sejam erradas. O pior é não tomar uma decisão." Peter diz que seguiu à risca esses conselhos, até porque sua família manteve o controle — de todos os negócios que criaram. E quanto à tomada de decisão, argumenta que sempre escolheu o futuro que queria seguir, embora parte dele tenha sido decidido no cara ou coroa.
2021-12-08
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59566366
sociedade
Por que Brasil e EUA ficaram tão diferentes? Curso na Universidade de Chicago tenta explicar
Assim como muitos americanos, a historiadora Brodwyn Fischer não chegou a aprender muito sobre o Brasil quando estava na escola. O primeiro contato mais profundo veio no início da faculdade, 30 anos atrás e, desde então, ela não parou mais de pesquisar sobre a história brasileira. "Uma das coisas que mais me fascinaram foi que começar a estudar história do Brasil me fez olhar diferente para a própria história dos Estados Unidos, porque os dois países têm muitas características básicas e estruturais, digamos assim, em comum." São dois países de dimensões continentais, ricos em recursos naturais, formados por populações originárias de três continentes, moldados pelo colonialismo e pela escravidão. No papel, Brasil e EUA são marcados por semelhanças - e, no entanto, tomaram caminhos completamente diferentes. Há cerca de 10 anos Fischer explora essas questões com seus alunos em uma disciplina ministrada inicialmente na Universidade Northwestern e hoje na Universidade de Chicago, onde foi batizada de Brazil: Another American History ("Brasil: Outra História Americana", em tradução literal). Em 18 aulas, o programa é uma imersão na história brasileira, passando pelo período colonial e o regime escravista à industrialização e formação das grandes cidades. Entre as leituras obrigatórias há desde clássicos da literatura, como Vidas Secas, de Graciliano Ramos, até autores fundamentais para entender o Brasil, como Sérgio Buarque de Holanda (O Homem Cordial) e Celso Furtado (Formação Econômica do Brasil). A BBC News Brasil conversou sobre alguns desses temas com a professora, que é Ph.D pela Universidade de Harvard e foi diretora do Centro de Estudos para a América Latina da Universidade de Chicago entre 2015 e 2020. De forma geral, as comparações entre Brasil e Estados Unidos costumam ser permeadas por generalizações e exageros que colocam os dois países em polos opostos que muitas vezes não existem, avalia Fischer. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É o que a historiadora chama de "ideias hiper-reais" - algo que nunca existiu de fato, mas acaba sendo colocado no debate como a essência de um determinado conceito. Uma dessas "ideias hiper-reais" seria justamente a razão que levou Brasil e EUA a se tornarem nações tão diferentes, apesar das semelhanças estruturais. No Brasil, muita gente reproduz a ideia de que a explicação está centrada no tipo de colonização a que os dois países foram submetidos - a portuguesa, implantada no Brasil, teria sido mais brutal e restritiva, enquanto a inglesa, levada aos EUA, teria dado aos americanos maior grau de liberdade, usado para desenvolver instituições e uma democracia mais sólidas. Uma divergência que teria selado o destino dos dois países. "Acho que uma das coisas com as quais a gente se depara no Brasil, mesmo entre pessoas com maior escolaridade, é essa 'ideia hiper-real' do que são os Estados Unidos. (A questão da colonização) é exatamente isso, mas os historiadores americanos não pensam mais dessa forma sobre sua história." O que explica então as diferenças tão profundas? Para Fischer, uma das razões remonta ao século 19 e tem uma ligação estreita com "as relações entre indivíduos e os direitos de cidadania". Em ambos os países, ela diz, a escravidão foi brutal, "algo que, moralmente, não deveria ter sido institucionalizado". O Brasil, contudo, viveu uma situação particular depois de 1831, quando o tráfico de escravizados foi proibido por lei - mas não acabou na prática. "A partir daí, a elite e o Estado passam a conspirar para que a escravidão continuasse, ainda que ilegalmente. Entre 1831 e 1850 (ano da promulgação da Lei Eusébio de Queiroz, que reafirmava a proibição ao tráfico), algo entre 700 mil e 800 mil pessoas foram trazidas ilegalmente para o Brasil para serem escravizadas. E toda a estrutura do Estado durante esses anos foi desenvolvida para ajudar as pessoas a contornar a lei." "Acho que essa é uma diferença fundamental. Nos Estados Unidos, nós tendemos a legalizar as brutalidades. Tornamos legal a possibilidade de que as pessoas andem armadas na rua, por exemplo. Então muitas das coisas que aparecem nos dois países acontecem dentro da lei nos EUA e fora da lei no Brasil", acrescenta. "Acredito que isso, de diversas formas, ajudou a moldar a maneira como o país opera. Um dos pontos que argumento é que o poder informal se desenvolveu muito cedo no Brasil, para preservar a 'casa grande' (termo usado para se referir aos grandes proprietários rurais do Brasil colonial), de forma que muita gente simplesmente não tem acesso a direitos políticos e civis básicos ou tem acesso limitado a direitos econômicos e sociais, quando estes entram em cena." Sem esses direitos básicos, a forma como essas pessoas que estão fora do círculo das elites têm acesso ao poder, por sua vez, é fora da estrutura do Estado e da lei. "E acho que o fato de que isso absorve uma fatia tão relevante das relações de poder no Brasil, em comparação ao que tradicionalmente se viu nos EUA, explica boa parte das divergências entre os dois países", conclui a professora. Algumas dessas ideias estão na tese de doutorado de Fischer, resultado de uma pesquisa na cidade do Rio de Janeiro, que ganhou no ano 2000 o Harvard University Gross Prize como melhor dissertação em História. O trabalho virou livro em 2010, publicado pela Stanford Press University e intitulado A Poverty of Rights: Citizenship and Inequality in Twentieth-Century Rio de Janeiro ("Pobreza de Direitos: Cidadania e Desigualdade no Rio de Janeiro do Século 20", em tradução literal). Uma das ferramentas em um país em que o poder informal tem muita relevância é justamente o "jeitinho brasileiro", que se relaciona com o conceito do "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda, que está na bibliografia do curso ensinado por Fischer. Na visão da historiadora, contudo, o "jeitinho" é outra "ideia hiper-real", uma espécie de exagero, na medida em que está longe de ser uma exclusividade do Brasil. "Quando há estudantes brasileiros nas minhas aulas, eles são os primeiros a mencionar o 'jeitinho' e dizer: 'Ah, nós somos bastante diferentes dos EUA!'. E aí o que eu tento fazer é mostrar as diversas maneiras pelas quais as pessoas nos Estados Unidos usam o 'jeitinho'. Não chamamos de 'jeitinho', mas a ideia de alguém tentar contornar as normas que não lhe favorecem é universal." Fischer ilustra essa discussão com um comentário sobre o antropólogo Roberto da Matta, um dos "intérpretes do Brasil" mais lidos nos Estados Unidos, que chegou a escrever que o trânsito caótico no Brasil e o hábito dos motoristas brasileiros de "fechar" e "furar" são, em certa medida, reflexos do "jeitinho". "Ele morava numa cidade pequena em Indiana, onde viveu quando lecionava na [Universidade de] Notre Dame, e tinha essa ideia de que nos EUA as pessoas respeitam as leis de trânsito - mas, se você estiver em qualquer grande cidade, vai ver que isso não é verdade. As pessoas atravessam fora da faixa o tempo todo, estão quebrando regras, vendendo produtos ilegalmente na rua… Todas essas coisas acontecem em toda parte aqui, então é mais uma daquelas 'ideias hiper-reais'." A diferença, ela diz, é muito mais uma questão sobre como um povo vê a si mesmo. "Acho que tem a ver com a discussão sobre como a autopercepção de uma nação de fato acaba lhe dando forma. Se você é brasileiro, a ideia de que o 'jeitinho' está no centro do seu mundo o legitima e o transforma em algo que as pessoas estão dispostas a fazer com maior frequência." "Aqui nos EUA, a ideia 'hiper-real' do que nos tornava diferentes era a lei e a ordem, de que nós seguimos as regras. Não era verdade, mas era como pensávamos sobre nós mesmos. Acho que isso começa a se desintegrar - nos EUA, mais e mais pessoas não confiam nas leis e no Estado. Mais pessoas não acham que a melhor forma de resolver seus problemas é respeitando as normas. A ideia do 'jeitinho' aqui tem cada vez mais se tornado senso comum, na forma como o tem sido há tanto tempo no Brasil." Uma das diferenças mais complexas entre Brasil e EUA se dá no campo das relações raciais, destaca a professora. Apesar de ambos os países terem instituído sistemas brutais de escravidão, o Brasil passou por um processo intenso de miscigenação entre brancos, negros e índios, que não se viu na mesma medida nos EUA. Isso foi determinante para que o Brasil se tornasse um país de maioria negra, que hoje corresponde a cerca de 50% da população, conforme a classificação do IBGE que reúne quem se declarou preto ou pardo no Censo de 2010. Nos EUA, ainda que haja regiões no sul em que a população negra seja predominante, no país como um todo ela é minoria - algo entre 12% e 13% do total, atualmente. "Acho que isso às vezes é minimizado", diz a professora, que se prepara para lançar o livro The Boundaries of Freedom: Slavery, Abolition, and the Making of Modern Brazil ("Os Limites da Liberdade: Escravidão, Abolição e a Construção do Brasil Moderno", em tradução livre) em coautoria com a historiadora brasileira Keila Grinberg. Prevista para 2022, a obra é editada pela Cambridge University Press. Com uma proporção elevada de pessoas escravizadas, foram diferentes os mecanismos de controle social colocados em prática no Brasil para manter o sistema escravista vivo durante três séculos. Ainda que fosse brutal e violento, ele incorporou, por exemplo, o instrumento das alforrias. Menos recorrentes nos EUA, aqui elas foram mais largamente utilizadas, concedidas não apenas pelos "senhores de escravos", mas compradas pelos próprios escravizados, por organizações abolicionistas e de caridade. Outra diferença importante e que teria reflexos profundos na formação das relações raciais no Brasil foi a relativa mobilidade que corria em paralelo à lógica de violência e sujeição que marcou o regime escravista. No Brasil, um escravizado poderia passar a vida cortando cana-de-açúcar e ver seu filho trabalhando como escravo doméstico, exemplifica a historiadora. Ela lembra as obras do pintor francês Jean-Baptiste Debret, que chegou a retratar uma espécie de "hierarquia" entre os escravizados que viviam no ambiente urbano. Além dos escravizados que se dedicavam aos afazeres domésticos na casa de seus "senhores", havia, por exemplo, os escravos de ganho, que trabalhavam fora - como vendedores ambulantes ou prestando serviços a terceiros - e repassavam parte do que auferiam a seus proprietários. Pesquisas como a da historiadora Ynaê Lopes dos Santos, professora de História das Américas na Universidade Federal Fluminense (UFF), apontam ainda que, no Rio de Janeiro do século 19, alguns escravizados chegavam a morar fora da casa dos "senhores", em cortiços e imóveis alugados. "Essa foi uma dimensão importante. Era um certo nível de mobilidade que poderia ser conquistado sem um confronto aberto à instituição da escravidão", pontua Fischer. Nos EUA, especialmente nas colônias do sul, essa mobilidade era praticamente inexistente e as tensões sociais, muitas vezes mais visíveis. "A polarização era tão grande que não havia muita alternativa a não ser criar grupos de solidariedade e eventualmente movimentos pelos direitos civis." Os EUA implementaram uma série de normas e leis racistas que desencorajavam a miscigenação. O casamento interracial, por exemplo, foi proibido em diversas partes do país até 1967, quando uma lei do Estado da Virginia foi derrubada na Suprema Corte. Outro exemplo prático foi a chamada "one drop rule" ("regra de uma gota", em tradução literal), adotada em vários Estados: independentemente do fenótipo, um indivíduo com qualquer antepassado de origem africana era classificado como negro, com todas as implicações legais que isso acarretava no país. Nenhum outro grupo étnico era identificado dessa forma. Já no Brasil, a miscigenação muitas vezes foi vista como instrumento de mobilidade social - e, nesse sentido, é fundamental para entender a forma particular de racismo que se desenvolveu aqui, que se manifesta muitas vezes de forma velada. "Faço muita pesquisa com ações judiciais do século 19, e essa é uma das coisas mais dolorosas com as quais tenho que trabalhar como historiadora", comenta Fischer. "Nesses processos você consegue ver todo tipo de estratégia que as pessoas usavam para tentar melhorar um pouco suas vidas. E uma das coisas que se pode observar são pessoas que tentavam clarear a pele dos filhos. Elas querem que os filhos sejam chamados de pardos, alguns querem que eles sejam reconhecidos como brancos na certidão de nascimento. Há uma espécie de racismo internalizado, que funciona de forma parecida com a da mobilidade dentro do sistema escravista, de forma que não se confronta o racismo como sistema." "Então você pode ir de negro, a pardo e branco, e o racismo ainda está completamente colocado - está sendo reforçado, na verdade." Essas dinâmicas, completamente diferentes do racismo institucionalizado que se via em países como EUA e África do Sul, culminam na "democracia racial", a ideia de que não havia discriminação racial no Brasil, disseminada por teóricos como o sociólogo Gilberto Freyre, autor de Casa Grande e Senzala, obra que reforça essa visão. A historiadora comenta que a "ilusão" da democracia racial aparece inclusive na imprensa negra americana, em artigos de jornais como o Chicago Defender, que ela apresenta aos alunos no curso. Jornalistas e sociólogos como W. E. B. Du Bois, ativista pelos direitos civis, vieram ao país no início do século 20, após a visita do presidente americano Theodore Roosevelt, e chegaram a escrever que o Brasil seria um exemplo a ser seguido no contexto das relações raciais. "Você vê negros americanos dizendo: 'Olha, eu fui lá e vi médicos negros, políticos, Machado de Assis, um grande escritor negro… O que eles não percebem é que essas pessoas não necessariamente são vistas como negras." "E isso foi muito antes de a ideia da democracia racial emergir mais formalmente no Brasil nos anos 1940." Esse conceito seria desmistificado por intelectuais brasileiros como Abdias do Nascimento, ativista pelo direitos dos negros e que também faz parte da bibliografia do curso de Fischer, com a obra Brazil: Mixture or Massacre ("Brasil: Mistura ou Massacre" em tradução livre). De volta à questão do poder informal, a historiadora argumenta que ele é chave para entender o racismo no Brasil e é um dos instrumentos usados até hoje para reforçá-lo. "Nos Estados Unidos, essa questão (sobre como o racismo é reforçado) tem um pouco mais a ver com o fato de que as instituições são abertamente e claramente racistas em suas práticas. É uma comparação interessante, porque, no fim do dia, se você é negro e pobre no Brasil, é baixa a probabilidade que você tenha acesso a direitos, e o mesmo vale para os EUA. Existe uma semelhança em relação aos resultados, mas os caminhos para se chegar a eles são bem diferentes - e tentar entender isso pode trazer benefícios para os dois países."
2021-12-05
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59499807
sociedade
Portugal vê nova onda de imigração brasileira após reabertura de fronteira
A reabertura das fronteiras entre Portugal e Brasil, em setembro, após um ano e meio de restrições relacionadas à pandemia da covid-19, vem estimulando uma nova onda de imigração ao país europeu. Entidades que auxiliam imigrantes em território português relatam maior chegada de brasileiros e busca por informações sobre o processo de migração. Dizem, ainda, que caiu o número de brasileiros procurando auxílio para voltar à terra natal. As razões para isso, apontadas por brasileiros recém-chegados a Portugal entrevistados pela BBC News Brasil, incluem a escalada da crise no Brasil, uma vontade de melhorar sua qualidade de vida e a familiaridade com a língua. Além disso, o país possui uma legislação nacional favorável à imigração. Diferentemente da maioria das outras nações europeias, Portugal permite a regularização com relativa facilidade daqueles que chegam como turistas (ou seja, sem visto), mas decidem viver e trabalhar em seu território. Foi com essa possibilidade em mente que o auxiliar de enfermagem Uelber Oliveira, de 33 anos, se preparou para viver no país. Em Lisboa há cerca de três meses, chegou sem visto para procurar emprego e se instalar na cidade. "Está cada vez mais difícil viver, e viver com qualidade, no Brasil. A nossa luta não é mais para ter um carro bom, uma moradia boa. O problema agora é ter o básico, é conseguir se alimentar", diz ele, que é natural de Ilhéus (BA). Na capital portuguesa, conseguiu um emprego e aguardou a chegada da esposa, cuja viagem ficou marcada para dois meses após a sua. Atualmente, os dois trabalham como cuidadores de idosos na cidade, e já começaram o processo para regularizar sua situação migratória. "Percebi que em Portugal teremos segurança, e, mesmo ganhando pouco, muita qualidade de vida - e ainda vou conseguir mandar um dinheirinho para o Brasil", afirma. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O movimento atual de migração de brasileiros para Portugal começou em 2014, quando as condições econômicas do Brasil voltaram a piorar, mas se intensificou a partir de 2017. Nos últimos quatro anos, o número de brasileiros residindo em Portugal registrou um aumento - batendo recorde em 2020. "E aí veio a pandemia e fechou as fronteiras. Mas as pessoas só suspenderam seus processos migratórios nesse período", afirma Cyntia de Paula, presidente da Casa do Brasil de Lisboa, entidade que auxilia os imigrantes no país. "Quando abriram as porteiras, as pessoas voltaram a procurar Portugal em peso." É o caso de Maicon (que não quis ter seu sobrenome divulgado pela reportagem), que começou a planejar a mudança para Portugal em 2019. Casado e com dois filhos, ele trabalhou por dez anos na construção civil no Brasil, mas foi perdendo espaço na área e, há dois anos, passou a atuar como motorista de carreta. "Eu sempre lutei para ter um conforto no Brasil para mim e para os meus filhos. Trabalhava muito e as coisas não progrediam, não conseguia suprir as necessidades básicas da minha família", diz. Instalado na região de Aveiro, no Centro de Portugal, conseguiu um emprego como ajudante de serralheiro e também já deu início ao processo de regularização de sua situação. Agora, aguarda a chegada da esposa e dos filhos, programada para janeiro. "Não vim para ficar rico, mas para oferecer aos meus filhos uma qualidade de vida melhor e conseguir alguma estabilidade financeira", conta. "No início é perrengue mesmo, mas está valendo a pena. Aqui a alimentação é barata, o lazer é barato. No Brasil, eu estava me privando de comer carne com um salário bom. Aqui eu já estou enjoado de comer picanha." Hoje, residem em Portugal cerca de 214.500 cidadãos brasileiros, de acordo com números de novembro do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF). O dado, porém, exclui aqueles em situação irregular e os que também possuem cidadania portuguesa ou de outro país europeu. Os imigrantes no país têm perfis variados, afirma Cyntia de Paula. "Temos uma imigração não somente para o trabalho não qualificado, mas também de muitos profissionais de perfil qualificado, não apenas em termos de escolaridade, como com muitos anos de experiência. Esses não vinham antes com tanta expressividade, e agora vêm." Além disso, segundo ela, há registro de chegada de muitas famílias e um fluxo regular de estudantes brasileiros a Portugal. A advogada paulista Beatriz Menezes, de 28 anos, faz parte desse último grupo. Após uma experiência profissional ruim, ela decidiu tirar alguns projetos do papel e passou a pesquisar as oportunidades de estudo em Portugal. "Na minha cabeça, estudar na Europa era algo impensável do ponto de vista financeiro. Mas conheci uma pessoa que fazia o curso que hoje faço aqui, um mestrado em Direito Administrativo na Universidade de Lisboa, e descobri que não era bem assim. Gastaria mais ou menos a mesma coisa estudando aqui ou em uma boa faculdade no Brasil", diz. Ela chegou a Portugal em outubro, depois de adiar os planos por alguns meses em razão da pandemia. Mas já pensa na possibilidade de prolongar sua estadia no país após a conclusão do curso, que tem duração de dois anos. "Me encantei por Lisboa, e tenho certeza de que todo esse impacto da pandemia e de um governo ineficiente vai perdurar no Brasil. Isso me faz considerar ficar por aqui", afirma. Foi o que fez o publicitário paulista Leandro Guimarães, de 38 anos. Ele chegou ao país no segundo semestre de 2019 para ficar por um ano, enquanto cursava uma pós-graduação em Comunicação de Cultura e Indústrias Criativas, na Universidade Nova de Lisboa. Nos meses seguintes à conclusão do curso, com o visto caducado, decidiu entrar com uma manifestação de interesse para se regularizar no país. "Dei início ao processo em setembro do ano passado, com a expectativa de que ele durasse oito meses. Atualmente, estou esperando há um ano e dois meses", diz. Com a regularização em andamento, ele se viu diante de duas possibilidades: permanecer em Portugal em situação irregular ou voltar ao Brasil e correr o risco de perder o processo. Optou pela segunda. Ao longo dos meses, decidiu voltar a Portugal e passou a procurar, à distância, um emprego no país. "Achei essa empresa que cuida de mobilidade internacional e comecei a trabalhar para eles em agosto, ainda do Brasil", conta ele que, com o contrato em mãos, voltou a Lisboa em outubro. "Tive essa experiência primeiro como estudante, depois entendi que seria um mercado promissor para Comunicação e Tecnologia, porque muitos portugueses saíram do país. Eu gosto do fato de Portugal ser um país pequeno, e de Lisboa oferecer serviços de capital numa cidade do tamanho de Sorocaba. Faço muita coisa a pé, estou perto da natureza. E só de ter segurança já é um ganho enorme." Quem vive legalmente em território nacional por cinco anos tem direito a aplicar para a naturalização, obtendo a cidadania portuguesa. Esse prazo só começa a contar, porém, a partir do momento em que o imigrante consegue sua autorização de residência - ou seja, quando passa a estar em situação regular. Os Artigos 88 e 89 da Lei dos Estrangeiros são os que permitem àqueles sem visto em Portugal, ou com o visto caducado, se regularizarem no país, por meio de contrato de trabalho ou como prestadores de serviços. Para isso, eles devem dar entrada no processo online, apresentar uma série de documentos, ter número de inscrição fiscal e estar contribuindo para a Segurança Social. Esse processo, porém, pode levar anos para ser concluído. "Como existe a possibilidade de regularização em território nacional, muita gente opta por essa estratégia. Mas durante esse processo, que pode demorar até quatro anos, essas pessoas enfrentam muita instabilidade", diz Cyntia de Paula. "Os imigrantes em situação irregular enfrentam dificuldades práticas e correm risco maior de exploração laboral, trabalhando em condições à margem da legalidade. Também correm o risco de expulsão e de não poder retornar ao país por alguns anos", afirma Vasco Malta, chefe da missão da Organização Internacional para as Migrações (OIM) em Portugal. Cyntia relata que, durante a pandemia, muitos imigrantes perderam o emprego. Sem contrato ou acesso a programas de auxílio do governo, eles ficaram sem rendimento de um dia para o outro. Além disso, apesar da medida emergencial do governo que regularizou temporariamente todos os imigrantes no país, de modo a garantir seu acesso ao Sistema Nacional de Saúde, muitos enfrentaram dificuldades para se vacinar contra a covid-19. A OIM fornece apoio a imigrantes que queiram voltar ao seu país de origem, mas não conseguem fazê-lo por falta de recursos, por meio do Programa de Apoio ao Retorno Voluntário e Reintegração (ARVoRe). A grande maioria dos atendidos é brasileira, e o percentual atingiu 97,9% em 2020. Em 2021, contudo, a participação dos cidadãos brasileiros no total caiu para 83%, considerando os dados até outubro. De acordo com o chefe da missão, embora não haja dados para explicar a redução, ela estaria ligada à evolução negativa da pandemia no Brasil, além de uma melhora no cenário econômico e no mercado de emprego em Portugal durante os meses do verão europeu (de junho a setembro). Ele também cita a continuidade dos processos de regularização pelo SEF. Malta afirma que é essencial que os brasileiros busquem a entrada em Portugal de maneira regular e se planejem antes da viagem. "Planejar-se é absolutamente fundamental, as pessoas precisam saber o que vão encontrar, até para gerir expectativas. O custo de vida em Lisboa e no Porto continua altíssimo, assim como o valor do arrendamento [aluguel]. A crise de matérias-primas também impacta o custo de vida das pessoas", diz. O preço elevado dos aluguéis, especialmente nos grandes centros, é uma reclamação recorrente entre os imigrantes brasileiros no país, assim como as dificuldades relacionadas ao preconceito de portugueses com o grupo e com o sotaque brasileiro. "Em razão de vários estereótipos relacionados à comunidade brasileira, muitos imigrantes têm dificuldade de encontrar trabalho qualificado. Eles sentem que seu percurso profissional fica dentro do avião. Há também dificuldades de integração, em especial para as mulheres brasileiras", diz a presidente da Casa do Brasil de Lisboa. De acordo com Maicon, muitos proprietários pedem até três cauções de adiantamento para alugar um imóvel. "E os portugueses nem sempre são simpáticos aos brasileiros", afirma ele, que também recomenda muito planejamento a quem pensa em emigrar. "Vi vários relatos de pessoas passando até fome aqui. E acho que, se não tivesse demorado tanto tempo para vir, eu também estaria passando por alguns apertos por falta de informação e de planejamento."
2021-12-04
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59506767
sociedade
Como insatisfação de colegas de trabalho pode ser contagiosa
Você pode não gostar muito do seu emprego, mas os dias, em sua maioria, são pelo menos toleráveis. Mas um dia razoável no escritório pode ficar muito pior se você tiver um colega reclamando sem parar. Ele resmunga porque sua folga não foi aprovada ou sobre como ele odeia o chefe. Rapidamente você começa a notar como essa pessoa reclamando constantemente faz com que o seu dia fique muito pior. Com o tempo, você pode até começar a apreciar menos o seu trabalho, olhando para a empresa de forma negativa. Ou seja: o descontentamento do seu colega de trabalho é contagioso. Sabemos que as opiniões e comportamentos das pessoas à nossa volta podem influenciar o nosso próprio humor e as nossas percepções. Da mesma forma que colegas alegres e motivados podem nos inspirar, o chato do escritório pode nos levar para baixo — e, ao longo do tempo, até espalhar seu descontentamento pela equipe. A insatisfação desmedida dos funcionários pode prejudicar a percepção do local de trabalho pelos colegas, criando um ambiente no qual cada vez mais pessoas acabam por odiar o seu trabalho — incluindo você. Existem evidências que sugerem que certos comportamentos e atitudes podem espalhar-se de uma pessoa para um grupo com muita facilidade, especialmente no ambiente de trabalho. Os funcionários são muito mais propensos a realizar atos imorais, como mentir ou roubar, por exemplo, se trabalharem ao lado de outros que cometem esses atos. Mas formas mais sutis de negatividade no local de trabalho - como um colega que simplesmente não gosta do seu trabalho e manifesta isso verbalmente - podem também causar efeito cascata sobre as equipes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Hemant Kakkar, professor de administração e organizações da Universidade Duke, nos Estados Unidos, atribui esse efeito cascata a um fenômeno psicológico chamado de contágio social, segundo o qual os comportamentos e atitudes se espalham entre as pessoas, que então assumem essas características. Ele afirma que isso pode também ocorrer com as emoções — tanto positivas quanto negativas. O contágio emocional ocorre quando nós, enquanto criaturas sociais, reconhecemos as emoções dos demais e subconscientemente as imitamos. "Por exemplo, quando vemos um colega de trabalho de mau humor após uma reunião, nós percebemos que algo não correu bem", segundo Kakkar. "O contágio emocional ocorre com mais facilidade quando alguém não tem opinião definida sobre a situação e a pessoa que está demonstrando suas emoções é alguém próximo, ou que você respeita." Essa afirmação está de acordo com as pesquisas de Jim Harter, cientista-chefe de administração e bem-estar no ambiente de trabalho da empresa norte-americana de pesquisas Gallup, que estudou o comprometimento dos funcionários nos Estados Unidos durante a pandemia. Ele afirma que existem três tipos de trabalhadores: as comprometidas, que gostam do seu emprego e têm bom desempenho; as não comprometidas, que podem não gostar do seu emprego, mas ainda se sobressaem e têm bom desempenho; e as ativamente descomprometidas, que não gostam do seu emprego e não têm bom desempenho (e, na verdade, procuram ativamente um novo emprego). Para Harter, as pessoas ativamente descomprometidas espalham sua falta de comprometimento para os demais, particularmente os que se encontram no grupo de "não comprometidos". Isso significa que as queixas de um colega podem entrar na sua mente, mesmo que você não esteja insatisfeito com o seu trabalho. "Quanto mais você ouve, mais começa a pensar sobre si próprio", acrescenta John Trougakos, professor de administração da Universidade de Toronto, no Canadá. Eles plantam a semente na sua cabeça e na dos demais; em pouco tempo, muitas pessoas podem ter a mesma opinião negativa. "Os números têm influência", segundo Trougakos. "Quando você tem duas, três ou quatro pessoas dizendo a mesma coisa, isso fortalece [o agravamento da insatisfação]. As pessoas ficam presas nessa forma de pensar." Ter muitos amigos no trabalho não necessariamente deixa você isolado da propagação de opiniões negativas. Harter afirma que, embora as amizades no ambiente de trabalho possam ajudar a manter o comprometimento em alta, elas podem também servir de potencial vetor de lamentações. "Essas conexões sociais podem ser sessões de queixas — quando as pessoas espalham o seu descontentamento — ou as pessoas podem se manter unidas". Pode ser muito inovador, segundo ele, reunir-se para criar soluções para melhorar a situação. Mas Kakkar indica que os sentimentos ou emoções são particularmente contagiantes quando a pessoa que os expressa é alguém que você considera influente, pessoal ou profissionalmente. Queixas de um líder de equipe carismático ou do melhor funcionário do escritório provavelmente terão efeito mais amplo. E o trabalho remoto também não cria barreiras contra a propagação da negatividade. "Se você está em uma reunião presencial e vê metade das pessoas pegando seus laptops e fazendo todo tipo de trabalho externo durante a reunião — isso é um indício de falta de comprometimento", segundo Terri Kurtzberg, professora de administração da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos. Da mesma forma, "se você estiver em uma chamada na plataforma Zoom e as pessoas simplesmente não se preocuparem em ligar suas câmeras ou responder perguntas, de forma que você nem mesmo sabe com certeza se elas realmente estão ali — você vai perceber que este é um sinal de falta de compromisso" e ficará mais propenso a internalizar esse sentimento no seu próprio comportamento. Existe uma série de efeitos sobre as equipes que sofrem de difusão da negatividade. Na melhor hipótese, a satisfação dos funcionários com seus papéis, com a equipe ou com a empresa pode vir abaixo; no pior dos cenários, os trabalhadores insatisfeitos poderão acabar procurando emprego em outros lugares, em um fenômeno de pedidos de demissão em massa conhecido como efeito contágio. Como podemos identificar o problema? Se você estiver relativamente feliz na sua situação, existem estratégias que podem ser implementadas para tentar isolar as reclamações dos demais. Orientações clássicas incluem aliar-se a pessoas positivas, criar barreiras contra os demais e redirecionar a conversa para a positividade. "Será muito mais satisfatório concentrar sua energia nas pessoas comprometidas", aconselha Kurtzberg. Ela acrescenta que é importante relembrar que você não conhece o contexto completo das queixas dos seus colegas. "Talvez a reclamação da outra pessoa seja baseada em todo tipo de fatores complicadores sobre a forma em que o trabalho dela — ou outro setor da sua vida — está se desenrolando; [esses fatores] são diferentes dos seus". Mas os especialistas também afirmam que é fundamental ter em mente que, se as pessoas estão infelizes na sua equipe, este muitas vezes é um problema muito maior que só um funcionário insatisfeito. Para John Trougakos, "pode não se tratar apenas de uma maçã podre — isso pode ser consequência de má gestão organizacional". Empresas que pressionam as pessoas para que permaneçam online até tarde e chefes que enviam emails para as pessoas às 11 horas da noite, por exemplo, são condições que favorecem uma maior incidência de burnout. Mas isso significa que parte da solução é tarefa das empresas, que precisam rever sua cultura. E é difícil saber se os empregadores adotarão as mudanças — e até se eles chegam a observar a baixa motivação dos funcionários. Por enquanto, se você está preso no escritório (ou no Zoom) com um colega queixoso, cuide para que ele não influencie o seu próprio humor. "A tristeza adora companhia", segundo Trougakos. Mas você não precisa seguir o mesmo caminho dele.
2021-12-02
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-59438546
sociedade
'Era como se meu sangue e sêmen fossem venenosos': o homem que descobriu 'sem querer' que tinha HIV
"Sendo um homem heterossexual, branco, europeu, nunca imaginei que o diagnóstico viria positivo." Christopher Klettermayer — também conhecido pelo pseudônimo Philipp Spiegel — é austríaco, tem 38 anos e foi diagnosticado com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) em 2014. Ele se lembra perfeitamente do dia: estava na Índia, realizando uma trabalho como repórter fotográfico. Ao contrário de muitos, ele não recebeu a notícia em um hospital, mas em um ashram, um centro de meditação hinduísta — que, como pré-requisito para entrada, exige aos visitantes que se submetam a um teste de HIV. "Aceitei prontamente fazer. Sendo branco e hetero, achei que daria negativo. Mas não foi assim." Alguns meses antes, na Áustria, Christopher havia ficado muito doente, mas nem lhe ocorreu que poderia ser algo relacionado ao vírus. "Nenhum médico me pediu exame porque eu não estava no grupo de risco. Fiz o teste meio por acaso na Índia — e o resultado me deixou em choque." "Na verdade tive sorte, porque poderia ter demorado anos até efetivamente fazer um exame diagnóstico." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Senti medo no começo. Tinha muitas perguntas a respeito do HIV. Pensei: 'Por que eu?' E me dei conta de que tinha que eliminar um monte de clichês sobre o vírus que trouxe sobre dos anos 80 e 90 para o século 21." E foi isso que ele fez. Christopher passou as 48 horas seguintes ao diagnóstico pesquisando e descobriu conceitos como o limite de detecção e a carga viral, além de acalmar o temor que sentiu de que nunca mais fosse aceito, de que não poderia ter filhos ou uma família ou que nunca mais pudesse dividir momentos de intimidade com outra pessoa. Descobriu com o tempo que a maior parte dos problemas que enfrentaria seriam psicológicos e relacionados ao estigma que existe ainda hoje a respeito do HIV. "Não sinto nenhuma consequência negativa real muito além disso. Na Europa Ocidental temos o privilégio de poder contar com um bom sistema de saúde, que nos oferece tratamento gratuito." Ainda que não haja cura para o HIV, existem hoje tratamentos retrovirais bastante efetivos, que permitem que a maioria das pessoas com o vírus tenha uma vida longa e saudável. Christopher lembra que, pouco depois de começar a tomar os medicamentos, a tosse irritante que tinha há algum tempo desapareceu. Mas outros problemas surgiram, como o momento de ir em um encontro com alguém novo. "Por algum tempo senti algo estranho dentro de mim. Me sentia tóxico, era como se meu sangue e sêmen fossem venenosos. Sentia que era um perigo para as pessoas, especialmente aquelas que queriam se aproximar de mim." "No começo, sair com alguém era algo quase impossível, porque o HIV destrói a a confiança que você tem em si mesmo e, se você vai em um encontro sem confiança, é melhor nem ir." Para ele, é assustador não saber como as pessoas vão reagir quando se conta para elas sobre o vírus. Christopher já se deparou como todo tipo de reação. "É uma loteria", diz. "Uma experiência positiva aconteceu quando perguntei a uma garota: 'Como você reagiria se dissesse que sou HIV positivo?' E ela só sorriu e disse que isso deixaria as coisas muito mais interessantes. Mas também já encontrei pessoas que de cara me perguntaram: 'posso pegar pelo beijo?'" "Hoje posso dizer que tenho orgulho de conviver com o HIV e consigo transmitir isso à pessoa com quem estiver saindo. Não sempre, claro, às vezes bate o medo, o ceticismo, a rejeição." "Acho que esse é outro aspecto do HIV: viver constantemente com medo de ser descoberto. É preciso ter cuidado com o que se diz e com as consequência que as palavras podem ter. É como viver a vida como um agente secreto", acrescenta. Com o tempo, ele decidiu abandonar a vida dupla e concluiu que deveria aproveitar "o privilégio de viver em um país em que ter HIV é algo menos problemático" para educar e inspirar outras pessoas. "Percebi que, se eu não pudesse dizer que tenho HIV, quem então poderia?" Há muitos anos então Christopher luta contra o estigma relacionado às pessoas que vivem com o vírus. No passado, ele chegou a usar um pseudônimo, Philipp Spiegel, para falar sobre o HIV e dar entrevistas. Tinha tanto medo de ser visto e tratado de forma diferente que se sentiu obrigado a criar uma espécie de personagem. "Tinha medo de ser isolado, de ser excluído da sociedade." "Quanto mais me confrontava comigo mesmo e desafiava minhas percepções sobre sexualidade e masculinidade, menos importância dava a tudo isso. Assim, foi ficando cada vez mais fácil sair do armário, porque em algum momento disse pra mim mesmo: 'Isso não é nada do outro mundo'." Foram anos, entretanto, e muitas experiências até que ele chegasse a essa conclusão. Uma delas foi se apaixonar novamente. "Me ajudou muito quando finalmente me envolvi emocionalmente e vi como ela me tratava, como o assunto do vírus nunca estava presente, que se resumia apenas a tomar a pílula do dia." "Uma percepção equivocada é a de que o HIV domina sua vida. No meu caso, se eu não trabalhasse com o tema, praticamente nem tocaria no assunto. Há momento em que meus amigos e minha família simplesmente esquecem que tenho o vírus — porque isso efetivamente não é um problema." Ele confessa que um de seus maiores medos era ser tachado como "o rapaz soropositivo". "Mas sou muito mais que isso, o HIV é só um aspecto da minha vida." Hoje, o escritor e ex-jornalista diz que o diagnóstico abriu-lhe a oportunidade para refletir sobre sua vida e lhe ofereceu uma visão mais ampla das coisas. "Vivo mais o presente. Hoje vivo mais feliz do que antes do HIV, também porque essa foi uma experiência traumática." Toda sua trajetória também acabou lhe dando um propósito artístico e a meta de escrever um livro sobre o que é viver com HIV. Ele acredita que o processo pode ser mais traumático para muitos homens heterossexuais por problemas ligados à masculinidade. "Muitos homens hetero não falam que têm HIV porque têm medo de serem chamados de gays ou de drogados." Ele não tem, entretanto, um conselho pronto para quem, como ele, acabou de receber o diagnóstico e está perdido, em choque. "É difícil, porque o conselho seria diferente a depender do país, da região e até da família da pessoa. Conheço pessoas que foram expulsas de suas famílias por causa disso." Independentemente disso, sua mensagem é para todos aqueles que vivem com HIV no século 21. "Sentir culpa ou ter vergonha é um esforço inútil. Não tenha pressa. Tenha paciência, aceite o que está aí, mas dê ao HIV o espaço que ele tem de ocupar na sua vida. Não deixe que ele decida que espaço vai ocupar — essa decisão é sua." "Procure conhecer sobre o vírus, porque o conhecimento dispersa o medo."
2021-12-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-55138218
sociedade
O que explica rivalidade entre irmãos da infância à vida adulta
A maioria dos irmãos briga e compete entre si durante a infância. Mas, para alguns, os conflitos nunca terminam. Roseanne conta que, quando era criança, enfrentava muitos conflitos com seus irmãos — que são gêmeos, quase três anos mais jovens que ela. "Eles eram uma grande dupla, funcionavam como uma equipe, e eram sempre dois contra uma", relembra Roseanne, que hoje tem 46 anos de idade, é mãe e mora em Nova Jersey, nos EUA. Parte desses conflitos permanece até hoje, segundo ela, e às vezes parece que nada mudou desde a infância. "Somos muito diferentes. Parece que vivemos em mundos diferentes e acho que isso é [a causa de] parte dos problemas que tenho agora com meus dois [filhos]." Roseanne tem um filho de 16 anos e uma filha de 14, que não se dão bem desde que estavam na creche. Ela conta que "as brigas são cansativas". "Há muito tempo evitamos fazer muitas coisas juntos em família porque não queremos ouvi-los brigando. Não conseguimos ficar sentados à mesa de jantar por 10 minutos sem que eles comecem a brigar. Um está sempre vigiando o outro, comentando e provocando o outro." É claro que irmãos brigam. Quase todas as pessoas que têm irmãos sabem que algum tipo de rivalidade é comum. "As crianças têm muito menos capacidade que os adultos de refletir sobre o que os está incomodando ou de reprimir os seus impulsos. Por isso, eles brigam muito, como todos sabemos", segundo o Dr. Raymond Raad, cofundador do centro de saúde mental RIVIA Mind, em Nova York, nos EUA. Em muitas famílias, as disputas entre os irmãos são educativas. Elas ensinam às crianças como lidar com os conflitos e como melhorar sua interação com os demais. Em alguns casos, a rivalidade diminui na idade adulta e se torna apenas motivo de risadas nas festas familiares. Mas, em outros casos, a rivalidade permanece. Uma pesquisa com 2 mil adultos no Reino Unido, realizada pela empresa de pesquisas OnePoll como parte de uma campanha publicitária da série de TV Succession (na qual um irmão tenta prejudicar o outro todo o tempo), concluiu que mais da metade dos participantes ainda se sentem competindo com seus irmãos. Segundo a pesquisa, 51% desses adultos relataram que sua relação competitiva com os irmãos é permanente — e que eles competem em tudo, desde a compra de casas até quem vai receber as reuniões de família. Alguns especialistas concordam que realmente esses conflitos se arrastam ao longo da vida. A rivalidade entre os irmãos pode não ser surpreendente durante a infância. Mas muitos — como Roseanne — ainda sentem o conflito, mesmo muito tempo depois de se mudarem da casa dos pais. Por que essa competição persiste - e como podemos superá-la? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Os seres humanos são voltados à comparação", segundo Shawn D. Whitehead, professor de desenvolvimento humano e estudos familiares da Universidade do Estado de Utah, nos EUA. "Os irmãos fornecem um ponto natural de comparação. Eles moram na sua casa, crescem junto com você e geralmente sua diferença de idade é de poucos anos. Eles estão no mesmo ambiente, na mesma casa e fornecem uma boa medida de comparação", segundo ele. É comum, por exemplo, que os irmãos comparem seu sucesso acadêmico ou esportivo, ou disputem quem é o filho "favorito", já que os irmãos muitas vezes têm experiências similares (como frequentar as mesmas escolas). E, quanto maior a proximidade de idade, mais intensa pode ser essa rivalidade. Essa inclinação natural para nos compararmos com outras pessoas pode ser uma fonte importante de competição entre os irmãos — especialmente, segundo Raad, porque nossos irmãos costumam ser as pessoas com quem passamos a maior parte do tempo durante a infância e, por isso, são as que pessoas que melhor nos conhecem. Pode parecer "natural" que irmãos que vivem no mesmo ambiente com as mesmas ocupações entrem em conflito. Mas irmãos que não competem nas mesmas atividades ainda conseguem encontrar outras formas de competir. Whitehead afirma que alguns irmãos tentam ser diferentes, em um esforço para reduzir a competição — especialmente se houver pouca diferença de idade. "Isso teoricamente reduziria a rivalidade", segundo ele, "mas as pesquisas são conflitantes". Isso coincide com a experiência de Roseanne: tanto para seus irmãos como para seus filhos, ela conta que ser diferente é uma grande fonte de conflito. A filha de Roseanne tem talentos esportivos, enquanto seu filho tem aptidão natural para os estudos. Roseanne conta que, como sua filha precisa estudar muito mais para conseguir boas notas, suas diferenças se tornaram um ponto constante de disputa entre os irmãos. "Muitos professores e até alguns familiares sempre comentam como meu filho é inteligente", afirma Roseanne. "Sei que é motivo de pressão para minha filha." É também comum que a competição se intensifique durante a adolescência, segundo Raad, pois "os pais e os ambientes escolares e esportivos criam a expectativa de que tudo é competição". Mas, mesmo à medida que os irmãos desenvolvem identidades individualizadas ao longo do tempo, as diferenças podem continuar a criar competição e conflitos - especialmente entre irmãos e irmãs que foram criados na mesma residência, ainda que acabem sendo muito diferentes entre si. Mesmo que seus caminhos sejam distintos, Raad afirma que "isso não significa que eles não irão brigar mais tarde ao longo da vida". Outra causa importante de rivalidade entre os irmãos é a noção de justiça — que, segundo Whitehead, tem profunda importância para as crianças. "Os pais são mais propensos a conceder privilégios para crianças mais jovens com menos idade que para os filhos mais velhos", relata ele. "Quando você diz para seu filho de 12 anos 'você pode ficar acordado até às 10 horas', talvez o filho de 10 anos também fique, porque [os pais] não querem ter que brigar." Quando o filho mais jovem recebe a permissão antes do seu irmão mais velho, "isso pode fazer com que o mais velho sinta que as decisões são injustas — e isso cria conflito", acrescenta Whitehead. E, às vezes, os irmãos não necessariamente superam o desejo de justiça. Na verdade, é ainda um dos fatores que levam a rivalidade entre irmãos para a idade adulta, segundo Raad. "Quando você observa as pessoas em conflito, parece ser implícito que, como eles vieram do mesmo lugar e da mesma família, é simplesmente justo que nossa vida seja similar e que fiquemos no mesmo nível", segundo ele. "Os problemas surgem quando um dos irmãos tem a sensação de que algo não é justo na vida deles - quando existe a percepção de que um deles é mais bonito, mais inteligente ou mais bem sucedido, o que dá ao outro a sensação de que a herança genética foi mal distribuída." Na idade adulta, a questão de justiça entre os irmãos aplica-se a temas como sucesso profissional, felicidade no casamento e outros, acrescenta Raad. "Com os amigos, você pode dizer 'veja como somos diferentes, nós viemos de lugares muito distintos'. Mas existe a ideia de que, como os irmãos têm os mesmos antecedentes familiares, a vida que eles constroem deveria ser similar." Mas um pouco de rivalidade entre irmãos adultos não é necessariamente tão ruim. Mais de um quarto dos participantes da pesquisa da OnePoll afirma que compete com seus irmãos e irmãs em termos de objetivos na carreira, enquanto a rivalidade motivou as carreiras de 15% dos participantes. Para cerca de 2 a cada 10 adultos, existe a forte crença de que a rivalidade entre os irmãos fez com que eles chegassem mais longe na vida, de forma que um pouco de rivalidade pode ser saudável e até natural. Mas não é inevitável que todos os grupos de irmãos concorram entre si pelo resto de suas vidas. Para muitos, as brigas diminuem quando eles se tornam adultos. Os especialistas concordam que não há uma razão específica para que a rivalidade entre irmãos desapareça em algumas famílias e persista em outras. "O fator mais determinante para o relacionamento entre irmãos adultos é a infância, mas existe também espaço para mudanças", segundo Whitehead. Para ele, a intensidade da rivalidade pode diminuir com a distância, de forma que os irmãos que acabam por morar em locais geograficamente distantes, ou que se veem pouco, naturalmente podem discutir com menos frequência. A quantidade de mudanças importantes enfrentadas por uma família também pode afetar as rivalidades, segundo Whitehead. "Vemos mudanças em épocas de grandes eventos. Alguém se casa, tem um filho ou perde um dos pais. Todos esses momentos podem ajudar a reorientar os relacionamentos." Quando grupos de irmãos passam por esses grandes momentos que os reúnem, é possível aparar as arestas. Mas, em última análise, Whitehead afirma que o fator determinante para que algumas famílias superem as rivalidades e outras não é a personalidade de cada um. "A relação entre irmãos é única e tem múltiplos aspectos", segundo ele. "Muitas vezes, existem tantas diferenças entre as famílias quanto existem entre eles." Mas os especialistas sugerem que os pais podem ajudar as crianças a reduzir a rivalidade natural, para evitar confrontos mais sérios ao longo da vida. Para Raad, "os pais devem ser modelos de habilidades sociais e solução de problemas. Você pode ter conflitos dentro de casa - o que é saudável - mas a capacidade de definir como abordar esses conflitos sem que eles se intensifiquem será de ajuda para seus filhos mais tarde." Incentivar os filhos a estabelecer relacionamentos próximos entre si até a idade adulta - mesmo que isso signifique discussões ocasionais — pode trazer mudanças significativas. "Esses relacionamentos realmente duram a vida inteira", segundo Whitehead. "Ao longo da vida adulta, nossos irmãos tornam-se ainda mais importantes para nós. Depois que os nossos pais se vão, eles são a última conexão que mantemos com a nossa família de origem. No final, os irmãos só têm a si mesmos." "Havia muita tensão entre eu e meus irmãos na nossa casa enquanto crescíamos", relembra Roseanne. "Mas, agora, estamos juntos nas tarefas familiares, nós conversamos e trocamos mensagens sobre a minha mãe, esse tipo de coisas, e hoje estou mais próxima de pelo menos um dos meus irmãos — embora tenha demorado grande parte da vida para conseguir isso."
2021-11-30
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-59470464
sociedade
Vida no metaverso: como a realidade virtual poderá afetar a percepção do mundo ao redor
"Talvez isso soe como ficção científica", diz Mark Zuckerberg. "Nos próximos cinco ou dez anos muitos de nós estaremos criando e habitando mundos tão detalhados e convincentes como esse aqui." As frases foram ditas em um evento surpresa no final de outubro em que o presidente do Facebook anunciou que sua companhia mudaria de nome para Meta e que sua prioridade agora seria o desenvolvimento de um metaverso. Segundo a apresentação, Zuckerberg planeja, para um futuro breve, óculos leves e finos de realidade virtual (e não o volumoso equipamento de hoje) como porta de entrada para mundos online onde seria possível estudar, ver filmes e shows, praticar exercícios físicos, encontrar amigos, conhecer pessoas e fazer compras. Os debates sobre as definições e as fronteiras entre os conceitos ainda estão abertos, mas a popularização do metaverso deve representar um passo seguinte à realidade virtual (também definida como a sensação de imersão viabilizada por óculos 3D e visão 360°) e a outras tecnologias, como a realidade aumentada (que une elementos virtuais e paisagens reais. Um exemplo é o game Pokémon Go). Plataformas de games como Fortnite e Roblox já são tipos de metaverso — e têm gerações mais novas imersas neles. A Microsoft também desenvolve o seu, o Mesh for Teams, focado no trabalho: um mundo virtual como ferramenta corporativa. O projeto de metaverso de Zuckerberg é mais amplo. "Nós acreditamos que o metaverso será o sucessor da internet móvel", declarou ele no evento de divulgação da Meta. As implicações no mundo, se essa previsão se concretizar, podem ter consideráveis repercussões dado que mais de 4 bilhões de pessoas no mundo se valem do celular para conexão a web e a apps. Atualmente o tempo gasto com telas já é bastante questionado. A empresa de análise App Annie diz que, nos últimos dois anos, o uso diário em aplicativos móveis subiu 45%, impulsionado pela pandemia — o líder no levantamento é o Brasil, com média de 5,4 horas por dia e 30% de aumento. O cientista Jeremy Bailenson, diretor-fundador do laboratório que estuda realidade virtual na Universidade Stanford, nos Estados Unidos, diz em seu livro de 2018 Experience on Demand (Experiência sob Demanda, em inglês) que o tempo passado com óculos "é psicologicamente muito mais poderoso do que qualquer mídia já inventada e se prepara para transformar dramaticamente as nossas vidas". Com outras formas de representação, quase sempre estamos cientes da artificialidade das sensações, afirma Bailenson. Na realidade virtual, as fronteiras começam a ficar um pouco confusas: os equipamentos de hoje já proporcionam uma imersão significativa — e o avanço da tecnologia nos próximos anos promete experiências mais poderosas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Nosso cérebro fica confuso o suficiente para entender esses sinais como realidade? Onde quer que você entre na discussão 'um meio pode influenciar o nosso comportamento?', eu posso te garantir: a realidade virtual influencia. Há muitas pesquisas, realizadas por décadas em meu laboratório e em outros lugares do mundo, que demonstram esses efeitos", analisa o cientista. "Para algumas pessoas, a ilusão é tão poderosa que o sistema límbico [região do cérebro envolvida com emoções e memória] delas entra em um estado de atividade intensa." Bailenson relata um tour dado a Mark Zuckerberg em 2014 em que demonstrou experimentos de seu laboratório e uma conversa na qual "alertou sobre os atuais custos sociais do vício generalizado em sedutores mundos de fantasia, pornografia e videogames e como esses custos serão multiplicados em uma mídia poderosamente imersiva". Poucas semanas depois do encontro, o Facebook, hoje Meta, anunciou a compra por US$ 2 bilhões de um fabricante de óculos de realidade virtual, a Oculus VR. Devemos ficar preocupados? Bailenson, que é um entusiasta das possibilidades da realidade virtual e a vê como instrumento para empatia, diz à BBC News Brasil que "a palavra 'cautela' é mais apropriada do que preocupação". "Nós devemos estar vigilantes, ler os termos de privacidade [de um produto como o metaverso], não usando a realidade virtual cegamente para todas as atividades e observando algumas regras de segurança." Uma de suas recomendações é limitar a duração de imersão com os óculos a 30 minutos. Uso excessivo causa enjoo e fadiga ocular. Associações de oftalmologia no Reino Unido e nos EUA, no entanto, ainda não encontraram evidências de danos permanentes aos olhos. Mas pedem estudos de longo prazo. Em 2014, um psicólogo da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, passou 24 horas em uma sala de realidade virtual em condições monitoradas e relatou que houve desorientação "sobre estar em um ambiente virtual ou no mundo real" e confusão a respeito de "certos artefatos e eventos entre os dois mundos". Três anos depois, uma dupla estabeleceu um recorde no Guinness ao assistir a 50 horas seguidas de conteúdo em realidade virtual. Um dos participantes, Alejandro Fragoso, relatou que se sentiu "absolutamente horrível" e "desconectado do mundo real e da passagem do tempo". Maratonas como esses experimentos são exceção, mas o plano descrito por Zuckerberg leva diversas esferas da vida para dentro do metaverso, o que ocuparia parte significativa das 24 horas do dia. A Meta enviou um comunicado dizendo que "o metaverso ainda está um pouco distante e não será construído da noite para o dia". "A Meta vai dialogar com legisladores, especialistas, acadêmicos, sociedade civil e parceiros da indústria para ajudar a dar vida ao metaverso, que funcionará como uma combinação híbrida das experiências sociais online atuais, às vezes expandidas em três dimensões ou se projetando no mundo físico. Não é necessariamente sobre passar mais tempo online, mas tornar mais significativo o tempo que você está online". Também declarou que "o metaverso é a próxima evolução em uma longa jornada de tecnologias sociais. A Meta não construirá, não será a dona e nem poderá realizar sozinha o metaverso. A construção do metaverso será similar ao processo que levou à criação da internet, e não ao lançamento de um app individual". Douglas Rushkoff, estudioso da cultura digital e autor do livro Team Human (Time Humano, em tradução livre), afirma à BBC News Brasil que "há uma ideia de que gostaríamos de trabalhar, ter entretenimento, exercícios e atividade criativa nesses espaços virtuais ou de realidade aumentada. Isso pode ter sido bom durante a pandemia de covid, mas há muitas desvantagens que isso se torne permanente". "Acho que as pessoas se comunicam umas com as outras de maneiras sutis. O modo como trabalhamos e como fazemos amor é mais complicada do que essas simulações podem proporcionar", diz. Alvaro Machado Dias, neurocientista especializado em novas tecnologias e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), entende que "a gente já vem de uma fase de diluição entre o online e o offline". "Existe um ponto em que não há mais capacidade intencional de separar esses mundos. A gente vive num ambiente em que tecnologia digital é muito parte da nossa cultura", diz. Ele, no entanto, considera que o modelo de negócios da Meta pode representar uma barreira para sua popularização. "Óculos são desconfortáveis e dão vertigem. Não acho que as saídas futuras mais fortes serão com o uso massificado de óculos". Ele vê mais chances de sucesso no conceito de realidade aumentada da Disney, que envolverá tanto os parques quanto sua plataforma de streaming, e no projeto da Microsoft de criar um metaverso corporativo. Segundo Machado Dias, "há muito tempo o Facebook vem buscando caminhos para ter domínio sobre a plataforma em que seu software é usado". A decisão da Apple de limitar o rastreamento de informações do usuário por aplicativos do iPhone representou problemas para a forma como o Facebook conseguia seu faturamento — propagandas definidas por algoritmo. O iPhone é majoritário no mercado norte-americano e atrai clientes de poder aquisitivo maior. "A solução ideal, então, seria ter um novo mundo como plataforma, independente do celular. O modelo de metaverso do Facebook responde a esse desafio de mercado." Há um outro obstáculo: a reputação da empresa. "Acho que as pessoas entendem que o Facebook está desaparecendo em muitas maneiras, particularmente quando veem desvantagens e más intenções. [O nome] 'Meta' é uma maneira de a empresa se reposicionar em uma indústria diferente. Mas há algo de desespero nisso." Mas, para Rushkoff, "as pessoas podem ser estúpidas, especialmente quando alguém mostra a elas algo bonito. Ninguém confia em Zuckerberg, mas ninguém sente que tem muito a perder". No últimos anos, ex-funcionários do Facebook têm vindo a público com relatos de que a companhia não toma atitudes sobre problemas em suas redes sociais, como a influência prejudicial na saúde mental de adolescentes, o papel na propagação de fake news e o vazamento de dados pessoais de usuários. Em diversas oportunidades, Zuckerberg pediu desculpas sobre os fatos apontados e disse que a companhia precisava melhorar. Bailenson, do laboratório de realidade virtual na Universidade Stanford, quando questionado sobre a apresentação do metaverso feita por Zuckerberg e se a impressão sobre o criador do Facebook mudou desde o encontro em 2014, afirmou que "continua a conversar com líderes de corporações e governos na tentativa de guiá-los sobre as provações e tribulações da realidade virtual".
2021-11-28
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59438539
sociedade
Brancos usam 'humor' e 'amigo negro' para perpetuar discriminação, diz autor de 'Racismo Recreativo'
Quando era criança nos anos 1980, Adilson José Moreira terminava o fim de semana angustiado. Um dos únicos negros da escola, ele sabia que passaria a segunda-feira na escola ouvindo piadas racistas que os colegas reproduziam de programas de humor na TV, como Os Trapalhões, que era transmitido aos domingos na época. Mussum — personagem negro — era retratado como cachaceiro, malandro, preguiçoso. "Essas crianças não vinham só contar piada, elas também não permitiam que eu participasse de qualquer atividade com elas. Nunca me convidavam para ir para a casa delas, não me escolhiam para trabalhos de grupo ou times de futebol", diz Moreira, que é doutor em Direito Constitucional Comparado pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos. "O problema não é só a piada, é como o conteúdo da piada determina o tratamento das pessoas negras em todos os contextos. As piadas expressavam um estereótipo do negro, e esse estereótipo me colocava na posição de alguém que não poderia ter respeito social." Enquanto crescia, Moreira observava como as pessoas brancas tentavam se eximir de responsabilidades quando eram acusadas de racismo. Usavam o argumento de que se tratava de uma brincadeira e citavam o fato de terem "amigos" ou funcionários negros como "disfarce" para o racismo que exerciam no dia-a-dia. Profundamente incomodado com isso, Moreira decidiu se debruçar sobre o tema e escreveu o livro Racismo Recreativo (Ed. Feminismos Plurais), no qual cunhou o conceito que dá nome à obra. Ele analisou centenas de decisões judiciais que terminaram na absolvição de pessoas brancas acusadas de injúria racial. Muitas justificavam ataques verbais racistas como sendo "brincadeira". E alguns usavam a suposta amizade ou a relação cordial com negros no cotidiano como "álibi". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O humor racista é uma forma com que pessoas brancas e instituições controladas por pessoas brancas expressam condescendência e ódio por minorias raciais, para reproduzir a ideia de que só pessoas brancas podem atuar de forma competente no espaço público", explica Moreira em entrevista à BBC News Brasil. Moreira, que também é professor da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie, em São Paulo, destaca que grande parte das piadas ou comentários racistas expressa a ideia estereotipada do negro como sendo violento, incapaz ou malandro; do indígena como preguiçoso; e do asiático como pouco viril. E a contínua propagação dessa imagem estigmatizada tem efeitos práticos na forma como eles são tratados pela sociedade. "O objetivo do racismo recreativo é a manutenção da ideia de supremacia branca. Há um caráter estratégico. As piadas acontecem com frequência no espaço de trabalho e em situações específicas, como quando há possibilidade de promoção e pessoas negras, asiáticas ou indígenas são candidatas", destaca. Confira os principais trechos da entrevista: BBC News Brasil - Qual a definição de racismo recreativo? Adilson José Moreira - O humor racista é uma forma com que pessoas brancas e instituições controladas por pessoas brancas expressam condescendência e ódio por minorias raciais, para reproduzir a ideia de que só pessoas brancas podem atuar de forma competente no espaço público. É um meio dessas pessoas ainda manterem uma visão, uma imagem positiva de si mesmos. O racismo recreativo tem sido usado no Brasil e em outros países para reproduzir a ideia de que minorias raciais não são atores sociais competentes. BBC News Brasil - De que maneira o humor racista se manifesta no Brasil? Moreira - De diferentes formas e em diferentes espaços sociais. Ele está presente, por exemplo, em programas humorísticos e aparece por meio de representações estereotipadas de minorias raciais. O humor é uma mensagem. E, portanto, ele faz sentido dentro de um contexto social específico. Um dos objetivos do humor racista é a reprodução de estereótipos pejorativos sobre membros de grupos raciais. Por exemplo, um dos personagens humorísticos mais famosos da televisão brasileira é o Mussum, dos Trapalhões. Quais eram as características daquele personagem? Primeiro, o fato de ele ser um cachaceiro. Em 90% dos quadros nos quais aparecia, ele queria beber ou ter acesso a bebida. Nisso você tem a reprodução da ideia do homem negro como cachaceiro e malandro. Também havia a representação dele como pessoa que não poderia ser objeto de apreciação estética ou que não poderia ser parceiro sexual ou amoroso. Em alguns episódios, apareciam modelos famosas, mulheres brancas, como Xuxa e Luiza Brunet, que morriam de amores pelo Mussum e João Macalé, outro personagem negro. E o elemento humorístico era exatamente a disparidade entre essas mulheres que representam um padrão ariano de beleza e duas pessoas vistas como feias, que são o oposto. O pressuposto era: como uma pessoa pode ser um parceiro sexual aceitável para essas mulheres? BBC News Brasil - No seu livro Racismo Recreativo, o senhor analisa processos penais sobre racismo. Como o humor racista afeta decisões nos tribunais? Moreira - Eu desenvolvi essa teoria com base na análise desses personagens de televisão e também de centenas de decisões judicias sobre injúria racial, na qual a injúria teve base no humor racista. E é importante analisar o conteúdo deste humor racista. Quais são os elementos mais comuns nesse humor, na representação dos negros? É o negro como malandro, como cachaceiro, como pessoa que não gosta de trabalhar. Há um caso, que eu analiso no livro, de um banco onde havia vários negros no departamento de informática. Os demais funcionários passaram a se referir a esse departamento como "a senzala". "Ah, vou buscar um relatório na senzala. Vou falar com o pessoal da senzala". O que motivou o processo judicial foi a demanda de determinados funcionários desse departamento de serem considerados para cargos de chefia. O chefe passou a dizer: "veja só, o pessoal da senzala agora quer assumir cargo de chefia". Então, os estereótipos raciais, por meio do humor, justificam as disparidades. A senzala era onde as pessoas escravizadas, que não eram vistas nem mesmo como ser humano, ficavam. Então, quando você traz essa figura para o atual contexto, você está dizendo: aqueles indivíduos são inerentemente inferiores, não são atores sociais competentes e não podem demandar nem o mesmo nível de respeitabilidade social nem as mesmas oportunidades das pessoas brancas. BBC News Brasil - A piada no ambiente de trabalho é usada, portanto, como instrumento para impedir o acesso de pessoas negras às mesmas oportunidades de crescimento que as pessoas brancas? Moreira - Um dos elementos centrais da minha teoria do racismo recreativo é seu caráter estratégico. As piadas acontecem com frequência no espaço de trabalho e em situações específicas, como quando há possibilidade de promoção e pessoas negras ou asiáticas ou indígenas são candidatas. Por exemplo, a piada sobre ausência de virilidade do homem asiático. Quando essas pessoas estão contando essas piadas, elas não estão falando sobre o tamanho do pênis do homem asiático, estão falando que ele não é suficientemente assertivo, que não tem o mesmo nível de comando, de agressividade e, portanto, ele é incapaz de exercer um cargo de gerente. Isso é uma ação coletiva para tornar o ambiente de trabalho insustentável, para forçar a demissão da pessoa negra, para ela ser substituída por uma pessoa branca. O objetivo do racismo recreativo é a manutenção da supremacia branca. BBC News Brasil - De que maneira o humor racista se conecta com o mito da democracia racial, pelo qual o Brasil seria um país miscigenado e sem racismo? Moreira - O humor racista está diretamente ligado à narrativa brasileira da democracia racial. 99% de todas as pessoas brancas acusadas de racismo utilizam o mesmo argumento: a ideia de que eles têm um amigo negro, uma empregada negra, um avô negro. O humor racista sempre foi elemento importante de exclusão social em diferentes partes do mundo: foi importante na exclusão dos judeus na Alemanha nazista e teve papel importante no regime de segregação racial dos EUA. Agora, aqui no Brasil, realmente há o uso estratégico do humor racista para preservar a ideia de cordialidade. 98% das pessoas acusadas de racismo levam testemunhas negras para dizer que não são racistas. Há um caso patético de um senhor branco acusado de injúria racial, e isso chegou até ao Superior Tribunal de Justiça em que ele levou o porteiro como testemunha para que dissesse ao tribunal que ele dava bom dia e boa noite todos os dias ao funcionário. Ou seja, se ele cumprimentava o porteiro, ele não poderia ser racista. É a ideia de inocência por associação. Se eu tenho interações sociais com pessoas negras, se tenho amigo negro, se minha babá é negra, eu não posso ser racista. Então, há duas coisas, o uso estratégico do humor racista e o uso estratégico na nossa cultura da cordialidade racial. E isso cola para muitos juízes. O juiz branco vê uma pessoa branca e estabelece relações de identificação com essas pessoas brancas. Atualmente, 83% das pessoas do Judiciário são pessoas brancas e heterossexuais que não têm nenhum contato com negros. Então, o juiz pensa, se eu mandar esse cara para a cadeia, isso vai complicar a vida profissional dele. Muitos juízes utilizam esse argumento de que veio uma testemunha que disse que a pessoa interage com negros, então o ataque racista teria sido só "um comentário infeliz". Essa é uma das frases mais usadas em decisão judicial sobre injúria racial. BBC News Brasil - Então, as pessoas usam o humor e a suposta amizade com pessoas negras como disfarce para poder perpetuar o seu racismo? Moreira - Exatamente. É uma estratégia para manter uma imagem social positiva. No lugar de dizer "eu odeio, desprezo negros", eu faço uma piada que me permite expressar a mesma coisa. Quando chamo negro de macaco, eu estou dizendo que não o reconheço como pessoa humana. BBC News Brasil - Uma fala comum entre quem faz piada racista é dizer que não há 'intenção' de ofender. Como seu livro responde a esse argumento? Moreira - Sim, um dos principais argumentos de quem comete crime de injúria racial é o da ausência de intenção, ausência subjetiva do tipo penal. A pessoa não queria ofender, queria simplesmente fazer graça. Há um caso de uma mulher negra que foi a um supermercado e quando ela estava pagando a mercadoria uma mulher branca se aproximou e disse: "você deve ter muito macaco em casa, você está comprando tantas bananas". A mulher negra chamou a polícia, a mulher branca foi detida e processada. Mas, quando chegou ao tribunal de justiça, eles disseram, a intenção está ausente. Eles ainda deram um conselho a essa mulher negra, de que ela não deveria ser tão sensível se quisesse sobreviver socialmente. O meu livro procura responder exatamente a esse problema da ausência subjetiva de tipo penal. Eu recorro a teorias psicológicas do humor. E uma dessas teorias é a Teoria da Superioridade, que começou com Aristóteles. Segundo essa teoria, a malícia é elemento central do humor. Nós rimos das pessoas que achamos inferiores, rimos das situações em que essas pessoas se encontram e achamos que estão em situações ridículas porque consideramos que elas são inferiores. O objetivo fundamental do humor hostil é a gratificação psicológica. Quando rio de piadas racistas, estou afirmando meu sentimento de superioridade em relação a esse grupo. Quando pessoas brancas contam piadas racistas, elas não estão procurando, como dizem várias decisões judiciais, buscar um ambiente de descontração. Essas pessoas estão procurando obter gratificação psicológica com a prática do racismo. Como não podem dizer abertamente que odeiam ou desprezam negros, eles utilizam o humor, porque o humor é socialmente aceito. BBC News Brasil - Quando na sua vida pessoal você começou a ter consciência dos impactos do humor racista e ser alvo disso? Moreira - Desde a infância, eu me sentia profundamente incomodado com duas coisas: primeiro, com a completa ausência de pessoas negras nos meios de comunicação, com a ausência de modelos positivos de pessoas negras na televisão. Para muitas pessoas, a televisão é a única referência de mundo e os meios de comunicação dizem: pessoas brancas são naturalmente superiores e negras, inferiores. Isso não é algo dito abertamente, como no caso de programas humorísticos como Os Trapalhões. Isso é dito pela ausência. Como foi boa parte da minha infância e adolescência? Eu chegava na segunda na escola e vinha aquele tanto de crianças brancas reproduzindo as piadas que tinham ouvido no domingo. O problema não é só a piada, é como o conteúdo da piada determina o tratamento das pessoas negras em todos os contextos. Então, eles não vinham me contar piada, eles não permitiam que eu participasse de qualquer atividade com eles. Nunca me convidavam para ir para a casa deles, não me escolhiam para trabalhos de grupo, times de futebol. Então, quando as pessoas falam que algo é mimimi, é importante saber que as pessoas atuam a partir das ideias que elas têm na cabeça. Elas não discriminam as outras e a polícia não vai às ruas com o propósito específico de matar negros, isso surge em função da reprodução dos estereótipos raciais negativos transmitidos na televisão e no cotidiano, por meio de piadas racistas. São os programas de televisão, além da própria cultura corporativa da polícia, que fazem os policiais acharem que podem matar pessoas negras sem maiores consequências. BBC News Brasil - O que pessoas brancas devem fazer para contribuir para o combate ao racismo? Moreira - Elas precisam reagir. Elas realmente precisam reagir. Quando ouvir uma piada racista, primeiro, não é para rir da piada. Depois, vou deixar claro para a pessoa que esse comentário é inapropriado. E é importante explicar para as pessoas as consequências da reprodução desses estereótipos. Então, dizer que quando você reproduz essa piada, você está propagando a ideia de que negros são inferiores. E ao fazer isso você reproduz uma cultura racista. Então, quando uma pessoa negra vai procurar emprego, aquela pessoa branca que está entrevistando, está com aquele estereótipo ativamente na cabeça dela, determinando a competência da pessoa negra em exercer aquela função. BBC News Brasil - Como responder ao argumento cada vez mais utilizado nos dias de hoje de que tudo é mimimi, que, por exemplo, trabalhar pelo fim de piadas machistas e racistas seria mimimi? Moreira - É muito fácil desconstruir o argumento do mimimi. É mesmo, é mimimi? Então me conta uma coisa: você gostaria de ser tratado pela polícia da mesma forma com que negros são tratados pela polícia? Você gostaria de ser tratado como pessoa negra no mercado de trabalho? Nenhuma dessas pessoas vai dar uma resposta positiva a essas perguntas. BBC News Brasil - Que mudanças o senhor observa da sua infância para hoje em relação à consciência do Brasil sobre a existência do racismo no país? Moreira - Minha infância foi durante a ditadura militar. Era um regime comprometido com a imagem do Brasil como uma democracia racial. E, dentro daquele regime, grupos sociais foram desmantelados e os militares sempre viram o movimento negro como ameaça, como perigoso. Houve uma política de reprimir qualquer mobilização em torno da questão da raça. A ditadura acabou, o movimento negro se rearticulou, tentou persuadir administrações sobre a relevância da pauta da justiça racial. Muitas responderam positivamente. Nos anos 2000, começam programas de ações afirmativas, negros começam a chegar às instituições e começam a produzir conhecimento. Hoje estamos num momento em que nunca se produziu tanta coisa sobre os diferentes sistemas de reprodução do racismo. BBC News Brasil - Mas não estaria havendo, ao mesmo tempo, uma reação racista e ultraconservadora, nos últimos anos, aos avanços no debate sobre racismo? Moreira - As últimas eleições presidenciais são um exemplo disso. O atual ocupante da Presidência disse repetidas vezes durante a campanha que, se ele fosse eleito, negros e indígenas não teriam direitos adicionais. E ele foi eleito em grande parte por causa disso, pela defesa de uma política racial de exclusão de negros e indígenas de qualquer forma de cidadania. E isso era exatamente o que parte da população branca, especialmente da classe média branca, queria ouvir: 'temos um candidato comprometido com a manutenção do nosso status social privilegiado'. Agora, ao mesmo tempo em que temos essa reação conservadora de parte das elites brancas aferradas ao sistema de privilégios, temos a iniciativa privada implementando programas de ações afirmativas. Todos os grandes escritórios de advocacia hoje estão se preocupando com promoção da igualdade racial. Muitos fazem isso por pressão dos clientes internacionais, mas alguns tiveram realmente iniciativa própria de refletir sobre a falta de sentido em ter um escritório só com sócios homens, brancos, heterossexuais, de classe alta. Pensaram: somos 5% da população brasileira e, portanto, não tem sentido ocuparmos todas as posições de comando. BBC News Brasil - O que a sociedade brasileira ainda não entende sobre racismo e precisaria entender para uma mudança efetiva? Moreira - A sociedade brasileira ainda não entende que o racismo não é apenas expressão pura de desprezo e ódio. É um sistema de dominação social que tem como propósito garantir vantagens competitivas para pessoas brancas. O racismo e o racismo recreativo têm o objetivo de produzir diferenciações de status cultural e material entre pessoas brancas e não brancas. O racismo se expressa para impedir que um grupo tenha o mesmo nível de respeitabilidade que o grupo dominante. No dia em que a sociedade ficar convencida de que pessoas negras podem desempenhar as mesmas funções sociais que pessoas brancas, brancos vão deixar de ter acesso exclusivo a certas funções sociais simplesmente por ser branco. E muitos não querem perder esse privilégio.
2021-11-27
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59422927
sociedade
O que é demissexualidade, orientação sexual que ainda intriga muita gente
Em julho deste ano, quando Michaela Kennedy-Cuomo - filha do então governador de Nova York, nos Estados Unidos, Andrew Cuomo - declarou-se "demissexual", muitos desdenharam dela. Poucos reconheceram a demissexualidade, a falta de atração sexual por outras pessoas sem forte conexão emocional, como algo "real". Mas, embora a demissexualidade não seja amplamente conhecida, trata-se de uma orientação sexual como qualquer outra, que se aplica a pessoas de todas as partes do mundo. Ela se enquadra no espectro da assexualidade e é diferente de simplesmente esperar que se forme uma ligação profunda antes de ter sexo com alguém. Na verdade, ela se assemelha mais à experiência de ser assexual até que se forme esse tipo de conexão, quando a atração sexual se estenderá apenas para aquela pessoa. Já para os alossexuais (as pessoas que não se encontram no espectro assexual), esperar até que se forme uma conexão profunda para ter sexo é mais uma questão de preferência e menos de necessidade para que se desenvolva o desejo sexual. O anúncio de Kennedy-Cuomo teve efeitos positivos, segundo Kayla Kaszyca, demissexual cocriadora do podcast Sounds Fake But Okay ("Parece mentira, mas tudo bem", em tradução livre), no qual ela e sua colega assexual e arromântica Sarah Costello discutem o amor, relacionamentos e sexualidade no espectro assexual. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em alguns casos, Kaszyca afirma que a declaração de Kennedy-Cuomo levantou a questão da demissexualidade, incentivando "mais diálogo sobre o assunto". Por outro lado, a ampliação das discussões também trouxe consigo detratores e espalhou desinformação. "Acho que a palavra [demissexualidade] definitivamente está mais presente e conhecida, mas a definição adequada ainda poderá não estar clara para muitas pessoas", afirma Kaszyca, que tem 24 anos de idade. Algumas pessoas, por exemplo, ainda negam a demissexualidade, insistindo que é "normal" não sentir atração sexual por alguém até que se forme uma conexão emocional mais profunda com essa pessoa. Por isso, Kaszyca afirma que "é preciso começar a desfazer o mito". As pessoas que se identificam como demissexuais, como Kaszyca e outros que compartilham conteúdos relacionados à sua orientação, estão trabalhando ativamente para esclarecer essa definição. É uma tarefa muito delicada discutir algo que não tinha um nome até pouco tempo atrás e cuja definição muitas vezes confunde as pessoas. Mas, durante os últimos anos, as discussões sobre demissexualidade proliferaram-se nos grupos de Facebook, postagens no Instagram e entre as organizações dedicadas ao espectro assexual em todo o mundo. As pessoas frequentemente rastreiam a origem do termo demissexual até 2006, em uma postagem no fórum Visibilidade Assexual & Rede de Educação (Aven, da sigla em inglês). "Acho que é uma palavra que surgiu principalmente no site Aven e entre ativistas assexuais", afirma Anthony Bogaert, pesquisador da sexualidade humana e professor da Universidade Brock, em Ontário, no Canadá, que escreveu diversos estudos sobre assexualidade. Naquela época, as pessoas do site Aven estavam descobrindo como poderia ser diverso o espectro assexual. Novos termos começaram a surgir à medida que as pessoas que haviam se identificado anteriormente como assexuais observavam circunstâncias específicas nas quais elas poderiam sentir atração sexual. "Existe uma tradição de permitir que pessoas com diferentes tipos de identificação e muita variabilidade entrem no site Aven", afirma Bogaert. E essas pessoas ajudaram a fazer avançar as discussões sobre assexualidade, identificando diversos aspectos do espectro assexual. Ao fazê-lo, elas forneceram informações que não estavam disponíveis em outros lugares na internet. Mas a assexualidade era - e ainda é - mais amplamente discutida que a demissexualidade. Isso ocorre, em parte, porque a primeira é conceitualizada mais facilmente pelas pessoas que não são assexuais. As pessoas assexuais "experimentam pouca ou nenhuma atração sexual", segundo Kaszyca. "É um rótulo fácil de ser usado". Mas acrescentar a isso um adendo como "...exceto quando desenvolvem profunda conexão emocional" às vezes pode deixar os alossexuais coçando a cabeça. Elle Rose, uma jovem com 28 anos de Indiana, nos Estados Unidos, começou a identificar-se como demissexual depois de descrever sua sexualidade para uma amiga, alguns anos atrás. "Ela olhou para mim e disse: 'Elle, você está descrevendo a demissexualidade'", conta Rose. "Eu ainda demorei muito para aceitar." Temendo as complicações para sua vida amorosa se fosse abertamente demissexual, Rose frequentemente se descrevia como "pansexual", omitindo a identidade demissexual. Rose atribui as posturas de negação da demissexualidade nos Estados Unidos, em parte, à "cultura puritana", na qual as mulheres, por um lado, são altamente sexualizadas nos meios de comunicação, mas também se espera que elas se "resguardem" para a pessoa certa (ou para o casamento, particularmente em ambientes religiosos). Conceitualmente, essa ideia se alinha claramente à abstinência sexual até que se forme uma ligação profunda com um parceiro. Mas ainda é, em último caso, uma preferência, com a qual os demissexuais não se identificam. Essa falta de compreensão, muitas vezes, gera solidão. Cairo Kennedy, uma jovem com 33 anos de idade de Saskatchewan, no Canadá, cresceu "sem experimentar atração sexual da mesma forma que as minhas colegas e você se sente 'meio que com defeito'", conta ela. "Isso se tornou um grande segredo e fonte de vergonha." Quando ela descobriu, apenas alguns anos atrás, que havia um nome para sua orientação sexual, se sentiu "bem, mas na época não havia informação" - ou pelo menos ninguém falava sobre a demissexualidade do ponto de vista de uma pessoa com experiência pessoal. Havia postagens suficientes no Aven para que ela lesse e pensasse "veja, esta sou eu", mas não tantas para que ela dissesse "veja, existem muitas pessoas como nós". Kennedy decidiu preencher essa lacuna, lançando um blog sobre o "estilo de vida demissexual". Por meio do blog, muitos outros demissexuais entraram em contato com ela - desde adolescentes até pessoas com mais de 50 anos de idade, que vivem principalmente nos Estados Unidos e na Europa. "Fiquei muito surpresa em saber quantas pessoas pareciam se identificar (como demissexuais)", conta ela. "Acho que o termo é mais popular devido às redes sociais", afirma Janet Brito, terapeuta especializada em sexualidade humana residente no Havaí. Ela ouviu pela primeira vez o termo demissexualidade em 2014, durante os estudos para seu pós-doutorado, na Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, "muito embora ele descreva [uma orientação sexual] conhecida há muito tempo". Embora Brito reconheça que a demissexualidade está presente em todas as faixas etárias, seus clientes abertamente demissexuais costumam ter pouco mais de 20 anos de idade. "Eles são mais expostos às redes sociais, [onde] é mais aceitável falar sobre esse espectro", segundo ela. Essa exposição cria validação. "As redes sociais abrem as portas para muitas outras vozes que não teriam se exposto no passado", acrescenta Brito. "[As pessoas] finalmente podem se ver representadas." Com 30 anos de idade, Klaus Roberts, que mora nos arredores de Helsinque, na Finlândia, agradece à internet por ajudá-lo a dar um nome à sua orientação cerca de cinco anos atrás. "A Finlândia está um pouco atrasada em muitos desses assuntos porque somos um país relativamente pequeno", segundo ele. Roberts havia se identificado como assexual, mas conhecer pessoas em comunidades LGBTQIAP+ online internacionais ajudou-o a compreender que demissexual o descrevia melhor. "As pessoas que sabem alguma coisa sobre esses termos têm mais facilidade para me compreender quando falo dessa forma." Quando as escolas convencionais deixam de fornecer informações sobre a diversidade de orientações sexuais, essas vozes online tornam-se fundamentais para a educação. Kaszyca e sua colega Sarah Costello começaram seu podcast quando eram estudantes na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, e apenas os seus amigos ouviam para apoiá-las. Hoje, seu alcance se expandiu para outros países de língua inglesa e para a Europa. Kaszyca estima que Sounds Fake But Okay agora atinge 7 mil ouvintes por semana. Ela acrescenta que seus ouvintes não são somente as pessoas do espectro assexual - seus pais, parceiros e amigos também ouvem o podcast para aprender. "O nosso episódio mais ouvido chama-se 'Assexualidade 101'", segundo Kaszyca. "As pessoas contam que o enviaram para seus amigos ou parentes depois que ouviram, para ajudar a educá-los e... facilitar o processo de educação." Essa educação também ajuda os demissexuais a navegar por outras partes da sociedade, como os encontros. Kaszyca afirma, por exemplo, que os aplicativos facilitaram os encontros para os demissexuais porque você pode incluir sua orientação no seu perfil. Isso evita conversas que, de outra forma, seriam densas para um primeiro encontro. "Espera-se que o primeiro encontro seja casual", afirma ela, "e aí você diz: 'então, vamos ter uma conversa profunda sobre a minha identidade e vou provavelmente precisar ensinar a você o que é a demissexualidade, já que ela é tão pouco conhecida." De forma geral, falar e aprender sobre a "variabilidade existente na comunidade assexual mais ampla", segundo Bogaert, é fundamental para evitar a alienação das minorias sexuais. Mas também é fundamental porque "nos permite compreender melhor a natureza da sexualidade" como um todo.
2021-11-21
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-59305497
sociedade
É justo que quem recusou vacina contra covid seja impedido de trabalhar?
Os Estados Unidos podem ter desempenhado um papel fundamental no desenvolvimento da primeira vacina contra a covid-19, mas agora estão no meio de um grande dilema sobre seu uso. Vacinas devem ser obrigatórias? Desde ser impedido de frequentar restaurantes e eventos esportivos a perder seus empregos, os comprovantes de vacinação se tornaram um grande problema, especialmente nas últimas semanas em Nova York. E o que acontece lá pode afetar o resto do mundo, à medida que as taxas de vacinação aumentam e os países se perguntam a melhor forma de continuar o combate à pandemia. "Não sou totalmente contra vacinas", diz Crisleidy Castillo. "Só estou dizendo que não quero tomar agora porque estou amamentando." A professora de educação especial, de 27 anos, trabalhava em uma escola na cidade de Nova York até algumas semanas atrás. Ela foi posta em licença por tempo indeterminado, junto com milhares de outros funcionários do Departamento de Educação que não tinham recebido no mínimo uma dose de vacina contra a covid. Desde então, essa ordem foi estendida a todos os funcionários municipais, que, se não tomarem as duas doses, perdem seus empregos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Só não acho que seja seguro porque não há pesquisas suficientes concluídas", acrescenta Crisleidy, embora as vacinas contra a covid aprovadas nos Estados Unidos tenham passado por testes médicos e também tenham sido aprovadas em dezenas de outros países. Ela agora está sem salário e diz que, caso aceite uma oferta de emprego de uma escola particular (para voltar a trabalhar), terá um corte de 60% do salário e perderá o seguro saúde. Crisleidy solicitou um pedido de exceção da vacina, mas a solicitação inicial e seu recurso foram rejeitados. As isenções só são permitidas se forem listadas pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC). O órgão recomenda que mães que amamentam sejam vacinadas e diz que não há provas médicas de que isso acarrete qualquer risco. No entanto, Crisleidy ainda não quer tomar a vacina: "Estou basicamente sendo punida apenas por uma decisão pessoal que tomei. Não porque estou sendo egoísta, mas porque quero proteger minha filha." O Departamento de Educação afirma: "as vacinas são nossa ferramenta mais forte na luta contra a covid-19. Essa decisão está no lado certo da lei e protegerá nossos alunos e funcionários." Em um caso legal sobre o mandato da vacina, os advogados do Departamento de Educação estabeleceram a posição da cidade de que as pessoas não têm o direito de "ensinar as crianças sem estarem vacinadas contra uma doença infecciosa perigosa. O mandato de vacinação não é apenas uma medida racional de saúde pública, mas crucial". Quase 10 mil trabalhadores em Nova York se encontram em uma situação semelhante à de Crisleidy. Mas as autoridades municipais dizem que houve um grande salto no número de trabalhadores vacinados, após a introdução dos mandatos. O número de socorristas que tomaram vacina saltou de 74% para 87%, depois da mudança da regra, enquanto no Corpo de Bombeiros passou de 64% para 77%. Apesar das advertências dos sindicatos de que poderia haver falta de trabalhadores, já que pessoas não vacinadas foram postas em licença por tempo indeterminado, o prefeito de Nova York, Bill de Blasio, disse que não houve interrupção dos serviços da cidade. "Esta é a minha mensagem: cada prefeito da América, cada governador da América, cada CEO de uma empresa na América, imponha um mandato de vacina e você deixará todos mais seguros e nos ajudará a acabar com a era da covid de uma vez por todas". Um dos opositores dessa ideia é Douglas Kariman. Ele foi afetado pelo mandato de vacina estabelecido pelas autoridades do Estado de Nova York para todos os trabalhadores da área da saúde. "Não sou um desses antivaxxers, não sou contra todas as vacinas que existem", diz ele. "Não sou uma dessas pessoas que dizem que o vírus é falso, eu já vi e tenho visto as mortes." Douglas mora em Lancaster, no oeste do Estado de Nova York, e trabalha como enfermeiro em uma unidade de terapia intensiva local. O trabalho dele está por um fio, enquanto os juízes consideram uma ação judicial movida por colegas médicos que solicitam que as autoridades considerem isenções religiosas para o mandato de vacinas em todo o Estado para médicos. "Por mais que digam que estudaram as vacinas, e acredito neles, não há estudos de longo prazo sobre elas." Além de sua preocupação por as vacinas serem muito recentes, Douglas, cristão batista, também apresenta uma objeção religiosa aos imunizantes, com base no uso de células fetais em seu desenvolvimento. As células foram derivadas de fetos abortados décadas atrás. No entanto, nenhuma célula fetal está presente em nenhuma das vacinas e muitos grandes grupos religiosos que se opõem ao aborto, como a Igreja Católica, ainda recomendam tomar a vacina. Se o processo legal para obter uma isenção religiosa fracassar, é provável que Douglas não consiga mais trabalhar no Estado de Nova York. "Eu tenho uma esposa com deficiência. Ela não trabalha, então é tudo por minha conta." "Se eu perder meu trabalho, posso perder tudo. É meu sustento, sabe." A única opção dele seria viajar cerca de uma hora e meia para a vizinha Pensilvânia para trabalhar - um Estado que atualmente não tem um mandato de vacina para médicos. "Na verdade, estou pensando em me mudar depois de tudo isso. Odeio dizer isso porque minha família e meus pais estão aqui, mas o que eu vou fazer?" A governadora de Nova York, Kathy Hochul, manteve a política de mandato da vacina, dizendo: "Acreditamos que funcionou. Teve um efeito significativo em nossa capacidade de proteger as pessoas, especialmente os profissionais de saúde." Os advogados do Estado se opuseram repetidamente às tentativas de haver quaisquer isenções religiosas adicionadas ao mandato. Um profissional da área médica que pensa de maneira diferente, tanto sobre a vacina quanto sobre o mandato, é o Dr. Calvin Sun. Ele trabalha como médico assistente em medicina de emergência na cidade de Nova York. Ele diz que, no auge da pandemia, viu coisas suficientes capazes de "causar pesadelos para o resto da vida". E ele não acha que tomar a vacina representa um risco maior do que contrair a covid. "O risco não é superado pelos benefícios da vacina", diz ele. "Todos os doentes graves que atendi (no trabalho) que tiveram covid não estavam vacinados." Sun acredita que, por isso, as autoridades estavam certas em usar os mandatos de vacinas. "Acho que é uma pena que tenhamos que chegar a um ponto em que precisaríamos de um mandato. Porque, do ponto de vista médico, sempre queremos orientar o paciente para uma escolha que beneficie sua comunidade e seus entes queridos", diz ele. Mas ele acredita que, assim como as pessoas precisam usar cintos de segurança e não devem enviar mensagens de texto enquanto dirigem, "temos que abrir mão de um pouco de liberdade pela segurança". E, no caso da pandemia da covid, isso significa "tomar vacinas para garantir que o sistema de saúde não fique sobrecarregado e que esses os espaços fiquem livres para pacientes vulneráveis ​​". Ele também acha que outros Estados poderiam seguir o exemplo de Nova York: "Podemos mostrar ao mundo que (o mandato) não é tão ruim como as pessoas temem". Muitos lugares ao redor do mundo também estão estabelecendo regras rígidas sobre a vacinação contra a covid. Na Europa, a Letônia decidiu permitir que as empresas demitissem trabalhadores que não concordassem em ser vacinados ou trabalhar em casa. Na Ásia, partes da Indonésia tornaram a vacinação obrigatória para todos os cidadãos. A Costa Rica se tornou um dos primeiros países latino-americanos a exigir que os funcionários públicos sejam imunizados. À medida que dezenas de milhares de pessoas em todo o mundo continuam morrendo de covid-19 a cada semana, muitos outros países terão que lutar com decisões difíceis sobre como neutralizar a hesitação da vacina. Mesmo que isso signifique assumir a postura: "sem vacina, sem emprego"
2021-11-16
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59301538
sociedade
O eremita que vive há 40 anos isolado após ser espancado e ficar em coma
Durante quase 40 anos, Ken Smith levou um vida fora do comum, sem eletricidade ou água corrente em uma cabana de madeira feita à mão nas margens de um lago remoto nas Highlands escocesas, a zona montanhosa no norte da Grã-Bretanha. "É uma vida agradável. Todos gostariam de fazer isso, mas não fazem", diz Smith. Ken Smith pesca e cata alimentos, junta lenha e lava suas roupas em uma banheira velha ao ar livre. Nem todos concordariam que esse estilo de vida isolado e solitário seja o ideal, muito menos aos 74 anos. A cabana dele fica a duas horas de caminhada da estrada mais próxima, em uma área pantanosa conhecida como Rannoch Moor, perto do lago Loch Treig. "É conhecido como o lago solitário", diz ele. "Não há uma estrada, mas havia pessoas morando ali, antes da construção da barragem", conta ele. Olhando para o lago do alto de uma colina, Ken diz: "As ruínas estão lá embaixo. Agora só há uma pessoa aqui, que sou eu". Há nove anos, Ken teve o primeiro contato com a cineasta Lizzie McKenzie. Nos últimos dois anos, ela o filmou para o documentário The Hermit of Treig ("O eremita de Treig", em tradução literal), da BBC Escócia. Ken, que é de Derbyshire, na Inglaterra, conta no documentário que começou a trabalhar aos 15 anos, ajudando em construções de estações do Corpo de Bombeiros. Mas a vida dele mudou aos 26 anos, quando, em uma noite, foi espancado por uma gangue. Ele sofreu uma hemorragia cerebral e ficou em coma por 23 dias. "Disseram que eu nunca me recuperaria, que nunca mais voltaria a falar. Disseram que nunca mais voltaria a caminhar, mas eu consegui. Foi quando decidi que nunca viveria segundo os termos de ninguém que não fossem os meus", diz ele. Ken começou a viajar e a se interessar pela ideia de viver na natureza selvagem após se recuperar do problema de saúde. No Yukon, o território canadense que faz fronteira com o Alasca, nos Estados Unidos, ele se perguntou o que aconteceria se simplesmente entrasse pelo mato da beira de uma estrada e "fosse a lugar nenhum". Foi o que ele fez. Ele diz que caminhou cerca de 35 mil quilômetros antes de voltar para casa. Enquanto estava fora, seus pais morreram — e ele não soube disso na volta. "Não senti nada no momento. Passou muito tempo até que isso me afetasse", diz ele. Ken então saiu em uma nova caminhada atravessando toda a extensão da Grã-Bretanha. Ele estava em Rannoch, nas Highlands escocesas, quando de repente pensou em seus pais e começou a chorar. "Eu chorei o tempo todo enquanto caminhava", diz. "Eu pensei: onde fica o lugar mais isolado da Grã-Bretanha?", conta no documentário. "Segui em frente e passei por todas as baías e montanhas onde não havia uma casa construída. Centenas e centenas quilômetros de nada. Olhei para o outro lado do lago Treig e vi essa floresta", se recorda. Naquele momento, ele sabia que havia encontrado o lugar onde queria ficar. Ken diz que foi nesse momento em que parou de chorar e pôs um fim a sua perambulação. Ele começou a planejar uma cabana. Após testes com gravetos para encontrar a design mais adequado, ele a construiu usando troncos. Quatro décadas depois, a cabana tem um fogão a lenha, mas não há eletricidade, gás ou água corrente e, definitivamente, nenhum sinal de celular. A lenha tem de ser cortada na floresta e levada ao remoto refúgio. Ele cultiva verduras e cata frutas silvestres no bosque, mas a sua principal fonte de alimentação é o lago. "Se quiser aprender a viver uma vida independente, o que você precisa fazer é aprender a pescar", diz. Dez dias depois da diretora de cinema Lizzie McKenzie deixar a cabana dele em fevereiro de 2019, os perigos da existência isolada de Ken vieram à tona quando ele sofreu um derrame na neve, do lado de fora da cabana. Ele usou um localizador pessoal de GPS que havia ganhado dias antes para ativar um pedido de socorro — encaminhado para uma central de em Houston, no Texas. Esta avisou a guarda costeira do Reino Unido foi notificada, e Ken foi levado de helicóptero para um hospital em Fort William, na Escócia, onde passou sete semanas se recuperando. A equipe do hospital fez o possível para garantir que ele pudesse voltar a viver de forma independente, mas os médicos tentaram convencê-lo a voltar para civilização, onde teria apartamento e cuidadores. Ken, porém, só queria saber de voltar à sua cabana. A visão e a memória dele foram afetadas após o derrame. Em razão disso, ele teve de aceitar ajuda como nunca havia recebido antes. O guarda-florestal que cuida da floresta onde Ken mora, leva comida para ele a cada duas semanas, que ele paga com a pensão que recebe. "As pessoas têm sido muito boas comigo", diz Ken. Um ano depois do seu primeiro resgate, Ken precisou ser transportado de helicóptero novamente após se machucar quando uma pilha de troncos caiu sobre ele. Apesar das dificuldades, ele diz que não se preocupa com o futuro. "Não viemos à terra para sempre. Ficarei aqui até a chegada dos meus últimos dias, definitivamente. Já tive muitos incidentes, mas sobrevivi a todos eles", declara. "Certamente terei novos problemas de saúde em algum momento. Algo vai acontecer comigo que me levará embora um dia, como todo mundo. Mas espero chegar aos 102 anos", diz.
2021-11-11
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sociedade
'Levei um fora por ser geminiano': as pessoas que baseiam relacionamentos em signos
O químico Taciano Santos, de 27 anos, conta que ficou surpreso com o rumo da conversa com uma pessoa que havia conhecido em um aplicativo de relacionamentos. Eles mantiveram contato durante algumas semanas e Taciano comenta que estavam se dando bem, até que falaram sobre signos. "Quando eu disse que sou geminiano, a pessoa me deletou do WhatsApp", diz o químico à BBC News Brasil. A pessoa argumentou, conforme Taciano, que alguém do signo de gêmeos poderia causar confusão em sua vida. Taciano conta que, a princípio, riu da situação porque pensou que fosse brincadeira. Mas diz que se assustou quando percebeu que era algo sério e que a pessoa não queria mais manter contato. Segundo Taciano, o episódio ocorreu há mais de dois anos e foi uma situação marcante porque ele nunca havia se sentido rejeitado por causa de seu signo. "Já ouvi coisas boas sobre gêmeos, mas na maioria das vezes o retorno é negativo e ouço piadinhas. Porém, não havia vivenciado algo nessa intensidade", comenta. Não é difícil achar quem diga que o signo é critério para um relacionamento. Em uma busca nas redes sociais, é possível encontrar inúmeros comentários de pessoas que dizem evitar parceiros de determinados signos. Seja aquário, gêmeos, capricórnio, ariano ou qualquer outro, nenhum signo escapa nas redes: todos são alvos de algum tipo de crítica sobre relacionamentos. Nesses comentários, muitos consideram experiências ruins que tiveram com pessoas de determinados signos como o principal critério para definir com quais não devem se envolver. Em uma pesquisa feita pelo aplicativo de relacionamentos Badoo, na qual foram ouvidos 1.248 usuários da plataforma no Brasil em setembro de 2020, 44% dos entrevistados afirmaram que a compatibilidade do signo é um fator importante para definir com quem namorar. Ainda conforme essa pesquisa do Badoo, 20% dos entrevistados admitiram que se corresponderam com outras pessoas por causa do signo. Mas especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que usar o signo como critério para um relacionamento pode ser um impeditivo. "É preciso tomar cuidado se essa busca de critérios excessivos, como o de signos, não é um movimento de se autossabotar porque passou por relacionamentos ruins antes", aponta o psicólogo Fellipe Augusto de Lima, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Até aqueles que estudam sobre a astrologia destacam que o signo não deve ser adotado como critério fundamental para definir uma relação (leia mais abaixo). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Definida por estudiosos da área como um conhecimento milenar, a astrologia surgiu a partir da análise dos ciclos dos astros e das fases da lua, que foram divididos em 12 unidades, hoje conhecidas como os signos do zodíaco. Enquanto é relegada por alguns ou até classificada como "pseudociência", outros consideram que a astrologia é um conhecimento fundamental e a utilizam para atribuir características às pessoas ou até definir aspectos da vida. A jornalista Juliana Fernandes, de 30 anos, é um exemplo de quem considera o signo como essencial em sua vida. "Eu uso para me relacionar com todas as pessoas, seja no trabalho, nas amizades, na família ou relacionamentos amorosos", afirma à BBC News Brasil. Ela diz que passou a levar isso em consideração após um "pé na bunda bem dolorido", que demorou anos para superar. "Eu buscava motivos para entender o porquê de ele ter terminado comigo. Ele é de peixes. Um dia vi que libra (meu signo) e peixes não combinam muito amorosamente. Daí em diante comecei a ficar curiosa e ler mais sobre astrologia", comenta. Juliana considera que a astrologia é uma forma de apoio para entender as pessoas. "Me ajuda a lidar melhor com as diferenças", diz. Ela afirma que nunca deixou de se relacionar por causa do signo de alguém. Porém, admite que tem preferências. "Os meus favoritos são touro e sagitário. Sempre dou certo com pessoas de touro, me dou bem com o jeito deles. E adoro a alegria e espontaneidade de sagitário, sempre para cima, alegre, topa tudo. Mas, em geral, gosto de quase todos", declara. O comportamento daqueles que consideram o signo como fator importante em um relacionamento pode causar estranheza em quem não dá a mesma importância ao tema. Ao contar que foi rejeitado por ser de gêmeos, o químico Taciano diz ter ficado preocupado com a forma como a astrologia pode ser encarada em um relacionamento. "Estão levando o signo muito a sério, como se definisse tudo. Reduzem as experiências e a personalidade de alguém a isso", afirma. "Eu gosto de conversar sobre signos, mas na mesa de bar, por exemplo, não como algo sério", acrescenta Taciano. O psicólogo Fellipe Augusto de Lima já atendeu pacientes que tinham a astrologia como item fundamental em um relacionamento. Ele aponta que isso ocorre porque essas pessoas querem segurança na relação e acreditam que o signo pode descrever a personalidade de alguém ou até mesmo o futuro de um relacionamento. "São pessoas que não querem mais determinado signo porque tiveram uma experiência negativa. É como se a pessoa tivesse vivido um relacionamento com um virginiano, que pode ter sido alguém controlador e um pouco mais rígido. Por isso, vai querer, de certa forma, não se relacionar com mais ninguém do signo como uma tentativa de fazer dar certo", comenta. Segundo ele, essa postura pode causar problemas. "Isso pode levar a pessoa à evitação social, ela começa a ficar hipervigilante em relação ao signo. E quando ela está conhecendo alguém e esse indivíduo apresenta uma característica atribuída a um signo que possa desagradá-la, ela pode perder o interesse", explica o psicólogo. "E essa pessoa que considera o signo como fundamental pode se sentir deprimida e achar que nada vai dar certo pra ela", acrescenta. O especialista ressalta que somente é possível conhecer uma pessoa ao conversar com ela e sem presumir as suas características em razão do signo. "O signo fica no campo hipotético. A pessoa só vai saber, de fato, quem é o possível companheiro ao se conectar com ele. Só assim vai saber se é alguém pra sua vida ou não", afirma. Lima pontua que os signos não são ferramentas adotadas na psicologia. "Pode ser indicador de características para a população em geral, mas nós não usamos", diz. "Na psicologia há, por exemplo, a avaliação da personalidade, por meio de aplicação de entrevistas clínicas, conhecimento sobre o histórico de vida e conhecendo melhor a família", detalha. Mesmo considerando que é uma postura equivocada, o psicólogo afirma que é pouco provável que aqueles que usam o signo como critério fundamental para um relacionamento deixem de fazer isso. "Hoje, os aplicativos e as redes sociais disseminam muito essa ideia e faz com que as pessoas se sintam seguras nessa linha", declara. A atendente de telemarketing Jhuany Monique, de 20 anos, considerava o signo como uma informação importante para um relacionamento. Há anos, ela ouve diariamente as atualizações sobre horóscopo no rádio. "Quando falam as cores indicadas para o dia, sempre procuro ter algo dessa cor. Melhor prevenir do que remediar", comenta, aos risos. Ela, que é de áries, afirma que tinha receio de se relacionar com pessoas de alguns signos, entre eles o de gêmeos, por acreditar que não seriam confiáveis. Quando conheceu Ruan César, em 2019, Jhuany diz que logo ficou com "um pé atrás", pois descobriu que ele é geminiano. "Mas continuamos juntos", conta. Eles começaram a namorar e a jovem engravidou pouco depois. A data do nascimento do filho trouxe mais uma surpresa para ela: o garoto também é geminiano. "Ele estava previsto para 11 de maio, no caso seria taurino. Mas ele "esperou" até o dia 21 de maio pra nascer, justamente no primeiro dia de gêmeos", diz Jhuany, aos risos. A jovem continua acompanhando sobre os signos diariamente, mas afirma que mudou a forma como enxerga o tema em um relacionamento. "Não precisam levar isso muito a sério. Cada pessoa tem a sua própria personalidade e caráter", observa Jhuany. Assim como no caso de Jhuany, não é incomum encontrar casais que talvez não fossem considerados "pares ideais" conforme combinações populares entre os signos. O levantamento analisou supostas afinidades entre signos previstas por astrólogos e apontou que esses casais não tinham "qualquer compatibilidade" que justificasse que essas pessoas estivessem juntas. Por isso, o estudo indicou que não havia nenhum indício de que é possível avaliar se um casal terá uma boa relação com base no signo solar, aquele que é mais popular e consta nas previsões divulgadas massivamente. Quando concluiu esse levantamento, o cientista David Voas, coordenador da pesquisa, ressaltou não ter "ilusões de que (o estudo) prejudicaria a popularidade da astrologia". De acordo com astrólogas ouvidas pela BBC News Brasil, o signo não deve ser considerado uma informação relevante quando duas pessoas estão se conhecendo. "Há muitos fatores em questão e o primeiro é sempre se as duas pessoas se sentem atraídas em primeiro lugar, se a conversa flui de forma natural e se há um intenso interesse mútuo para o começo de um relacionamento", diz a astróloga Paula Belluomini, diretora da Sociedade Internacional para Pesquisa Astrológica no Brasil (International Society for Astrological Research, ou "ISAR", pela sua sigla em inglês). A astróloga frisa que analisar um relacionamento somente com base no signo solar é uma ação "precipitada e baseada em conceitos pré-concebidos na maioria das vezes superficiais, o que não deixa de ser discriminação". Ela comenta que tem notado que a astrologia tem despertado cada vez mais interesse nos últimos anos. "Isso não só com a popularização da internet e o fácil acesso a informações, mas também talvez seja a busca de respostas lógicas em um mundo caótico. A falta de orientação psicológica ou familiar, com a substituição de valores humanos por sucesso material, onde a prosperidade econômica é sinônimo de felicidade, acaba por criar um vazio existencial", diz. E com o aumento do alcance da astrologia, mais pessoas podem passar a se interessar pelo tema e adotar o signo como um critério fundamental em diversas áreas da vida. "Os signos e a astrologia têm se tornado um critério mais utilizado não apenas nos relacionamentos amorosos, mas nos relacionamentos humanos de modo geral", afirma a astróloga Aline Maccari. "Estamos falando de um sistema de pensamento que nos ajuda a compreender os comportamentos humanos em profundidade", acrescenta. Aline, que é conhecida nas redes como "a astróloga", ressalta que avaliar alguém pelo signo solar é um equívoco. Porém, as astrólogas dizem que é possível entender melhor um relacionamento por meio de análise aprofundada nos signos. Segundo elas, isso é feito em uma técnica conhecida na astrologia como sinastria, na qual é verificado o grau de compatibilidade entre duas pessoas por meio do mapa astral de cada uma delas. O mapa astral é o desenho do céu no dia e hora em que uma pessoa nasceu. Segundo a astrologia, ele reflete o posicionamento dos planetas no céu naquele dia e vai muito além do signo solar de alguém, pois também mostra os signos da lua, de vênus, de marte, entre outros astros. Esse tipo de avaliação, segundo Paula e Aline, pode ser feito somente por astrólogos. "É uma técnica muito complexa. Um leigo no assunto poderia fazer bobagens", afirma Aline. "Essa compatibilidade entre signos é conhecida e usada desde os tempos antigos. Ela foi uma das técnicas astrológicas mais desenvolvidas durante a era moderna. Há signos que se compatibilizam com outros mais facilmente", diz Paula Belluomini. No entanto, as astrólogas frisam: mesmo com esse método não é possível definir se um relacionamento será bom e se durará a vida inteira. "Mas podemos ter boas pistas (por meio da astrologia)", defende Aline. Paula afirma que no começo é importante deixar que um relacionamento — seja namoro, amizade ou relação profissional — se desenvolva respeitando as características dos envolvidos, independentemente do mapa astral de cada um. Isso porque, segundo Paula, aqueles que estudam astrologia sabem que independentemente do signo ou do mapa, há um critério que deve ser levado em consideração: a personalidade de alguém e o modo como lida com os outros. E isso, aponta ela, depende do nível de maturidade e autoconhecimento da pessoa. "E no final, cada um deve se esforçar para melhorar suas relações com as pessoas e refletir em seus próprios problemas a serem superados para assim atingir um nível mais harmônico de interação, seja ela social ou pessoal", declara Paula.
2021-11-11
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59115029
sociedade
'Aos 11, me achava gorda, feia e ódio ao corpo me fazia comer mais'
"Sou gorda, mas não sou feia." Marie-Noëlle Hébert chegou a essa conclusão enquanto escrevia sua história em quadrinhos A gorda feia (em tradução livre do francês). Foi assim que ela chamou a si mesma por muitos anos, desde que se olhou no espelho quando tinha 11 anos de idade. Seus familiares, amigos e colegas de escola costumavam, muitas vezes sem se dar conta, comentar sobre o corpo de Marie-Noëlle e o que ela comia, o que a fazia se sentir pior. Em entrevista à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC), a desenhista e escritora canadense conta que odiou seu corpo por muitos anos e costumava "empanturrar-se" de batatas fritas toda vez que se sentia triste, o que fazia com que ela se odiasse cada vez mais. Depois de adulta, Marie-Noëlle decidiu procurar ajuda e deu início a um projeto para compartilhar a sua história e narrar o processo de reconciliação consigo mesma. Durante esse processo, ela percebeu que, embora muitas pessoas se considerem gordas e feias, na realidade, "ninguém é". Hébert afirma que A gorda feia é um trabalho pessoal, e que muitos na sua terra-natal — Quebec, no Canadá — se identificaram com ela. Na sua história em quadrinhos, às vezes grosseira, às vezes cruel, a autora aborda a gordofobia e destrói os preconceitos relacionados à aparência física e aos modelos de beleza. Confira abaixo a entrevista com a autora. BBC News Mundo: "Gorda feia"... o que há por trás desse título? Marie-Noëlle Hébert: É um título que eu escrevia nos meus diários. Eu me definia assim. Era basicamente o meu nome. Quando comecei a trabalhar neste projeto, comecei a reler meus diários e encontrei "a gorda feia" escrito por todos os lados. Ficou então quase evidente que este deveria ser o título do livro. Eu me concentrei nos defeitos da minha pré-adolescência, que se arrastaram até a minha vida adulta. Inicialmente, meus editores não tinham certeza se deveríamos manter esse título, mas depois decidimos que era o mais adequado. BBC: O que incentivou você a escrever a história em quadrinhos? Hébert: Um dia, eu já era adulta e estava em uma reunião familiar, quando meu pai fez um comentário sobre o que eu estava comendo. Ele me disse para comer menos. Essa frase me incomodou por semanas. Comecei a prestar atenção no que comia e a praticar mais esportes. Depois me perguntei: por que eu faço isso? Por que fazem comentários sobre o meu corpo? Por que as pessoas me incomodam desse jeito? Acabei por pegar meus lápis, meus diários, cadernos velhos, desenhos e fotos. Tratei de recriar a história do meu corpo e ela se tornou uma história em quadrinhos. BBC: Qual a sua opinião sobre esses tipos de conselhos que costumam ser dados às pessoas acima do peso? Conselhos como o do seu pai, que insinuou que você deveria comer menos, ou como "você deve se vestir de preto porque é mais elegante" ou "você precisa tentar esconder essa parte do seu corpo"? Hébert: Estes são comentários de outra época, que eram feitos nos anos 1980, mas que hoje não têm cabimento. Você deve mostrar o corpo se assim o quiser. O importante é sentir-se bem consigo mesmo, sem se importar com o tipo de corpo que você tem. As pessoas não deveriam mais fazer esse tipo de comentário. É difícil, eu mesma faço de vez em quando sem me dar conta e isso me perturba. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As pessoas nos ensinam essas reflexões e nós as internalizamos. Comentamos constantemente até sobre o corpo das crianças, como elas estão vestidas, etc. BBC: As pessoas não têm consciência do poder desse tipo de comentários... Hébert: Com certeza. Quando eu era adolescente, anotava tudo o que me diziam, os comentários que faziam sobre mim, o assédio na escola. Todos esses comentários me afetaram até a idade adulta. As palavras cruéis permanecem gravadas na cabeça por muito tempo. Esta foi uma das razões que me incentivaram a criar uma história em quadrinhos, para tirar tudo isso da minha cabeça. BBC: No seu livro, você descreve como odiava e menosprezava o seu corpo. Quantos anos você tinha quando isso começou? Hébert: Eu tinha cerca de 11 anos. Foi ali que me dei conta de que era gorda e feia, segundo as pessoas me diziam, e o ódio pelo meu corpo me fazia comer cada vez mais. Quando estava triste e quando me odiava muito, eu comia batatas fritas compulsivamente. BBC: A insatisfação com o físico é um fenômeno comum. O que você aconselha para as milhões de pessoas que menosprezam seus corpos? Hébert: Esta é uma luta diária. E, para mim, continua sendo, mesmo depois de escrever a história em quadrinhos. Mas é preciso dizer a si mesmo que não é verdade, que você tem o direito de ser como é e de achar-se bonito(a). É difícil para mim dar conselhos porque este é um trabalho constante. O importante é saber que existe no mundo uma grande variedade de corpos. BBC: Muitas pessoas desejam ter um tipo de corpo determinado: magro, com abdômen perfeito... Hébert: Elas não desejam só conseguir, mas permanecer assim. Eu desejei ter um tipo específico de corpo por toda a minha vida, mas não fui feita para isso. Não fui feita para ser uma pessoa magra, embora esse tenha sido meu ideal de beleza desde a infância. Insisto que o importante é sentir-se bem com o corpo que você tem. BBC: Você conta no seu livro que, em alguns momentos, você sentia angústia e solidão. Parecia para você que todas conseguiam namorar, menos você. É uma coisa que muitos de nós sentimos em algum momento. Qual você acredita que tenha sido a origem desse tipo de sentimento? Hébert: Esse sentimento vem das inseguranças da infância, do ambiente escolar. Era assim em Quebec, mas acontece em todo o mundo. Quando você é gorda, você é isolada e marginalizada na escola. As pessoas me intimidavam e sempre faziam comentários sobre o meu corpo, na escola e em casa. E as imagens de beleza perfeita que vemos desde a infância aumentam ainda mais essa angústia e a solidão: as Barbies, as princesas e as atrizes. Não é normal ter esse tipo de sentimento. BBC: Você chegou a acreditar que nunca encontraria um namorado, mas você tem um companheiro há anos... Hébert: Sim. Eu me perguntei se deveria incluí-lo no livro e por fim decidi que não. Eu não queria que as pessoas dissessem: 'oh, você conseguiu seu príncipe encantado'. Não era esse o objetivo. Eu queria, na verdade, transmitir que o importante é encontrar-se a si mesma e não é preciso um homem nem uma relação para isso. BBC: Você também chama a atenção para a gordofobia. O que é isso para você? Hébert: Depois de adulta, não fui vítima de gordofobia, mas apliquei o conceito a mim mesma: eu não queria ser gorda, queria emagrecer. A gordofobia é o medo de ser gordo, mas também a discriminação contra as pessoas gordas, não fazendo roupas para que elas fiquem bem vestidas. Existem muitos tipos de gordofobia, mas o principal é a gordofobia interiorizada desde a infância. Ainda me acontece. Há dias em que quero praticar esportes para emagrecer, embora o mais importante para mim seja fazê-lo para ficar bem física e mentalmente. Não se deve praticar esportes para emagrecer, pois isso pode converter-se em uma obsessão. BBC: E como você percebeu que não é uma gorda feia? Hébert: Com a minha história em quadrinhos. Eu não sabia que me odiava a esse ponto. Mas, depois de fazer a história em quadrinhos e perceber todo o desprezo que tinha de mim mesma e do meu corpo, eu me dei conta que não era normal. Eu me dei conta que não era uma gorda feia — e que, na verdade, ninguém é. Você pode achar que é gordo e feio, mas isso não é verdade. Quando você é gordo, as pessoas colocam isso na sua cabeça desde a infância. É difícil observar-se como uma pessoa perfeita. Eu sou gorda, mas não sou feia. É difícil identificar-se como uma pessoa gorda, pois sempre associamos isso à falta de beleza.
2021-11-10
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59228621
sociedade
As lésbicas acusadas de transfobia por recusarem sexo com mulheres trans
Uma lésbica é transfóbica se ela não quer fazer sexo com mulheres trans? Algumas lésbicas dizem que estão sendo cada vez mais pressionadas e coagidas a aceitar mulheres trans como parceiras - depois rejeitadas e até ameaçadas por falarem abertamente sobre isso. Várias falaram à BBC, junto com mulheres trans que também estão preocupadas com o assunto. Aviso: a reportagem contém linguagem forte "Ouvi uma pessoa dizer que preferia me matar do que (matar) Hitler", disse Jennie*, de 24 anos. "Disse-me que me estrangularia com um cinto se estivesse em uma sala comigo e Hitler. Isso foi tão bizarramente violento, só porque eu não faço sexo com mulheres trans". Jennie é uma mulher lésbica. Ela diz que só sente atração sexual por mulheres biologicamente femininas e com vaginas. Ela, portanto, diz que só tem relações sexuais e relacionamentos com essas pessoas. Jennie não acha que isso deveria ser controverso, mas nem todos concordam. Ela foi descrita como transfóbica, fetichista genital, pervertida e "terf" (feminista radical transexcludente). "Há um argumento comum que tentam usar que diz: 'E se você conhecesse uma mulher em um bar e ela fosse muito bonita e você se desse muito bem e fosse para casa e descobrisse que ela tem um pênis? Você simplesmente não estaria interessada?'", diz Jennie, que mora em Londres e trabalha com moda. "Sim, porque mesmo que alguém pareça atraente no início, você pode sair disso. Eu simplesmente não possuo a capacidade de ser sexualmente atraída por pessoas que são biologicamente masculinas, independentemente de como elas se identifiquem." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Eu me deparei com esse problema específico depois de escrever um artigo sobre sexo, mentiras e consentimento legal. Várias pessoas entraram em contato comigo para dizer que havia um "grande problema" para as lésbicas, que estavam sendo pressionadas a "aceitar a ideia de que um pênis pode ser um órgão sexual feminino". Eu sabia que esse seria um assunto extremamente polêmico, mas queria descobrir quão difundido o assunto era. No fim das contas, tem sido difícil determinar a verdadeira escala do problema porque há poucas pesquisas sobre esse tópico - apenas uma que eu conheça. No entanto, as pessoas afetadas me disseram que a pressão vem de uma minoria de mulheres trans, bem como de ativistas que não são necessariamente trans. Elas descreveram ter sido assediadas e silenciadas quando tentaram discutir o assunto abertamente. Eu mesma recebi insultos online quando tentei encontrar entrevistados usando as redes sociais. Uma das lésbicas com quem conversei, Amy *, de 24 anos, me disse que sofreu abuso verbal de sua própria namorada, uma mulher bissexual que queria que elas fizessem um ménage à trois com uma mulher trans. Quando Amy explicou seus motivos para não querer, sua namorada ficou com raiva. "A primeira coisa que ela me chamou foi de transfóbica", disse Amy. "Ela imediatamente pulou para me fazer sentir culpada por não querer dormir com alguém." Ela disse que a mulher trans em questão não havia passado por cirurgia genital, então ainda tinha um pênis. "Sei que não há possibilidade de me sentir atraída por essa pessoa", disse Amy, que mora no sudoeste da Inglaterra e trabalha em um estúdio de impressão e design. "Eu posso ouvir suas cordas vocais masculinas. Eu posso ver suas mandíbulas masculinas. Eu sei, sob suas roupas, há genitália masculina. Essas são realidades físicas que, como uma mulher que gosta de mulheres, você não pode simplesmente ignorar." Amy disse que se sentiria assim mesmo se uma mulher trans tivesse se submetido a uma cirurgia genital - o que algumas optam por fazer e outras, não. Logo depois, Amy e sua namorada terminaram. "Lembro que ela ficou extremamente chocada e zangada e afirmou que minhas opiniões eram propaganda extremista e incitação à violência contra a comunidade trans, além de me comparar a grupos de extrema direita", disse ela. Outra lésbica, Chloe *, de 26 anos, disse que se sentiu tão pressionada que acabou fazendo sexo com penetração com uma mulher trans na universidade depois de explicar repetidamente que não estava interessada. Elas viviam próximas uma da outra em residências universitárias. Chloe estava bebendo álcool e não considera que poderia ter dado o consentimento adequado. "Eu me senti muito mal por odiar cada momento, porque a ideia é que somos atraídos por gênero em vez de sexo, e eu não senti isso, e me senti mal por me sentir assim", disse ela. Envergonhada e constrangida, ela decidiu não contar a ninguém. "A linguagem na época era muito 'mulheres trans são mulheres, elas são sempre mulheres, lésbicas deveriam namorar com elas'. E eu pensei, esse é o motivo de eu rejeitar essa pessoa. Isso me torna má? Terei permissão para continuar na comunidade LGBT? Ou sofrerei consequências por isso?' Então, eu realmente não contei a ninguém." Ouvir sobre experiências como essas levou uma ativista lésbica a começar a pesquisar o assunto. Angela C. Wild é cofundadora do grupo Get The L Out, cujos membros defendem que os direitos das lésbicas estão sendo ignorados por grande parte do movimento LGBT atual. Ela e seus colegas ativistas se manifestaram nas marchas no Reino Unido, onde enfrentaram oposição. O Orgulho (Pride) em Londres acusou o grupo de "intolerância, ignorância e ódio". "As lésbicas ainda têm muito medo de falar porque acham que não vão acreditar nelas, porque a ideologia trans está silenciando em todos os lugares", disse ela. Apesar de reconhecer que a amostra pode não ser representativa da comunidade lésbica em geral, ela acredita que foi importante capturar seus "pontos de vista e histórias". Além de sofrer pressão para namorar ou se envolver em atividades sexuais com mulheres trans, algumas das entrevistadas relataram ter sido persuadidas com sucesso a fazê-lo. "Achei que seria chamada de transfóbica ou que seria errado recusar uma mulher trans que queria trocar fotos nuas", escreveu uma delas. "Mulheres jovens se sentem pressionadas a dormir com mulheres trans 'para provar que não sou uma terf'." Uma mulher relatou ter sido alvo de um grupo online. "Disseram-me que a homossexualidade não existe e devo às minhas irmãs trans desaprender minha 'confusão genital' para que possa desfrutar de deixá-las me penetrar", escreveu ela. Uma delas comparou sair em encontros com mulheres trans à chamada terapia de conversão - a prática controversa de tentar mudar a orientação sexual de alguém. "Eu sabia que não estava atraída, mas internalizei a ideia de que era por causa da minha 'transmisoginia' e que se eu namorasse por tempo suficiente poderia começar a me sentir atraída. Era uma terapia de conversão DIY (sigla em inglês para faça você mesmo)", escreveu ela . Outra relatou uma mulher trans forçando-a fisicamente a fazer sexo depois de terem um encontro. "Ameaçou me declarar como terf e arriscar meu emprego se eu me recusasse a dormir com ela", escreveu ela. "Eu era muito jovem para discutir e sofri uma lavagem cerebral pela teoria queer, então (essa pessoa era) uma 'mulher', mesmo que cada fibra do meu ser estivesse gritando, então concordei em ir para casa com essa pessoa. (Ela) usou a força física quando mudei de ideia ao ver seu pênis e me estuprou." Embora bem recebido por alguns integrantes da comunidade LGBT, o relatório de Angela foi descrito como transfóbico por outros. "(As pessoas disseram) que somos piores do que estupradores porque (supostamente) tentamos enquadrar todas as mulheres trans como estupradoras", disse Angela. "A questão não é essa. A questão é que, se acontece, precisamos conversar sobre isso. Se acontece com uma mulher, é errado. Acontece que ocorre com mais de uma mulher." "Isso é algo que vi acontecer na vida real com amigas minhas. Isso estava acontecendo antes de eu realmente começar meu canal e foi uma das coisas que o impulsionou", disse Rose. "O que está acontecendo é que as mulheres que são atraídas por mulheres biológicas e órgãos genitais femininos se encontram em posições muito estranhas, onde se, por exemplo, em um site de namoro uma mulher trans se aproxima delas e elas dizem 'desculpe, não gosto de mulheres trans', então são rotuladas como transfóbicas." Perguntei a Verônica Ivy se ela poderia falar comigo, mas ela não quis. Rose acredita que visões como essa são "incrivelmente tóxicas". Ela defende que a ideia de que as preferências de namoro são transfóbicas está sendo impulsionada por ativistas trans radicais e seus "autoproclamados aliados", que têm visões extremas que não refletem as visões das mulheres trans que ela conhece na vida real. "Certamente, do meu próprio grupo de amigos, as mulheres trans de quem sou amiga, quase todas concordam que as lésbicas são livres para excluir mulheres trans de seu pool de namoro", disse ela. No entanto, ela acredita que mesmo as pessoas trans têm medo de falar abertamente sobre isso por medo de abuso. "Pessoas como eu recebem muitos insultos de ativistas trans e seus aliados", disse ela. "O lado ativista trans é incrivelmente raivoso contra as pessoas que consideram que estão saindo da linha." Debbie Hayton, uma professora de ciências que fez a transição em 2012 e escreve sobre questões trans, se preocupa que algumas pessoas fazem a transição sem perceber como será difícil formar relacionamentos. Embora atualmente existam poucos dados sobre a orientação sexual de mulheres trans, ela diz que acredita que a maioria é atraída por mulheres porque elas são biologicamente masculinas e a maioria dos homens é atraída por mulheres. "Então, quando elas (mulheres trans) estão tentando encontrar parceiras, quando as lésbicas dizem 'queremos mulheres' e as mulheres heterossexuais dizem que querem um homem heterossexual, isso deixa as mulheres trans isoladas dos relacionamentos e, possivelmente, se sentindo muito decepcionadas com a sociedade, com raiva, chateadas e sentindo que o mundo não consegue compreendê-las", disse ela. Debbie acha que está tudo bem se uma mulher lésbica não quiser namorar uma mulher trans, mas está preocupada que algumas estejam sendo pressionadas a isso. "A forma como o envergonhamento é usado é simplesmente horrível; é a manipulação emocional e a guerra acontecendo", disse ela. "Essas mulheres que querem formar relacionamentos com outras mulheres biológicas estão se sentindo mal com isso. Como chegamos aqui?" Stonewall é a maior organização LGBT do Reino Unido e da Europa. Perguntei à instituição sobre essas questões, mas ela não conseguiu fornecer ninguém para a entrevista sobre o tema. No entanto, em um comunicado, a executiva-chefe Nancy Kelley comparou não querer namorar pessoas trans a não querer namorar pessoas de cor, pessoas gordas ou deficientes. Ela disse: "A sexualidade é pessoal e algo que é único para cada uma de nós. Não existe uma maneira 'certa' de ser lésbica, e somente nós podemos saber por quem nos sentimos atraídos." "Ninguém deve ser pressionado a namorar ou a namorar pessoas pelas quais não se sente atraído. Mas se você descobrir que, ao namorar, estará descartando grupos inteiros de pessoas, como pessoas de cor, pessoas gordas, deficientes físicos ou pessoas trans pessoas, então vale a pena considerar como os preconceitos da sociedade podem ter moldado suas atrações." "Sabemos que o preconceito ainda é comum na comunidade LGBT+ e é importante que possamos falar sobre isso de forma aberta e honesta." O Stonewall foi fundado em 1989 por pessoas que se opunham ao que ficou conhecido como Seção 28 - legislação que impedia conselhos e escolas de "promover" a homossexualidade. A organização originalmente focou em questões que afetam lésbicas, gays e bissexuais e, em 2015, anunciou que faria campanha pela "igualdade trans". Um novo grupo - LGB Alliance - foi formado em parte em resposta à mudança de foco do Stonewall, por pessoas que acreditam que os interesses das pessoas LGB estão sendo deixados para trás. "É justo dizer que eu não esperava ter que lutar por esses direitos novamente, os direitos das pessoas cuja orientação sexual é voltada para pessoas do mesmo sexo", disse o cofundadora Bev Jackson, que também fundou o UK Gay Liberation Front em 1970. "Nós meio que pensamos que a batalha havia sido ganha e é bastante assustador e horrível termos que lutar essa batalha novamente." A LGB Alliance diz que está particularmente preocupada com lésbicas mais jovens e, portanto, mais vulneráveis ​​serem pressionadas a se relacionar com mulheres trans. "É muito preocupante encontrar pessoas dizendo 'Isso não acontece, ninguém pressiona ninguém para ir para a cama com ninguém', mas sabemos que não é o caso", disse Jackson. "Sabemos que uma minoria - mas ainda uma minoria considerável de mulheres trans - pressiona lésbicas a sair com elas e fazer sexo com elas, e é um fenômeno muito perturbador." Eu perguntei a Jackson como ela sabia que uma "minoria considerável" de mulheres trans que estava fazendo isso. Ela respondeu: "Não temos números, mas frequentemente somos contatados por lésbicas que relatam suas experiências em grupos LGBT e em sites de namoro." Por que ela acha que houve tão pouca pesquisa? "Eu certamente acho que a pesquisa sobre este tópico seria desencorajada, provavelmente porque seria caracterizada como um projeto deliberadamente discriminatório", disse ela. "Mas também, as próprias meninas e mulheres jovens, uma vez que provavelmente são as mulheres mais tímidas e menos experientes que são vítimas de tais encontros, relutariam em discuti-los." O LGB Alliance foi descrito como um grupo de ódio, anti-trans e transfóbico. Em resposta, Jackson insiste que o grupo não é nada disso e inclui pessoas trans entre seus apoiadores. "Esta palavra, transfobia, foi colocada como um dragão no caminho para interromper a discussão sobre questões realmente importantes", disse ela. "É doloroso para nossos apoiadores trans, é doloroso para todos os nossos apoiadores ser chamado de grupo de ódio quando somos as pessoas menos odiosas que você pode encontrar." O termo "teto de algodão" às vezes é usado ao discutir essas questões, mas é controverso. Tem origem no termo "teto de vidro", que se refere a uma barreira invisível que impede as mulheres de subirem ao topo da carreira. O algodão é uma referência às roupas íntimas femininas, com a frase destinada a representar a dificuldade que algumas mulheres trans sentem que enfrentam quando procuram relacionamentos ou sexo. "Romper o teto de algodão" significa poder fazer sexo com uma mulher. Acredita-se que o termo foi usado pela primeira vez em 2012 por uma atriz pornô trans conhecida pelo nome Drew DeVeaux. Ela não trabalha mais na indústria e não consegui contatá-la. No entanto, o conceito de "teto de algodão" ganhou atenção mais ampla quando foi usado em um workshop da organização Planned Parenthood em Toronto, no Canadá. O título do workshop foi: "Superando o teto de algodão: derrubando as barreiras sexuais para mulheres trans queer", e a descrição explicava como os participantes "trabalhariam juntos para identificar barreiras, criar estratégias para superá-las e construir uma comunidade". Foi liderada por uma escritora e artista trans que mais tarde foi trabalhar para Stonewall (a organização pediu à BBC que não a nomeasse por questões de segurança). A mulher trans que liderou o workshop recusou-se a falar com a BBC, mas a Planned Parenthood Toronto manteve sua decisão de realizar o workshop. Em um comunicado enviado à BBC, a diretora executiva Sarah Hobbs disse que o workshop "nunca teve a intenção de defender ou promover a superação das objeções de qualquer mulher à atividade sexual". Em vez disso, ela disse que o workshop explorou "as maneiras pelas quais as ideologias da transfobia e da transmisoginia impactam o desejo sexual". Além de Veronica Ivy, entrei em contato com várias outras mulheres trans famosas que escreveram ou falaram sobre sexo e relacionamentos. Nenhuma delas quis falar comigo, mas meus editores e eu sentimos que era importante refletir alguns de seus pontos de vista neste artigo. Em um vídeo que agora foi excluído, a youtuber Riley J Dennis argumentou que as "preferências" de namoro são discriminatórias. Ela perguntou: "Você namoraria uma pessoa trans, honestamente? Pense nisso por um segundo. OK, obteve sua resposta? Bem, se você disse não, sinto muito, mas isso é bastante discriminatório." Ela explicou: "Acho que a principal preocupação que as pessoas têm em relação a namorar uma pessoa trans é que elas não terão os órgãos genitais que esperam. Como associamos pênis a homens e vaginas a mulheres, algumas pessoas pensam que nunca poderiam namorar um homem trans com vagina ou uma mulher trans com um pênis." "Mas acho que as pessoas são mais do que seus órgãos genitais. Acho que você pode sentir atração por alguém sem saber o que está entre suas pernas. E se você dissesse que só se sente atraído por pessoas com vaginas ou pênis, isso realmente soa como se você estivesse reduzindo as pessoas apenas aos órgãos genitais." Outra youtuber, Danielle Piergallini, fez um vídeo intitulado "O teto de algodão: transfobia, sexo e namoro (mas não com transexuais)". Ela disse: "Quero falar sobre a ideia de que existem várias pessoas por aí que dizem que não se sentem atraídas por pessoas trans, e acho que isso é transfóbico, porque sempre que você está fazendo uma declaração ampla e generalizada sobre um grupo de pessoas, isso normalmente não vem de um bom lugar." No entanto, ela acrescentou: "Se há uma mulher trans que está no pré-operatório e alguém não quer namorá-la porque não tem órgãos genitais que correspondam à sua preferência, isso é obviamente compreensível." A romancista e poeta Roz Kaveney escreveu um artigo intitulado "Alguns pensamentos sobre o teto de algodão" e outro intitulado "Mais teto de algodão". "O que sempre está acontecendo é a suposição de que a pessoa é o status atual de seus 'bits' e a história de seus 'bits'", escreveu ela no primeiro artigo. "Que é o modelo mais redutor de atração sexual que posso imaginar." Embora esse debate já tenha sido visto como uma questão secundária, a maioria dos entrevistados que falaram comigo disse que ele se tornou proeminente nos últimos anos por causa das mídias sociais. Ani, de 30 anos, disse à BBC que está preocupada com a geração de lésbicas que agora são adolescentes. "O que estamos vendo é uma regressão onde, mais uma vez, jovens lésbicas ouvem 'Como você sabe que não gosta de pau se ainda não experimentou?'", disse ela. "Dizem que devemos olhar além dos órgãos genitais e aceitar que alguém diga que é mulher, e isso não é o que é homossexualidade." "Você não vê tantos homens trans interessados ​​em gays, então eles não entendem tanto (a pressão), mas você vê muitas mulheres trans que se interessam por mulheres, então somos desproporcionalmente afetadas por isso." Ani acredita que esse tipo de mensagem é confuso para jovens lésbicas. "Lembro-me de ser uma adolescente no armário e tentar desesperadamente ser hétero, e isso foi difícil o suficiente", disse ela. "Eu não posso imaginar como seria se eu finalmente aceitasse o fato de que era gay, para então enfrentar a ideia de que alguns corpos masculinos não são masculinos então são lésbicas, e ter para lidar com isso também." Ani diz que recebe mensagens pelo Twitter de jovens lésbicas que não sabem como sair de um relacionamento com uma mulher trans. "Elas tentaram fazer a coisa certa e deram-lhes uma chance, e perceberam que eram lésbicas e não queriam estar com alguém com corpo masculino, e o conceito de transfobia e intolerância é usado como uma arma emocional, que você não pode sair porque do contrário você é transfóbica", disse ela. Como outras pessoas que expressaram suas preocupações, Ani recebeu insultos online. "Fui incitada a me matar, recebi ameaças de estupro", disse ela. No entanto, ela diz que está determinada a continuar falando. "Uma coisa realmente importante que devemos fazer é sermos capazes de conversar sobre essas coisas. Encerrar essas conversas e chamá-las de intolerância é realmente inútil, e não deveria estar além de nossa capacidade ter conversas difíceis sobre algumas dessas coisas." *A BBC alterou os nomes de algumas mulheres nesta reportagem para proteger suas identidades. Esta reportagem foi alterada em 4 de novembro de 2021 para remover o depoimento de uma das entrevistadas por conta de comentários recentemente publicados por ela em um blog e que foram confirmados pela BBC. Reconhecemos que uma admissão de comportamento impróprio por essa mesma entrevistada deveria ter sido incluída na reportagem original.
2021-11-05
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59052341
sociedade
Os conservadores que querem abolir a pena de morte nos EUA
Foi um encontro com uma eleitora que levou o deputado estadual americano Lowry Snow, de Utah, a mudar de posição em relação à pena de morte. Em um Estado fortemente conservador, onde seu partido, o Republicano, controla o governo e as duas Casas do Legislativo, Snow sempre votou contra propostas para abolir ou restringir o uso desse tipo de sentença. Mas, em 2017, ele recebeu um pedido inusitado: Sharon Weeks, cuja irmã e a sobrinha haviam sido assassinadas brutalmente em um dos crimes mais notórios de Utah, queria se reunir com ele. Em 1984, a irmã de Weeks, Brenda Lafferty, então com 24 anos de idade, foi espancada, estrangulada e teve a garganta cortada por seus cunhados, Ron e Dan Lafferty. Sua filha bebê, Erica Lafferty, de 15 meses de idade, foi degolada. No ano seguinte ao crime, Dan Lafferty foi condenado à prisão perpétua, que cumpre até hoje. Seu irmão, Ron Lafferty, foi condenado à morte. Mas quando Weeks se reuniu com Snow, 33 anos depois do crime, Ron Lafferty ainda não havia sido executado, apesar de já ter sido sentenciado à morte em dois julgamentos separados. "A partir da nossa conversa, comecei a ver uma perspectiva que jamais havia considerado, aquela do trauma das famílias das vítimas", diz Snow à BBC News Brasil. Weeks explicou ao deputado por que a pena de morte não havia trazido conforto nem Justiça para sua família. O Estado havia prometido que, nesse caso, receber Justiça significava a execução de Ron Lafferty. Mas, mais de três décadas depois, Weeks e seus pais continuavam esperando, e a promessa ainda não havia sido cumprida. A cada novo desenrolar do caso, a família era obrigada a reviver a dor do crime e a ver o autor dos assassinatos quase transformado em celebridade com a intensa cobertura da imprensa. "Ela falou sobre o que a família teve de enfrentar, e ainda enfrentava, com as inúmeras apelações (de Ron Lafferty) à Justiça, audiências, novo julgamento. E, durante isso tudo, a ansiedade de não saber se algum detalhe técnico poderia livrá-lo (da morte ou mesmo da prisão)", lembra o deputado. Para Weeks, diante da demora do Estado em levar a execução a cabo, a prisão perpétua teria sido preferível, porque assim daria o caso por encerrado e o sentimento de Justiça cumprida, sem prolongar a dor da família por décadas. Ron Lafferty nunca foi executado. Ele acabou morrendo na prisão em 2019, de causas naturais, 35 anos depois de ter cometido o crime e recebido a sentença. Seu caso não é incomum. Segundo o Centro de Informações sobre Pena de Morte, que compila dados sobre a prática, mais da metade dos cerca de 2,5 mil condenados à essa sentença nos Estados Unidos a receberam há mais de 18 anos. Muitos passam décadas no corredor da morte. Desde que ouviu o relato de Weeks e sua família, Snow passou a defender o fim da pena de morte. Ele agora está finalizando um projeto de lei, que deve apresentar à Câmara Estadual no início de 2022, para substituir a sentença por prisão perpétua. Snow é um entre mais de 40 senadores e deputados estaduais republicanos em pelo menos 10 Estados que recentemente apresentaram ou foram coautores de projetos de lei para abolir, restringir ou, em alguns casos, reformar a pena capital. A punição é legal em 27 dos 50 Estados americanos. Várias das propostas proíbem que determinadas categorias de pessoas recebam a sentença, desde aquelas com doença mental grave até cúmplices que tiveram papel pequeno no crime. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outras buscam impedir que inocentes sejam executados, com medidas como proibir pena de morte quando a evidência contra o réu for o depoimento de uma única testemunha. No início deste ano, a Virgínia se tornou o 23º Estado do país — e o primeiro do Sul — a abolir a sentença, em uma decisão considerada histórica e que foi aprovada graças ao apoio de alguns republicanos à maioria democrata. Em 2015, o Nebraska já havia gerado manchetes ao redor do país ao se tornar o primeiro Estado conservador (governado pelo Partido Republicano e com maioria de legisladores republicanos) a abolir a pena de morte em mais de 40 anos. A decisão, no entanto, acabou sendo revertida após consulta popular. O movimento de legisladores republicanos contra a pena capital representa uma mudança em relação à posição histórica do partido. Nos Estados Unidos, políticos (e eleitores) republicanos costumam se definir como conservadores e são tradicionalmente a favor da pena de morte. Segundo o centro de pesquisas Pew Research Center, em pesquisa conduzida em abril deste ano, 60% dos entrevistados disseram ser favoráveis à pena de morte para condenados por assassinato. Entre os republicanos, o apoio chegou a 77%, bem maior que os 46% entre os democratas. Mas, apesar de a maioria dos republicanos, e dos americanos em geral, continuarem apoiando a pena de morte, o percentual vem caindo. Dois anos atrás, o Pew indicava que 65% dos americanos e 84% dos republicanos concordavam com a pena capital para assassinatos. "O apoio à pena de morte em círculos conservadores republicanos vem caindo por várias razões econômicas, culturais, morais e religiosas", diz à BBC News Brasil o diretor nacional do grupo Conservatives Concerned About the Death Penalty (Conservadores Preocupados com a Pena de Morte, em tradução livre), Demetrius Minor. O grupo reúne políticos e líderes ao redor do país que questionam a possibilidade de conciliar a pena de morte com os valores conservadores. Aprovar propostas contra a pena de morte em Estados fortemente conservadores ainda é um desafio. Mas, segundo o diretor executivo do Centro de Informações sobre Pena de Morte, Robert Dunham, o tema não é mais considerado tão polêmico, o que permite que cada vez mais políticos fiquem livres para agir de acordo com sua consciência. "Essa não é mais uma questão que fará com que você seja derrotado nas urnas por eleitores do seu próprio partido que não concordam com a sua posição", diz Dunham à BBC News Brasil. Tanto o número de sentenciados à morte quanto o de execuções vêm caindo no país desde o fim da década de 1990. Em 1999, foram executadas 98 pessoas, e outras 279 foram condenadas à morte. No ano passado, foram 17 execuções e 18 sentenças à morte. Dunham observa que um dos grupos cuja oposição à pena capital vem crescendo mais rapidamente é aquele formado por pessoas que são favoráveis à pena de morte em teoria, mas não acreditam que o sistema atual é justo. Muitos dizem não confiar na capacidade do Estado de garantir um processo sem erros e citam o risco de que inocentes sejam executados. Nos últimos anos, ganharam atenção nacional diversos casos de presos que passaram décadas no corredor da morte até conseguirem provar que haviam sido condenados injustamente. Segundo Dunham, 1.537 pessoas foram executadas nos Estados Unidos desde 1972. No mesmo período, outras 186 conseguiram provar que haviam sido condenadas injustamente e deixaram o corredor da morte. "É um número chocante. Estimamos que dezenas de pessoas executadas eram inocentes", afirma Dunham. Foi depois de tomar conhecimento dos casos de dois inocentes condenados injustamente que a deputada estadual republicana Jean Schmidt, de Ohio, mudou completamente de posição sobre a pena de morte. "Vinte anos atrás, eu votei nesta mesma Câmara para manter a pena de morte", diz Schmidt à BBC News Brasil. A deputada é autora de proposta para abolir a pena capital em Ohio, Estado onde o Executivo e as duas Casas do Legislativo estão sob comando republicano. Um projeto semelhante tramita no Senado estadual. Schmidt conta que começou a mudar de opinião há cerca de dez anos, principalmente depois de conhecer os detalhes dos casos de Tyra Patterson, que cumpria 43 anos de prisão por roubo e assassinato, e de Joe D'Ambrosio, condenado à morte por sequestro e assassinato. Ambos conseguiram provar, após anos na prisão, que eram inocentes. "Nesse processo, vi como promotores e detetives podem manipular as coisas para criar a impressão de que eles (os réus) são culpados, quando na realidade não são", afirma Schmidt. "Esses encontros me fizeram perceber que há pessoas inocentes no corredor da morte." Os problemas que levam inocentes a serem condenados à morte começam antes do julgamento. A maioria desses réus são pobres e não têm condições de contratar bons advogados, o que os coloca em desvantagem diante da promotoria, que costuma ser bem equipada. "Eles (os réus) dependem de defensores públicos, que em Ohio são mal pagos, sobrecarregados e têm um teto para o quanto de dinheiro dos contribuintes podem gastar na defesa", ressalta Schmidt, que também cita as dificuldades de apresentar novas evidências depois de encerrado o julgamento. Outro fator preocupante é a arbitrariedade na aplicação da sentença. Muitas vezes a localização geográfica é mais importante do que o crime em si para determinar se o réu será condenado à morte. Um crime punido com a morte em um condado (subdivisão administrativa dos Estados) pode levar apenas à prisão no condado vizinho. "Em cada Estado com pena de morte, há condados individuais que buscam a sentença de maneira muito mais agressiva do que os outros", afirma Dunham, ressaltando que apenas 1,2% dos condados do país respondem por mais da metade das pessoas no corredor da morte. Assim como vários legisladores republicanos, Schmidt também diz que outro ponto que pesou em sua mudança de posição foi a contradição da pena de morte com sua postura contra o aborto. "Acredito que somente Deus pode tirar uma vida. Não acredito em aborto em nenhuma circunstância, nem mesmo se a vida da mãe estiver em risco", afirma Schmidt. O senador estadual republicano Arthur Rusch, de Dakota do Sul, também cita a contradição de apoiar a pena de morte ao mesmo tempo em que se opõe ao aborto. "Dakota do Sul é um Estado fortemente contrário ao aborto. Não entendo como alguém pode ser contra o aborto em alguns casos e apoiar a pena de morte. Me parece uma posição completamente inconsistente", diz Rusch à BBC News Brasil. Desde que entrou para o Senado, em 2015, Rusch apresentou várias propostas para abolir a pena capital ou limitar seu uso. Até agora, nenhuma teve sucesso, mas ele já prepara um novo projeto de lei sobre o tema para o ano que vem. Sua oposição também é motivada pelos altos custos do processo, mais longo e complexo do que um caso em que a sentença máxima é de prisão perpétua. Antes de entrar para a política, Rusch foi juiz durante 18 anos. Ele diz que sua opinião mudou após julgar um caso de pena de morte que custou mais de US$ 1 milhão (cerca de R$ 5,6 milhões). "Antes disso, eu provavelmente diria que não tinha nenhum problema com a pena de morte", diz Rusch. "Mas esse julgamento realmente mudou minha visão." Os custos mais altos vão desde o número maior de testemunhas, advogados e apelações até a manutenção dos presos no corredor da morte. Vários estudos calculam que um processo de pena de morte custe pelo menos dez vezes mais que um caso que não envolva essa sentença, conta que é paga pelos contribuintes. "No Kansas, um julgamento que possa levar à pena de morte custa 16 vezes mais do que um no qual não exista essa possibilidade", diz Demetrius Minor. "Na Califórnia, um preso no corredor da morte custa US$ 90 mil (R$ 504 mil) a mais por ano do que alguém em uma prisão de segurança máxima." Rusch salienta que os custos não são apenas materiais, mas também psicológicos. "Basicamente, custou um ano da minha vida", diz o senador sobre o julgamento que presidiu. "Alguns membros do júri sofreram estresse pós-traumático. Não deveríamos forçar as pessoas a passar por algo assim." Mas nem todos os políticos com propostas para restringir o uso da pena capital querem necessariamente acabar com a prática. O deputado estadual republicano Kevin McDugle, de Oklahoma, é autor de dois projetos de lei que buscam corrigir problemas na aplicação da sentença e evitar que inocentes sejam executados. "Não mudei de opinião sobre a pena de morte, mas sim sobre o processo que cerca a pena de morte", diz McDugle à BBC News Brasil. "Se você tem alguém que, digamos, estuprou e matou um bebê, é preciso que haja um mecanismo como o corredor da morte para esse tipo de pessoa", afirma. "Mas também acredito que a oportunidade para alguém (condenado à morte) provar sua inocência não deve ser algo impossível de ser alcançado." Uma das propostas de McDugle estabelece a criação de uma unidade de investigação independente em casos de pena capital, para analisar novas evidências que apontem para a inocência do condenado. A outra torna obrigatório o compartilhamento com a defesa de evidências a respeito de um prisioneiro no corredor da morte. Em Oklahoma e outros Estados, a defesa não pode acessar evidências nas mãos dos promotores caso não haja previsão de novo julgamento, mesmo que essas provem a inocência do condenado. McDugle elaborou as propostas após saber do caso de Richard Glossip, condenado por um assassinato que nega ter cometido. Outro homem, Justin Sneed, confessou o crime à polícia, mas disse que Glossip era o mandante. Apesar da falta de evidências, Glossip foi sentenciado à morte com base nesse testemunho. Sneed recebeu prisão perpétua. "Honestamente, não tinha muito interesse em justiça criminal ou na pena de morte até então", diz o deputado. "Mas quanto tomei conhecimento desse caso, senti — e ainda sinto — que temos um inocente no corredor da morte." Nenhuma de suas propostas foi adiante neste ano, mas McDugle pretende apresentá-las novamente em 2022. "Se Oklahoma vai matar alguém, acho que precisamos dos critérios mais rígidos possíveis para provar (a culpa)", afirma. "Minha opinião é a de que é melhor deixar um culpado livre do que executar um inocente", conclui.
2021-11-04
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59148371
sociedade
Os super-ricos que decidiram não deixar fortuna para seus herdeiros
Reportagem publicada originalmente em 29 de setembro de 2021 e atualizada em 3 de novembro de 2021 Declarações recentes de celebridades americanas a respeito de não entregarem "de bandeja" suas fortunas para seus filhos voltaram a agitar o debate sobre heranças milionárias e meritocracia. Em julho, durante evento de um podcast nos EUA, o ex-jogador da NBA Shaquille O'Neal, dono de uma fortuna estimada em US$ 400 milhões (R$ 2,2 bilhões na cotação atual), afirmou que costuma dizer aos seus seis filhos: "Nós não somos ricos, EU sou rico". Em declarações que ganharam destaque no Twitter nos últimos dias (quando "Shaq" participou do GP de Fórmula 1 dos EUA), o ex-jogador e atual empresário contou que defende "uma regra" para os filhos: educação. "Você precisa ter seu diploma, seu mestrado, e se quiser que eu invista suas empresas, você me apresenta (seu projeto). Mas eu não vou te dar nada", disse, agregando esperar que entre eles haja "um médico, um farmacêutico, um dono de um fundo de hedge, um advogado, alguém que tenha múltiplos negócios ou que assuma os meus negócios. Mas não vou entregar nada (aos filhos), eles terão que merecer". Em setembro, foi a vez de o apresentador Anderson Cooper, âncora da emissora CNN e cuja fortuna é estimada em cerca de US$ 200 milhões (R$ 1,1 bilhão na cotação atual), declarar que não pretende deixar "um pote de ouro" para seu filho, que hoje tem um ano e meio de idade. "Não acredito em passar adiante grandes quantidades de dinheiro", disse Cooper em episódio que foi ao ar em setembro no podcast Morning Meeting. "Não estou tão interessado em dinheiro, mas não pretendo passar adiante algum tipo de pote de ouro para meu filho. Vou fazer o que meus pais me disseram: 'sua faculdade será paga, e em seguida você precisa seguir (por conta própria)'." Cooper é descendente, por parte de mãe, dos Vanderbilts, que foram em seu tempo uma rica dinastia americana e que começou a definhar antes de o apresentador nascer - e sobre a qual ele escreveu um livro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O apresentador afirmou ao podcast que "cresceu vendo dinheiro ser perdido" pelos Vanderbilts e sempre evitou ser associado à família de sua mãe. Segundo ele, a fortuna do magnata Cornerlius Vanderbilt, erguida ainda no século 19, "foi uma patologia que infectou as gerações seguintes". "(O dinheiro) não os levou a grandes atos de generosidade ou à criação de fundações duradouras que ajudassem outras pessoas, mas sim ao anseio de entrar para a alta sociedade (de Nova York)." As falas de Cooper e de O'Neal se inserem em um debate maior entre uma parcela de milionários e bilionários internacionais a respeito da destinação de suas riquezas - e também em meio a críticas sobre responsabilidade social e impostos sobre fortunas em um momento de grande desigualdade e concentração de renda em todo o mundo. Além disso, trazem à memória casos famosos de magnatas que ativamente evitaram deixar o dinheiro para seus herdeiros. Quando vendeu sua Carnegie Steel Company, no início dos anos 1900, o magnata do aço escocês-americano Andrew Carnegie obteve uma soma que, à época, já era gigantesca: US$ 480 milhões. E fez dele o homem mais rico do mundo em seu tempo. Esse dinheiro, porém, não foi para seus herdeiros. Carnegie foi autor de um hoje centenário manifesto chamado O Evangelho da Riqueza, que tem esta como uma de suas frases mais famosas: "o homem que morre rico morre em desgraça". A fortuna de Carnegie foi usada em sua maioria para financiar a construção de bibliotecas, institutos educacionais, fundos e fundações nos EUA e na Europa. "É por esse motivo que o clã Carnegie não aparece na lista da Forbes de famílias mais ricas dos EUA", aponta reportagem da própria Forbes de 2014. Segundo esta, quando Andrew Carnegie morreu, em 1919, deixou para sua mulher alguns bens pessoais, como uma casa em Manhattan (Nova York) e uma residência de férias na Escócia - que acabaria sendo vendida por conta de seus altos custos de manutenção. Sua única filha, Margaret, herdou um pequeno fundo, "o suficiente para ela (e o restante da família) viverem confortavelmente, mas nunca tanto dinheiro quanto (receberam) os filhos de outros magnatas, que viviam em enorme luxo", disse à Forbes o biógrafo de Carnegie, David Nasaw. A trajetória de Andrew Carnegie foi marcante para outro bilionário americano - este contemporâneo -, Charles "Chuck" Feeney. Em 2020, o empresário, então com 89 anos, já havia doado para ações de filantropia os US$ 8 bilhões acumulados ao longo de sua carreira (ele foi cofundador, ainda nos anos 1960, da empresa de varejo em aeroportos Duty Free Shoppers, ou DFS). "As pessoas devem se definir ou sentir a responsabilidade de usar parte de seus recursos para melhorar a vida de seus pares, ou então criarão problemas insolúveis ​​para as gerações futuras." Feeney leva uma vida frugal, sem casas ou carros de luxo, embora em 2012 tenha dito à Forbes que havia reservado cerca de US$ 2 milhões para a aposentadoria dele e de sua mulher. Sobre sua filosofia de doar uma quantidade bilionária para causas ainda em vida, ele declarou à revista: "vejo poucos motivos para adiar essa doação, quando tanto bem pode ser alcançado ao apoiar causas valiosas. Além disso, é muito mais divertido doar enquanto você está vivo do que quando já está morto." "Você amaldiçoa uma criança quando elimina todo o risco de suas vidas", disse à emissora americana CNBC, em setembro deste ano, o empresário canadense Kevin O'Leary. "Muitos de nós conhecemos crianças ricas e mimadas que não se importam em buscar uma carreira e não têm incentivo para tal porque sua vida foi totalmente desprovida de risco." Por conta dessa filosofia, O'Leary - empreendedor que começou sua fortuna com softwares de informática e se tornou celebridade televisiva em seu país por aparecer em programas como Shark Thank (na versão brasileira, Negociando com Tubarões) - contou à CNBC que, quando ganhou dinheiro com seu primeiro IPO (oferta inicial de ações, na sigla em inglês), estabeleceu um fundo para todas as crianças de sua família. Esse fundo garante, até mesmo depois da morte de O'Leary, que todas elas tenham suas despesas pagas desde seu nascimento até sua universidade. "Depois disso, ninguém recebe nada." Ainda em 2010, o empresário chinês Yu Pengnian, que teve uma vida humilde mas tornou-se bilionário dos ramos imobiliário e hoteleiro, anunciou que já havia doado cerca de US$ 1,2 bilhão a causas filantrópicas. Quando Yu morreu, em 2015, aos 93 anos, não deixou nada para seus herdeiros: seu testamento, segundo a imprensa chinesa, previa que todo o dinheiro restante fosse destinado à filantropia. "Se meus filhos são mais capazes do que eu, não é necessário que eu lhes deixe muito dinheiro. Se eles são incompetentes, muito dinheiro será prejudicial a eles", disse Yu ainda em 2009, segundo o jornal China Daily. Ele afirmou que seus filhos concordavam com sua decisão de doar sua fortuna. Em seu testamento, ele também pediu que sua família mantivesse vivo seu legado de benfeitorias, que vão desde cirurgias de catarata para pessoas necessitadas a bolsas de estudo em universidades chinesas. Outros bilionários de diversos setores - desde mercado financeiro até tecnologia e indústria do entretenimento - têm ido a público dizer que pretendem doar parte substancial de sua fortuna ainda em vida. Nomes como Richard Branson, Warren Buffet, Michael Bloomberg e Bill e Melinda Gates participam do The Giving Pledge (compromisso de dar, em tradução livre), autodescrito como "um compromisso dos indivíduos e famílias mais ricos do mundo em dedicar a maioria de sua fortuna a devolver (à sociedade)". No Brasil, um caso recente de adesão a esse pacto foi o de David Vélez (fundador do Nubank) e sua mulher, Mariel Reyes. Em carta divulgada em agosto, o casal afirmou que vai doar seu dinheiro para projetos sociais na América Latina porque "qual o sentido de morrer com muitas posses materiais, quando um gesto pode radicalmente transformar a jornada de outra pessoa?" Além disso, disseram, "depois de um certo ponto, riqueza adicional não traz felicidade ou utilidade adicionais. Mas a satisfação de criar uma vida de propósito, essa não tem fim. (...) Achamos que permitir que nossos filhos adquiram um senso de propósito, construindo seu próprio caminho e não andando sob o (caminho) de outros, vai ajudar a moldar sua autoconfiança e um caráter forte." Ao mesmo tempo, muitos críticos questionam se o Giving Pledge tem de fato resultado em doações significativas e volumosas - em relação ao tamanho do patrimônio de seus signatários - com a velocidade necessária para resolver problemas sociais urgentes. Em 2014, veio à tona uma mensagem do milionário Robert Wilson dizendo que não pretendia aderir ao pacto porque "esses ricaços adoram jogar alguns milhões (de dólares) por ano de forma a se manterem socialmente aceitáveis. Mas para por aí". Para outros críticos, o compromisso de doar fortunas não dispensa a necessidade de se discutir elevar a taxação dos indivíduos mais ricos da sociedade. Em janeiro deste ano, relatório da organização Oxfam apontou que a fortuna somada dos dez homens mais ricos do mundo havia crescido em US$ 540 bilhões durante a pandemia de covid-19, causando aumento da desigualdade social "durante a maior crise econômica no período de um século". A organização fez um apelo aos governos por aumentar os impostos sobre fortunas.
2021-11-03
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58728861
sociedade
Por que ter muito tempo livre pode ser tão estressante
O lazer é a recompensa, certo? Trabalhamos muito, por isso queremos nos divertir muito; aguardamos ansiosamente nossas folgas, acreditando que quanto mais tempo livre tivermos, melhor será a vida. Aproveitar esses momentos deveria ser algo que acontece naturalmente. No entanto, pesquisas mostram que tanto ter tempo livre, quanto decidir como aproveitá-lo pode ser muito estressante. Algumas pessoas sentem uma pressão enorme para aproveitar ao máximo as folgas da melhor maneira possível: pesquisando mais, se antecipando e gastando mais dinheiro. Mas, como os dados provam, essa pressão pode interferir em como aproveitamos o momento de lazer em si. Além disso, algumas pessoas têm dificuldade de ver o lazer como algo que vale a pena. Esses indivíduos — muitas vezes em empregos de alto estresse e alta remuneração — priorizam a produtividade ao ponto que não conseguem desfrutar de tempo livre, muitas vezes em detrimento de sua saúde mental. Por mais diferentes que sejam seus problemas com o lazer, os dois grupos têm dificuldade de aproveitar o tempo livre pelo mesmo motivo: a forma como percebemos e valorizamos o lazer mudou, de forma problemática. Entender essa evolução e encontrar maneiras de mudar nossas atitudes pode ser benéfico para todos — e ajudar as pessoas a começarem a se divertir de novo. "O lazer evoluiu dramaticamente ao longo dos séculos e entre as culturas", diz Brad Aeon, professor da Escola de Ciências da Gestão da Universidade de Quebec em Montreal, no Canadá. "Uma coisa consistente sobre o lazer, no entanto, é que ele sempre foi contrastado com o trabalho." Há 2 mil anos, os conceitos de trabalho e lazer eram associados à servidão e à liberdade, respectivamente. Na Grécia Antiga, explica Aeon, a maior parte do trabalho era tercerizado para escravos, enquanto as partes mais ricas da sociedade realizavam outras atividades. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O lazer era um estado mental ativo. Um bom lazer significava praticar esportes, aprender teoria musical, debater com colegas qualificados e fazer filosofia. Lazer não era algo fácil, mas deveria ser gratificante." Aeon acredita que ocorreu uma mudança quando os romanos começaram a ver o lazer como uma forma de se recuperar para se preparar para mais trabalho, uma transição que se acelerou significativamente durante a Revolução Industrial. Por volta de 1800, o tipo de lazer que significava status também havia mudado: os ricos levavam vidas abertamente ociosas. Um exemplo popular é a descrição do filósofo Walter Benjamin da moda, por volta de 1893, de caminhar pelas galerias com uma tartaruga na coleira. Anat Keinan, professora de marketing da Escola de Negócios Questrom da Universidade de Boston, nos Estados Unidos, conduziu uma extensa pesquisa sobre o valor simbólico do tempo. Ela explica que hoje estamos vendo mais uma transição: a falta de tempo de lazer agora funciona como um poderoso símbolo de status. "No Twitter, as celebridades 'desabafam' com falsa modéstia sobre 'não ter vida' e 'estar precisando desesperadamente de férias'", destaca. No ambiente profissional, fazer parte da cultura de longas jornadas de trabalho ainda é visto por muitos como uma medalha de honra. Na verdade, aqueles que têm mais dinheiro para gastar com lazer provavelmente também estão trabalhando por mais horas. "Pessoas com alto nível de escolaridade (pense em cirurgiões, advogados, altos executivos) geralmente buscam empregos bem remunerados que exigem candidatos altamente produtivos dispostos a trabalhar por muitas horas", explica Aeon. "Isso significa que aqueles que mais reclamam de não ter tempo livre suficiente são ricos e instruídos." Isso alimenta a ideia de que devemos maximizar a "utilidade hedônica" do lazer, ou o valor do prazer, quando realmente temos algum tempo de folga — e fazer valer cada segundo. Os economistas chamam a ideia de que devemos maximizar nosso tempo livre de intensificação do valor do tempo de lazer. No livro Spending time: The most valuable resource ("Gastando o Tempo: o recurso mais valioso", em tradução livre), o economista americano Daniel Hamermesh explica que "nossa capacidade de comprar e desfrutar de bens e serviços aumentou muito mais rápido do que a quantidade de tempo disponível para apreciá-los". Essa pressão se manifesta em nossas decisões. "Sentimos que queremos ter o melhor retorno para nosso dinheiro e tempo", explica Aeon. "Então investimos mais dinheiro em lazer. Melhores hotéis, melhores experiências de cinema — como IMAX ou Netflix em 4K." Tudo isso pode levar a horas de análise sobre avaliações, planejando cuidadosamente as atividades de lazer. Isso pode não ser algo necessariamente ruim, descobriram os pesquisadores, uma vez que a preparação antes da viagem contribui em grande parte para a felicidade dos turistas. Mas muita expectativa também pode ser uma armadilha. Uma nova pesquisa mostra que julgamos os eventos futuros positivos como mais distantes e mais curtos do que os negativos ou neutros, nos levando a sentir que as férias acabam assim que começam. Da mesma forma, a maneira como buscamos experiências de lazer de alto nível tornou a recreação mais estressante do que nunca. Altas expectativas podem entrar em conflito com a realidade vivenciada, tornando-a um anticlímax; enquanto tentar planejar as melhores férias ou experiências de lazer de todos os tempos pode alimentar a performatividade. Em seu artigo de pesquisa de 2011, Keinan primeiro propôs que alguns consumidores trabalham para adquirir experiências colecionáveis ​​que são incomuns, novas ou extremas porque ajudam a enquadrar nosso lazer como sendo produtivo. Ao focar no nosso "checklist" de experiências em vez de buscar simplesmente aproveitar o momento, ela escreve, construímos nosso "currículo de experiências". E, assim como um currículo tradicional, onde mostramos o que temos de melhor, este currículo de experiências pode se tornar um terreno fértil para a competição. Keinan acredita que as redes sociais exacerbam nosso foco no lazer produtivo. Fazendo referência a um artigo de pesquisa de 2021, ela sugere que as pessoas passaram a sinalizar seus status e conquistas em domínios alternativos — neste caso, no uso de seu tempo livre. "Os usuários postam apresentações de si mesmos cuidadosamente selecionadas, cruzando as linhas de chegada de maratonas e subindo Machu Picchu. O consumo ostensivo costumava ser uma forma de as pessoas exibirem seu dinheiro por meio de bens de luxo escassos. Agora, elas ostentam como gastam seu valioso tempo apenas em atividades que são verdadeiramente significativas, produtivas ou espetaculares", diz ela. Alguns indivíduos têm dificuldade de aproveitar o lazer. Alguns tentam "hackear" o lazer aplicando técnicas de produtividade, diz Aeon, como ouvir um podcast enquanto correm ou assistir a séries do Netflix com o dobro da velocidade normal. Outros podem nem sequer tirar folga. Por exemplo, apenas 14% dos americanos tiram férias por duas semanas seguidas, uma descoberta alinhada à cultura do excesso de trabalho. O mesmo estudo mostra que, em 2017, 54% dos trabalhadores americanos não utilizaram o tempo todo de férias, deixando 662 milhões de dias reservados para o lazer sem uso. Parte do problema, revela uma nova pesquisa, é como internalizamos de forma abrangente a mensagem de que o lazer é um desperdício. Selin Malkoc, professora de marketing da Escola de Negócios Fisher da Universidade do Estado de Ohio, nos Estados Unidos, e coautora do estudo, diz que certas pessoas consideram o lazer sem valor, mesmo quando não interfere na busca de seus objetivos. Essas crenças negativas sobre o lazer estão associadas a um nível mais baixo de felicidade e mais alto de depressão, ansiedade e estresse. Malkoc descreve dois tipos de lazer: "lazer com finalidade", em que a atividade e o objetivo se "fundem", como participar de uma festa de Halloween apenas por diversão, é imediatamente gratificante e um objetivo em si; e "lazer instrumental", como levar uma criança para pegar doces e, assim, cumprir o dever de pai, que é um meio para um fim e alimenta um objetivo de longo prazo. A capacidade de desfrutar do lazer com finalidade é um indicador mais forte de bem-estar do que o prazer do lazer instrumental, mostrou o estudo. Em um dos experimentos da pesquisa, Malkoc e seus colegas queriam ver se conseguiam manipular as crenças dos participantes sobre o lazer e levá-los a aproveitá-lo mais. Cada grupo recebeu uma versão diferente de um artigo que abordava o entendimento do lazer, seja como um desperdício em termos de cumprimento de metas, improdutivo ou como uma forma produtiva de gerenciar o estresse. Os participantes foram então convidados a avaliar o quão bem escrito o artigo havia sido. Mas os pesquisadores estavam mais interessados ​​no que viria depois. Eles ofereceram aos participantes um intervalo e deram a eles um vídeo engraçado para assistir para ver o quanto eles se divertiam. Infelizmente, influenciar nossas crenças sobre o lazer só funciona em uma direção, descobriram os pesquisadores — na direção errada. Aqueles que leram os artigos que consideravam o lazer um desperdício curtiram de 11% a 14% menos a experiência do que o grupo de controle, que leu sobre cafeteiras, enquanto os que foram instruídos a acreditar que o lazer é produtivo não tiveram seus níveis de prazer aumentados. Em outras palavras, tentar estimular a receptividade dos participantes no sentido de desfrutar mais do lazer foi tão eficaz quanto fazê-los ler sobre o café, sugerindo que nossas atitudes estão profundamente arraigadas. É uma descoberta preocupante. "Tivemos um grupo de alunos de graduação no laboratório fazendo uma série de estudos chatos e entediantes — não havia nada agradável nisso", diz Malkoc. "E então, oferecemos a eles um intervalo mental para assistirem a um vídeo divertido. O fato de que, mesmo sem poder usar aqueles breves momentos para algo melhor, eles ainda não conseguiram se divertir... atesta a força de sua crença." Malkoc também comparou amostras de diferentes países. Participantes da Índia e dos Estados Unidos, ambas nações com culturas de excesso de trabalho, endossaram a crença de que o lazer é um desperdício com mais força do que os participantes da França, que tem normas sociais "menos restritivas para aproveitar a vida e se divertir". Na verdade, enquanto Malkoc estima que cerca de 30% da população em média partilha da crença de que o "lazer é um desperdício", isso varia muito entre as culturas, chegando a 55% na amostra indiana e a 15% na amostra francesa. Felizmente, há maneiras de ajudar os dois grupos. A primeira é relaxar a mentalidade de produtividade. Para aqueles que buscam intensificar o lazer, Aeon recomenda o uso da regra de pico-fim, um viés cognitivo que influencia a maneira como nos lembramos dos eventos. Keinan diz que uma maneira de fazer isso é "adotando uma perspectiva mais ampla da vida e antecipando seus arrependimentos de longo prazo, pois isso permite que as pessoas aproveitem mais o presente". Por exemplo, segundo ele, no consultório do dentista, nos lembramos do pico (quando a dor foi pior) e do fim (os doces que recebíamos ao sair); a soma média dessas experiências ajusta a intensidade emocional. Então, no caso das férias, ele recomenda fazer algo que é "completamente insano" no meio, como saltar de bungee jump, e algo igualmente grandioso no final (por exemplo, um dia de spa ou uma refeição indulgente) para elevar toda a experiência e maximizar a utilidade hedônica em geral. Ele recomenda usar a atenção plena (mindfulness) para ajudar a aproveitar as experiências de lazer. "Isso expande sua percepção subjetiva do tempo (ou seja, você sente que tem mais tempo) e melhora a formação da memória, o que significa que você não apenas sentirá que suas férias duraram mais, mas se lembrará delas muito melhor." E, em sintonia com a pesquisa sobre expectativa, ter várias férias menores pelas quais esperar, em vez de uma grande, também pode maximizar nosso valor do prazer. Para aqueles que acham difícil tirar folga, Keinan sugere o uso de um álibi funcional — uma desculpa prática para se divertir. "Ter um 'álibi funcional' que articula um propósito para uma atividade (como os benefícios para a saúde e produtividade de tirar férias) permite que muitos consumidores relaxem sem se sentirem culpados", diz ela. Combater a mentalidade de que "lazer é um desperdício" também pode significar enfatizar o valor de uma atividade alinhando-a com outro objetivo utilitário, em vez de tentar reformular o lazer como um conceito. "As férias são destinadas a ser (um lazer) 'com finalidade', mas podemos ter diferentes objetivos embutidos nelas", diz Malkoc. Uma viagem à Disney, por exemplo, pode ter valor de finalidade para os filhos e oferecer lazer instrumental para os pais. "Fazê-los entender que esta é uma maneira de se tornar produtivo ou alimentar outro propósito pode ajudá-los a baixar a guarda e aproveitar um pouco mais." Aproveitar o lazer pode até ser resultado de um aprendizado, semelhante à maneira como aumentamos a resistência gradualmente na academia. Férias menores — uma escapada de 30 horas em um hotel — podem ser curtas o suficiente para essas pessoas deixarem as responsabilidades para trás. Para viagens mais longas, Malkoc sugere que permitir que indivíduos motivados trabalhem durante uma breve janela uma vez por dia pode, na verdade, ser menos estressante do que pedir que se desliguem completamente. Para ambos os grupos — e até mesmo aqueles que se encontram em algum lugar no meio — o medo persistente de que não estamos usando nosso tempo da forma "certa", seja por não ser uma experiência extravagantemente "colecionável" ou apenas por ser superprodutivo, pode inviabilizar o próprio propósito do lazer. Porque a única maneira "certa" de usufruir do lazer é relaxar, baixar a guarda, guardar boas lembranças e confiar que as peças vão se encaixar. "Se você aborda as férias com uma mentalidade de 'dever', você pode estar estragando tudo", adverte Malkoc. "Não deixe a crença de que você 'precisa tirar o melhor proveito disso' tirar o melhor de você."
2021-11-01
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-58875464
sociedade
O que é a leitura profunda e por que ela faz bem para o cérebro
A pesquisa da neurocientista Maryanne Wolf aponta que "não há nada menos natural do que ler" para os seres humanos — mas isso não é de forma alguma ruim. "A alfabetização é uma das maiores invenções da espécie humana", diz a especialista americana. Além de útil, é tão poderosa que transforma nossas mentes: "Ler literalmente muda o cérebro", diz ela. O avanço da tecnologia e a proliferação das mídias digitais, contudo, têm modificado profundamente a forma como lemos. Apesar de estarmos lendo mais palavras do que nunca — uma média estimada de cerca de 100 mil por dia —, a maioria vem em pequenas pílulas nas telas de celulares e computadores, e muita coisa é lida "por alto". Essas mudanças de hábito têm preocupado cientistas, entre outros motivos, porque a transformação de novas informações em conhecimento consolidado nos circuitos cerebrais requer múltiplas conexões com habilidades de raciocínio abstrato que muitas vezes faltam na leitura "digital". Ao contrário da linguagem oral, da visão ou da cognição, não existe uma programação genética nos humanos para aprender a ler. Se uma criança, em qualquer parte do mundo, estiver em um ambiente em que as pessoas a seu redor conversam umas com as outras, sua linguagem será naturalmente ativada. O mesmo não acontece com a leitura, que implica a aquisição de um código simbólico completo, visual e verbal. É uma invenção relativamente recente — "é uma piscadela em nosso relógio evolutivo: mal tem 6 mil anos", diz Wolf. "Começou de forma simples, para marcar quantas taças de vinho ou ovelhas tínhamos. E, com o nascimento dos sistemas alfabéticos, passamos a ter um meio eficiente de armazenar e compartilhar conhecimento." "Ler é um conjunto adquirido de habilidades que literalmente muda o cérebro", ressalta a neurocientista. "Permite fazer novas conexões entre regiões visuais, regiões da linguagem, regiões de pensamento e emoção", completa. Essa transformação "começa com cada novo leitor". "(A habilidade de ler) Não existe dentro de nossa cabeça. Cada pessoa que aprende a ler tem que criar um novo circuito em seu cérebro." E isso abre portas para um novo mundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "A leitura traz três poderes mágicos: criatividade, inteligência e empatia", pontua Cressida Cowell, escritora de literatura infantil e autora da série Como Treinar Seu Dragão. "Ler por prazer é um dos fatores-chave para o sucesso financeiro de uma criança na vida adulta. É mais provável que ela não acabe na prisão, que vote, que tenha casa própria…" Além disso, "ler uma grande história é muito mais do que entretenimento", acrescenta a biblioterapeuta Ella Berthoud. "A leitura, na verdade, tem muitos benefícios terapêuticos. Seu cérebro entra em um estado meditativo, um processo físico que retarda o batimento cardíaco, acalma e reduz a ansiedade", diz Berthoud. Para ela, por exemplo, ler o romance Zorba, o Grego, de Níkos Kazantzákis, funciona como um remédio conta "claustrofobia, raiva e exaustão". A arte de prescrever ficção para curar as doenças da vida, batizada de biblioterapia, foi reconhecida no Publisher's Illustrated Medical Dictionary, um dicionário médico ilustrado publicado nos Estados Unidos em 1941. A prática remonta à Grécia Antiga, quando avisos eram afixados nas portas das bibliotecas para alertar os leitores de que estavam prestes a entrar em um local de cura da alma. No século 19, psiquiatras e enfermeiras prescreveram todos os tipos de livros para seus pacientes, desde a Bíblia até literatura de viagem e textos em línguas antigas. Vários estudos mais recentes, dos séculos 20 e 21, mostraram que a leitura aguça o pensamento analítico, o que nos permite aprimorar nossa capacidade de discernir padrões, uma ferramenta muito útil diante de comportamentos desconcertantes dos outros e de nós mesmos. A ficção, em particular, pode transformar os leitores em pessoas mais socialmente habilidosas e empáticas. Os romances, por sua vez, podem informar e motivar, os contos confortam e ajudam a refletir, enquanto a leitura de poesia já demonstrou estimular partes do cérebro relacionadas à memória. Muitos desses benefícios, no entanto, dependem de um estado conhecido como "leitura profunda". "Quando lemos em um nível superficial, estamos apenas obtendo a informação. Quando lemos profundamente, estamos usando muito mais do nosso córtex cerebral", explica Maryanne Wolf. "Leitura profunda significa que fazemos analogias e inferências, o que nos permite sermos humanos verdadeiramente críticos, analíticos e empáticos." Em seu livro Proust and the Squid: The Story and Science of the Reading Brain ("Proust e a Lula: a História e a Ciência por Trás do Cérebro que Lê", em tradução livre), a especialista em neurobiologia da leitura explica como, "a certa altura, quando uma criança vai da decodificação à leitura fluente, o caminho dos sinais através do cérebro muda". "Em vez de percorrer um trajeto dorsal (...), a leitura passa a se deslocar por um caminho ventral, mais rápido e eficiente. Como o tempo depreendido e o gasto de energia cerebral são menores, um leitor fluente será capaz de integrar mais seus sentimentos e pensamentos à sua própria experiência", escreve. "O segredo da leitura está no tempo que ela libera para que o cérebro possa ter pensamentos mais profundos do que antes." Mas, enquanto o processo de aprender a ler muda nosso cérebro, o mesmo acontece com o que lemos e como lemos. Há aqueles, contudo, que acreditam que as novas plataformas são parte da solução, e não do problema. Para Chris Meade, autor que utiliza vários tipos de mídia para veicular seu trabalho, "pensamos no livro como a obra, mas o livro é apenas um mecanismo de entrega". A narrativa transmídia é um tipo de história em que o enredo se desenrola por meio de múltiplas plataformas — aplicativos, livros digitais, games, quadrinhos, blogs — e na qual os consumidores podem assumir um papel ativo no processo de construção. "As novas mídias estão dando voz a uma nova geração de escritores. Elas impedem que nos condicionemos a pensar que existe apenas um tipo de 'boa escrita' e permitem que as pessoas simplesmente compartilhem histórias e experiências", opina Natalie A. Carter, cofundadora do clube do livro Black Girls Book Club. "Não importa o meio, é a história que importa", emenda Melissa Cummings-Quarry, também cofundadora do Black Girls Book Club. "O romance está evoluindo. Há todo tipo de livro incrível sendo escrito especificamente para ser lido no celular", afirma Berthoud. "O livro talvez passe a ilusão de que ele é tudo. Nunca foi, é uma forma de entrar em um processo de pensamento", diz Meade. Ainda assim, os cientistas afirmam que a leitura digital pode ter um custo para o cérebro do leitor. "Reunimos acadêmicos e cientistas de mais de 30 países para pesquisar o impacto das mídias digitais na leitura", afirma Anne Mangen, à frente da E-READ (Evolução da Leitura na Era da Digitalização), organização cujo objetivo é melhorar a compreensão científica das implicações da digitalização da cultura. Faz parte do programa internacional da Cooperação Europeia em Ciência e Tecnologia (ou COST, sigla para European Cooperation in Science and Technology), que considera a leitura um "tema urgente". Segundo o programa, "a pesquisa mostra que a quantidade de tempo gasto na leitura de textos longos está diminuindo e, devido à digitalização, a leitura está se tornando mais intermitente e fragmentada", algo que poderia "ter um impacto negativo nos aspectos cognitivos emocionais da leitura". "Descobrimos que existe o que se chama de inferioridade na tela", destaca Anne Mangen. "Há muitas coisas que podem ser lidas igualmente bem no smartphone, como as notícias mais curtas, mas, quando se trata de algo que é cognitiva ou emocionalmente desafiador, ler em uma tela leva a uma compreensão de leitura pior do que ler no papel", diz ela. Maryanne Wolf concorda, dizendo que "a realidade é que não é apenas o que ou o quanto lemos, mas como lemos que é realmente importante". "O próprio volume [de informação disponível nas plataformas digitais] está tendo efeitos negativos porque, para absorver tanto, há uma propensão a se ler 'por alto'. O cérebro leitor tem um circuito plástico, que refletirá as características do meio em que se lê. As características do digital caminham para que sejam refletidas no circuito." Em outras palavras, assim como ao aprender a ler da maneira tradicional o cérebro formata e registra os itinerários da razão e os caminhos para a emoção, ao aprender a ler da maneira como fazemos nas mídias digitais o cérebro traçará diferentes trajetórias e, se deixarmos a leitura profunda de lado, ele apagará as anteriores, caso tenham um dia existido. "Se não treinarmos essas habilidades, podemos acabar perdendo a capacidade de entender conteúdos mais complexos e, talvez, de nos envolvermos e usarmos a imaginação", destaca Mangen. Então, o que o futuro reserva para os livros e para o cérebro da leitura? "A imaginação humana é uma coisa fantástica, somos muito flexíveis. Encontramos maneiras de fazer o que queremos com a tecnologia disponível", pontua Chris Meade. Para Natalie Carter, o futuro trará "muito mais coleções de contos, e acho que veremos muito mais livros curtos". Nesse sentido, Cressida Cowell diz já ter sentido a mudança: "Mudei a maneira como escrevo, porque o tempo de atenção das crianças diminuiu. Os livros têm capítulos curtos e são incrivelmente visuais, brilhantes, como doces". Para a neurocientista Maryanne Wolf, "assim como as pessoas podem ser bilíngues e trilíngues, minha esperança é que desenvolvamos um cérebro 'biletrado'. Podemos nos disciplinar para escolher o meio que melhor se adapta ao que estamos lendo e, assim, não perder o dom extraordinário que a leitura deu à nossa espécie".
2021-11-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59121175
sociedade
Como é viver onde faz 50ºC?
A crise climática não é mais uma preocupação sobre o futuro. Em muitas partes do mundo, ela já começou. O ano de 2021 foi o mais quente já registrado. Milhões de pessoas estão vivendo em temperaturas extremas, enfrentando uma ameaça crescente de enchentes ou incêndios florestais. A seguir, cinco pessoas em diferentes partes do mundo explicam como as temperaturas extremas mudaram suas vidas. Shakeela Bano costuma colocar as roupas de cama de sua família na laje de sua casa de um andar na Índia. É que algumas noites são muito quentes para dormir dentro de casa. Mas a superfície pode estar quente demais para andar. "É muito difícil", diz ela. "Temos muitas noites sem dormir." Shakeela mora com o marido, a filha e três netos em um quarto sem janelas em Ahmedabad. Eles têm apenas um único ventilador de teto para mantê-los frescos. Com a mudança climática, muitas cidades na Índia estão agora atingindo 50°C. As áreas densamente povoadas e construídas são particularmente afetadas por algo conhecido como efeito de ilha de calor urbana. Materiais como concreto prendem e irradiam calor, elevando as temperaturas. E não há trégua à noite, quando pode, na verdade, ficar mais quente. Em casas como a de Shakeela, as temperaturas agora chegam a 46°C. Ela fica tonta com o calor. Seus netos sofrem de erupções cutâneas, exaustão pelo calor e diarreia. Os métodos tradicionais para se manter fresco, como beber água com limão, não funcionam mais. Em vez disso, eles pediram dinheiro emprestado para pintar o telhado de sua casa de branco. As superfícies brancas refletem mais luz do sol e uma camada de tinta branca no telhado pode reduzir as temperaturas internas em 3 a 4 graus. Para Shakeela, a diferença é enorme; o quarto é mais fresco e as crianças dormem melhor. "Ele não dormia durante a tarde", diz ela, apontando para o neto adormecido. "Agora ele pode adormecer em paz." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Eu venho de um lugar quente", diz Sidi Fadoua. Mas o calor no norte da Mauritânia, no oeste da África, agora é quente demais para muitas pessoas viverem e trabalharem. O calor aqui não é normal, diz ele. "É como fogo." Sidi, de 44 anos, mora em uma pequena vila perto dos limites do Saara. Ele trabalha como mineiro de sal em locais próximos. O trabalho é árduo e fica mais difícil à medida que a região esquenta devido às mudanças climáticas. "Não podemos suportar tais temperaturas", diz ele. "Não somos máquinas." Para evitar temperaturas acima de 45°C no verão, Sidi começou a trabalhar à noite. As perspectivas de emprego são escassas. Aqueles que antes ganhavam a vida criando gado não podem mais fazer isso - não há plantas para as ovelhas e cabras pastarem. Assim como um número cada vez maior de seus vizinhos, Sidi tem planos de migrar para a cidade costeira de Nouadhibou, onde a brisa do mar mantém a cidade mais fresca. Os moradores locais podem pegar uma carona lá em um dos trens mais longos do mundo, levando minério de ferro para a costa. "As pessoas estão se mudando daqui", explica Sidi. "Não aguentam mais o calor." A rota de 20 horas é perigosa. Os moradores locais podem sentar-se no topo das carruagens, onde são expostos ao calor e à luz solar durante o dia, antes que as temperaturas caiam muito à noite. Em Nouadhibou, ele espera encontrar trabalho na indústria pesqueira. A brisa pode trazer alívio, mas com o número cada vez maior de pessoas escapando do calor do deserto, é mais difícil encontrar oportunidades de trabalho. Sidi continua esperançoso. Patrick Michell, chefe do Kanaka Bar First Nation, começou a notar mudanças preocupantes na floresta perto de sua reserva em British Columbia, no Canadá, há mais de três décadas. Havia menos água nos rios e os cogumelos pararam de crescer. Neste verão, seus medos se tornaram realidade. Uma onda de calor estava varrendo a América do Norte. Em 29 de junho, sua cidade natal, Lytton, bateu recordes, chegando a 49,6ºC. No dia seguinte, sua esposa enviou-lhe a foto de um termômetro que indicava 53ºC. Uma hora depois, sua cidade estava em chamas. Sua filha, Serena, grávida de oito meses, correu para colocar seus filhos e animais de estimação no carro: "Saímos com as roupas do corpo. As chamas tinham três andares de altura e estavam bem ao nosso lado." Patrick correu de volta para ver se poderia salvar a casa. Ele cresceu lidando com incêndios florestais. Mas, assim como o clima, os incêndios também mudaram. "Não são mais incêndios florestais, são infernos", diz ele. "Como você acaba com um inferno?" Apesar das circunstâncias familiares, Patrick vê o que aconteceu como uma oportunidade: "Podemos reconstruir Lytton para o meio ambiente que está por vir nos próximos 100 anos. É assustador, mas em meu coração existe esse otimismo." "Quando eu era criança, o clima não era assim", diz Joy, que mora no Delta do Níger, na Nigéria. A região é uma das mais poluídas da Terra, e os dias e noites mais quentes estão aumentando. Joy sustenta sua família usando o calor de chamas a gás para secar tapioca e vender o produto em um mercado local. "Eu tenho cabelo curto", explica Joy, "porque se eu deixar meu cabelo crescer, ele pode queimar minha cabeça se a chama mudar de direção ou explodir." Mas as chamas são parte do problema. As empresas petrolíferas as usam para queimar o gás que é liberado do solo quando fazem a prospecção de petróleo. As chamas, que atingem 6 metros (20 pés) de altura, são uma fonte significativa de emissões globais de CO2, que contribuem para as mudanças climáticas. A mudança climática teve um impacto devastador aqui, transformando terras férteis em desertos no norte, enquanto enchentes repentinas atingiram o sul. As pessoas não se lembram de um clima tão extremo enquanto cresciam. "A maioria das pessoas aqui não está bem informada o suficiente para explicar por que o clima está mudando rapidamente", diz Joy. "Mas suspeitamos das chamas contínuas." Ela quer que o governo proíba a queima de gás, embora dependa disso para sustentar sua família. Quase nenhuma riqueza do petróleo foi reinvestida na Nigéria, onde 98 milhões de pessoas vivem na pobreza. Isso inclui Joy e sua família. Por cinco dias de trabalho, eles ganham o equivalente a R$ 30 de lucro. Ela não está otimista quanto ao futuro. "Acho que a vida (na Terra) está chegando ao fim." Seis anos atrás, Om Naief começou a plantar árvores em um pedaço de deserto perto de uma rodovia. Funcionária pública aposentada do Kuwait, ela estava preocupada com as temperaturas cada vez mais severas do verão e o agravamento das tempestades de poeira. "Falei com alguns funcionários. Todos disseram que era impossível plantar algo na areia", diz ela. "Disseram que a terra era arenosa e a temperatura muito alta. Eu queria fazer algo que surpreendesse a todos." Om mora no Oriente Médio, que está esquentando mais rápido do que grande parte do mundo. O Kuwait caminha para temperaturas insuportáveis ​​- costuma ser mais quente do que 50°C. Algumas previsões sugerem que a temperatura média aumentará 4°C até 2050. No entanto, a economia do Kuwait é dominada pelas exportações de combustíveis fósseis. Os dois canteiros que Om plantou são modestos, mas têm um propósito. "As árvores protegem da poeira, eliminam a poluição, limpam o ar e reduzem as temperaturas", diz ela. Ouriços-terrestres e lagartos de cauda espinhosa agora visitam o local. "Há água doce e sombra. É uma coisa linda." Alguns kuwaitianos estão pedindo agora que um cinturão verde em grande escala seja plantado pelo governo. A esperança compartilhada é que o Kuwait esteja pronto para se posicionar contra a crise climática. Om diz que eles devem proteger a terra e não deixá-la secar. "Este calor não é normal", conclui Om. "Esta é a terra dos nossos pais. Devemos retribuir, porque ela nos deu muito."
2021-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59110560
sociedade
As 25 séries que definem o século 21
"A televisão sempre revela algo a respeito de quem somos", diz o crítico Caryn James. Em pesquisas anteriores, nós pedimos a críticos que escrevessem sobre os 25 filmes que haviam ficado no topo da lista de 100. Neste ano, fizemos algo diferente: pedimos a críticos de diferentes países que refletissem sobre os 25 programas que mais definem o século 21. Estas são as séries — listadas sem uma ordem específica — que são tanto influentes como significativas, que romperam limites, que refletiram a vida especificamente neste século ou mudaram, de alguma maneira, a cultura da TV. São os programas que expõem nossas verdades, esperanças e medos. Todas essas séries extraordinárias dizem algo sobre as pessoas, não importa de que parte do mundo elas sejam. Todas oferecem algo único a nós, espectadores: uma compreensão do nosso mundo, um discernimento a respeito de outros seres humanos, ou, o que é igualmente importante, a oportunidade de rir deste século em que vivemos — e nos encantarmos com ele. Segue abaixo a lista das séries, sem ordem específica (a série The Office aparece duas vezes, nas suas versões britânica e americana): 1. RuPaul's Drag Race RuPaul's Drag Race é pura alegria. O programa foi tão incorporado no dia-a-dia de tanta gente que o hábito de estalar a língua transformou-se numa linguagem universal. Enfiou-se na cultura geral e nos nossos corações - e, depois de 12 anos, é hoje um comprovado fenômeno, tendo recebido prêmios e transformado o setor televisivo num lugar mais inclusivo e anárquico. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast RuPaul e sua equipe pegaram a arte drag de bares das grandes cidades e a transportaram para milhões de lares, apresentando este mundo para aqueles que ainda não conheciam e transformando suas dedicadas drag queens em estrelas. A competição conseguiu subverter o espaço heteronormativo dos realities, enquanto inspirava suas legiões de fãs a ter orgulho de sua individualidade. Onde mais, no mundo da TV popular, você poderia encontrar discussões dolorosamente honestas sobre crescer sendo homossexual, terapia de conversão, direitos das pessoas trans, racismo, imagem corporal, moradores de rua, serviços de saúde e homofobia? Drag Race ofereceu uma visibilidade muito necessária, no meio de seu humor e sua vivacidade. O programa celebra a performance e os artifícios, abraçando a crença de que não importa o quão difícil o jogo da vida fique, nós sempre podemos no recriar e seguir em frente. Nós podemos aprender a amar a nós mesmos, com nossas falhas e tudo mais. Jennifer Gannon, jornalista e apresentadora freelancer (Irlanda) 2. Mad Men "Nostalgia. É algo delicado, mas potente." O independente mas moralmente dúbio Don Draper nos diz isso logo no começo de Mad men, e isso nos ajuda a capturar a magia entre as qualidades de riqueza e assombro do drama de Matthew Weiner, passado no século 20, que examina as maquinações internas de uma agência de publicidade em Nova York. No papel de Don, Jon Hamm criou um anti-herói histórico, mas o elenco todo sempre foi uma enorme oferta de altíssima qualidade. As personagens femininas eram especialmente fortes e ímpares, cada uma de sua maneira, da ambição discreta de Peggy Olson, interpretada por Elisabeth Moss, aos ressentimentos e tristeza passivos exibidos por January Jones, na pele de Betty Draper. Mad Men foi uma série que sempre priorizou os personagens, recompensando os espectadores com uma evocação viva, num estilo de romance de uma era que não existe mais, e mostra como todos estamos nos debatendo com o quebra-cabeça de como promovermos a nós mesmos. Lewis Knight, jornalista da área de TV (Reino Unido) 3. Lost Lost alterou o panorama de como assistir a programas de TV de várias maneiras, muitas das quais continuam sendo sentidas 17 anos depois que o drama de estilo desastre desabou na TV em 2004. Seus criadores construíram uma mitologia em torno da misteriosa ilha da série que enviou seus fãs para para decifrar pistas na internet, hoje em dia uma prática extracurricular comum para aqueles obcecados com séries baseadas em enigmas. Eles também fizeram com que nós nos envolvêssemos profundamente com seus personagens, um grupo diverso etnicamente de almas errantes que refletiam uma sociedade cada vez mais interconectada globalmente. Lost tornou-se popular enquanto as mídias sociais ganhavam posição de destaque, fazendo com que fosse o primeiro programa a gerar conversas enormes nos nossos novos bebedouros globais: Twitter e Facebook. Numa época em que havia alguma dúvida a respeito disso, Lost provou que o público adorava histórias contadas em capítulos que exigem investimento numa narrativa de grande escopo. Foi uma série envolvente, divertida, emocionalmente enriquecedora que elevou nossas expectativas sobre o que a TV poderia ser no início do novo século - e também nos mostrou como ela seria nas próximas décadas. Jen Chaney, jornalista da área de TV do site Vulture, parte da revista New York (Estados Unidos) 4. La Casa de Papel Quando as pessoas recorreram aos sites de streaming para preencher seus dias durante a pandemia de Covid-19, uma série em particular avançou além das outras, com 65 milhões de espectadores nas primeiras quatro semanas em que quase o mundo todo ficou sob confinamento: La Casa de Papel. E é óbvio o motivo: La Casa de Papel é incansável. Essa série de ação foi criada para espectadores do século 21, com mudanças na trama que nunca decepcionam, com bom ritmo e interpretações fantásticas de cada ator. Quando o gato e o rato mudam de lado, você vê como a decisão moralmente cinzenta de um homem pode afetar toda uma sociedade. Se você pudesse fazer um curso sobre linhas borradas entre bom e mau, então o criador da série, Álex Pina, seria o professor. Embora alguma partes possam parecer forçadas, e algumas pessoas possam discutir a existência de furos no argumento da série, não há como negar que os fãs continuarão vendo por amor. La Casa de Papel é totalmente ridícula, e nós simplesmente não conseguimos parar de ver. Ingunn Lára Kristjánsdóttir, jornalista de TV, Fréttablaðið (Iceland) 5. Planeta Terra (Planet Earth) A deslumbrante narração de David Attenborough captura o espírito de Planeta Terra, uma série épica com toda a brincadeira, curiosidade e seriedade desse grande apresentador britânico de programas sobre a natureza. Com a ameaça da crise climática e a extinção em massa de muitas espécies, Planeta Terra nos mostra por que vale a pena salvar a natureza, com o público gritando em apoio a uma iguana que tenta fugir de cobras ou uma morsa protegendo seu filhote de um faminto urso polar. A série inicial (2006) foi filmada num sistema de alta definição (HD) pioneiro, durante cinco anos, e a continuação (2016) levou quase seis. Imagens da produção atrás das câmeras mostrando como algumas das cenas mais difíceis foram filmadas torna a magia ainda maior. Enquanto muitos programas de TV levam à introspecção, Planeta Terra pediu a seu público que olhasse para fora, para ver um mundo cheio de maravilhas que precisam ser celebradas. Leila Latif, jornalista da área de TV (Reino Unido) 6. Orange Is the New Black Tradicionalmente, nós - os espectadores - estamos acostumados a ver homens na prisão. Especialmente aqueles homens maus cheios de tatuagem, prontos a fazer arruaça, que se tornam ainda mais brutos devido às duras condições de vida dentro do sistema prisional. Por isso Orange Is the New Black (OITNB), com seu foco num grupo variado de prisioneiras, do sexo feminino, caiu como um sopro de ar fresco. A série também era admiravelmente sutil e equilibrada: não havia personagens boas ou más, apenas pessoas de verdade. Apesar das mudanças no comando - vários diretores estiveram envolvidos no projeto -, a série de sete temporadas nunca sai dos trilhos ou deixa a fundação em que é baseada. O programa também ajudou a incentivar o diálogo em torno de injustiças político-sociais predominantes nos Estados Unidos, que também são relevantes para outras partes do mundo, e ousou falar sobre a vida num unidade do ICE (centro de imigração dos EUA). "Orange" ainda abriu caminho para personagens mais complexos do sexo feminino, de todos os tipos - quem que sejam, quaisquer que sejam os "pecados" que tenham cometido. Pallabi Purkayastha, jornalista do setor digital, WION (Índia) 7. A Escuta (The Wire) A Escuta nunca deixou de ter ambição. Seu enfoque, e a forma como nós, espectadores, ainda a experimentamos, era tanto pessoal como política, grande e pequeno, enquanto buscava uma verdade não pronunciada e ainda conseguia nos fazer rir, chorar e sorrir. Foi uma série que informou e entreteve. Aqui, como em todo grande show, o texto era interligado com os atores. Nós nos importávamos com todo rosto que aparecia, mesmo que fosse brevemente, e imaginávamos o que acontecia com eles depois que David Simon e Ed Burns focavam suas lentes em algum outro lugar. A Escuta, assim como Os Sopranos, é o padrão de referência para grande televisão no século 21. Até hoje, seu estilo novelístico de contar uma história ainda não foi superado, apesar de muitos terem tentado. Também é, e provavelmente talvez sempre seja, a série mais humana já produzida. Mattias Bergqvis, jornalista da área de TV, jornal Expressen (Suécia) 8. Steven Universe É difícil dizer se alguém poderia ter previsto que um desenho de criança, sobre um menino mágico que sai em aventuras com alienígenas, se tornaria uma das mais emocionantes explorações sobre gênero, colonialismo e trauma da nossa era. Mas, de alguma forma, Steven Universe conseguiu transcender suas origens e construir uma mitologia tão vasta que capturou a imaginação tanto de adultos como de crianças. A série, às vezes um musical, oferece breves lições sobre amor e bondade em episódios curtos, de 11 minutos de duração. O personagem principal trouxe otimismo e honestidade à teia de destruição geracional que ele tinha como missão encerrar. O amplo elenco do programa levou ao surgimento de metáforas perfeitas para todo tipo de coisa, de autonomia corporal e consentimento a depressão, ansiedade e amor não correspondido. Enquanto Steven crescia, a temática do show crescia com ele, lidando com sentimentos difíceis da adolescência e da vida adulta e a necessidade de passar por cima de ferimentos do nosso passado. Enquanto as aventuras continuaram num filme musical e numa série final, é a produção original, de cinco temporadas, que é o coração e a alma do caráter progressista do programa, em torno do valor de relações gays, família e o poder transgressor do amor incondicional. Catherine Young, crítica freelancer de cinema e cultura (Trinidad e Tobago) 9. Grey's Anatomy Com Grey's Anatomy, Shonda Rhimes não apenas deu à luz o drama médico mais duradouro da história da TV em horário nobre, mas nos presenteou com uma série que verdadeiramente definiu uma cultura. Nós derramamos muitas lágrimas por causa das bastante dramáticas mortes dos nossos personagens favoritos e vibramos com os triunfos dos médicos do Grey Sloan Memorial Hospital, com cada vida que eles salvavam ou crise que eles controlavam. As fortes mulheres apresentadas na tela reinaram, temporada após temporada. Meredith Grey (Ellen Pompeo), Cristina Yang (Sandra Oh) e Miranda Bailey (Chandra Wilson) abriram o caminho para tantas outras seguirem e foram um farol de esperança para futuras protagonistas formidáveis do sexo feminino. Eu nunca vi uma amizade na TV tão forte e admirável quanto a entre Meredith e Cristina. A diversidade e a inclusão também sempre tiveram destaque em Grey's - algo que fez da série uma pioneira quando surgiu, em 2005 -, enquanto suas tramas transmitiam poder a quem não tinha e abriam diálogos a respeito de violência doméstica, problemas de saúde mental e outras questões. A série sempre esteve à frente de seu tempo, e por isso se consolidou como um fenômeno pop-cultural. Nós crescemos com Grey's como um cobertor de conforto, e - numa forma dramática ao estilo de Grey's - eu estou me preparando para a perda inimaginável quando o programa for encerrado. Marriska Fernandes, crítica de cinema e TV freelancer (Canadá) 10. The Killing (original, dinamarquês) Francamente, o título original dinamarquês, Forbrydelsen - tente pronunciar isso três vezes seguidas - soava muito melhor que The Killing. Ainda assim, essa série policial dinamarquesa era muito mais que uma investigação sobre alguns assassinatos. Todas as suas três temporadas tinham múltiplas camadas e eram extremamente dramáticas, mesmo quando tratavam de política e economia na Dinamarca. The Killing crescia dentro do espectador como uma floresta cheia de segredos. Não apenas Sofie Gråbøl faz uma fascinante interpretação da detetive Sarah Lund, a mulher com um estranho gosto por malhas coloridas, mas as viradas nas tramas eram pioneiras em sua complexidade para uma série desse tipo. O escritor Søren Sveistrup levou o roteiro para televisão para um novo nível. The Killing tornou-se um padrão de referência para futuras séries policiais, mas esse tipo de excelência foi raramente igualada por suas sucessoras. Ab Zagt, jornalista da área de TV, do jornal Algemeen Dagblad (Holanda) 11. 24 Horas (24) O século 21 mal havia começado quando 24 Horas foi transmitida, em 2001, primeiro nos Estados Unidos, em seguida em outras partes do mundo. Menos de dois meses antes, ocorreram os atentados de 11 de setembro daquele ano, e terrorismo tornou-se uma obsessão (e uma aflição), tanto na ficção como na vida real. Para o bem ou para o mal, a série criada por Robert Cochran e Joel Surnow rapidamente tornou-se um vício. Atrás dela havia uma fórmula inovadora: a ideia de um evento apresentado em tempo real, em que cada série de 24 episódios mostra uma hora de um único dia na vida do agente especial interpretado por Kiefer Sutherland, da Unidade Antiterrorista (CTU) de Los Angeles. Não parece emocionante o suficiente? Tente imaginar uma corrida explosiva de alta tecnologia de 45 minutos a cada semana, em que nenhum personagem está totalmente a salvo e que sempre nos leva a um momento de suspense no final de cada hora. Carlos Helí de Almeida, jornalista das áreas de cinema, TV e artes do jornal O Globo (Brasil) 12. O Conto da Aia (The Handmaid's Tale) Poucas séries tiveram a perturbadora ressonância social e política de O Conto da Aia. A visão distópica do Estado patriarcal Gilead, que escraviza mulheres férteis, forçando-as a ter filhos para seus chamados Comandantes, criada por Margaret Atwood em 1985, caiu como um alerta futurístico sobre ameaças aos direitos das mulheres. Quando o drama baseado nesse livro chegou, em 2017, pareceu perigosamente perto da realidade de um mundo flertando com o autoritarismo. A vestimenta das aias, com um manto vermelho e uma longa boina branca, tornou-se um emblema, vestido como protesto em marchas reais de mulheres em vários países, especialmente nos Estados Unidos, onde direitos ao aborto estão cada vez mais ameaçados. A série não dialogaria tão diretamente conosco se não fosse ricamente imaginada, em sua narrativa sobre June (Elisabeth Moss), a feroz aia determinada a resistir a Gilead, e em seu figurino deslumbrante baseado em códigos a partir de cores, com o azul para as mulheres dos Comandantes, marrom para as Tias vira-casacas como Lydia (Ann Dowd), que serve ao Estado e oprime outras mulheres. A televisão sempre revela alguma coisa sobre o que somos. O Conto de Aia vai além, para expor umas verdades essenciais sobre a cultura, nossas esperanças e nossos piores medos. Caryn James, crítico da BBC Culture (Estados Unidos) 13. Insecure Ao criar e desenvolver Insecure para a HBO, Issa Rae mudou o panorama da televisão moderna como a conhecemos. O que começou como uma série para a Web e memórias, The Mis-adventures of Awkward Black Girl (As Desaventuras da Garota Negra Esquisita), cresceu para virar um cartão de visitas para Era, que fez história em Hollywood como a primeira mulher negra a escrever e atuar numa série de TV a cabo em horário nobre. As "desaventuras" de sua personagem em Insecure - incluindo seu relacionamento de idas e vindas com seu namorado Lawrence e seu desejo de encontrar realização pessoal no trabalho - refletiu a complexa experiência de millennials do sexo feminino e negras, enquanto, na sua essência, o programa também nos ofereceu um assento de primeira fila para acompanhar a envolvente dinâmica entre Issa e sua melhor amiga, Molly. A luz e a sombra dessa relação desenvolveu-se ao longo da série, até a quarta temporada, quando nos encontramos questionando se elas vão conseguir ou não. Assim como foi notado por críticos, Insecure é a resposta desta geração a séries como Living Single e Girlfriends, atualizada para nossos tempos de sexting e viagens de Uber. E faz isso de maneira deslumbrante, com um impressionante sentimento cinematográfico, e uma trilha sonora que pulsa em homenagem a uma Los Angeles culturalmente variada. Nadia Neophytou, jornalista freelancer (Estados Unidos) 14. I May Destroy You Por meio de uma produção habilidosa e uma ousadia direta, I May Destroy You é uma representante perfeita deste século na televisão e na cultura. Durante 12 episódios, Michaela Coel desfralda uma história estonteante sobre o que acontece com uma pessoa após um ataque sexual, como o mundo moderno amplifica e torce nossos pensamentos mais íntimos e os transforma em nós e por que pode ser tão difícil de compreender as nuances de sua própria vida, mesmo quando você a está vivendo. Como imagens vívidas, piadas maliciosas e interpretações inteligentes de Coel, Weruche Opia e Paapa Essiedu, I May Destroy You é o melhor que a TV poderia oferecer. Caroline Framke, crítica-chefe de TV da revista Variety (Estados Unidos) 15. Fleabag Baseada num monólogo que Phoebe Waller-Bridge apresentou pela primeira vez no palco, a série de TV Fleabag pegou as melhores partes do conceito original - uma mulher com todos os seus defeitos e falhas à mostra - e as ampliou. Isso acrescentou mais nuances nos outros personagens e abriu espaço para que Fleabag pudesse existir. Quando Waller-Bridge rompe a imaginária parede que separa seu personagem do público espectador, compartilhando conosco seus pensamentos íntimos e piadas que ficam apenas entre ela e o público, ela nos trouxe para ainda mais perto. Sim, ela disse coisas brutais e nos contou ser pervertida e egoísta, mas mesmo assim nós enxergamos nela pequenos aspectos de nós mesmos. Ela admitiu coisas que nós não tínhamos visto ninguém admitir na televisão antes. Disse abertamente as coisas que nos fazem sentir vergonha e culpa, a auto-sabotagem que infligimos, a pressão que colocamos em nós mesmos. Mais importante, fez com que não houvesse problema em sentir essas coisas. Numa época antes de conversas sobre saúde mental se tornarem tão abertas quanto são hoje, ela colocou tudo sobre a mesa - sem pudor algum. Na segundo temporada, Waller-Bridge mais uma vez nos reuniu em nossos pecados, e sua redenção imperfeita tornou-se a nossa própria. Nadia Neophytou, jornalista freelancer (Estados Unidos) 16 e 17. The Office (Reino Unido e EUA) Eu cresci vendo séries de TV humorísticas britânicas como Some Mothers Do 'Ave 'Em, que era muito popular na Nigéria. A mistura de sagacidade, sarcasmo e autodepreciação do humor britânico sempre me atraiu - e a mais atraente série de todas, em tempos recentes, foi The Office, em que um maluco David Brent dá o tom de um programa que oferece comédia de ouro com humor íntimo. É possível se identificar com The Office, já que muitos de seus personagens nos lembram pessoas com quem já trabalhamos ou chefes que já tivemos, e é por isso que a considero uma grande série. O estilo de "documentário-gozação" adiciona uma dose extra de realismo que nos atrai ao mundo da empresa de papel Wernham Hogg - e sua versão dos Estados Unidos tornou-se um dos melhores programas da TV americana de todos os tempos. Ayomide Tayo, jornalista da área de TV, Opera News (Nigéria) 18. Girls Quase uma década depois de seu piloto ter sido transmitido na HBO, Girls, criada e estrelada por Lena Dunham, é uma curiosa cápsula do tempo. O programa foi elogiado pela forma sincera como retratou sexo, dinheiro e trabalho. Fez de Dunham, como diz sua protagonista Hannah Horvath, a voz de sua geração - ou, pelo menos, uma voz de uma geração. Mas a série também foi amplamente criticada por sua brancura e sua "WASPiness" (foco em americanos brancos anglo-saxões protestantes). Girls nunca teve como objetivo ser um retrato amplo de mulheres millennials. Era uma sátira sobre o privilégio branco e o egotismo do século 21. Mas, porque também era uma das poucas descrições semirrealistas da vida urbana da geração Y, os espectadores esperavam algo que a série nunca esteve disposta a oferecer. Essa falha de comunicação, exacerbada por várias artigos de opinião instantâneos, manchou o legado de Girls injustamente. Vendo Girls hoje, é mais fácil apenas desfrutar de seu soberbo roteiro, uma emblemática escolha de músicas e o futuro astro Adam Driver em sua versão mais desagradável. Ela também abriu caminho para outras vozes representando gerações. Será que teríamos I May Destroy You, Fleabag ou Master of None se não tivesse sido por Hannah Horvath jogando ping-pong de topless? Acho que não. Anton Vanha-Majamaa, jornalista da área de TV freelancer (Finlândia) 19. Game of Thrones Dragões. Rei loucos. Sanguinolência - e uma história emocionante de reinos conquistados e perdidos. Game of Thrones nos manteve de olhos ligados na TV por oito anos, ao longo de oito longas temporadas, durante as quais a história do Trono de Ferro e as famílias desestruturadas que afirmavam ter direito a ele nos mantiveram fascinados com suas manobras. Na Nigéria, nós ficávamos acordados até as 2h da manhã para ver os episódios de estreia das novas temporadas. Game of Thrones redefiniu a televisão, aparecendo depois de várias incríveis séries de prestígio. Mas tinha algo a mais. Tinha peso. Tinha seriedade. Era épica, espetacular e grandiosa. Como uma crônica de nobres e pessoas comuns, lealdade cega e trapaças, ambições alardeadas e fracassos épicos, romance e amor proibido, Game of Thrones poderia ser comparada com Shakespeare misturado com A Noite dos Mortos Vivos e O Dia Depois de Amanhã, uma fantasia pós-apocalíptica mascarada de drama histórico. Também foi uma sublime experiência cinemática com apelo global de massa. Toni Kan, escritor e crítico de cultura do site thelagosreview.ng (Nigéria) 20. Pose Pose é mais que apenas um programa de TV. Como a primeira série a verdadeiramente celebrar mulheres trans negras, apenas sua existência faz dela uma declaração vital, que tem mais poder de mudar o mundo que talvez qualquer outro programa desta lista. Como Blanca e as outras queers pioneiras nessa história, Steven Canals, co-criador de Pose, enfrentou rejeições o tempo todo para criar um espaço seguro para espectadores LGBTQ+ que nunca haviam visto antes eles mesmo refletidos na tela. "Você precisa brilhar tão forte lá fora para que eles não possam te negar", diz Blanca. Pose nos ensinou como fazer exatamente isso: viver nossa verdade, triunfar como pessoas queer, porque o tipo certo de representação não apenas ajuda grupos marginalizados a se sentir vistos. Pode inspirar pessoas a viver suas próprias verdades, mesmo diante de esmagadora adversidade. E, nas circunstâncias corretas, séries como Pose podem até mesmo salvar vidas. David Opie, jornalista da área de TV, Digital Spy (Reino Unido) 21. BoJack Horseman À primeira vista, é fácil descartar o aparentemente simples, estranho e animado mundo de Hollywood. Se você é como eu, os primeiros episódio foram difíceis. BoJack não é nem charmoso nem agradável - e eu preciso vê-lo por seis temporadas? Sim, você precisa, e não apenas você vai ver um homem adulto (ou cavalo) jogar sua vida fora ao sair do controle e cair num inevitável abismo de solidão, mas você também vai amar cada segundo. Goste ou não, BoJack Horseman força você a questionar sua própria moralidade com o tocante cuidado de uma ex. BoJack me lembrou minha experiência numa montanha-russa: eu, sem saber o que estava para vir, escolhi entrar, e assim que começou, gritar ou chorar, não importa quanto, não me tiraria dali antes do fim. E então eu comprei outro ingresso. Daniel Tihn, jornalista da área de TV, jornal The Times of Malta (Malta) 22. The Thick of It O começo do novo século foi marcado por uma hedionda tendência de "novo otimismo" na comédia americana, em que uma redenção espiritual estava disponível até mesmo àqueles que menos mereciam. No lado oposto do espectro estava The Thick Of It, a sátira britânica ácida de Armando Iannucci, cuja premissa central era de que todos envolvidos no governo eram idiotas desprezíveis interessados apenas em sua própria preservação. Mostrando sempre formas inventivas pelas quais políticos sem poder e funcionários público inúteis podem criar crises monumentais a partir de coisa insignificantes, a série fez de Peter Capaldi um astro (anos depois de ele ter ganhado um Oscar por um curta-metragem que ele dirigiu), cujo mordaz assessor de comunicação Malcolm circulava de freneticamente em Westminster como um Godzilla vociferando palavrões. Qualquer crença na política era repreendida de forma certeira e convicta. Ali Arikan, crítico de cinema freelancer (Turquia) 23. Black Mirror Black Mirror tornou-se um fenômeno cultural mundial numa era dominada por dramas em série que nos fazem assistir um episódio atrás do outro por horas - um feito significativo para um programa antológico definido por temas, em vez de arcos narrativos contínuos. As tramas especulativas e provocativas da criação de Charles Brooker, juntamente com interpretações fantásticas, fizeram do programa um sinônimo das ansiedades ligadas ao progresso tecnológico - e sublinhando a série está sempre presenta a pergunta: "Será que fomos longe demais?". Entretanto, os verdadeiros monstros em Black Mirror tendem a não ser as máquinas, mas os seres humanos, que encontram novas ferramentas para abusar de outros humanos. Apesar de um certo desequilíbrio em qualidade nas últimas temporadas, Black Mirror capturou verdadeiramente o espírito geral em relação aos nossos medos a respeito do presente e do futuro. José Gonzalez Vargas, jornalista de TV freelancer (Espanha) 24. Small Axe A série antológica de filmes de Steve McQueen, sobre os esforços e as celebrações dentro da comunidade negra das Índias Ocidentais em Londres, entre 1962 e 1981, já era necessária havia muito tempo, mas chegou no final de 2020 como um estudo histórico sensorial e produzido com respeito. Os capítulos com duração de longa metragens lidou com identidades da época tanto conhecidas como desconhecidas, de Frank Crichlow, cujo restaurante The Mangrove foi alvo de ações policiais motivadas por racismo que acabaram num emblemático caso na Justiça, aos habitantes de uma pista de dança numa festa caseira nebulosa e inebriante, cuja noite culmina numa eufórica interpretação de Silly Games, de Janet Kay. McQueen é um mestre de tom e detalhe e, por meio de sua visão inconfundível, garante que tanto triunfo como tragédia sejam exibidos por toda a série, em que trabalhou com o supervisor musical Ed Bailie e seus co-criadores para encher a antologia com uma trilha sonora incomparável. Por meio desse trabalho meticuloso, o diretor criou algo incendiário. Beth Webb, jornalista da área de TV, de Empire, Pilot TV e NME (Reino Unido) 25. Call My Agent! A brilhante série de TV francesa Call My Agent! (10%, no original francês) é a fusão perfeita do glamour da indústria cinematográfica com as vidas de agentes dedicados, trabalhando duro por trás das câmeras. Esses agentes genuinamente se importam com seus clientes e seus projetos, o que é exatamente a razão pela qual essa série se destaca. Soma-se a isso o fato de que seus clientes, que são alguns dos mais conhecidos atores da França, estão deliberadamente tirando sarro de si mesmos, abraçando totalmente sua reputação e levando-a a extremos ridículos. A sagacidade aqui não é baseada em referências, mas sim em situações e personagens, e é por isso que a série transcende fronteiras com tanta facilidade. Sua influência reflete-se nas múltiplas versões que têm aparecido mundo afora. Evitando cinismo, a série habilmente equilibra humor crítico, conceitos errados e infelizes e comédia pastelão - e, sendo um produto da França, há farsa também. Essa rara e entusiasmada mistura é uma ardente carta de amor ao cinema e sua indústria. Tara Karajica, jornalista de TV e cinema, Fade to Her (Sérvia)
2021-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-59058883
sociedade
'Abandonei estudos, fingi ter emprego e escrevi carta de suicídio': os riscos do vício em games
Cam Adair finalmente percebeu que o seu vício em videogames estava fora de controle quando pensou em pôr fim à própria vida por causa dele. "Eu lutei contra isso por 10 anos", afirma ele. "Saí do ensino médio, nunca fui para a faculdade e fingi ter empregos para enganar minha família." "Certa vez, escrevi uma carta de suicídio e foi naquela noite que eu percebi que precisava de ajuda. Agora estou livre do meu vício em jogos há 3.860 dias", conta Cam. Canadense com 32 anos de idade, Adair acabou por se tornar o fundador do Game Quitters, um grupo de ajuda online para pessoas que lutam contra o vício em jogos. O grupo tem atualmente mais de 75.000 membros em todo o mundo. Embora a tecnologia e especificamente a internet tenham ajudado a manter o mundo funcionando durante os confinamentos causados pelo coronavírus, ele conta que tem sido difícil para pessoas como ele. "A pandemia me levou a passar mais tempo que o normal assistindo ao Twitch [serviço de streaming ao vivo dedicado em grande parte a pessoas que jogam videogames] e ao YouTube", segundo Adair. "Grande parte desse conteúdo [no YouTube] era de streaming de jogadores e também de jogos, que podem ser fortes gatilhos para recaídas no jogo. Felizmente, consegui evitar as recaídas, mas conheço muitas pessoas da comunidade Game Quitters que infelizmente recaíram durante a pandemia", conta ele. No seu estudo sobre vício em internet, publicado na revista CNS Drugs, Martha Shaw e Donald W. Black, do Departamento de Psiquiatria da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, classificam a dependência dos jogos como parte de um vício em internet mais amplo. O estudo define essa dependência como "preocupação, impulso ou comportamento excessivo ou mal controlado relativo ao uso do computador e acesso à internet que gera prejuízo ou desconforto". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora muitas pessoas argumentem que não é tão séria como o alcoolismo ou a dependência de drogas, a dependência dos jogos pode ainda ser um fator debilitante para as pessoas atingidas. O dr. Andrew Doan, neurocientista e especialista em vícios digitais, concorda que os confinamentos exacerbaram o problema. "As tensões da vida geram anseios por comportamentos e mecanismos de fuga", afirma ele. "A pandemia aumentou a tensão na vida das pessoas e uma forma conveniente de escape é o uso de meios digitais de entretenimento, como os videogames e as redes sociais. O uso excessivo para escapar da tensão é um fator de risco para o desenvolvimento de comportamentos viciantes", adverte o Dr. Doan. Para ajudar a combater o vício em internet, diversas empresas de tecnologia produziram ferramentas que podem ser usadas para ajudar a bloquear ou limitar o acesso à internet ou a sites de jogos. Linewize é um desses produtos, destinado às crianças ou - mais especificamente - aos seus pais. O website e o aplicativo permitem que os pais e responsáveis limitem e monitorem à distância o tempo que as crianças podem passar em sites de jogos ou na internet como um todo, seja por meio dos smartphones ou dos laptops das crianças. Linewize também contém as habituais "travas parentais", que evitam o acesso a material violento ou pornográfico. Teodora Pavkovic, psicóloga qualificada e especialista em bem-estar digital da empresa criadora do Linewize, sediada em San Diego, nos Estados Unidos, afirma que os jovens são particularmente susceptíveis a passar tempo demais online. Isso é algo com que os pais de adolescentes tendem a concordar. "Administrar o tempo que se passa online de forma saudável e equilibrada exige conhecimentos cognitivos muito sofisticados que não se desenvolvem completamente até atingirmos 25 anos de idade", segundo Pavkovic. Ela acrescenta: "As plataformas online são construídas para extrair e maximizar o nosso tempo, dados e atenção, de forma que - em combinação com os muitos riscos dissimulados que se escondem online - tornam excepcionalmente difícil para as crianças interagir com o mundo online de forma medida, segura e responsável". Para os adultos, o vício em internet pode também conduzir ao vício em jogos de azar, alimentado pelos aplicativos e websites de apostas. BetBlocker é um aplicativo que permite que as pessoas bloqueiem seu acesso a dezenas de milhares de websites e aplicativos de apostas por um período de tempo determinado pelo usuário. Quando a restrição é ativada, a pessoa não consegue ter acesso às plataformas de apostas até que termine a restrição. O aplicativo BetBlocker - que é grátis - pode também ser controlado por um parceiro, amigo ou pelos pais da pessoa. "A facilidade de acesso a apostas remotas é inquestionavelmente o maior desafio enfrentado atualmente por qualquer pessoa com vício em apostas", segundo o fundador do BetBlocker, Duncan Garvie. "Todos andam com um cassino ou banca de apostas no bolso e é muito fácil jogar sem que ninguém perceba", afirma ele. Os usuários podem bloquear os sites de apostas por horas, dias ou semanas. E as pessoas podem também usar o aplicativo para bloquear outros websites, como os de videogames. "O aplicativo pretende ajudar os usuários, criando restrições durante períodos de vulnerabilidade conhecidos", acrescenta Garvie, que mora em Edimburgo, na Escócia. GamBlock é outro aplicativo que pode ser usado de forma similar para evitar o acesso a websites de apostas. O executivo-chefe da empresa australiana, David Warr, afirma que "não somos contra as apostas". O foco é em ajudar os apostadores problemáticos. O dr. Andrew Doan adquiriu sua experiência em vício em videogames, em parte, pela forma mais difícil - ele próprio era um adicto. "Durante o curso na Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins [em Baltimore, nos Estados Unidos] e ao longo da minha residência médica, eu joguei de 80 a 100 horas de videogame por semana por cerca de 10 anos", afirma ele. Autor de um livro intitulado "Viciado em jogos: a sedução e o custo do vício em videogames e internet" (em tradução livre do inglês), o dr. Doan afirma que a internet deve ser observada em duas formas separadas. "Eu divido os meios digitais em duas categorias amplas - açúcar digital e legumes digitais. Os legumes digitais, como as terapias online, podem ser usados para ajudar as pessoas a controlar sua tensão e reduzir seu risco de comportamentos viciantes. [Enquanto] o uso excessivo de açúcar digital, como jogos, pornografia e redes sociais não relacionadas ao trabalho, pode aumentar o risco de comportamentos viciantes, particularmente quando essas atividades forem usadas para escapar dos fatores de tensão diários", afirma ele. O dr. Doan teme que, devido ao longo tempo que todos nós passamos atualmente online, o número de casos de vício em internet e videogames aumente. Mas Cam Adair tem esperança de que as empresas de tecnologia, como a Linewize, BetBlocker e GamBlock, possam desempenhar um papel importante para ajudar a reduzir o problema. E é importante ressaltar que qualquer pessoa preocupada com qualquer forma de adicção deve entrar em contato com seu médico. O trabalho de Adair foi publicado na revista "Psychiatry Research" e agora ele é um palestrante internacional sobre o tema da adicção. "Pedir ajuda salvou a minha vida", conta ele. "Eu trapaceei, me afastei, me isolei, hostilizei os outros e fiquei incomunicável durante a minha dependência. Agora, estou feliz, satisfeito e capaz de lidar com as tensões da vida normal." CAPS e Unidades Básicas de Saúde (saúde da família, postos e centros de saúde) UPA 24h Samu 192 Hospitais Pronto-socorro CVV - Centro de Valorização da Vida (apoio emocional e prevenção do suicídio) Telefone 188 (ligação gratuita de qualquer linha telefônica fixa ou celular) Site www.cvv.org.br (chat ou e-mail)
2021-10-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59077598
sociedade
Ziganwu: os blogueiros nacionalistas chineses que atacam o Ocidente
Com seu sorriso largo, a blogueira chinesa Guyanmuchan parece amistosa no Weibo — uma rede social chinesa similar ao Twitter. A jovem lidera mais de 6,4 milhões de seguidores dedicados na plataforma, onde ela publica imagens e vídeos sobre temas atuais. Mas a bela estética da sua marca — sua página apresenta a imagem sonhadora de uma garota posando em um bosque — oculta seu tom muitas vezes ácido. Segundo uma postagem recente, a União Europeia é como "um cão na coleira" dos Estados Unidos. Em outra postagem, o aumento dos casos de covid-19 no Estado do Texas, nos EUA, é a prova de uma "guerra civil", na qual "os norte-americanos estão matando uns aos outros com armas biológicas". Guyanmuchan pertence a uma nova geração de blogueiros conhecidos como os "ziganwu", cuja fama nas redes sociais chinesas vem crescendo à medida que aumenta o nacionalismo no país. Sua denominação é derivada de "wumao", que é o nome dado ao exército de "trolls" (provocadores da internet) pagos para difundir propaganda estatal — mas a diferença é que os "ziganwu" fazem isso de graça. Os seus vídeos e textos ácidos, compartilhados por dezenas de milhares de seguidores, muitas vezes criticam a imprensa e os países ocidentais. Também são questionados assuntos como o feminismo, os direitos humanos, o multiculturalismo e a democracia, que são considerados parte da influência ocidental que "corrompe" a sociedade chinesa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os que parecem "promover o separatismo", como os ativistas pró-democracia de Taiwan e Hong Kong, especialistas e intelectuais, também acabam na sua mira. Seus alvos já incluíram a escritora Fang Fang, conhecida pelo seu intenso relato dos estágios iniciais da pandemia em Wuhan, que atraiu a atenção internacional no fim de 2019. Em uma postagem que viralizou no ano passado, o blogueiro "ziganwu" Shangdizhiying acusou a escritora de "apunhalar-nos profundamente pelas costas" e criar "uma das maiores armas usadas pelas forças antichinesas para difamar" o país. Mais recentemente, o importante epidemiologista Zhang Wenhong tornou-se alvo dos "ziganwu" após sugerir que a China deveria aprender a viver com a covid-19, em aparentemente contradição aos discursos oficiais. Diversos blogueiros encontraram rapidamente uma antiga dissertação sua e o acusaram de plágio — alegação que sua universidade desmentiu posteriormente. Uma sugestão de que as crianças deveriam beber leite no café da manhã foi considerada um sinal de que ele rejeitava a alimentação matinal tradicional chinesa. "Não é muita adoração ao Ocidente e bajulação dos estrangeiros?", escreveu o blogueiro Pingminwangxiaoshi. Essas postagens podem ser compartilhadas às dezenas nas redes sociais, todos os dias. Elas costumam ser mensagens rápidas e emocionais, o que é um dos motivos para que elas viralizem, segundo os especialistas. "É o nacionalismo 'fast food'", como compara a analista das redes sociais chinesas Manya Koetse: "as pessoas mordiscam, compartilham e esquecem." Muitas pessoas consideram o aumento do sentimento nacionalista chinês como resultado das crescentes tensões entre a China e o Ocidente — mas esta é apenas uma parte da história. Embora o nacionalismo venha crescendo em muitos lugares com a globalização cada vez maior do planeta, ele coincidiu, na China, com a forte promoção da identidade chinesa pelo presidente Xi Jinping e a onipresença das redes sociais. Muitos dos "ziganwu" são "jovens, cuja educação foi repleta de patriotismo e orgulho pelo seu país, alimentados pela memória histórica de humilhação nacional", segundo Koetse. "Isso trouxe uma mistura explosiva de sentimentos pró-chineses e contra os estrangeiros, com ênfase na cultura e na identidade chinesa", acrescenta ela. O aumento do seu protagonismo é surpreendente, já que a China vem impondo regras cada vez mais rigorosas sobre as publicações na internet, que resultam em forte censura dos ativistas e também de cidadãos comuns. Postagens sobre temas "sensíveis" costumam ser frequentemente excluídas de plataformas como o Weibo e WeChat. Por outro lado, as vozes que promovem o discurso oficial do governo chinês sofrem menos controle, segundo os observadores, e chegam até a ser amplificadas pelos meios estatais, que republicam seus textos ou compartilham seu conteúdo nas redes sociais. Não se sabe se esses blogueiros "ziganwu" possuem ligações diretas com o governo, mas alguns vêm sendo convidados a comparecer a eventos ou recebem títulos honoríficos dos governos provinciais. Guyanmuchan, cujo nome real é Shu Chang, notabilizou-se pela primeira vez em 2014, quando seu texto intitulado "Você é uma pessoa chinesa" foi amplamente difundido pela imprensa convencional. Desde então, ela participou de um evento de blogueiros promovido pelo governo da cidade de Yantai e deu uma palestra organizada pelo portal noticioso estatal Youth.cn. Além disso, em julho, foi nomeada "embaixadora na internet" pela província de Guangdong, junto com vários outros blogueiros. Guyanmuchan não respondeu ao pedido de comentários feito pela BBC. Os "ziganwu" são apenas uma parte de um ecossistema complexo. Grande parte dos discursos nacionalistas nas redes sociais chinesas, particularmente no Weibo, ainda é promovida pela imprensa estatal, que costuma incentivar discussões, criando e promovendo "hashtags" (palavras-chave) próprias. Mas existem também muitos grupos menores de influenciadores que alimentam essa "máquina de gerar indignação", incluindo artistas digitais, meios de comunicação menores, professores universitários respeitados e até "vlogueiros" (blogueiros produtores de vídeo) internacionais. As regulamentações de internet da China incentivam os usuários a promover ativamente a propaganda, de forma que muitos desses influenciadores estão simplesmente explorando esse sistema, segundo Harper Ke, analista do think tank (centro de pesquisa e debates) Doublethink Lab. "Eles são oportunistas. Se você quiser fazer carreira como influenciador nas redes sociais, esta é uma forma de ganhar fama nesse ambiente nacionalista tóxico", afirma Ke. Embora esses influenciadores talvez não sejam pagos diretamente pelo governo, eles ainda se beneficiam com a promoção dos seus perfis na imprensa nacional e usam esse reconhecimento para construir suas marcas pessoais, segundo os analistas. Com o aumento do número de seguidores, eles podem ganhar valores significativos com publicidade ou conteúdo pago. O especialista em jornalismo e comunicações Fang Kecheng estima que uma conta em rede social com mais de um milhão de seguidores poderá ter ganhos equivalentes a algumas centenas de milhares de dólares (mais de um milhão de reais) por ano. E o governo também se beneficia, segundo os especialistas. Ao convidar os "ziganwu" para dar palestras, por exemplo, o governo delega a eles "o trabalho ideológico, convertendo os blogueiros em ícones bem sucedidos e modelos [de propaganda] a serem seguidos", acrescenta Harper Ke. Plataformas como o Weibo e WeChat desempenham seu papel promovendo as postagens que incentivam a lealdade ao Partido Comunista Chinês, segundo o Dr. Fang, e também se beneficiam comercialmente: "isso aumenta a participação e as atividades dos usuários, de forma que é uma boa estratégia para eles", acrescenta. Mas existe uma linha muito tênue que, em certas vezes, alguns influenciadores cruzaram com seu fervor. Nos últimos meses, foram excluídas algumas postagens de "ziganwu" que especulavam que a covid-19 seria um vazamento de um laboratório norte-americano e outras atacando o epidemiologista Dr. Zhang Wenhong. Um texto inflamado reivindicando reformas radicais do regime comunista também viralizou e foi difundido pela imprensa estatal, mas foi rapidamente censurado após controvérsias online. "Às vezes, as regras sobre o que pode e o que não pode ser dito são muito nebulosas", afirma Manya Koetse. "Uma única postagem no Weibo pode ser suficiente para que esses influenciadores desapareçam." "Eles podem ser úteis para o discurso oficial enquanto suas convicções pessoais estiverem alinhadas com a posição governamental, mas, assim que eles não forem mais considerados úteis ou forem percebidos como contrários ao discurso [do governo] - eles sumirão", segundo ela. Mas muitos estão preparados para participar desse jogo de alto risco. No final de setembro, Guyanmuchan foi proibida de postar conteúdo novo na sua página do Weibo por 15 dias. A plataforma afirmou que ela havia "violado as normas da comunidade". Ela imediatamente promoveu uma publicação antiga conduzindo os leitores para uma página alternativa, onde ela continuou a postar sua enxurrada diária de mensagens inflamadas. "Criei esta conta pequena", segundo ela, "apenas para o caso de que algo aconteça."
2021-10-28
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59069004
sociedade
O país onde máquinas de escrever ainda fazem sucesso
Num pequeno quarto, pintado em tom rosa pastel, cerca de uma dezena de homens e mulheres trabalham duro, debruçados sobre mesas encostadas nas paredes, seus dedos voando num ritmo alucinado sobre as teclas. O relaxante ritmo da datilografia pontua o incessante zumbido causado pelo tráfego do lado de fora. Nos últimos seis anos, no coração de uma das mais movimentadas ruas da cidade de Madurai, no sul da Índia, Dhanalakshmi Bhaskaran tem ensinado datilografia em turnos para centenas de estudantes diariamente, chefiando um instituto movido inteiramente por 20 máquinas de escrever manuais. O Instituto de Datilografia Umapathi, batizado em homenagem ao filho da dona, pode ensinar a prática em três línguas - inglês, hindi e tâmil, a língua local. A máquina que eles usam, um modelo chamado Facit, é mais ou menos igual ao que era quando foi lançada, no final dos anos 1950. Os alunos de Bhaskaran vêm de várias áreas, diz ela. Alguns ainda estudam no segundo grau, com a intenção de aprender datilografia para adquirir um diferencial num mercado de trabalho competitivo. Outros são profissionais que buscam obter um emprego em departamentos do governo. Há também algumas jovens mães, atraídas para as aulas na esperança de recomeçar suas carreiras depois de terem tido filhos. O instituto é um dos muitos centros de datilografia aprovados pelo governo - no final do curso, os alunos são inscritos em exames, conduzidos a cada seis meses. Se eles são aprovados, seus certificados os ajudam em sua busca por um emprego. Porém, num mundo onde tecnologias mecânicas foram superadas há muito tempo pelas digitais, e onde laptops, computadores e tabletes têm agora preços mais acessíveis que jamais tiveram, por que alguém investiria na habilidade de datilografar? Segundo Bhaskaran, para aqueles procurando emprego e que não têm acesso a latptops ou computadores pessoais em casa aprender a digitar numa máquina de escrever manual pode ser uma salvação. "Uma vez que você treinou nesta máquina, você pode melhorar sua velocidade de digitação e evitar erros. E é mais fácil transferir essas habilidades ao computador", diz ela. A portabilidade de uma máquina de escrever também é algo prático e valorizado. Depois que as restrições do confinamento foram aliviadas, os alunos podiam distanciar-se uns dos outros enquanto datilografavam, algo que talvez não fosse possível caso eles estivessem instruindo pessoas em grandes sistemas de computadores, diz Bhaskaran. Em 2009, Godrej & Boyce, uma das últimas empresas indianas a fabricar máquinas de escrever, decidiu encerrar a produção. Na época, muitos previram que a máquina manual, que no passado ocupava um lugar de orgulho nos lares e escritórios indianos, finalmente se tornaria obsoleta - um dinossauro consumido pela tecnologia digital. Ainda assim, uma década depois, nas contorcidas vielas das pequenas cidades da Índia e mesmo no coração de grandes cidades, a máquina de escrever manual ainda segue forte. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Rajesh Palta é dono da Universal Typewriters Co. Ele tem recuperado e vendido máquinas de escrever, na sua loja no mercado de Kamla, em Nova Délhi, desde 1954. "Como família, nós estamos no mercado de máquinas de escrever há mais de cem anos", diz ele. Seu negócio familiar até apareceu num livro que contou a história da máquina de escrever na Índia, With Great Truth and Regard: A Story of the Typewriter in India (Com Grande Verdade e Consideração: Uma História da Máquina de Escrever na Índia). "Enquanto o uso convencional de máquinas de escrever na Índia já morreu, existe uma demanda bastante específica que os distribuidores estão atendendo agora", diz Palta. Essa demanda vem de profissionais, assim como de colecionadores movidos pela nostalgia para quem a máquina de escrever representa um pedaço mágico do passado. Palta restaurou, cuidadosamente, máquinas de escrever centenárias para pessoas de várias partes do país. Como carros antigos, o valor de uma máquina de escrever dispara apenas quando ela é totalmente funcional, mas a restauração geralmente exige grande atenção ao detalhe, o que pode ser difícil. "Um refrigerador é enorme em comparação, mas tem apenas um décimo das partes de uma máquina de escrever manual", diz ele. Às vezes, peças de reposição para modelos específicos não estão disponíveis porque a fabricação foi encerrada. Nesses casos, Palta encomenda a produção de alguma peça que os clientes podem exigir para consertar suas máquinas. Elas precisam, porém, ser feitas perfeitamente. "Se as peças da máquina de escrever não se encaixarem de forma apropriada, ela não vai funcionar", afirma ele. Com frequência, apenas um componente que está em falta pode custar dez vezes seu preço original para que seja fabricado e instalado. Palta também usa um certificado de idade para cada máquina que ele vende, embora isso possa envolver algum grau de investigação. "Cada máquina de escrever tem um número de série único no corpo da máquina, como o número no motor de um veículo. Nós verificamos em portais na internet e vemos a data e que aquele número de série foi emitido." Alguns dos clientes regulares de Palta são ávidos colecionadores e têm lhe enviado máquinas para restauração há anos. Um desses clientes é Maharaja Jayendra Pratap Singh, integrante da antiga família real de Balrampur no Estado indiano Uttar Pradesh, no norte do país. Ele tem 11 máquinas de escrever em sua coleção - incluindo duas Godrej Prima, uma Lettera 32 e um raro modelo de máquina hindi que pertenceu a sua tia e era usado nos anos 1950. O amor de Singh pela datilografia começou quando ele ajudava seu pai com a correspondência, mas ele logo percebeu que o fácil acesso via computador a uma checagem de erros poderia levar a uma escrita mais preguiçosa. Ele fez a transição para a máquina de escrever porque ele queria melhorar suas habilidades de escrita e, em 2013, comprou sua primeira, uma Olympia. "Inicialmente era difícil aprender a escrever nela", diz Singh. Alinhar as letras corretamente era um desafio, e levou quase um ano de prática para que ele aprendesse a datilografar com proficiência. Hoje ele usa a máquina de escrever para sua correspondência pessoal e para escrever as atas de reuniões de trabalho. Depois do festival de Raksha Bhandan neste ano - que caiu em 11 de agosto e quando a irmã amarra um barbante sagrado no pulso do irmão para celebrar o laço entre eles -, ele datilografou uma nota pessoal para cada uma de suas irmãs, que, segundo ele, ficaram bastante tocadas. "Eu amo a impressão das letras no papel - a impressão a partir do computador nunca é a mesma coisa. Uma nota datilografada torna tudo mais especial", afirma Singh. Para escritores criativos, a máquina de escrever é uma forma de controlar pensamentos erráticos e bloquear distrações que o mundo digital pode oferecer, enquanto colocam suas ideias para marchar na dança feita pelas pontas de seus dedos. Para muitos profissionais na Índia, entretanto, aprender a digitar em máquinas antigas não é tão romântico. Máquinas de escrever podem ser implacáveis e impiedosas - geralmente não existe espaço para correções. Cometer um único erro pode significar que o trabalho precisará ser refeito, diz Jeyaram Viswanathan, que chefia uma consultoria de recursos humanos na cidade indiana de Coimbatore,, no sul do país. Viswanathan começou sua vida profissional como estenógrafo numa indústria química local. Muito do seu trabalho envolvia datilografar documentos manualmente. "Nós usávamos um apagador especializado [quando cometíamos algum erro] - era um turquesa brilhante, redondo e com um buraco no meio - que podia ajudar com pequenas correções", diz Viswanathan. "Mas, se você pressionasse forte demais, você acabaria com um buraco no papel." Entretanto, erros são poucos e pouco frequentes para datilógrafos profissionais, afirma Bhaskaran. "Nossos alunos não são aprovados no exame se cometerem um único erro. Aprender a digitar numa máquina de escrever ensina a ser correto." E existe outra razão mais imediata por que a burocracia indiana ainda mantém o uso de máquinas de escrever: os registros são mais permanentes. Datilografia dura. "Alguns documentos importantes do governo ainda são escritos à máquina porque a tinta nunca apaga, diferentemente de impressões computadorizadas", diz Murugavel Prakash, que treina 300 alunos de datilografia no instituto que ele administra em Madurantakam, perto da cidade de Chennai, no sul da Índia. Prakash abandonou um trabalho numa universidade como professor-assistente de engenharia civil depois que seu pai morreu, em 2012, para assumir o comando do instituto. A escola foi iniciada por seu tio em 1954 e atualmente tem 80 máquinas, a maioria delas Godrej Prima e Remington 14s. Ele e sua mulher oferecem sessões de uma hora durante o dia, das 7h da manhã até as 20h. Depois de serem inundados com pedidos durante vários confinamentos devido à pandemia de coronavírus, ele até abriu um canal no YouTube para ajudar aqueles que estavam em casa a aprender mais sobre datilografia. Uma das mais proeminentes áreas em que as máquinas de escrever manuais eram empregadas no passado era fora dos tribunais indianos, onde documentos legais eram datilografados e geralmente traduzidos para outras línguas do país. Por toda a Índia, cerca de 2 mil datilógrafos sentavam do lado de fora dos tribunais em 2014, com suas máquinas cobertas por lonas e deixadas sob a sombra de grandes bananeiras. As cidades de Kolkata e Délhi são particularmente conhecidas por seus datilógrafos de tribunais. Eles permitiam que litigantes tivessem acesso a papelada, particularmente útil quando faltava energia, o que era frequente no passado. No entanto, os anos recentes viram uma queda acentuada nesses números, diz Palta, embora os datilógrafos de tribunais ainda existam. "Costumava haver uns mil datilógrafos do lado de fora das cortes em Nova Délhi, mas hoje esse número é de 14 ou 15", afirma Palta. Enquanto muitos preveem que esse declínio dos datilógrafos de cortes também significaria a morte das máquinas de escrever, a tradição da datilografia manual na Índia sobrevive. Talvez porque a máquina de escrever tenha sido tão ligada a momentos emblemáticos da história legal e política da Índia, é improvável que ela desapareça da consciência pública num futuro próximo. Um exemplo é o papel da máquina de escrever no caso Bhawal Sanyasi - uma das conspirações criminais indianas mais notórias e melodramáticas. Em 25 de agosto de 1936, no que é hoje a moderna Dhakka, em Bangladesh, o juiz de Distritos e Sessões Adicionais Pannalal Bose ficou pronto para proferir o veredicto de um caso que havia prendido a atenção da Índia, ainda antes da independência do país. É fácil ver por que o caso recebeu tanta atenção - ele tinha todos os elementos de um romance popular selvagem e inesquecível. Uma década depois que Ramendra Narayan Roy, o príncipe de Bhawal - uma das maiores e mais ricas propriedades em Bengal (hoje Bangladesh) -, morreu envenenado, as pessoas especulavam sobre seu misterioso desaparecimento. Um homem que parecia exatamente como ele havia reaparecido perto da propriedade, mas ele não tinha nenhuma lembrança de sua vida real anterior. Em vez disso, ele era um sanyasi, um home sagrado que teria renunciado ao mundo. Rumores circulavam desde sua morte a respeito de como uma tempestade de granizo havia impedido seu funeral. Aqueles envolvidos na cremação haviam sido supostamente convencidos a se refugiar da repentina chuva, apenas para descobrir que o corpo havia desaparecido. Com a mulher de Roy recusando-se a reconhecer o sanyasi como seu marido morto e, mais tarde, chamando-o num tribunal de impostor, o caso entrou para a história devido a sua notoriedade. O juiz Bose recolheu-se pro três meses para deliberar sobre o caso e datilografar, ele mesmo, o julgamento de 531 páginas, palavra por palavra, numa Remington Rand portável, que desde então sua família mantém preservada. Quando ele declarou que não havia provas da morte de Roy e que o sanyasi era realmente o jovem príncipe, o juiz, que recebeu ameaças a sua segurança, teve de fugir para Kolkata com sua mulher e seus 11 filhos. Entre seus pertences estava a máquina de escrever que registrou o julgamento. (Para aumentar o mistério, dois dias depois que o julgamento foi decidido a seu favor, o príncipe-sanyasi morreu após visitar um templo para ofereceu seus agradecimentos). Para cidadãos mais velhos vivendo na Índia, a máquina de escrever continua uma fonte de profunda nostalgia. Em novembro de 2019, meses antes de a covid-19 assolar o país, Palta restaurou uma máquina de escrever de 90 anos para uma família no Estado de Karnataka, no sul da Índia. Estava em más condições quando lhe foi enviada, quebrada e enferrujada, diz ele. A família ficou tão satisfeita que ele conseguira restaurá-la completamente que lhe enviou uma fotografia, com todos sentados num sofá e a máquina no colo, sobre eles. A legenda da foto dizia: "Felizes por ter este membro da família de volta à nossa casa, conosco".
2021-10-27
https://www.bbc.com/portuguese/revista-59062599
sociedade
A princesa japonesa que largou realeza para se casar com namorado de origem humilde
Após longa espera, a princesa Mako do Japão, sobrinha do atual imperador do país, se casou com seu namorado da faculdade, Kei Komuro, perdendo assim seu status real. Segundo a lei japonesa, membros do sexo feminino da família imperial têm que renunciar à realeza ao se casarem com um "plebeu", embora o mesmo não aconteça com os homens. Além disso, apenas herdeiros masculinos são candidatos ao trono. O Japão é conhecido por um país patriarcal e extremamente conservador. O atual imperador, Naruhito, por exemplo, se casou com Masako, uma ex-diplomata. Seu pai, que abdicou a seu favor em 2019, foi o primeiro membro da realeza japonesa a se casar com uma plebeia, Michiko. Naruhito e Masako tiveram uma única filha, Aiko, que, portanto, não ascenderá ao Trono do Crisântemo (nome pelo qual o trono imperial do Japão é conhecido). O irmão de Naruhito, Fumihito, pai de Mako, passa a ser, assim, o primeiro na linha de sucessão. A princesa Mako também descartou os ritos habituais de um casamento real e recusou um pagamento de 152,5 milhões de ienes (cerca de 7,2 milhões de reais) oferecido às mulheres da realeza após a renúncia de seu status real. Ela é a primeira mulher da monarquia japonesa a fazer isso. Mako e Komuro devem se mudar para os Estados Unidos — onde ele trabalha como advogado — após o casamento. A mudança atraiu comparações inevitáveis ​​com Meghan Markle e o Príncipe Harry, do Reino Unido, e, por isso, os recém-casados receberam ​​o apelido de "Harry e Meghan do Japão". Como Markle, Komuro está sob intenso escrutínio desde que seu relacionamento com a princesa Mako foi anunciado. Ele foi recentemente criticado por usar rabo de cavalo quando voltou ao Japão. Alguns tabloides e usuários de redes sociais disseram que seu penteado — visto como não convencional no Japão — era impróprio para alguém que iria se casar com uma princesa. Também houve um protesto nesta terça-feira (26/10) contra o casamento de Mako e Komuro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em uma entrevista a jornalistas, Mako disse que se desculpou por qualquer problema causado por seu casamento. "Lamento o transtorno causado e sou grata por aqueles (...) que continuaram a me apoiar", disse ela, segundo a emissora japonesa NHK. "Para mim, Kei é insubstituível — o casamento foi uma escolha necessária para nós." Komuro acrescentou que amava Mako e queria passar a vida com ela. "Eu amo Mako. Só temos uma vida e quero que a passemos com quem amamos", disse Komuro, segundo a agência de notícias AFP. "Estou muito triste que Mako esteja em péssimas condições, mental e fisicamente, por causa das falsas acusações." A princesa Mako deixou sua residência em Tóquio por volta das 10h (21h de segunda-feira, 25/10, em Brasília) para registrar seu casamento, fazendo várias reverências a seus pais, o príncipe herdeiro Fumihito e a princesa Kiko. Ela também abraçou sua irmã mais nova antes de sair, informou a agência de notícias Kyodo. O casal vem recebendo ampla cobertura da imprensa ao longo dos anos, o fez com que a princesa desenvolvesse transtorno de estresse pós-traumático. Seu relacionamento gerou polêmica no país. Nesta terça-feira, pessoas foram fotografadas protestando contra o casamento em um parque japonês. Muitos slogans pareciam trazer à tona questões financeiras em torno da família de Komuro — especificamente sua mãe. A agora ex-princesa ficou noiva de Komuro em 2017 e os dois deveriam se casar no ano seguinte. Mas o casamento foi adiado devido a alegações de que a mãe de Komuro tinha problemas financeiros — ela teria feito um empréstimo com seu ex-noivo e não devolveu o dinheiro. O palácio negou que o atraso no casamento de Mako e Komuro estivesse relacionado a esse episódio, embora o príncipe herdeiro Fumihito tenha dito que era importante que as questões financeiras fossem resolvidas antes do casamento. De acordo com o correspondente da BBC em Tóquio, Rupert Wingfield-Hayes, a animosidade em relação a Komuro vem de alguns japoneses conservadores que acreditam que ele não é um parceiro digno para a sobrinha do imperador. Komuro — que recebeu uma oferta de emprego de um importante escritório de advocacia de Nova York — é de origem humilde, e os tabloides locais passaram anos tentando descobrir algo de podre sobre sua família, incluindo as acusações contra sua mãe. A reação ao relacionamento da princesa Mako e Kei Komuro por parte de alguns meios de comunicação e pessoas no Japão trouxe à tona a pressão que as mulheres enfrentam na família imperial japonesa. A Imperial Household Agency, órgão do governo japonês responsável por divulgar informações sobre a família real, disse que a princesa Mako passou a sofrer de estresse pós-traumático por causa das duras críticas da imprensa e das redes sociais sobre seu noivado desde seu anúncio, há quase quatro anos. Ela não é a primeira mulher na família real japonesa a ser afetada dessa forma. Sua avó, a imperatriz emérita Michiko, de origem plebeia, foi silenciada há quase 20 anos, quando recebeu críticas pela imprensa como sendo "inadequada" para ser a mulher do imperador. Sua tia, a imperatriz Masako, sofreu depressão após ser acusada de não ter gerado um herdeiro homem. As mulheres reais foram forçadas a aderir estritamente a certas expectativas — elas devem apoiar seus maridos, produzir um herdeiro e ser uma guardiã das tradições japonesas. Se elas fracassam, são violentamente criticadas. Isso também é verdade para a princesa Mako, que desistiu de seu status real. E mesmo isso não foi suficiente para impedir os ataques contra ela, seu marido e seu casamento.
2021-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59050708
sociedade
Halloween: a curiosa origem do Dia das Bruxas
Você sabe como surgiu o Dia das Bruxas, também conhecido mundialmente como "Halloween"? Você sabe como surgiu o Dia das Bruxas, também conhecido mundialmente como "Halloween"? É celebrado no dia 31 de outubro, principalmente nos Estados Unidos, mas, hoje em dia, comemorado em diversos outros países, inclusive no Brasil. Hábitos como o de crianças se fantasiarem para sair de porta em porta atrás de doces, ou de espalhar pela casa enfeites e adereços "assustadores" como abóboras esculpidas e iluminadas, ou de participar de festas a fantasia, são cada vez mais populares. No entanto, sua origem pouco tem a ver com o significado moderno que essa festa adquiriu. O Halloween tem suas raízes não na cultura americana, mas no Reino Unido. Seu nome deriva de "All Hallows' Eve". "Hallow" é um termo antigo para "santo", e "eve" é o mesmo que "véspera". O termo designava, até o século 16, a noite anterior ao Dia de Todos os Santos, celebrado em 1º de novembro. Mas uma coisa é a etimologia de seu nome, outra completamente diferente é a origem do Halloween moderno. Desde o século 18, historiadores apontam para um antigo festival pagão ao falar da origem do Halloween: o festival celta de Samhain (termo que significa "fim do verão"). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Samhain durava três dias e começava em 31 de outubro. Segundo acadêmicos, era uma homenagem ao "Rei dos mortos". Estudos recentes destacam que o Samhain tinha entre suas maiores marcas a fogueira e celebrava a abundância de comida após a época de colheita. O problema com essa teoria é que ela se baseia em poucas evidências além da época do ano em que os festivais eram realizados. A comemoração, a linguagem e o significado do festival de outubro mudavam conforme a região. Os galeses celebravam, por exemplo, o "Calan Gaeaf". Há pontos em comum entre esse festival realizado no País de Gales e o Samhain, celebração predominantemente irlandesa e escocesa, mas há muitas diferenças também. Em meados do século 8, o papa Gregório 3º mudou a data do Dia de Todos os Santos de 13 de maio - a data do festival romano dos mortos - para 1º de novembro, a data do Samhain. Não se tem certeza se Gregório 3º ou seu sucessor, Gregório 4º, tornaram a celebração do Dia de Todos os Santos obrigatória na tentativa de "cristianizar" o Samhain. Mas, quaisquer que fossem seus motivos, a nova data para esse dia fez com que a celebração cristã dos santos e a do Samhain fossem unidas. Assim, tradições pagãs e cristãs acabaram se misturando. O Dia das Bruxas, o Halloween, que conhecemos hoje tomou forma entre 1500 e 1800. Fogueiras tornaram-se especialmente populares nessa festa. Elas eram usadas na queima do joio (que celebrava o fim da colheita no Samhain), como símbolo do rumo a ser seguido pelas almas cristãs no purgatório ou para repelir a bruxaria e a peste negra. Outro costume de Halloween era o de prever o futuro - previa-se a data da morte de uma pessoa ou o nome de seu futuro marido ou mulher. Em seu poema Halloween, escrito em 1786, o escocês Robert Burns descreve as formas pelas quais uma pessoa jovem podia descobrir quem seria seu grande amor. Muitos destes rituais de adivinhação envolviam a agricultura. Por exemplo, puxar uma couve ou um repolho do solo por acreditar que seu formato e sabor forneceriam pistas cruciais sobre a profissão e a personalidade do futuro cônjuge. Outros incluíam pescar com a boca maçãs marcadas com as iniciais de diversos candidatos e "ler" cascas de noz ou olhar um espelho e pedir ao diabo para revelar a face da pessoa amada. A comida era um componente importante do Halloween, assim como de muitos outros festivais. Um dos hábitos mais característicos envolvia crianças, que iam de casa em casa cantando rimas ou entoando orações para as almas dos mortos. Em troca, elas recebiam bolos de boa sorte que representavam o espírito de uma pessoa que havia sido liberada do purgatório. Durante o festival, as igrejas costumavam tocar seus sinos, às vezes por toda a noite. A prática era tão incômoda que o rei Henrique 3º e a rainha Elizabeth 1ª tentaram proibi-la, mas não conseguiram. Esse ritual prosseguiu, apesar das multas regularmente aplicadas a quem fizesse isso. Em 1845, durante o período conhecido na Irlanda como a "Grande Fome", 1 milhão de pessoas foram forçadas a imigrar para os Estados Unidos, levando junto sua história e tradições. Não é coincidência que as primeiras referências ao Halloween apareceram na América pouco depois disso. Em 1870, por exemplo, uma revista americana publicou uma reportagem em que o descrevia como feriado "inglês". A princípio, as tradições do Dia das Bruxas nos Estados Unidos uniam brincadeiras comuns no Reino Unido rural com rituais de colheita americanos. As maçãs usadas para prever o futuro pelos britânicos viraram cidra, servida junto com rosquinhas, ou doughnuts em inglês. O milho era um cultivo importante da agricultura americana - e acabou entrando com tudo na simbologia característica do Halloween americano. Tanto que, no início do século 20, espantalhos - típicos de colheitas de milho - eram muito usados em decorações do Dia das Bruxas. Foi nos EUA também que a abóbora passou a ser sinônimo de Halloween. No Reino Unido, o legume mais "entalhado" ou esculpido era o turnip, um tipo de nabo. Uma lenda sobre um ferreiro chamado Jack que conseguiu ser mais esperto do que o diabo e vagava como um morto-vivo deu origem às luminárias feitas com abóboras que se tornaram o principal símbolo do Halloween americano. A tradição moderna de "doces ou travessuras" também é americana. Há indícios disso em brincadeiras medievais que usavam repolhos, mas pregar peças tornou-se um hábito nessa época do ano entre os americanos a partir dos anos 1920. As brincadeiras podiam acabar ficando violentas, como ocorreu durante a Grande Depressão, e se popularizaram de vez após a 2ª Guerra Mundial, quando o racionamento de alimentos acabou e doces podiam ser comprados facilmente. Mas a tradição mais popular do Halloween, de usar fantasias e pregar sustos, não tem qualquer relação com os doces. Ela veio após a transmissão pelo rádio, nos Estados Unidos, de uma adaptação do livro Guerra dos Mundos, do escritor inglês H.G. Wells, que gerou uma grande confusão quando foi ao ar, em 30 de outubro de 1938. Ao concluí-la, o ator e diretor americano Orson Wells deixou de lado seu personagem para dizer aos ouvintes que tudo não passava de uma pegadinha de Halloween e comparou seu papel ao ato de se vestir com um lençol para imitar um fantasma e dar um susto nas pessoas. Mas a esta altura, muitos já pensavam que, assim como no livro, a terra estava realmente sendo invadida por marcianos. Hoje, o Halloween é o maior feriado não cristão dos Estados Unidos. Em 2010, superou tanto o Dia dos Namorados quanto a Páscoa como a data em que mais se vendem chocolates. Ao longo dos anos, foi "exportado" para outros países, entre eles o Brasil. Por aqui, desde 2003, também se celebra nesta mesma data o Dia do Saci, fruto de um projeto de lei que busca resgatar figuras do folclore brasileiro, em contraposição ao Dia das Bruxas. Em sua "era moderna", o Halloween continuou a criar sua própria mitologia. Em 1964, uma dona de casa de Nova York chamada Helen Pfeil decidiu distribuir palha de aço, biscoito para cachorro e inseticida contra formigas para crianças que ela considerava velhas demais para brincar de "doces ou travessuras". Logo, espalharam-se lendas urbanas de maçãs recheadas com lâminas de barbear e doces embebidos em arsênico ou drogas alucinógenas. Atualmente, o festival conserva pouco de sua origem, mas, apesar de ter ganhado nova roupagem, dá oportunidade para que adultos brinquem com seus medos e fantasias. Ele permite subverter normais sociais como evitar contato com estranhos ou explorar o lado sombrio do comportamento humano. Une religião, natureza, morte e romance. Talvez seja esse o motivo de sua grande popularidade. *Texto originalmente publicado em 29 de outubro de 2017
2021-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-41778799
sociedade
Existe idade certa para se ter sucesso na carreira e no amor?
Cada vez mais pessoas estão tendo sucesso em idades diferentes. Por que continuamos a dizer que existem pessoas "atrasadas"? Doree Shafrir considera que o seu sucesso chegou tarde. Ela se casou com 38 anos, teve seu primeiro filho aos 41 e acha que se atrasou de forma geral, "para namorar, ter sexo, casar, ter filhos, encontrar o tipo de trabalho de que realmente gosto e ficar confortável comigo mesma". Embora o caminho nem sempre tenha sido tranquilo, essa escritora de Los Angeles, nos Estados Unidos, agora com 44 anos de idade, é agradecida pela sua jornada e tem uma nova perspectiva pelas conquistas que, um dia, ela sentiu que estavam faltando. "Esses objetivos são um tanto arbitrários e determinados culturalmente", afirma ela. "Agora vejo que aquilo que eu achava que eram 'erros' são apenas outra parte da minha história." Shafrir considera que suas memórias — Obrigada pela espera: a beleza (e a esquisitice) de chegar tarde ao sucesso, em tradução livre do inglês — são uma "suave correção da ideia de que precisamos fazer tudo dentro de uma programação". Mas esta é uma ideia profundamente arraigada. Muitos de nós achamos — conscientemente ou não — que nossos caminhos devem seguir um cronograma rígido de conquistas pessoais e profissionais. Podemos nos considerar fracassados se alguma dessas conquistas "atrasar", em parte devido à tendência social de reconhecimento do sucesso na juventude. Mas muitas pessoas atingem o auge da carreira, a prosperidade financeira ou o sucesso nos relacionamentos no seu próprio tempo. Na verdade, pesquisas indicam que é cada vez mais comum atingir os principais eventos da vida mais tarde que as gerações anteriores. Como estamos vivendo por mais tempo, trocando de carreiras com mais frequência e buscando mais significado para o nosso trabalho, faz sentido que mais pessoas "se atrasem" na vida. E, com isso, estigmatizar o sucesso atingido com mais idade - incluindo a ideia de que isso é menos significativo e mais surpreendente que ter sucesso quando jovem - torna-se uma ideia cada vez mais limitada e desatualizada da relação entre a idade e o sucesso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O próprio fato de rotularmos alguém como "atrasado" tem origem, em parte, na nossa expectativa que as pessoas atinjam certos objetivos na vida em idades específicas, muitas vezes quando jovens — e os que ultrapassam esses prazos teriam "ficado para trás". Culturalmente, temos a tendência e normalizar cronogramas específicos — e muitas vezes consideramos aqueles que seguem esses cronogramas como mais bem-sucedidos — devido à obsessão generalizada pelo sucesso quando jovem. Os ideais modernos de sucesso são frequentemente acompanhados pela pressão da realização com a menor idade possível. O resultado é que podemos considerar as realizações com pouca idade como a norma geral ou, em casos excepcionais, inspiradoras, enquanto os sucessos obtidos com mais idade simplesmente atendem às expectativas mínimas — ou em visões mais extremas, são até vistos como "tardios". Mas, mesmo com essa narrativa internalizada do "quanto mais cedo, melhor", na verdade, não estamos atingindo os objetivos culturalmente definidos para nós. Em 2017, um estudo da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, demonstrou que, ao longo das gerações, o tempo ideal das pessoas para atingir conquistas na vida, em média, permaneceu constante: entrar em um emprego em tempo integral com 22 anos, começar a economizar para a aposentadoria com 25, casar-se com 27, comprar uma casa com 28 e ter filhos com 29 anos de idade. Mas cada grupo etário sofreu uma queda sucessiva do percentual real de pessoas que cumprem essas marcas em comparação com a geração anterior. As pessoas com 25 a 34 anos de idade exibem a maior diferença entre o tempo ideal e o real. Os pesquisadores concluíram que buscar esses objetivos antiquados é "levar as gerações mais jovens ao fracasso". Embora cada vez mais pessoas atinjam o sucesso com mais idade, as discussões sobre aqueles que "chegam tarde" continua. Ainda nos surpreendemos com histórias de sucesso de pessoas com mais idade e as enquadramos como fora do normal, apesar de elas existirem, tanto agora quanto em toda a história moderna. "No sistema atual, se você não for identificado como uma pessoa que atingiu alguma coisa com pouca idade, você é considerado incapaz", explica Todd Rose, autor de O azarão: como atingir o sucesso pela busca da realização (em tradução livre do inglês), que estuda o comportamento cultural frente ao sucesso e à individualidade. "Ficamos surpresos quando alguém que não é jovem presta uma contribuição importante — nós não sabemos como compreender isso e consideramos uma curiosidade e não uma tendência oculta", afirma Rose. A ideia de "atrasado" não está apenas desatualizada. Ela pode também ser prejudicial para quem atinge o sucesso com mais idade do que o "esperado" para as conquistas pessoais. Essas pessoas podem enfrentar sentimentos de fracasso, comparação negativa de si mesmas com os demais e até a sensação de que foram esquecidas ou deixadas para trás. "Todos nós internalizamos o mito do sucesso quando jovem a tal ponto que muitas pessoas com mais idade também o internalizaram, o que é deprimente", afirma Rose. "Precisamos deixar para trás a ideia de que o rápido é inteligente, em oposição ao lento, e a noção de que 'se sou mais velho, é tarde demais para mim'. Não podemos continuar permitindo que os 'atrasados' passem dificuldades, esperando que não sejam arruinados pelo sistema." Em última análise, a retirada da pressão pelo sucesso em um dado prazo é favorável não apenas para a saúde mental, mas pode também permitir que as pessoas que atualmente rotulamos como "atrasadas" apreciem o sucesso característico de quem atingiu a realização mais tarde. Muitas dessas qualidades e habilidades são o resultado direto de passar mais tempo se autodescobrindo, aprendendo e mesmo fracassando. "Os 'atrasados' podem enfrentar mais desafios no seu caminho para o sucesso, que os levam a desenvolver mais resiliência", afirma Chia-Jung Tsay, professora do University College de Londres, no Reino Unido, que estuda a psicologia e a percepção de avanço e desempenho. "Essas pessoas podem estar mais preparadas para adaptar-se a circunstâncias difíceis, incertezas e mudanças", segundo ela. Além da maior flexibilidade, um caminho mais demorado para o sucesso também traz oportunidades para descobrir e cultivar valores significativos e paixões que sejam pessoalmente representativas, e não impostas pela sociedade. "O que permite o sucesso dos 'atrasados' é a sua experiência acumulada, que permite compreender que seguir a opinião de outra pessoa sobre uma vida bem sucedida nunca irá levá-los aonde eles desejam", afirma Rose. "Minha pesquisa demonstra que pessoas com 40, 50 e 60 anos de idade que não são realizadas e conseguem uma virada na vida ou na carreira muitas vezes acabam proporcionando contribuições incríveis." Doree Shafrir passou por uma dessas mudanças quando se demitiu do trabalho dos seus sonhos no jornalismo tradicional para lançar um podcast com pouco mais de 40 anos de idade. Apesar de se sentir fracassada em alguns momentos — como quando ela saiu de um curso de PhD, mudou-se de Nova York e passou por tratamentos de fertilidade —, olhando em retrospectiva, ela viu a importância da sua mudança de caminho. Apesar dos medos e dúvidas, ela compreendeu que havia "encontrado algo melhor — algo que eu tinha certeza que causava muito impacto na vida de outras pessoas e na minha própria", segundo ela. Claramente, precisamos remodelar a forma como analisamos o sucesso com relação à idade — simplesmente não podemos manter uma orientação que leve a menosprezar o potencial inexplorado de toda uma faixa da população. "Como sociedade, precisamos mudar nossa mentalidade que considera os 'atrasados' uma anomalia", afirma Rose. "Não existe absolutamente nenhuma relação entre a idade ou a velocidade em que você atinge um objetivo e a contribuição final que você pode prestar." Embora Shafrir tenha aprendido essa lição no seu próprio tempo, ela espera que as gerações futuras não passem pelas pressões para o sucesso com relação à idade que ela enfrentou - especialmente por ser mulher. "Precisamos permanecer vigilantes e continuar a desafiar o status quo que, no final das contas, não atende a muitos de nós", acrescenta. A pandemia pode oferecer essa abertura para iniciar a correção de curso. Para Rose, "a ruptura cria uma oportunidade para alterar intencionalmente o zeitgeist [o espírito da época] e considerar os 'atrasados' de uma nova forma." "O conceito de pessoa que 'chegou tarde' é uma reminiscência de uma época em que considerávamos que rapidez significava capacidade. Agora, estamos mudando e o trabalho passa a ser uma fonte de realização, e não só de renda. Quando as pessoas perceberem que a realização produz excelência e não o contrário, poderemos ajudar as pessoas a prestar suas melhores contribuições, sem importar quando elas ocorram."
2021-10-25
https://www.bbc.com/portuguese/revista-58982438
sociedade
As maravilhas arquitetônicas da milenar 'Manhattan do deserto'
Atravessar o Bab-al-Yaman, o enorme portão de acesso à antiga cidade murada de Saná, a capital do Iêmen, é como passar por um portal para outro mundo. Há muitos edifícios altos e esguios amontoados em áreas estreitas que ligam exuberantes hortas de frutas ou verduras a antigos mercados em que ainda são vendidos burros. Nessa região, há serralheiros remendando enormes chaves de metal que abrem imponentes portas de madeira; um vendedor que oferece atuns em um carrinho e o padeiro local tirando pão fresco de um buraco em chamas no solo. Em uma sala minúscula, um camelo caminha em círculos dando impulso a uma pedra de um moinho que esmaga sementes de gergelim. Mas apesar de todo esse estímulo visual, a arquitetura é, sem dúvidas, o que domina a cena. Saná está repleta de edifícios que são diferentes do que é possível encontrar em qualquer outro lugar do mundo. Na rua, a monotonia das paredes de adobe é interrompida apenas por grandes portas de madeira e muitas vezes não há muito para se ver. No entanto, ao olhar para cima, é possível observar os edifícios esguios, alguns com apenas um ou dois apartamentos por andar, que se elevam como em direção ao céu. Enquanto os andares inferiores, no nível da rua, não têm janela porque são usados como abrigo para animais ou espaço para trabalho, os apartamentos superiores têm janelas ornamentadas por vitrais ou por delicadas telas de muxarabi, protegendo assim a privacidade das mulheres no interior do imóvel. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As molduras das janelas e os frisos entre os pisos nesses apartamentos são marcados com um intrincado cal branco para contrastar com o fundo cor de barro. Muitos desses prédios têm terraços em suas coberturas, usados como espaços de entretenimento, assim como quartos ao ar livre para as noites quentes. A imponência dos edifícios e a praticidade deles criam um panorama arquitetônico inspirador. Dos becos é praticamente impossível apreciar a verdadeira altura desses edifícios. Mas no mercado é possível ver que alguns possuem até sete andares. Em um terraço de um prédio de sétimo andar, que se tornou uma cafeteria, é possível ver a cidade velha com uma aparência destruída. Mas a maioria dos edifícios dela são tão altos como esse da cafeteria, e evocam a estranha sensação de estar cercado por arranha-céus. Quase é possível se sentir em Dubai ou Nova York, a diferença é que essas construções têm entre 300 a 500 anos e são feitas de barro. Alguns desses arranha-céus do Iêmen podem atingir até 30 metros de altura. Os primeiros arranha-céus modernos construídos em Chicago eram apenas alguns metros mais altos do que esses. O Iêmen está cheio de edifícios altos semelhantes a esses. Eles podem ser vistos tanto nas cidades menores como nas maiores, como na famosa cidade de Shibam, que foi apelidada de "a Manhattan do deserto" na década de 1930 pela exploradora anglo-italiana Dame Freya Stark. Outro exemplo é o palácio Dar-al-Hajar, primorosamente decorado e que também é chamado de "Palácio da Rocha". O estilo arquitetônico dos arranha-céus do Iêmen é tão único que as cidades de Zabid, Shibam e a cidade velha de Saná foram reconhecidas como Patrimônio Mundial da Unesco. A tradição remonta, pelo menos, aos séculos 8 e 9, segundo Trevor Marchand, professor de antropologia social na Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres (SOAS, pelas suas siglas em inglês). Ele estuda sobre o patrimônio arquitetônico do Iêmen e já escreveu livros sobre o tema. É praticamente impossível saber as datas exatas dessas construções, porque esses edifícios de adobe precisam de reparações ou restaurações constantes para que não desabem. O que faz com que os arranha-céus iemenitas sejam tão únicos é que muitos deles ainda estão em uso, assim como centenas de anos atrás. Na cidade velha de Saná, por exemplo, alguns se tornaram hotéis ou cafeterias, mas a maioria ainda é usada como residência privada. "Quando crianças, jogávamos futebol nessas ruas estreitas e, quando adolescentes, bebíamos café atrás das janelas brilhantes", diz Arwa Mokdad, defensora da paz da Fundação de Alívio e Reconstrução do Iêmen. Enquanto viajam pelo país, maravilhados com as cidades cheias de arranha-céus, muitos podem se perguntar por que os iemenitas construíram assim, considerando que o país tem vasta extensão de deserto. Salma Samar Damluji, arquiteta e autora de um livro sobre a arquitetura e reconstrução do Iêmen, explicou que as construções tradicionalmente eram restritas a pequenos locais, forçando a construção vertical. Segundo ela, havia um muro que separava as vilas e cidades do deserto. Isso era uma forma de impedir o desenvolvimento urbano, segundo a especialista, e qualquer espaço viável para a agricultura era considerado muito valioso para ficar cheio de edifícios. Por isso, diz a arquiteta, construir para cima, em espaços estreitos, era a opção preferida. Havia também a necessidade de proteção, o que fez com que os assentamentos iemenitas se concentrassem em determinados lugares, em vez de se espalharem por todo o território. Os planejadores urbanos achavam que vivendo em um deserto inóspito, era importante ter a capacidade de olhar a longas distâncias para identificar os inimigos conforme eles se aproximavam e poder fechar os portões da cidade. "Um fator importante que contribuiu para o desenvolvimento dessas "casas-torre" foi a necessidade de se proteger das forças invasoras, como em tempo de disputas locais ou de guerra civil", detalha Marchand. Construídos com materiais naturais, os arranha-céus do Iêmen são sustentáveis e perfeitamente adequados ao clima quente e seco do deserto árabe. Os terraços nas coberturas funcionam como dormitórios ao ar livre, enquanto as telas nas janelas convidam até a mais breve brisa para dentro de casa e permitem a entrada de luz, mas não muito a do calor. "O adobe é uma massa térmica excepcional", acrescenta Ronald Rael, professor de arquitetura da Universidade da Califórnia em Berkeley e especialista em edifícios do tipo. Rael, que mora em uma casa de adobe que pertencia ao seu bisavô, no sul do Colorado, nos Estados Unidos, explica que esse material "absorve e libera calor lentamente". "Durante o dia, quando o sol bate na parede, o calor do sol é absorvido lentamente pela parede. À medida que a noite cai, esse calor é liberado lentamente (ajudando) os edifícios de barro a manterem uma temperatura confortável", diz. Esse simples efeito natural faz com que a construção em adobe seja popular até os dias atuais e justifica o motivo de as estruturas do Iêmen ainda resistirem. Os responsáveis por essas construções no Iêmen quase não usavam andaimes. Os mestres de obra começavam com uma base de pedra, normalmente com cerca de 2 metros de profundidade, sobre a qual colocavam tijolos de barro em uma ligação contínua. Eles então construíam lentamente para cima, colocando vigas de madeira para aumentar a resistência e adicionando pisos de madeira e materiais de palmeira à medida em que subiam. O andaime só começava a ser usado mais tarde, quando a casa já estava pronta e precisava de uma restauração. Porém, segundo Damluji, essa forma de construção está perto da extinção. "Queremos estruturas que possam resistir até 300 anos ou mais. Prédios de seis ou sete andares construídos com tijolos de barro seco ao sol são uma maneira de construção que nenhum arquiteto contemporâneo pode usar hoje", afirma. Para evitar que esse conhecimento seja perdido, Damluji trabalha em colaboração com a fundação Dawan, que se esforça para preservar esses métodos de construção fomentando o uso de materiais e métodos tradicionais com elementos modernos. A existência desses prédios históricos também é ameaçada pela constante erosão do vento, pelas guerras e pelas lutas econômicas que impedem que as famílias cuidem adequadamente dessas construções frágeis. Em 2020, a Unesco examinou cerca de 8 mil dessas maravilhas arquitetônicas e restaurou 78 que estavam perto do colapso. A Unesco tem feito o possível para salvar o maior número de edifícios, mas a missão é considerada difícil. "É uma experiência muito triste presenciar como a história se converte em escombros", lamenta Mokdad. "Essa destruição é uma perda para toda a humanidade", acrescenta. "Em qualquer outro lugar, esses edifícios seriam peças de museu, mas no Iêmen ainda são casas. Não consigo descrever o orgulho de viver em um lugar preservado por gerações de antepassados. São a nossa conexão com o passado", conclui.
2021-10-25
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59032172
sociedade
Covid-19: o grande abandono de cães comprados na pandemia
Um dia depois de receber a cachorrinha Maggie, de um ano idade, a equipe do abrigo Hope Rescue Center, no Reino Unido, encontrou um anúncio na internet em que os donos tinham tentado vendê-la por 500 libras (quase R$ 3,9 mil). Como não conseguiram vendê-la, os donos abandonaram a cachorra - da raça English Sheepdog (Cão Pastor Inglês) - no abrigo dizendo que ela tinha sido encontrada na rua. "Nós não podemos recusar cães de rua, então cães que tinham donos estão entrando na fila à frente dos cães que realmente estavam abandonados", diz Sara Rosser, chefe de bem-estar animal do Hope Rescue Center. "É um número sem precedentes no momento", afirma. O caso de Maggie não é único. Funcionários da instituição de caridade dizem que diversos donos de cães têm fingindo que seus próprios animais de estimação são vira-latas encontrados na rua e deixado os bichos em abrigos. O Hope Rescue diz que o número de cães deixados em seu centro de resgate foi o maior em seus 15 anos de história. A instituição de caridade acredita que a tendência é que o número continue alto. Mais de 3,2 milhões de animais de estimação foram comprados no Reino Unido durante o lockdown decretado para combater a pandemia de coronavírus, segundo números do governo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Rosser afirma que só na semana passada cinco pessoas foram ao centro com cães que claramente eram seus próprios animais de estimação, mas o número "pode ser muito maior". O centro agora tem 150 animais abandonados - o maior número que já teve. "Todos os abrigos estão lotados e os veterinários ligam para nós contando que pessoas abandonaram bichos na clínica", diz Rosser. "Eles dizem 'há alguma chance de vocês abrigarem os animais? Porque estamos preocupados que eles acabem tendo que ser sacrificados'." O Hope Rescue disse que recebeu mais de 7 mil pedidos de adoção de cães em 2021, durante a pandemia e teve que suspender os pedidos por causa do volume. Mas mesmo assim os centros estão lotados por causa do aumento de pessoas que receberam cães durante o confinamento da pandemia e depois perceberam que não podiam cuidar deles quando a vida voltou ao normal. "No momento, estamos ouvindo de todos os centros de resgate com que trabalhamos que eles também estão lotados e que estão sob enorme pressão". Os cães que chegam aos centros de resgate pós-pandemia têm uma incidência maior de problemas de saúde ou de comportamento, ou ambos, tornando mais difícil encontrar um novo lar para eles. Frequentemente os cães não podem ser transferidos para outros centros de resgate porque eles também atingiram a capacidade máxima. "Achamos que isso vai durar de dois a três anos, talvez até mais", diz Meg Williams, gerente de desenvolvimento da Hope Rescue. O Brasil também tem sofrido com o abandono de animais de estimação durante a pandemia. Não há dados oficiais sobre o tema. ONGs e entidades que cuidam de bichos abandonados relatam que a onda de adoções em 2020 foi seguida por um grande aumento no números de bichos deixados desamparados por seus donos neste ano. No início de 2021 a entidade Ampara Animal divulgou um levantamento com a estimativa de que o abandono cresceu 60% entre julho de 2020 e fevereiro de 2021 em comparação com o mesmo período nos anos anteriores. Outras entidades, como a Associação Protetora dos Animais do Distrito Federal, e abrigos vem relatando o mesmo problema.
2021-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/geral-59024237
sociedade
Conheça a linguagem secreta das seitas – e como ela penetrou em áreas inesperadas do nosso cotidiano
Para quem está do lado de fora e observa seu comportamento e crescimento, a pergunta costuma vir à cabeça: como as seitas, afinal, promovem suas ideologias para conseguir atrair seguidores e depois convencer quem as questiona a ficar no grupo? Uma das ferramentas mais poderosas das seitas é a palavra, e elas a utilizam de uma maneira tão sedutora que o formato penetrou, de forma inesperada, em muitas atividades comuns, do mundo dos negócios à indústria de saúde e bem-estar. Como sabemos, entretanto, a palavra depende do contexto. A palavra "seita", especialmente, é um exemplo vivo disso. Começou sendo um termo para dar nome a comunidades de membros que compartilham ideologias ou crenças que os diferenciavam de outros grupos maiores — talvez novas ou pouco ortodoxas, mas não necessariamente nefastas. Somente em meados do século 20 é que essa palavra começou a ganhar sua reputação mais obscura. O surgimento de tantas religiões alternativas assustou muita gente, e as seitas foram associadas a charlatões, hereges e pecadores. Mais tarde, com os assassinatos cometidos pelo grupo liderado por Charles Manson em 1969, na Califórnia (EUA), e o massacre de Jonestown, na Guiana, em 1978, "seita" passou a representar uma ameaça social e a provocar medo. Para diferenciar certas minorias de doutrinas religiosas ou ideológicas concretas e evitar sua perseguição, na década de 1980 surgiu o conceito de "novos movimentos religiosos" e, por outro lado, o das chamadas "seitas destrutivas". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora a linguagem utilizada pelas seitas seja a chave para atrair novos integrantes, ela por si não é suficiente para "lavar o cérebro" de uma pessoa para que ela se junte ao grupo, esclarece a especialista em linguagem Amanda Montell, autora do livro Cultish: The Language of Fanatism ("Como num culto: a Linguagem do Fanatismo", em tradução livre). O termo "lavagem cerebral", explica ela, é apenas uma metáfora, não um fenômeno real ou comprovável. Não se pode convencer alguém de que ela tem de acreditar em uma coisa sem que a pessoa tenha ao menos um pouco de vontade de fazer isso. Mas, uma vez que essa vontade existe, a linguagem torna-se um ponto chave, disse a especialista ao programa Word of Mouth, da Radio 4 da BBC . "É necessária uma linguagem para obscurecer as verdades, para construir a solidariedade, para plantar uma ideologia, para dividir as pessoas em 'nós' e 'eles', para plantar a filosofia de que 'os fins justificam os meios' e para fazer todo o necessário para ganhar e manter o poder." Em primeiro lugar, uma seita precisa converter a pessoa. E isso é alcançado fazendo com que ela se sinta especial e compreendida. Muitos estudiosos desse fenômeno usam o termo "bombardeio de amor" para descrever o processo de dar a alguém atenção personalizada e elogios, de maneira que o objeto dessa atenção se sinta notado. A pessoa alvo dessa atenção pode estar buscando há muito tempo respostas para seus problemas, para os problemas do mundo, e é então convencida de que se unir à seita lhe dará acesso a essas soluções. Outro método de "conversão, condicionamento e coerção" é o uso de uma "linguagem de código inclusivo", afirma Montell. "Um líder da seita introduz lentamente essas palavras carregadas de muita emoção e uma terminologia especial que separa os que estão dentro desse grupo dos que estão fora", explica. Além disso, eles podem usar um glossário de rótulos "nós, eles", "para empolgar os que estão dentro do grupo e criticar os que estão fora dele". Em 1978, 918 pessoas morreram num assentamento na Guiana (país da América do Sul que faz fronteira com os Estados brasileiros de Roraima e Pará). A tragédia ficou conhecida como o "Massacre de Jonestown". A mídia descreveu os acontecimentos como um suicídio coletivo, em que os participantes beberam cianeto intencionalmente, para acabar com a própria vida. A verdade foi que o líder da seita, Jim Jones, não deu a seus seguidores nenhuma alternativa: eles estavam rodeados de guardas armados. Se não ingerissem eles mesmos o veneno, a substância seria injetada em seus corpos, ou os seguranças atirariam. Jones utilizou termos carregados e metáforas para seduzir e convencer as pessoas de que elas estavam fazendo um grandioso gesto de oposição e resistência ao se matar. Um dos termos que ele usava repetidamente foi "suicídio revolucionário". O dia do massacre marcou o "suicídio revolucionário" como uma declaração política contra "governantes ocultos" - termo de Jones para descrever uma estrutura secreta de poder, algo que hoje em dia muitos descrevem como "Estado profundo". Jones havia incorporado o termo "suicídio revolucionário" do movimento radical afro-americano Panteras Negras. "Isso é o que fazem muitos líderes de seitas", diz Montell. "Eles adotam a linguagem de ideologias que eles respeitam." Jim Jones tomou emprestado muitos desses termos políticos para indicar que sua ideologia era politicamente radical. De forma parecida, a cientologia - movimento surgido nos anos 1950 nos Estados Unidos - adotou palavras científicas como "engrama" (um registro duradouro de percepções sensoriais deixado nas células humanas) e lhes deu novos significados específicos em seu sistema de práticas e crenças religiosas. Marshall Herff Applewhite, cujo grupo dos anos 1990 era um culto inspirado em ficção científica e na crença em vida alienígena, chamado Heaven's Gate (Portal do Céu), tinha um repertório linguístico diferente. Segundo Amanda Montell, Applewhite usava "longas asserções esotéricas sobre o espaço e uma sintaxe derivada do latim para fazer com que seu pequeno grupo de seguidores pseudointelectuais se sentissem como uma elite". Da mesma forma que Jim Jones, ele utilizava eufemismos para a morte - a seita de Applewhite também terminou tragicamente, em suicídio coletivo -, mas com uma combinação dos estilos de linguagem de ficção científica e do Antigo Testamento. Ele dizia, por exemplo, que seus seguidores tinham que "superar suas vibrações genéticas como uma forma de sair de seus veículos para que seus espíritos pudessem ressurgir a bordo de uma nave espacial e encontrar o próximo nível evolutivo, acima do humano". Ele se referia a nossos corpos como "contêineres" que podiam ser descartados quando alguém se transferisse para uma existência superior. Para Amanda Montell, "nos anos 1990, quando muitos recorriam à tecnologia digital em busca de respostas às perguntas mais antigas do mundo, essa linguagem realmente causava uma identificação, pelo menos para certas pessoas". Mas o líder de uma seita não é capaz de ser um "gênio iluminado" 24 horas por dia, sete dias por semana, então é preciso rapidamente conseguir eliminar o pensamento independente e os questionamentos. Uma das formas com que seitas fazem isso é por meio de "clichês que põem um fim a pensamentos". O termo, cunhado no início da década de 1960 pelo psicólogo Robert Jay Lifton, "descreve uma expressão comum que é memorizada e repetida facilmente, e tem como objetivo acabar com o questionamento ou o pensamento ou análise independente", observa Montell. O líder do grupo Nxvim, um "grupo metafísico de superação pessoal" da New Age, a Nova Era, por exemplo, dizia coisas como "não se deixe governar pelo medo" para descartar qualquer preocupação válida sobre o que estava acontecendo. Também minava questionamentos descrevendo-os como "crenças limitantes". "Esse tipo de expressão é realmente convincente porque lida com a dissonância cognitiva, ou ao menos alivia essa discórdia incômoda que você sente quando tem duas ideias conflitantes em sua mente ao mesmo tempo", diz Montell. Esse estilo de expressão comum manifesta-se em nossa vida cotidiana, afirma ela, em forma de frases como "tudo está como Deus planejou" ou "tudo acontece por um motivo". Em sua investigação, Montell detectou um tipo de linguagem de seita em corporações tão grandes quanto a Amazon. A companhia tem sua própria versão dos Dez Mandamentos que chama de "Princípios de Liderança" - e que os novos funcionários devem memorizar. Eles incluem trivialidades como "Pense grande", "Mergulhe fundo" e "Seja firme". "No mercado transitório e muito cético de hoje, onde existe tão pouca lealdade a marca, as empresas necessitam das chamadas ideologias organizacionais", diz a especialista. São ideologias que implicam que consumidores e empregados não estão apenas assinando embaixo para aceitar um trabalho, um produto ou um serviço, mas sim, para obter uma identidade. À medida que nos afastamos cada vez mais dos tradicionais pontos de encontro e atividade comunitária como as igrejas, "buscamos marcas e empresas, quase para que estas desempenhem um papel espiritual e religioso em nossas vidas", explica. Um lugar moderno e secular que pode cumprir um propósito espiritual é a academia de ginástica. "Aspirar a inspirar", "inspiramos intenção e expiramos expectativa" e "mude seu corpo, comece sua jornada" são apenas alguns fragmentos da declaração escrita na parede de qualquer sucursal da empresa de fitness SoulCycle, visível logo na entrada. Pesquisas mostraram que, quando perguntados sobre como e onde satisfazem sua espiritualidade, jovens responderam que é nas academias de ginástica. Faz sentido, quando se considera o quanto amamos o progresso, a produtividade e sermos atraentes, diz Montell. "A superação pessoal é nossa religião suprema."
2021-10-24
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58953563
sociedade
Burnout saiu do mundo do trabalho e invadiu outras esferas da vida, diz escritora de livro sobre millennials
"Uma lista de afazeres ambulante que só existe da cabeça para cima." "Uma pilha de brasas, queimando silenciosamente." "A falha constante em corresponder às expectativas impossíveis que criamos para nós mesmos." É com frases assim, tiradas de milhares de relatos de millennials e de sua própria experiência pessoal, que a jornalista norte-americana Anne Helen Petersen descreve a experiência do burnout, apontado por ela como o "estado permanente" da geração nascida entre 1981 e 1996 (segundo a definição do Pew Research Center dos EUA). No livro Não Aguento Mais Não Aguentar Mais (HarperCollins Brasil), Petersen contesta a caracterização geralmente jocosa dos millennials, que têm atualmente entre 25 e 40 anos, como "preguiçosos", "egoístas" e "frágeis diante da dureza da vida". A descrição era feita principalmente pela geração boomer (os norte-americanos nascidos após a Segunda Guerra Mundial, cujas idades variam hoje entre 55 e 75 anos). A jornalista, uma millennial de 40 anos que viralizou com um artigo no site BuzzFeed sobre o tema, traça uma linha histórica que chega até o momento atual de empregos precários, bombardeio de informação, dívidas com educação para ter um nível maior de escolaridade e saúde mental abalada. Petersen estava com o livro praticamente pronto quando chegaram as primeiras notícias sobre a covid-19. Ela afirma, no entanto, que a pandemia só acentuou os efeitos em quem já sofria de burnout. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o burnout não é uma "condição médica", mas está listada pela entidade, desde 2019, na Classificação Internacional de Doenças (CID) como "fenômeno ligado ao trabalho". Para a jornalista, a síndrome saiu do mundo profissional e invadiu outras esferas da vida. "As características do burnout mudam conforme o tempo. Pessoas que trabalhavam ou ainda trabalham por muitas horas em fábricas, sem tempo para elas mesmas, sofrem uma forma de burnout. Mas hoje isso se relaciona a todos os outros componentes da vida cotidiana. Tudo parece trabalho. Redes sociais podem parecer trabalho quando postar está ligado à ideia de performance e de transformar o indivíduo em uma marca. Criar filhos envolve uma pressão para não falhar e não comprometer o futuro financeiro das crianças." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Petersen defende em Eu Não Aguento Mais Não Aguentar Mais que os millennials na verdade não tiveram vida fácil e entraram na fase adulta quando se consolidou a transformação do mercado de emprego nos EUA e no mundo. Aumento de corte de pessoal por eficiência empresarial, desregulamentação de leis trabalhistas e preferência posterior por empregados sem vínculos resultaram em um ambiente de menos oportunidades e piores condições, mas onde ainda prevalece a ideia de que estudo e trabalho duro são garantia para alcançar sucesso. "Fomos criados para acreditar que, se nos esforçássemos o suficiente, poderíamos ganhar no sistema - do capitalismo e da meritocracia americana", diz um trecho do livro. "Convencemos trabalhadores de que as péssimas condições são normais, de que se rebelar contra isso é sintoma de uma geração mimada." O burnout, que é caracterizado por cansaço extremo, sentimentos de negatividade ou distância em relação ao próprio trabalho e reduzida eficácia profissional, representa na visão de Petersen uma "reação ao estado de precariedade". "É uma forma diferente de desespero quando há dificuldade para descrever o que você está sentindo, aquela irritação ao fundo: por que existe essa raiva, por que não acho um caminho diferente?" A jornalista credita esse sentimento difuso a um aumento da desigualdade social e à sensação nas pessoas de que a qualquer momento elas podem sair do patamar mínimo de qualidade de vida. Uma pesquisa com mais de 30 mil trabalhadores de 31 países, encomendada pela Microsoft para a série The Work Trend Index e divulgada em março de 2021, mostrou que: - 54% dos entrevistados sentem que estão trabalhando em excesso - 39% relatam estado de exaustão - 41% pensam em pedir demissão No Brasil, um levantamento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul com 201 técnicos de enfermagem indicou que 70% relataram sintomas de burnout. Nascida depois dos millennials, a Geração Z (de 1995 a 2010) se divide entre os que são críticos dos mais velhos e os que sentem empatia por também viverem a sensação de "burnout permanente". "Eu vejo duas correntes nas novas gerações. Uma que critica os millennials e diz que eles são preguiçosos e questionam 'por que eles reclamam o tempo inteiro? A gente vai mostrar como se faz'. E tem outra que já experimenta um burnout no ensino médio ou na faculdade e se pergunta 'bom, se agora é assim, como vai ser o resto da minha vida'? Mas a nova geração também está indo para cima, contestando as ideias sobre o que define sucesso, o que define uma carreira ou como a vida deve ser. Eu não sei o que vai sair disso, mas já me dá esperança". Ambas as gerações têm uma relação particular e muito forte com o celular e as redes sociais - e pesquisas apontam que isso pode ser um problema. De um lado, há a necessidade de consumir esse conteúdo compulsivamente (millennials olham o celular 150 vezes por dia, segundo um estudo de 2013) e do outro se desenvolve uma sensação de cansaço e esgotamento (o consumo de celular em 2016 nessa faixa etária já ultrapassava 6 horas por dia). Ela narra no livro sua própria experiência scrollando (deslizando a tela) pelo Instagram em que se pega por vezes "menos interessada em ver o que os outros postaram e mais em saber quantas pessoas curtiram a foto que eu postei na noite anterior" e "a considerar experiências, enquanto estamos tendo essa experiência, a partir de legendas futuras [dos posts] e a pensar em viagens como válidas somente quando documentadas para consumo público". "As pessoas que me disseram ter uma relação mais saudável com as redes tiram 'sabáticos' das mídias sociais de tempos em tempos, deletando os apps do celular por esse período. Eu não tenho Facebook no meu telefone, mas eu tenho Instagram, porque é o jeito padrão de usar a plataforma. Talvez o jeito seja tratar as redes sociais não como um hábito, mas um ritmo em que você quebra de vez em quando. Mas, de novo, eu ainda não consegui fazer isso", admite. Anne Helen Petersen diz que não há uma receita para curar o burnout, nem com "apps de produtividade" e "life hacks" (dicas espertas para facilitar a vida), pois o problema é estrutural. Mas ela oferece um primeiro passo para encarar o problema: "As pessoas estão lidando com um burnout de longo prazo nessa fase da pandemia. Elas estão lidando com situações que talvez nunca fossem identificadas como burnout. E isso tem a ver com medo e com a sensação de estar no limite, não é mesmo? Então acho que o primeiro passo é dizer em alto e bom som e identificar o que está acontecendo. É a falta de limites em relação ao meu trabalho? Às vezes as pessoas precisam ser realmente honestas e perguntar se 'é assim mesmo a carreira que eu quero?' ou tomar uma decisão crucial de vida e mudar o seu rumo." A jornalista termina o livro com uma espécie de ameaça vinda dos millennials e das novas gerações: "Subestime-nos por sua conta e risco: temos muito, muito pouco a perder". Ela explica a última frase dizendo que é sua esperança de que "as pessoas sintam que vale a pena viver, que o futuro vale a pena e que elas querem lutar para mudar as coisas". "Às vezes acho que as pessoas nem esperam tanto da vida em termos de conquistas, sucesso e ter bens. Elas querem se sentir ok todos os dias".
2021-10-23
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58962306
sociedade
Vídeo, Mulheres e meninas são apagadas da vida pública no Afeganistão sob TalebãDuration, 5,17
Já faz um mês que o Talebã baniu as meninas das escolas secundárias do Afeganistão. Trata-se do único país do mundo a impedir que metade de sua população tenha acesso a uma educação formal. Mulheres, com exceção das que atuam na saúde pública, ainda não foram liberadas para retornarem a seus empregos. A correspondente da BBC Yogita Limaye foi até o antigo Ministério dos Assuntos das Mulheres, extinto pelo novo governo e substituído pelo temido Ministério da Virtude e Prevenção ao Vício, questionar o porta-voz do grupo sobre o futuro das mulheres no Afeganistão. Confira.
2021-10-21
https://www.bbc.com/portuguese/media-58999267
sociedade
'Experiência de quase morte me transformou em músico de ponta'
Quando Tony Kofi tinha 16 anos de idade, ele sofreu um acidente no trabalho. Enquanto caía de uma grande altura, ele teve uma visão de si próprio tocando um instrumento musical, mesmo sem nunca ter aprendido. A experiência o colocou em um novo caminho na vida — e o levou a tornar-se um saxofonista amplamente reconhecido. Do alto de três andares, Tony observava como o dia estava bonito. O céu era claro e tranquilo. "Eu estava muito feliz", relembra Tony. Era primavera em 1981 e Tony Kofi, com 16 anos de idade, trabalhava como aprendiz de carpinteiro, ajudando a trocar o antigo telhado de uma casa. Ele estava tão disposto a impressionar que havia pedido ao seu supervisor para continuar trabalhando enquanto o patrão almoçava. O supervisor o aconselhou a ter cuidado. Ele estava serrando uma tábua de madeira. "Eu não serrei corretamente e ela se partiu", relembra Tony. "A tábua ficou presa na minha manga e me derrubou." Tony começou a cair. O seu primeiro pensamento foi que ele não iria conseguir sobreviver. Por isso, ele conta que ficou totalmente relaxado, deixou-se cair e fechou os olhos. "Eu não sei se foi a adrenalina ou outra coisa — porque eu li sobre isso, quando você cai de uma grande altura, tudo fica mais lento", ele conta. "Comecei a ver flashes de imagens. Era inacreditável." Nas suas visões, Tony viu diferentes partes do mundo e rostos de pessoas que ele não conhecia. "Vi crianças que nunca havia visto antes — que se tornariam meus filhos, imagino. E algo que realmente ficou na minha mente foi que eu estava de pé, tocando um instrumento. Simplesmente pensei: 'esta é a sensação mais estranha que tive na vida'. Foi tudo o que vi e desmaiei em seguida." Na década de 1960, as vozes roucas e acetinadas dos artistas de jazz vagueavam pela casa de infância de Tony, em Nottingham, na Inglaterra. A mãe de Tony, Ama, estava tocando seus discos. Ela e seu marido Jack eram de Kumasi, no sul de Gana, e Ama havia assistido pessoalmente a uma apresentação do trompetista e cantor de jazz norte-americano Louis Armstrong durante a sua visita ao país em 1956. Aquilo fez com que ela se apaixonasse pelo jazz. Jack havia passado algum tempo na Inglaterra com pouco mais de 20 anos de idade, em busca de uma carreira no pugilismo, e mudou-se de vez para Nottingham em 1959, para formar um lar para sua família. Quando Ama e seus dois filhos juntaram-se a ele um ano depois, ela trouxe consigo uma série de discos e a casa ficou repleta de batidas sincopadas de jazz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ama e Jack tiveram ao todo sete filhos, todos meninos, e Tony foi o quinto. Nascido em 1964, suas memórias de infância são, como na famosa canção de Armstrong What a Wonderful World, de "céu azul e nuvens brancas". "Pouco me lembro do inverno quando era criança", conta ele, "porque estava me divertindo muito para pensar naqueles dias frios e escuros." Ele descreve a sua infância como "muito tradicional", com comida e música de Gana. Os seus pais insistiam que a família falasse em casa seu dialeto ganense, o axânti: "inglês era falado na rua". Mas, quando foi para a escola primária, Tony era meio "valentão". Ele conta: "Nasci canhoto e, em Gana, se você tem um filho canhoto, tradicionalmente eles querem fazê-lo se tornar destro. É uma tradição antiga e os meus pais insistiram que eu virasse destro." "E a escola foi informada [da situação]. Eles tinham que garantir que eu não escrevesse com a mão esquerda e acho que isso me tornou um pouco problemático, porque eu estava agindo contra a minha essência", relembra Tony. Durante esses anos iniciais na escola, Tony não se interessava por nada que não fosse esporte, futebol e jogar com seus amigos. Na escola secundária, ele expressou uma paixão pela música, mas disseram a ele que não poderia estudar. "Eles davam pequenos testes e escolhiam quem fosse mais concentrado e embasado", conta Tony, "e eu não fui um dos escolhidos." "Fiquei arrasado com aquilo e eles me colocaram em carpintaria, até que aceitei e foi o que fiz em toda a minha escola secundária", relembra ele. Tony estava se tornando habilidoso no seu trabalho e saiu da escola em 1980 para começar a trabalhar como aprendiz de carpinteiro, frequentando a faculdade uma vez por semana e aprendendo o trabalho nos quatro dias restantes. Foi em um desses trabalhos que ele sofreu aquela queda terrível. Depois do acidente, Tony acordou no hospital com seus pais e dois dos seus irmãos ao lado da cama, desesperados de preocupação e perguntando como ele estava se sentindo. "Eu respondi: 'minha cabeça dói muito' e eles disseram: 'você nos deu um susto, você esteve inconsciente por dias'", relembra ele. Desorientado, machucado e com um forte trauma na cabeça, Tony ficou sabendo que havia batido a cabeça no solo com tanta força durante a queda que poderia ter morrido com o impacto. Ele se lembra do supervisor do seu trabalho vindo visitá-lo no hospital: "Ele me disse: 'você caiu de cabeça no chão com força, como se fosse um saco de batatas'." Depois que Tony melhorou o suficiente para sair do hospital, três ou quatro semanas mais tarde, ele permaneceu em casa enquanto convalescia. Tony havia recebido algum dinheiro de indenização pela queda e pela perda de receita e seu emprego permaneceu aberto para que ele retornasse assim que estivesse pronto. Mas as imagens que Tony havia visto enquanto caía não desapareceram. Elas continuaram a "piscar" sempre que ele fechava seus olhos. "Elas realmente me assombravam, pois era quase como se alguma coisa estivesse sendo mostrada para mim", afirma Tony. Ele não contou para ninguém, mas a queda havia alterado seu comportamento perante a vida para sempre. Tony, que nunca havia estudado música, começou a pensar em gastar o dinheiro da indenização comprando um instrumento. Mas qual era o instrumento que ele havia visto nas suas visões? Ele pesquisou em livros de música e, em uma das páginas, havia a descrição de um instrumento de sopro brilhante, feito de latão, com formato cônico. Lá estava ele: o saxofone. "Não estou dizendo que era musicalmente ignorante naquela época, mas eu nunca havia visto um saxofone", afirma Tony. "Provavelmente eu havia ouvido no rádio, mas sem prestar nenhuma atenção." No início de 1982, Tony pagou 50 libras pelo seu primeiro saxofone — era muito dinheiro nos anos 1980, equivalente a cerca de 200 libras (R$ 1.500) hoje em dia. Ele voltou para casa carregando seu pequeno tesouro musical. Sua mãe lançou para ele um olhar estranho. Ela não sabia que Tony havia tido uma visão. "Eu disse: 'É um saxofone e vou aprender a tocar'", conta Tony. "Vou sair do emprego." Tony lembra que sua mãe colocou a mão na cabeça e pediu ao seu marido Jack que falasse com seu filho. Ele se lembra dela dizendo para Jack: "Ele está jogando fora um emprego perfeito. Deve estar assustado com o que aconteceu na queda." Seu pai realmente tentou falar com Tony, mas ele estava inflexível. "Eu disse que não podia voltar atrás. Eles não compreendiam o motivo, mas eu disse a eles: 'Se eu voltar atrás, será como se tivesse morrido naquela queda'", relembra ele. Tony conta que não tinha dinheiro para as aulas e os seus pais não podiam gastar seu "dinheiro suado" com aulas de música, mas sua mãe ofereceu algo muito mais valioso — ouro em forma de vinil. "Ela me deu as pilhas de discos", diz Tony. "Ela disse: 'veja, estas são músicas muito boas, use esses discos e aprenda com eles'. Foi exatamente o que fiz. Eu gravei os discos em fita cassete, coloquei os fones de ouvido e passei a ouvir constantemente e tentar aprender a tocar junto com eles." Tony começou então a aprender a tocar o saxofone, mas suas primeiras tentativas não produziram aquele som suave e abafado que tornou o instrumento famoso. "Parecia uma criança com cinco anos de idade tentando tocar violino", relembra Tony. O som era angustiante e "doloroso para os ouvidos". Os seus irmãos se tornaram seu "termômetro musical". A porta do seu quarto poderia se abrir de repente e um sapato disparar na direção de Tony, atingindo-o na cabeça ou nas costas. Mas ele continuou praticando, primeiro por duas horas, depois cinco e, por fim, por oito a dez horas por dia. À medida que o tempo passava, os sapatos passaram a voar com menos frequência e seus irmãos começaram a vir sentar-se e ouvir Tony tocar. Tony lembra que, um dia, quando a sua mãe trazia uma bandeja de comida para o seu quarto, ela disse "estou reconhecendo o que você está tocando... adoro essa música". Era uma faixa intitulada Take the "A" Train, de um disco do pianista e compositor de jazz Duke Ellington. A música fala de um trem de metrô de Nova York, nos Estados Unidos, acelerando pelos trilhos até o distrito de Sugar Hill, no Harlem. Tony sentiu que sua vida também estava nos trilhos. "Foi uma ótima época para ser eu mesmo", afirma ele. Embora Tony tocasse saxofone de ouvido, ele não sabia ler música e queria aprender mais sobre teoria musical. Entre 1986 e 1987, ele foi a uma faculdade em Nottingham, conhecida pelo seu ensino de música e artes cênicas, mas disseram a ele que não poderia estudar porque não havia realizado exames ou graduações musicais. "Foi quase como aquela rejeição novamente", ele conta, "mas desta vez eu não iria aceitar, porque eu havia encontrado algo que realmente amava e queria fazer — aquela rejeição só me deixou mais forte." Enquanto ele folheava uma revista norte-americana chamada Downbeat, lendo sobre a vida de músicos de jazz, ele viu alguns anúncios de faculdades de música nos Estados Unidos. "Eu simplesmente escolhi uma e pensei: 'Quer saber? Vou escrever para eles e tentar me candidatar.' E foi exatamente o que eu fiz", conta Tony. Ele enviou sua inscrição pelo correio para a Faculdade de Música Berklee em Boston, Massachusetts (Estados Unidos), centro de excelência musical. Os alunos de Berklee já ganharam 311 prêmios Grammy. "Primeiro eles me ouviram e, um dia, eles me aceitaram", afirma Tony. E, em 1988, com 24 anos de idade, Tony, assustado e entusiasmado, saiu para estudar música nos Estados Unidos. Tony recebeu uma bolsa de estudos de Berklee porque, segundo ele, era considerado "muito bom" para alguém que havia sido autodidata. A história também havia chegado aos jornais de Nottingham e Tony recebeu ajuda com esforços de captação de recursos — e dos seus pais. "Naquela época, eles estavam muito orgulhosos e impressionados com a minha persistência e o meu progresso", conta ele. "Quando eles descobriram que eu havia sido aceito pela Faculdade de Música Berklee, todos ficaram dizendo 'uau, isso não é brincadeira, isso é muito sério'. E então contei aos meus pais sobre as visões", relembra Tony. Tony conta que eles aceitaram que este era o caminho certo para seu filho. Ele teve uma época "fantástica" em Berklee. A faculdade atraía músicos de todo o mundo que queriam aprender a arte do jazz. Alguns eram autodidatas, como Tony, e outros receberam treinamento clássico. "Eles aceitaram minha chegada como se fosse a coisa mais normal do mundo", diz ele. "Mas, na Inglaterra, o país onde nasci, parece que você precisa passar por um sistema para ser aceito." Quando Tony voltou para a Inglaterra, ele trabalhou no seu primeiro álbum, All is Known, que ganhou o Prêmio de Jazz do Parlamento e o BBC Jazz Award em 2005. "Eu lembro que a primeira faixa que gravamos chamava-se Boo Boo's Birthday, do [pianista e compositor de jazz norte-americano] Thelonious Monk", conta Tony, "e me lembro de ter a partitura na minha frente. Fiz uma primeira gravação, nós a ouvimos e pensei comigo: 'sabe, parece que estou lendo a cartilha." "Eu pensei: 'OK, preciso voltar a me sentir confortável, como no princípio'. Rasguei então a partitura, joguei no cesto de lixo e toquei cinco trechos de pura magia. Foi assim que fiz todo o álbum, sem partitura, apenas tocando." Além de ser músico, compositor e líder de banda, Tony também trabalha como professor na Academia de Jazz Julian Joseph e na Academia World Heart Beat Music. Em setembro de 2020, ele começou a lecionar no Conservatório Trinity Laban de Música e Dança e, este ano, recebeu o grau de professor honorário da Universidade de Nottingham. Ele adora trabalhar com músicos jovens e idosos, inspirando-os a viver seus sonhos e nunca perder a esperança. Mas, e quanto às outras imagens que ele viu enquanto caía do telhado — os diferentes locais do mundo e os rostos das crianças? Elas também ganharam vida, segundo Tony. "Tenho três filhos maravilhosos e sou também avô", conta ele. "Tudo aquilo aconteceu e viajei por todo o mundo. Trabalhei com alguns dos maiores músicos do planeta." Esses músicos incluíram artistas como Macy Gray, Harry Connick Jr. e a Julian Joseph All Star Big Band. Nas suas aulas, Tony muitas vezes incentiva seus alunos a tocar de ouvido, sem partitura. A sensação é totalmente liberadora, segundo ele. "É como andar de bicicleta sem rodinhas", afirma Tony. "Você usa as rodinhas para manter o equilíbrio. Quando você retira as rodinhas, a criança anda de bicicleta com muita liberdade — é isso o que parece." Tony Kofi com certeza está seguindo o conselho de Louis Armstrong: "Nunca toque uma música da mesma forma duas vezes".
2021-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58959946
sociedade
Por que emprestar dinheiro pode arruinar relacionamentos
Quando amigos ou familiares vêm pedir dinheiro, o ambiente pode rapidamente ficar estranho. Por quê? Seja enviando um depósito para um familiar com o aluguel muito atrasado ou entregando um grande maço de notas para um amigo, emprestar dinheiro para entes queridos é algo que a maioria de nós já fez — mesmo que venha a ser penoso e desconfortável. Isso ocorre especialmente se aquela mesma pessoa vier incomodando você com o pagamento do aluguel por meses a fio ou se ele nunca se interessa em pagar o empréstimo depois de você ajudá-lo a sair de uma dificuldade. Mesmo assim, muitas pessoas procuram amigos e familiares em busca de dinheiro extra, especialmente em épocas difíceis. Uma pesquisa do Federal Reserve — o banco central dos EUA — em 2019 demonstrou que, frente a uma despesa hipotética de US$ 400 que não pudesse ser paga de imediato, a segunda medida mais comum era pedir emprestado a um amigo ou familiar (a primeira opção foi lançar a dívida no cartão de crédito). E, durante a pandemia, as pessoas podem estar mais propensas a procurar pessoas de confiança para pedir ajuda. Introduzir dinheiro em um relacionamento pode, sem dúvida, criar uma situação estranha. Normalmente somos próximos das pessoas a quem emprestamos dinheiro. Mas especialistas afirmam que emprestar dinheiro enfrenta tabus sociais sobre discussão de finanças e cria um desequilíbrio de poder em um relacionamento próximo de confiança. Isso pode potencialmente fazer com que as partes sintam emoções complexas, como vergonha, constrangimento e raiva. Atravessar esse tipo de situação pode ser difícil, mas, com comunicações claras e definição de expectativas, você pode evitar grande parte do desconforto que surge ao ajudar um amigo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Acho que dinheiro ainda é um assunto muito íntimo para muitas pessoas falarem de forma autêntica", afirma a psicóloga e terapeuta financeira Maggie Baker, da Pensilvânia, nos Estados Unidos. As pessoas podem falar muito sobre dinheiro, mas não pergunte a outra pessoa sobre sua situação financeira específica, afirma ela: "existe esse manto sobre todos os tópicos relativos a dinheiro, quanto você tem e quanto você não tem". J. Michael Collins, professor e diretor do Centro de Segurança Financeira da Universidade de Wisconsin, nos EUA, afirma que o dinheiro já é um tabu como tema nas conversas. Esse tabu torna os relacionamentos obscuros e complicados. "Se eu for a um banco e pedir um empréstimo, eles vão calcular se eu posso pagar de volta ou não. Depois, eu assino um contrato e esse contrato diz que, se eu deixar de pagar, alguma coisa irá acontecer: eles irão confiscar o meu salário ou tomar o meu carro de volta. Nós não temos nada disso quando emprestamos dinheiro a um parente" ou amigo, afirma Collins. É a "natureza informal" do acordo, além da "falta de capacidade de acompanhamento ou prestação de contas que realmente deixa as pessoas nervosas", segundo ele. Emprestar dinheiro para alguém também significa que todo o teor do relacionamento é alterado. "Se você emprestar dinheiro a alguém, eles ficam em dívida com você, quer eles reconheçam ou não — e então, subitamente, você tem o poder", segundo Baker. E isso altera sutilmente o seu papel no relacionamento. "Você não é apenas um amigo ou familiar — de repente, você se tornou um agente de empréstimos", afirma Brad Klontz, psicólogo financeiro e professor da Universidade Creighton em Nebraska, nos Estados Unidos. Existe também um alto grau de incerteza para o credor, pois, não importa o quanto ele seja próximo de alguém, você pode não ter ideia de como essa pessoa lida com dinheiro. De fato, especialistas afirmam que a maior parte dos empréstimos não é paga; Baker calcula que, nove em cada dez vezes, o amigo com problemas não irá pagar o empréstimo. Klontz concorda. "Você precisa estar 100% de acordo" com o não pagamento do dinheiro, segundo ele. Muitas vezes, a pessoa que solicita o empréstimo priorizará todas as outras contas e despesas antes de você. E, mesmo assim, a menos que ouçam o contrário, eles irão acreditar que você está tão confortável financeiramente que não se preocupa se irá ou não receber o dinheiro de volta. "Tipicamente, o que acontece é que eles começam a evitar você e você começa a ter ressentimentos", segundo Klontz. "Você se sente usado — você sente que alguém não está respeitando você ou os seus limites." "É um momento muito importante", prossegue ele. "Porque, se você emprestar dinheiro, você poderá destruir o relacionamento. E, se não emprestar o dinheiro, você também poderá destruir o relacionamento — eles poderão ficar muito ressentidos com você. Em um momento de necessidade, você não estava disponível." Os especialistas concordam que, se você entrar na situação sem um plano claro de pagamento, provavelmente sobrevirão efeitos negativos : "é uma receita para o ressentimento", segundo Klontz. É claro que pagar eventualmente a conta de um jantar ou bebidas é diferente de emprestar formalmente um montante específico a alguém. É absolutamente normal que amigos emprestem a amigos e esse tipo de empréstimo muitas vezes ocorre com alto grau de ambiguidade — pode depender da pessoa ou da ocasião. Mas especialistas afirmam que emprestar dinheiro a amigos se torna um problema quando vira um padrão - e quando o amigo espera que você continue pagando as contas. "É aí que você precisa ser muito claro: 'Estou feliz por sair com você, mas não vou pagar seu jantar desta vez'. É esse tipo de transparência — as expectativas iniciais — que você precisa definir com as pessoas", afirma Collins. Para empréstimos mais substanciais, "a primeira coisa a fazer é tomar um tempo para pensar sobre isso", aconselha Baker, e consultar seu parceiro, familiares ou qualquer outra pessoa que compartilhe suas decisões financeiras. Collins afirma que, mesmo que você não tenha um contrato por escrito, é bom definir um plano de pagamento com prazos específicos. Se você estiver emprestando a alguém a metade do seu aluguel — US$ 500 (R$ 2.700), por exemplo — diga: "Sei que você recebe no dia 15; que tal você me pagar os US$ 500 no dia 17? Ou, se você quiser dividir em dois pagamentos de US$ 250, você pode me pagar US$ 250 no dia 15 e US$ 250 no dia 30". "Seja preciso", aconselha Collins. "Pode parecer draconiano para algumas pessoas, mas eu os faria redigir um contrato", aconselha Baker. Seja o mais específico possível e até considere a ideia de cobrar juros - embora talvez não tão altos quanto o banco, segundo Baker; você poderá conceder um desconto de "familiar ou amigo". E, se você realmente quiser evitar o assunto por completo, poderá ser uma boa ideia realmente ir a um banco. "Dê à pessoa uma chance de pensar se ela realmente quer solicitar esse empréstimo para você", orienta Baker, "ou se ela prefere ir a um banco, onde tudo é impessoal e o relacionamento não será prejudicado?" Não importa qual seja a dinâmica, aja de forma clara se o seu amigo tiver um passado problemático com dinheiro. "Você precisa cuidar para não capacitar financeiramente alguém", segundo Klontz. Ele afirma que você não irá querer que sua ajuda financeira acabe, na verdade, por prejudicá-los, o que pode acontecer se ele estiver "em uma grande confusão financeira" com "padrão crônico de má gestão das finanças". Ainda assim, os especialistas salientam que cada cenário é diferente, pois os relacionamentos com as pessoas apresentam amplas variações, bem como suas próprias circunstâncias individuais. E, embora muitos empréstimos que você gostaria de ver pagos de volta acabem se tornando doações, poderá haver situações em que a transação deverá ser considerada um presente e ponto final. Por exemplo, se alguém geralmente for responsável e tiver um emprego fixo, mas subitamente sofrer uma fatalidade — uma emergência médica, um incêndio doméstico ou algo similar — e necessitar de apoio, Baker diz "vou simplesmente dar a ele o dinheiro", sem esperar retorno. E, na verdade, nossas redes sociais são o que nos conduz em tempos difíceis, seja um grupo de amigos, familiares, vizinhos, grupos religiosos, colegas etc. "Esse tipo de rede é o que nos ajuda a sobreviver", segundo Collins. Mas "você precisa fazer de uma forma que funcione, com todos tendo claras suas expectativas". E, se você antecipar suas expectativas - seja se você quiser emprestar o dinheiro e, se o fizer, se quer o dinheiro de volta e quando —, você poderá ajudar um amigo em necessidade sem destruir o relacionamento. Seja honesto quando o dinheiro entrar em um relacionamento próximo, aconselha Collins. "Você precisa romper com esse tabu."
2021-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58961393
sociedade
Os trabalhadores que se aproveitam do home office para acumular empregos em segredo
Dois endereços de e-mail profissionais, dois computadores, dois patrões? Com o aumento do trabalho remoto nos últimos dois anos, cada vez mais pessoas vêm silenciosamente assumindo dois cargos em tempo integral, se aproveitando do fato de estarem longe dos olhos dos seus superiores. O esquema do chamado home office permitiu que eles trabalhassem secretamente em dois empregos remotos ao mesmo tempo — e alguns trabalhadores estão ganhando centenas de milhares de dólares a mais por ano. Um emprego adicional pode ser uma mão na roda como fonte extra de renda e experiência , que são ferramentas importantes em uma era de desemprego em massa, incerteza econômica e contínua depreciação do bem-estar no trabalho. Entretanto, trabalhar em mais de um emprego por tempo integral é uma escolha ousada — é preciso ser discreto e estar disposto a correr riscos. Alguns trabalhadores estão se arriscando com duplo emprego para recuperar a sensação de controle, ou para desafiar um sistema no qual, segundo acreditam, foram explorados por anos. Não é incomum encontrar pessoas empregadas em tempo integral fazendo bicos adicionais para complementar sua renda: como motorista de Uber após o expediente, vendendo joias no (site de produtos artesanais) Etsy ou montando móveis no fim de semana como "faz-tudo" do (site que intermedia trabalhos domésticos) TaskRabbit. Mas o "duplo emprego" é diferente: um mesmo funcionário poderá ter empregos em tempo integral separados e simultâneos, usando computadores diferentes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O duplo emprego não é um fenômeno totalmente novo. Ele é um "segredo aberto" na indústria de tecnologia há anos, segundo um trabalhador em duplo emprego, de pouco menos de 40 anos de idade, na região da Baía de San Francisco, nos Estados Unidos, conhecido como "Isaac" na comunidade de duplo emprego. Ele vem trabalhando em dois empregos há anos e diz que ganha mais de US$ 600 mil (R$ 3,3 milhões) por ano com eles. Em abril de 2021, Isaac lançou o website Overemployed, com artigos sobre como navegar mantendo vários empregos remotos (a regra número 1? Não fale sobre manter vários empregos remotos). Ele conta que, nos últimos 20 anos, alguns trabalhadores exploraram nichos da indústria de tecnologia com trabalho remoto muito antes da pandemia. Agora que outros trabalhadores de diversos campos em todo o mundo tiveram a oportunidade de trabalhar em casa, evidências pontuais sugerem que mais pessoas estão explorando o estilo de vida oferecido pelo duplo emprego. Isaac conta que o seu site tem visitantes de todo o mundo e abrange todas as idades, desde pessoas com pouco mais de 20 anos que estão apenas começando (já eventualmente com a possibilidade de trabalhar em dois estágios remotos ao mesmo tempo) até 60 anos e mais. Mas ele afirma que a maioria dos usuários tende a estar na faixa de 35 a 40 anos e idade, "já tem muita experiência e está um pouco cansada do mundo corporativo". Isaac afirma que, de forma geral, foi raro ouvir falar de alguém que tivesse sido descoberto durante a pandemia e antes dela. Ele diz que isso normalmente ocorre quando a pessoa é descuidada ao manter os dois trabalhos separados. Para ele, o emprego duplo não significa necessariamente dias de trabalho excessivamente longos; os trabalhadores podem dedicar 30 horas por semana ao seu emprego original, por exemplo, e usar o tempo que seria preenchido por reuniões não obrigatórias ou usando a internet fora do trabalho para manter o segundo emprego. É claro que, legalmente, o duplo emprego é uma situação delicada: sua possibilidade depende do tipo de contrato assinado com a empresa original e se este tem uma cláusula de não-concorrência. Ele pode ser visto como uma ação antiética, pois em geral o trabalhador está essencialmente mentindo (por omissão ou de outra forma) para o seu empregador "principal". Muitos veículos de imprensa classificaram essa "bigamia laboral" como desonesta e errada quando leitores escreveram pedindo conselhos se deveriam denunciar colegas em duplo emprego no trabalho. Mas, se for possível fazer a combinação funcionar — tanto legalmente quanto em termos de logística —, então esses trabalhadores teriam, segundo Isaac, muito a ganhar. Para Isaac, a principal razão de assumir um segundo emprego secreto em tempo integral é a diversificação de fontes de renda. Mas ele acredita que o dinheiro não é o único motivo. Catherine Chandler-Crichlow, diretora-executiva de gestão de carreiras da Faculdade de Administração Ivey, da Western University em Ontário, no Canadá, concorda que haja outros motivos. "Como fomos forçados a trabalhar de casa, as pessoas provavelmente começaram a se perguntar: 'Onde as minhas habilidades podem ser realmente otimizadas?' 'Quais são as minhas verdadeiras paixões — e como posso usar essas habilidades de forma diferente?'", afirma ela. Chandler-Crichlow, que se especializou no estudo do capital humano (as habilidades, competências e conhecimentos que os trabalhadores trazem para os seus empregos), afirma que esse conceito é muito relevante para a discussão do duplo emprego. Alguém pode ter, por exemplo, um emprego como analista financeiro, mas também gostar de fazer outras coisas, como programação ou escrever. A situação atual de trabalho remoto generalizado permite que esse analista encontre um emprego programando ou escrevendo e coloque essas habilidades em ação. "Eu agora sou quem controla o que eu gostaria de fazer e onde gostaria de passar meu tempo", afirma Chandler-Crichlow. Ela afirma que, para trabalhadores em grupos socioeconômicos inferiores, manter diversos empregos é um meio de sobrevivência. Mas a diferença é que "os profissionais que poderiam ser descritos como altamente capacitados estão assumindo um maior comando das suas carreiras". Erin Hatton, professor de Sociologia que estuda trabalho e emprego na Universidade Estadual de Nova York concorda. "Talvez [os trabalhadores estejam] tentando coisas novas. Acho que este é um momento de ajustar as contas com o mundo do trabalho e discutir o papel desempenhado pelo trabalho em nossas vidas." O duplo emprego pode "liberar as pessoas para talvez avaliar outros empregos; talvez conseguir trabalho adicional que pode não pagar bem, mas ser mais significativo para elas", afirma Hatton. Por isso, não é coincidência que cada vez mais pessoas estejam tentando coisas novas nos últimos meses. "Acho que a pandemia pode ter incentivado as pessoas a pensar mais profundamente no que elas passam a vida fazendo e concluir que provavelmente poderiam fazer mais com as suas vidas", afirma Chandler-Crichlow. Quando procuram o duplo emprego, mais trabalhadores parecem estar dizendo a si mesmos: "Sim, eu realmente quero usar as minhas habilidades e capacidades — e, se alguém quiser me pagar, eu vou fazer", afirma ela. O fato de que as pessoas estão buscando o duplo emprego é também um indicativo de importantes questões sistêmicas dos locais de trabalho. Por muito tempo, muitos trabalhadores consideraram seus empregos insatisfatórios ou sem sentido — gerando problemas como burnout (esgotamento profissional) e boreout (tédio no trabalho) — e sentem que buscaram constantemente o sucesso em um sistema que fornece poder desproporcional aos gerentes nas relações de trabalho. Esta pode ser uma das razões da popularização do duplo emprego, segundo os especialistas. E os chefes que não perceberam o que esses trabalhadores estão fazendo, seria maus administradores? "Minha impressão é que eles simplesmente não têm sistemas disponíveis para vigiar os trabalhadores dessa forma", afirma Hatton. "Para muitos trabalhadores com salários baixos, tanto remotos quanto presenciais, há vários tipos de vigilância que impedem efetivamente esse tipo de duplo emprego. Veja os funcionários de call centers que trabalham remotamente, por exemplo — a tecnologia monitora o número de chamadas que eles fazem. Para os trabalhadores que normalmente [estariam] no local de trabalho e não são vigiados dessa forma, os gerentes simplesmente não têm um sistema instalado para monitorá-los", afirma ele. E como os empregadores estão reagindo? Segundo Chandler-Crichlow, há desde aqueles que não aceitam isso de forma alguma a companhias que, "de alguma forma, manifestam sua concordância, desde que (o duplo emprego) não prejudique suas responsabilidades na organização". Como trabalhador em duplo emprego e com base na atividade do seu website, Isaac afirma que um dos motivos para o segundo emprego secreto é a desilusão com as realidades da vida corporativa. Alguns trabalhadores acreditam que o duplo emprego os ajuda a livrar-se daquele empregador que não lhes deu aquela promoção ou aumento salarial que eles vinham buscando há anos. "Existe uma percepção de que os nossos chefes são um pouco nossos donos e vejo esse movimento como uma reação interessante contra essa percepção normativa de propriedade", segundo Hatton. "Imagina-se que nós realmente devemos alguma coisa a eles. Que nós somos deles. Mas, quando chega o momento, eles podem nos demitir amanhã sem nenhum motivo. (Esta situação nova) está retirando um pouco dessa sensação de poder." Depois de ter conseguido manter o emprego após uma onda de cortes na companhia em que trabalhava, Isaac tomou a resolução de que ele não seria mais um entre os muitos empregados anônimos. "Vocês me tratam como um número, então vou tratar vocês como um número", ele conta. Por isso, armado com dois laptops separados, ele trabalha em dois empregos diferentes, e ainda faz um bico em meio período. Ele diz que nunca sequer chegou perto de ser descoberto. O duplo emprego pode estar chamando atenção, mas as pessoas que buscam o segundo emprego em segredo ainda são minoria — e essa iniciativa ainda carrega consigo muitos riscos. Além disso, como o aumento do duplo emprego é relativamente novo, ainda há muita coisa que funcionários e empregadores ainda desconhecem. Não está claro, por exemplo, como as companhias reagirão caso se sintam vulneráveis a esse tipo de situação. Talvez os gerentes passem a monitorar mais de perto a atividade dos funcionários nas redes sociais para encontrar algo que os incrimine ou venham a instalar software nas máquinas da companhia para detectar atividades suspeitas. Mas, por enquanto, pelo menos até que sejam descobertos por seus supervisores, alguns trabalhadores abraçarão o duplo emprego.
2021-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58953572
sociedade
'Passei 20 anos na prisão e hoje alimento milhares de pessoas nos EUA'
Manny Flores sabe que eles estão vindo para matá-lo. Flores comanda uma das facções carcerárias mais poderosas da Califórnia, mas outra pessoa quer seu lugar. Não está em seus planos ficar parado enquanto tramam contra ele. Então, ele toma a iniciativa: agarra seu carrasco e o esfaqueia 18 vezes. Flores está cumprindo uma pena de 20 anos de prisão, convencido de que, depois de esfaquear seu inimigo, será condenado à prisão perpétua. "Achei que nunca mais veria meus pais", diz ele. "Graças a Deus", acrescenta esse californiano de pais latinos, o homem que foi esfaqueado sobreviveu e nunca o acusou formalmente. Era como se o destino lhe desse outra chance. Assim, Flores "nasceu de novo" e deixou para trás o passado criminoso. Hoje, é outro homem. Vinte e sete anos depois de cumprir pena em uma das prisões mais perigosas da Califórnia por suas atividades criminosas, Flores devolve em bondade para sua comunidade todo o mal que lhe causou. Ele é atualmente o diretor da North Valley Caring Services (NVCS), uma organização sem fins lucrativos que alimenta, apoia, educa e protege milhares de famílias desabrigadas na área de San Fernando Valley, no condado de Los Angeles. Segundo ele, muitos na Califórnia, um dos Estados mais ricos dos EUA, estão correndo risco de perder suas casas e se tornar pessoas em situação de rua. "Não sei se poderei consertar todos os danos que fiz à minha comunidade, mas, na medida do possível, quero trabalhar duro, ser honesto e dedicar minha vida ao bem", diz ele. O trabalho de Flores é um exemplo de melhoria e conversão para toda a sua comunidade. Uma jornada nada fácil que, aos 50 anos, ele divide com a BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. San Fernando Valley se localiza no norte do condado de Los Angeles. Essa região, que abriga sedes de corporações gigantes como Walt Disney e Warner Bros, também está no centro da grave crise de mendicância que assola toda Los Angeles e o Estado da Califórnia. "A realidade é que o custo de vida está fora de controle. Isso está levando muita gente a pedir esmolas", diz Flores. Segundo o último relatório anual da Autoridade de Serviços aos Desabrigados de Los Angeles, de 2019 a 2020 o número de "sem-teto" no condado de Los Angeles chegou a 66.433, um dos piores do país. "Famílias de renda média são as que mais precisam de ajuda. São aquelas em pior situação agora, as mais frágeis". Entre essas dezenas de milhares de pessoas estão muitas as quais Flores se propôs a ajudar todos os dias pelo mal que afirma ter-lhes causado no passado. "Alimentamos um total de 4,5 mil famílias por semana. Só por nossa agência, atendemos cerca de 1,5 mil. Depois, por meio de igrejas e centros de distribuição, chegamos a esse total de 4,5 mil". "Causei muitos danos à minha cidade, Los Angeles. É meu dever servir e usar para o bem todo o mal que fiz." O Flores de antes da prisão é muito diferente da pessoa com quem falo ao telefone. Ele fica emocionado toda vez que menciona como sua comunidade está "em apuros". Mas, há mais de duas décadas, suas motivações eram muito diferentes. "Não sei como fui para o crime. Era filho único e minha casa nunca foi problemática ou abusiva." "Cresci em uma família onde recebi princípios de valor, amor e respeito pelos outros." Como muitos moradores de Los Angeles, os pais de Flores são latinos. Sua mãe veio de Cuba e seu pai, do México. Na década de 1980, durante sua adolescência, começou a se envolver com as gangues que perambulavam por seu bairro. Flores diz que as más influências mudaram sua personalidade e ele adotou um estilo de vida diferente. Naqueles anos, seu dia a dia era vender drogas, roubar, extorquir dinheiro, carregar armas, atirar em gangues rivais. E ele não era um membro qualquer da gangue. "Era uma figura do alto escalão. Eles contavam comigo para a logística da gangue. Movia dinheiro, manipulava pessoas e recrutava jovens". Aos 22 anos, Flores já havia se envolvido em vários esfaqueamentos e tiroteios. Um ano depois, no entanto, decidiu levar um estilo de vida mais pacífico. Se casou. E teve dois filhos. Mas tudo deu errado novamente. "Tentaram me assassinar e fui atrás deles. Procurei quem atirou em mim, atirei e bati em uma pessoa." Foi a última jornada criminosa de Flores na rua. A polícia o prendeu e a Justiça o condenou a 20 anos de prisão por tentativa de homicídio. Flores foi enviado para um dos presídios mais violentos da Califórnia. Como na vida do crime, nas prisões, vigora a lei do mais forte. Um jogo de poder em que esse jovem de 23 anos não queria ficar para trás. "Estava envolvido na prisão com a máfia mexicana, mas havia outras facções, como afro-americanos, brancos americanos, skinheads ou os da Nação Ariana." Dentro da máfia mexicana, Flores mais uma vez se estabelece como líder. Comandava cerca de 200 homens dentro da penitenciária. Decidia as políticas da prisão, com quem eles lutavam, que drogas entravam. Supervisionava tudo. "Mas alguém queria a minha posição e mandaram-no para me esfaquear. Disseram-me que isso ia acontecer, mas não podia deixar acontecer. Tive de mostrar que era homem e que resolvia os meus problemas sozinho." Então, Flores se antecipou e esfaqueou 18 vezes a pessoa que queria atacá-lo. "Achei que eles (Justiça) iriam me dar prisão perpétua, mas o cara sobreviveu e nunca me acusou. É muito raro isso acontecer." No meio da sentença, as autoridades enviaram Flores para uma solitária, onde ficam os mais presos perigosos. "Eles me controlavam 24 horas por dia. Não via o sol, não tinha visitantes, não tinha contatos ou acesso ao telefone. As pessoas lá enlouquecem." Mas a solidão, o isolamento e o "encontro com Deus" mudaram Flores. Ele teve tempo para refletir. Ele considera que seus erros e crimes do passado se devem à baixa autoestima e à necessidade de ser aceito impondo medo e respeito. "Foi a primeira vez que fui honesto comigo mesmo. Muitas das coisas que fiz foram por puro medo e não porque era o mais corajoso. É engraçado, porque o mesmo aconteceu com outras pessoas na mesma situação." Flores aproveitou o isolamento para estudar, treinar e se preparar para uma nova vida fora da prisão. Quando Flores saiu da prisão em 2014, começou a bater em diferentes portas. Uma das primeiras foi a da igreja que o ajudou em sua conversão na prisão. "Não fui aceito. Tinham medo do meu passado. Pensaram que talvez minha conversão não fosse real e que poderia prejudicá-los. Me falaram para procurar outra igreja." Flores experimentou em primeira mão as dificuldades pelas quais passa um ex-presidiário para se reintegrar à sociedade. "Quando estava na prisão, todos me pediram para mudar. Mas quando mudei e saí, me dei conta de muitas coisas. As pessoas, sua família, sua comunidade, sua igreja, eles querem que você mude, mas quando você lhes pede uma chance, as coisas são muito diferentes. " "É difícil encontrar oportunidades para pessoas como eu. Com antecedentes criminais, é muito difícil arranjar um emprego." Foi quando a pequena organização North Valley Caring Services (NVCS) veio em sua direção. O diretor da época tinha um amigo em comum com Flores. Ele foi aceito em uma entrevista de emprego e, em seguido, conseguiu a vaga. Cinco anos depois, Flores foi nomeado diretor ao implantar um programa de alimentação que aos poucos começou a impactar a vida de muitas pessoas. "Estou muito grato. Não tive nenhuma experiência, apenas minha educação na prisão e o que aprendi na rua." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A entrega de comida é apenas um dos programas atualmente implementados pelo NVCS sob a direção de Flores. Eles fornecem estacionamento para as famílias que moram em seus carros, segurança, alimentação e banho. Também atendem quem mora em estações de trem. O centro também educa crianças e as ensina a usar computadores e navegar na internet. "Muitas famílias que imigram aos EUA não sabem usar o computador e não podem ajudar os filhos nos deveres de casa. Por isso, montamos uma sala onde oferecemos ajuda". A NVCS também ensina habilidades de empreendedorismo para indivíduos. Incentiva a criação de microempresas e transmite conceitos de negócios. Em seguida, os ajuda a encontrar um local onde possam vender o que produzem e ficar com 100% dos lucros. "Várias pessoas conseguiram bons contratos e agora estão em outro nível econômico. Por meio de nossos programas, conseguimos impactar 20% das pessoas na área de San Fernando". "Nosso objetivo é criar um sistema coletivo e cooperativo por meio do qual a comunidade compreenda a força que tem quando trabalhamos juntos", diz Flores. Flores se casou novamente. Sua atual esposa é a primeira mulher com quem ele diz ser completamente honesto. "Contei a ela sobre tudo o que passei e me apresentei como sou. E ela me aceitou." Flores agradece a Deus e à vida por ter tido a oportunidade de mudar seu caminho. E está animado porque sua mãe e seu pai puderam ver a mudança em sua vida e tudo o que ele faz pela comunidade. "Meu pai faleceu há um mês, mas tive o privilégio de me ver colocando em prática todos os ensinamentos que ele me deu. Não sei se o que faço pode reparar o dano que fiz, mas vou trabalhar muito para tentar." Flores gostaria de ver mais modelos de organizações como a NVCS, que com um orçamento limitado está fazendo uma grande mudança no bairro. "Já recebemos o convite para abrir mais agências em duas cidades próximas. Estamos muito próximos de conseguir isso", diz ele com entusiasmo.
2021-10-18
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58928768
sociedade
As revelações de Megan Fox que alimentam discussões sobre 'corpo perfeito'
A atriz e modelo americana Megan Fox diz que está em um dos melhores momentos de sua vida pessoal e profissional. Seus recentes trabalhos no cinema e na televisão, assim como seu relacionamento com o cantor Machine Gun Kelly, a quem considera sua "alma gêmea", a ajudaram a superar problemas de ordem emocional que acompanharam sua carreira. Um muito forte foi a "sexualização" da qual ela afirma ser vítima por seus tratamentos estéticos, assim como por papéis como o de Mikaela Banes no sucesso de bilheteria Transformers: A Vingança dos Derrotados. Outro problema, que ela revelou recentemente em entrevista à edição britânica da revista GQ, ainda segue com ela. Quando questionada pela jornalista Molly Lambert se o fato de ser "tão bonita e inteligente" intimida muitos homens, Fox respondeu que as aparências enganam. "Podemos olhar para alguém e pensar: 'Essa pessoa é tão bonita. Sua vida deve ser muito fácil'. Muito provavelmente, ela não se sente assim", afirmou ela na entrevista. E acrescentou: "Sim, eu tenho dismorfia corporal. Tenho muitas inseguranças profundas". A dismorfia corporal é um transtorno mental no qual a pessoa tem uma imagem negativa de alguma parte do corpo. A fixação nesse detalhe, mesmo que seja uma percepção equivocada, pode se tornar algo bastante obsessivo para ela. Fox não entrou em detalhes sobre por que se sente assim. Mas diz que estar com o namorado permitiu a ela trabalhar sua percepção pessoal e se sentir confortável com isso. "Acho que tinha me colocado — ou permitido que outras pessoas me colocassem — nesta caixa estranha em que não me encaixava bem, onde por muito tempo não vivi minha própria vida sendo eu mesma... Essas partes minhas mais excêntricas ou estranhas que não correspondiam com a minha família ou com Hollywood ", explicou. Em outras ocasiões, Fox foi aberta ao falar sobre os conflitos pessoais que a acompanhavam desde que era criança. "Nunca fui a garota bonita na minha escola. Quer dizer, eu usava aparelho e pintava o cabelo de laranja... Não era a garota popular... Sempre fui a solitária", disse ela à revista americana The Hollywood Reporter em 2011. Mais tarde, ela contou que chegou a um "ponto de ruptura" após o lançamento do filme Garota Infernal em 2009, uma época em que a imprensa a definia como um "símbolo sexual". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Eu não queria ser vista, não queria ter que tirar fotos, aparecer em revistas, andar em tapetes vermelhos, não queria ser vista em público de maneira alguma, por causa do medo e da crença, a certeza absoluta de que zombariam de mim, ou cuspiriam em mim, ou alguém gritaria comigo, ou as pessoas me apedrejariam ou me atacariam por simplesmente estar lá fora... então passei um tempo sombrio depois disso", disse ela ao programa de televisão americano Entertainment Tonight, em 2019. Depois de viver isso, Fox diz que está mais tranquila em relação ao passado. "Tenho feito o meu melhor para tentar dar sentido a isso. Porque é fácil quando você passa por algo assim se sentir como vítima, obviamente. Esse é o primeiro instinto e resposta", afirmou ela à GQ. "Trabalhei muito para eliminar esse sentimento de ser uma vítima e perceber que era uma lição. Assim eu tinha um propósito e não precisava mais sofrer. Isso me [fez crescer e] transformou em um ser humano muito mais interessante do que havia sido sem isso. Te dá o espaço para ter gratidão por algo pelo o que anteriormente você se sentia perseguido ", acrescentou. O transtorno dismórfico corporal (TDC) é um problema de saúde mental em que a pessoa percebe um ou mais defeitos na aparência e não consegue parar de pensar nisso. "Você pode se sentir tão envergonhado, intimidado e ansioso que é possível que evite muitas situações sociais", explica a Mayo Clinic, organização americana sem fins lucrativos da área de saúde e pesquisas médicas. "Você se concentra intensamente na sua aparência e imagem corporal, e olha repetidamente no espelho, se arrumando ou buscando segurança, algumas vezes por muitas horas ao dia", descreve. A pessoa pode recorrer a soluções cosméticas para "consertar" aquilo que percebe como um defeito, mas muitas vezes a angústia volta. "O transtorno dismórfico corporal geralmente não melhora por conta própria", adverte o site da organização. Por isso, recomenda-se buscar ajuda. O tratamento pode incluir terapia cognitivo-comportamental e medicamentos, indica a Mayo Clinic. E a falta de tratamento pode ter consequências graves para o paciente. "Se não for tratado, pode piorar com o tempo e levar à ansiedade, despesas médicas altas, depressão grave e até pensamentos e comportamentos suicidas", alerta.
2021-10-18
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58948428
sociedade
Como ver pornografia faz cérebro voltar a estado juvenil
A pornografia é antiga na história humana e se transformou com o aparecimento de novas plataformas. Arqueólogos descobriram centenas de afrescos e esculturas sexualmente explícitas nas ruínas do Monte Vesúvio em Pompeia, na Itália, por exemplo. Mas, desde o advento da Internet, o uso da pornografia explodiu. O Pornhub, o maior site pornográfico gratuito do mundo, recebeu mais de 33,5 bilhões apenas durante 2018. A ciência está apenas começando a revelar as repercussões neurológicas do consumo de pornografia. Mas já está claro que a saúde mental e a vida sexual de seu amplo público estão sofrendo efeitos catastróficos. Da depressão à disfunção erétil, a pornografia parece estar sequestrando nossa fiação neural com consequências terríveis. Em meu próprio laboratório, estudamos a fiação neural subjacente aos processos de aprendizagem e memória. As propriedades do vídeo pornô o tornam um gatilho particularmente poderoso para a plasticidade, a capacidade do cérebro de mudar e se adaptar como resultado da experiência. Combinado com a acessibilidade e o anonimato do consumo de pornografia online, estamos mais vulneráveis do que nunca aos seus efeitos hiperestimulantes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A longo prazo, a pornografia parece criar disfunções sexuais, especialmente a incapacidade de atingir uma ereção ou orgasmo com um parceiro na vida real. A qualidade conjugal e o compromisso com o parceiro romântico também parecem estar comprometidos. Para tentar explicar esses efeitos, alguns cientistas traçaram paralelos entre o consumo de pornografia e o abuso de substâncias. Por meio do design evolucionário, o cérebro é programado para responder à estimulação sexual com surtos de dopamina. Esse neurotransmissor, mais frequentemente associado à antecipação de recompensa, também atua para programar memórias e informações no cérebro. Essa adaptação significa que quando o corpo precisa de algo, como comida ou sexo, o cérebro se lembra do que fazer para sentir o mesmo prazer. Em vez de recorrer a um parceiro romântico em busca de contentamento ou satisfação sexual, usuários habituados à pornografia instintivamente pegam seus telefones e laptops quando o desejo vem. Além disso, explosões de recompensa e prazer fortes e fora do normal evocam níveis de habituação no cérebro fortes e fora do normal. O psiquiatra Norman Doidge explica: "A pornografia satisfaz todos os pré-requisitos para a mudança neuroplástica. Quando os produtores de pornografia se gabam de criar novos conteúdos, o que eles não dizem é que têm que fazer isso, porque seus clientes estão desenvolvendo uma tolerância em relação a eles." Cenas pornográficas, como substâncias viciantes, são gatilhos hiperestimulantes que levam a níveis anormalmente elevados de secreção de dopamina. Isso pode danificar o sistema de recompensa da dopamina e deixá-lo sem resposta às fontes naturais de prazer. É por isso que os usuários começam a ter dificuldade em alcançar a excitação com um parceiro físico. A dessensibilização de nosso circuito de recompensa prepara o terreno para o desenvolvimento de disfunções sexuais, mas as repercussões não param por aí. Estudos mostram que mudanças na transmissão da dopamina podem facilitar a depressão e a ansiedade. Neste sentido, os consumidores de pornografia relatam maiores sintomas depressivos, menor qualidade de vida e pior saúde mental em comparação com aqueles que não veem pornografia. A outra descoberta convincente neste estudo é que os consumidores compulsivos de pornografia descobrem que querem e precisam de mais pornografia, embora não necessariamente gostem disso. Essa desconexão entre querer e gostar é uma característica marcante da desregulação do circuito de recompensa. Seguindo uma linha semelhante de pesquisa, cientistas do Instituto Max Planck em Berlim, Alemanha, descobriram que o maior consumo de pornografia está correlacionado com menos ativação do cérebro em resposta a imagens pornográficas convencionais. Isso explica por que os usuários tendem a passar a consumir formas mais radicais e não convencionais de pornografia. As análises do Pornhub revelam que o sexo convencional é cada vez menos interessante para os usuários e está sendo substituído por temas como incesto e violência. A perpetuação da violência sexual online é particularmente preocupante, pois as taxas de incidentes na vida real podem aumentar como resultado. Alguns cientistas atribuem essa relação à ação dos neurônios espelho. Essas células cerebrais são chamadas dessa forma porque são ativadas quando o indivíduo realiza uma ação, mas também ao observar a mesma ação realizada por outra pessoa. As regiões do cérebro que ficam ativas quando alguém está vendo pornografia são as mesmas regiões do cérebro que se ativam enquanto a pessoa está realmente fazendo sexo. Marco Iacoboni, professor de psiquiatria da Universidade da Califórnia em Los Angeles, especula que esses sistemas têm o potencial de espalhar comportamento violento: "o mecanismo de espelho no cérebro também sugere que somos automaticamente influenciados pelo que percebemos, propondo assim um mecanismo neurobiológico plausível para contágio de comportamento violento." Embora especulativa, essa associação sugerida entre pornografia, neurônios espelho e aumento das taxas de violência sexual serve como um alerta sinistro. Embora o alto consumo de pornografia não leve os espectadores a extremos aflitivos, é provável que mude o comportamento de outras maneiras. O uso da pornografia está relacionado à erosão do córtex pré-frontal — a região do cérebro que abriga funções executivas como moralidade, força de vontade e controle de impulsos. Para entender melhor o papel dessa estrutura no comportamento, é importante saber que ela permanece subdesenvolvida durante a infância. É por isso que as crianças lutam para controlar suas emoções e impulsos. Danos ao córtex pré-frontal na idade adulta são chamados de hipofrontalidade, que predispõe um indivíduo a se comportar compulsivamente e tomar decisões erradas. Nesse sentido, é um tanto paradoxal que o entretenimento adulto possa reverter as conexões cerebrais a um estado mais juvenil. A ironia muito maior é que, embora a pornografia prometa satisfazer e proporcionar gratificação sexual, ela oferece o oposto. *Rachel Anne Barr é estudante de doutorado em Neurociência na Universidade de Laval, na Bélgica.
2021-10-15
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58924384
sociedade
Policial britânico é demitido por pagar R$ 0,75 em caixinha para caridade por biscoitos de R$ 7,50
Um policial que pegou dois pacotes de biscoitos de uma barraca de caridade sem pagar o preço total foi demitido da corporação de West Yorkshire, no Reino Unido. Chris Dwyer, de 51 anos, pagou apenas £ 0,10 (aproximadamente R$ 0,75) por dois pacotes da guloseima na cantina da delegacia de polícia de Halifax, em vez do preço correto de £ 1 (cerca de R$ 7,50). E, de acordo com a comissão que apurou sua conduta imprópria, ele também tentou "mudar e florear" sua versão do ocorrido quando questionado a respeito. Ele foi considerado culpado de má conduta grave e foi demitido imediatamente. A barraquinha montada na delegacia de polícia de Halifax — para ajudar a arrecadar fundos para uma viagem de caridade a Uganda — vendia guloseimas e refrigerantes a £ 0,50 cada. Entre os produtos à venda, estava o Jaffa Cake — doce tradicional inglês com textura de bolo, mas formato de biscoito, recheado com geleia de laranja e com cobertura de chocolate. A comissão foi informada que Dwyer foi à banquinha de caridade no dia 21 de janeiro, e depois de colocar algum dinheiro na caixinha, pegou dois pacotes de Jaffa Cakes. Posteriormente, um colega levantou suspeitas sobre um possível pagamento insuficiente por parte do policial e, quando foi verificado, constatou-se que o fluxo de caixa teve um aumento de apenas £ 0,10. Quando questionado sobre o assunto, Dwyer deu relatos desonestos e suas evidências foram "evasivas e uma tentativa de reduzir sua culpa", concluiu a comissão. O policial, que entrou para a Polícia de West Yorkshire em 2017, negou ter violado as normas da polícia. E alegou inicialmente que havia colocado cinco moedas de £ 0,20 na caixinha, mas depois disse que não conseguia se lembrar do "valor exato". O presidente da comissão, Akbar Khan, disse que as atitudes de Dwyer foram um "abuso de confiança" e trouxeram "descrédito à polícia e ao serviço". "O policial é o único culpado por sua própria conduta, que foi desonesta e de natureza criminosa", ele acrescentou. "A natureza de sua desonestidade está relacionada ao pagamento insuficiente de itens cuja venda era para apoiar uma instituição de caridade da qual ele estava plenamente ciente." A comissão concluiu que Dwyer violou as normas profissionais da Polícia de West Yorkshire no que diz respeito à integridade, honestidade e conduta imprópria.
2021-10-15
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58926653
sociedade
Milionário que revelou assassinato de amiga em programa de TV é condenado a prisão perpétua
O herdeiro de uma empresa milionária do setor imobiliário dos Estados Unidos, Robert Durst, tema da série de documentários policiais da HBO The Jinx, foi condenado à prisão perpétua por matar sua melhor amiga. Durst foi considerado culpado de matar Susan Berman em 2000 para impedi-la de falar com a polícia sobre o desaparecimento de sua esposa. Aos 55 anos, ela foi encontrada com um tiro na cabeça em sua casa em Beverly Hills. A polícia acredita que Durst também matou duas outras pessoas. Os promotores chamaram Durst, de 78 anos — que compareceu ao tribunal de Los Angeles para ouvir sua condenação — de "psicopata narcisista". Durst negou ter matado sua amiga. Sua sentença por assassinato em primeiro grau exclui qualquer possibilidade de liberdade condicional, o que significa que agora muito provavelmente ele morrerá na prisão. Segundo o júri decidiu, o crime conta com agravantes, incluindo assassinato por emboscada e assassinato de testemunha. Os advogados de Durst disseram ao juiz na quinta-feira (14/10) que ele pretende apelar de sua condenação. O próprio Durst falou com o juiz apenas uma vez para dizer "sim" quando questionado se ele estava renunciando ao seu direito de comparecer em uma audiência futura. Susan Berman era uma escritora policial e filha de um mafioso de Las Vegas, e atuou como porta-voz de Durst quando ele se tornou suspeito do desaparecimento de sua esposa. O primo de Berman, Denny Marcus, disse ao juiz na quinta-feira: "Fui roubado ... de uma pessoa brilhante absolutamente extraordinária e inesquecível, cuja vida foi violentamente tirada dela." Sareb Kaufman, que considera Berman sua mãe uma vez que ela namorava seu pai, disse: "Não tive um dia livre em 21 anos da destruição absoluta, tristeza e dor que isso me causou." "Perdi tudo muitas vezes por causa dele... Perdi e me sacrifiquei mais do que qualquer um poderia imaginar", acrescentou. "O assassinato de minha mãe e os eventos dos últimos 40 anos nunca vão me deixar. Você está satisfeito, Bob?" A esposa de Durst, Kathleen McCormack, estudante de medicina, desapareceu em 1982 e é dada como morta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast McCormack desapareceu depois de passar o fim de semana na casa de campo do casal no Estado de Nova York. Segundo depoimentos, Durst demorou dias para avisar à polícia e à família da mulher sobre seu desaparecimento. "A única esperança de redenção que você tem é ajudar a encontrar Kathy", disse Kaufman, pedindo a Durst que revele a localização do corpo de McCormack. Os promotores de Nova York estão considerando apresentar novas acusações contra ele no caso de McCormarck, segundo a imprensa dos EUA. Eles disseram que Durst, na verdade, assassinou três pessoas — a terceira sendo um vizinho idoso, Morris Black, que descobriu a identidade de Durst em 2001 enquanto ele estava se escondendo no Texas e fingindo ser uma mulher muda. Na época, Durst foi absolvido por um júri de assassinar Black, argumentando com sucesso que o matou por legítima defesa antes de esquartejar seu corpo e jogar pedaços dele em uma baía. Durst faz parte de uma das dinastias imobiliárias mais ricas e poderosas de Nova York. Seu irmão Douglas Durst, que testemunhou no julgamento, disse ao tribunal: "Ele gostaria de me matar." Ele cortou formalmente os laços com sua família e com suas empresas em 2006. As acusações contra o milionário ficaram mais conhecidas no documentário da HBO The Jinx — que revelou uma fala dele explosiva, veiculada horas depois de sua prisão em 2015. Segundo os produtores do programa, Durst foi ao banheiro após a entrevista sem lembrar que ainda estava usando um microfone sem fio. "Aí está, você foi pego", ele sussurrou para si mesmo. "O que diabos eu fiz? Matei todos, é claro." Horas antes de o último episódio ir ao ar em março de 2015, as autoridades prenderam Durst em Nova Orleans pelo assassinato de Berman. Os jurados assistiram ao clipe durante o julgamento. Na época, o advogado de Durst disse que a prisão foi orquestrada para coincidir com o fim do documentário da HBO. * Esta reportagem foi publicada originalmente em 17 de setembro e atualizada em 15 de outubro.
2021-10-15
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58605617
sociedade
'Estava virando o machão que nunca quis ser': o 'disque-machismo' que ajuda homens na Colômbia
"Seja bem-vindo à Calma, uma linha de escuta para os homens", diz ao telefone uma voz masculina, suave e lenta. "Estamos aqui para ouvir e orientar." Minutos depois, um especialista em psicologia da prefeitura de Bogotá entra na ligação para prestar atendimento a homens da capital colombiana que possam estar passando por algum tipo de angústia. Em dez meses de existência da linha Calma, quase 2 mil homens buscaram atendimento. Cerca de 200 deles passaram por 10 sessões gratuitas e personalizadas às quais têm direito, apenas por estarem dispostos a analisar suas emoções, pensamentos e atitudes machistas. "Eu estava me tornando o machão que nunca quis ser", diz à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) o padeiro e artista Alex Rodríguez, 31 anos, morador de Bogotá. "Como fiquei preocupado de estar sentindo aquele ciúme típico de um homem tóxico, liguei para a linha e a Diana, uma psicóloga, me disse que ciúme é normal, que todos sentimos, e que o importante é saber como processá-lo." A maioria dos homens que liga para a Calma o faz em meio a uma crise de ciúmes. "Descobrimos que não só entre os homens, mas também as mulheres colombianas, o ciúme é algo a que nos ligamos muito", diz María Fernanda Cepeda, especialista em gênero da prefeitura de Bogotá. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Subsecretário de cultura cidadã na prefeitura, Henry Murrain acrescenta: "Por trás do machão que tudo pode, que tudo controla, há um homem profundamente inseguro e atormentado". "Isso vem não só do ciúme, mas de uma ideia de exclusividade e controle da mulher, a partir da qual as fúrias mais profundas são despertadas e podem tornar a pessoa violenta, algo que, na maioria das vezes, eles não querem." Na Argentina, no México e no Peru, entre outros, há programas de assistência a homens que cometem violência de gênero, mas a maioria dessas iniciativas foca em agressores já condenados ou são promovidas por organizações civis. Já a linha Calma investe na prevenção a atitudes sexistas e parte do poder público. "Há muito esforço no empoderamento das mulheres e no trabalho com os agressores, mas nossa abordagem, de natureza antropológica, busca prevenir a violência sexista por meio da compreensão e da atenção às suas causas emocionais", explica Murrain. À frente do projeto na prefeitura, Henry Murrain pesquisou o machismo dos colombianos em duas cidades: Barranquilla e Barrancabermeja. "Por meio de vários estudos, constatamos que o colombiano, embora eu ache que esta seja uma faceta bem latino-americana, é atormentado por uma série de fardos impostos por sua condição de provedor e conquistador masculino", aponta. "Eles não conseguem processar as emoções de culpa, raiva e impotência de forma calma e transparente, mas sim com violência e arrogância." Pesquisas da prefeitura local mostram que 66% da violência doméstica é cometida pelo parceiro, que 55% dos casos são atribuídos ao ciúme e que 76% concordam que os homens não sabem controlar suas emoções. Cepeda acrescenta: "A expectativa sobre os homens é que eles ajam de acordo com a ideia de masculinidade, do homem que provê e não trata do sentimental". "É uma identidade muito difícil de ganhar e muito fácil de perder, porque eles têm de mostrar constantemente que são homens, que proveem, que conquistam, que não choram". A antropóloga questiona: "Como podemos esperar que os homens não exerçam violência se lhes pedimos constantemente que estejam sustentando esta hombridade machista?" Oscar Eduardo López, um residente de Bogotá de 24 anos que trabalha com música e jornalismo, não estava sabendo lidar com a infidelidade da namorada quando ligou para a linha Calma. "A culpa por sentir que não consegui atender às vontades da minha parceira estava me gerando problemas muito profundos", conta López. "Quando ia buscar ajuda com amigos e parentes, eu ouvia coisas como: supere isso; a vida é assim mesmo, vire a página." Ao conversar com um especialista do projeto Calma, o jovem diz ter encontrado um interlocutor neutro e paciente que o fez entender "que o rompimento e a infidelidade não foram culpa minha, mas uma decisão dela que pouco ou nada teve a ver com o que fiz". Diferente de outras capitais da América Latina, Bogotá está nos primeiros lugares em violência domiciliar na Colômbia. Apenas Casanare, Arauca e Meta apresentam taxas mais altas deste tipo de violência. "Apesar de todo o progresso que Bogotá fez em termos de segurança, consciência ambiental e comportamento urbano, há uma dívida quando se trata de violência domiciliar", explica Murrain. De acordo com dados oficiais, 5 em cada 10 homens em Bogotá cresceram sem o pai como a principal figura masculina. Cepeda aponta que "quando o pai não está ausente, ele é violento". "É um problema de saúde pública", acrescenta Murrain. "Sabemos que emoções como o ciúme são indicadores de violência. Portanto, com um tratamento adequado e profissional dessas emoções, podemos prevenir a violência."
2021-10-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58907047
sociedade
A crise que assola a Coreia do Sul e inspira série da Netflix
Round 6 é tudo menos uma típica série de televisão água com açúcar coreana. Numa referência mordaz à vida na Coreia do Sul hoje, os espectadores são apresentados a uma história de violência, traição e desespero. Tudo isso se desenrola em torno de uma série de jogos macabros nos quais os jogadores literalmente lutam até a morte. Apesar do conteúdo ultraviolento, Round 6 cativou o público no mundo todo, se tornando a série mais vista da Netflix em pelo menos 90 países. O drama leva os espectadores a uma jornada de suspense ao longo de nove episódios, em que um grupo de pessoas atoladas em dívidas e infortúnios pessoais participam de uma série de seis jogos de sobrevivência, inspirados em jogos tradicionais infantis sul-coreanos. Os perdedores morrerão mediante um processo implacável de eliminação, e o único vencedor levará 46,5 bilhões de wons sul-coreanos (cerca de R$ 214 milhões). Os primeiros episódios revelam as circunstâncias que levaram os personagens centrais a colocar tudo a perder. O espectador é apresentado a uma série de vidas muito diferentes, mas cada uma está atolada em dívidas e na miséria. Um homem que fica desempregado e depois se endivida com empreendimentos comerciais fracassados ​​e jogos de azar se junta a um gestor de fundos mal-sucedido. Um idoso que está morrendo de câncer joga ao lado de uma desertora norte-coreana. Um trabalhador migrante paquistanês e um gângster, junto com centenas de outros indivíduos igualmente infelizes que caíram em desgraça com o capitalismo sul-coreano, apostam todas suas fichas. Round 6 se soma a outras produções cinematográficas sul-coreanas recentes, em particular ao filme vencedor do Oscar de 2020, Parasita, ao oferecer uma crítica contundente à desigualdade socioeconômica que assola a vida de muitos cidadãos no país. Mais especificamente, fala do aprofundamento da crise de endividamento das famílias que atinge as classes média e baixa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O endividamento das famílias na Coreia do Sul aumentou acentuadamente nos últimos anos, chegando a superar 100% de seu Produto Interno Bruto (PIB) — o maior da Ásia. Os 20% mais ricos do país têm um patrimônio líquido 166 vezes maior que os 20% mais pobres, uma disparidade que aumentou em 50% desde 2017. Tem havido um aumento da dívida em relação à renda e uma recente alta nas taxas de juros. Isso deixou em uma posição ainda mais precária aqueles que não têm recursos para lidar com imprevistos, como uma demissão repentina ou um caso de doença na família. O Índice de Gini, que mede a distribuição da riqueza nacional, coloca a Coreia do Sul quase no mesmo patamar do Reino Unido — e em uma posição melhor do que os EUA. No entanto, o crescente desemprego entre os jovens, o aumento dos preços dos imóveis e a pandemia global reverteram a modesta redução da desigualdade observada nos últimos anos sob o governo progressista de Moon Jae-in. E não são apenas as famílias que estão se endividando para pagar os custos de moradia e educação — uma despesa essencial para a classe média que espera garantir o acesso dos filhos à universidade. Em agosto, o governo sul-coreano anunciou novas medidas de restrição a empréstimos com o objetivo de reduzir a dívida entre os jovens. Os millennials e aqueles que estão na faixa dos 30 anos são os que mais devem em relação à sua renda. Mas as tentativas de restringir os empréstimos levaram algumas pessoas a recorrer a credores com custos e riscos mais elevados. Essa escolha deixa muitos à mercê dos cobradores de dívidas, se por uma pequena mudança de circunstâncias não conseguirem honrar os pagamentos. Embora poucos possam se ver nas mãos de gângsteres que ameaçam tirar seus órgãos para vender, como mostrado em Round 6, o fardo de uma dívida avassaladora é um problema social que se aprofunda — sem mencionar a principal causa de suicídio na Coreia do Sul. A inclusão em Round 6 de outros personagens que representam minorias desfavorecidas da Coreia do Sul destaca as consequências da desigualdade socioeconômica para esses grupos também. A exploração cruel por parte do empregador de uma fábrica de um trabalhador migrante que se vê obrigado a entrar no jogo é representativa das barreiras à mobilidade ascendente para aqueles do sul e sudeste da Ásia. Os desertores norte-coreanos também aparecem como indivíduos que devem lutar em várias frentes para alcançar tanto a estabilidade financeira, quanto a inclusão social. A série zomba do cristianismo, expressando repetidamente a crescente mudança de opinião pública sobre o rápido desenvolvimento da Coreia do Sul durante as décadas de 1970 e 1980 e sua conexão com o crescimento da igreja na época. A suposta ética de trabalho protestante foi a pedra angular do "milagre" econômico da era autoritária da Coreia do Sul, em que três décadas de planos econômicos ambiciosos transformaram o país em uma economia de alta renda. Ao longo deste período, o sucesso mundial foi visto como um sinal de bênção e as megaigrejas estavam no auge. No entanto, a corrupção era abundante entre os políticos e famílias chaebol (enormes grupos empresariais dominados por famílias) que serviam como presbíteros da igreja enquanto desviavam fundos e construíam seus impérios privados. Como era de se esperar, a desilusão com alguns membros da elite política e da igreja levou muitas pessoas em um país cada vez mais laico a contestar a veracidade da alegação do cristianismo de servir aos pobres e oprimidos na Coreia do Sul. É claro que esta não é uma história exclusiva da Coreia do Sul. Pessoas de diferentes sociedades no mundo todo podem se identificar com os personagens de Round 6, seus problemas e sua humanidade. Economias semelhantes à Coreia do Sul estão enfrentando vários dos mesmos desafios, exacerbados pela pandemia em curso. Round 6 lembra brutalmente aos vencedores de cada fase, e à audiência global da série, que aqueles que são bem-sucedidos geralmente têm êxito às custas daqueles que fracassaram por fraqueza, discriminação, uma má decisão ou simplesmente falta de sorte. O último episódio sugere a possibilidade de uma segunda temporada, mas mesmo que não continue, Round 6 deixa claro que a história maior que a série representa está longe de terminar. * Sarah A. Son é professora de Estudos Coreanos na Universidade de Sheffield, no Reino Unido.
2021-10-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58899202
sociedade
Holanda diz que princesa poderia se casar com outra mulher e ser rainha
O casamento do mesmo sexo é legal na Holanda desde 2001, mas sempre se presumiu que esse direito não poderia se aplicar à família real. Mas o primeiro-ministro interino da Holanda, Mark Rutte, afirmou esta semana que qualquer rei ou rainha pode se casar com uma pessoa do mesmo sexo se quiser. Não há nenhuma notícia de que alguém da família real holandesa queira se casar com alguém do mesmo sexo. Rutte disse que tudo gira em torno de "situações teóricas", mas que a próxima rainha da Holanda poderá se casar com uma mulher, caso queira. "O gabinete não vê que um herdeiro ao trono ou o rei deva abdicar se quiser se casar com um parceiro do mesmo sexo", explicou o primeiro-ministro em resposta a uma pergunta escrita de seu próprio partido no Parlamento. Essa questão ganhou atenção da imprensa neste ano com um lançamento de um livro sobre a princesa Amalia, filha mais velha do rei Willem-Alexander e herdeira do trono holandês. Amalia completa 18 anos em dezembro. O livro levantou dúvidas sobre o que poderia acontecer se ela decidisse se casar com uma parceira do mesmo sexo. O livro não especulou sobre a vida pessoal da princesa e não há indicação de que ela queira se casar no futuro. Amalia deve ir para a universidade no ano que vem e recusou a renda real a que tem direito enquanto estuda. Dois parlamentares do próprio partido liberal de Rutte, o VVD, questionaram se as atuais restrições ao casamento de pessoas do mesmo sexo na família real atendem a "normas e valores de 2021". Embora o gabinete deixe claro que o casamento do mesmo sexo é possível, o que não se sabe é o que aconteceria com a sucessão se houvesse filhos nascidos de um casamento real do mesmo sexo, por exemplo, por adoção ou um doador de esperma. "É terrivelmente complicado", explicou Rutte. A constituição holandesa afirma que o rei ou rainha só pode ser sucedido por um "descendente legítimo". O primeiro-ministro disse que tudo era puramente teórico nesta fase, mas que qualquer decisão caberia ao Parlamento, que tem que dar a aprovação ao casamento real. "Vamos cruzar essa ponte se chegarmos a esse ponto", disse ele à TV holandesa.
2021-10-13
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58896595
sociedade
O que é a positividade sexual de que tanto falam?
Ultimamente, parece que qualquer coisa e qualquer pessoa pode falar sobre sexo e ganhar o rótulo de 'sex positive': de aplicativos de redes social a celebridades e líderes feministas, passando por marcas que vendem produtos íntimos. Mas quando aplicada a uma variedade de contextos, a ideia de positividade sexual parece quase perder seu significado — ou pelo menos, sua definição fica confusa. Assim como empresas e marcas usam em abundância termos como 'diversidade' e 'equidade' para atrair consumidores eticamente conscientes, "a mesma coisa está acontecendo com indivíduos, celebridades, organizações e empresas dizendo que são mais sexualmente positivos", diz Emily Prior, diretora executiva da ONG Center for Positive Sexuality, com sede na Califórnia, nos EUA. Enquanto alguns "definitivamente são", ela acrescenta, outros "usam a expressão como um jargão para atrair as pessoas". Mas como você pode saber a diferença, quando não existe uma definição única e consensual para positividade sexual? Embora educadores sexuais, acadêmicos, profissionais do sexo e diretores de pornografia tendam a concordar que o uso abundante do termo indica tanto uma tentativa de se tirar vantagem de uma palavra da moda quanto abraçar verdadeiramente sua essência, com base no contexto, cada um, individualmente, tem interpretações ligeiramente diferentes do que significa e de onde veio. Dependendo de para quem você pergunta, a positividade sexual abrange tudo, desde o antirracismo até a nudez masculina nos filmes. No geral, no entanto, aqueles que falam sobre positividade sexual observam que, em sua essência, o termo é sobre estar aberto a uma variedade de orientações, interesses (ou a falta deles), identidades e expressões sexuais. Eles acham que o termo evoluiu para se tornar mais popular e com mais nuances ao longo do tempo, e que sua influência vai muito além do reino da sexualidade, se inserindo na sociedade como um todo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora muitos atribuam ao psicanalista austríaco Wilhelm Reich a criação do termo "positividade sexual" em meados do século 20, como parte de seu discurso sobre o sexo como um aspecto saudável da humanidade, outros grupos adotaram um significado sexualmente positivo muito antes dele. "Na década de 1920, já havia comunidades, como a cultura ballroom no Harlem, em Nova York, e as feministas do Village que faziam parte de comunidades sexualmente positivas e queer", afirma a cineasta sueca de filmes eróticos Erika Lust. As experiências deles apenas "foram muitas vezes deixadas de fora das discussões", diz ela. A sexóloga e socióloga Carol Queen conta que esbarrou com o conceito pela primeira vez no fim dos anos 1980, quando começava seu programa de doutorado no Instituto para Estudos Avançados da Sexualidade Humana. Ela se lembra de um professor, o sexólogo alemão Erwin Haeberle, possivelmente ajudando a desenvolver o termo, já que tinha familiaridade com "sexólogos europeus do início do século 20 que enfatizavam a importância de atitudes positivas em relação à sexualidade" quando trabalhavam com pacientes. Na visão da terapeuta Aida Manduley, a positividade sexual passou por vários momentos de morosidade e ressurgimento — um desses ressurgimentos ocorreu durante a revolução sexual nos anos 1960 e 1970, e outro mais recentemente, na década passada. A educadora sexual Goody Howard se lembra de ter ouvido o termo positividade sexual ser usado pela primeira vez no fim dos anos 1990 em sintonia com o ressurgimento anterior, comparando-o ao "movimento do amor livre e hippie de Woodstock". Nessa época, grupos focados explicitamente na positividade sexual haviam se formado, como no porão de um restaurante em Seattle, no Estado de Washington, chamado Beyond the Edge Café, administrado por Allena Gabosch. Gabosch oferecia um "ambiente seguro" para pessoas que exploravam fetiches e identidades LGBTQ+, diz Larry Grella, membro do conselho do Center of Sex Positive Culture, organização que nasceu dos esforços de Gabosch em 1999. No entanto, uma mudança global nas atitudes em relação à sexualidade remonta a 2002, diz Prior, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) atualizou sua definição de saúde sexual para incluir prazer, segurança, falta de coerção e ausência de violência e discriminação — uma abordagem que reconheceu os aspectos positivos do sexo, em vez de focar nos riscos. Esta nova definição ampliou o debate e ajudou a influenciar a criação de organizações que adotaram uma visão mais positiva sobre o sexo, incluindo o The Center for Positive Sexuality, que foi lançado em 2007, segundo Prior. Embora a expressão "positividade sexual" signifique algo ligeiramente diferente para cada grupo ou movimento que a usa, há pontos centrais em comum. As ideias sobre positividade sexual evoluíram em resposta à negatividade sexual generalizada — em outras palavras, atitudes que atribuem vergonha e julgamento às variadas experiências e sentimentos das pessoas em relação à sexualidade. A educação sexual no ensino médio, pelo menos em lugares como os EUA, há muito tempo exemplifica essa atitude 'negativa em relação ao sexo'. "As informações disponíveis para as pessoas [na escola] sobre sexualidade eram todas as coisas ruins", diz Prior. "Isso é o que você deve evitar, aqui estão todas as coisas que podem dar errado — é por isso que você não deve fazer sexo." "A positividade sexual é realmente o oposto de 'negatividade sexual'", afirma Queen, "[que significa ser] crítico em relação ao sexo e à variação sexual... Na minha opinião, este é o terreno a partir do qual a noção de positividade sexual cresceu. " Coletivamente, no entanto, ainda estamos tentando definir o termo — e algumas definições ficaram a desejar. "As pessoas diziam que significa apenas que você pode fazer sexo com qualquer pessoa", conta Howard, sobre quando ela começou a ouvir o termo. Por volta de 2016, ela diz que se aprofundou no assunto e chegou à sua própria definição: "atuar em espaços com informações sobre sexo e prazer, sem vergonha ou estigma". Para Manduley, de acordo com um artigo recente do qual ela é coautora, intitulado Defining Sex-Positivity in Therapy, (Definindo Sexo Positivo em Terapia, em tradução livre) a definição de positividade sexual "varia entre e dentro dos campos" — e isso é uma coisa boa. "Vemos essa abertura como benéfica, já que deixa espaço para terapeutas e pacientes estabelecerem suas próprias definições para abordar objetivos terapêuticos", escrevem os autores. Crucialmente, diferentes culturas têm valores distintos em relação ao pudor e à comunicação, então falar francamente sobre sexo com algumas pessoas pode não ser a abordagem mais sexualmente positiva, se isso não reconhecer sua zona de conforto. Manduley considera a positividade sexual um "enquadramento e uma lente" para usar com os pacientes, e não uma "receita" que dita como eles devem discutir e compreender a sexualidade. Masakhane, uma organização que oferece "educação sexual positiva para comunidades marginalizadas", especificamente "pessoas negras e pardas pobres" em Newark, Nova Jersey, reconhece em seus ensinamentos que há "uma história dolorosa e contínua de opressão reprodutiva", diz o membro do conselho JV. Positividade sexual, em poucas palavras, "significa que seu corpo é seu", escreve JV. Outros integrantes da organização compartilharam várias definições com a BBC Worklife, muitas das quais centradas no empoderamento de pessoas com corpos negros e pardos, ou na representatividade em conversas sobre sexo de indivíduos com diferentes tipos de corpo ou deficiências. "Todas as formas e corpos podem praticar sexo", escreve um educador da Masakhane. Para alguns, como a escritora e produtora Karley Sciortino, entender a positividade sexual surgiu do aprendizado sobre o feminismo depois que alguém chamou seu blog sobre sexo, de "feminista" no início dos anos 2000. Ela se interessou pelos textos de Camille Paglia, uma "feminista pró-sexo" que não discriminava as profissionais do sexo, pornografia e mulheres que usavam maquiagem. Para Paglia e Sciortino, sexo e aparência sexy representam poder "em vez de submissão ao olhar masculino", segundo Sciortino. Em outras palavras, a ideia de positividade sexual de Sciortino era sobre a inclusão de profissionais do sexo e mulheres que exibiam sua sexualidade, categorias historicamente discriminadas nos círculos feministas. Na indústria do entretenimento adulto (fonte de educação sexual para muitos), as atitudes em relação à positividade sexual também estão mudando. Os grandes estúdios, que tendem a difundir metáforas misóginas e racistas, não são mais tão dominantes, diz a criadora de conteúdo adulto e consultora de negócios Amberly Rothfield. Cineastas independentes têm liderado essa mudança e tendem a compartilhar as visões de Rothfield sobre positividade sexual, enfatizando "confiança e abertura" para uma variedade de experiências sexuais e acabando com a estigmatização em torno das práticas sexuais. Um deles é Lust, que diz que positividade sexual no contexto da pornografia significa "criar filmes que sejam diversos e representativos de todos os gêneros e raças, e atendam a uma série diversificada de fantasias e fetiches sexuais". Isso significa ir muito além dos filmes que terminam com a ejaculação masculina. "Apesar da cultura de negatividade sexual em que ainda vivemos e da falta generalizada de uma boa educação sexual nas escolas, vejo que o sexo e a pornografia estão se tornando cada vez menos um tabu na sociedade", avalia Lust. Na verdade, algumas organizações têm como objetivo levar um olhar sexualmente positivo para a educação sexual nas escolas. A Sexpression: UK, formada em 2000, ensina crianças e jovens de 11 a 18 anos sobre sexo e sexualidade por meio de uma visão positiva e "informativa", diz o diretor de imprensa Lewis Ruddock. Garantindo que suas aulas "atendam às mulheres, pessoas negras, indivíduos que se identificam como LGBTQ+ e pessoas com deficiência", a Sexpression:UK se concentra em promover um diálogo aberto entre os alunos, acrescenta Ruddock. Assim como muitas outras pessoas com quem a BBC Worklife conversou para esta reportagem, Ruddock observou que a mídia está prestando mais atenção à positividade sexual recentemente. Ele vê isso como um canal para uma discussão mais aberta e uma tendência que oferece uma plataforma para educadores sexuais, profissionais do sexo e influenciadores da positividade sexual. As gerações mais novas também estão mais familiarizadas com os conceitos de positividade sexual, graças a esse diálogo em expansão. Mas outros veem o uso frequente do termo como uma espécie de diluição de seu significado — um conceito do qual as marcas podem tirar proveito, sem levar em consideração suas muitas nuances. "Em suas configurações menos agradáveis, [a positividade sexual] se transforma em outro tipo de normatividade que exclui muitas pessoas", diz Queen, como quando é interpretada de uma forma que exclui indivíduos que não gostam de sexo ou se identificam como assexuais. Segundo Howard, algumas pessoas vão rotular um filme como 'sexualmente positivo' se o ator usar camisinha durante as cenas de sexo. Embora isso mostre uma prática sexual positiva, por si só não pode tornar um filme 'sexualmente positivo'. Prior, por sua vez, espera continuar a ver o termo 'positividade sexual' evoluir a ponto de organizações como o Center for Positive Sexuality "não serem mais úteis", porque a ideia se tornou tão culturalmente difundida que não precisa de defensores explícitos. Todo mundo será positivo em relação ao sexo, tendo sido criado com seus ideais. "Não acho que isso vá acontecer nos próximos cinco a 10 anos, embora possa acontecer além dos meus dias", diz ela. "Mas há definitivamente mais organizações agora do que quando começamos... promovendo ideais sexualmente positivos."
2021-10-08
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-58679982
sociedade
A constante luta de Berlim por aluguéis mais baratos
Berlim tem atraído cada vez mais gente para a sua famosa atmosfera artística, liberal e de polo tecnológico. Nos últimos anos, a cidade ganhou uma média de 60 mil pessoas por ano. E, segundo previsões do Deutsche Bank, deve atingir 4 milhões de habitantes em 2030. Outro aspecto da capital alemã, contudo, tem registrado altas mais elevadas (e preocupantes): o preço dos aluguéis. Segundo um levantamento da imobiliária Guthmann, empresa baseada em Berlim, o aluguel na cidade aumentou 13,3% na comparação com o ano passado, atingindo uma média de €13,05 (R$ 82,00) por metro quadrado. O aluguel em prédios novos subiu 62,6% nos últimos cinco anos, contra 37,4% nos demais edifícios. Outro estudo do portal de imóveis Immowelt indica que os preços subiram 42% nos últimos cinco anos, passando de uma média de €9 (R$ 57,00) por metro quadrado para €12,80 (R$ 81,00). Esse valor ainda é muito menor do que o custo do metro quadrado para aluguel em Paris (€28,60), Londres (€26,07) e Bruxelas (€13,93), mas maior do que em Viena (€8,65) e Budapeste (€9,76), segundo a consultoria Deloitte. Habitação com valores acessíveis é um tema central para a população e governos da cidade-estado (quase sempre coalizões de esquerda). No mais recente esforço neste sentido - no domingo 26, durante as eleições federais e estaduais (para Berlim)-, 56,4% dos eleitores berlinenses (mais de 1 milhão de pessoas) votaram a favor de expropriar propriedades residenciais de grandes empresas em um referendo que coletou mais de 170 mil assinaturas para chegar às urnas. 39% votaram contra. O referendo não é legalmente vinculante, mas força o novo governo e o Senado da cidade a criarem um projeto de lei que poderia levar a cidade a comprar cerca de 225 mil imóveis. O projeto focaria em estatizar, por um preço abaixo do valor atual de mercado, unidades residenciais de empresas que possuam mais de 3 mil dessas propriedades. A Deutsche Wohnen, por exemplo, é dona de cerca de 113 mil imóveis residenciais na capital. "No passado, um referendo foi ignorado pelo governo de Berlim. Isto não será possível neste caso, pois uma clara maioria dos berlinenses se pronunciou a favor desta linha de ação", afirma à BBC News Brasil Wibke Werner, diretora administrativa-adjunta da Berliner Mieterverein e.V., a associação de inquilinos de Berlin. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Se o governo local ignorar este referendo, prossegue Werner, haveria "um grande ressentimento" entre o eleitorado e uma nova campanha por outro referendo, que colocaria "em votação uma lei concreta sobre socialização" desses imóveis. Em uma população de 3,6 milhões de habitantes, mais de 1 milhão de votos a favor da proposta colocará o Senado sob pressão política "para reagir dentro de um tempo relativamente curto, de forma transparente e séria, demonstrando boa vontade", defende Christian Pestalozza, especialista em Direito Constitucional e Administrativo da Universidade Livre de Berlim. Apesar de a nova composição do Senado ainda não estar definida, a inatividade da Casa pode causar duas consequências extremas, acredita Pestalozza. "Os eleitores poderiam vingar-se dissolvendo a Abgeordnetenhaus (Casa dos Representantes), derrubando assim o Senado. Depois, poderiam iniciar um novo referendo propondo (e eventualmente aprovando) uma lei regulando a socialização [dessas propriedades]. Ou seja, tomariam o assunto em suas próprias mãos em vez de pedir ao Senado." Há dúvidas, entretanto, sobre a constitucionalidade de uma possível lei baseada no referendo. A futura prefeita de Berlim, a social-democrata Franziska Giffey, é contra as expropriações, mas disse o governo local dará andamento no projeto, que seria analisado para verificar sua viabilidade. A conta para a cidade poderia ultrapassar €20 bilhões (cerca de R$ 127 bilhões). Berlim têm tentado impedir que seus aluguéis se tornem tão caros quanto em metrópoles europeias como Londres e Paris, uma vez que apenas 17,4% de seus habitantes são donos de imóveis na cidade, contra 82,6% de inquilinos, de acordo com o órgão federal de estatísticas do governo alemão. A ideia por trás da expropriação é impedir que o aluguel dos imóveis estatizados suba demais. Por outro lado, críticos alegam que o projeto não resolve o problema habitacional, porque não cria novas residências. Neste contexto, tal lei deve enfrentar batalhas legais por parte de setores e empresas afetadas. "As empresas imobiliárias afetadas dificilmente forneceram novas moradias no passado, mas aumentaram seus aluguéis modernizando e re-arrendando apartamentos existentes. O objetivo [do referendo] é dar mais peso ao interesse público na política habitacional e ver a oferta de moradia como um serviço de interesse geral no futuro", acredita Werner. Para a representante da Berliner Mieterverein e.V., "obviamente" novas construções são necessárias, mas focando "no segmento acessível, orientado para as necessidades da população berlinense". "O referendo tornará mais difícil para investidores exclusivamente orientados ao lucro, que veem o aluguel de casas exclusivamente como um modelo de negócio para aumentar seus ativos para implementar sua estratégia comercial em Berlim." Não é por acaso que habitação acessível é um tema importante para os berlinenses. É comum encontrar na cidade empresas oferecendo quartos minúsculos em repúblicas (por volta de 10 metros quadrados) por mais de €500 por mês (R$ 3,2 mil) a depender da localização. Em regiões nobres e "na moda", como Prenzlauer Berg, pode ser difícil encontrar até mesmo um quarto por menos de €600 (R$ 3,8 mil). Alugar apartamentos inteiros costuma ser ainda mais exaustivo. Não raro, os interessados competem com mais de 40 pessoas pelo imóvel desejado. A Guthmann estima que haja um déficit habitacional de cerca de 205 mil unidades na capital alemã. Ademais, a empresa aponta que desde 2010, o segmento de aluguéis entre €5 e €8 euros por metro quadrado (o mais acessível para a população) tem encolhido. Já o mercado para habitações mais caras, acima €14 m², tem ganhado cada vez mais espaço. Berlim enfrenta diversos desafios para construir mais moradias, que vão desde a dificuldades para obter permissões de construção, escassez de matérias-primas, e custos mais elevados com terrenos. Por isso, Pestalozza argumenta ser improvável que Berlim consiga regular sozinha aspectos tão profundos do mercado imobiliário. "Somente uma reforma drástica a nível federal ajudará." Os preços dos alugueis em Berlim já são parcialmente controlados desde julho de 2015 via lei Mietpreisbremse, regulada em âmbito federal. Entre diversos pontos, a lei proíbe proprietários de imóveis de cobrar preços abusivos, usando como base valores comparativos locais de aluguel. Mas há diversos problemas com a execução da medida. Por exemplo, em geral, cabe ao inquilino confrontar o senhorio na Justiça para forçar uma redução do aluguel, uma ação que implica em custos legais. Os donos também podem demorar para apresentar os documentos afim de atrasar o processo. Diversos imóveis não são cobertos pela lei e modernizações do imóvel (mesmo que desnecessárias) permitem aos donos cobrar mais no aluguel. Na Alemanha, inquilinos possuem direitos sólidos em contratos de aluguel. Entre eles, o fato de que contratos considerados abusivos por parte dos proprietários não são válidos mesmo que tenham a assinatura do locatário. O valor da caução é limitado ao equivalente a três meses de aluguel e o preço do aluguel, em geral, só pode subir a 15% em um período de três anos e deve ser o mesmo por 12 meses. Além disso, inquilinos não podem ser despejados sem justificativas válidas. É preciso dar aviso prévio de três meses aos inquilinos, mas esse prazo aumenta conforme o tempo vivido no local. Outra vantagem é a existência de contratos sem tempo de duração, que geralmente permitem aos inquilinos viverem por diversos anos em um mesmo imóvel sem grandes aumentos de aluguel. No começo de 2020, entrou em vigor em Berlim uma ambiciosa lei que congelava os aluguéis por cinco anos no nível de junho de 2019 e limitava os preços máximos dos arrendamentos. Em muitos casos, proprietários foram forçados a abaixar os aluguéis em centenas de euros por mês. O objetivo era controlar os preços e dar ao mercado e o governo tempo para construir novas habitações. Associações imobiliárias e proprietários protestaram contra o teto e o caso chegou à Corte Constitucional Federal, a mais importante do país, em abril deste ano. A corte decidiu que a medida era inconstitucional porque Estados não teriam poder de controlar aluguéis. Por enquanto, a nova tentativa de Berlim em reduzir os preços de aluguel via referendo tem um futuro incerto. Mas Werner acredita que, talvez, seja possível pressionar o setor imobiliário sem que a lei precise ser aprovada. Para isso, o governo berlinense precisaria convencer as companhias a baixarem os aluguéis sozinhas ou a aceitarem um congelamento ou abdicarem de modernizações exageradas, em troca de obterem condições melhores para construírem imóveis com perfil mais barato. "No entanto, é questionável se a iniciativa [privada] acabaria por concordar com tal solução", diz.
2021-09-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58728481
sociedade
Vídeo, O que torna algumas casas mais frias do que outrasDuration, 6,35
Você já parou para perguntar por que algumas casas parecem mais geladas que outras? Porque de fato elas são. A quantidade de luz do Sol que entra por portas e janelas é determinante para definir se uma casa ou um apartamento é quente ou frio. “O apartamento que não recebe radiação solar não tem sua temperatura elevada”, explica Marcelo Nudel, arquiteto especialista em conforto ambiental. Ele destaca outros três fatores que influenciam na sensação de conforto térmico: a temperatura, a umidade relativa e a velocidade do ar dentro de um ambiente construído. Segundo o professor de estrutura do curso de Engenharia Civil da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Rafael Castelo, a escolha adequada de materiais para pisos e cortinas, por exemplo, pode amenizar o desconforto em casa frias. “A madeira [para pisos] torna o ambiente um pouco mais quente por quê? Porque ela não absorve tanto calor e, em não absorvendo tanto calor, esse calor fica irradiado no ambiente”, afirma. Neste vídeo, especialistas explicam quais fatores devem ser observados na hora de comprar ou alugar um imóvel, tendo em vista a sensação térmica do ambiente. Confira no vídeo.
2021-09-27
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58705342
sociedade
Como descobrir e apagar as informações que o Google tem de você
Ele sabe o que você procura, o que te interessa e os lugares que você visita, entre muitas outras coisas. Esse é o Google, a ferramenta de busca mais usada do mundo, "Quando o usuário usa nossos serviços, confia a nós informações dele." É assim, de forma clara, que o gigante tecnológico se dirige a seus usuários logo na primeira linha dos termos e condições de privacidade. Mas o que você provavelmente não sabe é que o Google oferece a possibilidade de excluir as informações armazenadas em um lugar chamado "Minha atividade" ou "My activity", em inglês. Nós explicamos como fazer isso em alguns passos. Cada vez que você faz uma pesquisa no Google, a empresa a salva e a associa à sua conta. Ela também registra todos os movimentos que você faz, como preencher um formulário ou ler seu e-mail no Gmail. Todos os dados são coletados em um site chamado "Atividade". É exatamente nesta área que você tem que ir para consultá-lo. Você tem três opções na hora de excluir informações: A primeira é usar a pesquisa para encontrar uma página específica para apagar. A segunda é limpar as buscas feitas no mesmo dia, escolhendo "Hoje" e depois clicando na opção "Excluir" A terceira opção é eliminar toda a sua pesquisa. Para fazer isso, clique em "Excluir por" na lista à esquerda. Clique em "Excluir por data" e selecione "Todo o período". Se você tem certeza desta opção, clique em "Excluir". Em todos os casos, aparecerá um aviso do Google sobre os possíveis impactos dessa decisão. Mas, na realidade, excluir o histórico de pesquisa do Google e a trilha de navegação não tem nenhuma consequência em relação à operação da sua conta do Google ou seus aplicativos. O Google também mantém um registro de todas as suas pesquisas no YouTube. Mas isso é algo que você também pode excluir facilmente, apagando o histórico de pesquisa. O Google não só sabe tudo sobre você, mas também repassa essa informação a anunciantes. É por isso que ele é capaz de mostrar anúncios que combinam com o que você procura. Mas é possível descobrir quais informações estão sendo transmitidas aos anunciantes. Para isso, acesse sua conta do Google e depois "Informações pessoais e privacidade". Desta vez, o que interessa é a opção "Configurações de anúncio". Uma vez dentro, clique em "Gerenciar Configurações de Anúncio". Na sequência, opte por "Controlar anúncios com sessão fechada". Se você clicar nessa opção, você pode escolher se deseja receber anúncios com seus interesses ativados ou desativados (a opção de não receber publicidade não está disponível). O Google irá avisá-lo de que não se adequará a você porque você vai parar de ver anúncios relacionados aos seus interesses, mas cabe a você escolher. Se você usa um dispositivo Android, o Google acompanha os locais que você visitou com seu dispositivo por meio de um recurso chamado Rotas. Na tela inicial, é possível interromper o registro virando para a esquerda a chave do "Histórico de localização". Para excluir todo o histórico anterior, clique em "gerenciar histórico de localização" e, depois, no ícone de Configurações. Para apagar dias específicos, basta selecionar, na mesma página, a data no calendário na área esquerda da tela e clicar no botão da lixeira. Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
2018-09-27
https://www.bbc.com/portuguese/geral-42332959
sociedade
O passado liberal pouco conhecido do Oriente Médio sobre a homossexualidade
O discurso oficial anti-LGBTQIAP+ na Turquia moderna é tão feroz que não é mais incomum que líderes se refiram aos membros dessa comunidade como "pervertidos". Essa retórica não é exclusiva do governo do presidente Recep Tayyip Erdogan. Por décadas, líderes no Oriente Médio insistem que a homossexualidade não tem lugar no mundo islâmico. Mas muitos rejeitam essa visão, no que já foi uma região tolerante com a homossexualidade. No Império Otomano, que se estendia da atual Hungria ao Iêmen e cobria mais de 5 milhões de km², as relações entre homens eram amplamente aceitas. E assim foi por muito tempo. No século 8 d.C., Abu Nuwas, que se tornaria um dos grandes poetas da literatura árabe clássica, já escrevia sobre a paixão e o desejo entre os homens. Mesmo em algumas versões da Ilíada, uma das mais antigas e importantes composições literárias, Aquiles e Pátroclo são descritos como amantes, embora Homero, a quem o texto é atribuído, não os identifique como tais, pelo menos não explicitamente. "Quando analisamos literatura, poesia, teatro de fantoches, etc., percebemos que durante a fundação do Império Otomano o conceito de homossexualidade, como algo que define alguém e como o oposto da heterossexualidade, basicamente não existe." É o que diz o historiador israelense Dror Ze'evi, especialista em história política, social e cultural do Império Otomano e autor da obra Produzindo desejo: a mudança do discurso sexual no Oriente Médio otomano, 1500-1900, em entrevista à BBC News Mundo (serviço de notícias em língua espanhola da BBC). "Por mais de 500 anos, os otomanos deram continuidade a algo que havia sido estabelecido muito antes nos impérios islâmicos e Estados que precederam o otomano: que a sexualidade é um amplo espectro e não apenas uma dicotomia entre heterossexualidade e homossexualidade", continua ele. Hoje, mais de um século após a queda do império, o quadro é muito diferente. No Oriente Médio do século 21, a maioria dos países criminaliza a homossexualidade e, em alguns, atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo podem gerar penas de prisão e até morte. A pena de morte para esses casos existe no Irã, Arábia Saudita e Iêmen, diz a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais (ILGA), que monitora leis relacionadas à homossexualidade em todo o mundo. Segundo a mesma fonte, em países como Catar e Emirados Árabes Unidos também é possível que a pena de morte seja imposta aos condenados por essas acusações, embora a lei não seja aplicada em todos os casos. As relações homossexuais também são perseguidas no Líbano, na Líbia ou na Síria, onde podem gerar sentenças de prisão. No resto da região existe um vazio jurídico a este respeito, sendo Bahrein e Israel as únicas exceções. Neste último caso, não só a homossexualidade é legal como a união civil entre duas pessoas do mesmo sexo é permitida, assim como a adoção de filhos. Atualmente, a aceitação da homossexualidade na região varia, mas é baixa na maioria dos países. Apesar de terem a reputação de serem mais liberais do que seus vizinhos, apenas 6% dos libaneses acham que a homossexualidade é aceitável, de acordo com uma pesquisa de 2019 do Arab Barometer e encomendada pelo serviço árabe da BBC. Nos territórios palestinos, o percentual é de 5%, enquanto na Jordânia e na Tunísia é de apenas 7%. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A situação atual contrasta com o "discurso sexual" do Império Otomano antes do século 19, que a socióloga e cientista política turca Irem Özgören descreve como "múltiplo e variado". "Isso não significa que antes havia uma aceitação total da homossexualidade. Ela era comum e aceita, mas não era bem visto que os homens se gabassem de sua homossexualidade em locais públicos", diz ela à BBC News Mundo. Dror Ze'evi concorda com essa visão e acrescenta que embora a homossexualidade fosse aceita pela maioria, sempre houve "uma minoria de ortodoxos" que se opôs a ela alegando que "o Alcorão não aceita" relações sexuais entre homens. Em um estudo baseado em textos do século 19 e que fala sobre as categorias sexuais da época, a socióloga explica que escrever poemas para jovens imberbes declarando amor a eles era uma prática aceita até mesmo por autoridades religiosas. Da mesma forma, "havia uma classificação sexual dos homens de acordo com seu papel passivo ou ativo e não com base no gênero", diz a especialista. Özgören também destaca que tanto homens quanto mulheres eram biologicamente percebidos como "variações do mesmo sexo" e que a beleza também era neutra em termos de gênero. Quanto aos homens que mantinham relações homossexuais, "eles eram atraídos por outros homens pela falta de afinidade intelectual, espiritual ou moral em suas relações com as mulheres, principalmente pela pouca escolaridade que elas possuíam em relação aos homens", destaca. Em um manual de etiqueta publicado em 1599, o historiador e burocrata otomano Mustafa Ali descreve o sexo com "rapazes sem barba" como "vergonhoso", mas depois aceita que eles têm "qualidades sensuais". Os estudiosos veem isso como mais uma evidência de quão difundida a homossexualidade era na época. Até meados do século 19, as leis otomanas regulamentavam aspectos como a fornicação (relação sexual entre duas pessoas não casadas) e as relações entre duas pessoas do mesmo sexo, falando de tudo isso de forma detalhada e aberta. Mas com o surgimento da burocracia otomana no século 19, os líderes do Império decidiram modificar as leis e empreender um processo que chamaram de modernização, adotando uma visão ocidental da sexualidade que privilegiava a heteronormatividade, dizem especialistas. No código penal otomano aprovado em 1958 e inspirado pelos franceses, muitas questões sexuais, como as relações extraconjugais, eram classificadas sob o título de "crimes de honra". "Antes desse código penal, o gênero não se reduzia ao masculino e ao feminino. Para definir a sexualidade masculina, existiam pelo menos sete palavras otomanas. Atualmente, essas palavras não existem mais na língua turca", diz Özgören, que também é professora de Ciência Política na Universidade Katip Celebi de Izmir, na Turquia. A partir daí, as elites otomanas passaram a reprimir a homossexualidade e um novo sentimento de "vergonha" surgiu ao se referir a uma sexualidade que não existia antes, dizem os especialistas. "A importação das leis europeias criou uma dicotomia. A heteronormatividade foi importada como norma, e isso começou a mudar uma estrutura que já existia há séculos", afirma Özgören. Embora o código penal otomano tenha introduzido uma sociedade menos liberal, o texto também não criminalizou a homossexualidade. O historiador Robert Beachy, da Universidade Yonsei de Seul, na Coreia do Sul, lembra que o conceito de "homossexualidade" foi cunhado em 1868 pelo escritor e jornalista austro-húngaro Károly Mária Kertbeny, e de lá foi levado para a França, para o mundo anglo-saxão, para o Oriente Médio e para o resto do mundo. "A palavra 'homossexualidade' foi usada pela primeira vez em panfletos em alemão para fazer ativismo contra o Estado prussiano, que rejeitava a sodomia", disse Beachy à BBC Mundo. "O termo se espalhou para o Oriente Médio, porque no final do século 19 houve muito intercâmbio cultural e econômico entre o Império Otomano e o Império Alemão, particularmente a Prússia." Durante o mesmo período, o Reino Unido e a França introduziram novos códigos penais que puniam a homossexualidade em seus territórios. Após a Primeira Guerra Mundial, as duas potências coloniais da época dividiram a região e trouxeram consigo suas leis e visões contra a homossexualidade. E, depois de se tornarem independentes, quase nenhum país modificou essas leis, com poucas exceções, como Israel, Bahrein e Jordânia. "Eu moro na Ásia e vi quantos jovens hoje têm amantes do sexo masculino, mas logo eles arranjam esposas e se casam. Alguns ainda seguem com amantes homens após o casamento", diz Beachy. "Foi assim que funcionou no Oriente Médio e em muitas partes da Ásia por muito tempo e tudo acontecia abertamente, até que o Ocidente veio e impôs suas visões influenciadas pelo cristianismo." Nas últimas décadas, a proliferação de grupos fundamentalistas islâmicos e a aplicação da sharia, ou lei islâmica, em alguns países tornou quase impossível descriminalizar a homossexualidade. E a poesia de Abu Nuwas, celebrada no passado no mundo islâmico, é hoje vista com vergonha por alguns grupos. Já em 2001, o ministro da Cultura egípcio teve um de seus livros queimado na íntegra porque seus versos exaltavam a homossexualidade.
2021-09-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58617830
sociedade
'Com as relações abertas, a infidelidade perdeu peso, pois não é mais tão importante', defende escritora chilena
Qué vergüenza (ou "Que vergonha", em tradução literal). Este é o título do primeiro livro de Paulina Flores (Santiago, 1988), uma coletânea de contos que ganhou o prêmio Roberto Bolaño e impressionou com suas histórias íntimas, que revelam laços familiares, frustrações, a dor que sente ao negar sua origem social, a impotência quando você entende que seu pai sofre ou a dureza das traições. Neste ano, a autora chilena entrou para a lista da revista Granta dos 25 melhores jovens escritores em espanhol e lançou seu primeiro romance, Isla Decepción ("Ilha da Decepção", em tradução livre) — uma história que reúne três personagens: Marcela, que vive o rompimento de uma relação amorosa e viaja para o sul do Chile em busca de refúgio e do amor do pai, Miguel. E Lee, um jovem coreano que foge com outros dois marinheiros do Melilla, um navio-fábrica onde trabalhavam em condições desumanas pescando lulas. Lee é resgatado quase sem vida das águas do Pacífico por um pequeno barco, e Miguel, em vez de entregá-lo à polícia para ser devolvido ao navio, o esconde em sua casa e cuida dele. Sem falar a mesma língua, nasce entre eles um diálogo que os aproxima, pois têm algo em comum: o ímpeto de partir para um lugar que promete ser melhor. "Queria escrever sobre escapar, fugir, e o tema de fundo me parecia muito apropriado para lidar com essas questões." Em conversa com a BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, Flores — que participou do Hay Festival Querétaro, no México — analisa esta e outras questões que permeiam Marcela e sua própria geração, como o fim da monogamia e as mudanças de perspectiva em relação à infidelidade. BBC News Mundo - A fuga está presente no seu romance e também nas suas histórias, por que fugir, de quê? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Paulina Flores - Acho atraente essa forma de viver fugindo, naturalmente me atrai. Talvez tenha a ver com o espírito da época. Há uma tendência de olhar com reprovação as pessoas que estão fugindo ou escapando. Queria saber do que se tratava e escrever sobre isso me ajuda, porque tenho que me colocar em todos os papéis, tomar todas as decisões. BBC News Mundo - Lee foge do Melilla, um navio indonésio onde se trabalha dia e noite, não se sabe quantas horas ou meses se estáa bordo da embarcação, se passa fome, se sofre castigos físicos. Como você reconstrói essa realidade? Flores - São navios-fábrica que pescam e processam ao mesmo tempo (o pescado) em jornadas intermináveis. Contratam marinheiros do Sudeste Asiático e funcionam como máfias. Pesquisei em um instituto da Nova Zelândia que tem o maior acervo de depoimentos, mas não há tanta informação, porque quem fala usa pseudônimos. Como esses navios estão em alto mar, não há controle ou supervisão. Além disso, cada país tem seus próprios problemas, principalmente na América Latina, por isso não há muita preocupação com isso. Você acha que isso acontece a milhões de quilômetros de distância e não, está acontecendo bem ali. Eu queria mostrar isso porque parecia horrível e surpreendente para mim. Mas não está acontecendo só na indústria pesqueira. É paradigmático o que está acontecendo agora na Índia, que estava produzindo vacinas para todo o mundo e não tinha vacinas. BBC News Mundo - O que mais te impressionou ao ler os depoimentos sobre a situação nesses navios? Flores - A forma como as pessoas conseguem gerar humanidade apesar da dor ou do sofrimento, foi o que mais me impactou; como apesar de estar numa espécie de inferno, você consegue ter carinho com as pessoas que estão ao seu lado. BBC News Mundo - Entre as atrocidades que acontecem está a luta campal, que parece uma espécie de escape, todo mundo luta sem saber o motivo. O que você quer contar? Flores - Sabia que precisava haver uma luta, e em um navio de marinheiros, com facas. Isso foi levando a outras coisas, como ver qual era o papel de Lee, o que uma luta significava nessas condições. Em algum momento, é um pouco de diversão também. Não permitem que a gente faça nada, então vamos nos matar, vamos nos divertir, já que não há mais nada a fazer. BBC News Mundo - Mas também há ternura e cuidado mútuo entre os marinheiros, como Yusril, que prefere suportar torturas a colocar Lee em perigo. Flores - As pessoas procuram uma forma de não perder a dignidade. Podem tirar de você tudo a nível material, a nível de abusos, mas não podem tirar sua maneira de ser com os outros. Bem, eles podem tirar isso de você, mas pelo menos nesta parte, tento mostrar o contrário. BBC News Mundo - Você viajou para a Coreia, o país de Lee, o que foi revelador nessa viagem? Flores - Precisava estar lá, para ver o lugar onde Lee nasceu. Foi emocionante ouvir a língua, me perder, ver os gestos. Claro que com muito respeito, porque também não queria falar de outro país. Como em Felizes Juntos, o filme de Wong Kar-Wai, em que há dois cidadãos de Hong Kong que moram em Buenos Aires, mas não falam de Buenos Aires, apenas estão lá. Com Lee sinto a mesma coisa, mas por outro lado, não queria cair em algo caricato. Fui para Seul e depois para Busan, o porto de onde sai o Melilla. Precisava ver os pescadores, ver as agências, o lugar onde Lee poderia ter morado, de quais bares ele gostava, esse tipo de coisa, e descobri que, se escrevesse de forma realista, nunca escreveria. Me dei conta de que poderia estudar coreano por sete anos e ainda não falaria como eles. Entender isso foi uma espécie de perda, mas também foi um alívio e uma resposta: faça diferente. BBC News Mundo - De onde vem o seu amor pela Coreia? Flores - Eu li muito sobre a Coreia antes de visitar e espero sempre voltar. Estudava no bairro da Recoleta, em Santiago, e tinha colegas coreanos. Vi como Patronato, uma zona de comércio de roupas, mudou quando a imigração coreana chegou. Cresci nesse lugar e depois fiquei encantada com o cinema, a música, comecei a pesquisar a história. Vi muitos paralelos com o Chile, porque eles também haviam sido fortemente impelidos ao neoliberalismo na década de 1990, e ambos os países tiveram uma forte ditadura até o início dessa década. E para mim tem o Pacífico e as questões românticas também, como o que Marcela diz a Lee: 'Somos ilhéus'. Eles são uma península, mas com vista para o Pacífico e a Coreia do Norte, que é uma fronteira. É como ver o Chile entre o mar e a cordilheira. Esse tipo de coisa. BBC News Mundo - Por que Miguel e Marcela decidiram proteger Lee? Flores - Eles encontram alguém que precisava e o ajudam, mas na verdade estão ajudando a si mesmos. O Miguel já fugiu há muito tempo, tem mais experiência nisso. Marcela tem quase 30 anos e quer resolver as coisas com o pai. Ela também está sofrendo por amor; tentando esquecer alguém, está tentando esquecer de si mesma. Não para de falar dela, é obcecada, super egocêntrica, individualista, neurótica e é muito bom para ela estar com um coreano que não entende nem a metade, porque ele não pode julgá-la. E sabemos sobre a fuga de Lee pelo o que eles estão pensando dele. BBC News Mundo - Marcela explica sua separação dizendo que precisava de mais sexo e que seu parceiro, Diego, ficou na defensiva. Isso acontece quando a mulher tem mais desejo? Flores - Eu não queria que nada fosse como deveria ser na Marcela. Ela é infiel, viciada em cocaína, superconfiante, meio deusa. Em algum momento, acredita ser Don Draper (o protagonista da série Mad Men). Se espera que o homem esteja cheio de desejo — e não é nada disso. O desejo se dá de maneiras diferentes para cada pessoa e dependendo de com quem se relaciona. Mas eu queria que ela fosse muito sexual, desejosa e que quebrasse esse clichê. Não estou dizendo que seja certo ou errado, mas queria que ela fosse assim. BBC News Mundo - Afinal se paga um preço, a mulher é punida por ser como "um homem infiel"? Flores - Não queria que ela fosse a vítima, mas a algoz em algum momento. Também agora, com as relações abertas, acho que a infidelidade perdeu peso, pois não é mais tão importante. BBC News Mundo - Como está a questão do relacionamento aberto e do poliamor entre pessoas de 30 anos como Marcela e você? Flores - Para mim, está muito bem, mas sinto que estou me movendo em uma bolha. Todos os relacionamentos de amigos ou pessoas que me cercam são assim e funciona muito bem. Em relações abertas ou de poliamor, cada relacionamento tem sua própria maneira de ser. E há muito respeito, muita responsabilidade emocional. As coisas são faladas mesmo que seja difícil. Trata-se de ser mais sincero, para não fazer ninguém sofrer, tudo pode ser discutido, absolutamente tudo. E as pessoas tentam ficar bem, se divertir, ser felizes, não ficar tristes, não brigar. BBC News Mundo - Funciona melhor do que a monogamia? Flores - Funciona para mim, mas provavelmente não para outras pessoas, depende da sua história, das coisas pelas quais você passou. Isso me dá a sensação de que, geracionalmente, há um rastro que se pode seguir e muito está sendo escrito sobre isso. Para mim, tem a ver principalmente com o fato de que a monogamia é uma invenção do patriarcado, uma forma de dominação masculina sobre as mulheres. Entender isso me fez querer nunca mais participar dessa forma de expressão de amor. BBC News Mundo - Como essa dominação se manifesta? Flores - Não sou teórica a respeito, é só uma coisa que eu penso e que me ajuda, mas te mantinham confinada em casa, você não podia estudar, não podia trabalhar, decidir. Não podia dormir com ninguém. Isolam você com a ideia de amor romântico e de casal. Fazem com que você cuide de crianças a vida toda sem poder fazer mais nada. É a história de gerações passadas, da minha avó, da minha bisavó. Não podiam se desenvolver. É por isso que a monogamia está acabando e esses discursos estão emergindo. Acho que tem uma relação direta. BBC News Mundo - Também há mais pessoas que não querem ser rotuladas em termos de identidade, isso também acontece no seu círculo? Flores - Talvez agora, como estou fora do meu país, tenha menos problemas de identidade. E ao mesmo tempo fico pensando isso o tempo todo, quem sou eu? É estranho, tem muito a ver com o espírito da época. Ontem vi uma declaração do secretário da Corporação Selkn'am, um povo nativo da Patagônia chilena, que dizia: Não posso ser quem sou porque o Estado não permite, não me reconhece. Sinto que há algo que todos nos perguntamos, não dessa forma tão dolorosa e terrível, porque felizmente o Estado ainda me reconhece, mas se fico como imigrante ilegal na Europa, talvez o Estado deixe de me reconhecer, não o meu, mas o de outro país. Talvez as palavras dele cheguem até mim por causa disso, talvez eu esteja me preparando psicologicamente. BBC News Mundo - Em um dos contos do livro Qué vergüenza, você diz: Não posso respeitar os cuicos (riquinhos) nem os europeus... Flores - Não sou eu que estou dizendo isso, um personagem diz e é uma das coisas que eu queria mudar ou melhorar. No Chile, às vezes era um pouco problemático para mim ficar tão ressentida, porque eu tinha muito ódio no coração e, no fim das contas, esse ódio só me fazia sentir mal, e a mais ninguém. Não é que eu vim para a Europa para não ficar ressentida, mas entendi que era um momento muito bom de aprendizado, estou aprendendo. BBC News Mundo - Como você explicaria o ressentimento? Flores - É uma sensação muito forte, muito intensa. É uma evidência e se repete na sua cabeça mil vezes. Como se você tivesse sido traído e não pudesse esquecer, algo assim é ficar ressentido. E você fica obcecado, mas talvez tenha a ver com não pertencer... BBC News Mundo - Ao grupo privilegiado? Flores - Claro, sim, mas ser privilegiado também é uma questão de perspectiva, eu sou para muita gente, depende de onde você se coloca ou com quem se compara. Eu diria que ficar ressentido é ser muito romântico também, um pouco vaidoso, como se você achasse que merece mais do que tem. BBC News Mundo - E o ódio no coração? Flores - São intensidades. Se há ódio, também há muito amor, por analogia. Mas não sei se é ódio, são raivas, porque no Chile as coisas são injustas, além do mais te tratam mal. Dói que as pessoas que você ama e que são brilhantes não possam estudar; tenho um primo que esteve preso recentemente no Serviço Nacional de Menores; e sua mãe trabalha tanto sem ganhar nada, são dores, injustiças. BBC News Mundo - Em suas histórias você fala também de vergonha pela origem social, vergonha de classe... Flores - Esse livro se passa nos anos 1990, quando havia a ideia de que era preciso romper com essa origem para ser melhor. Queria entender isso, de um ponto de vista crítico, compreender como as pessoas rompem seus laços familiares e amistosos ​​para, entre aspas, crescer economicamente, socialmente, mas também ver que por trás dessas decisões há muita dor, porque na pobreza e nas dificuldades econômicas sempre há muita dor.
2021-09-25
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58540269
sociedade
Em país com poligamia legal, mulher luta por direito a poliandria
Quando era mais nova, Muvumbi Ndzalama com frequência questionava a tradição da monogamia — ela se lembra de ter perguntado aos pais se eles ficariam juntos pelo resto da vida. "Eu sentia que as pessoas deveriam ser sazonais em nossas vidas", diz ela à BBC. "Mas tudo ao meu redor, do cinema à igreja local, pregava a monogamia, e nunca entendi o conceito." Agora com 33 anos, Muvumbi se identifica como uma mulher poliamorosa e pansexual que está criando um espaço seguro para pessoas não monogâmicas na África do Sul. "Tenho um 'parceiro âncora' de quem estou noiva e com quem tenho filhos, e meu outro parceiro está feliz por nós", afirma. "Ele não quer se casar... mas, no futuro, imagino um casamento com mais de uma pessoa. Como pansexual, sinto atração por pessoas, independentemente de seu gênero." A África do Sul tem uma das constituições mais liberais do mundo: permite casamentos do mesmo sexo para ambos os gêneros e poligamia para os homens. A poliandria, que permite à mulher ter mais de um marido ao mesmo tempo, não é regulamentada — e hoje está no centro de uma discussão sobre a atualização da legislação do país. A possibilidade de que tanto mulheres quanto homens possam legalmente ter mais de um parceiro dentro do casamento gerou forte reação entre setores conservadores. "Isso vai destruir a cultura africana. E os filhos dessas pessoas? Como eles vão saber sua identidade?", questionou o empresário e personalidade da TV Musa Mseleku, que tem quatro esposas. "A mulher não pode agora assumir o papel do homem. Não existe isso. Será que a mulher agora também vai pagar 'lobola' [valor que o futuro marido dá ao chefe da família da noiva] pelo homem? Espera-se que o homem use seu sobrenome?" Outros, como o líder do opositor Partido Democrata Cristão Africano (ACDP), reverendo Kenneth Meshoe, disseram que a medida "destruiria a sociedade". "Chegará um momento em que um dos homens dirá: 'Você passa a maior parte do tempo com aquele homem e não comigo'. E haverá conflito entre os dois homens", completou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A reação fez Muvumbi perceber que este é um momento crucial para mulheres em relacionamentos poliamorosos. "A situação atual é tensa — muitas crenças estão sendo abaladas", pontua. "Os homens têm sido abertamente polígamos ou poliamorosos há gerações, mas as mulheres são tratadas como se devessem sentir vergonha quando estão na mesma situação. Há muito ainda que 'desaprender' nesse sentido." Ela é abertamente adepta do poliamor há mais de dez anos. Ser "poli" significa poder estar em mais de um relacionamento, com total apoio e confiança de todos os parceiros envolvidos. Atualmente, tem dois parceiros homens — um "parceiro-âncora", de quem está noiva e com quem compartilha também a vida financeira, e um "parceiro da alegria", de quem recebe prazer sexual ou romântico, mas se encontra com menos frequência. "Nós praticamos [um estilo chamado] poliamor de mesa, que consiste em conhecer os parceiros uns dos outros", diz ela. "Não precisamos necessariamente nos dar bem, mas quero que essa abertura seja muito comunitária." No início, ela tinha dúvidas se deveria contar à sua família, mas decidiu dividir com eles cerca de cinco anos atrás, quando o vínculo com seu parceiro-âncora, Mzu Nyamekela Nhlabatsi, se estreitou. "Meu parceiro-âncora também é poli, e eu não queria que minha família pudesse esbarrar com ele em um local público com outra pessoa e ficar confusa." "Foi também a época em que nossa filha estava fazendo cinco anos e eu estava começando meu ativismo. Eu aparecia na televisão local fazendo campanha pela poliandria e não queria que eles descobrissem de outra fonte que não eu", completa. Ela diz ter encontrado alguma aceitação entre os familiares, mas ressalta que o caminho pela frente é longo. E cita o exemplo recente de seu noivado, quando o parceiro-âncora resolveu seguir a tradição do lobola, em que o homem paga uma quantia em dinheiro ou em bens à família de sua futura esposa. "Eles me perguntaram se outro homem em algum momento poderia aparecer e pagar o 'preço da noiva', e eu lhes disse que isso poderia acontecer sim." "Preciso viver minha verdade, quer eles concordem com ela ou não." Ativistas fazem campanha pela legalização da poliandria na África do Sul argumentando a igualdade entre os gêneros, já que a lei já permite que um homem tenha mais de uma esposa. A proposta foi incluída em um documento que o governo divulgou e abriu para comentários no contexto da maior revisão da legislação sobre casamento desde o fim do governo da minoria branca em 1994. O documento também propõe dar reconhecimento legal aos casamentos de muçulmanos, hindus, judeus e rastafáris, atualmente considerados inválidos. Muvumbi diz que a proposta é "como uma prece atendida". Para ela, as preocupações que emergiram em torno da poliandria têm raízes no patriarcado. O professor Collis Machoko, renomado acadêmico no tema da poliandria, vê da mesma forma. "Com a chegada do cristianismo e da colonização, o papel da mulher foi reduzido. Elas passam a não ser mais iguais. O casamento passou a ser uma das ferramentas utilizadas para estabelecer uma hierarquia." Ele afirma que a poliandria já foi praticada no Quênia, na República Democrática do Congo e na Nigéria, e ainda é praticada no Gabão, onde a lei permite. "A questão dos filhos é fácil. Os filhos dessa união são filhos da família", acrescenta. Muvumbi percebeu que os valores patriarcais estavam permeando alguns de seus relacionamentos anteriores e, desde então, achou mais fácil estar com parceiros que são adeptos do poliamor também. "Muitos homens diziam que não viam problema no fato de eu ser 'poli', mas uma hora ou outra acabavam não aceitando", recorda. "Meu tipo de poliamor não é aquele em que tento ter o máximo de amantes possível. Trata-se de explorar uma conexão com alguém, caso você sinta isso." Ela conheceu seus dois parceiros por meio de um grupo na internet que visa reunir pessoas "poli" na África do Sul. Enquanto o país debate o reconhecimento legal da poliandria, ela está construindo uma plataforma online chamada Open Love Africa em colaboração com seu parceiro-âncora. Um de seus objetivos é pregar a "não monogamia ética". "A comunidade é pró-negros, mas não deixa de ser inclusiva. Esperamos expandi-la conforme avançamos." "É um presente para pessoas que são felizes sendo não monogâmicas — espero que eles encontrem sua tribo e não sintam a necessidade de viver uma mentira." E como em qualquer outra luta, acrescenta, sempre haverá pessoas do lado oposto. "Quando minha mãe estava grávida de mim, ela protestou para que as mulheres pudessem ter acesso a anticoncepcionais sem o consentimento de um homem. Foi uma luta diferente naquela época, e é uma luta diferente para mim agora." Colaborou Pumza Fihlani
2021-09-21
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58587495
sociedade
Por que fofocar no trabalho pode ser bom para você e para as empresas
Há muitas coisas que nos fazem ter saudades de trabalhar do escritório: café grátis, ar condicionado, uma desculpa para usar algo diferente de calça de moletom. Mas são as pessoas — e nossas conversas com elas — de que certamente podemos sentir mais falta. Se Maria está de novo de licença maternidade, se a geladeira está cheia de comida velha e mofada de Joana, se o help desk da TI está mais lento do que nunca e como o chefe deu ao seu maior concorrente e não a você aquele aumento de salário. Em outras palavras: fofoca. Embora algumas fofocas possam ser mesquinhas e pouco profissionais, outros tipos podem ser divertidos, normais, até saudáveis ​​e produtivas. Especialistas dizem que falar sobre os outros pelas costas não precisa ser necessariamente um 'passatempo criminoso' de escritório — às vezes se trata de uma ferramenta útil para navegar no local de trabalho e aprender informações importantes. "Acho que, em geral, a fofoca é uma coisa boa", diz Elena Martinescu, pesquisadora associada da Universidade Livre de Amsterdã, na Holanda, que estudou extensivamente a psicologia da fofoca. "De acordo com a teoria da evolução, os humanos desenvolveram a fofoca para facilitar a cooperação em um grupo." Ao falar sobre outras pessoas, podemos aprender com quem colaborar e de quem ficar longe, algo que ajuda um grupo a trabalhar melhor em conjunto. Esse comportamento arraigado se traduz no ambiente de trabalho moderno, diz ela, "onde é igualmente importante saber em quais colegas podemos confiar e com quem devemos ter cuidado". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Matthew Feinberg, professor de administração da Universidade de Toronto, no Canadá, que também estudou a fofoca, ressalta que existem diferentes tipos dela. "Quando a fofoca tem o intuito apenas de inferiorizar — por exemplo, comentar sobre a aparência de alguém — claro que isso não serve a propósito nenhum e, portanto, é negativo, prejudicial e problemático." Mas o estudo mostra que a maioria das fofocas é bastante benigna. Um estudo de 2019, por exemplo, mostrou que quando os pesquisadores gravaram conversas de cerca de 500 participantes, a grande maioria — mais de três quartos — das conversas não foi positiva ou negativa, mas neutra. Podem ser informações banais que se espalham pelo boato, como "Ouvi dizer que a filha da Maria está se formando em marketing" ou "Pedro está de férias em Fernando de Noronha". Portanto, embora o mesmo estudo tenha mostrado que fofocamos muito — uma média de 52 minutos por dia, na verdade — o conteúdo não é tão obsceno quanto supomos. "É equivocado encarar a fofoca como algo sempre negativo, como falar mal de alguém pelas costas. Mas as pesquisas sugerem que a principal razão pela qual as pessoas fazem isso é porque elas realmente querem dar sentido ao seu ambiente", diz Shannon Taylor, professora de administração da University of Central Florida (UCF), EUA, que estuda a dinâmica do local de trabalho. A fofoca pode "validar nossas emoções" e nos fazer descobrir os valores de outras pessoas, argumenta ela. Neste sentido, isso nos ajuda a ter certeza de que a maneira como estamos "percebendo o mundo é parecida à de outros colegas de trabalho. É realmente uma questão de coleta de informações." Portanto, se alguém no escritório disser algo como "Roberto está faltando muito por estar doente", isso pode abrir a porta para que outras pessoas compartilhem seus julgamentos e avaliações — nesse caso, de que as faltas do Roberto possam ser responsáveis por seu mau desempenho no trabalho. Dessa forma, isso pode, em última análise, ajudá-lo a avaliar o quanto a licença médica é considerada "apropriada" entre seus colegas (independentemente da política formal da empresa), bem como quem é empático ou mesquinho em relação ao seu alegado problema de saúde. "Ao perguntar a outro colega: 'Você acredita que o funcionário X tirou tantos dias de licença médica?', o funcionário fofoqueiro está tentando julgar ou avaliar, pela reação do destinatário da fofoca, se o comportamento de X é aceitável ou não", diz Taylor. Mas a fofoca não consiste apenas na coleta de informações. Ouvir fofocas sobre colegas também pode nos tornar mais auto-reflexivos, enquanto ser o assunto de uma fofoca pode fazer com que as pessoas mudem seu comportamento. Em um estudo de 2014, Martinescu e seus colegas pediram aos participantes que preenchessem questionários sobre incidentes que envolviam ouvir fofocas negativas e lisonjeiras sobre outras pessoas. Os pesquisadores descobriram que, embora a fofoca negativa fizesse o ouvinte se sentir superior à pessoa de quem fofocavam, aumentando assim sua auto-estima, também fazia com que ele se sentisse mais vulnerável a receber um tratamento semelhante. Ou seja, quem faz fofoca pode ser alvo de fofoca, também. Por outro lado, ouvir fofocas lisonjeiras deu aos ouvintes ideias sobre como melhorar seu próprio comportamento no ambiente de trabalho, para poderem ser mais parecidos com a pessoa de quem fofocam. Na mesma linha, Feinberg diz que uma das vantagens das fofocas de escritório é "manter indivíduos egoístas e imorais sob controle". Em um estudo de 2014, ele e sua equipe descobriram que "indivíduos que se comportaram de maneira egoísta ou imoral eram muito mais propensos a serem alvos de fofoca para que todos os outros colegas soubessem sobre seu verdadeiro comportamento", diz ele. "Como resultado, os destinatários dessa fofoca eram mais propensos a evitar interagir com eles; os destinatários muitas vezes os rejeitavam. " Mais tarde, os pesquisadores descobriram que "aqueles que foram condenados ao ostracismo começaram a mudar seus comportamentos para serem aceitos novamente no grupo, e (também que), em geral, as pessoas tornaram-se mais cooperativas umas com as outras — presumivelmente porque ninguém quer se sentir isolado". A fofoca — uma prática que um artigo de 2017 chamou de "uma parte essencial de qualquer processo de trabalho" — pode ser particularmente relevante agora como um mecanismo de defesa que estamos usando para controlar a ansiedade durante a pandemia de covid-19. Embora não possamos estar reunidos na copa para sussurrar boatos escandalosos uns para os outros, temos aplicativos de mensagens, como o WhatsApp, como canais alternativos de trabalho remoto. "A fofoca é muito movida pela incerteza", diz Taylor. "Não ficaria surpresa se víssemos níveis mais altos de fofoca no local de trabalho agora do que víamos antes da covid. Com todas essas incertezas, estamos tentando descobrir o que outras pessoas estão pensando e o que outras pessoas estão fazendo. " Isso significa que, neste momento, a fofoca pode ser sobre descobrir se seus colegas estão procurando um novo emprego em um lugar que permitirá arranjos mais flexíveis de trabalho em casa, ou consultar outros pais sobre problemas nas creches e escolas. Ao fazer isso, você está tentando verificar quais informações estão disponíveis em meio a circunstâncias que mudam rapidamente, bem como quem está no mesmo barco que você. Às vezes, porém, a fofoca é apenas uma catarse desenfreada sobre pessoas ou estruturas de que você não gosta. Talvez seja o chefe tirânico que lidera com mão de ferro ou o colega procrastinador. No entanto, dizem especialistas, essa fofoca ainda pode fornecer uma rede de observações e alertas que fornecem uma infraestrutura informal de suporte fora dos canais tradicionais de trabalho, como o RH. "A fofoca pode alertar as pessoas sobre outras pessoas perigosas e também ajuda a construir laços sociais entre as pessoas que fofocam", diz Martinescu. "Com o tempo, a fofoca pode ajudar as pessoas a perceberem que compartilham valores e experiências, o que pode ajudar a aproximá-las." Considerando que a fofoca existe desde muito antes da pandemia, sobreviveu durante ela e viverá para sempre depois dela, não devemos nos sentir culpados por nossa necessidade regular de discutir a vida de outras pessoas. Isso pode servir a propósitos práticos e positivos — desde que não seja algo malicioso.
2021-09-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58560702
sociedade
Por que os EUA estão passando pela 'maior transferência de renda entre gerações' da história
As estimativas variam, mas todos concordam que é muito, muito dinheiro. Nas próximas duas décadas, os Estados Unidos testemunharão o que é visto como "a maior transferência de riqueza da história" entre gerações. Durante esse período, os membros da geração conhecida como baby boomers — que agora têm entre 57 a 75 anos, aproximadamente — passarão seu patrimônio para seus descendentes à medida que envelhecem e morrem. É um processo natural que ocorre em todas as gerações, mas que neste caso tem uma particularidade: a enorme quantidade de dinheiro em jogo. De 2018 a 2042, cerca de US$ 70 trilhões vão mudar de mãos, segundo cálculos da consultoria Cerulli Associates. Herdeiros devem receber cerca de US$ 61 trilhões, enquanto o restante será convertido em doações. Acredita-se que essa transferência envolverá 45 milhões de famílias americanas. Mas o que torna possível essa transferência massiva de recursos? Nascidos após o fim da Segunda Guerra Mundial, os baby boomers se beneficiaram de uma economia em constante crescimento, taxas de impostos mais baixas para as famílias mais ricas e do notável aumento no valor dos imóveis e investimentos em ações. Essas condições também favoreceram parcialmente a chamada "geração silenciosa" (à qual pertence o presidente Joe Biden, formada por nascidos entre as décadas de 1920 e 1940), que atualmente representa apenas 6% da população do país e acumula 32% da riqueza que os bilionários possuem nos Estados Unidos. segundo o levantamento Índice de Poder Geracional de 2021 da empresa Visual Capitalist. Os boomers, por sua vez, são a geração que concentra a maior parte do poder econômico do país (43%) e à qual pertencem os presidentes de 72% das empresas que compõem o índice S&P 500, que reúne as 500 maiores companhias com ações negociadas em bolsa no país. Eles cresceram em um contexto econômico muito favorável em que diplomas universitários eram obtidos sem necessidade de se contrair grandes dívidas; os empregos tinham maior proteção e havia um mercado imobiliário mais acessível. Essas condições permitiram que eles prosperassem e construíssem um patrimônio que continuou a crescer ao longo do tempo. Chayce Horton, analista da Cerulli Associates e especialista na área de administração de grandes fortunas, observa que essa geração aposentada é a "mais rica da história dos Estados Unidos". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora a transferência de riqueza já esteja em andamento, Horton adverte que atualmente "apenas" cerca de US$ 1 trilhão está mudando de mãos a cada ano com esse processo. "Nosso modelo prevê que a maior parte da transferência de riqueza ocorrerá na parte final desses 25 anos. Acreditamos que o repasse de até 70% dos US$ 70 trilhões vai ocorrer entre 2032 e 2042", afirma. É, portanto, um processo gradual. Mas isso não quer dizer, entretanto, que seu impacto não será sentido em breve. "A principal mensagem para as empresas de gestão de patrimônio é que haverá um boom de investimentos com que levam em consideração as questões ambientais, de responsabilidade social e boa governança (ESG)", diz Horton. O especialista explica que 79% dos membros da geração milênio e 57% dos membros da geração X — que serão os herdeiros primordiais dos baby boomers — dizem que prefeririam investir em empresas com um perfil ESG positivo, enquanto apenas 37% dos boomers consideram isso importante. Horton acrescenta que isso significa que nos próximos 25 anos haverá preferências por diferentes produtos de investimento, especialmente entre famílias mais ricas que desejam usar sua riqueza para gerar um impacto positivo no mundo. No entanto, isso não vai acontecer tão cedo. De acordo com projeções da Cerulli Associates, 44% dos recursos que mudarão de mãos irão para famílias chefiadas por membros da geração X — que têm hoje entre 40 e 60 anos —, enquanto 32% irão para a geração millennial. "A maior parte dessas transferências para os millennials não acontecerá até os estágios finais, especialmente entre o final dos anos 2030 e o início dos anos 2040, então não é algo pelo qual eles devam ficar esperando", diz Horton. "Isso pode ser potencialmente benéfico, mas não posso dizer que vai curar todo o sofrimento pelo qual eles estão passando atualmente."
2021-09-18
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58545770
sociedade
'Salvei milhares de mulheres de casamentos como o meu'
Agnes Sithole tornou-se uma heroína inesperada para centenas de milhares de mulheres negras na África do Sul. Aos 72 anos de idade, ela levou seu marido à justiça para impedir que ele vendesse a casa da família contra a vontade dela - e enfrentou no processo leis de décadas atrás, do tempo do apartheid, para defender o que era dela por direito. Analisando retrospectivamente, Agnes Sithole sabia que seu casamento seria difícil. Ela se casou com Gideon, seu namorado do ensino médio, em 1972, mas rapidamente se viu fechando os olhos para o que se transformaria em décadas de infidelidade. "Ele sempre estava começando e terminando diferentes relacionamentos, mas isso nunca me afetou, até que, entre 2016 e 2017, ele quis vender todos os nossos bens", afirma ela. "A resposta dele era sempre a mesma - que era a sua casa, sua propriedade, e eu não tinha nada." Ameaçada com a perda de sua casa, Agnes decidiu em 2019 lutar contra seu marido nos tribunais sul-africanos, uma medida extremamente incomum para uma mulher negra da sua geração. "Eu tinha 72 anos de idade na época - para onde eu iria e onde começar? Minha única opção era lutar para não ficar nas ruas na minha idade", ela conta. "Acho que a necessidade me deu coragem. Se não houvesse necessidade, talvez eu não tivesse feito. Eu tinha que dizer não." Agnes se casou em uma época em que a África do Sul era dirigida pela minoria branca e os casais negros se casavam automaticamente em um sistema chamado de "separação de bens", mas que dava todos os direitos de propriedade aos homens. "Naquela época, as mulheres não tinham escolha - era casar-se com separação de bens ou não se casar", explica Agnes. Uma alteração da Lei de Propriedade Matrimonial em 1988 permitiu que os casais negros alterassem o seu regime de casamento para "comunhão de bens" - o que deu direitos de propriedade iguais às mulheres. Mas isso não era automático. As mulheres negras precisavam do consentimento dos seus maridos, pagar uma petição e dar entrada dentro de um período de dois anos. "Nós sabíamos que a lei havia mudado e achávamos que era para todas", relembra Agnes. "[Mais tarde], quando percebi que a lei havia me enganado, foi que percebi que teria que brigar por isso." Agnes nasceu em Vryheid, uma pequena cidade de mineiros de carvão no norte de KwaZulu-Natal. Em todo o país, havia uma clara divisão econômica entre as raças na década de 1940. O pai de Agnes limpava trens para a ferrovia sul-africana e fazia "chá para os seus chefes brancos no escritório". A mãe era a "garota da cozinha", que lavava, limpava e cozinhava para "famílias brancas privilegiadas". "Nasci entre os mais pobres dos pobres, meus pais eram trabalhadores. Eles deram um ótimo exemplo para nós", conta Agnes. "Nós costumávamos ir à igreja todo fim de semana. Quando cresci, na verdade, os católicos não tinham permissão para o divórcio, mesmo se eu visse que algo não andava bem", agrega ela. "Eu não queria me casar de novo, nem que meus filhos crescessem sem os dois pais em casa - e é tudo o que eu sabia." Apesar dos desafios, Agnes viu seus pais lutarem para ficar juntos e ver a luta deles fez com que ela decidisse que teria uma vida melhor. Ela recebeu treinamento como enfermeira antes de se casar com Gideon. Mais tarde, ela começou a vender roupas de casa e trabalhou em uma série de empregos para atingir seus objetivos. "Logo descobri que eu estava sozinha, porque meu marido entrava e saía das nossas vidas", conta Agnes, que teve quatro filhos com ele. "Eu chegava em casa do trabalho e começava a costurar, comprar e vender roupas. Eu fazia muitas coisas ao mesmo tempo porque estava decidida a levar meus filhos para a escola", continua ela. "Sou aventureira por natureza, tive aventuras toda a minha vida. Em vez de procurar alguém para fazer as coisas para mim, eu fazia sozinha." Para Agnes, a deterioração do casamento ficou clara cerca de nove anos atrás. Uma noite, depois de chegar do trabalho, ela descobriu que Gideon havia se mudado para o quarto ao lado sem explicação. O casal continuou a viver sob o mesmo teto, mas levava vidas completamente separadas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Nós nos encontrávamos no corredor, na escada ou no estacionamento sem dizer uma palavra", relembra ela. Agnes conta que Gideon nunca falou com ela sobre seus planos de vender a casa e "foi um choque ver pessoas desconhecidas entrarem na minha casa para olhar". Percebendo que poderia acabar sem ter onde morar, no início de 2019 ela deu entrada em uma ação acusando abuso financeiro - argumentando que ela havia contribuído igualmente com a construção da sua família e dos bens compartilhados. Dois anos mais tarde, o Tribunal Constitucional da África do Sul confirmou uma decisão anterior da Corte Suprema de que as leis vigentes haviam discriminado os casais negros e, particularmente, as mulheres negras. Foi decidido que todos os casamentos anteriores a 1988 seriam alterados para o regime de "comunhão de bens" - dando às mulheres os mesmos direitos de propriedade. Agnes e sua filha mais nova assistiram ao veredito online do seu quarto. No início, ela não percebeu que havia ganhado a causa até que o seu advogado telefonou. "Nós não conseguíamos entender o que estava acontecendo devido ao jargão [jurídico]", conta ela. "Nós não tínhamos ideia todo o tempo. Eu tinha um nó no estômago, estava assustada, mas tinha fé." "Chorei lágrimas de alegria. Percebi que nós havíamos salvado milhares de mulheres em casamentos similares ao meu", afirma Agnes. Agnes conta que deve seu espírito lutador aos muitos desafios que teve que enfrentar sozinha. "É a minha personalidade, quem eu sou e como faço as coisas, quero ser autoconfiante de todas as formas", prossegue. "Sem dúvida, é algo raro na nossa cultura e entre as mulheres da minha geração." "Para mim, ter vencido a causa é uma das melhores coisas que já me aconteceram." Agnes conseguiu até perdoar Gideon, que morreu de covid-19 durante o processo judicial. Dois dias antes da sua morte, ele pediu desculpas à esposa e às filhas pela forma como as coisas se sucederam. Agnes depois descobriu que ela não só havia sido excluída do testamento dele, mas que ele havia deixado a casa do casal para outra pessoa. Mas a decisão judicial prevaleceu sobre o testamento. "Nós o perdoamos e estou em paz. Não me arrependo de nada e, o mais importante, cumpri com meu casamento [até o final]", afirma Agnes. "Eu não queria nada que fosse dele, mas ele queria tomar tudo, incluindo o que ganhei com meu trabalho, e isso eu não queria."
2021-09-16
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58469400
sociedade
O advogado que diz ter encomendado a própria morte para filho receber seguro
O proeminente advogado americano Alex Murdaugh tramou sua própria morte para que seu filho pudesse receber US$ 10 milhões (R$ 52 milhões) em seguro de vida, diz a polícia. A defesa agora confirma que Murdaugh contratou um assassino de aluguel para atirar nele, na expectativa de que seu filho sobrevivente pudesse receber os recursos do seguro. O incidente ocorre apenas três meses depois que a esposa de Murdaugh e outro filho foram encontrados mortos a tiros, a última reviravolta em uma série de tragédias e escândalos que atormentam a família. Confira abaixo o que se sabe sobre o caso. Alex Murdaugh, de 53 anos, é descendente de uma família bem relacionada e com histórico na área de Direito no estado da Carolina do Sul, nos Estados Unidos. Ao longo de três gerações, seu bisavô, avô e pai serviram como o principal promotor de uma região de cinco condados no estado. Em junho, a esposa de Murdaugh, Margaret, de 52 anos, e o filho Paul, de 22 anos, foram encontrados assassinados perto de sua casa. No momento de sua morte, Paul também enfrentava acusações criminais decorrentes de um incidente de 2019 no qual as autoridades dizem que ele, embriagado, causou um acidente de barco que deixou uma mulher morta. Murdaugh foi baleado no início de setembro. Nenhuma prisão foi feita no incidente, que ocorreu um dia depois que Murdaugh se demitiu de seu escritório de advocacia. O escritório de advocacia mais tarde alegou que ele desviou fundos - que ele teria usado principalmente para financiar um vício em opioide, segundo seu advogado. Murdaugh deu entrada em uma clínica de reabilitação dias após ser baleado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Murdaugh foi encontrado com ferimentos "superficiais" na cabeça depois de ser baleado em uma estrada em 4 de setembro. Originalmente, os advogados de Murdaugh alegaram que ele estava trocando um pneu quando um agressor não identificado atirou nele. Ele recebeu alta do hospital dois dias depois. Agora, a polícia alega — e os advogados de Murdaugh admitem — que ele contratou um assassino de aluguel para atirar nele para que seu filho sobrevivente pudesse receber o dinheiro do seguro. O atirador, um ex-cliente de 61 anos chamado Curtis Edward Smith, agora enfrenta uma série de acusações criminais, incluindo conspiração para cometer fraude de seguro, agressão e espancamento, suicídio assistido e porte de drogas. Smith se declarou culpado. Embora Murdaugh não tenha sido acusado de cometer crimes, a polícia diz que acusações adicionais são esperadas. O advogado de Murdaugh disse na quarta-feira que ele elaborou o plano na crença errônea de que seu filho não seria capaz de receber o dinheiro do seguro se ele tirasse a própria vida. "Ele ligou para esse cara (Smith, que o encontrou na beira da estrada e concordou em atirar em sua cabeça", disse o advogado Dick Harpootlian à emissora americana NBC. "Foi uma tentativa, da parte dele, de fazer algo para proteger seu filho." Harpootlian acrescentou que Murdaugh está cooperando com as autoridades e não queria que um "crime falso" os distraísse enquanto investigavam o assassinato de sua esposa e filho. A polícia não acusou ninguém pelo assassinato de Paul e Margaret Murdaugh em junho e não sugeriu que Murdaugh esteja envolvido. Em declarações ao programa Morning da NBC na quarta-feira, Harpootlian negou que Murdaugh tenha algo a ver com suas mortes. "Ele está totalmente perturbado", disse Harpootlian. "Ele não os matou." O caso Murdaugh também levou a polícia a abrir uma investigação sobre a morte de Stephen Smith em 2015, um jovem de 19 anos encontrado morto no mesmo condado, a menos de 16 quilômetros de distância. Sua morte foi inicialmente considerada por arma de fogo, mas depois classificada como um provável atropelamento. A polícia não disse quais informações foram recuperadas durante a investigação de Murdaugh que os levou a investigar o caso Smith. A polícia não fez comentários sobre os possíveis suspeitos das mortes de Paul e Margaret em junho. Após os assassinatos, os irmãos de Murdaugh, Randy e John, disseram não saber se a família tinha inimigos, embora alegassem que Paul havia recebido ameaças. Na quarta-feira, o advogado de Murdaugh disse que ele não sabe quem matou sua família. No entanto, Harpootlian acrescentou que está investigando "um indivíduo, ou indivíduos, que acreditamos ter alguma culpabilidade ou tê-lo feito". "Achamos que saberemos esta semana se o suspeito que estamos analisando precisa de um exame mais minucioso", disse o advogado. "Vamos disponibilizar essa informação para as autoridades policiais". Embora tenha se recusado a dar mais detalhes, o advogado disse que o "motivo seria pessoal".
2021-09-16
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58582206
sociedade
Paralimpíada: 'Precisamos naturalizar a deficiência e não só de 4 em 4 anos'
O combate à discriminação contra pessoas com deficiência ganha força durante Jogos Paralimpícos, mas é necessário que a discussão sobre a inclusão delas — desde a infância — não termine junto com o evento, alertam influenciadoras ouvidas pela BBC News Brasil. Os depoimentos delas sobre a forma como as pessoas com deficiência são encaradas pela sociedade têm em comum o diagnóstico de que é um tratamento "oito ou oitenta", nas palavras da criadora de conteúdo e mestre em políticas públicas Mariana Torquato, ou uma questão de "subestima ou superestima", nos termos da estudante de jornalismo e influenciadora Ana Clara Moniz. "Somos coitadinhos ou heróis", diz Torquato, que tem 29 anos e nasceu sem o antebraço esquerdo. "O que a sociedade não consegue entender é que somos gente como qualquer outra pessoa." Moniz, de 21 anos, usa o próprio exemplo — ela é cadeirante e tem uma doença neuromuscular chamada atrofia muscular espinhal (AME) — em sua argumentação: "As pessoas costumam me colocar num pedestal, me dar parabéns, simplesmente por eu estar bebendo cerveja no bar, sendo que eu só estou sendo uma universitária", diz ela (que em seguida esclarece que interrompeu as idas ao bar devido à pandemia). Torquato, que é criadora do canal no YouTube 'Vai uma mãozinha aí?', que tem mais de 160 mil inscritos, diz que é desafiador explicar isso para quem não sente na pele o preconceito. "Se uma pessoa chegar para você e falar: 'nossa, você é uma inspiração para mim', você vai achar isso bom, porque você não escuta isso simplesmente por cortar uma cebola. Provavelmente estará fazendo alguma coisa massa." O capacitismo, Torquato diz, "é um preconceito que se disfarça de cuidado, admiração, inspiração e elogio". "Não é uma coisa gostosa ouvir que você é uma inspiração para outra pessoa dar valor ao corpo dela. Se ela não dá valor ao corpo dela, o problema é dela. Ela não precisa olhar meu corpo — que ela acha que é imperfeito, que ela acha que tá errado, que ela acha que é inferior ao dela — para se contentar com o corpo dela." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Moniz diz que é a falta de conhecimento que faz muita gente não ver pessoas com deficiência como capazes. "A grande maioria das pessoas que são capacitistas, é por falta de conhecimento. É ignorância no sentido de não procurar saber e não se interessar." Ela defende que falta espaço para o tema nos meios de comunicação e que faltam pessoas com deficiência realmente incluídas nas mais diversas áreas do mercado de trabalho. É também por isso que tanto Moniz quanto Torquato argumentam que a inclusão de pessoas com deficiência deve vir desde a infância, na escola. A preocupação do governo, na avaliação das entrevistadas, deveria ser em melhorar o atendimento nas escolas regulares. "A inclusão que a gente viu atualmente no Brasil não é perfeita, até porque a gente tem pouca experiência em inclusão. A gente precisa de curso, de capacitação, de segundo professor, de monitoria, de coisas que a gente não vê em todas as escolas, e de reformas para acessibilidade", diz Torquato. Moniz conta que estudou durante 14 anos em uma escola regular, onde teve uma experiência que considera muito positiva — depois de ter sido negada em outras duas instituições de ensino. "Os amigos que estudaram comigo, hoje são, por exemplo, engenheiros que pensam em acessibilidade porque viveram comigo vários momentos, como em excursão de escola que eu não conseguia participar porque chegava lá e não conseguia entrar nos lugares porque não tinha escada e todo mundo ficava muito indignado com isso", diz. "Quando a gente não tem esse contato, muitas vezes a gente deixa isso passar." E resume: "A gente luta para que existam adaptações nas escolas regulares e não para que separem a gente. Inclusão não é segregação." Na batalha para normalizar as pessoas com deficiência, Moniz e Torquato dizem que as Paralimpíadas são de grande importância — apesar de destacarem que ainda falta investimento em atletas paralímpicos e em maior cobertura dos jogos. Foi exatamente em resposta à falta de visibilidade da Paralimpíada em relação à Olimpíada que Moniz, que conclui a graduação em jornalismo neste ano, decidiu cobrir o evento pelo próprio Instagram — onde conta com mais de 50 mil seguidores e apresenta de quadro de medalhas a depoimentos exclusivos de atletas que estão em Tóquio. "Não que eu resolva o problema dessa falta de visibilidade — nem chego perto disso —, mas queria falar sobre, me dedicar a assistir e entender o que está acontecendo", diz ela, que colocou como meta cobrir a Paralimpíada de Paris, em 2024, depois de assistir ao documentário Pódio para Todos (Netflix). Torquato diz que assistir a uma competição com "pessoas com corpos parecidas com o meu é uma coisa que enche meu coração de amor, alegria e representatividade". Mas alerta: "Paralimpíada é incrível, a gente só tem que tomar cuidado com essa representatividade que só acontece de quatro em quatro anos. Precisamos naturalizar a deficiência — e não só de quatro em quatro anos." E Moniz lembra que mesmo os atletas paralímpicos enfrentam problemas da falta de acessibilidade e do capacitismo no dia a dia. "Eles têm que brigar numa vaga de deficiente, têm que brigar num restaurante que só tem escada, têm que brigar numa loja que eles têm que entrar. Não é como se as medalhas fossem resolver tudo", diz. "Não estou diminuindo as medalhas, mas as Paralimpíadas não resolvem o que a gente tá lutando todos os dias pra falar."
2021-09-03
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58420344
sociedade
Solteiras não estão condenadas à infelicidade, diz autora de 'O Fim do Amor'
O amor romântico como conhecemos, ou acreditamos conhecer, chegou ao fim? Certamente as relações amorosas experimentaram uma mudança profunda no último século na sociedade ocidental. O matrimônio para toda a vida ou a monogamia já não são considerados objetivos para muitos. E papéis delegados à mulher têm sido questionados cada vez mais, como a maternidade vista como obrigação ou estigmas sobre as solteiras, mas ainda têm um peso importante para outros na sociedade. A BBC News Mundo, serviço em língua espanhola da BBC, conversou sobre esse e outros temas acerca das relações afetivas ou sexuais com a escritora argentina Tamara Tenenbaum, formada em Filosofia, autora do livro "El fin del amor. Amar y follar en el siglo 21" (em tradução literal, "O fim do amor. Amar e transar no século 21"). Abaixo, confira a entrevista da BBC Mundo com a escritora, durante o Hay Festival Digital Querétaro, evento anual que celebra as artes e a ciência. BBC News Mundo: O amor chegou ao fim? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Tamara Tenenbaum: Para algumas pessoas é o fim do amor romântico, para outras é o fim de um tipo de vínculo, mas há uma sensação de estarmos vivendo uma mudança de época, ainda que não esteja claro o fim ou o princípio de quê. Claro, não é o sentido literal de que o amor acabou ou de que as relações amorosas terminaram. Mas é um sinal de que certos paradigmas estão entrando em crise, como sobre o que é o amor e o papel que ele deve desempenhar, acima de tudo, na vida das mulheres. BBC News Mundo: A vida está cheia de regras invisíveis sobre amor e sexo que não entendemos e que nunca iremos entender? Tenenbaum: Não acredito que sejam apenas regras. Acho que há muitas outras coisas, como os desejos. São coisas invisíveis e difíceis de entender, mas existem regras nos vínculos afetivos das quais pouco falamos. Estamos em um momento em que muitas coisas que antes dávamos como entendidas agora notamos que não estão tão boas. Isso acontece com as regras do sexo e do afeto, que não estão escritas. Não creio que seja necessário escrevê-las, limitá-las, fechá-las ou anunciá-las, mas é preciso abrir um diálogo. BBC News Mundo: Por que você acredita que, para muitos na sociedade, uma mulher só está completa quando tem um companheiro e o mesmo não acontece com um homem? Tenenbaum: É um fenômeno histórico e não sei se há uma origem muito clara. Aqueles que analisam esse fenômeno não se perguntam tanto o motivo de isso acontecer, mas sim o impacto que isso produz. Todos nos apaixonamos e às vezes não, alguns de nós têm filhos e outros não, mas não me agrada a ideia de que uma mulher sem um companheiro, seja num breve momento ou num longo período da vida, tenha que sentir que está condenada à infelicidade. É preciso mudar isso. BBC News Mundo: A monogamia é romantizada como se fosse um modelo de vínculo a ser alcançado? Tenenbaum: Acredito que um pouco, sim. Não sei se é romantizada, mas se associa a vida adulta com a formar uma família no sentido mais monogâmico e nuclear e é custoso pensar fora dessa ideia. BBC News Mundo: O que deixa as mulheres angustiadas a respeito das relações amorosas? Tenenbaum: Uma das coisas que angustiam as mulheres, e as pessoas em geral, é a incerteza em relação ao desejo do outro. Uma parte importante da angústia produzida e gerada pelo vínculo com outras pessoas é não saber o que pensam ou o que sentem. BBC News Mundo: Isso acontece mais agora do que antes? Tenenbaum: Acredito que acontece mais agora do que há séculos. Talvez há 80 anos, as pessoas estavam casadas com alguém e não se importava muito com os pensamentos mais profundos dessa pessoa. Hoje temos a obsessão de ter um vínculo que nos pareça autêntico e valioso. Não quero estar com uma pessoa que não queira estar comigo e não quero estar com uma pessoa que não está perdidamente apaixonada por mim BBC News Mundo: Por que pesa tanto o fato de uma mulher ser solteira? Tenenbaum: Ainda existe um valor muito importante em ser uma mulher casada e mãe. A questão da solteirice começa a pesar em certa idade pela ideia de que o tempo para ter um filho está acabando. E essa questão com os homens não é tão importante, porque parece que eles podem ter filhos em qualquer momento. Há um estigma muito grande, não apenas com as mulheres que escolhem outros estilos de vida, mas também com as que têm outras vidas porque foi assim que aconteceu. Ainda existe uma ideia muito forte de que uma mulher que não tem um homem e uma família nuclear é uma fracassada, porque não vale nada ou porque perdeu a experiência mais importante da vida. As coisas estão mudando, mas as mudanças são lentas. Vamos pensar no divórcio. Há 20 anos, um casal que se divorciava era uma tragédia e um fracasso. Hoje as coisas não são vistas mais assim. BBC News Mundo: O código atual de um namoro é pior do que antes? As regras estavam mais claras no passado? Tenenbaum:Não sei se é pior ou melhor. Acho que agora as pessoas estão se casando mais velhas, então passam por mais vínculos, mais rejeições (...) estamos em busca e isso produz mais ansiedade. Pode ser que antes houvesse mais clareza com alguns códigos. Há 50 anos, estava tudo bem quando (um casal) dava mais ou menos certo, não necessariamente se buscava a felicidade plena. Hoje, as coisas mudaram e a felicidade plena é algo que nos importa muito. BBC News Mundo: Você diz que o grande poder do homem nas relações atuais é a indiferença. Como é isso? Tenenbaum: Eu pego o trabalho da (socióloga) Eva Illouz que fala sobre o desapego masculino. Eles têm a possibilidade de dizer: "Não estou te ligando, não te respondo, estou frio, não mostro o que desejo". É como uma forma de mostrar masculinidade, já que são poucas as que permanecem. Antes, a masculinidade era mostrada no trabalho ou como um pai de família. Hoje todos esses papéis estão muito enfraquecidos. Assim, o desapego de dizer "eu não me apego, não desejo, eu decido quando falamos e quando não" é uma forma de exercício da masculinidade que está em vigor. Claro que também acontece com as mulheres e pessoas sem gênero. Mas há certos relatos que se repetem na boca das mulheres e que se traduzem no sentimento de "pensei que estávamos em um vínculo e me deixaram na mão, ou saio com muitos homens e nenhum deles quer nada". Isso não acontece tanto ao contrário. BBC News Mundo: Por que na era da comunicação parece que ficou difícil conhecer pessoas? Tenenbaum: Era fácil antes? As mulheres se divorciavam e não sabiam com quem falar, porque era como se fossem velhas e não havia para onde ir. O problema agora é que temos mais tempo, então podemos encontrar formas de conhecer gente aos 30 e poucos. E os aplicativos nos abrem caminhos. Quando alguém diz que "é difícil conhecer gente" é porque em certa idade ela estave com todas as pessoas que conhecia e se não, é porque ela não tinha vontade. BBC News Mundo: Você acredita que os aplicativos de namoro vieram para ficar? Tenenbaum: Não vejo por que eles deveriam desaparecer. Há cada vez mais deles e o que acontece é que as pessoas os escolhem de acordo com critérios. Eles vão ser mais fragmentados por idade ou por preferências socioculturais, ou por muitas coisas. BBC News Mundo: E você acha que nos relacionamentos amorosos de hoje há mais liberdade do que antes? Tenenbaum: Eu acredito que a liberdade é sempre positiva e angustiante. Parece que sempre é preciso buscar novos horizontes, sabendo que eles geram novos problemas. Se vivemos em uma época onde a ansiedade é algo muito comum, então é lógico que muitas vezes apareça algum desejo por um limite, por uma estrutura. E muitos podem dar um basta, não quero mais essa liberdade. Mas a liberdade é o melhor problema que se pode ter. Devemos insistir nisso.
2021-09-02
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58403081
sociedade
O trágico fim do criador da 'empresa mais feliz do mundo'
Um jovem empresário americano construiu o que foi chamado de a "empresa mais feliz do mundo — uma loja online de varejo de calçados tão lucrativa que a Amazon a comprou em 2009 por mais de US$ 1 bilhão. Anos depois, ainda na chefia da empresa que tinha vendido, ele resolveu implementar nela um sistema revolucionário, transformando-a em um local de trabalho sem chefes, sem títulos, apenas criatividade, igualdade e pura alegria. Essa era a ideia utópica de Tony Hsieh, um visionário que morreu tragicamente em 2020, mas que, anos antes, havia eliminado as hierarquias em sua empresa de calçados com sede em Las Vegas e tentou reinventar a ideia de "empresa feliz". Matthew Syed, escritor e apresentador da BBC, contou a história desse empresário para o programa Business Daily do Serviço Mundial da BBC. O sonho de infância de Hsieh era simples: ser rico. Ele nasceu em Illinois, nos EUA, em 1973, de uma família de imigrantes taiwaneses. Seus pais incutiram nele valores como o de dar duro no trabalho, algo comum entre as famílias asiáticas dos anos 70. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Como resultado, ele trabalhava duro, tirava as melhores notas, tocava vários instrumentos musicais e assistia apenas a uma hora de televisão por semana. O plano de sua família era que ele seguisse uma carreira respeitável em um escritório, mas o regime rígido de sua juventude o deixou com vontade de viver com mais liberdade. Ele decidiu, então, que ganhar bastante dinheiro seria a maneira de conquistar essa liberdade. Depois de se formar em Harvard em 1995, Hsieh foi cofundador de uma empresa de software chamada LinkExchange. Em menos de dois anos, ele vendeu sua empresa para a Microsoft, por US$ 265 milhões. Aos 24 anos, Hsieh havia realizado seu sonho de infância. Mas ele não vendeu a empresa apenas pelo dinheiro. "O que muitas pessoas não sabem é o verdadeiro motivo pelo qual vendemos a empresa", disse Hsieh anos depois. "O verdadeiro motivo foi simplesmente que não era mais um lugar divertido para se trabalhar." Quando a LinkExchange nasceu, a companhia era administrada por Hsieh e seus amigos de 20 e poucos anos, que haviam dedicado suas vidas à empresa. "Trabalhávamos o dia todo, dormíamos embaixo da mesa, não sabíamos que horas eram, tentávamos nos lembrar de tomar banho de vez em quando", disse Hsieh. Conforme a empresa crescia, Hsieh enfrentou um problema: ele não tinha mais amigos para contratar. Então, ele veiculou anúncios para contratar pessoas com as habilidades e a experiência necessárias. Mas algum tempo depois, Hsieh percebeu que essa decisão havia sido um grave erro. Ao trazer novas pessoas para sua empresa, você precisa introduzir hierarquias. Os líderes precisam impor suas ideias para garantir que todos estejam alinhados. Mas Hsieh não gostava de dizer às pessoas o que fazer. Ele gostava da ideia de pessoas agindo de acordo com suas próprias crenças, unidas em torno de uma visão comum. "Quando chegamos a 100 pessoas, eu mesmo não queria sair da cama de manhã para ir para o escritório e foi uma sensação estranha, porque se tratava de uma empresa que eu havia cofundado. Se eu me sentia dessa forma, me perguntava como os outros trabalhadores se sentiam", disse Hsieh. Ao se desencantar com sua própria empresa, ele aprendeu uma lição fundamental. Ele não precisava apenas de dinheiro para viver. Também queria ser feliz. Com essa ideia aparentemente simples, Hsieh usou o dinheiro da venda da LinkExchange para financiar seu próximo projeto: Zappos, uma loja online de varejo de calçados. Hsieh planejava fazer com os sapatos o que a Amazon fazia com os livros. A Zappos era uma oportunidade de trazer felicidade a todos na empresa. "Quando fui para a Zappos, me perguntava como alguém conseguia concluir suas tarefas naquele ambiente", lembra Alexis Gonzales-Black, que trabalhou três na empresa, nas áreas de recrutamento e iniciativas de diversidade. "Eu me perguntava o que estava acontecendo. Era uma explosão de purpurina, unicórnios, havia desfiles constantes, pessoas jogando doces em você", ela descreve. Quando liderava a LinkExchange, Hsieh odiava acordar todos os dias; agora, ele havia finalmente construído a empresa mais feliz do mundo. "Sabia-se que era mais difícil entrar na Zappos do que em Harvard. A empresa recebia dezenas de milhares de currículos por ano. O processo era rigoroso, era altamente seletivo", diz Gonzales-Black. Hsieh queria espíritos generosos. Por isso, era informado quando um candidato não tratavam bem o motorista de taxista a caminho da entrevista de emprego. O candidato ideal tinha que ser um pouco "estranho". Nas entrevistas, eles respondiam a perguntas como: "Em uma escala de 1 a 10, você é estranho?" "Eu respondi, 'Sou estranho ao máximo: 11'", lembra Gonzales-Black. Outras perguntas comuns eram "qual é o seu palavrão favorito?" ou "se você tivesse uma música tema para quando entra em um lugar, qual seria?". No final do processo de contratação, Hsieh oferecia aos candidatos selecionados US$ 2 mil para que não aceitassem o emprego. Ele queria pessoas totalmente comprometidas com sua cultura. Mas Hsieh vendeu a Zappos, que havia se transformado em uma "fauna" de pessoas criativas, excêntricas e de espíritos livres — em um local de trabalho feliz. Havia uma estratégia brilhante em ação: um funcionário feliz realmente faz o trabalho. "Quando as pessoas podem ser elas mesmas, é quando as amizades verdadeiras são formadas, não apenas relacionamentos entre pares. E é quando as ideias criativas surgem e os funcionários são mais produtivos", disse Hsieh. A estratégia foi tremendamente bem-sucedida. Em oito anos, as vendas da Zappos ultrapassaram US$ 1 bilhão. "Dentro da empresa, havia um desejo incrível de surpreender nossos clientes (...) de fazê-los se sentirem que eram o cliente número um", diz Gonzales-Black. A Zappos causou tanto rebuliço que, em 2009, chamou atenção da Amazon. Com a garantia de que a gigante de tecnologia não alteraria a cultura da empresa, Hsieh vendeu a empresa, por US$ 1,2 bilhão. Se aos 24 anos Hsieh havia ficado rico, agora, aos 35, ele também era feliz. Ele continuou como CEO da Zappos. Mas, à medida que a empresa crescia, ela lutava com o problema interno de hierarquia. Como grandes grupos de seres humanos poderiam fazer as coisas sem serem dirigidos por chefes? E uma vez que você começasse a dar poder a esses chefes, o que aconteceria com a felicidade e a criatividade daqueles que são forçados a seguir ordens? Como muitos cientistas sociais antes dele, Hsieh viu uma relação inversamente proporcional entre hierarquia e felicidade, entre poder desigual e prosperidade. É por isso que Hsieh tentou realizar uma revolução, ele queria desafiar os fundamentos da filosofia gerencial e talvez a maneira como os humanos trabalham juntos. Hsieh achava que uma maneira de salvar a felicidade era estrangulando hierarquias. "Tony foi a uma conferência e voltou muito animado com a ideia da holocracia", disse Gonzales-Black. Holocracia é um termo cunhado por Arthur Koestler, autor de O Fantasma da Máquina, que se tornou uma filosofia de gestão radical graças ao empresário americano Brian Robertson, que criou e implementou o modelo em sua empresa de software, a Ternary, no início dos anos 2000. Mas em que consiste? Holocracia é uma forma profundamente descentralizada de administrar uma empresa. Não há patrões e nem mesmo cargos. A hierarquia tradicional é completamente abandonada. Em vez disso, existem círculos, equipes autogeridas que desenvolvem projetos. Os funcionários escolhem em quais círculos trabalhar e, muitas vezes, trabalham em vários. A holocracia é, até hoje, tida como radical e utópica. Mas, em 2014, Hsieh decidiu introduzir a utopia organizacional na Zappos, uma das primeiras empresas de grande porte a fazê-lo. "É emocionante e muito desestabilizador para muitas pessoas. Se você é alguém que busca estabilidade na vida, que vai trabalhar sabendo exatamente o que fazer, a holocracia pode criar muito barulho ao seu redor", diz Alexis Gonzales-Black, que foi uma das responsáveis pela implantação do novo sistema na Zappos. A holocracia também gera confusão na hora de definir os salários das pessoas. Além disso, em um sistema sem hierarquias, ninguém sabe realmente quem está fazendo o quê. O novo sistema desagradou muitos funcionários. Em 2015, quando Hsieh ofereceu um bônus para quem quisesse deixar a empresa, 18% dos trabalhadores aceitaram. Outros 11% acabaram saindo sem bônus. Em pouco mais de um ano, a empresa supostamente mais feliz do mundo havia perdido quase um terço de sua força de trabalho. "Eu achava que a holocracia era a coisa mais estúpida que já tinha ouvido. Ainda penso assim. E disse isso a ele", diz Paul Bradley Carr, autor e repórter de tecnologia, que era amigo próximo de Hsieh. "De repente, ouvir que não haverá chefes e, se você não gostar, pode ir embora, isso não é 'ter escolha'", diz Bradley Carr. No início, o sistema parecia ser promissor. Ele chegou a ser introduzido em outras empresas, como o site de blogs Medium e na empresa de games Valve. Mas o tempo mostrou que as pessoas gostam de hierarquias. A ausência de regras formais permite que se forme uma estrutura informal de poder oculta. Ao contrário do que ocorre numa empresa convencional, não há checagens, freios ou contrapesos. Ou seja, há espaço para que algumas pessoas acabem tendo mais poder e autoridade que outras. "Muitas pessoas se sentiram presas e intimidadas por aqueles que entendiam o sistema. O que Tony fez não foi criar uma estrutura plana, uma administração plana, mas um sistema no qual ele era o chefe e todo o resto ficava abaixo dele. Não era democrático. Ele era essencialmente um rei", acrescenta Bradley Carr. A ironia é que, ao buscar igualdade perfeita, ele inadvertidamente criou o oposto. Em 2018, a Zappos começou silenciosamente a abandonar a holocracia. Em 2020, um Hsieh cada vez mais errático deixou a empresa. Seu sonho havia morrido. Ao deixar a Zappos, Hsieh começou a gastar sua fortuna em um sistema "pessoal" de holocracia. Ele convidava pessoas de quem gostava — artistas, escritores ou empresários — e oferecia o dobro do maior salário que já haviam recebido para irem morar com ele em seu novo rancho em Park City, em Utah. Além disso, seu uso de drogas estava saindo do controle e nenhuma das pessoas ao seu redor — que sempre diziam "sim" a tudo — estava preparada para alertá-lo. Ele era o imperador cujos súditos não podiam dizer que ele estava nu. "Se você é tão rico, bem-sucedido e influente como Tony, é difícil saber quem são seus amigos. Ele definitivamente tinha bons amigos, mas não sei quantos eram próximos a ele. Suponho que não muitos, caso contrário, a história teria sido muito diferente", diz Bradley Carr. Em novembro de 2020, Hsieh morreu por inalação de fumaça após um incêndio em um galpão em sua casa. A porta estava trancada por dentro, embora não se saiba se foi intencionalmente ou por acidente. As demonstrações nas redes sociais foram extraordinárias. "Já escrevi sobre muitos milionários da tecnologia e Tony era como nenhum", diz Bradley Carr. "Gostaria que os bilionários do Vale do Silício fossem todos como Tony Hsieh, gastando seu dinheiro de maneiras ousadas e ridículas. Ele era simplesmente um ser humano maravilhoso sendo empolgante e interessante. É um clichê dizer que nunca mais veremos sua luz. Mas nunca mais veremos a luz de Tony Hsieh. "
2021-09-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58410997
sociedade
China limita jogos online a 3h por semana para menores
Quem tem menos de 18 anos de idade na China só poderá jogar online por uma hora por dia às sextas-feiras, sábados e domingos, além de feriados. A Administração Nacional de Imprensa e Publicação, que regula o mercado de videogames na China, disse à agência de notícias estatal Xinhua que esse tipo de atividade só será permitido entre 20h e 21h. Também instruiu que as empresas impeçam que menores de idade joguem fora desse horário. A nova regra vale a partir de 1º de setembro. As inspeções em empresas de jogos online também vão aumentar, para verificar se os limites de tempo estão sendo cumpridos, disse o órgão regulador. As regras anteriores restringiam jogos online para menores de idade a 90 minutos diários, em todos os dias da semana. O limite era maior, de três horas, nos feriados. A mudança reflete uma preocupação de longa data com o impacto do jogo excessivo sobre a saúde dos jovens. No início deste mês, um artigo publicado pelo jornal estatal Economic Information Daily afirmou que muitos adolescentes se tornaram viciados em jogos online. O veículo disse que os jogos online são como um "ópio espiritual" — ópio é uma droga ilícita e viciante — e que isso estava tendo um impacto negativo sobre eles. O artigo provocou quedas significativas no valor das ações de algumas das maiores empresas de jogos online da China. Em julho, a gigante do jogo chinesa Tencent anunciou que passaria a usar reconhecimento facial para impedir que as crianças brincassem entre 22h e 8h. A mudança ocorreu após temores de que as crianças estivessem usando identificações de adultos para contornar as regras.
2021-08-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58388021
sociedade
Por que teremos que reaprender a socializar depois da pandemia
Como apresentador do podcast Dear Prudence, Daniel M Lavery costuma dar conselhos diretamente de Nova York. Mas, de vez em quando, ele também revela suas próprias ansiedades, como em um episódio recente ao responder a uma solitária estudante universitária que estava apreensiva com o contato social durante a pandemia de covid-19. Lavery se identificou: "É muito, muito difícil pensar em estar perto das pessoas de novo. Uma das coisas que mexem comigo, quando penso na possibilidade de algum dia estar novamente em uma sala lotada de gente sem máscara, é que passei muito tempo ansiando desesperadamente por esse dia, e agora, às vezes, me pego tendo meio que uma reação de pânico... Não quero ter medo, afinal é isso que eu quero. Ainda assim, há uma parte de mim que agora reage de uma maneira que eu não costumava reagir, que está aterrorizada." Muitos de nós estão no mesmo barco. Fomos forçados a ser antissociais, pelo menos em termos físicos, há um ano já. Como resultado, muita gente está achando estranha qualquer interação social pessoal — parece que temos que reaprender a sentar em uma sala com outro humano. Até mesmo os sonhos se transformaram de maneiras sem precedentes, com uma tendência a pesadelos relacionados ao distanciamento social. Então, quando as restrições acabarem, teremos que passar por uma curva de aprendizado para nos sentirmos 'normais'? Nossos músculos sociais atrofiaram de alguma forma, e teremos que "exercitá-los" novamente? Felizmente, esses músculos são bastante resistentes, e relatos de lugares que foram menos afetados pela covid-19 sugerem que não demora muito para voltar a ter alguma versão de normalidade social. Ainda assim, são esperados alguns contratempos no meio do caminho. Portanto, pode ser útil estar preparado para eles. Não é surpreendente que muitos de nós possam estar se sentindo socialmente "enferrujados". Todos nós, em diferentes graus, vivenciamos a solidão e o isolamento social durante a pandemia, duas condições que podem estar ligadas ao declínio cognitivo de maneiras específicas. Por exemplo, pessoas com redes sociais menores e menos complexas tendem a ter uma amígdala, centro de processamento de emoções do cérebro, menor. A solidão crônica pode afetar os níveis de hormônios associados ao estresse e aos laços sociais; um dos efeitos pode ser uma maior propensão à depressão. Em geral, pessoas solitárias tendem a ser mais paranoicas e negativas. O isolamento prolongado também afeta a memória e a recordação verbal. Criaturas sociais, incluindo os humanos, precisam de bastante estímulo interativo para manter seus cérebros em boas condições. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Então, se você tem tido mais dificuldade atualmente de encontrar aquela palavra que está na ponta da língua, o lockdown pode ter um papel nisso. No meu caso, 90% do tempo agora, converso apenas com meu parceiro, em um padrão de conversação que estou bem acostumada a ter. Fico um pouco trêmula na hora de conversar com um amigo, como se fosse preciso desenterrar uma linguagem que era outrora familiar. Quando as pessoas estiverem autorizadas a passar um tempo juntas novamente, pode ser difícil encontrar as palavras certas. É claro que, como as circunstâncias individuais variam amplamente, o mesmo vai acontecer com a transição de volta à vida social pós-pandemia. Uma pessoa desempregada, clinicamente vulnerável, que passou o tempo todo morando sozinha, pode se sentir mais desorientada na próxima fase do que uma pessoa financeiramente estável, que mora e trabalha em uma grande casa compartilhada. No geral, algumas das mudanças comportamentais podem ser revertidas rapidamente com um retorno aos padrões sociais mais comuns. Mas Daniela Rivera, bióloga da Universidade Mayor de Santiago, no Chile, acredita que as alterações físicas no cérebro, como as relacionadas à memória, não vão desaparecer tão facilmente. Com o encolhimento de algumas partes do cérebro, a função da memória pode ser comprometida por anos após períodos de isolamento social — e com isso, nossa capacidade de nos conectarmos facilmente com outras pessoas. Mas não é apenas como nossos cérebros podem ter mudado. No geral, os psicólogos estão vendo mais adultos relatando estresse em relação a interações sociais, variando desde não saber como encerrar as interações sem um aperto de mão ou um abraço, até ficar sem assunto. Mas certos grupos são fontes específicas de preocupação. A situação é especialmente delicada para pessoas com transtorno de ansiedade social. "Manter o progresso é muito importante — porque uma vez que você não está perto de pessoas, como não temos estado há praticamente um ano, é muito fácil voltar aos velhos padrões", explica Marla Genova, ex-pesquisadora de psicologia que agora é coach de pessoas com ansiedade social e de fala. Também há preocupações em relação às crianças em idade escolar que perderam a sincronia social durante a incerteza dos lockdowns. "Nesta idade, o cérebro ainda está se desenvolvendo e refinando a conectividade neural; portanto, é uma fase crítica para desenvolver habilidades sociais que vão definir suas interações com seus pares", explica Rivera. Ela receia que o isolamento prolongado possa levar alguns a desenvolver fobia social. Os idosos, por sua vez, têm maior chance de morar sozinhos e podem se sentir menos à vontade ​​com dispositivos tecnológicos para manter o contato social. Rivera prevê que o período de ressocialização pode ter alguns efeitos em pessoas vulneráveis, como hiperatividade, intolerância, irritabilidade e ansiedade, entre outros. Lockdowns prolongados e culturas diferentes vão proporcionar experiências variadas à medida que os países liberarem as restrições. Mas alguns pontos em comum e lições podem ser observados. O contato físico, um aspecto que antes era dado como certo ao estar perto de outras pessoas, provavelmente parecerá estranho por um tempo. Para Andre Robles, que administra uma agência de viagens em Quito, no Equador, onde algumas restrições foram suspensas, "é um pouco estranho ver uma sociedade tão calorosa ser um tanto distante nos cumprimentos". "A batida de cotovelos se tornou a nova saudação de olá", diz ele. Outras pessoas estão achando estranho voltar a abraçar. A questão que está exigindo alguma calibragem para Melanie Musson, especialista em seguros que vive no Estado americano de Montana, é descobrir as diferentes atitudes de cada um em relação ao risco de contrair a doença. Os casos estão diminuindo lentamente no Estado, que está profundamente dividido quanto ao uso de máscaras. "É estranho quando encontro pessoas que se preocupam com a covid", explica Musson. "Como me cerco principalmente de pessoas que não (se preocupam), vivo em uma bolha de normalidade. Tem muita gente por aí que discorda disso e que não se sente confortável, no entanto. Minha bolha estourou quando percebi que muitas pessoas não voltaram ao normal." Na verdade, a socialização com máscara está ajudando a fazer as coisas parecerem mais normais em Cingapura, diz Roger Ho, psicólogo da Universidade Nacional de Cingapura: "A vida está como de costume, só que com máscara." Experiências anteriores com o uso de máscaras, como durante a epidemia de Sars, e a alta adesão às exigências governamentais ajudaram. Ho sugere que mais educação pública em lugares onde há resistência às máscaras pode ajudar a socializar dessa forma a parecer menos estranho. Uma maneira de reduzir o julgamento sobre os encontros e o nervosismo em relação às aglomerações é restringir seu círculo social, e muitas pessoas estão relatando fazer exatamente isso. "Provavelmente não foi um ano em que você apresentaria alguns de seus amigos a outros amigos que eles não conhecem. Então, isso é parte da sensibilidade e da estranheza em torno da covid-19- não querer ampliar muito o círculo de amigos", avalia Matilda Marseillaise, escritora de um blog de cultura francesa que mora em Adelaide, na Austrália. De fato, várias pessoas mencionaram estar mais seletivas sobre com quem escolhem socializar, por uma questão tanto de conforto físico quanto psicológico. Uma pesquisa do psicólogo Richard Slatcher e seus colegas da Universidade da Geórgia, nos EUA, sugere que a grande perda do contato social casual foi parcialmente compensada pelo fortalecimento dos laços familiares imediatos e das amizades mais próximas, que as pessoas geralmente valorizam mais. Parte da readaptação social pode significar aprender como realocar o tempo e a energia investidos na família de volta para amigos, colegas e conhecidos, sem perder a proximidade construída com entes queridos. Durante todo o processo, é importante sermos pacientes e gentis com nós mesmos. Como aconselha o Centro Nacional de Ansiedade Social dos Estados Unidos, "tenha em mente que cada um de nós agora é, até certo ponto, socialmente desajeitado". Não há necessidade de pressa para se livrar do estranhamento também. Um dos poucos lados positivos da longa campanha de vacinação é que "a lentidão desse processo vai ajudar na readaptação", diz Slatcher, enfatizando nossa resiliência. "Alguns dos estresses que virão, como receber convidados em casa novamente, serão um estresse agradável." E para aqueles que pensam que podem ter mais dificuldades para se reintegrar à sociedade, o tratamento para o transtorno de ansiedade social pode oferecer algumas perspectivas. Isso envolve com frequência terapia de exposição, ou seja, a exposição gradual a situações desconfortáveis, a fim de desenvolver mais tolerância a elas. Apesar das regras de distanciamento social, ainda existem maneiras de conseguir essa exposição — você pode, por exemplo, trocar comentários nas redes sociais ou compartilhar opiniões para praticar a assertividade. Evitar situações sociais pode apenas gerar mais evasão. Portanto, Genova, coach de ansiedade social, incentiva as pessoas a não passarem mais do que alguns dias consecutivos em isolamento, sempre que possível. Mas isso não significa necessariamente ter contato físico. A bióloga Rivera recomenda, por exemplo, "diferentes tipos de enriquecimento ambiental" para moderar o estresse do isolamento. Isso pode incluir atividades físicas como andar de bicicleta, atividades sociais como "cafés" virtuais, atividades cognitivas como jogos para treinar o cérebro, assim como atividades emocionais, como terapia. Por fim, mesmo que tenhamos que nos preparar hoje em dia para atender o telefone, fazer uma imitação desajeitada de um abraço ou descobrir se nos sentimos confortáveis ​​quando um amigo sugere um encontro, lembrar da resiliência social que começa a se revelar ao redor do mundo pode ajudar. As fotos icônicas de piscinas lotadas durante um festival de música em Wuhan, na China, onde a pandemia começou, exemplificam como o mundo será capaz de voltar a viver socialmente, quando for seguro fazer isso.
2021-08-29
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-56527263
sociedade
'Birdnesting': a modalidade de divórcio em que os pais revezam de casa, e não os filhos
Uma separação é sempre difícil, especialmente se há filhos envolvidos no processo. E com várias pesquisas internacionais sugerindo como o divórcio pode ser desconcertante para crianças e adolescentes, alguns pais estão recorrendo a uma solução inovadora para tentar facilitar o processo. 'Birdnesting' ou 'nesting' (termos em inglês que remetem ao ninho dos pássaros) é um estilo de vida que permite que as crianças permaneçam na "casa da família" e passem o tempo relativo a cada um dos pais lá. Cada responsável fica na casa durante o período que cabe a ele na guarda dos filhos acordada no divórcio — e vai para outro lugar quando está "de folga". O conceito tem esse nome por causa dos pássaros, que mantêm seus filhotes a salvo em um ninho e, alternadamente, entram e saem voando para cuidar deles. "Queríamos manter a estabilidade das crianças, e não simplesmente desfazer tudo de uma vez", conta Niklas Björling, de 38 anos, de Estocolmo, cuja família adotou essa modalidade por oito meses depois que ele e a mulher se separaram. "As crianças podiam manter sua casa, a escola e os amigos como antes", ele explica, além de evitar o estresse de se deslocar de uma casa para outra. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora ainda seja um conceito relativamente desconhecido globalmente, o birdnesting parece estar aumentando nos países ocidentais, principalmente entre famílias de classe média. Advogados especializados em divórcio observaram um aumento na prática em países como Estados Unidos, Austrália e Holanda. Um estudo recente da Coop Legal Services, no Reino Unido, sugeriu que 11% dos pais divorciados ou separados já experimentaram a estratégia. Na Suécia, onde a guarda compartilhada dos filhos é comum há décadas, alguns pais divorciados já revezavam de casa na década de 1970. (As estatísticas oficiais são difíceis de se obter, uma vez que não há como marcar esta opção de estilo de vida no censo ou em pesquisas domiciliares.) Björling ficava no quarto de hóspedes da casa da mãe durante o tempo em que não estava com os filhos, enquanto sua ex-mulher alugava um quarto em uma casa compartilhada. Os mais abastados podem optar por comprar apartamentos individuais, investir em uma segunda propriedade compartilhada ou converter parte da casa principal em um anexo para quem "está de folga", diz a terapeuta Ann Buscho, da Califórnia, que escreveu um livro sobre nesting. Para muitos, é um "arranjo transitório ou temporário", mas alguns de seus clientes praticam birdnesting há anos. No entanto, à medida que mais famílias começam a abraçar o conceito, os especialistas se dividem sobre o impacto tanto em relação às crianças quanto aos pais. Buscho diz que é importante entender o contexto por trás da tendência, incluindo a influência de celebridades nos divorciados da geração millennial. A atriz Anne Dudek (do seriado Mad Men) e o artista Matthew Heller tornaram seu birdnesting público após se divorciarem, em 2016, e foi dito que a atriz Gwyneth Paltrow estava frequentemente na casa que costumava dividir com o músico Chris Martin, muito depois de terem se separado. "Acho que a 'separação consciente' de Gwyneth Paltrow teve um grande efeito aqui. Eles fizeram uma espécie de nesting modificado. E só a noção de divórcio com respeito e mais gentileza acho que teve um grande impacto nas pessoas", avalia Bushco. Programas de TV recentes também podem ter causado impacto. O sitcom americano Splitting Up Together mostrou uma família que fazia nesting usando a garagem como "casa de folga" dos pais, e houve uma trama sobre birdnesting na série Billions. "Há apenas mais consciência sobre o fato de que é uma opção disponível para as pessoas", acrescenta Ben Evans, advogado sênior de direito de família da Coop Legal Services, no sudoeste da Inglaterra. Alguns casais também são atraídos pelo birdnesting porque pode ser uma solução mais econômica, por exemplo, reduzindo as taxas judiciais ou adiando os impostos relacionados à venda da casa, de acordo com Stephen Williams, advogado especializado em direito de família que é sócio de outro escritório britânico, o Ashtons Legal. Mas ele acredita que a principal motivação é um aumento mais generalizado da conscientização sobre a saúde mental das crianças, o que levou mais pais a considerarem o potencial de arranjos alternativos à guarda dos filhos. "As pessoas estão muito mais esclarecidas sobre a necessidade de pensar sobre o desenvolvimento dos filhos", diz ele. "Acho que é uma evolução muito, muito boa, basicamente, porque muitas vezes essas questões eram colocadas em segundo plano, e eram as separações frequentemente problemáticas dos pais que vinham à tona." Sejam quais forem os motivos pelos quais ex-casais estão adotando o birdnesting, é complicado avaliar sua eficácia. Como é uma tendência relativamente nova na maioria dos lugares, não há dados comparativos sobre o bem-estar das crianças nesse tipo de família em comparação com outras configurações domésticas. Buscho entrevistou dezenas de famílias que praticavam nesting para sua pesquisa, e ela própria adotou a modalidade por uma temporada de 15 meses com o ex-marido e três filhos na década de 1990. Ela acredita fortemente que é mais saudável para as crianças, pois permite que mantenham as rotinas existentes e se adaptem aos poucos às mudanças na família. "Se você perguntar às crianças, elas sempre vão dizer que divórcio não é divertido. Elas não sabem o que é se divorciar sem nesting", afirma. "Mas o que elas vão dizer é que 'nossos pais carregaram o fardo do divórcio, e nós não precisamos fazê-lo'." Essa é uma perspectiva compartilhada por Linnea Andersdotter, que agora tem 36 anos. Ela viveu em um arranjo familiar de birdnesting, em Estocolmo, por vários anos, depois que seus pais se separaram quando ela tinha 11 anos. "Pareceu uma coisa muito dramática quando eles disseram que iriam se separar, e quando descobri que não precisava me mudar, isso realmente me ajudou a não pirar com a situação", diz ela. "Fui meio que mantida em uma pequena bolha de segurança enquanto eles estavam resolvendo as coisas da separação." Mas os críticos argumentam que isso pode criar uma situação de "casa de reabilitação", que não ajuda as crianças a processarem a realidade da separação dos pais. Eline Linde, que vivia em uma casa de nesting perto de Oslo (Noruega) quando era adolescente, diz que achou a experiência "estranha e confusa". "Eu não sabia se era a casa da minha mãe ou do meu pai, ou se eles estavam pensando se iam voltar a ficar juntos", lembra a jovem de 28 anos. "Acho que devemos realmente ter cuidado ao exaltar a ideia", concorda Malin Bergström, psicóloga infantil e cientista do Karolinska Institute, em Estocolmo. "É uma forma de proteger a criança e protegê-la da realidade, basicamente. Acho que é uma ameaça à saúde mental". Ela argumenta que "enfrentar desafios junto" com os pais, como sair da casa da família, pode dar aos filhos as ferramentas "para se tornarem adultos resilientes que são capazes de lidar com as coisas no futuro". Bergström também questiona a suposição de que o birdnesting é menos estressante para as crianças do que ter que se deslocar entre duas moradias. Ela participou de vários grandes estudos do Center for Health Equity Studies em Estocolmo que sugeriram que havia muito pouca diferença na saúde mental das crianças em arranjos de guarda compartilhada tradicionais, em comparação com aquelas que viviam em uma família nuclear tradicional com dois pais. O impacto do birdnesting sobre os pais também é controverso. O advogado de família Ben Evans acredita que a prática funciona para alguns casais porque pode ajudar a "ganhar um pouco de tempo e aliviar a pressão sobre eles". Ambas as partes podem ponderar sobre os passos futuros, ele argumenta, e evitar decisões precipitadas ou dispendiosas. Buscho diz que um período de nesting também oferece "espaço para respirar", para ajudar os ex-parceiros a descobrir como querem que seja o plano de coparentalidade no longo prazo, ou pode até mesmo facilitar uma possível reconciliação. Mas Bergström argumenta que o birdnesting pode ter um impacto psicológico negativo sobre os pais divorciados, impedindo sua capacidade de superar o rompimento. "O impulso natural após o divórcio, sendo pai ou mãe, é criar sua própria vida, enfrentar, seguir em frente", diz ela. "E acho que o birdnesting atua contra essa necessidade." Åse Levin, uma designer gráfica de 50 anos de Estocolmo, diz que isso aconteceu com ela quando tentou fazer nesting por seis meses depois de se separar. O casal se revezava entre o mesmo apartamento de um quarto alugado quando estava longe dos dois filhos. "Sei que nós dois tínhamos muita ansiedade por estar naquele apartamento... você não tinha suas coisas, então não era um lugar aconchegante para ir", ela lembra. "Você está preso em um tipo de bolha ou algo assim, não pode fazer nada. Não pode seguir em frente." No fim das contas, o ex dela ficou no antigo apartamento, e seu pai a ajudou a comprar uma pequena casa perto. Embora o nesting possa reduzir as mudanças na vida das crianças, também cria novos desafios logísticos para os adultos — desde adotar novas rotinas para as tarefas domésticas até descobrir o que fazer se alguém começar a namorar. "Uma cliente chegou em casa e encontrou um preservativo usado no quarto quando estava na vez dela. Não deu muito certo", diz Buscho. "É preciso haver acordos bem definidos." "Você precisa ter um bom relacionamento com seu ex", concorda Bodil Schwinn, de Sollentuna, na Suécia, que faz nesting há dois anos e planeja manter o arranjo por pelo menos mais 18 meses. Ela e o ex-parceiro dividem o custo de uma faxineira para a casa da família e reabastecem a geladeira à medida que precisa. "Nunca discutimos coisas como 'você comprou carne' ou 'você comeu minha carne ou meu queijo', apenas lidamos com isso", diz Schwinn. Ela impôs o limite de que não queria a nova namorada do ex dormindo em sua cama quinzenal compartilhada, então eles concordaram em converter o escritório em um novo quarto. "Muita gente acha que isso é muito estranho, mas estou bem com isso. Estou feliz que ele esteja feliz e tenha encontrado alguém." O advogado de família Stephen Williams acredita que o birdnesting não é uma solução conveniente para todo mundo — e diz que os pais recém-separados não devem se sentir pressionados a entrar no movimento. Para começar, alguns casais não terão recursos financeiros ou redes de apoio para encontrar acomodação alternativa para o tempo de 'folga'. Ele também diz que não será a melhor opção se ainda houver um alto nível de conflito, se um dos pais não for capaz de se comprometer com o acordo ou se este simplesmente não parecer adequado. "A meu ver, o birdnesting é apenas uma de uma série de intervenções positivas que podem ajudar os pais a cuidar de seus filhos após a separação", afirma. Mas os defensores do nesting esperam que a prática se torne mais comum. Buscho lembra que a coparentalidade entre pais divorciados parecia radical na década de 1950, mas agora é amplamente aceita como uma opção positiva para muitas famílias, então os críticos não devem descartar o movimento de birdnesting, mesmo que atualmente pareça uma ideia de nicho. "Minha esperança é que no futuro, à medida que a consciência em relação ao nesting cresça, se torne uma rotina, que as pessoas comecem seu processo de separação com um período de nesting de alguns meses ou até mais." Em Estocolmo, Niklas Björling está desfrutando agora de um novo capítulo em um pequeno apartamento alugado, a uma curta distância de carro de sua ex-mulher, que ele divide com os filhos a cada duas semanas, e com sua nova namorada quando eles não estão por perto. Ao refletir sobre a experiência de nesting que teve anteriormente, ele diz: "Não me arrependo de ter feito... Mas você quer ficar totalmente livre depois de um tempo."
2021-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-58268835
sociedade
Por que fazer elogio é bom para quem o faz – mesmo que ele não saiba
"A feliz elaboração de um elogio", observou certa vez o escritor americano Mark Twain, "é um dos mais raros dons humanos, e a feliz expressão deste, é outro." Twain estava descrevendo um encontro com o imperador da Alemanha, que havia elogiado seus livros. Mas todos nós podemos, sem dúvida, nos identificar com este sentimento: receber elogios sinceros e bem elaborados pode ser tão bom quanto um golpe de sorte inesperado. Infelizmente, nossa ansiedade em relação a como os outros podem perceber nossas próprias palavras pode nos impedir de fazer elogios. Afinal, ninguém quer parecer desajeitado, paternalista ou puxa-saco. "Elogios são a maneira mais fácil de fazer outras pessoas — e, como resultado, nós mesmos — se sentirem melhor", diz Nicholas Epley, professor de ciência comportamental da Universidade de Chicago, nos EUA. "Mas quando um pensamento apreciador vem à mente, as pessoas geralmente não expressam." Três novos estudos sobre a psicologia de fazer e receber elogios sugerem, no entanto, que nossos temores em relação à maneira como nossos elogios serão recebidos são completamente infundados. E, ao nos livrarmos desse desconforto, todos nós poderíamos ter um relacionamento melhor com nossos amigos, familiares e colegas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Só há relativamente pouco tempo é que os psicólogos passaram a prestar mais atenção aos elogios, com a maior parte das primeiras pesquisas analisando seu potencial persuasivo. Em um estudo memorável de 2010, Naomi Grant, professora associada de psicologia na Mount Royal University em Calgary, no Canadá, convidou os participantes a participar de um estudo sobre "formação de impressões". Enquanto os participantes preenchiam um questionário um tanto enfadonho, um ator — se passando por um estudante iniciante de psicologia — puxava um papo que envolvia elogiar casualmente as roupas do participante. Depois de um pouco mais de conversa fiada, o ator mencionava que estavam distribuindo panfletos sobre um evento profissionalizante na universidade e perguntava ao participante se ele gostaria de pegar alguns para distribuir. Os efeitos do elogio foram dramáticos: 79% dos participantes ofereceram ajuda para divulgar o evento, em comparação com apenas 46% dos participantes de um outro grupo de controle, que não receberam o elogio. O estudo mais recente de Grant mostra que isso vem de um senso de reciprocidade. Em geral, quanto mais as pessoas acreditam que uma boa ação merece outra, mais propensas são de acompanharem o elogio com uma ação prestativa. Em inglês, costumamos dizer que estamos "paying" someone a compliment ("pagando" um elogio a alguém, em tradução literal) — e a pesquisa de Grant sugere que geralmente consideramos isso como parte de uma transação. O senso de reciprocidade também pode explicar por que o feedback positivo pode ser uma ferramenta tão poderosa no ambiente de trabalho. Um estudo realizado por pesquisadores da empresa de tecnologia Intel e da Duke University, nos EUA, mostrou que elogios verbais eram mais eficazes para aumentar a produtividade do que bônus em dinheiro. "As pessoas geralmente não percebem que algo tão pequeno pode ter um impacto tão grande", explica Vanessa Bohns, professora de psicologia social na Universidade Cornell, nos EUA, e autora de You Have More Influence Than You Think ("Você tem mais influência do que pensa", em tradução literal). Infelizmente, a própria pesquisa de Bohns mostra que raramente valorizamos o poder de nossas palavras. Em parceria com Erica Boothby, da Universidade da Pensilvânia, nos EUA, Bohns pediu aos participantes que fossem a um local designado no campus e fizessem um pequeno elogio a um estranho aleatório. (Para reduzir possíveis mal-entendidos sobre sua motivação, os participantes foram orientados a abordar alguém do mesmo sexo.) Para avaliar seus preconceitos, os participantes primeiro tiveram que estimar o quão satisfeita, lisonjeada ou desconfortável a pessoa se sentiria ao receber o elogio. Depois de fazerem o comentário, eles entregaram ao destinatário do elogio um envelope lacrado contendo um pequeno questionário sobre como o estranho realmente se sentiu em relação à interação. Após vários experimentos, os pesquisadores descobriram que os participantes subestimaram significativamente o quão feliz a outra pessoa ficaria ao ouvir o elogio, e superestimaram consideravelmente o quão constrangedora seria a situação. "Eles sentiam que essa interação seria muito esquisita e que seriam meio desajeitados (ao fazer o elogio)", diz Bohns. Mas a troca real foi muito mais agradável. Epley tem analisado ideias semelhantes com Xuan Zhao, psicóloga da Universidade de Stanford, nos EUA — mas, em vez de se concentrar em trocas entre estranhos, eles pediram aos participantes que elogiassem alguém que já conheciam. Assim como Bohns e Boothby, Epley e Zhao descobriram que os participantes eram consistentemente pessimistas em suas previsões de como seria a interação. Eles presumiram que seus conhecidos ficariam menos satisfeitos e mais constrangidos do que realmente se sentiram ao receber o elogio. Investigando mais a fundo, Epley e Zhao descobriram que esses medos pareciam surgir das percepções dos participantes de sua própria "competência" social; eles temiam não articular o elogio corretamente. "Acontece que o destinatário não dá a mínima para isso", diz Epley. "Eles só se importam com o quanto o elogio é bom ou amável." (O estudo está aguardando publicação no Journal of Personality and Social Psychology.) "Trata-se de fazer com que a outra pessoa se sinta percebida", diz Zhao. É claro que existe o perigo de você exagerar. Se você elogiar excessivamente um amigo, parceiro ou colega, ele pode ficar cansado ou até mesmo começar a achar que é um pouco desagradável. No entanto, pesquisas adicionais de Epley e Zhao sugerem que essa reação também é muito menos provável do que podemos acreditar. Neste estudo, eles recrutaram novamente pares de participantes que já se conheciam. Um membro de cada par foi convidado a escrever cinco elogios distintos para seu conhecido. Os pesquisadores fizeram então estes elogios ao destinatário, aos poucos, ao longo da semana seguinte — um elogio por dia. De uma maneira geral, o prazer dos destinatários em ouvir os elogios não diminuiu ao longo da semana. "Eles se sentiam muito bem, todos os dias", diz Epley. Se você pretende aplicar esta pesquisa por conta própria, Bohns enfatiza a importância do contexto. Obviamente, não é apropriado elogiar a aparência de alguém se houver algum risco de você estar objetivando essa pessoa. "A etiqueta é se ater a elogios que realmente transmitam o valor social de alguém", diz ela. Isso pode incluir elogios a uma apresentação ou à maneira como alguém lidou com um cliente difícil. Se você tem um pensamento que demonstra respeito genuíno por outra pessoa, a mensagem da pesquisa científica é clara: compartilhe. Ao contrário do aforismo de Twain, você não precisa de nenhum dom raro para mostrar seu apreço pelas melhores qualidades de alguém. "Não custa nada", diz Zhao. "É uma maneira muito eficiente de fazer outras pessoas se sentirem felizes."
2021-08-27
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-58143477
sociedade
'Nem toda mulher que usa véu é oprimida': o que diz Boushra Almutawakel, autora da imagem viral de mãe e filha de burca
Uma mãe, sua filha e uma boneca passam por uma transformação com véus muçulmanos, por meio de nove imagens, até estarem completamente cobertas por burcas e, finalmente, desaparecerem por completo. A montagem com a série de fotos viralizou nas redes sociais desde que o Talebã retomou o poder no Afeganistão. Criada em 2010 pela fotógrafa iemenita Boushra Almutawakel, a obra voltou a circular em meio à crise no país sob a legenda "desaparecimento". A repercussão surpreendeu a própria autora, considerada uma defensora dos direitos da mulher e uma pioneira no mundo muçulmano. "Passei de 1.500 seguidores a 20.000 em dois dias, é uma loucura", disse ela de Dubai, onde atualmente mora com sua família, à BBC Mundo, serviço de notícias em língua espanhola da BBC. A artista admite, contudo, ter "sentimentos contraditórios" em relação aos acontecimentos dos últimos dias. Embora feliz com o fato de que seu trabalho esteja tendo impacto, ela acha que ele foi mal interpretado e tem sido usado como uma forma de criticar o Islã e o uso do véu (ou hijab). Nesta entrevista, Almutawakel fala sobre a mensagem intencionada por sua obra e afirma que a "misoginia patriarcal" não é encontrada apenas no mundo árabe e muçulmano, mas "em toda parte". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC Mundo - Suas fotografias, em especial a série 'Mãe, Filha e Boneca', foram amplamente compartilhadas nas redes sociais nos últimos dias. Qual a mensagem da obra? Boushra Almutawakel - É um comentário sobre a misoginia patriarcal. Medo, controle e intolerância. O que será necessário para que esses extremistas aceitem as mulheres; quantas camadas serão necessárias? A sensação é que a única coisa que os deixará felizes é que as mulheres sejam de fato invisíveis. Eu venho do Iêmen, um país que sempre foi muito conservador. A partir dos anos 80, contudo, cresceu a influência do wahabismo, da Arábia Saudita, e eu pessoalmente senti que as coisas estavam ficando muito extremas. E, para mim, isso não tem nada a ver com o Islã. Antes, os véus eram coloridos. Cada aldeia tinha seu próprio véu. Em algumas aldeias, as mulheres nem cobrem o rosto. Não sou contra o hijab. Se fosse assim, teria aberto a série com uma mulher de biquíni. Mas onde está escrito que uma menina de 5 anos deve cobrir o cabelo? É como se a cultura fosse muito mais forte do que a religião. Há muitas coisas maravilhosas em nossa cultura, mas a parte misógina, a parte extremista, de cobrir completamente as mulheres, escondê-las, usá-las como propriedade, não faz parte do Islã. BBC Mundo - Algumas pessoas têm usado as suas fotos para criticas o Islã de forma geral. Como vê isso? Almutawakel - É definitivamente um uso indevido e uma deturpação, porque a série "Mãe, Filha e Boneca" faz parte do meu trabalho como muçulmana, como árabe, como mulher iemenita usando o hijab. Quando eu volto para casa (para o Iêmen), eu uso o hijab. Fui alvo de muito ódio, principalmente de mulheres árabes que me dizem que sou contra o Islã e o hijab. E esse era o medo que eu tinha de exibir meu trabalho no Ocidente — algumas pessoas da direita usaram meu trabalho para mostrar como as mulheres islâmicas estariam sendo oprimidas. E meu trabalho não é sobre o Islã, é sobre extremismo. É sobre a misoginia patriarcal, que não é encontrada apenas no mundo árabe e muçulmano, está em toda parte. BBC Mundo - Você tem sentimentos contraditórios em relação à repercussão da obra? Almutawakel - Sim. Fico feliz que as pessoas estejam vendo meu trabalho, mas estou um pouco chateada, porque é como se as pessoas estivessem usando meu trabalho para reforçar uma mensagem que elas querem passar. Muçulmanos e árabes pensam que estou do lado do Ocidente, que sou contra o Islã. Mas isso vem do uso incorreto e deturpado da obra. E não estou falando pelas mulheres afegãs. Elas podem falar por si próprias. Eu acredito que as pessoas devem escutar, e não falar em nome dos outros. E é isso que acontece com o Ocidente. Sei que a intenção é positiva, mas também queremos nos salvar a nós mesmas, e temos voz. O Ocidente não pode continuar a falar por nós. As mulheres afegãs precisam se manifestar. E tenho certeza que elas vão. Elas têm vozes, são fortes. BBC Mundo - Qual papel então deveria ter o Ocidente em crises como a que acontece no Afeganistão? Almutawakel - O Ocidente não precisa nos salvar. De todo modo, o Ocidente nos destruiu. O Talebã foi criado pelos Estados Unidos para que pudessem lutar contra os soviéticos. E eles deixaram o Talebã para o povo afegão. Quem precisa deles? Que tipo de mundo é esse? Eu gostaria que o Ocidente ficasse fora de nossos países, incluindo o meu. Eles destruíram o Oriente Médio em todos os aspectos. BBC Mundo - A possibilidade de a crise no Afeganistão aumentar ainda mais a islamofobia a preocupa? Almutawakel - Claro que preocupa. E claro que aumenta. Mas a islamofobia existe com ou sem o Talebã, vem desde 11 de setembro de 2001. Se não existissem os talebãs, buscariam outra coisa para alimentar essa propagando que dissemina que o Islã é o mal. Muito disso infelizmente tem a ver com ignorância, medo e incompreensão. BBC Mundo - Qual a inteção por trás da série "What if..." ("E se..."), que mostra um homem usando uma burca? Almutawakel - Não estava tentando provocar. Enquanto estava na faculdade nos Estados Unidos, passei por uma fase religiosa e usei o hijab por um ano. Lembro-me de quando era verão, eu sentada ali, suando, e vi os jovens árabes muçulmanos de shorts... pessoalmente, aquilo não fazia sentido para mim. Então eu tirei [o véu]. E pensei: como seria o contrário? Se os homens fossem os únicos a usar o hijab. Era uma pergunta surreal que eu queria traduzir por meio de fotos. Lembro que expus a série no Museu Nacional do Iêmen. E, para minha grande surpresa, muitas mulheres adoraram. Acho que quase todos os homens detestaram. Lembro-me de uma briga com um médico que estudou nos Estados Unidos. Ele me perguntava: o que você está tentando dizer? Que os homens devem ser mulheres? Você está questionando o que Deus disse? Ele levou isso muito a sério. BBC Mundo - Você viveu por vários anos na França, um dos países que proibiu o uso da burca publicamente. Como foi a experiência? Almutawakel - É muito contraditório. O lema da França é igualdade, liberdade e fraternidade, mas a realidade é outra. Os muçulmanos são uma minoria, são marginalizados. E eles focam nas mulheres, as mais marginalizadas, as mais vulneráveis, é como uma forma de extremismo, mas na outra direção. Parece horrível para mim, ainda mais horrível porque o Ocidente foi educado na modernidade, com base na liberdade e na liberdade de expressão. Mas não é verdade. Simplesmente não é verdade. BBC Mundo - Qual sua opinião sobre o intenso debate em torno do véu? Almutawakel - Não estamos focando nos reais problemas. Sempre se diz às mulheres o que fazer, para usar o hijab ou tirá-lo, ser magra, ser jovem... Deixem-nos em paz! Veja o que é a indústria de maquiagem e do bem-estar. Os bilhões de dólares que circulam aí. As mulheres passam por cirurgias plásticas e morrem de fome para ficarem magras. Essa também é uma forma de opressão. Muitas das mulheres que se cobrem são médicas, políticas, escritoras, advogadas, artistas. E elas são fortes. Não porque seu rosto ou seu corpo estejam cobertos, mas por seu intelecto. Algumas pessoas no Ocidente veem uma mulher com véu e imediatamente presumem que ela está oprimida e precisa ser salva. Mas nem todas as mulheres que usam hijab são oprimidas. E não estou falando pelas mulheres afegãs, mas pelas iemenitas e por mim. BBC Mundo - Você se preocupa com a supressão de direitos das mulheres pelo avanço dos talebãs no Afeganistão? Almutawakel - Sim, claro, tenho medo como todo mundo. As coisas que aconteceram no passado, mulheres que levam tiros, que são tiradas da escola, de seus empregos, que são mortas, é horrível. Qualquer forma de fundamentalismo, de extremismo, onde não haja espaço para flexibilidade, para discussão, para diálogo, é assustador. No entanto, acho que estamos vivendo uma época diferente, porque agora temos telefones celulares e redes sociais, e eles não podem fazer as coisas como antes. Também acredito que desta vez muitas mulheres lutarão mais. Tiveram 20 anos de vida melhor e são fortes, ambiciosas e capazes. Eu tenho fé nelas.
2021-08-22
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58295032
sociedade
'Como descobri que meu pai era um escritor de best-sellers sobre sexo'
Sara Faith Alterman era próxima do seu pai, um homem aparentemente austero e recatado. Até que ela descobriu que ele escondia um segredo. Criada perto de Boston, Massachusetts, nos anos 1980, Sara sempre sentiu uma ligação especial com seu pai, Ira. "Meu pai e eu sempre fomos muito parecidos", diz ela. "Até fisicamente, o que agora é engraçado, sabe, como uma menininha poderia ser parecida com um homem judeu de 40 anos. Nós tínhamos as mesmas características faciais, o mesmo cabelo e eu meio que queria imitá-lo." Ira seria sempre a pessoa que ela procuraria quando tivesse um problema que precisasse de solução. Ele transmitiu para Sara e para o irmão dela seu amor pela linguagem e por jogos de palavras - ele havia trabalhado como jornalista antes de mudar para o marketing e as viagens da família seriam marcadas por jogos de palavras, trocadilhos e rimas. "Eu queria ser como ele em tantas formas", afirma ela. "Por isso eu aprendi tanto com aqueles jogos que fazíamos no carro. Eu realmente achava engraçado misturar palavras e conseguir coisas novas - parecia uma habilidade estranha do meu pai que muitos dos meus amigos não tinham." Os pais de Sara eram apaixonados por quebra-cabeças e por organizar caças ao tesouro. Eles só não gostavam de nada que pudesse ameaçar a inocência dos seus filhos - por isso, todos os assuntos de adultos eram completos tabus, especialmente o sexo. "Meus pais se comportavam como se essas coisas não existissem", afirma ela. "Acho que nunca ouvi meu pai usar a palavra 'sexo' antes dos meus 30 anos de idade." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O pior era se estivessem assistindo a um filme ou programa de televisão que incluísse uma cena romântica. "O meu pai dizia 'Opa!' e se levantava para mudar o canal o mais rápido possível ou retirar a fita do videocassete", conta Sara."Às vezes, se ele não alcançasse o botão da TV rapidamente, ele simplesmente tirava o plugue da tomada." "Acho que ele não queria responder perguntas sobre isso. Acho também que ele se sentia muito desconfortável sentado na sala com seus filhos com alguma coisa relacionada a sexo acontecendo." Mas, um dia, quando ela tinha oito anos de idade, Sara fez uma descoberta que desafiou tudo o que ela achava que sabia sobre ele. Sozinha em um cômodo da casa da família e cansada do livro que estava lendo, Sara começou a examinar as estantes. Até então, ela não tinha altura suficiente para alcançar as prateleiras mais altas, mas agora ela descobriu que já podia fazê-lo. No canto mais acima, à direita, ela viu, escondido atrás de outros livros, um conjunto de brochuras com cores vivas firmemente embaladas, claramente para ocultá-las da visão. "Eu pensei: 'bem, é claro que é isso que vou ver", diz Sara. Ela afastou os livros da frente e agarrou vários. Eles eram diferentes de qualquer livro que Sara havia visto antes. As suas capas exibiam ilustrações de "mulheres atraentes e homens com aparência muito excitada, sentados no colo uns dos outros e se beijando", relembra ela - se aparecessem na TV da família, o pai dela teria mudado imediatamente de canal. Muitos dos títulos incluíam a palavra "sexo" - os mais comportados incluíam "Como pegar garotas" e "O manual do sexo para pessoas com mais de 30 anos" (em tradução livre). Nesse momento, Sara ouviu que seus pais estavam vindo. Ela sabia que não deveria estar olhando esses livros e foi colocá-los de volta. Foi quando ela observou um detalhe que a deixou totalmente confusa. "Eu vi na página de título de um dos livros: 'por Ira Alterman' - que era o nome do meu pai, e pensei: "Espere aí, o que é isso? O meu pai não escreve livros." De fato, ela observou que o pai dela era indicado como o autor de todos os livros. "Fiquei muito confusa e não tive tempo de processar isso porque precisava colocar rapidamente os livros no lugar", conta Sara. "Levei um tempo para entender que, sim, meu pai havia escrito aqueles livros impróprios sobre sexo que eu não deveria olhar", diz ela. Mais tarde, ela descobriria que, desde os anos 1970, os livros para adultos de Ira haviam vendido milhões de cópias em todo o mundo, traduzidos para muitos idiomas. Mas ela definitivamente não podia perguntar para ele diretamente sobre nada disso. Quando ela trouxe para casa uma papeleta de permissão para que pudesse participar de aulas de educação sexual, já havia sido muito constrangedor - Ira não conseguia olhar para ela nos olhos enquanto assinava. Por isso, discutir sua atividade de escritor era impensável. "Acho que a maioria das crianças tem esse momento em que elas descobrem que os seus pais não são intocáveis, não são super-heróis, não sabem tudo - e isso poderá ocorrer junto com a revelação em que as crianças entendem que 'oh, meu Deus, meus pais fizeram sexo, fizeram sexo para que eu nascesse e provavelmente ainda fazem', afirma ela. A relação dela com seu pai foi também afetada pelo descompasso entre a carreira dele como escritor e como ele se comportava em casa. "Eu parei de confiar nele até certo ponto porque eu sabia que o pai que ele me mostrava não representava totalmente a pessoa que ele era", conta ela. Mas, quando Sara se tornou adolescente e foi para o ensino médio, ela retornou em segredo para os livros escondidos. Ela havia conhecido o seu primeiro namorado. Mas eram os anos 1990 e conseguir informações sobre o que aconteceria a seguir não era tão fácil. E, por estranho que possa parecer, os livros do seu pai eram melhor do que nada. Mas havia também um lado negativo. Os títulos escritos por Ira eram parte de uma série de livros mais ampla - todos de autores homens - que apresentavam uma personagem chamada Bridget. "Bridget era uma mulher gorda", diz Sara, e a personagem era alvo de zombarias sobre a ideia de que uma mulher gorda seria sexy. Olhando para trás, Sara agora compreende que isso incutiu nela a ideia de que mulheres acima do peso não mereciam ser objeto de desejo, o que causou efeito negativo sobre a sua percepção do próprio corpo. "Foi algo ainda mais horrível saber que o meu pai fazia essas brincadeiras e que o meu pai achava que as mulheres gordas não eram merecedoras de amor e sexo", conta Sara. Por isso, nas duas décadas que se seguiram, embora eles permanecessem próximos, os livros de Ira permaneceram um tabu que Sara não conseguia discutir com ele. Nessa época, ela saiu de casa, conheceu um homem chamado Sam e se casou com ele. Eles se mudaram para o outro lado do país, na costa oeste, onde ela se tornou uma escritora bem sucedida. Mas, enquanto Sara progredia em sua nova vida, o pai dela parecia estar na direção contrária. Já com mais de 60 anos de idade, Ira perdeu o trabalho no setor de marketing que manteve por 30 anos. "Foi muito doloroso ver um homem que sempre considerei uma espécie de super-herói e que foi minha referência para tantas coisas na vida, de repente, lutando de uma forma que eu nunca havia visto antes", relembra Sara. Enquanto ela o ajudava a procurar emprego, ela observou que alguma coisa não estava muito certa. "Meu pai me fazia as mesmas perguntas várias vezes e ficava muito frustrado", conta Sara. Primeiramente, ela achou que fosse apenas um sinal da idade. Depois ela foi visitá-lo e ficou horrorizada vendo-o dirigir de forma irregular. "Era muito assustador, mas novamente atribuí tudo isso à sua idade." A mudança de comportamento mais alarmante veio quando Ira anunciou que havia parado de procurar emprego. No início, Sara ficou aliviada, achando que isso significava que o seu pai agora entraria em uma aposentadoria precoce, mas feliz. Até que ele disse que tinha uma ideia de negócio em mente. Ira disse que iria começar a escrever livros novamente. Sara congelou. Ela perguntou o que ele queria dizer com escrever livros novamente? Eles ainda não haviam discutido a carreira dele como autor. Ele contou que tinha uma ideia para um livro infantil, baseado em um cão doméstico muito querido. "E então ele disse: 'e também quero começar a escrever livros como costumava fazer, pois eles eram muito populares e vou querer sua ajuda com eles'." Sara perguntou do que ele estava falando. Ela sabia exatamente o que ele queria dizer, mas queria ouvir da boca dele. Mas ele contou que havia se inspirado no recente casamento dela para escrever um livro chamado "A Noiva Travessa" (tradução livre do inglês), que seria destinado a "noivas e recém-casadas, para servir de guia de como agradar o seu homem na noite de núpcias", segundo Sara. "Foi um choque para mim porque foi a primeira vez que ele reconheceu esses livros e eu também nunca havia ouvido meu pai dizer a palavra 'sexo', nem falar sobre nenhum tema sexual antes." No início, Sara recusou-se a ajudar o seu pai com esse pedido bizarro. Mas, pouco depois, surgiu uma explicação para a dramática mudança de comportamento de Ira. Em abril de 2014, quando Sara tinha 34 anos e Ira tinha 68, ela recebeu um email da sua mãe. A mensagem dizia que ela e o marido haviam visitado um neurologista, que diagnosticou Ira com Alzheimer. Sara havia acabado de saber que estava grávida e a notícia foi devastadora. Ela voou para Massachusetts para falar pessoalmente com o neurologista de Ira. Ele contou a ela que Alzheimer é uma doença cerebral progressiva que destrói lentamente a memória e a capacidade de raciocínio. É degenerativa e terminal - ao fim, perde-se totalmente a capacidade de realizar as tarefas mais simples. "Uma das coisas que o médico disse foi que pessoas com Alzheimer tendem a perder o seu encanto social", diz Sara. "Por isso, não fique ofendida se o seu pai começar a ser inadequado em alguns momentos, ou comportar-se de forma que você não reconhece - isso é apenas uma característica da doença e não significa que o seu pai subitamente se tornou uma pessoa pior ou diferente." Apesar da tragédia do diagnóstico de Ira, ele veio como um alívio para Sara. Finalmente ela compreendia por que ele havia começado a agir de forma tão diferente. Por isso, Sara decidiu ajudar Ira da forma que pudesse. Antes que fosse tarde demais, ela concordou em ajudá-lo a escrever os seus livros. Não foi fácil para ela - discutir sobre sexo com seu pai ainda parecia profundamente estranho e ela ainda mantinha sentimentos residuais de vergonha e desgosto sobre a forma como havia descoberto seus livros quando criança. Mas ela encontrou uma forma de colocar tudo isso de lado. "Eu nem escrevi muito - meu trabalho foi mais de edição e feedback. Ele me ligava com ideias de livros ou capítulos novos sobre alguma posição ou tendência sexual, ou qualquer coisa em que estivesse pensando no momento", conta ela. "Eu precisava atender às ligações e aconselhá-lo, ou ele me enviava manuscritos impressos dos seus livros para que eu analisasse, editasse e colaborasse com a criação, embora algumas vezes eu o fizesse com um olho fechado, literalmente." Pouco tempo depois, Ira anunciou que queria voltar à sua cidade natal de Perkasie, na Pensilvânia, para rever os lugares associados à sua infância feliz antes que se esquecesse deles. "Ele queria ir aos campos de baseball e ver onde ele e seus irmãos jogavam... ver um carrossel histórico com belos cavalos entalhados na madeira...", conta Sara. "Ele sabia que a sua vida estava chegando ao fim e a viagem era uma oportunidade de passar algum tempo muito especial com ele." Havia um estímulo ainda maior para a viagem - na época, Sara estava grávida de seis meses. Ira sobreviveu para conhecer seu neto, mas sabia que nunca veria o bebê crescer. Ira Alterman morreu em 6 de julho de 2015, dois dias depois do seu aniversário de 70 anos. Pouco tempo depois, os livros para adultos que ele pediu para Sara ajudar foram publicados, com algum sucesso comercial. Mas havia um outro projeto para o qual ele também pediu a ajuda de Sara. Ira havia sempre contado histórias para dormir, para ela e para o irmão - "ele inventava todo tipo de histórias maravilhosas sobre a nossa família e os nossos gatos, ou criaturas mágicas", lembra Sara. Embora ele ainda se recordasse, Sara e sua mãe o ajudaram a escrever uma coletânea dessas histórias, para que seus netos pudessem ler. Transcrevendo suas palavras, ela conta, "fui transportada de volta para minha infância, em total admiração da capacidade do meu pai de juntar palavras, da mesma forma que admirava sua capacidade de juntar palavras quando brincávamos com seus jogos de palavras no carro". Sara escreveu um livro de memórias intitulado "Nunca mais vamos falar disso" (em tradução livre), sobre o seu relacionamento com seu pai. No final, ela incluiu uma das histórias para dormir de Ira, chamada "O menino do suéter feio" (em tradução livre). O personagem principal chama-se Colin, nome do filho de Sara. Embora o menino vá crescer sem conhecer Ira, ele já tem essa lembrança do avô. O pequeno Colin estava muito animado. Era seu aniversário e sua avó havia enviado um presente em uma caixa muito grande. "Meu Deus", pensou ele enquanto retirava as belas fitas, laços e o papel de presente. "Isso vai ser ótimo!" Ele pegou a caixa e retirou um presente grande, embalado em papel dourado. Ele rasgou o papel e agarrou... o suéter mais feio que ele já tinha visto. "Este é o suéter mais feio que já vi", gritou ele... "Meu filho adora essa história", diz Sara. "Assim conseguimos, de certa forma, atender ao desejo do meu pai de manter uma ligação com seus netos." As fotos são de propriedade de Sara Faith Alterman.
2021-08-22
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58297428
sociedade
OnlyFans: investigação da BBC mostra como a plataforma lida com conteúdo ilegal
Documentos internos, aos quais a BBC News teve acesso, revelam que o OnlyFans — site que oferece conteúdo por assinatura — permite aos moderadores dar várias advertências a contas que postam conteúdo ilegal em sua plataforma antes de decidir fechá-las. Descritos como "manual de compliance", os documentos também mostram que os funcionários são solicitados a serem mais lenientes com as contas bem-sucedidas do serviço britânico de compartilhamento de conteúdo. Especialistas em moderação de conteúdo e em proteção infantil dizem que isso mostra que o OnlyFans — que é mais conhecido por hospedar pornografia — tem uma certa "tolerância" com contas que postam conteúdo ilegal. O OnlyFans, por sua vez, afirma que vai muito além de "todos os padrões e regulamentos de segurança globais relevantes" e não tolera violações de seus termos de uso. O anúncio foi feito depois que a BBC News abordou a empresa para comentar os documentos vazados e preocupações sobre a gestão de contas que publicam conteúdo ilegal. O OnlyFans disse que ainda permitiria aos criadores de conteúdo postar fotos e vídeos com nudez se estivessem de acordo com seus termos de uso, que serão atualizados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O site tem mais de 120 milhões de assinantes, que pagam mensalidade e gorjetas aos "criadores" de vídeos e fotos, com a possibilidade de enviar mensagens pessoais para eles. O OnlyFans fica com 20% de todos os pagamentos. Em maio, a BBC News revelou que o site estava deixando de impedir menores de 18 anos de vender e aparecer em vídeos explícitos, apesar de ser ilegal. Na época, o OnlyFans disse que tentativas de usar o site de forma fraudulenta eram "raras". Agora, os documentos vazados mostram que as contas não são encerradas automaticamente se violarem os termos de uso do site. Moderadores de conteúdo da plataforma também contaram à BBC News que encontraram anúncios de serviços de prostituição, bestialidade e material que um moderador acredita ser incesto. A BBC viu exemplos de alguns desses conteúdos proibidos. Em um vídeo, um homem aparece comendo fezes. Em outro, um homem paga moradores de rua para fazer sexo com ele diante das câmeras. O OnlyFans diz agora que removeu os vídeos e que os documentos não são manuais ou "orientação oficial". Em comunicado, a empresa afirma: "Não toleramos qualquer violação de nossos termos de uso e tomamos medidas imediatas para garantir a segurança de nossos usuários." Os moderadores com quem conversamos nos deram uma perspectiva de como o conteúdo do site é verificado. Christof (nome fictício) diz que em alguns dias visualiza até 2 mil fotos e vídeos em busca de conteúdo proibido pelo site. Ele usa listas de palavras-chave para pesquisar em bios, posts e trocas de mensagens privadas entre criadores de conteúdo e assinantes. Ele conta que encontrou conteúdo ilegal e extremista em vídeos — incluindo zoofilia envolvendo cães e o uso de câmeras escondidas, armas, facas e drogas. Alguns materiais não são procurados ativamente pelos moderadores com a frequência que ele acredita que deveria, diz Christof, apesar de serem proibidos pelos termos de uso da plataforma. Em várias ocasiões, ele afirma que foi informado pelo OnlyFans que havia moderado demais, particularmente em relação a vídeos mostrando sexo em público e conteúdo de "terceiros" — material apresentando pessoas não registradas no OnlyFans. O OnlyFans diz que os moderadores recebem instruções específicas, e se eles rotineiramente vão além delas, são "direcionados a se concentrar apenas no tipo de conteúdo designado". Christof afirma ainda que apesar de proibida, a propaganda de prostituição é comum entre pessoas de baixa renda no site. Christof, e uma segunda pessoa que também modera conteúdo do site, dizem que alguns criadores de conteúdo oferecem competições para conhecer e fazer sexo com fãs, como uma forma de aumentar o pagamento de gorjetas. Um dos documentos a que a BBC teve acesso detalhando as diretrizes de moderação em 2020, afirma que anúncios de sexo são um problema para o site. Diz que os "locais mais populares para promoção de acompanhantes" no site são os nomes de usuário dos criadores de conteúdo, biografias, descrições de conteúdo e "menus de gorjetas", que anunciam vídeos customizados. O documento cita que os "exemplos" deste tipo de promoção incluem referências a "PPM (pay per meet)", "CashMeets", "Book me", "IRL Meet", "scort", entre outros. Apesar disso, a BBC News foi capaz de encontrar mais de 30 contas ativas usando essas palavras-chave em bios, perfis e postagens, em um único dia. O perfil de um criador de conteúdo o descrevia como "[e]scort — parceiro sexual". Uma conta diferente perguntava: "Alguém quer me 'reservar' para um fim de semana?" Apenas duas das contas que encontramos foram removidas 10 dias depois. O OnlyFans diz que respeita seus termos de uso, utiliza formas de moderação humanas e tecnológicas e fecha contas quando há uma violação grave de seus termos. Mas os documentos mostram que, embora o conteúdo ilegal em si seja removido, o OnlyFans permite que os moderadores deem aos criadores de conteúdo várias advertências antes de fechar as contas. Um deles, de fevereiro deste ano, revela que o OnlyFans recomenda que sejam dadas três advertências às contas quando um conteúdo ilegal é descoberto. E fornece modelos para cada aviso sucessivo — explicando por que o material foi removido e que o não cumprimento dos termos de uso pode resultar no encerramento da conta. A BBC obteve várias versões com datas diferentes do mesmo documento de 2021. Todas, exceto a mais antiga, afirmam que deve haver pelo menos cinco exemplos de conteúdo "ilegal" em uma conta para que o caso seja "escalado" imediatamente à gerência. Versões mais recentes incluem uma declaração aparentemente contraditória exigindo encaminhamento imediato à gerência para alguns exemplos de conteúdo ilegal. O documento também fornece aos moderadores instruções específicas para lidar com as contas — dependendo da popularidade de cada uma. Diz que contas com um número maior de assinantes podem receber advertências adicionais quando as regras são violadas. No entanto, a equipe é instruída a moderar as contas com baixo número de usuários "como faríamos e [restringir] quando for necessário". Com contas de médio alcance, eles são orientados a advertir, "mas restringir apenas após o terceiro aviso". Se um dos criadores de conteúdo do site mais bem-sucedidos — e lucrativos — infringir as regras, o caso será tratado por uma equipe diferente. "Existe uma discriminação entre contas", diz Christof. "Isso mostra que o dinheiro é a prioridade." O segundo moderador acrescenta que com violações de qualquer tipo, "você recebe algumas advertências, não recebe apenas uma e então está fora." Um especialista em moderação de conteúdo diz que os documentos mostram claramente que o OnlyFans tem uma "certa tolerância" com material ilegal. "Isso sugere que eles conhecem o suficiente o tipo de conteúdo ilegal que seus usuários estão tentando fazer upload para ter padrões para isso", afirma Sarah Roberts, codiretora do Centro de Investigação Crítica da Internet da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), nos Estados Unidos. "Como [o OnlyFans] tem uma certa dose de leniência, isso também sugere que eles não estão dispostos a alienar completamente seus criadores de conteúdo — mesmo pessoas que podem fazer coisas ilegais na pior das hipóteses, inadequadas na melhor das hipóteses — retirando eles imediatamente da plataforma." Apesar de ser descrito como um "manual de compliance" no cabeçalho de cada página de todas as versões do documento de 2021, o OnlyFans afirma que os documentos não são manuais ou "orientações oficiais". O primeiro documento — de 2020 — tem edições atribuídas a Tom Stokely, diretor de operações da empresa. Christof conta que frequentemente se depara com conteúdos em que teme que as pessoas possam estar sendo exploradas. Ele diz que embora os documentos estabeleçam instruções para lidar com conteúdo proibido, eles não contêm requisitos para os moderadores levantarem questões sobre exploração. Vídeos, a que a BBC assistiu, do homem pagando moradores de rua para fazer sexo diante das câmeras levantaram tais preocupações. A conta se gaba de "caçar" sem-teto e fala abertamente sobre "tirar vantagem" deles. Uma conta diferente apresenta sinais característicos de tráfico e exploração, de acordo com um advogado que direcionou a BBC News para a mesma. Uma mulher, cujo rosto nunca é mostrado, aparece em alguns vídeos com as paredes e o chão totalmente cobertos por tapetes — e há referências repetidas a viagens pela Europa. O detetive Joseph Scaramucci, que trabalha no Texas, nos Estados Unidos, diz que atuou recentemente em casos específicos de tráfico de seres humanos em que havia sinais óbvios de mulheres sob o controle de outra pessoa aparecendo em vídeos do OnlyFans. Ele diz que alguns homens ficam felizes em pagar para fazer sexo com essas mulheres — e pagam mais ainda para serem filmados e terem o vídeo publicado no OnlyFans. Neste mês, 101 membros do Congresso americano assinaram uma carta pedindo que o Departamento de Justiça dos EUA investigue o conteúdo do OnlyFans, principalmente com foco na exploração sexual infantil. Em resposta, o OnlyFans disse que tem uma política de tolerância zero em relação a conteúdo de abuso sexual infantil, que denuncia às autoridades relevantes e apoia suas investigações. O agente especial Austin Berrier, do departamento de segurança nacional dos EUA, é especialista em investigar exploração infantil online. Ele estima encontrar entre 20-30 imagens de abuso infantil por semana, que ele diz terem claramente se originado no OnlyFans. Segundo ele, todos os fóruns da internet que visitou como parte de suas investigações nos últimos seis meses mais ou menos, incluíam imagens de abuso infantil proveniente do OnlyFans. A maioria são vídeos que foram transmitidos ao vivo no site. E, de acordo com ele, em alguns deles, as crianças recebem orientações. "Está por aí, está em todo o lugar e está sendo amplamente negociado." Dezenas de contas que parecem ter sido criadas por usuários menores de idade são fechadas todos os dias, de acordo com Christof, que compartilhou com a BBC News um registro de algumas contas fechadas durante um período de algumas semanas. Quase todas as contas de menores de idade são de assinantes, e não de criadores de conteúdo — incluindo, diz ele, crianças de 10 anos. Embora não possam postar fotos ou receber pagamentos diretamente pelo site, Christof afirma que alguns usam a plataforma para anunciar serviços de "acompanhantes" ou a venda de fotos explícitas de si mesmos. O perfil de um assinante afirmava ter 16 anos e anunciava a venda de fotos de pés "ou outras" partes por £ 4. Christof diz que este é um problema particular em contas que não usam o inglês como idioma. De acordo com ele, algumas contas em línguas estrangeiras são insuficientemente moderadas, apesar da enorme popularidade do site em todo o mundo. A BBC News conseguiu abrir duas contas de assinantes em francês e alemão — apesar de declarar explicitamente que eram jovens adolescentes na biografia e anunciar a venda de fotos. As contas permaneceram ativas por uma semana até que a BBC News entrou em contato com o OnlyFans. O OnlyFans disse que todo o conteúdo pode ser denunciado por moderadores, e a empresa cumpre a legislação de combate ao tráfico e fornece treinamento anual para os funcionários. A companhia afirmou ainda que a conta que apresenta moradores de rua viola seus termos e condições e agora foi encerrada, e que analisa ativamente os feeds transmitidos ao vivo. A baronesa Kidron, ativista de direitos das crianças, diz que qualquer leniência em relação a contas que postam material ilegal é "errada". "A resposta está no nome: se for conteúdo ilegal, deve haver tolerância zero", diz a fundadora da instituição 5Rights Foundation, que luta pelo direito das crianças, e membro do comitê pré-legislativo de avaliação do projeto de lei de segurança online, há muito adiado. Segundo ela, as empresas de pagamento devem assumir a responsabilidade pela forma como seus serviços estão sendo usados. "As empresas devem retirar seu apoio comercial, a menos que e até que haja um OnlyFans que seja claramente um site adulto", sugere. Na quinta-feira (19/8), o OnlyFans disse ao Financial Times que a empresa estava proibindo a pornografia na plataforma para "atender às solicitações de nossos parceiros bancários e provedores de pagamentos". Muitos provedores de pagamento, incluindo os gigantes do setor Visa e Mastercard, proíbem o uso de seus serviços para tipos específicos de conteúdo. No ano passado, ambos encerraram seu relacionamento com o Pornhub após denúcias de material ilegal. Kidron também acredita que padrões mínimos de moderação e um código de conduta estatutário devem ser introduzidos para lidar com a leniência em relação a contas que publicam material ilegal. A BBC News soube que o Departamento de Cultura, Mídia e Esporte (DCMS, na sigla em inglês) do Reino Unido foi avisado por uma instituição americana de combate ao tráfico sobre o conteúdo do OnlyFans em 2019 e assistiu a uma apresentação. Em comunicado, o DCMS disse que o projeto de lei de segurança online introduziria as leis mais rigorosas do mundo — e que o OnlyFans enfrentaria multas pesadas ou seria bloqueado se falhasse em combater o conteúdo ilegal. E acrescentou que o Ofcom, órgão regulador britânico de telecomunicações, já tem o poder de suspender sites de vídeo se não tomarem medidas para proteger os usuários de conteúdo prejudicial. Em maio, o OnlyFans publicou seu balanço mais recente e afirmou que "qualquer lapso" no monitoramento de conteúdo de menores e tráfico "poderia trazer sanções governamentais de uma ampla variedade de países e órgãos reguladores". A empresa se recusou repetidamente a ser entrevistada pela BBC News sobre esses assuntos. Em resposta à BBC News, a companhia disse que cumpre integralmente todas as leis e regulamentos que se aplicam a ela globalmente — incluindo as da Ofcom — e que usa um software de monitoramento e verificação de idade de última geração, juntamente ao monitoramento humano. O OnlyFans afirma acreditar que um dos moderadores com quem a BBC News conversou foi um funcionário demitido por repetidas falhas no fechamento de contas contendo material não autorizado. A fonte diz que repetidamente levantou a questão do número de contas de assinantes menores de idade com o OnlyFans. *Com reportagem adicional de Chris Bell.
2021-08-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58279539
sociedade
O que foi a 'grande renúncia masculina', curiosa consequência da Revolução Francesa
Liberdade, igualdade, fraternidade… e uma grande renúncia, em um aspecto da vida cotidiana que nem sempre é associado imediatamente à Revolução Francesa. Como Paris foi o epicentro desse terremoto social, não causa surpresa que as ondas sísmicas sacudissem um mundo onde a cidade ditava as regras: o da moda. Ao longo da história, homens e mulheres no Ocidente usaram roupas e acessórios de luxo para denotar status. Tecidos luxuosos, cores vivas, joias cintilantes, perucas enormes... um visual extravagante e pouco prático costumava ser usado para mostrar o quão rica era uma pessoa. Mas a Revolução Francesa estourou e tudo mudou, inclusive sociedades como a britânica, em que a aristocracia rejeitava a destruição do seu modo de vida no outro lado do Canal da Mancha. A mudança já havia começado com o movimento intelectual conhecido como Iluminismo, que trouxe um novo respeito pelo racional e útil, e uma ênfase na educação em vez dos privilégios. A moda masculina se voltou para roupas mais práticas, e até mesmo os aristocratas ingleses começaram a usar vestimentas simples mais em sintonia com seus trabalhos na administração de suas propriedades no campo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Revolução Francesa reforçou essa tendência à simplicidade e foi ainda mais longe. Em seu ápice, até os objetos e os costumes mais comuns se tornaram emblemas políticos e fontes potenciais de conflito político e social, e as roupas se tornaram uma forma de expressar uma visão política. As vestimentas masculinas se tornaram particularmente emblemáticas. O traje característico dos mais militantes do movimento, os sans-culottes, eram calças largas compridas com pregas na parte inferior, uma jaqueta curta (carmagnole) e um barrete frígio (uma espécie de touca). Esses itens se tornaram um símbolo do igualitarismo jacobino. À medida que os radicais e os jacobinos se tornaram mais poderosos, a repulsa contra a alta costura cresceu, em razão de sua extravagância e sua associação com a realeza e a aristocracia. Os cavaleiros tinham que parecer homens de ação e revolução, nada parecidos com a odiada nobreza, nem em estilo nem em substância. Assim, as calças compridas substituíram as calças de seda na altura dos joelhos usadas pela classe alta, e detalhes como grandes fivelas de metal elaboradas com joias falsas "ao estilo parisiense" foram abandonadas, assim como as cores brilhantes. E embora a alta moda e a extravagância tenham voltado à França durante a era do Diretório (fase da revolução entre 1795-1799), a maneira como os homens se vestiam havia mudado para sempre. Na Inglaterra, o jovem George "Beau" Brummel (1788-1840), amigo do príncipe de Gales e referência de moda masculina na região, percebeu que a mudança tinha muito em comum com vários dos valores tradicionais ingleses, como a modéstia e a moderação. Ele, então, desenvolveu um estilo totalmente novo e discreto. Um cavalheiro, ele disse, deve ser muito limpo, magro e elegante. Suas roupas deveriam ser admiradas pela perfeição de seu corte e ajuste, e feitas em tons sutis e suaves. Em suma, os homens deviam mostrar seus valores por meio da atenção aos detalhes, seus conhecimentos e suas obras, e não simplesmente se cobrindo de símbolos de riqueza. Em detalhes, seu uniforme era um casaco azul com um colete de camurça, camisa de linho esbranquiçada com uma gravata branca, calças de camurça e botas escuras de montaria. À noite, colete branco, calça preta, meias listradas de seda e sapatos pretos. Além disso, Beau substituiu a dependência de perfumes e pós usados para higiene pessoal pelo conceito de banho diário. Seu estilo se espalhou de forma semelhante ao que acontece hoje: alguém influente inova e todos em seu círculo — que no caso de Beau correspondia a 1% da sociedade britânica, graças à sua amizade com a realeza britânica e ao seu charme — o imitam. As roupas de Beau representavam uma elegância discreta que incluía um desdém por qualquer coisa "exagerada". O que ele fez no início dos anos 1800 ainda dá forma ao consenso de muitos sobre como é o bom gosto em roupas masculinas. A mudança não agradou a todos, é claro. Alguns acharam isso tão atroz que em 1929, no Reino Unido, surgiu o Men's Dress Reform Party, ou o movimento pela reforma do vestuário masculino, para o qual períodos como a Revolução Francesa promoveram uma forma "deprimente" de se vestir e sem criatividade, que impedia a individualidade. O psicólogo John Carl Flugel (1884-1955), um dos membros desse movimento, dizia que desde o final do século 18 os homens haviam deixado progressivamente de usar formas de ornamentação mais brilhantes, elaboradas e variadas, "fazendo de sua própria alfaiataria a mais austera e sem novidades das artes". Foi ele quem deu a esse acontecimento o nome de "a grande renúncia masculina", ou a ocasião em que os homens "abandonaram a pretensão de serem considerados belos" e "desde então aspiraram apenas a ser úteis". Esse movimento defendia a melhoria da saúde e da higiene dos homens, mudando os estilos e materiais das roupas masculinas, que consideravam como cada vez mais restritivas e nocivas, em contraste com as roupas "emancipatórias" das mulheres.
2021-08-15
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58040426
sociedade
'Celibatário involuntário': o que se sabe sobre autor do pior ataque a tiros no Reino Unido em uma década
Jake Davison, de 22 anos, matou cinco pessoas em Plymouth, no sul do Reino Unido, na noite da última quinta-feira, antes de tirar a própria vida. Davison atirou em Maxine Davison (sua mãe, de 51 anos), outra mulher, dois homens e uma menina de 3 anos em um intervalo de seis minutos. O jovem detinha porte de arma de fogo, de acordo com Shaun Sawyer, chefe de polícia de Devon e da Cornualha. A polícia informou que o incidente, o pior ataque a tiros no Reino Unido desde 2010, não está relacionado ao terrorismo. Em vídeos na internet, Davison falava sobre se sentir "atingido" e "derrotado pela vida". Na quinta-feira (12/8), a polícia recebeu telefonemas de um endereço em Biddick Drive, a rua onde ocorreu o ataque, às 18h11 (14h11 no horário de Brasília). Minutos depois, policiais chegaram ao local. Cinco pessoas, incluindo Davison e sua mãe, morreram na cena do crime e outra morreu mais tarde no hospital. Sawyer disse que a arma usada no ataque foi descrita por testemunhas como uma "escopeta por ação de bombeamento", mas a polícia não confirmou a informação. O chefe de polícia acrescentou que uma arma de fogo foi recuperada do local e que os policiais não estavam procurando mais ninguém em conexão com o incidente. "Acreditamos que foi um incidente doméstico que se espalhou pelas ruas e tirou a vida de várias pessoas em Plymouth em circunstâncias extraordinariamente trágicas", acrescentou Sawyer. Depois de atirar em sua mãe em sua casa, Davison saiu para a rua, onde "imediatamente atirou e matou uma garota", identificada como Sophie Martyn. Ele também atirou e matou o pai da menina, Lee Martyn, de 43 anos. Davison então atirou em outra mulher, de 53 anos, e um homem, de 33 anos, que permanecem no hospital com ferimentos "que não se acredita colocarem suas vidas em perigo". O atirador então se dirigiu a um parque, onde atirou em Stephen Washington, de 59 anos, que morreu no local. Em seguida, deslocou-se para Henderson Place, onde atirou em Kate Shepherd, de 66 anos, que mais tarde morreu no Hospital Derriford. Davison, então, cometeu suicídio, atirando contra si mesmo. "Testemunhas disseram que Davison deu um tiro e se matou", disse Sawyer. A polícia disse estar trabalhando para desvendar as hipóteses para o crime. Acrescentou também que vai examinar o disco rígido do computador de Davison e suas postagens nas redes sociais como parte da investigação. Segundo Sawyer, até sexta-feira, "nenhum motivo foi identificado" para o ataque. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em seus vídeos na internet, Davison dizia que estava socialmente isolado, que tinha dificuldade em conhecer mulheres e fazia referências a "incels" ou "celibatários involuntários", grupos de homens misóginos na internet que culpam as mulheres por seus fracassos sexuais e têm sido associados a vários atos violentos em todo o mundo. Em um vídeo de 11 minutos, que parece ser o último que postou, Davison falou: "Sei que é um filme, mas às vezes gosto de pensar em mim mesmo como o 'Exterminador do Futuro' ou algo assim. Apesar de sofrer uma falha quase total do sistema, continua tentando cumprir sua missão." Davison também escreveu sobre tiroteios em massa em uma postagem nas redes sociais há apenas três semanas. O jovem, que afirmou ter conseguido um emprego como operador de guindaste, também estava discutindo as leis de armas de fogo no Reddit. Em determinada ocasião, ele escreveu: "há muito mais armas na Europa e no Reino Unido do que as pessoas pensam". Em outro fórum do Reddit, um grupo para virgens, ele reclamou de ser "virgem" e disse: "Não consigo atrair mulheres de jeito nenhum." Davison também postou comentários odiosos nas redes sociais sobre mães solteiras e sua própria mãe em particular, chamando-a de "vil, disfuncional e caótica". O YouTube e o Facebook confirmaram que as contas de Davison foram removidas por violar suas políticas. Marianna Spring, correspondente de desinformação e redes sociais Em sua conta do YouTube agora excluída, Davison lamentou sua aparência pessoal, falou sobre se sentir isolado e suas dificuldades em encontrar mulheres. Às vezes, ele se lançava em tiradas usando termos cunhados por "celibatários involuntários", conhecidos como "incels". Essa subcultura da Internet incentiva os homens a culpar as mulheres por sua própria insatisfação com a aparência, os relacionamentos românticos e suas vidas, e os homens que conseguem se relacionar com elas. Davison se referiu a esses homens como "Chads" em seus vídeos. As comparações com eles não se concentram apenas na personalidade ou na autoconfiança, mas alguns "incels" também acreditam que são geneticamente desfavorecidos em comparação com esses homens. Ele também usou outras frases ligadas a essa comunidade, incluindo "overdose de blackpill". O termo consiste essencialmente na crença de que, se você não for fisicamente atraente, não merece o amor e está destinado a ser mais infeliz cada vez que o procurar e ao fracasso. Andrea Ormsby, correspondente da BBC no sudoeste da Inglaterra "Choque" é a palavra que ouvi mais vezes da população local. Falei com várias pessoas que vivem aqui e todas me disseram: "Poderia ter sido eu." Um pai me disse que estava com sua filha no carro quando viu pessoas acenando para ele na estrada em que estava prestes a entrar. Disseram-lhe: "Não venha, há um atirador, vá embora." Outras pessoas disseram que seus telefones tocavam sem parar com ligações de entes queridos para verificar se estavam seguras. Keyham é normalmente uma comunidade tranquila, mas um pastor afirmou que tudo parecia particularmente calmo nesta sexta-feira, enquanto as pessoas refletiam sobre o que aconteceu. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, tuitou: "Meus pensamentos vão para os amigos e familiares daqueles que perderam suas vidas e para todos aqueles afetados pelo trágico incidente em Plymouth na noite passada. Agradeço aos serviços de emergência por sua resposta." A Câmara Municipal de Plymouth disse que as bandeiras da cidade estão hasteadas a meio mastro, enquanto a Torre Smeaton em Plymouth foi acesa na sexta-feira à noite em memória das vítimas. As autoridades pediram às pessoas que ficassem em casa e seguissem as recomendações da polícia. O ministro de Defesa britânico, Ben Wallace, disse que conversou com a ministra do Interior, Priti Patel, e lhe garantiu que a situação estava "sob controle". O líder do Conselho municipal de Plymouth, Nick Kelly, afirmou que nada em sua "memória de vida" se compara ao ataque a tiros ocorrido nesta semana. "Hoje, nossa cidade está de luto e meu coração está com todos aqueles que foram diretamente afetados por este incidente", disse ele. O bispo de Plymouth, reverendo Nick McKinnel, disse que a cidade ficou "com um legado de dor e trauma, bem como grande ansiedade" que "afetaria a vida das pessoas para sempre". A parlamentar Alison Hernandez, atual comissária da Polícia e Crime de Devon e da Cornuália, disse que muitos na comunidade "testemunharam o que aconteceu, bem na frente de seus olhos, onde vivem". O último ataque a tiros em massa no Reino Unido ocorreu em 2010, quando o motorista de táxi Derrick Bird matou 12 pessoas no condado de Cúmbria, no noroeste do país.
2021-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58214609
sociedade
Ashton Kutcher e Mila Kunis brincam com debate sobre dar banho ou não em filhos todo dia
Dar banho ou não dar banho? Essa é a questão que está sendo amplamente debatida, depois que o casal de Hollywood Ashton Kutcher e Mila Kunis revelaram que não davam banho completo em seus filhos todos os dias. "Eu não era aquela mãe que dava banho em meus filhos recém-nascidos", disse Kunis ao podcast Armchair Expert no mês passado. "Se você vê sujeira neles, limpa", acrescentou Kutcher. "Do contrário, não faz sentido." Os comentários do casal causaram uma grande reação de muitas pessoas online, mas agora eles zombaram da polêmica em um novo vídeo pulicado no Instagram. A dupla brincou com o debate depois que várias outras celebridades e milhares de seguidores de suas mídias sociais discutiram sobre a frequência com que os pais deveriam lavar seus filhos (e a si próprios). Um debate sobre a abordagem do casal em relação à higiene começou em julho, depois que o apresentador de podcast Dax Shepard disse à sua colega apresentadora Monica Padman que usar sabonete todos os dias retira do corpo parte de seus óleos naturais. "Eu não tive água quente quando era criança, então não tomei muito banho de qualquer maneira", disse Kunis, referindo-se à sua infância na União Soviética. "Mas quando eu tive filhos, também não os lavava todos os dias. Eu não era aquela mãe que dava banho nos meus recém-nascidos - nunca", acrescentou ela. A atriz de Cisne Negro e Ressaca de Amor, que também dublou Meg Griffin em Family Guy, acrescentou que lavava o rosto duas vezes por dia. Kutcher disse que ele lavava "axilas e virilha diariamente" e jogava água no rosto depois de um treino "para tirar todos os sais". A atriz Kristen Bell, que tem duas filhas com Dax Shepard, disse mais tarde ao The View: "Sou uma grande fã de esperar pelo fedor. Depois que você sente o cheiro, essa é a forma da biologia de avisar que você precisa de limpeza... Então, eu não odeio o que [Kunis e Kutcher] estão fazendo." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em uma reação na época, o ator e ex-lutador profissional Dwayne "The Rock" Johnson disse que era a favor de um banho diário. "Não, eu sou o oposto de uma celebridade que 'não se lava'", tuitou. "Banho (frio) quando eu saio da cama para começar meu dia. Banho (morno) depois do meu treino, antes do trabalho. Banho (quente) depois que eu chego em casa do trabalho. Lavo o rosto, lavo o corpo, esfrego e eu canto (fora do tom) no chuveiro. " Jason Momoa, estrela de Aquaman, concordou com essa postura de banho todo dia, dizendo ao Access Hollywood: "Não estou começando nenhuma tendência, eu tomo banho, acredite, eu tomo banho. Sou Aquaman, estou na água, não se preocupe com isso. Eu sou havaiano, tenho a água salgada comigo, tudo bem." A rapper Cardi B tuitou: "E as pessoas dizendo que não tomam banho? Está dando coceira", adicionando um emoji com expressão de suspeita ao post dela. No entanto, o ator Jake Gyllenhaal confessou que achava "tomar banho menos necessário", acrescentando: "Eu também acho que existe todo um universo em torno de quem não toma banho que também é muito útil para a manutenção da pele, e nós naturalmente nos limpamos." O ator Terry Crews encontrou um meio termo, comentando: "Em primeiro lugar, se você não chegou a suar, não precisa tomar banho. Mas passo o dia todo suando, o tempo todo, correndo e trabalhando fora, e não é bom... Então eu tenho que ficar limpo." Em um vídeo publicado na página do Instagram de Kutcher, o casal pode ser visto em seu banheiro enquanto um de seus dois filhos pequenos, fora de cena, está no chuveiro. "Você está colocando água nas crianças?", Kutcher perguntou a Kunis, brincando. "Você está tentando derretê-los? Você está tentando feri-los com água? Isso é ridículo. O que está acontecendo?" Kunis tenta abafar o riso após os comentários irônicos do marido, dizendo: "Estamos dando banho em nossos filhos." "É a quarta vez esta semana", respondeu Kutcher. "Seus óleos corporais serão destruídos." O ator legendou o vídeo: "Essa coisa de banho está fora de controle." Muitas pessoas tomam banho diariamente. No entanto, se você não estiver fazendo nada muito cansativo, pode tomar banho dia sim, dia não, não cheirar mal e garantir que sua pele retenha os óleos vitais que o excesso de lavagem elimina. Não existe uma regra rígida para isso, embora os dermatologistas concordem que, como sociedade, tomamos banho com muita frequência. Todas as peles são diferentes e se, por exemplo, você se exercita todos os dias, é importante tomar banho após cada treino ou você pode começar a cheirar mal. Os pés são a exceção aqui. Especialistas recomendam lavar os pés com sabão neutro (especialmente entre os dedos) todos os dias e secá-los bem depois. Com crianças e bebês recém-nascidos, o banho diário pode fazer mais mal do que bem à pele delicada. A Academia Americana de Dermatologia diz que um banho diário é bom para crianças de seis a 11 anos, mas que elas não precisam necessariamente de mais do que um ou dois por semana, a menos que se sujem, suem ou tenham ido nadar. Mas a higiene não é a única consideração - a hora do banho também pode ser uma parte útil, divertida e reconfortante da rotina diária. Pesquisas sugerem que tanto o banho quanto as rotinas regulares podem ajudar no sono.
2021-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58199764
sociedade
Assistir a esporte ajuda a reduzir risco de depressão, diz estudo
Dieta e genética podem explicar, mas há outras razões associadas que poderiam estar contribuindo para fazer o povo japonês ter uma das mais altas expectativas de vida do mundo: 87,74 anos para as mulheres e 81,64 para os homens. Estudo inédito mostra que assistir a esportes, ao vivo ou pela televisão, é um desses hábitos que ajudam a reduzir os sintomas de depressão entre idosos. O trabalho faz parte do Estudo de Avaliação Gerontológica do Japão, que realiza pesquisas de acompanhamento sobre as condições de saúde de idosos. "Assistir a esporte é uma oportunidade de se sentir animado de maneira casual", diz Taishi Tsuji, professor-assistente de Ciência do Esporte na Universidade de Tsukuba, em Ibaraki. Ele trabalhou no relatório final, publicado no jornal científico britânico Scientific Reports. Os pesquisadores destacam que no cenário atual de pandemia e com o país enfrentando sua quinta onda de casos de Covid-19, isso pode ser muito útil na prevenção de quadros de ansiedade no futuro. Assistir a esportes é uma atividade positiva que promove emoção e diversão, ao mesmo tempo que tem efeito na socialização, como fomentar a interação com a comunidade e fortalecer as redes sociais. A depressão continua sendo um grande problema na saúde mental dos idosos devido à sua forte associação com mais comprometimento funcional e cognitivo do que em adultos mais jovens, além de representar altos custos para a família e a previdência. "Se usarmos os resultados dos estudos, acredito que será possível ajudar idosos na prevenção da depressão", diz Tsuji. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os pesquisadores analisaram 21.317 questionários que haviam sido enviados em 2019 e 2020 a pessoas com mais de 65 anos, residentes em 60 cidades, vilas e aldeias em todo o país. Os participantes foram questionados se assistiam a eventos esportivos de qualquer modalidade e com que frequência. Embora o estudo tenha sido feito antes da Tóquio 2021, o pesquisador Tsuji acredita que o mesmo efeito tenha sido alcançado pelas pessoas que acompanharam os Jogos em casa. Apesar da alta rejeição inicial ao evento, a cerimônia de abertura garantiu uma das maiores audiências da tevê. De acordo com a Video Research, a média chegou a 56,4%, o maior índice desde a primeira Olimpíada japonesa realizada em 1964, quando alcançou 61,2% dos aparelhos na época. A sucessão recorde de medalhas obtidas pelos atletas japoneses alimentou a audiência, que atingiu a marca de 43,3% na semifinal de futebol entre Japão e Espanha. Com o fim dos Jogos, os japoneses agora se preparam para acompanhar o Intercolegial de Beisebol. Disputado desde 1915 no verão, é um dos eventos mais midiáticos do Japão, chegando a registrar 50% de audiência na final. O torneio deste ano, sem espectadores, estava programado para começar logo após o encerramento da Olimpíada, porém a abertura foi adiada para a terça, dia 10, devido à passagem de um tufão pelo Japão. Conhecido como Koshien, o torneio mobiliza milhares de colégios e é a porta de entrada dos jovens ao beisebol profissional. Na fase em que as partidas são televisionadas, participam 49 equipes (de todas as 47 províncias, mais duas representantes de Tóquio e de Hokkaido). Eles se enfrentam em sistema de mata-mata no estádio Koshien (na província de Hyogo) e atraem os olhares de jovens e idosos, que ajudam a alavancar a audiência das tevês durante duas semanas. O professor japonês Makoto Fukuda, de 67 anos, aprecia todo tipo de esporte, em especial o futebol de campo — que inclusive pratica como atacante de uma das equipes seniores da região. Ele mora em Akita, província no norte do Japão e com a maior concentração de idosos (37,2%, contra a média nacional de 28,4%) e dois times profissionais, de basquete e de futebol. "Esporte revigora", diz Fukuda, que acompanhou grande parte dos Jogos Olímpicos pela televisão. Estava tão empolgado com o skate, que diz ter ficado com vontade de praticá-lo. Fora da olimpíada, os esportes mais assistidos pelos idosos japoneses são beisebol profissional (61,6%), sumô (60,2%), jogos da seleção de futebol (60,1%), maratona ou corrida de revezamento (57,4%), patinação artística (54,8%) e beisebol escolar (52,6%). "Dada a popularidade considerável desses eventos no Japão, ver jogadores e times se enfrentando pode provocar entusiasmo e felicidade e pode ter um efeito positivo na saúde mental", destaca o estudo. Os níveis de depressão foram medidos por meio de um conjunto de 15 questões direcionadas aos idosos. As perguntas avaliavam se eles estavam contentes com suas vidas e se sentiam angustiados. Em comparação com os entrevistados que não assistiam a nenhum esporte, aqueles que viam jogos ao vivo várias vezes ao longo de um ano tinham 0,70 vez menos probabilidade de desenvolver sintomas de depressão. Entre os que assistiam uma a três vezes por mês eram 0,66 vez menos prováveis. Quanto maior a frequência com que assistem a algum esporte, melhor foi o resultado. A equipe também perguntou aos participantes sobre as relações com a comunidade local. As pessoas que assistem esportes tendem a ter um apego à vizinhança e possuem mais amigos do que aqueles que não veem eventos esportivos. Os autores do estudo concluíram que os sintomas depressivos podem ser aliviados por meio da excitação e felicidade induzida ao acompanhar o desempenho de atletas profissionais em um ambiente de estádio, que difere da vida cotidiana. Os mesmos benefícios foram observados mesmo com atividades locais. De acordo com o estudo, é bem possível que torcer por jogadores que são amigos ou familiares provoque a mesma felicidade, apesar da competitividade ser relativamente baixa. Há, porém, uma ressalva. Os autores também avaliaram a felicidade entre os homens antes e depois de uma partida de rúgbi, e descobriu que vencer não aumentou a sensação de felicidade, mas perder a diminuiu. O torcedor fanático pode deixar o prazer do esporte e se concentrar apenas no resultado, o que não é positivo. Os pesquisadores lembram que assistir a esportes é uma atividade comum e popular mesmo em grupos de idades mais jovens. No entanto, seria preciso coletar mais dados para determinar a frequência ideal que produziria mais benefícios às pessoas dessas outras faixas etárias.
2021-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58158155
sociedade
Menor bebê prematuro do mundo, nascida com peso de uma maçã, tem alta após 13 meses
Uma bebê considerada a menor do mundo ao nascer recebeu alta de um hospital de Cingapura após 13 meses na UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Kwek Yu Xuan tinha apenas 212g — o peso de uma maçã — quando nasceu e media 24 cm de comprimento. Seu parto foi prematuro. Sua mãe deu à luz com pouco menos de 25 semanas — muito menos que a média de 40. O recorde anterior era de uma menina nos Estados Unidos que nasceu em 2018 pesando 245g, de acordo com uma compilação elaborada pela Universidade de Iowa, nos Estados Unidos. A mãe de Yu Xuan deu à luz por cesariana de emergência quatro meses antes do previsto após o diagnóstico de pré-eclâmpsia — complicação grave da gravidez associada à hipertensão arterial que pode levar à morte da mãe e do bebê. Yu Xuan agora pesa 6,3 kg e seu estado de saúde é bom. A menina tinha uma "chance limitada de sobrevivência", de acordo com o National University Hospital (NUH) de Cingapura, onde nasceu. "Contra todas as probabilidades, com complicações de saúde presentes no nascimento, ela inspirou as pessoas ao seu redor com sua perseverança e crescimento, o que a torna uma bebê 'covid-19' extraordinário — um raio de esperança em meio à turbulência", disse o hospital em um comunicado. Durante seu período no hospital, Yu Xuan recebeu vários tipos de tratamento e precisou de diferentes máquinas para sobreviver. Os médicos dizem que sua saúde e desenvolvimento progrediram consideravelmente sob seus cuidados e agora ela está bem o suficiente para receber alta. Yu Xuan ainda tem doença pulmonar crônica e precisará de ajuda para respirar em casa. No entanto, os médicos do NUH dizem que ela deve melhorar com o tempo. Sua mãe, Wong Mei Ling, disse à imprensa local que o nascimento e o tamanho de Yu Xuan foram um choque porque seu primeiro filho — um menino de quatro anos — nasceu a termo, ou seja, entre 38 e 40 semanas. Os pais de Yu Xuan conseguiram pagar por sua longa permanência no hospital por meio de uma vaquinha virtual que arrecadou o equivalente a R$ 1,4 milhão.
2021-08-09
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58146082
sociedade
Por que o problema de abusos sexuais no Exército dos EUA é tão difícil de solucionar
Naquele dia de dezembro de 2018, Amy Marsh comemorou o fim de mais um ano e, com ele, seu primeiro aniversário na Base Aérea de Travis, no norte da Califórnia, nos Estados Unidos. Ela tinha ido morar ali em 2017, quando o marido, um oficial de origem porto-riquenha, foi enviado para a base, que logo se tornou seu novo lar. "Até aquele dia, foi uma experiência muito interessante porque essas bases são como pequenas cidades e lá você tem a oportunidade de fazer muitas coisas pela comunidade e se conectar com outras mulheres, esposas de militares, que também se separaram de suas famílias porque se casaram com um militar", conta. No entanto, o que Amy não imaginava era que, naquela noite, a vida dela estava prestes a mudar. O que estava para acontecer quase destruiria seu casamento, encerraria a carreira militar do marido e deixaria em ambos sequelas que, três anos depois, ainda não foram totalmente superadas. Algumas memórias daquela noite estão borradas. Ela se lembra de ter bebido muito, sabe que houve uma festa, e que seu marido a deixou sozinha com o oficial que ele considerava o mentor dele, um militar de mais alta patente. "Aquele homem abusou da confiança que meu marido tinha nele e, naquela festa, me violentou. Não houve consentimento e eu estava bêbada demais para reagir", lembra. Amy conta que, depois daquela noite, o trauma foi tão grande que ela decidiu esconder o que havia acontecido. Quando o peso da situação começou a afetar seu casamento, ela decidiu contar ao marido, dois meses depois. "Foi muito difícil para nós dois. Conversando com o capelão da base, entendemos que não deveríamos ficar calados. E, finalmente, resolvemos denunciar. A investigação durou cerca de dois anos. Lutamos de todas as formas que podíamos. Mas nada aconteceu", diz ela. A história de Amy é apenas uma das milhares de denúncias recebidas todos os anos pelas Forças Armadas dos Estados Unidos: casos de homens e mulheres que afirmam ter sofrido abusos e agressões sexuais em bases militares do país. Sua voz é uma das que chegaram ao Congresso americano para exigir que sejam tomadas medidas diante do que muitos veem como um "sistema falido" dentro do comando militar, para que seja feita justiça em casos como esse. "É um problema antigo para o qual uma solução mais eficaz ainda não foi encontrada", diz o coronel Don Christensen, que foi procurador-geral da Força Aérea, mas deixou o cargo para defender estas vítimas de abuso sexual. "Há anos, nas Forças Armadas, os militares se preocupam mais em proteger os comandantes do que fazer justiça e condenar os possíveis agressores. Por isso, deixei meu posto e me aliei às vítimas", diz ele, que é presidente da ONG Proteja Nossos Defensores (POD, na sigla em inglês). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Relatos de abuso sexual no Exército dos Estados Unidos têm aumentado ano a ano desde 2006. De acordo com uma pesquisa anônima feita pelo Pentágono, cerca de 20 mil militares ou seus familiares afirmam ter sido vítimas de violência sexual a cada ano. No entanto, a média de quem se atreve a relatar os abusos é muito pequena. Em 2020, só 7.816 denúncias de agressões sexuais foram registradas nas instalações militares do país, das quais 6.290 envolveram oficiais da ativa. Andrew Morral, que há décadas estuda o assunto para a Rand Corporation (uma instituição que assessora o Pentágono), esse é um fenômeno amplamente difundido em quase todas as instalações militares do país. "Há locais, porém, onde o risco é alto — e maior do que seria de se esperar em função das características das pessoas que vivem ali. Verificamos, por exemplo, que 34% dos casos de violência sexual contra mulheres ocorreram em apenas cinco bases do Exército", diz ele. Porém, de acordo com o especialista, as militares, as mulheres de militares e outras mulheres que atuam nas Forças Armadas não são as únicas vítimas dessa situação. "Em quase todos os casos, o risco de ser agredido sexualmente está relacionado com a idade e a posição social da vítima. Desta maneira, além das mulheres, os membros mais jovens do serviço militar, os solteiros e as minorias sexuais correm alto risco." Nesse sentido, um dos últimos estudos realizados por Morral sugere que quase metade de todas as agressões sexuais em bases militares são cometidas contra pessoas que não se autodenominam heterossexuais. "Este grupo parece correr um risco particularmente elevado, já que representa apenas cerca de 12% da população militar. É contra ele que ocorrem 50% das agressões sexuais", explica. Segundo o especialista, isso sugere que, em grande parte, os abusos podem ser considerados "fatos relacionados a crimes de ódio". "É o caso, por exemplo, das agressões sexuais contra homens, em que 50% dos casos parecem ter como objetivo humilhar ou causar algum dano moral." Os especialistas que estudam este tipo de agressão sexual ainda não conseguiram compreender totalmente as suas causas. Segundo Morral, podem se tratar de questões relacionadas à disciplina e à boa ordem nas bases militares, ou até a fatores culturais. "Uma das coisas que sabemos é que o risco de agressão sexual está intimamente ligado ao assédio sexual, que é algo muito mais comum e muito mais visível. Assim, em unidades onde as pessoas fazem muitos comentários sexuais entre si ou dizem coisas como 'os meninos de lá não se comportam como homens', são os ambientes em que vemos mais as agressões sexuais", diz. Uma pesquisa publicada em 2020 sugeriu que o consumo de álcool em bases militares era um fator importante: estava por trás de 62% dos ataques a mulheres. Segundo Christensen, outra causa possível é que, na opinião dele, "há um problema cultural com a misoginia no Exército". "Nas Forças Armadas, cerca de 80% são homens, e muitos deles não acreditam que as mulheres devam estar ali", afirma. Um relatório publicado em janeiro de 2021 indica que o número de agressões sexuais relatadas nas academias militares do país aumentou 50% desde 2016, causando espanto ao sugerir que é algo tão comum entre os futuros líderes militares, quanto entre os atuais. Estudos realizados sobre o fenômeno sugerem que seu impacto pode ser negativo não só para as Forças Armadas, como também pode se tornar potencialmente um problema de segurança nacional em um país que gastou mais de US$ 200 milhões (cerca de R$ 1 bilhão) na última década em ações de prevenção, programas de educação e recursos para vítimas de agressão sexual. "Além do impacto psicológico que isso pode causar na vida dos militares ou das famílias que sofreram essas agressões, há também a repercussão nas próprias Forças Armadas como instituição", diz Morral. "Não é surpreendente que os oficiais estejam deixando as Forças Armadas mais cedo do que fariam normalmente. E, de acordo com nossos estudos, as Forças Armadas estão perdendo em média cerca de 8 mil pessoas por ano devido às agressões sexuais", acrescenta. Apesar de ser um problema generalizado nas Forças Armadas, os mecanismos para levar justiça às vítimas são limitados. Apenas em 350 casos, de quase 8 mil denúncias apresentadas em 2020, os supostos abusadores eram acusados de algum crime. De acordo com a POD, isso levou as vítimas — e os próprios oficiais — a perder a confiança na Justiça militar. "É um sistema arcaico que a maioria de nossos aliados têm abandonado há anos", explica Christensen. De acordo com ele, o sistema atual confere aos comandantes a possibilidade de um "processamento rápido" de casos de agressões sexuais. "É o comandante militar, não um advogado, que decide como uma pessoa será acusada, se as acusações irão a julgamento e uma série de outras decisões que promotores e juízes tomam no sistema civil americano", diz. O poder dos comandantes chegou ao ponto de derrubar uma condenação do júri, embora, após os esforços de Christensen, o Congresso tenha removido essa autoridade deles em 2013. No entanto, ainda cabe aos comandantes da pessoa acusada de agressão sexual decidir se há provas para levá-la a um julgamento. Esta não é a única barreira enfrentada por pessoas que são abusadas sexualmente em instalações militares nos Estados Unidos. Segundo o coronel, as vítimas também são frequentemente desencorajadas a informar ou denunciar os abusos, por medo de sofrer represálias ou retaliações. "Os dados mostram que mais de 60% dos homens e mulheres que denunciam uma agressão sexual nas forças armadas podem enfrentar represálias. Essa retaliação costuma marcar o fim da carreira. Uma em cada três mulheres que denunciam agressões sexuais nas Forças Armadas são forçadas a abandonar a carreira um ano após a denúncia", afirma Christensen. Amy diz que aconteceu algo parecido com o marido dela, logo depois que ambos fizeram a denúncia. "Eles não acreditaram em mim e tentaram me culpar pelo que aconteceu. E a carreira do meu marido foi destruída. Amávamos a vida militar e sonhávamos com coisas incríveis", lamenta. A história é diferente para os agressores, o que, na opinião de Christensen, pode contribuir para as bases do problema. "Tradicionalmente, os comandantes não conseguem responsabilizar os superiores que assediam sexualmente os subordinados, e isso envia uma mensagem às pessoas de escalão inferior de que a agressão sexual realmente não é um grande problema", diz ele. "Portanto, quando um general assedia sexualmente um subordinado ou a esposa de um dos seus subordinados, muitas vezes é permitido que eles simplesmente se afastem. E isso passa uma mensagem ruim." Amy lembra que esse foi o caso do oficial que ela afirma tê-la agredido. "Sabemos que ele perdeu uma promoção, por isso deixou de ser o militar de maior patente e teve que se aposentar. Mesmo assim, ele deixou o Exército com honras", lembra. Em 2020, a Casa Branca ordenou uma investigação sobre abusos sexuais nas Forças Armadas e, em 2021, o presidente Joe Biden criou uma comissão independente que deu 90 dias para propor mudanças. No início de agosto de 2021, a comissão recomendou formalmente ao secretário de Defesa, Lloyd J. Austin, que as alegações de agressão sexual e assédio ficassem a cargo de promotores especiais fora da cadeia de comando do Exército. Austin deu sinal verde para a medida — um passo sem precedentes — e, na semana anterior, ela também foi aprovada por Biden. Porém, apesar de contar com o apoio do Pentágono e da Casa Branca, caberá ao Congresso mudar a lei militar. Durante anos, a senadora Kirsten Gillibrand, uma democrata de Nova York, tem defendido uma reforma que permitiria não apenas o julgamento de agressões sexuais fora da cadeia de comando militar, mas também de outros crimes graves internos. No entanto, a legislação enfrentou forte oposição no Parlamento. O presidente do Comitê de Serviços Armados do Senado, Jack Reed, democrata de Rhode Island, e o maior aliado dele, James Inhofe, republicano de Oklahoma, têm bloqueado sistematicamente a possibilidade de o projeto ser discutido. Eles afirmam que a retirada do poder dos comandantes nesses casos prejudica a ordem e a disciplina militar nas bases. "Há uma tremenda hesitação em fazer o oposto do que os chefes querem. Mas os dados mostram, ano após ano, que a liderança militar não está lidando com esse problema de forma adequada", disse Christensen. "Os militares passaram mais tempo lutando para manter os comandantes no controle do que lutando contra os abusos sexuais em suas fileiras. Enquanto isso, o número de ataques continua crescendo." Para vítimas de abuso como Amy, uma solução para esse problema é cada vez mais urgente. "Eles me marcaram para sempre. Meu marido encerrou a carreira nas Forças Armadas e não sentimos que a Justiça esteve do nosso lado. Amava minha vida de esposa de militar e sentia que era uma grande honra que nossos filhos deveriam seguir. Mas, agora, acho que nem meu marido, nem eu, permitiríamos que nosso pequeno se aliste no Exército quando crescer. Não queremos que ele passe pelo que passamos."
2021-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58109481
sociedade
6 palavras que o brasileiro herdou do japonês
Há palavras que usamos no português que, de cara, podemos identificar uma relação direta com a língua japonesa - estão aí o sushi e o karatê para provar isso. No entanto, nem todas as palavras de origem japonesa que o brasileiro pegou para o seu vocabulário (e os falantes da língua espanhola também) têm uma relação tão clara. Enumeramos aqui seis termos que trouxemos para o português e que talvez você use sem se dar conta da procedência nipônica. 1. Soja A soja - grão cujo maior produtor mundial é o Brasil - tem origem fora do nosso país. O grão veio da Ásia e a palavra também: tem origem no japonês (shoyu). As sementes de soja são ricas em óleo e proteínas e são usadas para a produção de leite, queijo, óleo de cozinha - além de óleo para produção de biodiesel e também como farelo na produção de ração para suínos e aves. O tsunami é uma grande onda ou uma sucessão de ondas marinhas que se deslocam em alta velocidade e que se tornam catastróficas ao atingir profundidades menores, invadindo as praias. Esse fenômeno pode ocorrer devido a abalos sísmicos no fundo do oceano, erupção vulcânica ou, ainda, deslizamentos. O que aconteceu foi que essas tragédias começaram a ser conhecidas mundialmente como a palavra japonesa tsunami - inclusive no espanhol, por exemplo. Embora não seja uma palavra nova, "com o tsunami de 2004 e depois em 2011 observou-se aumento do número de vezes que é usado", disse Rafael Fernández Mata, professor de espanhol na Universidade de Córdoba, Espanha, e autor de diversos estudos sobre uso do japonês no espanhol. Em japonês a palavra tsunami significa algo como "onda de porto" (tsu = porto; nami = onda) ou maremoto. Sabe o biombo, aquela estrutura de peças de madeira ou tecido, que se abre e se fecha, geralmente usada para separar ambientes? Vem do japonês também (byōbu) e significa algo como "proteção ao vento". Além do uso literal da palavra no português, o dicionário Michaelis também prevê o uso dessa palavra em sentido figurado, para se referir a uma ação que serve para encobrir um dano ou um defeito. 4. Emoji 😃 Outra palavra japonesa que adotamos no português é o emoji. A palavra "emoji" vem da união de "e", que significa imagem em japonês, e "moji", que tem a ver com letra. Sua definição diz que é uma pequena imagem ou ícone digital que é usado nas comunicações eletrônicas para representar uma emoção, objeto ou ideia. 5. Futon Futon vem de… futon, em japonês. É um tipo de colchão bem fino, que parece uma grande almofada, usado na tradicional cama japonesa. Eles são baixos, com cerca de 5cm de altura, e são preenchidos geralmente com algodão, lã ou material sintético. 6. Karaokê Karaokê é mais uma palavra que vem do japonês. É uma mistura de palavras que significam "vazio" e "orquestra". O significado da palavra toda você já sabe: é aquele lugar em que um cantor amador canta ao mesmo tempo em que roda uma música instrumental gravada.
2021-08-06
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58106092
sociedade
Por que a privatização dos Correios nunca avançou nos EUA
Dos anos 1990 para cá, mais de uma dezena de países, a maioria deles europeu, privatizou seus serviços de correio. No Brasil, a Câmara dos Deputados aprovou na quinta-feira (5/8), por 286 votos a favor e 173 contra, o projeto de lei que autoriza a privatização da estatal ECT (Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos). Ainda serão propostas de mudança na matéria. Depois, o projeto segue para o Senado e, se for aprovada, vai à sanção do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). A proposta elaborada pelo Ministério da Economia estabelece a venda de 100% da estatal. A expectativa da pasta é de que o leilão seja realizado no primeiro semestre de 2022. Nos Estados Unidos, por outro lado, um país à primeira vista sem muito apego a empresas estatais, o United States Postal Service (USPS) segue sendo um serviço público — e com cifras superlativas. O contingente é mais de cinco vezes o quadro da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT) no Brasil, que soma 95 mil colaboradores e é uma das estatais na lista de privatizações do governo Bolsonaro. O pontapé foi dado neste início de ano: em fevereiro, o Executivo enviou o Projeto de Lei ao Congresso e em abril a Câmara votou sua urgência, abrindo espaço para uma tramitação mais rápida no Legislativo. Já o USPS não é exatamente uma estatal, mas uma agência federal ligada ao Executivo americano. Sua data de criação se confunde à do próprio país — o primeiro "postmaster general" (uma espécie de diretor-geral) foi um dos patronos da independência americana, Benjamin Franklin. Em teoria, os Correios não são financiados pelo contribuinte, mas pela receita das entregas de cartas e encomendas. Gerar lucro, entretanto, tem sido uma tarefa cada vez mais difícil — a última vez foi em 2006, pelo menos no papel. Desde então, os prejuízos acumulados chegaram a quase US$ 90 bilhões (R$ 460 bilhões) em 2020. Ainda assim, a agência resiste há décadas a tentativas de privatização. A mais recente investida nesse sentido aconteceu em 2018, na gestão de Donald Trump, e encontrou forte oposição não apenas de políticos democratas, mas de correligionários republicanos do então presidente. Por quê? "Os Estados Unidos têm uma peculiaridade", afirma a economista Monique Morrissey, do centro de estudos progressista Economic Policy Institute (EPI). Dois tipos de conservadores convivem no Partido Republicano, diz ela. Há os conservadores liberais, pró-mercado, aqueles que defendem o Estado mínimo e outras posições que, muitas vezes, se confundem com a ideologia predominante do partido, e há os conservadores nacionalistas e religiosos. Estes últimos vivem predominantemente em áreas rurais, que são, por sua vez, bastante dependentes das entregas de correspondências e pacotes do serviço postal. "Essas pessoas querem que ele continue sendo um serviço público 'patriótico', como as Forças Armadas ou as escolas públicas", avalia. Milhares de pequenos negócios no interior do país contam com a infraestrutura da agência para distribuir seus produtos — especialmente com os preços tabelados de algumas categorias de entrega. "Um dos grandes usuários da estrutura dos Correios é um site chamado Etsy, onde milhares de pessoas vendem artesanatos e miudezas." Como os preços praticados pela agência são determinados pelo Congresso, muita gente teme que uma eventual privatização leve a um aumento generalizado, especialmente em áreas mais remotas, que são menos rentáveis para o setor privado. Hoje, o USPS é obrigado a prestar um serviço universal em todo o território, da Flórida ao Alasca. "Você tem republicanos que apoiam (a manutenção do serviço público) por causa dos pequenos negócios e os democratas que apoiam por causa dos sindicatos, entre outros motivos. Então existe esse apoio bipartidário incomum nos Estados Unidos", resume Morrissey. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os especialistas contra e a favor da privatização dos Correios ouvidos pela reportagem concordam em pelo menos um ponto: o serviço é seguro e confiável. Isso talvez ajude a explicar por que o USPS é uma das agências federais com melhor avaliação pelos americanos. Uma pesquisa divulgada em maio de 2020 pelo Pew Research Center apontou que 91% tinham uma visão favorável à agência — o primeiro lugar da lista, à frente dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDCs), do Departamento de Saúde dos EUA, que está na linha de frente contra a covid-19. "Não deveria ser uma surpresa o fato de que muitos americanos expressam alguma admiração pelos Correios. Talvez seja a agência com a qual as pessoas mais têm contato aqui nos EUA. Nós recebemos pacotes e correspondências seis dias por semana, o serviço postal é de forma geral bastante confiável", diz Joel Griffith, pesquisador do Heritage Foundation, centro de estudos conservador que cedeu vários de seus quadros para o governo Trump. O historiador Ted Widmer enxerga pelo menos duas outras razões — uma subjetiva e outra mais prática. O nascimento do serviço postal, em 1775, um ano antes de as 13 Colônias se declararem independentes do Império Britânico, se confunde com a própria história dos Estados Unidos. "Está ligada à ideia de democracia, de que pessoas comuns são capazes de gerir seu próprio governo", diz o professor da Macaulay Honors College, da City University de Nova York. E ainda que parte dos americanos não necessariamente enxergue o serviço como um símbolo, muitos convivem com ele como parte da rotina. "Não é como as Forças Armadas — você pode ter admiração pelos militares, mas dificilmente um cidadão comum vai vê-los em ação. O carteiro é alguém que vem diariamente à sua casa, que presta um serviço bom e barato." A internet reduziu substancialmente a quantidade de correspondências que cruzam o país, de um pico de 59 bilhões em 1996 para 15,2 bilhões em 2020, considerando a chamada "first class mail", sobre a qual o USPS tem monopólio. Ainda assim, ressalta o historiador, um volume grande de americanos ainda depende do serviço. "Ele é importante para os idosos e os mais pobres — pessoas que não têm um computador em casa e que sabem que com 50 centavos de dólar podem enviar uma carta ou um documento para qualquer lugar do país." A questão dos prejuízos bilionários da agência não é um consenso entre os especialistas. Morrissey afirma que boa parte das perdas que aparecem nos registros contábeis é reflexo de uma exigência — em sua avaliação, draconiana — aprovada pelo Congresso em 2006 para que a agência faça provisões para benefícios de saúde e aposentadoria que serão pagos décadas à frente. Ao desembolsar pelas obrigações de forma antecipada, registrar lucro teria ficado cada vez mais difícil. Griffith, por sua vez, afirma que a agência paga salários e benefícios acima da média do setor privado e que precisa reconhecer essas obrigações nas suas demonstrações contábeis. A economista do EPI argumenta ainda que, se de um lado a circulação de correspondências tem diminuído drasticamente, o volume de endereços que a agência tem de contemplar só aumenta com o crescimento populacional. O princípio da universalidade obriga o serviço postal a atender todo o território — e, em um país de dimensões continentais como os EUA, o custo é alto, diz Morrissey. Ambos os lados concordam que a transformação nas comunicações e nos hábitos de consumo dos americanos tornou imprescindível repensar o modelo de negócio dos Correios para que ele sobreviva financeiramente — ainda que discordem sobre o que exatamente deve ser feito. "O serviço postal está hoje de mãos atadas por causa do Congresso, que o impede de implementar muitas medidas que o tornariam mais rentável", diz Griffith. O Postal Accountability and Enhancement Act (PAEA), que impôs em 2006 o reconhecimento contábil das obrigações futuras com benefícios trabalhistas, também colocou uma série de limitações às atividades que o serviço postal pode desempenhar. Além das entregas, o máximo que os Correios podem fazer é tirar fotocópias, vender selos colecionáveis e processar pedidos de passaporte. Hoje o USPS entrega até sorvete e pintinhos vivos, diz Morrissey. Assim, realizar entregas de supermercados, por exemplo, é algo que poderia ser feito com a atual infraestrutura para expandir os negócios — mas isso é proibido pelo PAEA. Outra alternativa seria oferecer serviços bancários básicos, à semelhança do que aconteceu entre 1911 e 1967, quando os americanos podiam ter pequenas poupanças por meio do United States Postal Savings System. Conforme os dados do Federal Reserve, o Banco Central americano, cerca de 6% dos cidadãos do país não têm qualquer tipo de conta em banco e outros 16% são considerados "underbanked", ou seja, não têm acesso a serviços financeiros suficientes. Sem bancos públicos, para descontar os cheques dos benefícios sociais pagos pelo governo as famílias de baixa renda muitas vezes têm de pagar tarifas abusivas em bancos privados. "Isso aconteceu também durante a pandemia, com os pagamentos do auxílio emergencial", acrescenta Morrissey. "É um problema que as pessoas tenham dificuldade para ter acesso ao próprio dinheiro e às vezes tenham que pagar muito do próprio bolso." Já Griffith preferiria que o Congresso desse "alguma margem de manobra para que se pudesse ajustar salários [para baixo], para que ficassem em linha com o setor privado, simplificar operações e talvez até diminuir os dias de entregas de 6 para 5". O pesquisador diz que ele, assim como a Heritage Foundation, acreditam que a privatização seja a melhor solução, mas admite que não há "clima político" para isso no país. Em junho de 2018 o governo Trump chegou a propor uma reorganização da operação da agência para prepará-la para uma futura privatização. A proposta enfrentou forte oposição de republicanos e democratas no Congresso e não foi para frente. Ainda assim, o presidente conseguiu implementar uma série de mudanças controversas até sua saída da Casa Branca. O USPS entrou ainda no meio do imbróglio eleitoral dos Estados Unidos no ano passado. Trump era um ferrenho opositor ao voto pelo correio, previsto na lei americana e considerado imprescindível para que os americanos conseguissem votar em meio à pandemia de covid-19. O republicano repetia, sem provas, que a modalidade aumentava as probabilidades de ocorrência de fraude. A oposição acusou Trump de tentar deliberadamente sabotar o serviço postal para minar sua capacidade de fazer frente a uma operação grande como as eleições. O inspetor-geral da agência anunciou em agosto de 2020 a abertura de uma investigação para apurar denúncias sobre aumento generalizado de atrasos nas entregas e deterioração na qualidade do serviço. Em setembro, um grupo de senadores democratas apresentou um relatório apontando atrasos "significativos e crescentes" nas entregas de medicamentos controlados feitas pelos Correios. O diretor-geral do USPS, Louis DeJoy, aliado de Trump, afirmou na época que o objetivo das mudanças implementadas desde o início de sua gestão, em maio, era aumentar a eficiência operacional da agência. Um outro motivo, diz o historiador Ted Widmer, ajudou a transformar o serviço postal em "alvo" de Trump. "Ele odeia o Jeff Bezos", diz ele, referindo-se ao fundador da Amazon, que, à semelhança dos pequenos negócios, também usa uma parte da estrutura do USPS para realizar entregas, especialmente nas regiões mais remotas dos EUA. Bezos é ainda dono do jornal The Washington Post, que fez uma cobertura crítica à administração do ex-presidente. "Trump pensou que poderia atingir o 'inimigo' aumentando os custos de entrega para a Amazon", diz ele. O ex-presidente defendeu reiteradamente a necessidade de aumento nos preços cobrados à empresa sob o argumento de que o serviço postal estaria subsidiando a operação da Amazon — e, portanto, perdendo dinheiro. Tanto a agência quanto congressistas repetiam, contudo, que os contratos com grandes empresas privadas como Amazon, FedEx e UPS são lucrativos. Os valores são confidenciais. Em uma reportagem sobre o assunto em agosto de 2020, a Bloomberg ressaltou que a receita das entregas de encomendas como um todo da USPS havia registrado aumento de 50% no trimestre encerrado em junho, a única divisão com resultado positivo. Morrissey ressalta que o atual presidente dos EUA, o democrata Joe Biden, tem uma visão diferente sobre o serviço postal. Uma eventual substituição de DeJoy, contudo, não é tão simples, já que o diretor-geral é eleito por um conselho cujos membros são apontados pelo presidente - e a maioria hoje é formada por indicações feitas por Trump. "Resta saber o que as indicações feitas por Biden daqui pra frente vão fazer e quão rápido elas vão conseguir se mobilizar", diz a economista. Enquanto isso, no último dia 19 de maio um grupo de senadores republicanos e democratas apresentou uma proposta conjunta para reduzir o valor das provisões obrigatórias com benefícios de saúde e aposentadoria em US$ 5 bilhões (R$ 25,6 bilhões) por ano. O projeto é semelhante a um que já tramita na Câmara dos Representantes (o equivalente à Câmara dos Deputados). Se os textos forem aprovados, a agência pode assistir a uma redução significativa do déficit contábil nos próximos anos.
2021-08-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57339145
sociedade
'Pare de perguntar se filha é minha porque sou negra e ela é branca'
Desde o dia em que nasceu, minha filha Bonnie foi julgada pela cor de sua pele. Depois de ela passar algumas horas na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) após o parto, finalmente eu pude ficar com meu bebê por alguns momentos. Mas uma mulher enfiou a cabeça pela porta do quarto do hospital para me perguntar o que eu gostaria de tomar no café da manhã. Antes que eu pudesse responder, ela questionou: "Esse é o seu bebê?" Eu imaginei que a próxima fala seria um elogio. Algo na linha: "Ele é adorável!" ou "As bochechas são tão rechonchudas!" Em vez disso, a mulher repetiu: "Esse realmente é seu bebê?" Seu tom era de surpresa, com uma leve consternação. O uso da palavra "realmente" me preocupou. "Ela parece tão branca. Olhe para o cabelo, é tão liso. É tão branco...", continuou a funcionária. E foi aí que tudo começou: as pessoas que não me conheciam se sentiam à vontade para perguntar se eu era a mãe de Bonnie ou para comentar sobre a cor da pele dela. Aconteceu no local onde eu acabara de dar à luz. Aconteceria novamente mais tarde, enquanto estivesse fazendo compras, sentada em restaurantes ou visitando amigos. Eu tenho a pele morena. Meu parceiro é branco. Bonnie é mestiça. Direto da maternidade, enviei fotos de Bonnie para as pessoas que eu amava e algumas responderam com frases de uma linha, sem nenhum entusiasmo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uma pessoa me escreveu: "Ela é muito branca." Outra enviou: "Prefiro a foto que ela parece mais africana." "Ela está muito pálida, não é?", perguntou uma terceira. Teve um contato que sentiu a necessidade de usar caixa alta: "Ela AINDA é branca." Vale explicar que um bebê pode nascer com a pele um ou dois tons mais clara e isso se modifica com o passar do tempo. Essas frases me machucaram. Bonnie e eu passamos cinco dias sozinhas no hospital. O parto aconteceu durante a primeira onda da covid-19 e as visitas não eram permitidas. Meu parceiro só conseguia nos ver através das chamadas vídeo do WhatsApp, e isso significava que ele tinha muito tempo para pesquisar na internet e se preocupar com os comentários das pessoas. Será que elas presumiram que eu não era a mãe de Bonnie? Será que minha filha teria que explicar quem eu era o tempo todo? Todos sempre pensariam que eu era a babá? Eu não estava preparada para lidar com isso. Cinco semanas depois de deixarmos o hospital, até uma simples caminhada se tornou desagradável. Um homem apareceu gritando agressivamente: "Por que seu bebê é tão branco?" Ele nos cercou, muito furioso. "Por que ela é tão branca? Você arranjou um homem branco? É o que acontece quando você fica com um branco! Olhe para ela, olhe para ela, olhe para ela. Por que ela é tão branca?" Fiquei chocada, assustada e envergonhada. Eu não conseguia entender porque esse homem, que tinha a mesma cor da minha pele, estava se sentindo tão ofendido. Na verdade, todos os comentários negativos sobre a cor da pele do meu bebê foram feitos por pessoas que possuem a mesma tonalidade da minha pele. Eu não entendia. Nunca imaginei que famílias mestiças tivessem que passar por isso. Meu maior arrependimento foi não ter defendido minha família naquele momento. Nunca disse nada. Afastei-me desse estranho furioso, contendo minhas lágrimas até chegar à segurança de minha própria casa. Nunca falei sobre o impacto que isso teve em mim, até conhecer Wendy. Wendy Lopez tem 60 anos, mora no sul de Londres, no Reino Unido, e tenta não levar a vida muito a sério. Há 28 anos, ela teve a Olívia. Uma amiga chegou a ligar para a maternidade onde Wendy acabara de dar à luz, na Guiana, para verificar se o bebê era negro ou branco. Wendy ri enquanto conta essa história. É assim que ela lida com as coisas. Olívia tinha cabelos castanhos, mas com "grandes cachos loiros" na frente. "Era como se ela fosse ao salão e alguém tivesse enrolado seu cabelo", descreve Wendy. Um médico perguntou a Wendy se havia "brancos na família" e ela explicou que o pai de Olívia era branco. Mas o especialista rebateu: "Há brancos em sua família e é por isso que Olivia é tão pálida." "Eu pensei: 'Por que você está me falando tudo isso?'", lembra Wendy. "Em todas as consultas você fica falando para as outras mães sobre a cor de pele dos filhos? Aposto que não." Wendy admite que sua mãe não aprovava a cor da pele da neta e ocasionalmente se referia a ela como "a garota branca", mas ela sentiu que poderia lidar com isso. Era mais difícil quando os comentários vinham de estranhos. Ela se lembra de um incidente que foi particularmente perturbador. Wendy estava com Olivia no carrinho de bebê e iria fazer as compras semanais em Deptford, um distrito no sul de Londres, quando passou por três homens negros parados do lado de fora de um pub. "Um deles veio até mim. Ele olhou para Olívia e perguntou: 'Essa é sua filha?'" "E eu disse não." "Basicamente, eu repudiei minha filha, mas acho que faria o mesmo de novo." "Não me arrependo. Me senti ameaçada. Fiquei com medo. Senti pelo cheiro que aquele homem tinha bebido. Pensei que ele poderia nos espancar", diz Wendy. "Naquela época, não parecia bom mulheres negras ficarem com homens brancos." Hoje em dia, as pessoas tendem a mostrar desaprovação de outras maneiras. E Wendy não fica mais quieta, até porque Olivia tem um distúrbio de aprendizagem e não consegue se defender. "Fui tomar a vacina contra a covid-19 há alguns meses e a enfermeira me perguntou se eu cuidava de Olivia. Quando eu disse que era mãe dela, a profissional perguntou se eu realmente tinha dado à luz", disse Wendy. "Não posso deixar as pessoas me falarem esse tipo de coisas." Ela considera comentários como esse um ataque a quem Olívia é, e que, se sua filha pudesse, "ela estaria dizendo às pessoas para deixá-la em paz". "Meu pai é branco e minha mãe é negra, ponto final.", poderia responder a menina, segundo o raciocínio e as expectativas de minha amiga. Eu disse a Wendy algo que tem me incomodado por um tempo. Será que somos muito sensíveis a esse tipo de comentário e não deveríamos nos afetar tanto? "É isso que todo mundo que não está nesta situação vai dizer. 'Você é muito sensível. Vamos lá, não foi isso que quiseram te dizer'", diz, apertando as mãos. Mas, depois de 14 meses, eu estou cansada de ter que confirmar constantemente que esse lindo ser que tenho nos meus braços é minha filha. "Estamos no século 21. Você poderia pensar que as pessoas avançaram um pouco, mas não parece", diz Fariba Soetan, que possui um blog sobre a criação de filhos mestiços. Fariba tem 41 anos e é metade iraniana, metade inglesa. O marido dela é nigeriano e eles têm três filhas de 6, 8 e 10 anos. "Fiquei realmente apavorada com os comentários que nos fizeram sobre ter três meninas com tons de pele diferentes", diz. "Já posso antecipar as experiências que minhas filhas terão, dependendo de como são percebidas na sociedade." Um incidente no ano passado realmente a incomodou. Fariba estava pegando uma de suas filhas após uma aula no norte de Londres. "Dei um abraço nela e uma das garotas da turma disse: 'Essa é sua filha?'" "Eu disse que sim'. E ela respondeu: 'Você ainda a ama, embora ela seja dessa cor?'" "Minha filha teve que escutar uma frase dessas", lamenta Fariba, tentando não chorar. Mas escrever sobre esse tema no blog ajuda. "Sinto que causo um impacto. Não estou apenas sofrendo, mas fazendo algo a respeito." Como mãe de primeira viagem, quero que Fariba me garanta que tudo isso é apenas uma fase e que a curiosidade das pessoas vai passar. Infelizmente, a realidade não é bem essa... "Muitas vezes, os comentários acontecem depois das férias, principalmente com a minha filha mais velha, que é a mais morena", responde Fariba. "São frases do tipo: 'Ela é bastante bronzeada' ou 'Ela parece bem morena'. É como se estivessem questionando se eu gostaria que minha filha não tivesse esse tom de pele." "Certamente, parte desses comentários a afetou. Ela não quer ficar muito escura porque há sempre algo negativo associado a isso." Nesse exato momento, Asha, de quem estamos falando, cruza o jardim e vem em nossa direção. Ela acabou de voltar da aula de ginástica e ainda está cheia de energia. A menina quer me mostrar seus livros favoritos, sobre cabelos cacheados e como ser uma bailarina negra famosa. "Às vezes eu olho para as pessoas na rua e me pergunto se elas acham que eu e meus pais somos da mesma família", diz Asha. Ela então encontrou uma solução criativa. "Eu descrevo minha família como se fossem sabores de sorvete. Eu sou caramelo. Mamãe é baunilha. Papai é chocolate. Minha irmã mais velha é doce de leite e minha irmãzinha é café com leite." "É melhor pensar neles dessa forma, em vez de dizer que alguém é mais claro ou muito mais escuro do que eu." "Quero nos comparar usando coisas deliciosas. Coisas que as pessoas amam, como sorvete. Somos uma família e não devemos ser julgados." Enquanto Asha sai dançando, Fariba me diz que espera que figuras como Meghan Markle e Kamala Harris, a vice-presidente dos Estados Unidos, incentivem as pessoas a reexaminar preconceitos sobre a cor da pele. "Espero que algo mude. Acho que devemos manter essa esperança." Algumas semanas depois de conhecer Wendy, ela me mandou uma mensagem para seguir com a nossa conversa. "Espero que tudo corra bem", escreveu. "Esqueci de dizer: seja feliz com sua filha, porque esses anos preciosos vão passar voando." Eis um conselho que pretendo seguir pelo resto da minha vida.
2021-08-04
https://www.bbc.com/portuguese/geral-58051825
sociedade
Com impopularidade de partidos políticos, defesa da 'democracia direta' ganha adeptos
Em 1796, o presidente americano George Washington criticou os partidos políticos por permitirem que "homens ardilosos, ambiciosos e sem princípios" "subvertessem o poder do povo". A acusação dele parece fortemente oportuna hoje, apenas alguns meses depois de 147 congressistas republicanos dos EUA contestarem publicamente os resultados da mais recente eleição presidencial americana. Mas, mesmo bem antes disso, vários americanos compartilhavam da preocupação de Washington. A popularidade dos partidos está no fundo do poço nos EUA, com os partidos Democrata e Republicano sendo amplamente condenados por não apenas não serem representativos, como também por terem sido sequestrados pelas elites. Na verdade, uma parcela cada vez maior de eleitores americanos — 38% em 2018 — se identifica como não filiada a nenhum dos partidos. Essa proporção é agora maior do que a parcela de eleitores que se identificam com republicanos ou democratas. Parece ser um fenômeno internacional. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na Europa, por exemplo, partidos tradicionalmente poderosos de centro-esquerda estão sendo acusados ​​de ignorar seus eleitores, contribuindo potencialmente para uma reação que ajudou a empurrar o Reino Unido para o Brexit (saída da União Europeia). A crescente animosidade em relação aos partidos inspirou debates entre cientistas políticos. Os defensores do sistema partidário tradicional afirmam que a democracia depende de facções políticas fortes, organizadas e confiáveis. "As pessoas na política muitas vezes tentam contornar os partidos, ir diretamente às pessoas. Mas sem os partidos, teríamos o caos", diz a cientista política Nancy Rosenblum, da Universidade de Harvard, nos EUA, que analisa os desafios que os partidos políticos enfrentam hoje. Mas um pequeno grupo de acadêmicos, muitos deles jovens, afirma que é hora de começar a visualizar uma democracia mais aberta e direta, com menos mediação de partidos e políticos profissionais. Propostas como essas eram vistas como "completamente marginais" até uma década atrás, diz Hélène Landemore, cientista política da Universidade de Yale, nos EUA. Mas, segundo ela, certos eventos — incluindo a crise econômica de 2008 e a eleição de Donald Trump para a Presidência em 2016 — ampliaram o escopo do debate. Várias tendências aceleraram o declínio da popularidade e do poder dos partidos nos Estados Unidos. Os esquemas de clientelismo partidário que recompensavam os apoiadores com empregos públicos há muito tempo deram lugar a sistemas mais meritocráticos. O surgimento de comitês independentes de ação política deu aos candidatos uma fonte de financiamento de campanha — cerca de US$ 4,5 bilhões na última década — fora dos canais do partido que antes dominavam o acesso ao dinheiro da campanha. Isso tornou muitos candidatos mais empreendedores e menos dependentes da burocracia partidária. Em terceiro lugar, os partidos agora determinam seus candidatos por meio de eleições primárias, em vez de reuniões com membros do partido. Apenas 17 primárias foram realizadas em 1968 — hoje, cada Estado americano tem uma primária ou caucus. Essa mudança para as primárias universais transferiu a influência de veteranos do partido para ativistas mais radicais, que são mais propensos do que a média dos eleitores a votar nas primárias, diz Ian Shapiro, cientista político de Yale. Em 2018, o Comitê Nacional Democrata reduziu até mesmo a influência dos superdelegados, centenas de integrantes VIPs do partido que também tinham votos na seleção de candidatos. Isso foi para assegurar os eleitores de que estavam sendo ouvidos pelos dirigentes do partido, declarou o vice-presidente do comitê na época. Em muitas partes dos Estados Unidos, o "gerrymandering" partidário contribuiu para tornar os candidatos menos representativos de seus eleitores, ao criar "cadeiras seguras" para ambos os partidos. Isso significa que os vencedores são, de fato, decididos nas primárias que colocam democratas contra democratas e republicanos contra republicanos. Esse fenômeno ajuda a explicar a eleição ao Congresso, em 2018, de Alexandria Ocasio-Cortez, uma socialista democrata de 28 anos que nunca havia exercido um cargo eletivo antes, diz Shapiro. Ocasio-Cortez derrotou um democrata influente já estabelecido em uma primária à qual menos de 12% dos eleitores compareceram. Nem todos concordam que os partidos políticos são mais fracos hoje do que antes. A polarização extrema de hoje significa que grande parte da população está mais fortemente ligada ao seu próprio partido, diz Rosenblum, e os esforços liderados pelos partidos de supressão ou mobilização de eleitores, na verdade, tornam os líderes partidários mais poderosos do que nunca. Ainda assim, Shapiro e muitos outros especialistas acreditam que os partidos políticos sofreram uma grande perda de influência, que por sua vez foi uma perda para a democracia em geral. "Os partidos políticos são a instituição central da responsabilidade democrática porque os partidos, não os indivíduos que os apoiam ou os constituem, podem oferecer visões concorrentes de interesse público", escreveram Shapiro e sua colega de Yale, Frances Rosenbluth, em um artigo de opinião de 2018. Os eleitores, argumentam eles, não têm tempo nem experiência para pesquisar os custos e benefícios das políticas e pesar seus interesses pessoais em relação ao que é melhor para a maioria no longo prazo. Para mostrar o que pode dar errado com uma votação de questão única sem orientação partidária, Shapiro e Rosenbluth citam a notória Proposição 13 da Califórnia, uma iniciativa eleitoral de 1978 que restringiu drasticamente os aumentos de impostos sobre propriedades. A princípio, a medida pareceu uma vitória para muitos eleitores. No entanto, ao longo dos anos, a nova regra também dizimou os orçamentos locais a ponto de os gastos escolares por aluno da Califórnia ocuparem agora quase as últimas posições do ranking dos 50 Estados americanos. Os partidos desempenham muitas outras funções importantes, incluindo facilitar acordos, diz Russell Muirhead, cientista político da Universidade de Dartmouth, nos EUA, e coautor de Rosenblum. Como exemplo, Muirhead cita a lei agrícola (Farm Bill), que os dois partidos renegociam aproximadamente a cada cinco anos. Cada vez que eles se sentam para negociar, "os democratas querem ajuda alimentar para a população urbana, e os republicanos querem ajuda para os agricultores e, de alguma forma, eles sempre chegam a um acordo", diz ele. "A alternativa é favorecer um lado ou simplesmente não passar nada." E talvez o mais importante, os dois principais partidos dos Estados Unidos tradicionalmente cooperam no reconhecimento da legitimidade de seus oponentes, como escrevem Rosenblum e Muirhead. Outros países, como Tailândia, Turquia e Alemanha, baniram partidos políticos que seus governos consideraram desestabilizadores demais para a democracia. A cooperação dos partidos americanos ajudou a manter a paz, garantindo aos eleitores americanos que, mesmo que percam hoje, podem muito bem vencer amanhã. Agora, no entanto, essa regra fundamental está sendo quebrada, dizem Rosenblum, Muirhead e outros, com alguns líderes partidários acusando até mesmo seus oponentes de traição. "A principal coisa que está acontecendo agora é que temos um argumento explícito de que o partido da oposição é ilegítimo", afirma Rosenblum. "Trump vem chamando os democratas de inimigos do povo e ilegítimos, e dizendo que a eleição é fraudulenta. Este é o caminho para a violência, já que não há como corrigir isso com outra eleição." Os partidos políticos em todo o mundo perderam considerável boa fé e influência, diz Shapiro. Mas ele sugere que, em vez de bani-los ou minar ainda mais seu poder, devemos fortalecê-los e torná-los mais confiáveis. Ele e seus colegas defendem a reforma do financiamento de campanha, para acabar com as atuais guerras de lances caóticas pela lealdade dos candidatos, embora esse objetivo continue a ser elusivo. Para combater a ascensão do extremismo, eles também pedem que o trabalho de redistribuição de distritos eleitorais seja feito por comissões apartidárias, em vez do "gerrymandering". Para reduzir ainda mais o risco de as primárias aumentarem a polarização, Shapiro propõe que os líderes partidários tenham permissão para escolher os candidatos se o comparecimento nas eleições primárias for abaixo de 75% do comparecimento nas eleições gerais anteriores. Landemore e seus seguidores afirmam que essas ideias não correspondem à urgência do dilema atual. Ela convida as pessoas a imaginarem como a democracia pode funcionar com menos ou até mesmo zero dependência de partidos políticos e, particularmente, sem campanhas eleitorais dispendiosas e potencialmente corruptas. Uma possibilidade, diz ela, seria nomear aleatoriamente grupos de cidadãos, escolhidos como os júris de hoje, para liderar o governo, enquanto se alternam por períodos fixos por meio de uma "Casa do Povo" permanente. Essas assembleias de cidadãos seriam mais representativas do que o atual Congresso americano, escreveu Alexander Guerrero, filósofo da Universidade Rutgers, nos EUA, em um artigo de opinião de 2019, no qual ele defendia a escolha dos representantes por sorteio. "Nos Estados Unidos, 140 das 535 pessoas servindo no Congresso têm um patrimônio líquido superior a US$ 2 milhões, 78% são homens, 83% são brancos e mais de 50% eram anteriormente advogados ou empresários", ele observou. Vários países europeus já tentaram alternativas à democracia partidária. Em 2019-2020, a França realizou uma Convenção Cidadã sobre o Clima, convocando 150 cidadãos escolhidos aleatoriamente para ajudar a conceber formas socialmente justas de reduzir os gases de efeito estufa. Em dezembro de 2020, o presidente francês concordou em realizar um referendo sobre uma das sugestões da convenção, a inclusão da proteção climática na Constituição federal. E em 2016, o Parlamento irlandês reuniu 99 cidadãos para deliberar sobre questões persistentes, incluindo a proibição constitucional do aborto. A maioria da assembleia propôs que a proibição fosse derrubada, o que foi confirmado posteriormente por um referendo nacional, e a lei foi alterada — e tudo isso foi alcançado sem o envolvimento dos partidos políticos estabelecidos. Apesar do impacto limitado desses esforços até agora, Landemore diz que a maré da opinião pública está mudando. Há apenas cinco anos, colegas zombaram da ideia de uma "democracia aberta" em uma conferência de ciência política, diz ela, que acrescenta: "Daqui a cinco anos, acho que seremos absolutamente a corrente principal".
2021-07-31
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-57754694
sociedade
Vídeo, Dia do Amigo: como ter amizades faz bem à saúdeDuration, 3,06
O ser humano é social por natureza — e a ciência vem descobrindo os benefícios disso à nossa saúde. Pesquisas mostram que fazer e manter amizades têm um impacto fundamental na saúde física das pessoas. A solidão está, por exemplo, associada a um envelhecimento mais acelerado das células. Por outro lado, socializar nos torna menos propensos a ter inflamações e ser infectados por vírus. Confira no vídeo.
2021-07-29
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-58019270
sociedade
'Não há meritocracia sem direitos iguais': o desabafo do jovem que ficou famoso ao passar em Medicina estudando sem luz elétrica
A vida de Matheus de Araújo Moreira Silva, de 26 anos, mudou drasticamente no último mês. O jovem morador de uma comunidade quilombola de Feira de Santana, na Bahia, realizou seu grande sonho: começou a cursar Medicina na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, depois de quatro anos tentando ser aprovado no curso. "Estudei. Resisti. Consegui", escreveu Matheus em seu Instagram para comemorar. Com isso, Matheus se tornou uma espécie de minicelebridade. Ele tem dado entrevistas praticamente diárias a respeito de como conseguiu tirar a nota quase máxima na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e ser aprovado em um curso concorrido de uma universidade federal, mesmo tendo estudado por conta própria, em uma casa sem energia elétrica e sem acesso à internet. Mas a fama tem sido agridoce, diz Matheus. Ele diz que é bom poder servir de exemplo para outros que estudam em condições adversas e que não se acham capazes de chegar à faculdade. Mas não quer ver sua história de vida e seu esforço usados para exaltar a meritocracia e por quem critica um suposto "vitimismo negro" — ou seja, a ideia de que negros poderiam competir por oportunidades em condições de igualdade que brancos e aqueles que reclamam das injustiças causadas pelo preconceito estariam se colocando na posição de "vítimas" sem motivos para isso. "Isso está me incomodando demais. Esse discurso é balela", diz Matheus à BBC News Brasil. "Poxa, o que eu sofri eu não desejo para nenhum estudante. Se tivesse tido um bom local para estudar, se não tivesse tido que trabalhar, teria facilitado bastante." Uma das manifestações públicas que o incomodaram veio do presidente da Fundação Cultural Palmares, Sergio Camargo. O órgão, ligado ao governo federal, é dedicado à promoção da cultura afro-brasileira. "Enquanto pretos vitimistas jogam suas vidas fora na militância ressentida, bailes funk, vício da maconha, bandidagem e manifestações de esquerda, esse rapaz dedicou-se ao estudo com muita disciplina e esforço, associado à fé em Deus. Matheus venceu em meio a grandes dificuldades (sem luz nem internet). Ele é a prova de que negros não precisam ser vítimas. Terá um futuro brilhante. Parabéns!", escreveu Camargo no Twitter. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Não é bem assim, 'quem quer consegue'", responde Matheus. "Meritocracia é quando as pessoas têm os mesmos direitos. (...) Para a gente que é de periferia, de interior, de favela, as políticas públicas não chegam. Sempre trabalhei num turno e estudei no outro, o que é bastante complicado, porque nossos pais não têm condição de pagar cursos, materiais. Você chega cansado, e isso atrapalha bastante." "Às vezes precisa (escolher entre) trabalhar para ter dinheiro e botar comida em casa, ou estudar. Não acho bonito ter que fazer essa escolha complicada", prossegue. Matheus lamenta que muitos estudantes, como ele próprio, não disponham de ambientes adequados para estudar dentro de casa e tenham ficado sem opções durante a pandemia, quando escolas e espaços públicos foram fechados. "Então, romantizar a pobreza não é algo legal, é triste. Eu ter tido que estudar sem energia elétrica e o pessoal achar 'que bonito, que belo' não é nem um pouco legal." Matheus começou a prestar o Enem em 2015. Fez as provas todos os anos desde então. Chegou a ser aprovado em Enfermagem e fez curso durante dois anos, mas desistiu para se concentrar no sonho de fazer Medicina. Neste último ano, sem ter espaço para estudar em casa e com a biblioteca local fechada, Matheus passou a estudar na casa de uma amiga — onde não havia energia elétrica ou internet. Para contornar os desafios, Matheus contratou um plano de dados no celular e passou a dedicar-se ao estudo com "disciplina de atleta". Ele conta que lia constantemente, de livros a gibis e reportagens, para estimular sua capacidade de interpretação de texto e aumentar seu repertório — habilidades úteis nas provas de linguagem e redação. Também usou materiais gratuitos online e provas antigas para se preparar. Adaptou-se ao chamado "método pomodoro" de estudos, que preconiza que o estudante dedique-se a uma tarefa por 25 minutos e em seguida faça uma pausa de 5 minutos, e depois repita o mesmo procedimento com a segunda tarefa, e assim por diante. Esse tipo de método, segundo neurocientistas, ajuda a descansar o cérebro e a tirar o máximo proveito da capacidade de atenção. Para simular as condições exatas que enfrentaria no dia do Enem, Matheus passou a estudar à tarde e usando máscara, com o objetivo de "acostumar minha respiração". "Estudar não é só sentar na cadeira e riscar papel. Tem que ter método, estratégia", argumenta. "Fiquei tantos anos fazendo tanta prova que pensei, 'puxa, o que posso fazer para facilitar meu processo de aprendizado?' (Decidi que) ia me preparar como atleta; ter disciplina, foco". E essa rotina de estudos tinha de ser conciliada com o trabalho. Matheus já trabalhou como carregador, vendedor de frutas e entregador de pizza, até começar a dar aulas de reforço. A dedicação, porém, foi recompensada. Na redação do Enem mais recente, Matheus obteve 980 pontos, perto da nota máxima de mil, e foi aprovado na UFRB. Agora, ele está cursando Medicina à distância (temporariamente, por conta da pandemia), até chegar a hora de mudar-se para a universidade, na cidade de Santo Antônio de Jesus, em novembro. Seu objetivo, por enquanto, é especializar-se em Medicina da Família ou Neurologia. O jovem fez uma vaquinha para conseguir dinheiro para comprar um computador e para custear suas despesas universitárias e obteve ajuda de famosos, como a ex-BBB Camilla de Lucas. "Mas a maioria das pessoas que me ajudaram são pessoas como eu, simples — donas de casa, pedreiros, que sentiram uma certa identificação. Alguns mandaram mensagens dizendo 'não desista, você representa muito para mim', e ajudaram com R$ 1 ou R$ 5. Agora não sou mais eu — sou eu e mais um monte de gente", comemora. "Eu não tive cursinho, não tive dinheiro pra isso. Não consegui bolsa. então fui estudar por conta própria, o que foi bastante complicado. Aí tem os amigos (que perguntam) 'Matheus, como conseguiu fazer isso, velho, num período de pandemia, sem energia, sem cursinho, sem recursos? Tu conseguiu algo bem grande'. É, mas tudo o que eu criei foi um molde, uma estratégia, para poder facilitar na hora da prova." Seu perfil no Instagram, Redação com Matheus, hoje tem 18,4 mil seguidores. Matheus compartilha seu método de estudos e dá dicas — sobretudo para a temida prova de redação — para outros estudantes "sonhadores" como ele. "Agora, eu tenho uma certa representatividade, e acho bom que (os jovens) tenham alguém em quem se espelhar. Hoje em dia, tudo é instantâneo, então, você olhar para alguém e sentir identificação é legal", afirma. "Todos os dias chegam centenas de mensagens de jovens como eu, do interior, de zonas periféricas, dizendo 'você me inspirou, vou estudar também, sei que vai ser complicado'", conta ele. "Os meninos aqui no bairro quando eu passo dizem 'olha ali o menino que passou em Medicina'. Tem os que chegam em mim e falam 'o tio, vou estudar para ser igual ao senhor, para ser grande'. Vejo que poxa, tem um certo impacto. Quando você vê alguém igual você vencendo, isso te motiva - 'pronto, dá para mim também'. É algo bastante interessante e gratificante." Mas defende que jovens como ele precisam de políticas específicas, além de fontes de inspiração. "Não era para ter sido tão difícil assim para mim", diz. "Eu conseguir pular o sistema (e ser aprovado no vestibular) virou uma notícia tão grande porque não é comum, não é padrão, mas era para ser padrão", afirma. "Falta explicar os caminhos possíveis para quem concluir o ensino médio, mostrar os cursos técnicos para quem não quiser fazer faculdade, dizer 'se capacite, não fique só com o ensino médio'. Tem que dar caminhos para abrir os horizontes (dos jovens)."
2021-07-28
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57993149
sociedade
Brasileiros lideram ranking mundial de sensação de viver em 'país em declínio'
Uma pesquisa de opinião feita em 25 países traz uma visão desalentadora de boa parte da população global a respeito de suas respectivas instituições políticas — e os brasileiros têm uma percepção negativa acima da média mundial. Mais de dois terços (69%) dos mil brasileiros entrevistados afirmam que o país está em declínio, o maior índice observado entre todos os países participantes da pesquisa de opinião Broken-System Sentiment in 2021, realizada pela empresa Ipsos. São 12 pontos percentuais acima da (já alta) média mundial de 57% de pessoas que têm a percepção de viver em países em declínio. Os índices são altos também no Chile, na Argentina e na África do Sul, todos com 68%. Além disso, 72% dos brasileiros disseram acreditar que a sociedade do país está "falida", índice semelhante aos respondentes da Hungria e só superado pelo da África do Sul (74%). A média global, nesse caso, é de 56%. É importante que a liderança em um ranking de sentimentos tão negativos cause desconforto no Brasil, opina Helio Gastaldi, porta-voz da Ipsos. "Espero que a pesquisa cumpra o papel de dar um chacoalhão. A crítica (às instituições políticas) é generalizada ao redor do mundo, mas não de forma tão aguda quanto no Brasil", afirma Gastaldi à BBC News Brasil. Esse sentimento já havia se manifestado nas pesquisas anteriores da Ipsos sobre o mesmo tema, em 2016 e 2019. "É um sentimento que persiste e que coincide com o que notamos em outros estudos e pesquisas que fizemos para clientes, em que se percebe hoje no Brasil um sentimento de decepção e insegurança. Passa uma ideia de grande preocupação com o futuro", prossegue Gastaldi. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De modo geral, a pesquisa traz um panorama de desconexão e decepção das pessoas com suas instituições: na média, 71% dos entrevistados globais concordam com a frase de que "a economia está manipulada para favorecer os ricos e poderosos". E 68% concordam com a ideia de que partidos e políticos tradicionais não se preocupam com as "pessoas como eu". E, quanto maior a sensação de viver sob um "sistema falido", maior é também a manifestação de apoio a modelos populistas ou antielite, aponta o Ipsos. No Brasil, por exemplo, 74% dos entrevistados disseram concordar com a frase "o Brasil precisa de um líder forte para retomar o país dos ricos e poderosos", dez pontos percentuais acima da média global. Um índice menor, mas igualmente alto (61%) de brasileiros afirmou que "para consertar o país, precisamos de um líder forte, disposto a quebrar as regras". A média global, aqui, é de 44%. "Isso reforça o discurso populista de que as instituições não servem e de que tem de vir alguém de fora para consertá-las — um remédio que a gente já sabe que não funciona", afirma Helio Gastaldi. No lugar de depositar as esperanças em um líder que derrote o sistema e milagrosamente resolva os problemas, prossegue Gastaldi, o mais produtivo seria fortalecer as instituições e aumentar a participação popular nelas. Uma ressalva importante nesse ponto, diz Gastaldi, é de que o apoio a um "líder forte que quebre as regras" é maior entre os mais velhos (acima dos 50 anos) do que entre os mais jovens, "que parecem mais predispostos a (confiar em) soluções institucionais". De qualquer modo, analisa ele, "é um índice alto, preocupante, que reflete um certo saudosismo da ditadura (militar no Brasil), uma visão nublada e incorreta desse período como sendo um de mais ordem ou de menos corrupção. Isso também alerta para a necessidade de um diálogo intergeracional". Ainda segundo a pesquisa, 82% dos brasileiros acham que a elite política e econômica não se importa com as pessoas que trabalham duro. Três quartos dos entrevistados (76%) acreditam que a principal divisão da sociedade do Brasil é entre cidadãos comuns e a elite política e econômica. "As pessoas entendem que quem pode ou tem responsabilidade de fazer algo (para melhorar o país) o faz em benefício próprio", prossegue Gastaldi. "São vários indicadores negativos em que o Brasil está muito acima da média mundial, mostrando que a população se sente muito desassistida." O único ponto da pesquisa em que os brasileiros ficam abaixo das médias internacionais diz respeito a temas migratórios. Aqui, 53% concordam com a frase "quando os empregos são escassos, empregadores devem priorizar nativos a imigrantes", contra 57% da média global. E apenas 26% acham que o Brasil seria mais forte se deixasse de receber imigrantes, contra 38% no resto do mundo. A pesquisa da Ipsos foi feita online com 19 mil respondentes de 16 a 74 anos, entre março e abril, em EUA, Canadá, Malásia, África do Sul, Turquia, Bélgica, França, Alemanha, Reino Unido, Austrália, Itália, Japão, Espanha, Hungria, México, Holanda, Peru, Polônia, Rússia, Coreia do Sul, Suécia, Argentina, Chile, Colômbia e Brasil. Segundo a Ipsos, as amostras são representativas da composição populacional dos países — embora, em parte deles (Brasil inclusive), ela reflita a opinião de uma população majoritariamente urbana, próspera e com mais acesso à educação.
2021-07-28
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57993147
sociedade
Como o sexismo se reflete no controle dos uniformes das atletas
"Vamos continuar a lutar, juntos, para mudar as regras de vestuário, para que os atletas possam jogar com as roupas com as quais se sentem confortáveis." Essa foi a declaração dada pela Federação Norueguesa de Handebol depois que a equipe feminina da modalidade de praia de seu país foi multada em 1,5 mil euros (cerca de R$ 9,2 mil) ao se recusar a usar biquíni no campeonato europeu. Um dia antes, uma atleta paralímpica que participava do campeonato inglês de atletismo ouviu de um funcionário da competição que suas roupas eram "curtas demais e mostravam muito". Só que o escrutínio ao qual as atletas (e mulheres em geral) são submetidas por causa do que vestem não é novidade. Relembre, a seguir, alguns dos incidentes que acabaram virando notícia — e sua repercussão. Esse foi o caso mais recente, de julho deste ano. As jogadoras da equipe norueguesa de handebol de praia se queixaram do biquíni usado como uniforme oficial, argumentando que ele restringia os movimentos das atletas, era desconfortável e as hiperssexualizava. Assim, elas optaram por usar shorts na disputa contra a Espanha pela medalha de bronze do campeonato europeu. Antes da partida, a Noruega entrou em contato com a Federação Internacional de Handebol e pediu permissão para que suas jogadoras usassem uma alternativa ao biquíni. O pedido não apenas foi recusado — a federação avisou ao país que a mudança configurava uma violação às regras da competição e, assim, era passível de punição. Assim, quando o time optou por usar shorts durante o jogo, foi multado no equivalente a 150 euros por jogadora. A Federação Europeia de Handebol aplicou a punição sob a justificativa de que a decisão da Noruega não estava "de acordo com as regras sobre uso de uniformes para os atletas definidas pela Federação Internacional de Handebol para o handebol de praia". O episódio gerou uma forte reação contrária. Muitas pessoas questionaram o fato de os jogadores dos times masculinos poderem usar regatas largas e compridas e shorts que vão até próximo ao joelho, quando o mesmo direito é negado às mulheres. "O mais importante é ter uniformes com os quais os atletas se sintam confortáveis", argumentou o chefe da Federação de Handebol da Noruega, Kåre Geir Lio, que apoiou as jogadoras e afirmou que a organização arcaria com a multa. "Em 2021, isso nem deveria ser um problema", comentou o presidente da Federação Norueguesa de Vôlei, Eirik Sordahl. Em um tuíte, o ministro da Cultura e do Esporte do país, Abid Raja, afirmou: "É completamente ridículo — uma mudança de atitude é necessária na comunidade esportiva internacional machista e conservadora". Em meio à polêmica, a cantora americana Pink se ofereceu inclusive para pagar a multa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há muitos anos as atletas reclamam dessa assimetria nos esportes de praia e dizem considerar o biquíni humilhante e pouco prático, do ponto de vista da performance esportiva. "Todo esporte precisa de regras. O problema é quando temos um conjunto de regras só para mulheres", disse à BBC a jornalista esportiva Renata Mendonça. "Isso é sexismo na sua forma mais cristalina. Infelizmente, o sexismo no esporte é ainda muito recorrente e é um dos fatores que explica porque tantas atletas brilhantes abandonam suas modalidades", afirma a criadora de conteúdo digital e ex-advogada Tova Leigh. "A questão não é o short. A questão é que mesmo em 2021 as mulheres ainda tendo que ouvir o que podem ou não podem vestir, porque os corpos das mulheres ainda são vistos como objeto para o proveito dos homens, algo sobre o que se tem direito de comentar, de exigir e de decidir", completa. "As mulheres no esporte muitas vezes não são levadas a sério, são tratadas como 'colírio' [por conta de sua aparência], e não como as atletas profissionais que são", acrescenta Leigh, que costuma se manifestar nas redes sociais sobre o escrutínio sexista a que os corpos das mulheres são submetidos "Não há justificativa razoável para o biquíni. O esporte não vai mudar em nenhum aspecto caso as jogadoras possam jogar de bermuda — se algo mudar, será o fato de que elas vão se sentir mais confortáveis", concorda Mendonça. A jornalista é cofundadora da plataforma digital Dibradoras, que visa aumentar a visibilidade das mulheres no esporte dando-lhes a exposição, segundo ela, que merecem, mas que muitas vezes não lhes é dada nas mídias convencionais. "As competições esportivas foram concebidas para homens — esse tipo de incidente deixa isso claro. Em 2021, os dirigentes de organizações esportivas, geralmente homens brancos, ainda veem as atletas como um adorno, que estão ali apenas para agradar aos homens. Caberia às mulheres decidir qual é o melhor traje para elas. Mas, como são poucas as mulheres em posição de comando nas organizações esportivas, as vozes das atletas não são ouvidas", afirma. O problema enfrentado pela seleção norueguesa não é um caso isolado. Um dia antes do anúncio da multa, a paratleta britânica Olivia Breen ficou "sem palavras" quando ouviu que deveria usar um short "mais apropriado" durante uma competição de atletismo do campeonato inglês. O comentário veio de um funcionário do evento, que disse que a parte de baixo do uniforme, semelhante a um biquíni, era "muito curto e mostrava demais". A velocista e saltadora, que deve competir na Paraolimpíada de Tóquio em agosto, diz que sua intenção ao compartilhar a experiência era tentar impedir que isso acontecesse a outras pessoas. Breen descreve sua roupa como a "parte de baixo de um biquíni de cintura alta". "Queremos ser o mais leve possível quando estamos competindo, ao mesmo tempo em que nos sentimos confortáveis", disse ela à BBC. "Eu uso isso há nove anos, nunca tive um problema." "Esses dois exemplos podem parecer contraditórios, mas são simplesmente os dois lados da mesma moeda", pontua Leigh. "Os corpos das mulheres são tratados e vistos como 'o problema'. Nossos corpos ou são 'inadequados' ou não são 'entretenimento suficiente'." Essa mesma questão emergiu em 2016, quando uma imagem da Olimpíada do Rio passou a ser amplamente compartilhada e comentada. Uma foto de duas jogadoras de vôlei de praia, uma do Egito e outra da Alemanha, virou assunto não por causa de suas habilidades esportivas, mas por causa de seus uniformes. Em alguns jornais, a foto foi usada para ilustrar um aparente "conflito cultural" — leitura que foi enfaticamente refutada por aqueles que argumentavam o contrário, o "poder unificador do esporte". A egípcia Doaa Elghobashy foi a primeira jogadora olímpica de vôlei de praia a usar um hijab. Na época, ela comentou: "Uso o hijab há 10 anos... E isso não me afasta das coisas que adoro fazer, e o vôlei de praia é uma delas". Para muitos, a proporção tomada por uma simples foto chamou atenção para um problema antigo. "Não importa de que cultura você vem, os corpos das mulheres e a forma como esses corpos são vestidos ainda são vistos como propriedade pública — ou, mais precisamente, propriedade do patriarcado", escreveu a jornalista britânica Hannah Smith na época. "Não importa o que você vista para praticar esportes como mulher, você sempre será julgada pelos homens que estão assistindo." De volta às quadras depois de retornar de licença-maternidade, a estrela do tênis Serena Williams dedicou seu uniforme no torneio de Roland Garros em 2018 a "todas as mães que tiveram uma gravidez difícil". A atleta americana, que foi 23 vezes campeã do Grand Slam, disse que o "macacão" que vestiu na ocasião a fez se sentir uma "rainha de Wakanda", em referência ao filme Pantera Negra. Williams descobriria depois, contudo, que não poderia mais usar a roupa na competição. Em entrevista à revista Tennis, o presidente da Federação Francesa de Tênis, Bernard Giudicelli, disse que "é preciso respeitar o jogo e o lugar". "Acho que às vezes vamos longe demais", afirmou. A tenista afirmou que o macacão a ajudou a lidar com problemas de coagulação sanguínea que enfrentava na época e que quase lhe custaram a vida ao dar à luz. Segundo a atleta, ela chegou a conversar com Giudicelli, explicou que a decisão pelo uniforme diferente "não era grande coisa". "Se eles sabem que algo é por motivo de saúde, então não há como não aceitarem." As ginastas alemãs usaram macacões de corpo inteiro na etapa de qualificação da Olimpíada de Tóquio em um posicionamento contra a sexualização da modalidade. Algumas já tinham usado uniformes semelhantes no campeonato europeu no início deste ano. Na época, a ginasta Sarah Voss afirmou que ela e as colegas queriam fazer com que as jovens se sentissem seguras no esporte. Os collants são bem diferentes daqueles tradicionalmente usados na ginástica. Até então, as únicas atletas que optavam por cobrir totalmente as pernas o faziam por motivos religiosos. A equipe alemã usou os macacões de corpo inteiro também durante os treinos na semana passada. "Queríamos mostrar que toda mulher, todo mundo, deve decidir o que vestir", disse a ginasta Elisabeth Seitz. A fabricante de toucas de natação Soul Cap, cujos produtos são desenhados para cabelos com dreadlocks, afros, tramas, extensões de cabelo, tranças, cabelos grossos e encaracolados, tem enfrentado resistência no mundo do esporte — mas a maré pode estar mudando. As toucas da marca foram proibidas nos Jogos Olímpicos de Tóquio, mas, após a repercussão negativa do episódio, a decisão pode ser reconsiderada para outras competições internacionais. A Federação Internacional de Natação (Fina) decidiu proibir as toucas sob o argumento de que elas não seguiriam "o formato natural da cabeça". O comentário gerou uma avalanche de críticas de nadadores, e muitos ressaltaram que a medida poderia inclusive desencorajar atletas negros de participar do esporte. Após a reação, a Fina afirma estar "revendo a situação". É improvável que histórias sobre atletas criticadas pelo que vestem não apareçam nas manchetes no futuro Mas, para Leigh, o fato de chamar atenção para esses casos é importante. "Temos que mostrar às meninas, desde a mais tenra idade, que o esporte é lugar de mulher".
2021-07-27
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57978154
sociedade
A complexa relação dos japoneses com os robôs
Em um certo templo budista de 400 anos, os visitantes podem passear por jardins de pedra pacíficos, sentar-se para uma xícara de chá tranquila e receber ensinamentos budistas de um sacerdote incomum: um androide chamado Mindar. Ele tem um rosto sereno e de aparência neutra, nem velho nem jovem, nem masculino nem feminino. Além da pele realista que cobre a cabeça e a parte superior do tronco, ele parece inacabado e industrial, com tubos e maquinários expostos. Mas Mindar é bastante sofisticado quando aborda filosofia, discorrendo sobre um texto budista obscuro chamado Sutra do Coração. Um sacerdote robótico assim só pode existir mesmo em um lugar como o Japão, neste caso no belo Templo Kodai-ji em Kyoto. O Japão é conhecido há muito tempo como uma nação que fabrica e se relaciona com robôs humanoides com mais entusiasmo do que qualquer outra. Embora essa reputação seja frequentemente exagerada no exterior — casas e empresas japonesas não são densamente povoadas por androides, como notícias às vezes sugerem — há um fundo de verdade nessa imagem. Alguns observadores da sociedade japonesa dizem que a religião nativa do país, o xintoísmo, explica sua predileção por robôs. O xintoísmo é uma forma de animismo que atribui espíritos, ou kami, não apenas aos humanos, mas também a animais, paisagens como montanhas e até objetos cotidianos como lápis. "Todas as coisas têm um pouco de alma", nas palavras de Bungen Oi, o sacerdote-chefe de um templo budista que realizava funerais para cães robóticos. De acordo com essa visão, não há distinção categórica entre humanos, animais e objetos, então não é tão estranho para um robô demonstrar comportamentos semelhantes aos humanos — ele está apenas mostrando seu tipo particular de kami. "Para os japoneses, sempre podemos ver uma divindade dentro de um objeto", diz Kohei Ogawa, designer-chefe de Mindar. O animismo do Japão contrasta com as tradições filosóficas do Ocidente. Os gregos antigos eram animistas porque viam espíritos em lugares naturais como riachos, mas consideravam a alma e a mente humanas distintamente separadas e acima do resto da natureza. As religiões abraâmicas (religiões como cristianismo, islamismo e judaismo que têm em comum o personagem bíblico Abraão) colocam os humanos em um pedestal ainda mais alto, como a maior criação de Deus, os únicos corpos que possuem almas imortais. Os antigos israelitas foram advertidos contra a atribuição de valor espiritual aos objetos, para que não praticassem a adoração de ídolos, uma forma de heresia expressamente proibida pelos Dez Mandamentos. Algumas formas do Islã são especialmente avessas à idolatria e proíbem a criação de qualquer imagem de humanos ou animais. De acordo com a visão ocidental tradicional, uma máquina que age como uma pessoa está violando os limites naturais, confundindo perigosamente o sagrado e o profano. Essa advertência ética aparece com destaque em mitos modernos sobre tecnologia, como Frankenstein, que deriva muito de sua mensagem moral da Bíblia, diz Christopher Simons, professor de Cultura Comparada na Universidade Cristã Internacional de Tóquio. "O dr. Frankenstein cria outra vida no monstro. É como humanos comendo da árvore do conhecimento no Éden. Esse é o pecado original; como resultado, somos punidos", diz ele. No trágico final da história, com o dr. Frankenstein e seu monstro mortos, a lição é clara, diz Simons: "Cuidado, seres humanos. Não assumam o papel de Deus". A peça teatral tcheca R.U.R., de 1920, que introduziu a palavra "robô", é repleta de temas religiosos: um personagem cria androides para provar que não há Deus, outro argumenta que os robôs devem ter alma e dois robôs que se apaixonam são batizados de "Adão e Eva". No final da história, os robôs matam todos os humanos, exceto um. Alguns pesquisadores dizem que as raízes da visão positiva do Japão sobre a tecnologia e sobre os robôs em particular são principalmente socioeconômicas e históricas, em vez de religiosas e filosóficas. Nos anos após a Segunda Guerra Mundial, o Japão recorreu a novas tecnologias para reconstruir não apenas sua economia, mas também sua imagem nacional. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Os robôs industriais desempenharam um papel importante no renascimento econômico do Japão durante os anos 1960", disse Martin Rathmann, um acadêmico japonês da Universidade de Siegen, na Alemanha. "Em vez de facilitar as rígidas políticas de imigração para ajudar com a escassez de mão de obra, eles introduziram a automação generalizada por meio da robótica." Após automatizar suas próprias linhas de fabricação, aumentando a eficiência e a produção, o Japão se tornou um grande exportador de robôs industriais para outros países. Quando alguns engenheiros deram o salto de robôs funcionais e industriais para robôs humanoides que interagem com as pessoas, a história do Japão provavelmente influenciou a forma como eles são vistos. Em 1649, os governantes militares do Japão haviam proibido o uso de tecnologia para desenvolver novas armas, para evitar o surgimento de novos rivais, segundo pesquisa de Cosima Wagner, pesquisadora da Freie Universität, na Alemanha. Assim, os criadores se concentraram em projetos mais inócuos, como bonecos mecânicos que atuam em teatros de marionetes ou servem chá. Quando o Japão finalmente se abriu para o contato estrangeiro, dois séculos depois, esses hábeis desenvolvedores de brinquedos tirlharam o caminho da adaptação da tecnologia ocidental para usos mais práticos. Em 1875, por exemplo, o fabricante de bonecas Tanaka Hisashige fundou a Tanaka Seisakusho (Tanaka Engineering Works), a primeira empresa japonesa de engenharia mecânica. E, 64 anos depois, em uma grande fusão, a empresa tornou-se conhecida como Toshiba. Embora os protorrobôs tenham saído de moda durante a rápida modernização do Japão no século 20, a ideia de seres mecânicos como diversões pode ter permanecido na consciência nacional. Quando Masahiro Mori, o famoso pensador da robótica que cunhou o termo "vale da estranheza", começou a fazer pesquisas sobre robôs na década de 1970, ele achou difícil ser levado a sério. A frase, que se refere ao desconforto que sentimos quando confrontados com entidades semelhantes a humanos, parecia em contradição com a relação do Japão com os robôs. "Naquela época, as pessoas não achavam que as universidades deveriam fazer pesquisas sobre robôs", disse ele em entrevista à revista IEEE Spectrum. "Eles achavam que era supérfluo trabalhar em um 'brinquedo'." O Japão foi forçado a se desmilitarizar durante a ocupação americana, e a nação oficialmente pacifista pouco se esforçou para usar robôs como armas. Esses fatores ajudaram a incutir uma visão geralmente positiva dos robôs no Japão do pós-guerra. A automação industrial proporcionou uma grande vantagem econômica e os robôs humanoides eram uma curiosidade inócua. O Ocidente, por sua vez, tendia a ter uma visão menos otimista. Os Estados Unidos, preocupados com a Guerra Fria, despejaram fundos em robótica para uso militar, o que gerou uma aura de violência sobre o campo. Trabalhadores do Ocidente há muito viam a automação como uma ameaça aos empregos, desde que os luditas destruíram a maquinaria têxtil na Inglaterra no final do século 18 e no início do século 19. Essas visões divergentes da tecnologia foram reveladas na cultura pop da segunda metade do século 20. Um dos personagens japoneses mais influentes dessa época foi Astro Boy, que foi introduzido nos quadrinhos de mangá em 1952 e passou a aparecer em livros, programas de TV, filmes e uma ampla gama de mercadorias como bonecos de ação e figurinhas. Astro Boy era um androide que usou seus poderes sobre-humanos para o bem e uniu o país em torno de uma mensagem positiva sobre tecnologia — mesmo que ele não tenha sido originalmente criado para isso. "De acordo com [o criador do Astro Boy Osamu] Tezuka, ele foi forçado a fazer um retrato muito otimista da tecnologia (...) por sua editora e leitores para dar esperança aos japoneses, que na década de 1950 ainda sofriam com a destruição de guerra e a consciência de sua inferioridade tecnológica em relação aos vencedores ocidentais da guerra ", escreve Wagner. "A mensagem de Tezuka de uma crítica ao comportamento humano não foi entendida; em vez disso, só o caráter amigável de um robô salvador foi idealizado como esperança para o futuro da sociedade japonesa." A mensagem deixou uma marca poderosa em uma geração de japoneses, especialmente aqueles que iriam fazer seus próprios androides. "A robótica japonesa é impulsionada pelo sonho do Astro Boy", de acordo com o engenheiro Yoji Umetani. "'Se não houvesse ficção robótica, não haveria robótica' é o credo de muitos dos principais pesquisadores e desenvolvedores de robótica no Japão. "Desde o colégio, eles sonhavam com Astro Boy e se tornaram roboticistas por causa dele." O Ocidente também contou algumas histórias positivas sobre robôs, mas as mais influentes são sobre as ameaças que eles representam para a humanidade. Em 2001: Uma Odisseia no Espaço, o sistema de computador inteligente Hal se torna desonesto e mata vários dos tripulantes da nave que ele controla. No conto Os androides sonham com ovelhas elétricas? e sua adaptação para o cinema, Blade Runner, androides convincentemente parecidos com humanos se rebelam contra sua escravidão até serem caçados e mortos. O medo do Ocidente de robôs foi cristalizado mais fortemente na série Terminator(O Exterminador do Futuro), na qual a rede de computadores de defesa SkyNet ganha autoconsciência, humanos tentam desligá-la e a SkyNet usa androides chamados Terminators para travar uma guerra com sucesso contra eles. Muitas obras de ficção científica ocidentais remetem às mesmas advertências morais de Frankenstein e R.U.R.: a loucura de criar vida artificial, o paradoxo da impossibilidade de as pessoas coexistirem com nossas criações mais sofisticadas. Enquanto isso, o Japão, menos preocupado com um levante, está ansioso para usar robôs para compensar uma escassez aguda de mão de obra e lidar com tarefas como cuidar da população idosa em rápido crescimento do país. Como nos anos do pós-guerra, o governo e as empresas estão promovendo a automação para ajudar a economia, contribuindo para o entusiasmo nacional pelos robôs. Mas embora Astro Boy tenha ajudado a criar o entusiasmo do Japão pela ideia de robôs, ele também pode ter contribuído para a ambiguidade do país em relação a eles. Rathmann diz que os japoneses têm "síndrome de Astro Boy": eles tendem a imaginar robôs humanoides inteligentes, flexíveis e poderosos, mas até agora a robótica da vida real ainda não atendeu às suas expectativas. Ele diz que, com base na tecnologia disponível agora, os engenheiros que trabalham em robôs para idosos devem se concentrar em fazer dispositivos simples que se integrem perfeitamente em lares, em vez de dispositivos chamativos que são impressionantes, mas caros e pouco práticos. Em última análise, até mesmo os japoneses podem preferir que suas necessidades humanas sejam atendidas por humanos reais. "Quando eu viajei para o Japão, descobri que os centros de saúde japoneses não estão lotados de dispositivos robóticos", diz a pesquisadora Marketta Niemela. "O toque humano é apreciado." Astro Boy deu ao Japão uma visão otimista de um futuro robótico. Os japoneses mantêm esse otimismo, mas os robôs pertencem, por enquanto, ao futuro.
2021-07-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57941803
sociedade
'Ajudo pais indianos a conversar sobre sexo com seus filhos'
Muitas escolas indianas não oferecem educação sexual, deixando para os pais a tarefa de conversar com os filhos sobre sexo e relacionamentos. Mas, muitas vezes, eles não sabem ao certo o que dizer, revela a "coach de sexualidade" Pallavi Barnwal — e vários recorrem a ela em busca de conselhos. A seguir, o relato dela à correspondente de identidade e gênero da BBC, Megha Mohan: 'Fazendo uma retrospectiva, minha educação conservadora indiana foi, na verdade, a base perfeita para alguém que acabaria como coach de sexualidade. A primeira influência sobre mim, embora eu não tenha percebido na época, foi o próprio relacionamento dos meus pais. Por anos, houve rumores sobre o casamento deles. Quando eu tinha cerca de oito anos, comecei a ouvir perguntas a respeito também. Nas festas, se eu estivesse sem minha família, um exército de tias esbaforidas me colocaria contra a parede para um interrogatório. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast 'Seus pais ainda dividem o mesmo quarto? 'Você ouviu alguma discussão?' 'Já viu algum homem fazendo visita?' Eu podia estar ao lado mesa de sobremesas, prestes a colocar uma colher de sorvete na tigela, ou vagando pelo jardim à procura de outras crianças para brincar, e quando menos esperava, estava cercada por mulheres que eu mal conhecia, fazendo perguntas para as quais eu definitivamente não sabia a resposta. Anos depois, após meu próprio divórcio, minha mãe me contou toda a história. No início do casamento dos meus pais, antes de meu irmão e eu nascermos, minha mãe sentiu uma atração profunda por um homem, a qual se transformou em um caso amoroso físico. Em questão de semanas, ela foi tomada pela culpa e acabou com o relacionamento. Mas nas comunidades indianas, há olhos e bocas em todos os lugares. Com o tempo, os rumores chegaram até meu pai. Para meu pai demorou 10 anos, e dois filhos, para finalmente perguntar a minha mãe sobre isso. E prometeu a ela que qualquer que fosse a resposta isso não afetaria o relacionamento deles —mas, depois de anos de murmúrios, ele precisava saber. Ela contou tudo a ele. Era menos uma questão sexual e mais de intimidade, ela disse. Tinha acontecido antes de eles terem começado uma família, quando o casamento ainda não tinha encontrado seu eixo. Assim que ela parou de falar, percebeu uma frieza instantânea no ar. Meu pai se retirou imediatamente da sala. A confirmação de uma história que ele suspeitava por anos acabou na mesma hora com qualquer confiança que houvesse entre eles — e o relacionamento se deteriorou rapidamente. Isso me mostrou muito claramente que nossa incapacidade de falar adequadamente sobre sexo e intimidade pode destruir famílias. Minha família é do Estado de Bihar, no leste da Índia. É uma das maiores e mais populosas regiões do país, fazendo fronteira com o Nepal e com o rio Ganges cortando suas planícies. Tive uma infância conservadora. Como acontece com muitas famílias, sexo não era um assunto discutido abertamente. Meus pais não davam as mãos nem se abraçavam, mas também não me lembro de ter visto nenhum casal em nossa comunidade sendo afetuoso fisicamente. Minha primeira exposição a qualquer coisa relacionada a sexo aconteceu quando eu tinha 14 anos. Certa tarde, entediada, fui procurar um livro no armário de meu pai quando um livreto, que estava entre seus romances e livros de história, caiu. Continha várias pequenas histórias detalhadas sobre um mundo secreto em que homens e mulheres exploravam os corpos uns dos outros. Este livro definitivamente não era literatura, era mais atrevido do que isso. Uma das histórias era sobre uma jovem curiosa que fez um buraco na parede para poder ver um casal que ela conhecia na cama. Tive de pesquisar o significado de uma palavra em hindi que nunca tinha ouvido antes, chumban, que significa beijo de língua apaixonado. Eu tinha tantas perguntas, mas não havia ninguém com quem conversar. Minhas amigas e eu nunca tínhamos discutido nada parecido. Absorta no livro, levei um tempo para voltar ao presente e ouvir a voz da minha mãe me chamando de outro cômodo. Naquela época, no final dos anos 1990, eu não sabia que não tinha feito nada de errado, que muitas crianças pelo mundo haviam começado a aprender sobre intimidade nessa idade, em grande parte na escola. Na Bélgica, as crianças aprendem sobre sexo desde os sete anos. Mas a Índia não é um lugar onde a educação sexual seja parte obrigatória do currículo escolar. Na verdade, só em 2018 que o Ministério da Saúde e Bem-Estar da Família lançou as diretrizes de educação sexual para as escolas. Mais de uma dúzia dos 29 Estados indianos optaram por não implementá-las. De acordo com o jornal The Times of India, mais da metade das meninas que vivem nas áreas rurais do país não têm conhecimento sobre menstruação ou de sua causa. Ter achado o livreto não me levou a um período de descobertas. Na verdade, eu o sepultei na minha mente e, como muitas garotas que cresceram na Índia, continuei conservadora. Eu tinha 25 anos quando perdi a virgindade e ainda era inexperiente na época do meu casamento arranjado, dois anos depois. Minha noite de núpcias só pode ser descrita como um fiasco. Olhei para o nosso leito nupcial, na casa dos pais do meu noivo, coberta de pétalas de flores, e achei a situação cômica. Pelas paredes finas do quarto, eu podia ouvir a família circulando pela casa — cerca de uma dúzia de pessoas, que haviam vindo de fora da cidade para o nosso casamento, estavam acampadas do lado de fora da nossa porta, já que não havia outro lugar para dormir. Minha mãe me encorajou a dizer ao meu então marido que eu era virgem, então eu tive que fingir ser tímida e não saber muito bem o que fazer. Mal tínhamos nos falado e lá estávamos nós, de repente, em um quarto, e era esperado que eu cumprisse minhas obrigações de esposa. Eu não era virgem, mas não estava preparada. Até hoje recebo dezenas de mensagens por mês de pessoas me perguntando o que fazer na noite de núpcias: não apenas fisicamente, mas como agir — como não parecer muito tímido e nem muito experiente. Meu marido e eu ficamos juntos por cinco anos. Estava claro desde o início que eu tinha me casado com a pessoa errada, então fazer sexo com ele se tornou algo que eu temia. Tivemos que negociar horários e datas. Só quando comecei a fantasiar sobre um colega de trabalho que eu soube que não tinha mais jeito. Não fiz nada em relação à fantasia, mas não queria um relacionamento em que houvesse a possibilidade de isso (traição) acontecer. Nosso casamento acabou. Aos 32 anos e mãe solteira, de repente não havia pressão sobre mim. Eu era divorciada e já era uma mulher fracassada aos olhos da sociedade. Morando na capital da Índia, Nova Déli, tive uma série de relações sexuais sem futuro. Experimentei, dormi com homens mais velhos, homens casados. Conforme me tornei mais aberta, o tipo de conversa que eu estava tendo começou a mudar. Amigas casadas ​​vinham me pedir conselhos. Inspirada pela minha independência, minha mãe, que sempre teve um lado rebelde, veio morar comigo e com meu filho em Déli. À minha volta, havia muitas discussões feministas sobre sexo e direitos das mulheres. O estupro de uma jovem em um ônibus em Déli, em 2012, chocou a cidade. Mas para mim era preocupante a maneira como essas conversas estavam enquadrando o sexo como algo violento, e não como algo a ser apreciado. Na verdade, muitas vezes as mulheres indianas não pensam na intimidade como algo prazeroso, que deveria estar sob seu controle. Há tanto silêncio e tabu em torno do assunto, que as jovens às vezes são incapazes de reconhecer o abuso quando acontece com elas. Os dados mais recentes do governo indiano, divulgados em setembro do ano passado, mostram que a Índia registrou uma média de 87 casos de estupro por dia em 2019 e um total de 405.861 casos de crimes contra mulheres durante o ano, um aumento de mais de 7% em relação a 2018. Mais de 100 crianças, meninos e meninas, foram abusadas sexualmente todos os dias. De acordo com o Relatório da População Mundial de 2020, isso não acontece apenas porque a Índia é um país grande; o número de crimes sexuais per capita da população é um dos piores do mundo. Embora estivesse trabalhando com vendas, comecei a pensar em mudar de carreira. Me ocorreu que havia uma oportunidade para abrir um espaço sem julgamento para falar abertamente sobre sexo e criar uma plataforma em que as pessoas pudessem me fazer perguntas. Me formei para ser coach de programação neurolinguística e sexualidade e montei uma página no Instagram em que convidei as pessoas a me perguntarem qualquer coisa sobre sexo sem julgamento. Para encorajar a conversa, postei detalhes sobre minhas próprias experiências sexuais. Funcionou. As pessoas começaram a entrar em contato para buscar conselhos sobre questões como fantasias sexuais, estigma em torno da masturbação, casamento sem sexo e muitos outros assuntos, incluindo abuso. Mas várias mensagens eram de pais. Depois, dois anos atrás, fui convidada a fazer uma palestra no TED sobre a importância de os pais conversarem com seus filhos sobre sexo e consentimento. Usei um sári no palco para mostrar que não são apenas as mulheres indianas ocidentalizadas que fazem sexo, e mostrei ao público dados divulgados pelo site Pornhub, em 2019, que diziam que os indianos estavam transmitindo a maior parte da pornografia do mundo, apesar de vários sites serem proibidos no país. Estávamos fazendo sexo em segredo, e isso não estava ajudando ninguém. Depois dessa palestra, comecei a receber mais de 30 perguntas e pedidos de terapia por dia — desde questionamentos sobre como usar um brinquedo erótico até como fingir ser virgem na noite de núpcias. Recentemente, após a última onda avassaladora de covid-19 na Índia, um homem me perguntou quando era seguro para ele começar a se masturbar de novo após se recuperar do vírus. (Minha resposta: durante a covid, a masturbação pode levar à exaustão física, mas após a recuperação é completamente ok voltar ao normal.) Muitos dos questionamentos me lembraram que algumas das partes mais dolorosas de nossas vidas estão ligadas à falta de discussão que nós, como cultura, temos em relação ao sexo. Sexo nem sequer é a questão na maioria das vezes. Os casos dos meus pais aconteceram em parte porque eles não conseguiam se comunicar sobre uma parte muito natural da vida humana. A falta de sexo no meu casamento era porque não conseguíamos falar um com o outro também. Meu filho está com quase oito anos agora e sei que dentro de alguns anos ele ficará curioso. Quando deixei de amamentá-lo, disse a ele que agora ele estava na idade de não tocar em certas partes do corpo de uma mulher. Ele era muito novo, mas entendeu. Quando chegar a hora de ele ser sexualmente ativo, espero tê-lo criado em um ambiente em que esteja bem informado e seguro, e saiba que não haverá julgamento da minha parte." Falar sobre sexo e sexualidade pode proteger seus filhos de uma série de problemas mais tarde na vida. Baixa autoestima, ansiedade em relação à imagem corporal, abuso sexual, relacionamentos que não são saudáveis e consumismo sexual são apenas alguns dos problemas de longo prazo que muitos jovens adultos enfrentam. As crianças se conectam incrivelmente com as histórias dos pais. Elas têm curiosidade de saber como foi quando você estava crescendo. Elas querem ver vocês como seres humanos reais e autênticos que cometeram sua parcela de erros. Você vai estabelecer uma conexão melhor com seu filho se falar sobre os desafios, as incertezas e as concepções erradas sobre sexo que tinha na idade dele. Converse com seus filhos sobre seus valores sexuais. O que você pensa sobre nudez, atividade sexual de adolescentes, LGBT, casamento gay, aborto, contracepção, sexo extraconjugal, relacionamentos saudáveis. Lembre-se de que você está ajudando seus filhos a construir uma estrutura de valores, não impondo nada rigidamente. Obtenha dados sobre o que eles precisam saber em diferentes faixas etárias. As informações que seus filhos devem saber quando tiverem entre 10 e 14 anos incluem: 1. Suas expectativas e valores em relação à sexualidade; 2. Os nomes corretos e a função dos órgãos sexuais masculinos e femininos; 3. O que é relação sexual e como a gravidez acontece; 4. As mudanças físicas e emocionais que acontecem durante a puberdade; 5. A natureza e função do ciclo menstrual; 6. Relações LGBT, gênero, masturbação e aborto; 7. O que é controle de natalidade; 8. Infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e como se propagam; 9. O que é abuso sexual, como prevenir o abuso sexual e o que fazer se o abuso acontecer; 10. Todas essas informações são específicas para a faixa etária, você deve decidir quando compartilhá-las e em que grau. Relato feito à correspondente de identidade e gênero da BBC, Megha Mohan.
2021-07-25
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57862042
sociedade
Olimpíada de Tóquio: falhas no combate à pandemia mancham imagem da ‘eficiência japonesa’
O Japão aprovou a primeira vacina para uso contra a covid-19 no dia 14 de fevereiro deste ano, dois meses depois de países como Estados Unidos e Reino Unido. Após o início tardio da campanha, a imunização em massa não avançou como planejado: poucos dias antes do início da Olimpíada de Tóquio, apenas 35% dos japoneses haviam recebido pelo menos a primeira dose. O percentual é menor que o do Brasil, onde a parcela de imunizados com uma dose ou imunização completa chega a 45%, conforme os dados da plataforma Our World in Data. As autoridades japonesas também não conseguiram evitar um aumento de casos de covid-19 e a disseminação na Vila Olímpica: nesta sexta (23/07), passavam de 100 os diagnósticos entre atletas, membros de delegações e jornalistas. O cenário é o oposto da imagem do Japão eficiente que o mundo se acostumou a ver retratado nas últimas décadas. Inclusive nos momentos de crise: a reação ao terremoto e tsunami na região de Fukushima em 2011, para citar um episódio mais recente, foi notícia no mundo. Na época, o país chegou a reconstruir em apenas seis dias uma rodovia na cidade de Naka partida ao meio pelo desastre. O combate à pandemia no país vem sofrendo críticas desde o início. Em agosto de 2020, um artigo publicado no periódico científico British Medical Journal (BMJ) apontou problemas que iam desde uma capacidade reduzida de testagem, que acabou elevando o número de casos não diagnosticados e, por consequência, as infecções, a falhas na comunicação da importância do distanciamento social e da necessidade de ficar em casa para proteger o sistema de saúde. O comitê de especialistas montado no início do surto, exemplificam os estudiosos, não chegou a ter pluralidade e autonomia para que tivesse a importância que deveria no processo decisório. Também teria faltado ao governo maior transparência — a própria decisão de adiar os Jogos Olímpicos, segundo o artigo, foi tomada de forma abrupta e sem que fossem detalhadas suas razões. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Craig Mark, professor de relações internacionais da Universidade de Kyoritsu, em Tóquio, uma das explicações para a postura errante do governo foi a tentativa de preservar a economia. "O governo não queria se colocar na posição de impor medidas mais severas. O argumento usado foi de que a Constituição do Japão não dá ao Executivo o poder de implementar lockdowns, mas isso poderia ter sido alterado por meio de lei com aprovação do Parlamento. O governo escolheu não seguir esse caminho", afirma. Ainda assim, o país ficou bem longe dos recordes de casos e mortes observados pelo mundo. Entre os 126 milhões de habitantes, até o momento foram registradas pouco mais de 15 mil óbitos pela doença. Na comparação pelo critério de mortes por milhão de habitantes, o Japão segue bem atrás de países como Brasil, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Alemanha. Uma das explicações é a autodisciplina do povo japonês, que cumpriu em boa medida as recomendações para uso de máscara e para que fossem evitadas aglomerações. "E há um desgaste, por exemplo, entre os jovens, que querem sair de casa, encontrar os amigos. Já vi bares vendendo bebidas alcoólicas após o horário permitido pelas medidas de restrição", ele conta. Diante do aumento de casos às vésperas dos Jogos, o Japão declarou estado de emergência pela quarta vez, com previsão de duração até o dia 22 de agosto. Em Tóquio, a presença de público nos locais das competições foi proibida. O país também se preparou mal para o início da vacinação, que começou atrasada na comparação com outros países desenvolvidos. Primeiro, uma demora por parte do órgão regulador para aprovar a primeira vacina (no caso, a da Pfizer), entre outros motivos, por causa da exigência da realização de testes clínicos dentro do país — um pré-requisito que, na opinião de alguns especialistas, poderia ter sido flexibilizado. Atualmente, apenas vacinas da Pfizer e Moderna estão disponíveis. Depois, houve atraso na importação das doses, neste caso por conta do alto nível de demanda global e da dificuldade da fabricante de fornecer o imunizante. Finalmente, o programa de imunização por meses não conseguiu alcançar capilaridade suficiente para garantir a vacinação em massa. Apenas médicos e enfermeiros estão autorizados a aplicar o imunizante, explicam os autores. Assim, o governo teve dificuldade de contratar pessoal suficiente para administrar as doses. O atraso no cronograma de vacinação, causado, em muitos casos, por questões que o governo poderia ter se organizado para solucionar antecipadamente, trouxe à tona um lado pouco conhecido do país entre os estrangeiros — a burocracia estatal. "De forma geral, as coisas no Japão funcionam de maneira muito eficiente. Acho que um exemplo famoso é o dos trens, que são extremamente pontuais. As cidades são muito limpas, arrumadas… Mas há alguns fatores, particularmente a burocracia, que atrapalham os trabalhos às vezes", diz Mark, que é australiano e mora no Japão há quase 10 anos. Muitos processos que poderiam ter sido digitalizados ainda são feitos de forma analógica, no papel. Não por acaso, o fax segue amplamente utilizado nas repartições públicas, assim como nos escritórios e mesmo nos domicílios. Outro símbolo do lado analógico do Japão são os carimbos pessoais, conhecidos como hanko, e que ainda são pré-requisito para liberação de alguns documentos oficiais. "É bonito quando você olha… mas manter a necessidade de carimbar um monte de papel acaba criando uma burocracia desnecessária", diz o professor. "Acho que esse é um exemplo de como antigas tradições e a burocracia estatal têm contribuído para atrasar as coisas", completa. Há anos o governo tenta digitalizar o setor público. Desta vez, o primeiro-ministro Yoshihide Suga chegou a nomear um ministro incumbido da tarefa: Hirai Takuya, que tem oficialmente o título de "ministro da transformação digital". Suga assumiu como premiê em setembro 2020, após a renúncia de Shinzo Abe, seu correligionário do Partido Liberal Democrático, que também vinha recebendo uma série de críticas pela condução do combate à pandemia. As acusações de erros e falhas no enfrentamento da crise sanitária têm custado caro ao governo, que atingiu mínima recorde de aprovação antes do início dos jogos, de cerca de 30%. Em maio, uma importante associação de médicos que Tóquio, que reúne 6 mil profissionais, enviou uma carta aberta a Suga pedindo que a Olimpíada fosse cancelada. "As unidades de saúde que tratam pacientes com covid-19 estão no limite e praticamente não têm como aumentar a capacidade de atendimento", dizia o comunicado. O temor era de que, com a chegada de atletas e delegações de todo o mundo, haveria um salto no número de infecções, sobrecarregando o sistema de saúde em uma época do ano em que tradicionalmente há maior procura, já que o intenso do verão japonês leva muita gente às unidades de saúde. E, de fato, a cidade de Tóquio assistiu a um aumento expressivo no número de casos na última semana, tendo passado de 1,8 mil na quarta-feira (21/07), o maior valor registrado em um único dia desde janeiro. Além da pandemia, uma série de controvérsias também marcou a preparação para os jogos, da acusação de plágio do logo apresentado em 2015 (que levou à sua substituição em 2016) à demissão do diretor da cerimônia de abertura um dia antes do evento por causa de uma piada sobre o Holocausto feita por ele em uma apresentação em 1998. Cinco meses antes, comentários sexistas derrubaram o chefe do comitê olímpico do cargo. Ao responder a uma pergunta sobre o aumento de mulheres entre os membros do comitê, Yoshiro Mori disse que elas "falam demais". Ele inicialmente se recusou a renunciar, mas o fez após pressão da opinião pública, de patrocinadores e do Comitê Olímpico Internacional (COI). Em meio às polêmicas e diante do que se desenha como a quinta onda da pandemia de covid-19, Tóquio vive uma atmosfera que mistura, de um lado, certa indiferença e, de outro, tristeza e decepção, diz o professor Mark. "Muita gente aqui acha que a realização dos Jogos é um risco desnecessário. Eu tive a sorte de estar na Olimpíada de Sydney em 2000 e o clima era completamente diferente — alegre, de celebração. Vamos ver se as coisas mudam aqui nas próximas semanas."
2021-07-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57949909
sociedade
‘Nunca pensei que homens pudessem ser estuprados'
Alex Feis-Bryce tinha 18 anos quando foi estuprado por um estranho em uma festa. Ele tinha se declarado gay recentemente e se mudado para Manchester, na Inglaterra, para estudar. "Acho que foi a segunda vez que fui a um bar gay. Meu amigo e eu encontramos algumas pessoas que nos convidaram para uma festa em casa. Eu era muito ingênuo e concordei, mas meu amigo mudou de ideia no último minuto." Alex acredita ter sido drogado. "O dono da casa me serviu uma bebida e comecei a ficar sonolento. Ele me levou para um quarto e, logo depois, apareceu e me estuprou. Eu me senti como se estivesse preso à cama." No dia seguinte, Alex aceitou uma carona do homem de volta à universidade e tentou esquecer o que havia acontecido. "Na verdade, pensei que estupro não era algo que acontecia com homens, então talvez não fosse algo que tivesse acontecido comigo. Fui programado para pensar que isso acontece com mulheres, e achei que, ao denunciar o criminoso à polícia, não acreditariam em mim ", diz ele. Alex é agora o presidente-executivo da Survivors UK, uma instituição de caridade que oferece apoio a homens, meninos e pessoas não binárias que foram estupradas, sofreram violência sexual ou foram abusadas. Em 2020, Reynhard Sinaga — "o estuprador com mais condenações na história jurídica britânica" — foi considerado culpado de atrair 48 homens de clubes de Manchester para seu apartamento, não muito longe do bar onde Alex foi abordado. Sinaga drogava e agredia os homens, filmando os ataques. As próprias pesquisas da Survivors UK sugerem que homens gays e bissexuais podem ser mais propensos a sofrer violência sexual do que a população masculina em geral. Um estudo com 505 homens gays e bissexuais apontou que 47% disseram ter sofrido violência sexual, com mais de um terço deles afirmando que sentiam não poder falar com ninguém sobre o que tinha acontecido. É importante reconhecer que a maioria das agressões sexuais "acontece dentro da vida sexual normal", diz Alex. "Não queremos alimentar o estereótipo homofóbico de que gays e bissexuais são mais promíscuos ou predadores, mas queremos estar atentos aos espaços onde as pessoas fazem sexo consensual e onde os limites são ultrapassados ​​— bares gays, saunas, chemsex (sexo sob uso de drogas). Essa é a parte desafiadora, mas importante da pesquisa, (registrar) sem estigmatizar práticas sexuais específicas." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apenas um em cada sete entrevistados na pesquisa, realizada em agosto de 2020, relatou um incidente de agressão sexual à polícia. Entre os que fizeram, cerca de um quarto achava que a denúncia não seria levada a sério. "É sobre consentimento. Chemsex, por exemplo, ou qualquer sexo que não seja heteronormativo ou convencional — sexo com mais de um parceiro (por exemplo) pode ser extremamente estigmatizado", diz Alex. "Portanto, se alguém sofre violência sexual em circunstâncias como essa, é menos provável que fale com a polícia". A instituição de caridade antiabuso LGBTQIA+ Galop apoia pessoas que sofreram abuso sexual ou violência. "Homens gays e bissexuais muitas vezes não se veem ou consideram suas experiências representadas na forma como a violência sexual é tratada. Há muito poucos serviços de apoio apropriados disponíveis para ajudá-los", disse sua diretora, Leni Morris. "Com base em nossa pesquisa, sabemos que muitos nunca se apresentarão, deixando para lidar com o que aconteceu sem apoio profissional. Devemos garantir que a narrativa pública sobre a agressão sexual inclua todas as vítimas e que todo sobrevivente da violência sexual seja capaz de acessar o suporte que precisam. " Lee (nome fictício) tinha 15 anos quando foi internado numa clínica de recuperação após se mutilar enquanto lutava para aceitar sua sexualidade. Lá, ele foi abusado sexualmente por um conselheiro por mais de um ano — uma experiência que ele diz que o levou a muitos anos de trauma. "Por uma década, essa experiência permeou outros níveis do meu funcionamento. A agressão ou violência sexual parecia normalizada, e eu não me cuidava muito bem." "Eu precisava escapar da minha cabeça, mas a cura se tornou um caos e eu criei outro problema para mim, abusando das drogas e do sexo para lidar com o desconforto e mal-estar enraizados. Tudo para lidar com a maneira como me sentia." Quando ele finalmente pediu apoio, também não sabia se o que havia acontecido com ele constituía uma agressão sexual. "Eu talvez tenha considerado erroneamente que o que ele fez comigo não era algo violento — ele não me deu um soco ou chute, ele não me estuprou e isso, de certa forma, se tornou uma permissão minha para continuar."
2021-07-22
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57937302
sociedade
O país rico onde as mulheres não têm direito à licença-maternidade
Os Estados Unidos podem ser uma das nações mais ricas do mundo, mas em um quesito importante aparece em último: é o único país rico que não oferece um programa nacional de licença parental remunerada. Hoje, apenas 21% dos trabalhadores americanos têm acesso à licença familiar remunerada por meio de seus empregadores — embora, de acordo com uma pesquisa do Pew Research Center, de 2015, em quase metade de todas as famílias biparentais o pai e a mãe trabalham em tempo integral. Essa falta de provisão contrasta fortemente com as nações europeias, onde a licença parental subsidiada é padrão. Pesquisas mostram que a licença parental remunerada oferece benefícios indiscutíveis para pais, filhos e as sociedades dos países que a oferecem. Há também um amplo apoio para isso nos EUA; de acordo com um estudo acadêmico publicado em abril, cerca de 82% dos americanos apoiam o acesso à licença parental remunerada. Percentual que se mantém praticamente o mesmo há anos — e inclui o apoio de todo o espectro político. Os motivos pelos quais os EUA permanecem um caso isolado no que se refere à licença parental remunerada são complexos, combinando as necessidades do pós-guerra com uma complicada identidade cultural nacional baseada no individualismo e na autodeterminação. Agora, no entanto, há uma pressão significativa para a mudança. Em abril, o presidente dos EUA, Joe Biden, propôs um pacote de benefícios de US$ 225 bilhões para fornecer licença médica e familiar paga, que permitiria aos trabalhadores tirar até 12 semanas de licença remunerada para cuidar de um recém-nascido ou membro da família. Em um país que se encontra mais polarizado do que nunca, dados mostram que a licença parental remunerada é uma das raras questões que pode contar com o apoio de eleitores de todos os tipos. Então, por que nada foi promulgado a nível nacional até agora — e como o plano de Biden, que precisa ser aprovado pelo Congresso, pode se tornar realidade desta vez? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Globalmente, a base para a licença parental remunerada nacional foi lançada pelo Congresso Internacional de Mulheres Trabalhadoras em 1919, um grupo que incluía muitas mulheres americanas, escreveu Mona Siegel, professora de história na Universidade do Estado da Califórnia, nos EUA, autora de Peace on Our Terms: The Global Battle for Women's Rights After the First World War. As demandas desse grupo por modelos de trabalho mais justos após a Primeira Guerra Mundial incluíam 12 semanas de licença maternidade remunerada como "uma necessidade médica e um direito social", política adotada pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) em novembro de 1919. Nas duas décadas seguintes, países europeus e latino-americanos começaram a consagrar essas políticas em lei, mas foi o fim da Segunda Guerra Mundial que consolidou esse processo, sobretudo na Europa. "Parte disso tinha a ver com os temores de declínio demográfico — com a perda populacional durante a Segunda Guerra Mundial e o que parecia ser a necessidade de se recuperar daqueles anos e garantir que houvesse uma força de trabalho forte no futuro", explica Siegel. Resumindo, a Europa precisava de bebês para ajudar a repovoar suas nações devastadas pela guerra — e de uma força de trabalho forte para reconstruir as economias enquanto isso. Na era do pós-guerra, diz Siegel, os argumentos europeus para a licença maternidade remunerada nacional foram formulados principalmente em termos econômicos, e não em torno dos benefícios sociais em que nos concentramos hoje. O cenário do pós-guerra parecia um pouco diferente nos EUA, no entanto. "Não tínhamos o mesmo tipo de medo sobre a necessidade de aumentar a população", explica Joya Misra, professora de sociologia e políticas públicas da Universidade de Massachusetts, nos EUA. O país não havia sofrido perdas populacionais tão grandes na guerra, a economia estava indo bem e a imigração estava fortalecendo o mercado de trabalho. Isso significava que as mulheres que eram mães nos Estados Unidos estavam "sendo encorajadas a voltar para casa, a liberar os empregos para os homens que estavam voltando do conflito e a se tornar donas de casa tomando conta da família", afirma Terri Boyer, diretora fundadora do Instituto Anne Welsh McNulty de Liderança Feminina da Universidade Villanova, nos EUA. As ideologias políticas extremas que surgiram globalmente influenciaram o modo como as nações elaboraram políticas de bem-estar no período pós-guerra. Tanto os Estados Unidos quanto as nações da Europa Ocidental queriam reforçar as tradições democráticas após o trauma da Segunda Guerra Mundial, mas adotaram abordagens diferentes. Os países europeus, explica Siegel, sentiram os efeitos do fascismo diretamente, e desse trauma veio a sensação de que a filosofia social de "cada um por si" era "alienante demais e deixava as pessoas vulneráveis ​​a ideologias extremistas". Isso levou a um amplo apoio político a um estado de bem-estar social como uma ferramenta para gerar estabilidade social e econômica — e a solidariedade necessária para respaldar a democracia. A licença-maternidade no Reino Unido, por exemplo, surgiu junto com as reformas voltadas para saúde pública e aposentadoria dos trabalhadores. Os Estados Unidos, no entanto, reforçaram sua mentalidade cultural individualista, particularmente à medida que seu relacionamento com a então União Soviética se deteriorou depois da guerra. Na esteira disso, uma "forte antipatia" por qualquer coisa que pudesse ser rotulada de socialista, ou pior, comunista, tornava muito mais difícil angariar apoio para criar políticas de bem-estar social de benefício universal, diz Siegel. Ela observa que "qualquer tipo de assistência médica para mães ou bebês que frequentemente acompanham a licença-maternidade remunerada era considerada medicina social". O individualismo americano alimentou as percepções do valor social e econômico da licença-maternidade. Na Europa, a licença parental remunerada costumava andar de mãos dadas com a saúde pública e a educação infantil patrocinada pelo estado — uma trinca por meio da qual os pais podiam formar um vínculo com os filhos e depois voltar ao mercado de trabalho enquanto seus filhos recebiam uma sólida formação educacional. O imposto a pagar por esses programas universais plantava as sementes para uma futura força de trabalho forte e uma sociedade educada e saudável, o pensamento era esse. Mas nos Estados Unidos, a licença parental paga foi vista com mais desconfiança; em vez de uma maneira de manter as pessoas na força de trabalho, muitos viam como "um direito do qual as pessoas vão tirar vantagem para obter dinheiro do governo financiado por empresas e contribuintes", diz Boyer. Essa visão estava enraizada na maneira como os diferentes tipos de trabalho e, na verdade, as pessoas foram valorizadas nos anos pós-guerra, e na ideia de que a licença parental universal remunerada poderia encorajar as famílias "erradas" a se reproduzir. Houve, segundo Siegel, uma "forte pressão" para estabelecer que as mulheres afro-americanas que realizavam trabalho doméstico ou agrícola estavam de alguma forma "fora do reino do trabalho" e excluí-las. "Havia um medo real de que, se você aprovasse qualquer tipo de política federal abrangente de licença maternidade, isso incluiria mulheres afro-americanas e, mais recentemente, mulheres imigrantes." Parte do mercado de trabalho dos EUA ainda segue fortemente as linhas raciais, com muito mais serviços de baixa remuneração e empregos agrícolas sendo realizados por minorias. Apenas 8% dos trabalhadores no quartil salarial inferior (que geralmente ganham menos de US$ 14 por hora) tiveram acesso à licença parental remunerada em 2020, em comparação com cargos administrativos que são preenchidos com mais frequência por candidatos brancos mais abastados e oferecem benefícios mais abrangentes. Hoje, não é incomum ouvir comentários sobre a ideia de que as famílias pobres não deveriam receber apoio do governo porque "é culpa delas mesmo serem pobres". Isso "remete a um certo nível de percepção racista de que se você está ajudando a todos, significa que está ajudando pessoas que não merecem", diz Misra. "E aquelas pessoas que são definidas como não merecedoras tendem a ser pessoas de cor." "O racismo desempenhou um papel fundamental na forma como estruturamos isso", ela acrescenta. "E uma vez estruturado, é muito difícil de desconstruir." Esses fatores ajudam a explicar por que em grande parte foi deixado nas mãos das empresas privadas determinar a licença parental para os funcionários, reforçando um sistema que privilegia alguns acima de outros e deixa 80% da população ativa para trás. Parte da razão pela qual nenhum avanço foi feito na política a nível federal é que os legisladores estão divididos sobre como ela deve ser financiada. "Os formuladores de políticas públicas discordam sobre como estruturá-la e como pagar por isso", diz Angela Rachidi, pesquisadora em estudos da pobreza do American Enterprise Institute. "As pesquisas de opinião pública mostram que o povo americano não quer que o governo federal financie um programa de licença remunerada, preferindo que os empregadores paguem por isso. Mas as licenças pagas aumentariam os custos para os empregadores e reduziriam o emprego em geral." Os americanos são realmente hesitantes quando se trata de um programa de financiamento público. A mesma pesquisa que mostrou que 82% dos americanos apoiam a licença parental remunerada também revelou que apenas 47% apoiam o financiamento do governo para a mesma. Os autores do estudo escrevem que essa relutância reflete "uma ideologia dominante do fundamentalismo de mercado", que envolve "uma preferência por mercados autorregulados e livres de interferência governamental". Essa hesitação levou alguns líderes empresariais a presumir que teriam de arcar com os encargos financeiros de qualquer programa de licença parental obrigatório em âmbito nacional — algo que alguns relutam em fazer. Em 2016, um número significativo de grandes empresas nos Estados Unidos ainda não oferecia licença parental remunerada para trabalhadores não assalariados, pais não biológicos ou pais adotivos. Quanto às pequenas empresas, muitas simplesmente não têm fluxo de caixa para viabilizar o investimento de longo prazo em seus funcionários. De acordo com a proposta de Biden, no entanto, o financiamento não virá dos empregadores, mas dos que ganham mais. O plano dele prevê aumentar a alíquota de imposto de renda para o 1% dos americanos mais ricos de 37% para 39,6%, além de aumentar os tributos sobre ganhos de capital e dividendos para aqueles que ganham mais de US$ 1 milhão por ano. Pode ajudar a ele o fato de já existirem precedentes de sucesso dentro do país — e que estão funcionando. Vários estados já promulgaram sua própria legislação — um padrão que costuma preceder a política nacional nos EUA. Califórnia, Nova Jersey, Rhode Island, Nova York, Washington e Massachusetts, assim como Washington DC, estabeleceram licença parental remunerada por meio de um imposto sobre a folha de pagamento, e logo se juntarão a eles Connecticut (2022), Oregon (2023) e Colorado (2024). (Até o próprio governo federal concede 12 semanas de licença parental remunerada.) "Vemos que os estados que adotaram foram realmente bem-sucedidos, que os donos de empresas disseram: 'Ei, isso está, na verdade, ajudando meu negócio; não estou perdendo tantos trabalhadores; estou meio que arrecadando sobre o investimento que fiz'" na força de trabalho, diz Misra. No momento, diz Misra, os EUA têm uma "janela política" para efetuar mudanças devido à forma como a pandemia de covid-19 expôs implacavelmente as desigualdades relacionadas ao gênero, segurança no trabalho e cuidado infantil. Desde a pandemia, mais de 3 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho americano. Como resultado, as pessoas estão acordando para os benefícios econômicos da assistência social em larga escala para as famílias. A saúde mental também está sob os holofotes mais do que nunca. Antes da covid-19, a incapacidade de "conciliar tudo" pode ter sido vista como um fracasso pessoal pelas mães, em vez de um problema estrutural que deveria ser abordado pela política. Mas há uma compreensão crescente — especialmente entre os profissionais mais jovens — de que é necessário mais apoio para ajudar os pais com uma carga impossível de gerir. A obrigatoriedade nacional da licença parental remunerada teria vários benefícios. "Quanto mais pessoas temos na força de trabalho assalariada, que também são capazes de ser produtivas (ou seja, não ter que se preocupar com responsabilidades concorrentes de tomar conta de crianças etc.), quanto maior nossa produção econômica, mais rápido nosso crescimento e melhor nossos resultados sociais", diz Boyer. Se as mulheres não retornarem ao mercado de trabalho, ela acrescenta, isso forçará os formuladores de políticas públicas a encarar o fato de que as empresas não conseguem encontrar pessoas para preencher as vagas, e oferecer melhores benefícios para se manterem competitivas. Mas isso não é um argumento para deixar o mercado seguir seu curso: "A única maneira de fazer isso [promulgar uma política nacional] é ter algum tipo de assistência a nível federal ou público." Resta saber se as iniciativas de Biden podem ser aprovadas — mas mesmo proponentes como Misra não estão confiantes. "Acho que minha hesitação tem a ver com a maneira partidária como a política acontece", diz ela, citando o uso do obstrucionismo como último recurso, mas uma ferramenta eficaz para impedir a aprovação da legislação. Há maneiras de contornar isso — mas poderia levar à aprovação do projeto de lei sem garantias vitais para os trabalhadores de que seus empregos seriam protegidos. "A pandemia tem sido enormemente destrutiva de várias maneiras, mas com a destruição sempre vem a construção — porque você tem que descobrir como vamos recompor o sistema", ela acrescenta. "E oferece, portanto, a oportunidade de repensarmos como estamos fazendo as coisas e considerar como estamos fazendo as coisas — eu só queria estar mais confiante de que isso realmente vai acontecer."
2021-07-22
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-57886023
sociedade
A técnica revolucionária que solucionou mistério de irmã sumida há 30 anos
Um irmão e uma irmã estavam procurando pela irmã deles há muito tempo desaparecida. Ao mesmo tempo, a polícia estava tentando identificar uma vítima de assassinato. Passaram-se 30 anos, mas uma revolução na ciência forense usando DNA e sites de ancestralidade finalmente ligou um caso com o outro. Uma das coisas mais bonitas da pequena cidade de Bucklin, nos Estados Unidos, é seu cemitério. A grama está bem cortada, e as sepulturas parecem bem cuidadas. Foi aqui que, em junho passado, cerca de 20 pessoas em luto estiveram ao redor de um pequeno caixão branco para se despedir de Shawna Beth Garber. Ninguém, incluindo as pessoas que estavam lá, sabia muito sobre Shawna, como ela era, onde morava ou que nome usava quando morreu. Só recentemente eles souberam que ela havia sido assassinada e que seu corpo permaneceu sem ser identificado por três décadas. A polícia a chamou de Grace ('Graça'), porque havia sido dito que "somente pela graça de Deus" alguém descobriria quem ela era. No entanto, graças a uma revolução no rastreamento de DNA, que está ajudando a resolver uma série de casos arquivados nos EUA, um mistério de 30 anos pode finalmente ser resolvido. Rob e Shawna não nasceram em uma família normal. Um homem tímido de 56 anos, o irmão mais velho de Shawna descreve a mãe deles como "má". Ele fala devagar e suas palavras são cuidadosamente escolhidas. Ele não está acostumado a falar sobre sua infância e isso traz memórias turbulentas. Ele e Shawna foram abusados ​​fisicamente pela mãe, diz ele, e isso levou os dois a serem colocados sob cuidados assistenciais. As lembranças que ele tem de sua irmã mais nova são algumas das poucas boas memórias que ele tem de sua infância. "Ela era a maior parte da minha vida", diz. Quando Rob tinha sete anos e Shawna cinco, o abuso de sua mãe começou a aumentar. "Na maior parte do tempo, eu era o alvo de tudo", lembra Rob, "até o incidente que nos levou sermos afastados dela. Ele foi muito pior que todo o resto." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele estava na escola quando a mãe jogou fluido de isqueiro em Shawna e ateou fogo nela. Eles foram separados depois de serem levados por assistentes sociais e colocados aos cuidados de famílias diferentes. Rob recebeu o sobrenome Ringwald. Ele viu sua irmã mais uma vez depois que ela saiu do hospital, no aniversário de 8 anos dele, e essa foi a última vez. Já adulto, na década de 1990, Rob começou a querer encontrá-la. Foi nessa época que soube que tinha outros meios-irmãos. Depois de entrar em contato com as autoridades, ele recebeu o nome de uma meia-irmã, Danielle Pixler, de 48 anos, que também morava no Estado do Kansas. Eles se conheceram, estabeleceram uma amizade duradoura, e Danielle também se empolgou com a ideia de tentar encontrar Shawna. Sentada na varanda de sua casa em Topeka, Kansas, Danielle me conta sobre suas décadas de busca pela meia-irmã que nunca conheceu. "Eu colocava folhetos nas árvores. Eu os colocava em sinais de trânsito. Eu os colocava nas janelas dos carros", diz Danielle. Ela passou inúmeras ​​horas no Facebook procurando por Shawna. "As pessoas pensaram que eu a estava perseguindo." Rob e Danielle construíram seus próprios arquivos sobre o caso, com todas as informações que puderam encontrar sobre Shawna. Mas sem informações básicas, como o sobrenome que ela estava usando, acabou sendo um esforço sem resultado. Em dezembro de 1990, o corpo de uma mulher foi encontrado perto de uma casa em uma fazenda abandonada no Missouri. A autópsia estimou que ela havia sido deixada lá havia seis semanas, e que ela havia sido assassinada. A polícia tinha poucas pistas para seguir. Ela havia sido amarrada com seis tipos diferentes de corda. Seus restos mortais estavam tão decompostos que seria difícil até mesmo para um parente próximo identificá-la. Mike Hall, vice-xerife do condado de McDonald, trabalhou no caso por 14 anos sem chegar perto de descobrir quem era a mulher que eles passaram a chamar de Grace. Muito menos quem a matou. "Quando dirigia por aí, em patrulha, ficava sempre pensando em quem poderia ter deixado ela ali", diz ele. Com o passar dos anos, o caso de Grace foi ficando cada vez mais distante. Seus restos mortais foram mantidos em um armário no escritório do xerife, quase esquecidos. Era mais um dos cerca de 250 mil assassinatos não resolvidos dos EUA. O DNA tem sido usado em exames de perícia desde meados da década de 1980. As técnicas tradicionais são boas para combinar material genético com um suspeito se o DNA da pessoa em questão já estiver em um banco de dados da polícia, mas isso tem seus limites. Por exemplo, nas décadas de 1970 e 1980, a Califórnia foi palco de ataques de um serial killer e estuprador apelidado de Golden State Killer. A polícia tinha seu material genético, mas não havia correspondência no banco de dados de DNA do FBI. Muitos pensaram que ele nunca seria encontrado. No entanto, em 2018, as autoridades decidiram usar uma técnica inovadora que acabara de entrar em cena: uma que combina o uso de DNA com informações de sites de ancestralidade que são usados para fazer árvores genealógicas. Os sites de genealogia são projetados para permitir que as pessoas encontrem parentes há muito tempo separados. Um usuário coloca um cotonete de DNA no correio e, mais tarde, recebe uma lista de pessoas com quem compartilha genes e uma análise de quão próximos estão. A polícia percebeu que, se colocasse o DNA do assassino em um site de ancestralidade, obteria uma lista dos parentes do assassino - uma pista crucial. A maioria dos sites de genealogia não permite verificações de seus dados pelas autoridades policiais, mas alguns permitem. As autoridades no caso do Golden State Killer usaram uma empresa chamada GEDmatch. Depois de identificar parentes genéticos, foram feitas árvores genealógicas. Estas permitiram que a polícia chegasse a uma pessoa - um suspeito. Em 2020, Joseph DeAngelo, um ex-policial da Califórnia, foi condenado à prisão perpétua. A Othram, uma empresa de tecnologia com sede em Houston, foi fundada logo após a descoberta de DeAngelo, com o objetivo de resolver casos não solucionados usando a nova tecnologia. A empresa usa fontes de dados como as fornecidas pelo GEDMatch e ajudou a polícia a decifrar uma série de assassinatos famosos e casos de pessoas desaparecidas nos últimos dois anos. Em novembro de 2020, a Othram pegou o caso de Grace, que passou pelo mesmo procedimento feito com o Golden State Killer. O DNA de Shawna estava degradado e tinha contaminação bacteriana. A Othram limpou o DNA de Grace, criando um perfil genético que poderia ser usado em vários sites de genealogia. A partir daí, encontraram várias correspondências com primos de terceiro grau e começaram a construir uma árvore genealógica para encontrar um ancestral comum. Trabalhando na árvore, eles começaram a desenvolver uma teoria sobre com quem ela poderia ter parentesco e deram os nomes a Mike Hall, o vice-xerife que cuidou do caso de Grace. O telefonema de Hall veio quando Danielle estava no trabalho. A princípio ela pensou que fosse um tipo de fraude. Mas depois de consultar sua família, ela ligou de volta para o número. "Quando liguei para ele, estava gritando e chorando", disse ela. "Ele estava me contando todas essas coisas e eu fiquei tipo, 'como você me encontrou? Como você sabe quem eu sou? Ou que sou parente dela?' Eu simplesmente surtei." Mike Hall convenceu Danielle a fazer um teste de DNA. No dia 29 de março o resultado voltou. Grace era sua irmã, Shawna. "Eu simplesmente comecei a chorar", conta ela. O caso de Shawna, e muitos outros como o dela, mostra que o processo funciona. Mas também há críticas. O principal problema é a questão da privacidade. A técnica é tão sensível que o DNA de uma pessoa poderia ser suficiente para identificar centenas ou mesmo milhares de seus parentes genéticos - sendo que nenhum deles havia consentido com as checagens. Na prática, uma pessoa pode inscrever toda a sua família ampliada. "Não estamos falando sobre pesquisar em bancos de dados as pessoas que voluntariamente enviam suas informações", disse Erin Murphy, autora do livro Inside the Cell: The Dark Side of Forensic DNA (Em tradução livre: Dentro da célula: o lado obscuro do DNA forense) "Estamos falando sobre pesquisar em um banco de dados para encontrar as milhares de pessoas que nem sabem que são relacionadas àquele indivíduo." Danielle foi encontrada porque um parente distante consentiu que o DNA deles fosse usado para verificações da polícia - não porque ela, Danielle, o permitiu. Brett Williams, CEO da GEDmatch, admite que há um dilema ético de se usar a tecnologia. "Você tem duas prioridades concorrentes aqui. A primeira prioridade é que você tem direito absoluto à privacidade. Mas, ao mesmo tempo, você tem uma prioridade competitiva, que é: nós temos o direito de não sermos assassinados." Mas Erin Murphy argumenta que o desejo das famílias de descobrir a identidade de entes queridos - ou o assassino de um parente - não supera o direito à preservação da privacidade. "É incrivelmente difícil dizer isso, mas não fazemos políticas sobre as liberdades civis de toda a nossa sociedade com base nos sentimentos de vítimas individuais", diz ela. Esta é a principal razão pela qual tantos sites de genealogia não permitem verificações de aplicação da lei, incluindo Ancestry.com e 23AndMe. Rob, o irmão de Shawna, insiste que, sem o processo, eles nunca teriam descoberto o que aconteceu com sua irmã. "Minha irmã estava sentada em uma prateleira há 30 anos. Agora não está mais." Rob e Danielle ainda não têm uma imagem de Shawna adulta. Eles ainda não têm certeza do nome que ela estava usando no momento de sua morte. A polícia está tentando descobrir quais eram os movimentos de Shawna antes de morrer, ou qualquer pessoa que a conheceu quando adulta. Eles acreditam que ela pode ter residido em Joplin, Missouri, na época de seu desaparecimento. Mike Hall acha que há uma chance real de resolver o caso. "Acho que o assassinato pode ser resolvido agora que sabemos quem ela é", diz ele. O funeral de Shawna foi uma mistura de sentimentos para Rob e Danielle. Eles finalmente sabiam quem era e onde estava sua irmã. Ela não havia recusado o contato. Ela não havia emigrado. Mas não era o fim que desejavam. "Tenho pesadelos. Ouço gritos", diz Danielle, que não consegue deixar de ler as notícias da imprensa local sobre o caso. "Eu leio sobre ela todos os dias, eu tenho que ler. É horrível porque eu choro toda vez que leio. Mas de alguma forma eu me sinto mais perto dela quando estou lendo." A identificação de Shawna foi uma grande descoberta no caso. Nos EUA, descobertas semelhantes acontecem semanalmente. Não é um eufemismo descrever esta técnica como uma revolução na resolução de assassinatos arquivados. No entanto, esse método é tão novo que existem poucas leis que regulamentem seu uso. E como a privacidade é uma questão cada vez mais controversa nos EUA, os políticos terão que decidir até que ponto será permitido que os sites de genealogia sejam usados ​​para combater crimes. A polícia acredita que há uma possibilidade muito real de que o assassino de Shawna ainda esteja vivo e presumindo que escapou impune. Essa tecnologia significa que um dia essa pessoa, e muitos outros assassinos nos EUA, podem ser levados à Justiça.
2021-07-21
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57900298
sociedade
A celebridade de extrema-direita que ameaçou tirar roupa e máscara e acabou deportada da Austrália
Katie Hopkins estava a ponto de estrelar o Big Brother na Austrália. Mas a britânica foi enviada de volta para casa, no Reino Unido, sem paredão, antes mesmo de o programa começar. O motivo? A colunista de extrema-direita, que sempre despertou raiva por suas falas racistas e seu negacionismo ante a pandemia de covid-19, brincou que desrespeitaria as regras de quarentena dos hotéis. Hopkins havia viajado ao país para fazer parte do reality show. Na sexta-feira (16/7), ela postou um vídeo de seu quarto de hotel em Sydney, no qual disse que planejava "ficar esperando" que os funcionários entregassem comida em seu quarto para poder abrir a porta "pelada, sem máscara". No vídeo, Hopkins também chamou os lockdowns de "a maior farsa da história humana". As duas maiores cidades da Austrália, Sydney e Melbourne, estão em confinamento após a detecção de casos locais de covid-19. Seus comentários geraram raiva generalizada. A postagem já foi apagada de seu Instagram. Na segunda-feira (19/7), o governo australiano confirmou que cancelou seu visto, depois que sua participação no Big Brother foi suspensa. A polícia disse que ela foi multada em 1 mil dólares australianos (R$ 3,9 mil) por não usar máscara e foi escoltada até o aeroporto para ser deportada ao Reino Unido. A ministra do Interior, Karen Andrews, chamou os comentários de Hopkins de "terríveis" e um "tapa na cara" para os australianos em confinamento. "Pessoalmente, estou muito feliz que ela vá embora", disse Andrews à emissora ABC. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Hopkins não comentou sobre sua deportação, mas, no domingo, disse que estava "brincando" no vídeo. A polêmica comentarista foi banida do Twitter em junho do ano passado por violar sua política contra propagação de ódio. Ela tinha 1,1 milhão de seguidores. Hopkins, queridinha do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, chamou imigrantes de "baratas" e descreveu o Islã como "repugnante". Andrews disse que a decisão de permitir a entrada de Hopkins no país foi tomada pelo governo do Estado de Nova Gales do Sul "com base no benefício potencial para a economia". Mas os opositores acusaram as autoridades de "permitir a entrada de um troll de extrema-direita na Austrália". Hopkins também foi detida na África do Sul em 2018 acusada de propagar o ódio racial. "A decisão é particularmente dolorosa para os 35 mil australianos que permanecem presos no exterior", diz o parlamentar trabalhista Andrew Giles, que faz oposição ao governo. A Austrália fechou suas fronteiras em março de 2020 por causa da pandemia, impedindo o retorno de muitos cidadãos de fora do país. A política prolongou separações familiares. Mas dezenas de celebridades, estrelas do esporte e outras personalidades com isenções conseguiram contornar a regra, gerando críticas e protestos da população. Katie Hopkins chamou a atenção do público pela primeira vez como concorrente do programa O Aprendiz em 2006. Mas, desde então, construiu uma reputação de locutora de rádio e escritora controversa. Em maio de 2017, a emissora de rádio LBC, uma das mais populares do Reino Unido, anunciou sua demissão pouco mais de um ano depois de ela ter sido contratada para apresentar um programa semanal. Hopkins ficou conhecida por comentários polêmicos e tiradas racistas. Sobre o atentado terrorista de Manchester, no Reino Unido, Hopkins defendeu uma "solução final" para lidar com extremistas. Posteriormente, ela mudou o termo "solução final" para "solução verdadeira", descrevendo a versão anterior como um "erro de digitação". Mas alguns usuários do Twitter chamaram a atenção da polícia para os comentários, alegando que eles poderiam incitar o ódio racial ou religioso. Na ocasião, a polícia confirmou que o assunto estava sendo "analisado e avaliado por oficiais especializados". Já durante sua campanha eleitoral, Donald Trump tuitou que os políticos do Reino Unido deveriam tomar conhecimento de Hopkins e de suas opiniões. Em dezembro de 2015, Trump pediu a suspensão da entrada de muçulmanos nos Estados Unidos. Em resposta aos comentários do então presidente americano, Hopkins escreveu em sua coluna no jornal que ele não deveria ser demonizado. "Obrigado à respeitada colunista Katie Hopkins, do Daily Mail, por seus textos poderosos sobre os problemas muçulmanos do Reino Unido", disse Trump na ocasião. E, em um documentário de TV de 2014, Katie causou polêmica ao dizer que pessoas gordas são "preguiçosas". Ela acrescentou que não contrataria pessoas gordas porque elas parecem preguiçosas. Ela ilustrou seu ponto de vista ao ganhar — e depois perder — cerca de 20 kg. Mais recentemente, Hopkins criticou o movimento Black Lives Matter (BLM), bem como a decisão do governo britânico de oferecer refeições gratuitas para crianças durante as férias escolares, uma campanha promovida pelo jogador de futebol do Manchester United Marcus Rashford, que também joga pela seleção da Inglaterra. Antes de ser banida do Twitter, Hopkins postava regularmente mensagens pró-Trump, pró-Brexit e anti-imigração. Também chegou a lançar uma série de ataques ao prefeito de Londres, Sadiq Khan, que é de origem muçulmana. Durante a pandemia, ela ganhou milhares de seguidores por seus comentários negacionistas, em que diminuía a importância do coronavírus e criticava medidas para contê-lo.
2021-07-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57904927
sociedade
O metal pesado tóxico que afeta crianças no Brasil e no mundo décadas após proibição
Ele é tão tóxico que pode danificar o cérebro das crianças pelo resto da vida. Tão persistente que fica no ar por décadas. E tão onipresente que afeta um terço das crianças do planeta. A intoxicação por chumbo é um problema sério e global. Estima-se que uma em cada três crianças no mundo - um total de 800 milhões de menores - tenha níveis deste metal pesado no sangue iguais ou superiores a 5 microgramas por decilitro (µg/dL), um nível que, de acordo com um relatório conjunto de 2020 do Unicef, o braço da Organização das Nações Unidas (ONU) para a infância e adolescência, e da ONG internacional Pure Earth, requer ação internacional. O chumbo é tão tóxico que a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que "nenhum nível no sangue é seguro". Um estudo recente em Londres descobriu que o chumbo usado no passado na gasolina persiste no ar da capital britânica, embora o metal tenha sido proibido nos combustíveis no Reino Unido há mais de 20 anos. E estudos em outras cidades como Xangai e São Paulo encontraram resultados semelhantes. Outras fontes de contaminação incluem desde tintas até a reciclagem insegura de baterias, passando por temperos. A Unicef e a Pure Earth destacam especialmente o caso do México, onde a principal fonte de envenenamento desse tipo é muito diferente: o uso de esmaltes na cerâmica. "Nunca esquecerei uma criança de 2 anos que tinha níveis de mais de 65 microgramas por decilitro", diz Daniel Estrada, CEO da Pure Earth no México. "É muito triste saber que uma tradição tão bela provocou a intoxicação dessa criança e que ela não pode desenvolver suas capacidades ao máximo por causa disso." As fontes de chumbo podem ser muito diferentes. O que não varia é seu impacto devastador nas crianças. O chumbo pode causar danos irreparáveis aos cérebros das crianças, segundo o relatório da Unicef e da Pure Earth "A verdade tóxica: a exposição das crianças à contaminação por chumbo prejudica o potencial de uma geração". É particularmente destrutivo para bebês e crianças menores de cinco anos, porque danifica seus cérebros antes que tenham a oportunidade de se desenvolver plenamente, causando prejuízos neurológicos, cognitivos e físicos para toda a vida, de acordo com o informe. Vários estudos revelam que níveis de chumbo no sangue superiores a 5 mg/dL estão associados a uma perda irreversível de capacidade intelectual. E o envenenamento por chumbo na infância também foi relacionado a comportamento criminoso de adolescentes e adultos. A OMS destaca que o chumbo também causa danos permanentes em adultos, por exemplo, aumentando o risco de hipertensão e danos renais. O chumbo pode prejudicar a saúde fundamentalmente por meio de dois mecanismos, explica à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, Howard Mielke, professor da Escola de Medicina da Tulane University em Nova Orleans, nos Estados Unidos. Mielke pesquisa o impacto do chumbo na saúde das crianças há mais de 40 anos. Um desses mecanismos é que o chumbo é quimicamente semelhante ao cálcio e "rouba" seu lugar. "O cálcio é essencial nas sinapses das células nervosas. Se o chumbo ocupar o lugar do cálcio, os sinais não são transmitidos, e as células nervosas morrem. O resultado é um encolhimento do cérebro", explica o especialista. Uma segunda maneira pela qual o chumbo prejudica a saúde é que ele se deposita nos dentes e nos ossos, onde se acumula com o tempo. Mielke fala de um "legado multigeracional de chumbo". "Se a mãe foi exposta ao chumbo quando criança, seus ossos contêm chumbo. Durante a gravidez, o cálcio nos ossos da mãe é importante para o desenvolvimento do feto. Mas, se os ossos da mãe contiverem chumbo, esse chumbo passará para o feto em vez do cálcio. " Se as crianças foram expostas de forma crônica e excessiva ao chumbo por longos períodos na infância, as consequências são irreversíveis, diz Mielke. "Se a exposição foi por um período curto e não de forma intensa, e a fonte de chumbo é rapidamente reduzida, então, o dano pode ser limitado e pode haver uma recuperação." "As crianças são resilientes. No entanto, o principal tratamento é a prevenção primária, ou seja, prevenir a exposição ao pó de chumbo em primeiro lugar." Daniel Estrada explica que "os danos às crianças são permanentes se a fonte de exposição não for eliminada após os 4 anos de idade. Se o chumbo for eliminado mais cedo, o dano é reversível". Em Londres, o chumbo da gasolina persiste no ar mais de 20 anos depois que seu uso foi proibido, segundo estudo da universidade Imperial College. O chumbo começou a ser usado como um antidetonante na gasolina no Reino Unido na década de 1930 e foi eliminado desse combustível até sua proibição total em 1999. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "As análises químicas realizadas em amostras de partículas atmosféricas coletadas em Londres indicam que o teor de chumbo é muito alto em relação ao padrão de referência para este elemento na crosta terrestre (ou nível de fundo)", diz Raquel Ochoa González, uma das autoras do estudo, doutora em Química e pesquisadora do Departamento de Ciências da Terra e Engenharia do Imperial College. "Esses dados nos permitem dizer com precisão que as partículas que analisamos são claramente enriquecidas de chumbo na comparação com os níveis de fundo e que existem fontes que vêm da atividade humana." Cientistas do Imperial College determinaram com análise isotópica que até 40% do chumbo no ar de Londres hoje vem do legado da gasolina com chumbo. Isótopos são átomos do mesmo elemento cujos núcleos atômicos têm o mesmo número de prótons, mas diferentes números de nêutrons. "O chumbo é um elemento que possui vários isótopos dos quais apenas aqueles com massas 204, 206, 207 e 208 são estáveis. A análise das razões isotópicas do chumbo nos fornece informações muito valiosas sobre a origem desse elemento, para que possamos obter 'impressões digitais' características para cada fonte de chumbo", explica González. O chumbo da gasolina que foi depositada ao longo de décadas em superfícies e solos urbanos pode ser "ressuspenso" no ar pelo vento, tráfego ou durante obras. "A ressuspensão de partículas poluentes inaláveis é uma fonte muito importante de poluição atmosférica em áreas urbanas", acrescenta a pesquisadora. Embora o uso do chumbo na gasolina tenha sido abandonado, seu legado continua principalmente nas grandes cidades. No caso do Brasil, estudos de 2017, 2018 e 2019 confirmaram a presença de chumbo da gasolina no ar, conforme dois dos autores desses estudos, Carlos Eduardo Souto de Oliveira, pesquisador do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (USP), e Marly Babinski, professora e pesquisadora do Centro de Geocronologia e Geoquímica Isotópica da USP. O Brasil foi "um dos primeiros países do mundo a eliminar o chumbo da gasolina", assinalam os pesquisadores. "A fase de eliminação do chumbo adicionado à gasolina para atuar como antidetonante começou no Brasil em 1989 e terminou em 1992, quando o etanol passou a ser misturado à gasolina." O estudo de 2017 mostrou em São Paulo uma redução da ordem de 50 vezes entre 1970 e 2005 nas concentrações de chumbo no material particulado atmosférico (mistura de partículas sólidas e gotas de líquidos encontrados na atmosfera ) coletado em 24 horas na fração de partículas entre 2,5 micrômetros ou menos de diâmetro e partículas de 10 mícrons de diâmetro ou menos (a título de comparação, um fio de cabelo humano tem cerca de 70 mícrons). As principais fontes de chumbo foram o tráfego de veículos e o cimento de construções ou fábricas de cimento. Uma terceira fonte de chumbo foi a região industrial de Cubatão, localizada a cerca de 50 km da cidade de São Paulo. Entretanto, Souto de Oliveira ressalta que "em São Paulo, as concentrações de chumbo no ar são extremamente baixas, com médias diárias (24h) inferiores a 0,010 microgramas por metro cúbico, ou seja, cerca de 50 vezes menores àqueles dos padrões de outros países e do Reino Unido (UK), de 0,5 microgramas por metro cúbico. Portanto, as concentrações de Pb no ar da cidade de São Paulo não representam um problema para a saúde da população. "Os níveis de chumbo encontrados atualmente na gasolina e em outras fontes de emissão veicular (combustíveis, pneus, freios) não são elevados, uma vez que não é adicionado o metal puro durante a produção desses materiais, como também no cimento. O chumbo encontrado nessas fontes tem sua origem proveniente das matérias primas e não pela adição do metal puro, o que confere maiores concentrações, conforme observado quando se usava o chumbo tetraetila na gasolina." "Os isótopos de chumbo atualmente são usados como ferramenta para investigar as principais fontes de material particulado (MP) para o ar, visto que as altas concentrações de MP no ar são o principal problema para a saúde pública nas grandes cidades atualmente", diz Souto de Oliveira. Além do legado de chumbo na gasolina, a reciclagem informal e inadequada de baterias de chumbo é um dos principais contribuintes para o envenenamento por chumbo em crianças em países de baixa e média renda, onde o número de veículos triplicou desde 2000, de acordo com o relatório do Unicef e da Pure Earth. "Trabalhadores em pequenas empresas de reciclagem, de forma perigosa e muitas vezes ilegal, quebram caixas de baterias, derramam ácido de chumbo e poeira no chão, e derretem esse material recuperado em fornalhas externas rudimentares que emitem gases tóxicos que envenenam a comunidade ao redor", diz o relatório. Outras fontes de exposição infantil incluem chumbo na água de canos, tintas, soldas em latas de comida e especiarias, cosméticos, brinquedos e outros produtos de consumo. "Pais cujas ocupações envolvem trabalho com chumbo muitas vezes trazem pó de chumbo para casa em suas roupas, cabelos, mãos e sapatos, inadvertidamente expondo seus filhos a este produto tóxico." No caso das especiarias, um estudo do Departamento de Saúde da Cidade de Nova York, nos Estados Unidos, analisou mais de 1,4 mil amostras de especiarias importadas de países como Paquistão e Bangladesh, vendidas em embalagens sem marcas ou rótulos. Mais de 30% dessas amostras apresentaram concentrações de chumbo superiores a 2 ppm ou partes por milhão, nível máximo que é considerado seguro. O problema do envenenamento por chumbo na infância no México "é realmente sério", de acordo com Daniel Estrada. "Em média, 2 em cada 10 crianças mexicanas têm envenenamento por chumbo. Em Puebla, quase metade das crianças tem envenenamento por chumbo. Isso se traduz em uma diminuição das capacidades neurológicas e danos a diferentes órgãos", acrescenta. O relatório do Unicef e da Pure Earth cita um levantamento conduzido pelo Instituto Nacional de Saúde Pública (INSP) do México, segundo o qual 1,4 milhão de crianças menores de 5 anos no México tinham níveis de chumbo no sangue acima de 5 µg/dL. "O chumbo é usado para produzir o esmalte que recobre as peças de barro", explica Estrada. "Para a produção de barro esmaltado, a peça é feita primeiro e levada ao forno para produzir a primeira queima, conhecida como sancocho ou jahuete. Para a esmaltação, o sancocho é coberto com óxido de chumbo e levado ao forno pela segunda vez. Ao sair do forno, a peça já tem um esmalte que ajuda a impermeabilizá-la. Hoje, existem esmaltes sem chumbo que dão um acabamento semelhante ao dado pelo óxido de chumbo, mas sem serem tóxicos." "Quando o óxido de chumbo é usado, o chumbo do esmalte passa para os líquidos ou alimentos quando são ácidos ou quentes. É assim que o chumbo passa para o arroz, suco ou outro alimento servido ou preparado em cerâmica esmaltada com chumbo", assinala Estrada. A Pure Earth promove um programa no México para ajudar ceramistas a fazer a transição para esmaltes sem chumbo. "O programa 'Barro Aprobado' consiste em dar aos ceramistas selos personalizados na produção de cerâmicas sem chumbo, bem como promover lojas de olarias e restaurantes sem chumbo. Até agora, temos mais de 40 ceramistas no programa, mas há cada vez mais interesse na indústria para ser livre de chumbo. " Em Nova Orleans, Howard Mielke conduziu estudos que relacionam o chumbo no solo ou chão de parques ou praças com os níveis de chumbo no sangue de crianças. Em primeiro lugar, "muitas vezes, as crianças colocam as mãos ou os brinquedos que estavam em contato com o solo na boca", enumera o pesquisador. "Em segundo lugar, o chumbo do solo entra na casa das crianças pelos sapatos (tirar os sapatos na porta limita esse movimento)." "Terceiro, o chumbo no solo é ressuspenso no ar (como mostrou um estudo recente de Londres) durante os períodos de seca do ano e entra em sua casa pela janela." "Quarto, o pó ressuspenso é inalado, e as nanopartículas entram nos pulmões e são absorvidas diretamente na corrente sanguínea." Mielke supervisionou projetos de limpeza de solo e sujeira em 30 praças e áreas recreativas em Nova Orleans, sobre os quais foi colocada uma malha de fibra sintética chamada geotêxtil . "Um geotêxtil permeável de cor laranja é colocado no topo do solo contaminado. Depois se espalha uma camada de 6 cm de solo com baixos níveis de chumbo (menos de 10-20 ppm) sobre esta malha". Dessa forma, "a superfície onde as crianças brincam passou de níveis de chumbo de 700 ppm para níveis abaixo de 20 ppm". Além dos projetos de Mielke, o pesquisador observa que a cidade de New Orleans também fez trabalhos de remediação, como é chamada a redução de contaminação de solo, em 13 parques locais. Mas o cientista garantiu que "Nova Orleans continua muito poluída para as crianças. Seus níveis de chumbo no sangue continuam excessivamente altos". A intoxicação por chumbo afeta desproporcionalmente crianças em países de baixa e média renda, de acordo com o Unicef e a Pure Earth. E, dentro de cada país, os mais afetados tendem a ser crianças de comunidades mais pobres. As ações para reduzir a exposição ao chumbo têm um elemento do que Mielke chamou de "justiça ambiental". "Pessoas de baixa renda vivem em comunidades onde a moradia é mais acessível", diz ele. "Infelizmente, esses imóveis mais acessíveis são geralmente encontrados em áreas urbanas pobres com congestionamento de tráfego e, possivelmente, com casas que têm pintura à base de chumbo antiga. Quando o chumbo era usado na gasolina, o meio ambiente nessas comunidades ficava contaminado com nanopartículas de chumbo (partículas da combustão)." Essas partículas são ressuspensas no ar e se tornam uma fonte de envenenamento para crianças, o que pode resultar em sérias deficiências e consequências para a vida toda. "Essas disparidades prejudicam a sociedade. "A indústria do chumbo promoveu um padrão de 400 ppm nos solos. Mas vimos que esse nível é muito alto. Comunidades com níveis de 40 ppm nos solos são mais seguras para a maioria das crianças." O Unicef e a Pure Earth recomendam ações coordenadas para os países afetados em diferentes áreas, incluindo monitoramento por meio de testes de chumbo no sangue e prevenção da exposição das crianças a produtos que contenham chumbo, como brinquedos e tintas, bem como a reciclagem segura de baterias e lixo eletrônico. Raquel Ochoa González cita como exemplo a vigilância da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos. "Como medidas para prevenir a exposição ao chumbo, podemos apontar a inspeção de canos em casas construídas antes dos anos 1980, evitar o contato com pinturas danificadas, lavar as mãos antes de comer alimentos e evitar o uso de objetos de metal e brinquedos velhos." Para Daniel Estrada, na América Latina, deve haver "políticas adequadas e, acima de tudo, mecanismos de vigilância, tanto para a indústria quanto para os níveis de chumbo no sangue de crianças vulneráveis". Então, qual a principal mensagem que Estrada daria ao público? "Monitorar seus níveis de chumbo no sangue, porque os da mãe podem ser semelhantes aos das crianças. Se encontrarem níveis elevados, busquem a fonte para eliminá-los." E a mensagem para os compradores de cerâmica esmaltada "é comprar cerâmica esmaltada sem chumbo". O envenenamento de crianças por chumbo, com seu impacto devastador ao longo da vida, é uma tragédia. Mas existem medidas que podem ser tomadas para reduzir a exposição das crianças a essa toxina. "As crianças são extraordinariamente sensíveis ao ambiente", diz Mielke. "São os adultos que devem assumir a responsabilidade de tornar esses ambientes os mais seguros possíveis em termos de níveis de chumbo."
2021-07-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57886448
sociedade
Os riscos e benefícios do 'gaman', a arte da perseverança que define o Japão
O dia de trabalho em Tóquio geralmente começa com uma viagem pelo sistema de metrô mais movimentado do mundo. Grande parte da população de 37 milhões de habitantes da região metropolitana toma os trens que cortam a capital do Japão todos os dias. É uma tarefa estressante. Nas estações, passageiros apressados correm em todas as direções. Na plataforma, eles se agrupam em bloco nas laterais de cada uma das portas — para evitar obstruir a passagem dos que vão desembarcar — e, na sequência, tentam entrar o mais rápido possível no vagão, embora a multidão diminua a velocidade do processo. Aqueles que conseguem embarcar se espremem a um ponto que dificulta qualquer movimento. Os pés às vezes não tocam o chão. Mesmo nesses trens lotados, contudo, reina um silêncio resignado. O comportamento calmo e ordeiro é uma marca das multidões no Japão. Quem vem de fora muitas vezes se surpreende com a disposição das pessoas em aguardar pacientemente, seja no transporte para o trabalho, em eventos como lançamentos de marcas e em momentos de crise, como quando tiveram de aguardar por ajuda e assistência após o devastador terremoto e tsunami de Fukushima,há oito anos. Todo esse esforço para manter a ordem tem nome no Japão: trata-se do "gaman". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De forma simplificada, é a ideia de que os indivíduos devem exercitar a paciência e a perseverança ao enfrentarem situações inesperadas ou difíceis pelo bem do coletivo. O conceito implica um certo grau de autocontrole: você freia seus sentimentos para evitar o confronto. É visto com um dever na sociedade japonesa e também como um sinal de maturidade. David Slater, professor de antropologia e diretor do Instituto de Cultura Comparada da Universidade Sophia de Tóquio, descreve "gaman" como um conjunto de estratégias para lidar com eventos fora de nosso controle. "Os indivíduos desenvolvem dentro de si a capacidade de perseverar e tolerar coisas inesperadas ou ruins, difíceis de superar", diz ele. Na raiz desse conceito, explica Noriko Odagiri, professora de psicologia clínica da Universidade Internacional de Tóquio, está o fato de que os japoneses valorizam que não se fale muito e a supressão de sentimentos negativos em relação aos outros. O treinamento começa cedo. As crianças aprendem pelo exemplo dos pais e, desde o ensino fundamental, também têm contato com os conceitos de paciência e perseverança, que fazem parte do currículo escolar. "Especialmente para as mulheres, nós somos educadas para praticar o 'gaman' o máximo possível", diz Odagiri. O "gaman" pode se manifestar no longo prazo, como a resiliência para permanecer em um trabalho desagradável ou tolerar um colega chato, ou no curto prazo, como ignorar um passageiro barulhento ou alguém que fura a fila. Yoshie Takabayashi, 33, era ourives em Tóquio antes de se casar, se mudar para Kanazawa e ter filhos. Questionada sobre quando usa "gaman", ela cita sua vida após a maternidade e o fato de que não pode mais fazer algumas das coisas que costumavam lhe dar prazer. Ela também se lembra de um colega de trabalho desagradável que teve de bajular para conseguir fazer um treinamento importante, evitar problemas e manter seu emprego. "Quando olho para trás, vejo que meu chefe não fez nada para ajudar. Eu deveria ter me demitido. Mas meus pais e os colegas que, assim como eu, tinham acabado de começar em um emprego novo, continuavam me incentivando a perseguir o sucesso. Não tinha percebido quanto 'gaman' eu tinha colocado nisso", relata. O "gaman" tem origem nos ensinamentos budistas sobre perseverança. Foi aprimorado durante o boom econômico do pós-guerra no Japão, quando o trabalho passou a ser visto como elemento de construção da nação — significando sacrificar o tempo com a família por longas horas no escritório. Alguns veem a perseverança no estilo "gaman" como a característica definidora do Japão. "É o traço representativo do povo japonês, mas tem pontos positivos e negativos", diz Nobuo Komiya, criminologista da Universidade Rissho, em Tóquio. Komiya acredita que a vigilância mútua, o automonitoramento e as expectativas coletivas associadas ao "gaman" são um fator que contribui para a baixa taxa de criminalidade no Japão. Nos locais em que as pessoas cuidam umas das outras e evitam conflitos, a tendência é que a maioria seja mais cuidadosa com suas ações. Mas não se trata apenas da dinâmica coletiva. "O 'gaman', também tem benefícios a nível individual", ressalta Komiya. "Significa não ser demitido ou colher os frutos por manter relações com as pessoas em seu entorno." Em paralelo, contudo, também pode ser um elemento de pressão sobre o indivíduo. "Nós embelezamos o 'gaman'", pontua Odagiri. Muitas pessoas no Japão esperam que os outros adivinhem como elas se sentem em vez de expressar seus sentimentos de forma direta, o que pode ter consequências negativas importantes. "'Gaman' demais tem um impacto negativo na nossa saúde mental", diz ela. "Às vezes, quando as pessoas retêm muita negatividade, o 'gaman' pode se converter em uma doença psicossomática." E procurar ajuda para melhorar a saúde mental é muitas vezes visto como fracasso, diz Odagiri, já que a sociedade japonesa muitas vezes espera que as pessoas resolvam seus problemas por si mesmas. Nem todos conseguem fazer isso, entretanto, e o resultado pode levar a uma explosão de fúria que culmine em violência doméstica ou no ambiente de trabalho. O "gaman" também pode acabar deixando as mulheres presas em casamentos infelizes. "Nossa sociedade espera que as mulheres sejam caladas, humildes. Assim, muitas vezes as mulheres se esforçam para não demonstrar sentimentos negativos", explica Odagiri. E, quando decidem se divorciar, muitas descobrem que não conseguem, porque abriram mão de suas carreiras profissionais e não têm mais independência financeira. Para Komiya, existe uma conexão entre o aumento recente de denúncias de assédio sexual e moral e o colapso de estruturas sociais ocasionado pela priorização do coletivo em detrimento do indivíduo. "Os japoneses dizem que o 'gaman' é uma virtude nacional, mas na verdade é uma maneira de resguardar o coletivo", ele afirma. Hoje em dia, contudo, cada vez mais as pessoas se sentem menos propensas a serem censuradas por expressarem seus sentimentos. A sociedade, de fato, tem passado por mudanças. Há 30 anos, um emprego no Japão era para a vida inteira. Tradicionalmente, os homens faziam longas jornadas para ganhar experiência na empresa em que trabalhariam por toda a carreira, enquanto as mulheres normalmente eram colocadas em posições longe dos cargos de liderança, para que, em teoria, saíssem do mercado de trabalho em algum momento para criar os filhos. Esse sistema, contudo, hoje está em xeque pelas próprias mudanças na sociedade: as pessoas se casam mais tarde, mais mulheres estão trabalhando e a taxa de natalidade está no nível mais baixo da história. Muitos jovens trabalham com contratos temporários ou em empregos de meio período, onde o "gaman" tem pouca serventia. "Eles não estão olhando para você como um membro intrínseco do grupo. Você é admitido e demitido, tem um contrato, é pago por hora", diz Slater. "Toda a ideia de 'gaman' aqui é completamente fora de lugar. Você manterá seu emprego se souber ficar calado, mas todos os valores do 'gaman' que regem a relações sociais duradouras não fazem mais sentido", diz ele. É o que muitos jovens têm percebido, afastando-se, assim, dos caminhos trilhados pelas gerações anteriores. Mami Matsunaga, 39, trabalhou na imprensa de moda antes de trocar Tóquio pela praia. Ela agora surfa todos os dias e ensina mindfulness, técnicas de respiração e ioga em retiros e workshops pelo Japão. "Na cultura japonesa, a expectativa do 'gaman' pressiona todos a fazerem a mesma coisa e deixa pouco espaço para diferenças", afirma. Questionada se alguma vez perseverou no trabalho, Matsunaga responde: "Não, não perseverei. Sempre deixei o emprego se sentisse que precisava".
2021-07-20
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57904943
sociedade
'Como escapei de um assassino em série'
Em 2002, uma adolescente de 15 anos foi sequestrada por um homem armado na Carolina do Sul, Estados Unidos. Kara Chamberlain foi mantida em cativeiro por 18 horas, período durante o qual foi drogada e abusada sexualmente. Mas ela conseguiu escapar de seu sequestrador que — descobriu a polícia mais tarde — estava ligado ao assassinato de pelo menos três outras pessoas no estado da Virgínia. Hoje, Kara é mãe de dois filhos. Ela dá palestras e usa as redes sociais para educar outras pessoas sobre sua experiência. Também ajuda a entender o trauma que situações como a dela podem causar. Antecipando-se ao lançamento de um documentário sobre sua história neste ano, Kara falou à BBC sobre seu sequestro e por que deseja mudar a forma como processamos e lidamos com os baques emocionais que todos experimentamos em nossas vidas. Em junho de 2002, Kara Chamberlain estava na casa de uma amiga em Columbia, Carolina do Sul. "Estávamos nos preparando para passar o dia em um lago. Eu me ofereci para regar as flores da minha amiga enquanto ela estava tomando banho", disse Chamberlain à BBC. Quando estava no jardim, viu um homem estacionar seu carro na entrada da casa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele saiu do veículo e se aproximou dela. O homem disse que tinha alguns folhetos que gostaria de distribuir e perguntou se Kara poderia dá-los a seus pais, ou aos pais de sua amiga, neste caso. Era Richard Evonitz, um ex-marinheiro de 38 anos que se mudou para a Carolina do Sul alguns anos antes. Ele puxou uma arma e a apontou para a jovem. "Quando me vi naquela situação, tinha um plano de fuga", disse Kara à BBC. "No minuto em que senti o cano da arma no meu pescoço, disse a mim mesma: 'Sou uma menina pequenina de 15 anos, este é um homem adulto, não posso me defender dele. Qual é a minha melhor alternativa?' Ele a obrigou a entrar no carro e se esconder dentro de uma caixa que tinha no banco traseiro. A partir daí, começou o pesadelo de Kara. Uma vez em seu apartamento, Evonitz amarrou Kara a uma cama, deu-lhe drogas e a estuprou. Ele a manteve em cativeiro por 18 horas até que ela finalmente conseguiu escapar na manhã seguinte, enquanto seu sequestrador dormia. "Afrouxei as algemas em volta dos meus pulsos e consegui escapar da cama em que ele estava dormindo ao meu lado e saí pela porta de entrada", contou. "Corri em direção a um carro que passava pelo estacionamento do complexo de apartamentos e mostrei as algemas ainda penduradas em um dos meus pulsos." Ela disse aos homens no carro que havia sido sequestrada e pediu que a levassem às autoridades. Após a denúncia e descrição dos fatos por Kara, a polícia foi ao apartamento do suspeito, mas ele já havia escapado. Eles lançaram uma operação de busca e alguns dias depois descobriram seu paradeiro: Saratosa, Flórida. Ali, Evonitz foi cercado. Ele acabou se suicidando. No entanto, quando iniciaram uma investigação sobre o assunto, as autoridades constataram entre seus pertences evidências que indicavam que o caso pode ter ido muito mais longe do que imaginavam. Para começar, Evonitz tinha um histórico de violência sexual. Após vários testes de DNA em itens encontrados em seu apartamento, o homem foi associado a pelo menos três assassinatos no estado da Virgínia que seguiram um padrão semelhante. Um foi em setembro de 1996, quando Sofía Silva, de 16 anos, foi sequestrada do jardim da frente de sua casa em Spotsylvania, Virgínia. Um mês depois, seu corpo, já em estado de decomposição, foi encontrado em um condado vizinho perto de um barranco. Então, em maio de 1997, Evonitz sequestrou as irmãs Kristin e Kati Lisk, de 15 e 12 anos, em frente ao jardim da escola delas. Após estuprá-las, ele as estrangulou e jogou seus corpos em um rio. Os cadáveres foram encontrados cinco dias depois. Em agosto de 2002, o Gabinete do Xerife de Spotsylvania associou Evonitz às mortes dessas mulheres. Mas autoridades têm certeza de que ele foi culpado de vários outros casos de estupro, abuso sexual e assassinato. Sobreviver a um assassino em série motivou Kara não apenas a se recuperar emocionalmente das consequências de sua provação, mas a ajudar outras pessoas que sofreram traumas semelhantes. Em 2003, ela começou a trabalhar na assistência às vítimas e no laboratório de DNA do Departamento do Xerife do condado onde morava, trabalho que continuou durante seus anos de faculdade. Após a formatura, ingressou na academia de polícia, onde se dedicou a investigar casos de violência sexual e abuso infantil. Mais tarde, com dois filhos, Kara Chamberlain decidiu seguir carreira como palestrante motivacional com a ideia de compartilhar sua história e inspirar outros sobreviventes. "Tenho grandes aspirações do que posso fazer com conversas sobre emoções e traumas e o que é essa experiência humana de passar por momentos difíceis", explicou ela à BBC. Por meio das redes sociais, em particular de suas contas no TikTok e Instagram (@kararobinsonchamberlain), ela encontrou uma forma de atingir centenas de milhares de pessoas com mensagens educacionais, informativas e motivacionais. Kara pergunta o que pode ser melhorado para evitar o assédio e o abuso sexual, como apoiar as vítimas, capacitar os sobreviventes, lidar com o que ele chama de "trauma secundário" que afeta famílias, amigos e outras pessoas que estão ligadas às vítimas. "As estatísticas mostram que estupro, sequestro ou agressão por um estranho são casos raros", observa Kara. Segundo ela, normalmente se trata de alguém que a vítima conhece, por isso defende prestar atenção ao ambiente e a situações desconfortáveis, bem como impor limites que podem ser muito benéficos para a proteção pessoal. "Odeio que tenhamos que impor a responsabilidade de nos proteger, mas até que a sociedade mude, é assim que as coisas são", frisa. Suas mensagens nas redes incluem conselhos sobre alimentação, moda e exercícios como formas de terapia, também sobre a educação dos filhos e a vida de casal, mas o tema principal é enfrentar de forma direta, sem rodeios, as emoções produzidas por uma experiência traumática, sem se importar que sejam "negativas". "Acredito piamente em abrir espaço para todos os sentimentos. É normal dizer 'Estou tendo um dia ruim'. Isso não significa que você não seja grato pelas coisas maravilhosas que você tem", filosofa Kara. "Felicidade e gratidão e ter um dia ruim ou ficar com raiva podem coexistir", acrescenta. Com suas palestras e mensagens motivacionais nas redes sociais, Kara busca mudar a forma como falamos sobre experiências traumáticas. "Coisas difíceis vão acontecer com você em sua vida. Coisas difíceis acontecem com todos nós", diz ela, mas você precisa "saber que só porque coisas ruins acontecem, elas não precisam definir sua vida". "Elas podem muito bem definir para onde você está levando sua vida, mas não precisam definir quem você é."
2021-07-17
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57874295
sociedade
O papel da mãe de Britney Spears no conflito pela guarda da cantora
A mãe de Britney Spears juntou-se às vozes que clamam pela "libertação" da "princesa do pop" da guarda legal que seu pai tem sobre ela há mais de uma década. Lynne Spears disse nesta semana que sua filha de 39 anos "é capaz de cuidar de si mesma" e que deveria ter o direito de "escolher seu próprio advogado", uma permissão que o Tribunal Superior de Los Angeles concedeu à cantora na quarta-feira (14/7). Trata-se de um passo importante, pois questiona a validade da guarda legal. No entanto, muitos fãs da artista acusam a mãe de Britney de ter sido cúmplice da situação e de não ter defendido a filha antes. O ex-marido de Lynne, James ("Jamie") tem sido o responsável pelos assuntos pessoais e financeiros de sua filha nos últimos 13 anos, desde que as preocupações com a saúde mental de Britney surgiram em 2008 e a tutela foi estabelecida. Nesse período, a cantora americana lançou quatro álbuns, fez uma turnê mundial que arrecadou US$ 131 milhões (R$ 670 milhões), além de uma série de shows em Las Vegas. "Dentro dos parâmetros da tutela, ela ganhou literalmente milhões de dólares como celebridade internacional", argumentou Lynn Spears na semana passada. Britney assegura que a tutela a deixou "traumatizada" e "deprimida". Ela também disse que está "extremamente assustada" com o pai, que descreve como um alcoólatra em recuperação. O depoimento da artista coincide com depoimentos de sua mãe, que, em suas memórias, retratou o ex-marido como alcoólatra e mulherengo. Os advogados de Jamie Spears alegam, no entanto, que ele está "preocupado" com o bem-estar de sua filha. Também solicitaram que a verdade do testemunho da cantora seja investigada. Enquanto isso, Lynne Spears diz que tem "sentimentos confusos" em relação à guarda de sua filha. "Não sei o que pensar... há muita dor e preocupação", disse ela à revista New Yorker em junho. E se desculpou dizendo que se outro membro da família soubesse que estava falando com um repórter, teria que "desligar abruptamente". Mas qual é, então, a posição da mãe de Britney em relação à controversa situação legal de sua filha e o que mais ela pensa sobre isso? A atitude de Lynne Spears em relação à guarda e ao ex-marido mudou ao longo dos anos. Lynne, de 66 anos, e Jamie, de 68 anos, cresceram juntos em Kentwood, uma pequena cidade no Estado americano da Louisiana. Casaram-se em 1975, quando ela tinha 21 anos. Tiveram três filhos: Bryan James (1977), Britney Jean (1981) e Jamie Lynn (1991). Foi um casamento conturbado desde o início. Em 1980, eles iniciaram o processo de divórcio. Mais de 20 anos depois, em 2002, se divorciaram definitivamente. Mas o casal retomou o relacionamento em 2010 e depois se separou novamente. E não está claro se os dois ainda estão juntos agora. Em sua autobiografia de 2008, Através da tempestade: uma história real de fama e família em um mundo tabloide, Lynne contou detalhes perturbadores sobre o homem com quem ela compartilhou sua vida. Ela disse que se divorciou dele "depois de anos e anos de abuso verbal, comportamento errático e abandono total" e que ele era alcoólatra, mulherengo e controlador. Em suas memórias, Lynne também diz que Britney escolheu seu estilo de vida como cantora e que tentou apoiá-la sendo uma mãe compreensiva e carinhosa. Antes de Britney alcançar fama mundial, Lynne era professora em um jardim de infância e seu plano a longo prazo era se tornar professora para alunos mais velhos. "Amava ensinar. Um dos grandes arrependimentos da minha vida é ter desistido disso em 2000 para sair em turnê com Britney", diz sua autobiografia. Ela continua: "Nunca fui agente de nenhuma das meninas [a irmã de Britney também é cantora e atriz], embora tenha sido paga por um tempo para trabalhar no fã-clube e no site de Britney." Lynne conta como ela e o ex-marido levaram a filha a recitais e competições de dança em diferentes partes dos Estados Unidos desde que Britney tinha três anos. Aos 16 anos, Britney fechou um acordo para lançar um álbum, em 1998. A faixa 'Baby One More Time' se provou um sucesso estrondoso, dentro e fora dos Estados Unidos: nascia ali uma estrela pop adolescente. Em 2000, a cantora comprou para seus pais uma mansão em Kentwood no valor de mais de US$ 3 milhões. Dois anos depois, eles se divorciaram. "Foi a melhor coisa que poderia acontecer à minha família", disse Britney à revista People. Mas se no campo profissional, a carreira de Spears ia de vento e polpa, no campo pessoal, ela dava os primeiros sinais de exaustão emocional. A cantora terminara o relacionamento com o também cantor Justin Timberlake e passou a protagonizar escândalos. A todo lugar onde ia, Spears era acompanhada por paparazzi. Em 2007, a cantora ganhou as manchetes dos jornais ao raspar a cabeça e atacar o carro de um paparazzo com um guarda-chuva. Na mesma ocasião, ela havia entrada em um centro de reabilitação para dependentes químicos. Um ano depois, seu pai ganhou na Justiça o direito de administrar as finanças de Spears bem como muitas das decisões em sua vida. Ganhou, portanto, sua curatela (do inglês conservatorship). Lynn Spears ficou de fora. Durante anos, a mãe de Spears preferiu não se envolver na guarda de sua filha, embora tenha se mantido próxima a ela. Em 2019, ela compareceu à Justiça para tentar fazer parte da curatela, mas o pedido foi indeferido. Não está claro quais eram suas intenções. Lynne Spears não falou muito em todos esses anos sobre a situação legal de sua filha. Uma fonte anônima da família de Spears disse à revista People que ela recentemente decidiu adotar outra abordagem depois que Britney "implorou por sua ajuda". Em uma audiência pública em novembro de 2020, Lynne apoiou o pedido de Britney para retirar o pai do acordo de sua guarda. Por meio de um advogado, ela disse ao juiz que pai e filha têm "um relacionamento tóxico". "Parte meu coração que as coisas tenham chegado a este ponto. É hora de começar do zero", afirmou ela em um comunicado. Lynne também declarou que o dinheiro que seu ex-marido arrecada com a fortuna de sua filha é "substancialmente inapropriado". Mathew Rosengart, o novo advogado de Britney Spears, disse na quarta-feira passada (14/7) que seu primeiro objetivo é remover Jamie Spears como tutor da filha. Britney Spears anunciou que quer processar seu pai por "abuso". A cantora não emitiu uma declaração sobre sua mãe.
2021-07-17
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57874292
sociedade
Os espiões adolescentes recrutados pela polícia secreta alemã na Guerra Fria
O primeiro encontro oficial de Shenja, então uma estudante de 17 anos, com um agente da polícia secreta da Alemanha Oriental ocorreu em fevereiro de 1981. Documentos do antigo Ministério para a Segurança do Estado (MfS), popularmente conhecido como Stasi, ilustram um evento planejado em detalhes e um lado pouco debatido da temida organização: o aliciamento de menores de idade como colaboradores informais. Naquela reunião, a Stasi recrutou a adolescente. Vinda de uma família "disfuncional" na visão da ditadura do Partido Socialista Unificado da Alemanha (SED), Shenja era um alvo interessante. Sua mãe, a senhora Beden, constava nos arquivos da Stasi desde 1961 como uma "fugitiva da República" por ter se mudado de Rostock para Hamburgo antes da construção do muro de Berlim. Em 1981, as duas estavam separadas pelo regime havia cerca de oito anos. Esse desfecho começou quando Beden foi proibida de voltar a Hamburgo após uma viagem a Rostock. Ao longo de alguns anos, ela tentou deixar o país socialista novamente, inclusive pedindo um visto de saída. Seu comportamento, considerado um risco para ordem social, rendeu-lhe 10 meses na prisão, em 1973, e a perda da guarda da filha, enviada a um orfanato. Beden foi deportada para a Alemanha Ocidental em 1975, sem Shenja e o filho nascido cerca de um ano antes. Do exterior, ela tentou resgatar as crianças, enquanto a Stasi reduziu ao máximo o seu contato com a garota. Até que, em 1980, o nome de Shenja apareceu em um panfleto sobre violações de direitos humanos em uma reunião da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) em Madri, o que levou a Stasi a contatar a estudante. Shenja não era uma raridade na estrutura da Stasi. Pelo contrário, em seus 40 anos de existência, a polícia secreta aliciou informalmente milhares de adolescentes para se infiltrar em áreas hostis ao regime do SED, como grupos punks ou com religiosos oposicionistas. Esses jovens, por outro lado, só poderiam ser recrutados de forma oficial quando adultos. Logo, termos de compromisso assinados por menores não eram legais. A maioria deles tinha por volta de 16 e 17 anos. Há poucos estudos específicos sobre a quantidade de menores aliciados, mas o historiador Helmut Müller-Enbergs compartilha a hipótese de que tratavam-se de 0,8% dos colaboradores não oficiais. Ou seja, cerca de 1,3 mil em 1989. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Jovens de 17 anos eram frequentemente recrutados antes do serviço militar para obterem informações de soldados no quartel. Os de 15/16 anos costumavam estar em ambientes alternativos (góticos, punks, skinheads etc.), então a Stasi queria dados sobre essas redes", explica à BBC News Brasil Müller-Enbergs, professor-adjunto do Departamento de História da Universidade do Sul da Dinamarca (SDU) em Odense, na Dinamarca. Cidadãos ainda mais jovens chegaram a ser recrutados. Em alguns casos, a Stasi queria testá-los para carreiras oficiais na entidade. Primeiro, explica Jens Gieseke, chefe do departamento de Comunismo e Sociedade no Centro Leibniz para História Contemporânea, em Potsdam, a organização buscava estabelecer "uma base de confiança" entre o oficial de cada caso e os candidatos para "convencê-los (ou pressioná-los)" a cooperar e influenciá-los politicamente. "Mas não havia lavagem cerebral. Eles não usavam técnicas psicológicas tão avançadas." O caso de Shenja é uma das milhares de histórias preservadas pelo Arquivo de Registros da Stasi, agência que foi responsável durante 31 anos por manter os documentos da polícia secreta e abri-los ao público. Desde 21 de junho, o acervo passou a integrar os arquivos federais, mas os cidadãos continuam a ter acesso aos dados. Dissolvida em janeiro de 1990 durante a reunificação da Alemanha, a Stasi foi construída sob orientação direta da União Soviética para controlar a vida dos alemães orientais, oprimir opositores e dar suporte ao SED. Na época de seu seu fechamento, tinha 189 mil informantes não oficiais (1 para cada 90 habitantes da Alemanha Oriental) e 91 mil funcionários em tempo integral. O alto escalão da polícia secreta, segundo os especialistas, não apenas sabia do aliciamento de menores, como o promovia até certo ponto. Por outro lado, não parecia existir uma estratégia ampla ou, como afirma Gieseke, menores denunciando pais e parentes. "Ao contrário dessa imagem de penetração total de famílias como unidades sociais básicas, alimentadas por fantasias orwellianas, as famílias eram portos intactos de relações de confiança na Alemanha Oriental, ao menos no período pós-década de 1950", diz. Apesar de não ser insignificante, o uso de menores pela Stasi nunca se tornou amplo. Entre os motivos estariam a falta de popularidade da prática entre os funcionários (muitos dos quais tinham filhos), a ilegalidade desse tipo de conduta, e o fato de que os informantes precisavam coletar informações políticas complexas, um tipo de compreensão sofisticada que adolescentes ainda não haviam desenvolvido por completo. Não há, ao menos por hora, muitos detalhes sobre a percepção dos alemães orientais a respeito dessa prática. O cenário mais provável é que seriam limitadas as chances de a população saber sobre os aliciamentos. Segundo Gieseke, ainda que houvesse esse conhecimento, discussões sobre o tema ficariam restritas a ambientes privados. Ao infiltrar-se em uma demografia mais jovem, a polícia secreta queria uma porta a grupos aos quais teria dificuldade de acessar de outras formas. O foco, em geral, era obter dados sobre as atividades políticas de colegas de classe uma vez que colaboradores adolescentes teriam melhores condições de interagir com esses alvos do que professores ou adultos. A Stasi utilizava diversas estratégias para abordar esses jovens, incluindo a manipulação de candidatos de "famílias instáveis" ou se estabeleciam como "amigos" mais velhos e "solidários". Antes dos recrutamentos, a organização também avaliava os possíveis pontos fracos de informantes e considerava se os alvos estavam prontos para trabalhar com a polícia secreta. Eles ainda focavam em fãs de espionagem e jovens envolvidos em crimes, que poderiam ser forçados a colaborar para evitar punições. Depois de recrutados, esses jovens não eram pressionados ao extremo. Os informantes geralmente se reuniam com seus oficiais em uma base regular para relatar e receber instruções. "Mas a cooperação era 'bem frágil'. Em um grande número de casos, os agentes não conseguiram estabelecer um contato estável e os supostos informantes tentaram escapar da pressão ou compartilharam seu segredo com familiares ou amigos. Nesse caso, a Stasi geralmente precisava encerrar a cooperação e encerrar o processo", diz Gieseke. Hoje, é difícil identificar esses menores colaboradores com base nos arquivos da Stasi. Como a organização não definiu uma provisão especial para registrá-los, havia diferentes formas de fazê-lo internamente entre as burocracias locais. Alguns se referiram a esses indivíduos como "pessoas de contato", outros como "menores precursores". Ambas as nomenclaturas borram as estáticas oficiais, pois esses registros não podem ser conclusivamente estabelecidos como de menores colaboradores. Para Gieseke, essa prática pode ter sido adotada para turvar os dados, mas "não há indícios de que o número 'real' de informantes menores seja significativamente maior". Na Alemanha reunificada, o acesso a esses casos depende da permissão do ex-informante. Por outro lado, os arquivos podem ser acessados se os colaboradores tiverem cooperado com a polícia secreta depois dos 18 anos. Em alguns casos, ex-informantes menores de idade vieram a público com suas histórias. Angela Marquardt, uma ativista política de esquerda e punk na Alemanha unificada, escreveu um livro sobre como a Stasi a abordou ainda adolescente. No caso de Shenja, a sua colaboração com a polícia secreta durou até 1987. Como estudante em Dresden e Jena, passou informações sobre colegas de universidade para a Stasi. Mas sua colaboração foi encerrada após seu marido tornar-se um funcionário em tempo integral do MfS. Os documentos mostram que Shenja ficou surpresa e triste com seu o destino. No último encontro com a Stasi, ganhou apenas 200 marcos como agradecimento.
2021-07-17
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57838568
sociedade
'Armas e festas na piscina': os segredos do Estado Islâmico revelados por um smartphone
Com acesso a um smartphone usado por três homens britânicos que foram lutar na Síria — e suas contas nas redes sociais, o jornalista da BBC Mobeen Azhar investigou as razões que os levaram a ingressar no grupo autodeclarado Estado Islâmico (EI) e o que aconteceu com eles. Estima-se que 900 pessoas já deixaram o Reino Unido para aderir à organização extremista e outros grupos semelhantes. O grupo que se autodenomina Estado Islâmico foi responsável por cerca de 14 mil mortes. Até hoje, muitos britânicos que foram lutar pelo EI permanecem desaparecidos. No rescaldo da guerra na Síria, onde o grupo tem forte atuação, um sírio que trabalhou para o jornal britânico Sunday Times conseguiu um disco rígido contendo arquivos de um smartphone. As fotos, vídeos e capturas de tela - que podem ser vistos em um novo documentário da BBC - retratam a vida de homens britânicos que deixaram suas casas e cruzaram continentes para combater ao lado dos insurgentes. Choukri Ellekhlifi cresceu em Londres e esteve envolvido em crimes violentos antes de ingressar no EI. Aos 22 anos, sua vida acabou na Síria. A filmagem do smartphone mostra Choukri no norte da Síria, um jovem cheio de exuberância, enquanto dá uma cambalhota na piscina. O registro pode ser um momento das férias de qualquer menino em Magaluf, mas, neste caso, Choukri pausa a festa na piscina para posar com uma arma. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mais tarde, Choukri é filmado fazendo uma paródia de comentários sobre a natureza no estilo do naturalista britânico David Attenborough (famoso por emprestar a voz a programas sobre história natural), enquanto ele se agacha ao lado de um abutre em cativeiro. Ele parece ingênuo e curioso, como um homem que ainda não experimentou realmente o mundo. Mais tarde, Choukri está participando de um treinamento com armas. Ele joga uma granada em um campo, seu rosto se alegra enquanto os homens ao seu redor dizem que ele é uma "lenda". Os vídeos de propaganda online do EI costumavam ser brilhantes e semelhantes a filmes. Eles até fizeram referência à cultura popular, incluindo o videogame Mortal Kombat e a franquia de filmes Jogos Mortais, de acordo com o acadêmico Javier Lesaca, que revisou e estudou mais de 1,5 mil vídeos de propaganda do grupo. "[Eles falaram] para essa nova geração com toda a cultura dos videogames e os filmes de terror mais populares", diz Lesaca. Mas esse material de smartphone oferece uma visão diferente da vida no chamado califado. Mehdi Hassan é outro jovem britânico que aparece em capturas de tela no smartphone. Ao contrário de Choukri, ele não estava envolvido em crimes antes de entrar para o EI. Mehdi trocou sua vida em Portsmouth, no sul da Inglaterra, por uma morte prematura na Síria. Sua mãe, arrasada com o que aconteceu, explicou que Mehdi fazia parte de uma "família trabalhadora e de classe média" e disse que o viu mudar no ano seguinte em que recebeu seus resultados de provas do Ensino Médio. Mehdi havia estudado em uma escola particular católica e tirado boas notas, mas queria ser o primeiro da classe. Segundo sua mãe, foi no ano em que ele estudou para aperfeiçoar suas notas que sua visão de mundo mudou. A mudança de perspectiva está documentada nas redes sociais de Mehdi. No início, seu perfil online não chamava atenção: selfies de ginástica sem camisa misturados com postagens sobre seu amor por coalas. Ele demonstrava raiva com a ideologia extremista: "Sou um muçulmano britânico e sou contra esse tipo de porcaria", escreveu. Depois, lamentou ter sido observado no metrô de Londres porque as pessoas pensam que "carrego explosivos ou algo assim". Foi a partir daí que Mehdi se tornou aparentemente mais religioso, postando sobre sua "vida de pecado" anterior. Semanas depois, atualizou seus seguidores sobre as aulas do Alcorão (livro sagrado do Islamismo) e sua visão da política internacional. Parecia haver um esforço claro para projetar uma imagem. Ele mudou seu nome de Mehdi Hasan para Abu Dujana e postou fotos em trajes árabes tradicionais, apesar de ser um homem britânico de ascendência de Bangladesh (país no sul da Ásia que faz fronteira com a Índia). Poucos meses depois, Mehdi foi capturado por câmeras de segurança no aeroporto a caminho da Síria. A partir daí, continuou a postar em redes sociais, conduzindo sessões de perguntas e respostas para todos os interessados ​​em seguir sua jornada. O recrutado se tornou, então, recrutador. Nafees Hamid, um neurocientista que estudou os cérebros de extremistas violentos, acredita que ter crenças desafiadas por colegas é a chave para a desradicalização. "Essas pessoas estavam dentro da câmara de eco", diz ele. "Essa se tornou a única fonte de informação que eles tinham. Parte do que os grupos extremistas fazem é tentar cortar os laços. Eles sabem implicitamente que se você falar com seus velhos amigos ou sua família e ainda tiver sentimentos por eles, você tem potencial para mudar sua trajetória. " Ao longo de seu tempo na Síria, Mehdi manteve contato com familiares e amigos em Portsmouth. Seis meses depois de chegar à Síria, ele fez um post na internet perguntando se alguém sabia como acessar as senhas do UCAS, um pré-requisito para uma inscrição na universidade, alimentando especulações de que seu tempo com o EI estava chegando ao fim. Um amigo de infância de Mehdi, que não quis ser identificado, explicou: "Ele estava perguntando se alguém conhecia algum advogado. Ele me enviou uma mensagem no Facebook dizendo que me amava. Não sabia o que responder. Gostaria que ele soubesse disso… Também o amava. " Mehdi nunca voltou para casa. Ele morreu na Síria perto da fronteira com a Turquia. Sua localização final sugere que ele poderia estar se preparando para deixar o EI para trás. Acredita-se que todos os homens que aparecem no smartphone já estão mortos. Muitos outros como eles seguem desaparecidos.
2021-07-15
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57849690
sociedade
O exemplo das cidades que passaram a oferecer transporte público gratuito
Em setembro de 2018, a cidade de Dunquerque, no norte da França, passou por uma transformação silenciosamente radical: tornou seu sistema de transporte público gratuito. Sob a liderança do prefeito Patrice Vergriete, que tem doutorado em planejamento urbano, a cidade se tornou a maior da França a abolir as tarifas das redes de transporte locais, oferecendo aos 200 mil habitantes da área metropolitana acesso gratuito a 18 rotas de ônibus. A política "revitalizou" o antigo porto industrial e ajudou a reduzir as emissões de carbono, de acordo com um estudo encomendado pela cidade e realizado pela entidade independente Observatório de Cidades com Transporte Gratuito. Os pesquisadores descobriram que após a mudança, que foi financiada por um pequeno aumento no imposto sobre empresas, o número de passageiros aumentou em 60% durante a semana e dobrou nos fins de semana — com quase 50 mil viagens feitas por dia. Dos novos usuários, 48% afirmaram usar regularmente a rede de transporte público ao invés de carros. "É um sucesso evidente, mesmo que esteja na fase inicial", diz Arnaud Passalacqua, professor da Escola de Planejamento Urbano de Paris e um dos pesquisadores do estudo. "É um sinal de que o transporte público gratuito poderia funcionar em uma escala maior." Mas o debate sobre se uma cidade grande, como Paris ou Londres, poderia replicar o modelo de tarifa gratuita de Dunquerque divide opiniões. Os defensores da ideia argumentam que tornar o transporte público gratuito reduziria as emissões de carbono e a poluição do ar, aliviaria as pressões sobre as famílias desfavorecidas e, diante das falhas expostas pela pandemia do atual sistema baseado em tarifas, criaria um modelo de financiamento mais resiliente para o futuro. Mas os críticos protestam contra a ideia de abolir as tarifas, apontando os grandes desafios de custo e infraestrutura envolvidos na transferência de uma política testada em pequenas cidades para grandes centros metropolitanos. Então, será que vale a pena para as grandes cidades incorporar o transporte público gratuito? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A ideia de transporte público gratuito não é de forma alguma nova. Na França, já é uma realidade para centenas de milhares de pessoas em mais de 30 municípios, como no vizinho de Dunquerque, Calais, no subúrbio marselhês de Aubagne e em Colombiers, subúrbio de Toulouse que em 1971 realizou a primeira experiência de acabar com as tarifas na Europa. Em 2013, a cidade estoniana de Tallinn se tornou a primeira capital da União Europeia (UE) a implementar a mudança e, no ano passado, Luxemburgo, com sua população de 626 mil habitantes, se consagrou como o primeiro país a oferecer transporte público totalmente gratuito. Agora há uma "nova onda" de apoio à ideia do transporte gratuito na França, "baseada na criação de redes (de transporte) mais sustentáveis e ecológicas ​​que ajudem as comunidades mais necessitadas", diz Passalacqua. "Por causa disso, cidades maiores estão começando a implementá-lo." Em Paris, o transporte público gratuito para menores de 18 anos foi introduzido no ano letivo de 2020; Estrasburgo, a nona maior cidade da França, implementará a mesma política em setembro. Desde o mês passado, os quase um milhão de habitantes da região metropolitana de Nantes viajam gratuitamente nos finais de semana. E a região da Occitânia, no sul da França, onde vivem cerca de seis milhões de pessoas, introduziu uma política segundo a qual jovens de 18 a 26 anos que pegam o trem pelo menos 30 vezes por mês não precisam pagar, com o duplo objetivo de ajudar os trabalhadores mais jovens e reduzir as emissões de carbono. Alain Jund, vice-presidente de política de mobilidade, transporte, viagens e ciclismo da Prefeitura de Estrasburgo, diz que parte do motivo da mudança na cidade é a crise climática — a ideia de que 80 mil jovens não precisarão mais de carona dos pais. "Em Estrasburgo, os níveis de poluição são muito altos e isso está relacionado ao tráfego de automóveis", diz ele. "Também é um problema de saúde pública. Estimamos que 500 pessoas [em Estrasburgo] morram por ano devido à poluição." Mas as razões socioeconômicas também são um fator importante na política de Estrasburgo, cujo custo anual estimado de 6 milhões a 8 milhões de euros será coberto pelo orçamento geral do município. As famílias com dois filhos economizariam 550 euros por ano no custo da passagem, diz a prefeitura, oferecendo economias significativas que ajudariam famílias de baixa renda. "Estamos em uma crise econômica — e não apenas por causa da pandemia", explica Jund. "Esta é uma medida de solidariedade e proteção do poder de compra. Mas é também uma questão de proporcionar igualdade territorial entre quem está no centro da cidade e aqueles que estão nas zonas rurais, e proteger o direito à mobilidade — praticar esportes, ir ao cinema e circular livremente. Acreditamos que isso é importante." De Dunquerque a Tallinn e Luxemburgo, no entanto, os experimentos com transporte público gratuito têm sido em uma escala relativamente pequena, o que torna muito mais fácil de gerenciar do que em uma cidade grande. Mas os defensores da proposta, estimulados pelo apoio a iniciativas que combatem a crise climática, dizem que agora é a hora de dar mais um passo adiante. Audrey Pulvar, adjunta da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, fez do transporte público gratuito uma promessa fundamental em sua campanha para presidente da Île-de-France — região com 12 milhões de habitantes que abrange oito departamentos franceses, incluindo Paris — nas eleições regionais. De acordo com a proposta de Pulvar, a gratuidade do transporte seria aplicada gradualmente até 2026, primeiro a menores de 18 anos, estudantes e desempregados — depois, a política seria estendida a todos os moradores nos fins de semana e, por fim, seria oferecida todos os dias. "Precisamos mudar nosso modo de vida", diz Pulvar, que estima que a política pode custar 3 bilhões de euros por ano. De acordo com seus planos, esse déficit seria coberto por impostos sobre os veículos mais poluentes e empresas de comércio eletrônico como a Amazon, com base no imposto pioneiro da França sobre as grandes companhias de tecnologia. A isso se somariam os "custos evitados" de acidentes de carro, poluição e horas de trabalho perdidas por causa do trânsito, que ela diz custar à região 10 bilhões de euros por ano. Mas mesmo que haja um apoio crescente à ideia, nem todo mundo está disposto a abolir as tarifas de transporte. Charles-Éric Lemaignen, vice-presidente do departamento nacional de transporte da França (GART), ressalta que "embora seja gratuito, é apenas para o usuário, ainda haverá um preço a pagar". Lemaignen argumenta que qualquer plano deve considerar se o dinheiro poderia ser melhor gasto em outra área, se há capacidade suficiente para fazer frente ao inevitável aumento no uso da rede de transporte e quão importante as vendas de passagem são para financiá-la. "Em Lyon [a segunda maior cidade da França], a receita das passagens compradas por passageiros é muito maior do que em Dunquerque", diz ele. "Isso terá um sério impacto na viabilidade de um plano, porque é um golpe maior para as receitas." Estas preocupações ecoam as conclusões de um estudo encomendado em 2018 por Valérie Pécresse, a então presidente de direita da Île-de-France, sobre a viabilidade de abolir as tarifas na região. A pesquisa constatou que, embora a política levasse a um aumento de 6% a 10% no número de passageiros, custaria entre 2,2 e 3,3 bilhões de euros, e a qualidade do serviço da rede seria reduzida. Além disso, o uso de carros cairia apenas 2%, e o impacto na igualdade social seria limitado porque mais de um milhão de pessoas na região já se beneficiam de viagens gratuitas ou tarifas reduzidas. "A pandemia dificultou ainda mais o financiamento por causa dos orçamentos apertados", acrescenta Lemaignen. No entanto, os defensores da proposta acreditam que os custos foram exagerados, apontando para um imposto cobrado de todas as empresas na França, conhecido como Pagamento de Mobilidade, que subsidia o transporte coletivo e faz com que, na maioria das cidades, a venda de passagens represente apenas cerca de 10-15% da receita. No caso de Dunquerque, esse imposto cobria o custo de acabar com a venda de passagens, que representava 10% da receita. "Pagamos muito pouco [pelos custos de transporte público por meio de tarifas] e isso significa que o trânsito livre de tarifas é realmente mais fácil de implementar, especialmente porque a covid-19 reduziu ainda mais seu uso e, portanto, a receita da venda de passagens", diz Passalacqua. Mas este não é o caso em todos os lugares. De acordo com Passalacqua, as tarifas representam cerca de dois terços do orçamento de transporte de Londres, o que significa que sua remoção seria "muito mais complicada" e qualquer implementação de transporte gratuito precisaria ser feita gradualmente. Na verdade, as diferentes formas de financiamento do transporte público em todo o mundo, desde programas 100% financiados pelo governo na Europa até lugares como Hong Kong, que investem em propriedades para gerar lucro, e as complicadas redes público-privadas no Reino Unido, também significam que o modelo francês pode ser difícil de replicar. "É uma grande incógnita agora", avalia Passalacqua. No momento, Paris suspendeu a implementação do transporte público gratuito para todos. Um relatório encomendado pela prefeita Hidalgo, publicado em janeiro de 2019, concluiu que a gratuidade do transporte "não era a única razão de ser da política de mobilidade". Em vez disso, de acordo com Quentin David, um dos autores do relatório, mirar em certos grupos, como os desempregados, para conceder transporte gratuito, poderia ser uma abordagem mais eficaz — melhorar a mobilidade social e os esforços ambientais sem levar à falência o governo local. "Isso pode ajudar as pessoas sem os enormes custos financeiros para a cidade", diz ele. No entanto, enquanto cidades como Paris refletem sobre a logística de financiamento de transporte gratuito e testam políticas voltadas para populações específicas, alguns especialistas acreditam que é necessário uma reavaliação completa da forma como vemos o fornecimento de transporte público. Alguns argumentam que existe um valor inato e igualitário em disponibilizar transporte livre de tarifas aos passageiros. "É um grande equalizador", diz Michel Van Hulten, ex-político holandês e um dos primeiros defensores do transporte público gratuito na Europa. "Por que todos nós pagamos por necessidades comuns, como parques urbanos, bombeiros, parques infantis, sinais de trânsito, limpeza das ruas e não pelo transporte público?" Jenny McArthur, professora de infraestrutura urbana e políticas públicas da University College London (UCL), no Reino Unido, concorda que o foco na viabilidade financeira do setor de transporte após a queda drástica no número de passageiros durante a pandemia significa que o valor mais amplo de um sistema de transporte público se "perdeu um pouco" no debate. "O modelo de financiamento que funcionou até agora não é à prova de pandemias. Não podemos contar com as tarifas cobradas do usuário da forma como fazíamos", observa. Em vez disso, McArthur acredita que o transporte público gratuito poderia ser uma solução mais resiliente e igualitária para as cidades. "Haverá uma parcela substancial da força de trabalho que ainda precisará de transporte público", diz ela. "As famílias de baixa renda dependem muito do transporte público. Pode ser considerado como um bem público. Com as dificuldades econômicas no centro das cidades, agravadas pela pandemia, as ruas comerciais podem ser revitalizadas com o transporte público gratuito." Por enquanto, à medida que os grandes centros tentam sair da pandemia, continua sendo uma incógnita se o transporte público gratuito poderia ter um efeito transformador em cidades como Paris. "Nunca foi testado neste nível antes", diz Audrey Pulvar. "Mas não é um erro ser o primeiro a tentar."
2021-07-15
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-57802696
sociedade
Como brinquedos podem criar estereótipos de gênero no cérebro da própria criança
Minha filha é obcecada por tudo que é "de menina". Antes mesmo de completar 2 anos, ela só queria saber de usar vestidos floridos cor-de-rosa. Quando ela tinha 3 anos e nós vimos um grupo de crianças jogando futebol, sugeri que ela poderia jogar quando fosse um pouco mais velha. "Futebol não é para meninas", ela respondeu com firmeza. Expliquei cuidadosamente que as meninas, embora em minoria, também estavam jogando. Ela não se convenceu. No entanto, ela também é barulhenta, adora subir nas coisas e pular, atributos muitas vezes descritos como "masculinos". Foi um tanto inesperado ouvir suas ideias sobre o que meninas e meninos deveriam fazer tão cedo, mas considerando o quanto os mundos de muitas crianças são condicionados pelo gênero desde o início, é fácil entender por que isso acontece. Essa divisão de brinquedos e brincadeiras pode parecer inocente. Mas com o tempo esses estereótipos de gênero têm efeitos duradouros sobre como as crianças passam a compreender a si mesmas, as escolhas que fazem e como se comportam. Mais tarde, esses estereótipos de gênero continuam a influenciar e perpetuar uma sociedade que, sem saber, promove valores ligados à masculinidade tóxica. Isso é uma má notícia para todos nós, independentemente de como nos identificamos. Então, como exatamente nossa obsessão pelo gênero tem um impacto tão duradouro em nosso mundo? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A ideia de que as mulheres eram intelectualmente inferiores aos homens era considerada um fato há vários séculos. A ciência tentou por muito tempo encontrar as diferenças subjacentes a essa suposição. Aos poucos, vários estudos foram contestando muitas dessas diferenças propostas e, ainda assim, nosso mundo continua teimosamente marcado por esse viés. Pensando bem, não deveria ser nenhuma surpresa, dada a forma como somos socializados quando crianças. Os pais e cuidadores ​​não têm a intenção de tratar meninos e meninas de maneira diferente, mas as evidências mostram que eles claramente fazem isso. Começa antes mesmo do nascimento, com as mães descrevendo os movimentos do bebê de maneira diferente, se sabem que vão ter um menino. Bebês do sexo masculino são mais propensos a serem descritos como "enérgicos" e "fortes", mas essa diferença não existe quando as mães não sabem o sexo. Desde que foi possível identificar o sexo biológico por meio de uma ultrassonografia, uma das primeiras perguntas feitas aos futuros pais é se eles vão ter um menino ou uma menina. Antes disso, a forma e o tamanho da barriga eram usados ​​para adivinhar o sexo, embora não haja evidências de que isso funcione. Mais sutis são as diferentes palavras que usamos para descrever meninos e meninas, mesmo quando o comportamento é exatamente o mesmo. Se adicionarmos os brinquedos baseados em estereótipos de gênero a isso, reforçamos os traços sutis e hobbies que são atribuídos ao sexo masculino e feminino. A forma como as crianças brincam é uma parte extremamente importante do desenvolvimento. É assim que as crianças desenvolvem habilidades e interesses. Os blocos encorajam a construção, enquanto as bonecas podem incentivar a tomada de perspectiva e cuidados. Uma variedade de experiências lúdicas é claramente importante. "Quando você canaliza apenas um tipo de brinquedo que desenvolve a habilidade de construção para metade da população, isso significa que metade da população vai desenvolver um determinado conjunto de habilidades ou desenvolver um determinado conjunto de interesses", diz Christia Brown, professora de psicologia da Universidade de Kentucky, nos Estados Unidos. As crianças também são como pequenos detetives, descobrindo a que categoria pertencem, aprendendo constantemente com as pessoas ao seu redor. Assim que entenderem em que gênero se encaixam, vão naturalmente gravitar em torno das categorias que foram impostas a ela desde o nascimento. É por isso que, a partir dos dois anos, as meninas tendem a buscar coisas cor de rosa, enquanto os meninos as evitam. Eu vivi isso na pele quando minha filha aos dois anos se recusou teimosamente a usar qualquer coisa que parecesse um pouco "de menino", apesar das minhas tentativas inúteis de não definir claramente o gênero de suas roupas desde o início. Não é nenhuma surpresa, então, que crianças em idade pré-escolar aprendam a se identificar com seu gênero tão cedo, especialmente porque os pais e amigos costumam dar brinquedos associados a ao seu gênero desde o início. Uma vez que as crianças entendem a qual "tribo de gênero" pertencem, elas se tornam mais receptivas aos rótulos de gênero, explica Cordelia Fine, psicóloga da Universidade de Melbourne, na Austrália. Isso, então, influencia seu comportamento. Por exemplo, até mesmo a forma como um brinquedo é apresentado pode mudar o interesse de uma criança por ele. Descobriu-se que as meninas se interessam mais por brinquedos tipicamente de menino se eles forem cor de rosa, por exemplo. No entanto, isso tem consequências. Se dermos apenas bonecas ou kits de beleza às meninas e não aos meninos, estamos estimulando elas a se associarem a esses interesses. Os meninos podem ser incentivados a gostar de atividades mais ativas por meio de ferramentas de brinquedo e carrinhos. Ainda assim, os meninos também gostam claramente de brincar de boneca, embora não seja o tipo de brinquedo que normalmente seja comprado para eles. Meu filho embala um bebê de brinquedo assim como a irmã fazia, e gosta de empurrá-lo em um carrinho de bebê. "Os meninos nos primeiros anos de vida também são carinhosos e cuidadosos. Nós apenas os ensinamos bem cedo que essa é uma 'habilidade feminina' e punimos os meninos por isso", diz Brown. Se, desde a infância, os meninos são desencorajados a brincar com brinquedos que podemos associar como femininos, eles podem não desenvolver um conjunto de habilidades que podem ser necessárias mais tarde na vida. Se eles são desencorajados por seus colegas a brincar de boneca e, ao mesmo tempo, veem a mãe cuidando a maior parte do tempo dos filhos, o que isso quer dizer sobre de quem é o papel de cuidar? E assim entramos no reino do "essencialismo biológico", em que atribuímos uma base inata a um comportamento que é, quando você se aprofunda, altamente provável de ser aprendido. Os brinquedos são uma coisa, mas características também são propensas a estereótipos de gênero. Os pais de meninos costumam falar sobre como eles são mais barulhentos e gostam de brincadeiras mais brutas, enquanto as meninas são mais gentis e dóceis. As evidências sugerem o contrário. Na verdade, estudos mostram que nossas próprias expectativas tendem a moldar a forma como vemos os outros e a nós mesmos. Pais atribuíram rostos zangados de gênero neutro como sendo de meninos, enquanto rostos felizes e tristes foram rotulados como de meninas. As mães são mais propensas a enfatizar os atributos físicos dos filhos homens — até mesmo estabelecendo objetivos mais aventureiros para os meninos do que para as meninas. Também superestimam a habilidade de engatinhar dos filhos homens em comparação com a das filhas mulheres, apesar de não haver diferenças físicas. Portanto, os vieses das próprias pessoas podem estar influenciando seus filhos e, portanto, reforçando esses estereótipos. A linguagem também desempenha um papel poderoso — as meninas supostamente falam mais cedo, um efeito pequeno, mas identificável, e isso pode ser devido ao fato de que pesquisas mostram que as mães conversam mais com as meninas do que com os meninos. Elas também falam mais sobre emoções com as meninas. Em outras palavras, inconscientemente, socializamos as meninas para acreditar que são mais falantes e emotivas, e os meninos agressivos e físicos. Brown explica que é claro por que essas concepções equivocadas continuam mais tarde na vida. Desprezamos os comportamentos que não estão de acordo com os estereótipos que esperamos. "Então você ignora todas as vezes que os meninos estão sentados em silêncio lendo um livro ou todas as vezes que as meninas estão correndo pela casa gritando", diz ela. "Nossos cérebros parecem 'pular' o que consideramos informação estereotipada inconsistente." Os pais também compram para as meninas brinquedos e roupas normalmente vendidos para meninos, mas raramente o contrário, muitas vezes na tentativa de serem neutros em relação ao gênero. Isso por si só oferece uma perspectiva interessante de como vemos o gênero. Os homens sempre foram vistos como o sexo dominante e poderoso, o que significa que os pais, abertamente ou não, desencorajam os meninos a gostarem de coisas "de menina". Como Fine explica, "começamos a ver manifestações da hierarquia de gênero — meninos começando aparentemente a responder ao 'estigma' da feminilidade, mesmo neste período inicial [da infância]." Isso revela por que os pais se sentem muito mais confortáveis ​​com meninas usando roupas "de menino" do que com meninos vestindo roupas "de menina". Ou por que crescer como uma moleca rendeu comentários positivos para mim — nunca gostei de bonecas e adorava subir em árvores. O oposto ocorre com os meninos que se vestem ou agem de maneira feminina. Ser visto como "uma menina" ou exibir traços femininos rebaixa o status dos homens — que ainda acabam com uma renda menor. Especialistas em estudo de gênero concordam que essas preferências são altamente condicionadas socialmente — mas ainda há falta de consenso sobre se algum comportamento de gênero é inato — por exemplo, há evidências de que meninas que foram expostas a níveis mais elevados de andrógenos no útero preferem brinquedos que normalmente são classificados como "de meninos". Mesmo neste caso, Fine indica que pode ser o ambiente moldando suas preferências. Essas meninas tampouco apresentam consistentemente melhor capacidade espacial — habilidade que costuma ser considerada melhor nos homens. Também sabemos que os bebês são extremamente sensíveis aos sinais sociais ao seu redor, eles podem detectar diferenças desde cedo. Independentemente de como essas preferências se desenvolvam, são os adultos e também seus colegas que continuam a condicionar e a esperar determinados comportamentos, criando um mundo de gênero com consequências preocupantes. Por exemplo, quando as meninas entram na escola — não existe uma lacuna de gênero em matemática, mas mais tarde ela começa a aumentar à medida que suas expectativas de si mesma e do professor entram em cena. Isso é especialmente problemático porque o reforço desses estereótipos de gênero "está em desacordo com o princípio igualitário de gênero contemporâneo de que seu sexo não deve determinar seus interesses ou futuro", diz Fine. Quando brinquedos específicos são vendidos para meninos, isso também pode estar mudando o cérebro para fortalecer as conexões envolvidas, por exemplo, no reconhecimento espacial. De fato, quando um grupo de meninas jogou Tetris por três meses, a área do cérebro delas envolvida no processamento visual se revelou maior do que daquelas que não jogaram. Se meninos e meninas são apresentados a diferentes tipos de hobbies, as mudanças cerebrais podem ocorrer naturalmente. Como explica a neurocientista Gina Rippon, da Aston University, no Reino Unido, o próprio fato de vivermos em um mundo de gênero cria um cérebro de gênero. Isso gera uma cultura de meninos que se sentem condicionados a se comportar de acordo com traços tipicamente masculinos — eles podem ser excluídos pelos colegas se não agirem assim. Se nos concentrarmos nas diferenças, isso também significa, como diz Rippon, que começamos a aceitar certos mitos, como que meninos são melhores em ciências e meninas em cuidar. Isso continua na vida adulta. Foi demonstrado que as mulheres subestimam suas habilidades quando questionadas sobre o quão bem se saíram em exercícios de matemática, enquanto os homens superestimam suas notas. As mulheres também vão se sair pior em um teste se forem informadas antes de que seu sexo normalmente vai mal. É claro que isso pode e afeta as escolhas de escola, universidade e carreira. Ainda mais preocupante é a ideia de que a forma como alguns traços masculinos são enfatizados desde o início e depois condicionados, está ligada à violência sexual masculina contra a mulher. Sabemos, por exemplo, que indivíduos que cometem violência sexual tendem a ter uma alta "masculinidade hostil", diz a psicóloga Megan Maas, da Michigan State University, nos Estados Unidos. Essas são as crenças de que os homens são naturalmente violentos, precisam ter satisfação sexual e que as mulheres são naturalmente submissas. Estudos também mostram que as meninas que gostam muito de princesas estão mais preocupadas com sua aparência e são mais propensas a "se auto-objetivar — então elas se veem como um objeto sexual", diz Maas. As garotas com maior pontuação em "estereótipos sexualizados de gênero" também minimizaram características associadas à inteligência. Desde cedo, tanto meninas quanto meninos mostraram ver a atratividade como "incompatível com inteligência e competência", concluiu um estudo. Brown e seus colegas também argumentaram em um artigo de 2020 que a agressão sexual de homens contra mulheres é tão comum precisamente por causa dos valores que condicionamos às crianças. Essa socialização vem de uma combinação dos pais, da escola, da mídia e dos colegas. "A objetificação sexual para meninas começa muito cedo", afirma Brown. Uma das razões pelas quais essas ideias e suposições de gênero continuam a existir é, em parte, porque ainda há relatos regulares de diferenças cerebrais inatas entre homens e mulheres. No entanto, a maioria dos estudos de imagens cerebrais que não encontram diferenças de gênero nem sequer mencionam o gênero. Outros ainda não foram publicados. Isso é conhecido como viés de publicação — quando nenhum efeito é encontrado, eles simplesmente não são mencionados ou examinados. E, para aqueles que encontram pequenas diferenças, é difícil realmente mostrar o quanto a cultura ou expectativas estereotipadas desempenham um papel nisso. Cérebros adultos tampouco podem ser categorizados nitidamente em cérebros masculinos e cérebros femininos. Em um estudo que analisou 1,4 mil tomografias cerebrais, a neurocientista Daphna Joel e seus colegas descobriram uma "extensa sobreposição entre as distribuições de mulheres e homens para toda a massa cinzenta, massa branca e conexões avaliadas". Ou seja, em geral somos mais parecidos uns com os outros do que diferentes. Um estudo mostrou até mesmo que as mulheres agiam tão agressivamente quanto os homens em um videogame quando era dito a elas que seu gênero não seria revelado, mas menos quando eram informadas que o pesquisador sabia se os participantes eram homens ou mulheres. Conclui-se que as mulheres tendem a ser consideradas menos agressivas e mais empáticas. Quando consideramos as respostas fisiológicas a situações que podem invocar empatia, mulheres e homens reagem da mesma forma, só que desde cedo as mulheres foram socializadas para agir mais de acordo com essa emoção aparentemente feminina. Isso significa que, para que haja qualquer mudança significativa, as pessoas precisam primeiro entender seus vieses e estar atentas quando suas ideias preconcebidas não se encaixam nos comportamentos que veem. Mesmo pequenas diferenças em relação ao que elas esperam das meninas e dos meninos podem se acumular com o tempo. Portanto, vale a pena lembrar por que as pessoas são condicionadas a pensar que os meninos são mais barulhentos e tomar nota das ocasiões em que isso não é verdade. Minha filha certamente é tão barulhenta — ou até mais — quanto seu irmão, enquanto ele também adora fazer de conta que está cozinhando. Embora esses não sejam exemplos necessariamente representativos, eles também não se encaixam em nossas ideias sobre o que meninos e meninas gostam. Por outro lado, seria fácil para mim ter destacado a disposição do meu filho de subir em tudo e a preferência da minha filha por cor de rosa rosa, mascarando as inúmeras vezes que ela brinca de carrinho e ele de boneca. Quando nossos filhos inevitavelmente começam a apontar as divisões de gênero, podemos ajudar revendo os estereótipos com outros exemplos, como explicando que as meninas podem e jogam futebol e que os meninos também podem ter cabelo comprido. Podemos incentivar ainda uma ampla variedade de brinquedos, independentemente do gênero a que se destinam. Precisamos oferecer o máximo de oportunidades possível "para que eles tenham experiências que vão contra esse tipo de avalanche de brincadeiras de gênero", diz Maas. Se não entendermos que somos mais parecidos do que diferentes desde o nascimento e tratarmos nossos filhos assim, nosso mundo continuará a ter gênero. Desfazer essas suposições não é fácil, mas talvez possamos todos pensar duas vezes antes de dizer a um menino como ele é corajoso, e a uma menina como ela é gentil ou perfeita.
2021-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-57564734
sociedade
Como pedir salário menor contribui para remuneração injusta de mulheres e negros
Após mudar da área de educação para o setor de tecnologia, Jess Jones não sabia ao certo o que esperar em termos de salário. Afinal, engenheiros de software ganham muito mais do que professores. A nova-iorquina de 31 anos decidiu então embarcar em uma vasta pesquisa sobre remuneração: consultou coaches de carreira, participou de eventos de networking, entrou em contato com engenheiros de software no LinkedIn e usou a calculadora de salários da plataforma de recrutamento Hired. A dica que ela recebeu foi que deveria se colocar em uma posição desconfortável nas negociações salariais — ou, como ela mesma diz, "pedir um valor repulsivo". Jones tinha uma grande vantagem ao começar uma negociação armada com o conhecimento sobre os salários apropriados para seu cargo. Mas a maioria das pessoas não têm o mesmo poder de fogo. Pesquisas mostram que a disparidade salarial, que é bem documentada, resulta em parte da disparidade nas pretensões salariais: a diferença nas expectativas de remuneração entre grupos, que prejudica em particular mulheres e minorias. Acabar com a discrepância nas pretensões salariais, com viés de gênero e racial, pode gerar grandes dividendos para as carreiras, reduzindo a desigualdade salarial no longo prazo. Em muitas áreas, os homens têm a expectativa de receber salários mais altos do que mulheres com qualificações semelhantes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um estudo com pessoas à procura de vagas de emprego online na Argentina mostrou que as mulheres pedem 6% menos em média — e essa diferença aumenta em profissões dominadas por homens. Um levantamento com médicos residentes nos Estados Unidos revelou que o salário inicial ideal das mulheres era, em média, 92% do salário ideal dos homens. E, de acordo com uma pesquisa da empresa PayScale, também nos Estados Unidos, a oferta média de salário para mulheres com qualificações semelhantes às dos homens é de US$ 69,2 mil (R$ 352 mil) — valor US$ 2,2 mil (R$ 11,2 mil) menor do que para o sexo oposto. Esses dados podem não parecer tão preocupantes sozinhos. Mas as disparidades salariais no início de uma carreira se agravam. "Com o tempo, ela aumenta, porque o percentual de aumento geralmente é baseado no salário-base, de modo que se acumula com o passar dos anos", explica Zhaleh Semnani-Azad, professora de administração da Universidade do Estado da Califórnia em Northridge, nos Estados Unidos. "Então, é aqui que as mulheres perdem no longo prazo." Alguns pesquisadores estimam que uma diferença de US$ 1 mil (R$ 5,1 mil) no salário inicial poderia levar a uma perda cumulativa de US$ 500 mil (R$ 2,54 milhões). As disparidades na pretensão salarial têm muitos culpados, mas o principal deles é a desvalorização das mulheres em relação aos homens e dos empregados negros em relação aos brancos. Muitas vezes, as pessoas internalizam essas expectativas. Pode ser mais difícil para as mulheres avaliarem com precisão seu valor, diz Semnani-Azad. Isso pode levar as mulheres a aceitarem a primeira oferta de emprego ou salário, enquanto os homens são mais propensos a esperar por propostas melhores. As mulheres podem ficar apreensivas com a possibilidade de parecerem gananciosas ou agressivas nas negociações, de os recrutadores desistirem ou apresentarem uma oferta baixa. Em contrapartida, "em geral, os homens não pensam muito nessas coisas", afirma Semnani-Azad. Além disso, eles também são mais propensos a terem percepções infladas do seu valor. "Os homens ficam mais à vontade para pedir e não precisam se preocupar com retaliações." Isso significa que pode ser difícil para as mulheres "ganharem" na negociação, não importa o estilo que adotem. "Se elas são muito enérgicas ou masculinas, há uma percepção negativa de que não são colaborativas, não são cooperativas... Mas se são muito simpáticas, colaborativas, com espírito comunitário, são vistas como fracas, ou talvez não tão competentes", explica Semnani-Azad. Ela mesma já sofreu retaliações quando ficou claro que os gerentes de contratação do sexo masculino não esperavam que ela negociasse ofertas salariais e, em resposta, começaram a minimizar suas conquistas. Esse tipo de retaliação afeta as mulheres negras em particular. Elas são especialmente propensas a serem injustamente vistas como muito agressivas nas negociações. Mas as mulheres não são inerentemente ou universalmente negociadoras mais brandas. Por exemplo, várias pesquisas mostram que "as mulheres são bem-sucedidas se negociam em nome de outra pessoa", diz Semnani-Azad. Em outras palavras, elas se sentem mais confortáveis ​​ou são vistas de maneira mais favorável quando não estão negociando para si mesmas — em parte por causa das expectativas da sociedade de que sejam "agradáveis". É claro que há diferenças nos estilos de negociação não apenas entre raça e gênero, mas entre outros fatores, incluindo nacionalidade e sexualidade. Uma empresa de recrutamento que está combatendo essa disparidade é a Hired, com sede em Nova York, voltada principalmente para o setor de tecnologia. Como as habilidades desses profissionais são muito procuradas, eles têm mais poder de negociação do que muitos trabalhadores pouco qualificados. Por exemplo, na Hired, as empresas abordam primeiro os candidatos em potencial, e não o contrário. Como muitas plataformas de busca de empregos, a Hired costumava deixar um campo em branco para cada candidato informar o salário desejado. Mas, em 2018, a empresa passou a preencher esse campo com a média salarial da função, com base nos dados de seus usuários. Esta simples mudança acabou com a disparidade de 3,3% na pretensão salarial entre os usuários do sexo feminino e masculino da Hired, "principalmente porque as mulheres estão pedindo mais, e os homens estão pedindo menos", diz Nina Roussille, economista da London School of Economics (LSE), no Reino Unido, que realizou uma pesquisa independente usando dados não confidenciais da Hired. Basicamente, após a mudança de 2018, todos os candidatos ganharam mais informações sobre seu verdadeiro valor de acordo com o mercado. Isso dependia de fatores como localização, com a diferença de expectativa de gênero sendo duas vezes maior em Londres do que na área de São Francisco, nos Estados Unidos. Em geral, a Hired afirma que está tentando tirar a subjetividade das decisões sobre o salário a ser oferecido — não só do lado do funcionário, mas também do empregador. Josh Brenner, presidente da Hired, se refere a isso como "fornecer visibilidade e orientação", o que torna o processo de contratação mais eficiente em todos os aspectos. Por exemplo, a Hired envia alertas de viés salarial para empresas que estão oferecendo salários mais baixos do que o comum para aquela função e setor. É verdade que nem toda empresa muda de tom em resposta; esses alertas geram mudanças nos salários oferecidos em 4,3% das vezes. Mas quando acontece um ajuste salarial, é significativo, em média de US$ 20 mil. Obviamente, são necessárias mais informações sobre salários, sobretudo para pessoas em início de carreira. Mas não é suficiente para acabar com a disparidade nas pretensões salariais. Por exemplo, a pesquisa de Roussille mostra que ainda existe uma disparidade de 2,5% na oferta salarial final para os hispânicos que usam a Hired, mesmo controlando a pretensão salarial. E quando os funcionários ficam sabendo das diferenças salariais, a raça afeta até que ponto a discrepância pode ser corrigida. Os dados da Hired indicam que, quando funcionários brancos apontam discrepâncias salariais, seu pagamento aumenta 28% das vezes. Para os latinos, isso acontece em apenas 15% dos casos. O que é necessário primeiro é ter consciência das disparidades nas pretensões salariais — e do que as perpetua. Em primeiro lugar, as empresas ou governos podem acabar com a prática de basear as ofertas salariais nos salários anteriores das pessoas. "As mulheres geralmente vêm com um histórico de salários mais baixos. E, portanto, isso fornece às empresas uma âncora para as mulheres que é menor do que a âncora para os homens para um determinado currículo. E isso essencialmente perpetua a desigualdade de gênero", explica Roussille. Positivamente, "há atualmente nos Estados Unidos uma série de estados que proibiram perguntas sobre histórico salarial por parte dos empregadores. E há evidências iniciais de que isso ajudou a reduzir tanto as disparidades salariais de gênero quanto as disparidades salariais em relação a minorias". O treinamento em negociação pode ajudar, mas precisa ser mais diferenciado e específico culturalmente. "Os treinamentos existentes em negociação... tendem a olhar para isso de uma perspectiva mais universal", explica Semnani-Azad. "E, muitas vezes, as recomendações de comportamento ou as estratégias e abordagens prescritas são muito amplas e não há muita consideração em relação aos subconjuntos desses grupos demográficos e como eles próprios reagem, ou como seus oponentes podem reagir a eles." Além disso, esse tipo de treinamento coloca o ônus da mudança sobre as mulheres e as minorias, em vez de no sistema que está contra elas. Em geral, uma sugestão comum é promover redes de networking e aconselhamento para grupos minoritários No entanto, embora isso seja muito útil para nutrir líderes com pouca representatividade, pode na verdade ter um efeito prejudicial sobre os salários. Isso porque, quando funcionários negros ou mulheres conversam entre si sobre salários razoáveis​, estão ouvindo salários mais baixos do que os que os homens brancos ganham (e comentam entre si). Isso perpetua um círculo vicioso de expectativas mais baixas. A engenheira de software Jones estava ciente disso e deliberadamente entrou em contato com homens e mulheres no LinkedIn para não diminuir sua expectativa salarial. Não é justo que pessoas como Jones tenham que fazer muito mais pesquisa do que homens brancos para ter uma chance maior de receber o pagamento adequado. No caso de Jones, certamente valeu a pena — ela acabou com um salário mais alto do que a oferta inicial para seu primeiro trabalho na área de engenharia de software, e comemorou recentemente seu aniversário de um mês na função. Até que a disparidade na pretensão salarial seja eliminada, ela vai continuar dizendo aos amigos e colegas exatamente o quanto ganha. Mesmo que, às vezes, tenha dificuldade em ter essas conversas delicadas, ela fala para eles: "Quero ter certeza de que você vai receber o que merece".
2021-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-57804931
sociedade
Arma de verdade com visual de Lego causa polêmica nos EUA
Uma empresa americana de armas gerou polêmica ao produzir uma pistola que parece um brinquedo infantil feito de Lego. A Culper Precision disse que sua arma Glock customizada, chamada Block19, foi desenvolvida para "destacar o puro prazer dos esportes de tiro". Mas a fabricante de brinquedos dinamarquesa Lego escreveu à empresa exigindo que ela pare de produzir o revólver, devido à sua semelhança com um brinquedo Lego. Ativistas que defendem o controle de armas descreveram a pistola como "irresponsável e perigosa". Shannon Watts, da ONG Everytown for Gun Safety, disse que havia contatado a Lego sobre a Block19 customizada na semana passada, e que a empresa dinamarquesa havia enviado uma carta de "cease and desist" (cessar e desistir, um pedido para cessar uma atividade sob pena de ação judicial) a Culper Precision. Watts também criticou a empresa de armas, sediada no Estado americano de Utah, dizendo que havia o risco de crianças serem atraídas a usar armas de fogo. A Culper Precision disse por meio de um comunicado que escolheu produzir a Block19 na tentativa de mostrar que as armas eram "para todos" e que "possuir e atirar com responsabilidade é uma atividade realmente agradável". A empresa acrescentou que a pistola só poderia ser comprada por pessoas com porte de armas. O presidente da Culper Precision, Brandon Scott, disse ao jornal Washington Post que, após conversar com seu advogado, decidiu atender ao pedido da Lego. A arma parece ter sido removida do site do fabricante da arma. É ilegal nos Estados Unidos produzir um brinquedo infantil que se pareça com uma arma de verdade, mas a legislação não impede explicitamente que fabricantes produzam armas que se pareçam com um brinquedo. Acidentes envolvendo crianças e armas de fogo estão aumentando nos Estados Unidos. Mais de 140 pessoas foram mortas em incidentes relacionados com armas no ano passado.
2021-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57838563
sociedade
'Como escapei do Japão dentro de uma caixa': as revelações do brasileiro Carlos Ghosn, ex-chefão da Nissan
Às 22h30 de uma noite fria de dezembro de 2019, um ex-todo-poderoso da indústria automobilística global se encontrava dentro de uma caixa a bordo de um avião, esperando para fugir do Japão. "O avião estava programado para decolar às 23h", lembra o brasileiro Carlos Ghosn. "Os 30 minutos de espera na caixa do avião, aguardando a decolagem, foi provavelmente a espera mais longa que já tive na minha vida." Agora, pela primeira vez, o homem que já foi o chefe da Nissan e da Renault compartilhou detalhes de sua fuga ousada. Em uma entrevista exclusiva à BBC, Ghosn conta sobre como se disfarçou para escapar despercebido pelas ruas de Tóquio, por que uma grande caixa de equipamento musical foi escolhida para retirá-lo do Japão e a alegria que sentiu quando finalmente pousou no país onde cresceu, o Líbano. Ghosn nasceu em Porto Velho, Rondônia, e mudou-se com a família para o Líbano aos seis anos. Ele possui nacionalidades brasileira, libanesa e francesa. "A emoção é que, finalmente, vou ser capaz de contar a história", diz. Ghosn foi preso em novembro de 2018 sob alegações da Nissan de que ele havia subestimado seu salário anual e feito mau uso de fundos da empresa, o que ele nega. Na época, Ghosn era o CEO da montadora japonesa. Ele também foi presidente-executivo da Renault (França) e chefe de uma aliança de três montadoras: Renault, Nissan e Mitsubishi. O corte de custos promovido por ele na Nissan — inicialmente polêmico — acabou sendo visto como algo que salvou a montadora da falência. Por causa disso, ele se tornou uma figura altamente respeitada e reconhecida no setor. Mas Ghosn alega que justamente por isso se tornou um bode expiatório — em sua visão, tirá-lo de cena seria uma forma de a Nissan lutar contra a crescente influência da Renault, que ainda possui 43% da empresa japonesa. A série de documentários Storyville detalha sua extraordinária ascensão e queda repentina no episódio 'Carlos Ghosn: The Last Flight' (Carlos Ghosn: O último voo, em tradução livre) que será exibido no canal BBC 4, no Reino Unido, nesta quarta-feira (14/7). Descrevendo o momento de sua prisão no aeroporto de Tóquio, há três anos, Ghosn disse: "É como se você fosse atropelado por um ônibus ou algo realmente muito traumático tivesse acontecido com você. A única memória que tenho desse momento é o choque, o trauma congelado", conta. Ghosn foi levado para o Centro de Detenção de Tóquio, onde recebeu um uniforme de prisão e foi confinado em uma cela. "De repente, tive que aprender a viver sem relógio, sem computador, sem telefone, sem notícias, sem caneta — nada", diz. Por mais de um ano, Ghosn passou longos períodos sob custódia ou foi mantido em prisão domiciliar em Tóquio, após ser libertado sob fiança. Não ficou claro quando um julgamento aconteceria — temia-se que pudesse levar anos — e Ghosn enfrentaria mais 15 anos de prisão se condenado, em um país com uma taxa de condenação de 99,4%. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Foi durante um período de prisão domiciliar, quando Ghosn foi informado de que não poderia ter nenhum contato com sua esposa, Carole, que ele começou a pensar em escapar. "O plano era que não mostrasse meu rosto, então teria que ficar escondido em algum lugar", diz. "E a única maneira de me esconder era dentro de uma caixa ou de uma mala para que ninguém pudesse me ver — ninguém poderia me reconhecer e o plano poderia funcionar." Ele conta que a ideia de usar uma caixa grande que normalmente conteria instrumentos musicais "era a mais lógica, principalmente porque nessa época havia muitos shows no Japão". Mas como alguém antes tão famoso — e agora infame — no Japão poderia ir de sua casa na capital a um aeroporto e escapar? O plano era, diz Ghosn, se comportar da forma mais normal possível no dia. "Tinha que ser um dia como outro qualquer. Um dia em que eu fizesse uma caminhada normal com roupas normais, atitude normal e, de repente… tudo muda." Ghosn teria que trocar os ternos que usou durante anos como um executivo do alto escalão do setor automotivo global por algo um pouco mais casual, como jeans e tênis. "Você pode imaginar que tive que ir a lugares onde nunca estive, comprar roupas que nunca comprei", diz. "Tudo para que fosse bem-sucedido e não chamasse atenção." De Tóquio, Ghosn viajou de trem-bala para Osaka, onde um jato particular o aguardava no aeroporto local para partir. Mas, primeiro, precisou se esconder dentro de uma caixa, em um hotel próximo. "Quando você entra na caixa, não pensa no passado, não pensa no futuro, apenas pensa no presente", diz. "Você não tem medo, não esboça nenhuma emoção. Só pensava em 'esta é sua chance, você não pode perdê-la. Se você perder, você vai pagar com a sua vida, com a vida de um refém no Japão'." Ghosn foi transportado do hotel para o aeroporto por dois homens, Michael e Peter Taylor, pai e filho que se passaram por músicos. Ao todo, Ghosn calcula que ficou na caixa por cerca de uma hora e meia, embora diga que parece ter durado "um ano e meio". O jato particular decolou na hora marcada e Ghosn — agora livre de seu confinamento — voou durante a noite, trocou de avião na Turquia antes de pousar em Beirute, na manhã seguinte. O Líbano não possui tratado de extradição com o Japão, então Ghosn foi autorizado a permanecer no país, do qual tem cidadania. No entanto, os americanos Michael Taylor e seu filho, Peter, foram entregues pelos Estados Unidos ao Japão e agora enfrentam três anos de prisão pela ajuda à fuga de Ghosn. Também enfrenta prisão Greg Kelly, ex-colega de Ghosn na Nissan, que continua em prisão domiciliar em Tóquio, acusado de ajudar seu ex-chefe a esconder seus ganhos. Kelly nega as acusações. O que dizer a quem ficou para trás no Japão? "Disseram-me que o fim do julgamento (de Greg Kelly) acontecerá no fim deste ano. E então Deus sabe quais serão os resultados deste caso baseado, como eu disse, em mentiras", disse Ghosn. "Sinto pena de todas as pessoas que são reféns do sistema de justiça do Japão, todas elas." Análise de Simon Jack, editor de negócios da BBC Pioneiro, visionário, egocêntrico, outsider. Todos esses adjetivos podem descrever esse cidadão meio libanês, meio brasileiro. Carlos Ghosn viveu mais como um chefe de Estado do que como um chefe-executivo. Uma festa da empresa no Palácio de Versalhes — coincidentemente , diz ele — em seu 60º aniversário, contou com garçons vestidos em trajes pré-revolucionários. Como chefe simultâneo da Renault e da Nissan, ele era fonte de inquietação para alguns em ambas as empresas. Do lado japonês, funcionários da Nissan temiam que Ghosn comandasse um golpe francês nos negócios tradicionais que ele salvou. E, do lado francês, os da Renault não gostavam de seu perfil anti-establishment e a frequência com que aparecia nas capas de revistas que retratavam a alta sociedade de Paris. Qualquer executivo-chefe global deve ser sensível às nuances políticas. O fato de Carlos Ghosn, depois de quase 20 anos na Nissan, ter sido totalmente pego de surpresa por sua prisão em Tóquio sugere que ele perdeu o contato com as organizações que estava tentando aproximar. Sua história tem tudo: arrogância, política corporativa e global e uma escapada digna de um filme de Hollywood. Ele insiste que é mais vítima do que réu e está atuando junto a advogados para limpar seu nome. Até então, Ghosn permanece um peixe outrora grande em um pequeno lago, vivendo no exílio e sob segurança armada em Beirute. Este certamente não é o final que ele esperava.
2021-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57837731
sociedade
Por que no futuro devemos tratar a covid como norovírus e não como gripe
Como alguns sintomas da covid-19 — febre, tosse, dores — são semelhantes aos da gripe, é tentador comparar as duas doenças. Sajid Javid, o novo secretário de saúde do Reino Unido (equivalente ao ministro da Saúde no Brasil), disse recentemente: "Vamos ter que aprender a aceitar a existência da covid e encontrar maneiras de lidar com ela — assim como já fazemos com a gripe". Mas escolhemos a doença errada para comparar a covid? Fora de uma pandemia, sabemos que a gripe sazonal é uma infecção que qualquer pessoa pode pegar. Vacinamos apenas aqueles que são particularmente propensos a complicações e tratamos pessoas com efeitos colaterais graves, como pneumonia. Nos outros casos, as pessoas têm que cuidar de si. As mortes globais por doenças relacionadas com a gripe chegam a cerca de 400 mil por ano. Embora precisemos encontrar uma maneira de conviver com a covid, os números sugerem que ainda estamos muito longe de poder tratá-la da mesma forma. Houve mais de 180 milhões de casos em todo o mundo desde o início de 2020, e pelo menos 4 milhões de pessoas morreram da doença. Além disso, ainda não temos certeza do efeito real da covid longa, mas os sintomas duradouros são comuns, com uma em cada dez pessoas ainda apresentando sintomas da doença 12 semanas após a infecção. Atualmente, o efeito da covid na saúde da população é muito maior do que o da gripe. Também sabemos que o coronavírus é mais infeccioso. Temos certeza disso porque, nos últimos 18 meses, as medidas para controlar a covid reduziram os casos de gripe a quase nenhum, mas obviamente não foram tão eficazes em impedir a propagação do coronavírus. Os casos foram próximos de zero no Hemisfério Sul durante o inverno em meados de 2020 e novamente na Europa e América do Norte entre novembro de 2020 e março de 2021. Mesmo em países com altas taxas de covid, como África do Sul e Reino Unido, quase não foram registrados casos de gripe durante essa estação do ano. Tudo isso sugere que a aplicação de métodos normalmente usados ​​para combater a gripe terá um efeito bastante diferente no caso da covid. Neste sentido, tratá-la como a gripe resultará em muito mais casos e mortes, e muito mais doenças persistentes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É claro que o SARS-CoV-2, o vírus que causa a covid, compartilha algumas características com os vírus da gripe, o que torna as comparações tentadoras. Cerca de 20% das pessoas não apresentam nenhum sintoma quando infectadas com SARS-CoV-2, e muitas pessoas infectadas com o vírus da gripe também não ficam doentes. Ambos são sujeitos a muitas mutações. E, com ambas as doenças, os idosos e pessoas com sistema imunológico enfraquecido correm um risco maior de doenças graves do que adultos jovens saudáveis — com infecções se espalhando rapidamente em asilos, enfermarias de hospitais e escolas. No entanto, muitas dessas características também são compartilhadas por outro germe: o norovírus. Ele também pode ser assintomático em algumas pessoas e sofrer mutações rapidamente — diferentes cepas de norovírus foram encontradas circulando no mesmo hospital durante uma temporada. Na verdade, à medida que se espalha, o norovírus às vezes muda tanto que os kits de teste padrão não conseguem reconhecer as versões que evoluíram. A maioria das pessoas com infecções sintomáticas por norovírus tem diarreia, mas algumas também apresentam vômitos. Isso cria um aerossol cheio de vírus que se espalha por qualquer ambiente e o deixa nas superfícies, esperando que outras pessoas entrem em contato com ele, como acontece com os vírus respiratórios. A covid também causa diarreia em alguns pacientes. A gripe não é a única doença viral com a qual a covid pode ser comparada. Da mesma forma, existem muitas diferenças entre o SARS-CoV-2 e o norovírus, então por que fazer a comparação? Bem, à medida que vacinas e outras medidas deixam o vírus sob controle, mais e mais partes do mundo se juntarão àquelas onde os lockdowns foram suspensos, as regras de distanciamento social foram relaxadas e é seguro sair de casa sem usar máscara. Mas ainda devemos esperar surtos de covid nos próximos anos e ter planos para lidar com eles assim que surgirem. Haja vista o que sabemos sobre esses vírus, esses planos devem considerar o controle do SARS-CoV-2 mais como faríamos com o norovírus do que com a gripe. Com o norovírus, mantemos as pessoas infectadas longe de outras. Pedimos aos pais de filhos com sintomas que os mantenham fora da escola. E em hospitais e asilos, os pacientes com norovírus são separados dos outros, a equipe usa equipamento de proteção individual e as superfícies são limpas em profundidade. Portanto, lidar com a covid-19 no futuro deverá ser assim, mais intervencionista. Ou seja, um tipo de abordagem mais semelhante à que temos com o norovírus do que com a gripe. Enquanto isso, desenvolvemos alguns bons hábitos de higiene durante a pandemia, como lavar as mãos com um pouco mais de frequência e ventilar melhor os prédios. Quem pode usar máscara deve pensar em mantê-la em locais fechados e no transporte público. Essas medidas simples devem ajudar a impedir a propagação de muitas doenças virais — seja influenza, norovírus ou covid - antes que intervenções maiores sejam necessárias. *Sarah Pitt é professora de Microbiologia e Prática de Ciências Biomédicas no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Brighton, no Reino Unido.
2021-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57826945
sociedade
Sites de grupo russo acusado de cibercrimes desaparecem misteriosamente do ar
Sites de um grupo russo acusado de praticar crimes na internet contra centenas de empresas ao redor do mundo saíram repentinamente do ar. Especialistas em cibersegurança afirmam que um site de pagamento e um blog do grupo REvil (também conhecido como Sodinokibi) deixaram de funcionar na terça-feira (14/07) sem explicações oficiais. Há diversas hipóteses, sendo a principal delas que o grupo de ataques cibernéticos teria sido alvo de ações de investigadores de algum país não identificado (como EUA ou Rússia). A maioria dos ataques desses criminosos é do tipo ransomware, no qual um vírus passa a controlar o computador da vítima como um sequestro e os invasores cobram um valor em dinheiro pelo resgate. A retirada desses sites do ar ocorre em meio a pressões entre Estados Unidos e Rússia em torno do cibercrime. O presidente americano, Joe Biden, afirmou ter discutido o tema em telefonema com o colega russo Vladimir Putin no último dia 10 de julho. Não é a primeira vez que os dois líderes tratam de ataques cibernéticos: o assunto veio à tona também durante encontro de ambos na Suíça em junho. Biden disse a jornalistas ter deixado claro a Putin que "esperávamos que ele agisse contra isso" e que os EUA poderiam tomar medidas de retaliação voltadas aos servidores usados pelos grupos de invasores digitais. O momento do sumiço das páginas do REvil alimentou os rumores de que o governo americano ou o russo agiu contra o grupo. Autoridades dos dois países, no entanto, não comentaram o assunto até o momento, e especialistas em cibersegurança dizem que o desaparecimento desses grupos não é incomum. Os ataques de ransomware contra grandes corporações e governos têm feito cada vez mais vítimas, principalmente nos EUA. O FBI (polícia federal americana) acusa o REvil de estar por trás de um ataque do tipo contra a JBS, maior empresa de processamento de carne do mundo. As cinco maiores fábricas de carne bovina da JBS estão nos EUA, e paralisações por causa do ataque chegaram a interromper um quinto da produção de carne no país, de acordo com a agência de notícias financeiras Bloomberg. O REvil é uma rede criminosa de hackers de ransomware que ganhou destaque em 2019. Acredita-se que a maioria de seus membros residam na Rússia ou em países que antes faziam parte da União Soviética (URSS). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele foi associado ao GandCrab, um grupo de hackers extinto que usou ataques do tipo ransomware de forma semelhante no passado. O REvil é conhecido como uma empresa do tipo ransomware-as-a-service (RAAS) pela forma como opera. Isso envolve desenvolvedores de ransomware que recrutam afiliados ou parceiros para espalhar seu malware malicioso. Se os ataques forem bem-sucedidos para o grupo, os desenvolvedores pegam uma porcentagem da receita obtida e fornecem a outra parte aos afiliados. O grupo ameaça publicar documentos roubados em sites (o que é conhecido como "Happy Blog") se as vítimas não cumprirem suas exigências. Um dos ataques mais conhecidos do grupo foi contra um fornecedor da Apple chamado Quanta Computer Inc no início deste ano. Em uma nota publicada na dark web, o grupo disse que divulgaria documentos internos confidenciais, a menos que recebesse US$ 50 milhões (mais de R$ 250 milhões) em resgate. O REvil também estava ligado a um ataque coordenado a cerca de 20 governos locais no Texas em 2019. REvil é uma das gangues de ransomware mais prolíficas e temidas e, se esse for realmente o fim do grupo, seria algo extremamente significativo. Os rumores estão correndo soltos sobre o que está por trás desse desligamento repentino, mas um hacker que afirma ser um afiliado da gangue me passou alguns insights. Ainda não consegui confirmar sua identidade, mas pesquisadores de cibersegurança dizem que suas afirmações são altamente plausíveis. Ele afirma que os "agentes federais americanos retiraram" partes de seus sites e, portanto, acabaram com o restante de sua operação. Ele também disse que havia pressão do Kremlin dizendo: "A Rússia está cansada dos EUA e de outros países reclamando deles". Como todas as declarações de hackers, temos analisá-las com bastante ceticismo, mas se esta explicação for confirmada, pode apontar uma mudança dramática na política da Rússia, que até agora tem permitido gangues como REvil operarem sem medo de intervenção. No entanto, outro comentário da minha fonte também aponta para uma imagem mais ampla do tema. Ele diz que não tem planos de se aposentar e já planeja outro empreendimento sigiloso. "Acabar com um faz com que outros surjam", alertou.
2021-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57834292
sociedade
Como jeito de dirigir pode revelar sinais de Alzheimer
A maneira como dirigimos muda quando envelhecemos. Mas, para algumas pessoas, diferenças sutis que surgem na maneira como guiam um veículo podem estar associadas aos estágios iniciais da doença de Alzheimer, dizem cientistas. Um grupo de pessoas com mais de 65 anos no estado de Washington, nos Estados Unidos, concordou em ter sua direção monitorada de perto por um ano. O experimento usou dispositivos de rastreamento de localização para monitorar diferenças na forma de dirigir. O que os pesquisadores queriam descobrir era se apenas estudar os hábitos de direção desse grupo poderia revelar o início da doença, sem a necessidade de procedimentos médicos invasivos ou caros. Depois de 365 dias acumulando as informações, eles estão confiantes de que sim, é possível. Entre as 139 pessoas envolvidas no estudo, testes médicos já haviam mostrado que cerca de metade delas tinha doença de Alzheimer muito precoce ou "pré-clínica". A outra metade não. A análise de sua direção revelou diferenças ​​entre os dois grupos. Especificamente, aqueles com Alzheimer pré-clínico tendem a dirigir mais devagar, fazer mudanças abruptas, dirigir menos à noite e percorrer menos quilômetros no total, por exemplo. Eles também visitaram uma variedade menor de destinos ao dirigir, mantendo-se em rotas um pouco mais restritas. "A maneira como as pessoas se movem em seus ambientes diários, desde os lugares que visitam até como dirigem, pode nos dizer muito sobre sua saúde", disse a cientista Sayeh Bayat, que liderou o estudo. Rastreadores GPS instalados nos carros dos participantes revelaram esses movimentos, e quando eles ocorreram, em detalhes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os pesquisadores que executam o estudo já haviam dividido seus participantes entre aqueles com doença de Alzheimer pré-clínica e aqueles sem, usando exames médicos, como exames de fluido espinhal e tomografia por emissão de pósitrons (PET). Mas, usando os resultados dos dados da direção, eles foram capazes de projetar um modelo que poderia prever a probabilidade de alguém ter Alzheimer pré-clínico usando apenas sua idade e seus dados de de GPS. O modelo se provou ser 86% preciso. "Usando esses poucos indicadores você pode realmente, com muita confiança, identificar se uma pessoa tem a doença de Alzheimer pré-clínica ou não", diz Bayat. O modelo foi ainda mais preciso (90%) quando também acrescentou os resultados de um teste genético para Alzheimer conhecido como genotipagem da apolipoproteína E (apoE) que indica se você pode ter um risco hereditário para a doença. (Embora seja importante ter em mente que este grupo representa apenas algumas das pessoas que eventualmente desenvolverão Alzheimer). A previsão baseada apenas na idade e na direção era quase tão precisa. Estudos maiores e randomizados são necessários para mostrar uma ligação definitiva entre os comportamentos de direção detectados e a doença de Alzheimer pré-clínica. No entanto, a virada do jogo em potencial aqui é que esta poderia ser uma maneira de baixo custo de detectar a condição em um estágio anterior, potencialmente possibilitando tratamento. Mas também levanta uma questão: idosos gostariam que seu comportamento fosse monitorado tão de perto, mesmo que houvesse benefícios para a saúde? O fato de que o comportamento das pessoas ao dirigir muda quando elas têm Alzheimer está bem documentado. O Instituto Nacional do Envelhecimento dos Estados Unidos diz que membros da família podem eventualmente perceber que seu ente querido está demorando mais para completar uma viagem simples, está dirigindo de forma mais irregular ou fica confuso sobre qual pedal é qual, por exemplo. No entanto, é complicado detectar as mudanças mais sutis, como dirigir regularmente mais devagar, no início. Essa distinção, diz Bayat, requer a coleta de dados ao longo do tempo para uma análise detalhada. Ela acrescenta que os participantes do estudo com Alzheimer pré-clínico, em alguns casos, dirigem menos à noite, restringem sua direção a áreas um pouco menores ao redor de sua casa ou viajam mais devagar do que o esperado. A melhor maneira de prever, por meio de dados de direção, se alguém sem Alzheimer pré-clínico corre o risco de desenvolvê-lo, é monitorar seu comportamento na direção por um período mais longo. Isso provavelmente revelaria mudanças em sua direção, diz Bayat. Laura Phipps, da Alzheimer's Research UK, diz que o estudo é "realmente interessante", acrescentando que as mudanças no comportamento ao dirigir são frequentemente percebidas pelos familiares de uma pessoa que mais tarde é diagnosticada com a doença. "O que eles nos dizem é que muitas vezes um dos primeiros sintomas ou sinais que notam é que seu ente querido começou a se perder", diz Phipps. Ela diz que atualmente existem relativamente poucos medicamentos disponíveis para tratar a doença de Alzheimer em estágio inicial, mas ela espera que isso mude no futuro. Se esse for o caso, ter uma indicação precoce de quem tem probabilidade de desenvolver a doença — sem a necessidade de procedimentos caros ou invasivos — poderia ajudar os médicos a saber quando prescrever tratamentos. "A pesquisa mostrou que, na verdade, a doença pode começar no cérebro até 20 anos antes que os sintomas apareçam", diz ela. As percepções sobre a direção ou outros comportamentos, como mudanças na maneira como as pessoas falam, também podem levar a mudanças no estilo de vida que podem ajudar a manter o Alzheimer sob controle. O Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido informa que cuidar da saúde cardíaca e ao mesmo tempo permanecer social e mentalmente ativo está entre as medidas preventivas que as pessoas podem tomar. A ideia de que a análise da maneira como você dirige pode ajudar as pessoas a controlar e potencialmente até atrasar o início dos sintomas mais graves de Alzheimer parece tentadora. Mas sempre existe a possibilidade de que erros possam se insinuar nessa análise. Ou que os resultados possam ter consequências negativas. Muitos motoristas de todas as idades já permitem que sua seguradora use telemática ou uma caixa preta para monitorar sua direção, o que pode resultar em um preço mais baixo de seguro. Mas, no futuro, esses dispositivos poderiam prever com precisão o risco de Alzheimer e levar isso em consideração também? Embora esse cenário potencial esteja muito distante para o mercado de seguros, é algo que pode preocupar os proprietários de caixas pretas que já tiveram problemas com a precisão de seus dispositivos no passado. Rhoda Au, professora do departamento de Saúde Pública da Universidade de Boston, argumenta que clientes deveriam ter mais controle sobre para onde vão seus dados em geral, para evitar a discriminação injusta de seus hábitos ou comportamentos. "Eles deveriam ter o direito de decidir o que deve ou não ser compartilhado", diz ela. Ela brinca com a observação de que seu próprio modo de dirigir pode ser visto como errático: "Eu penso: 'Meu Deus, essas pessoas no Google devem pensar que sou louca ... Não tenho senso de direção'." A professora Au diz que, em geral, os novos sistemas de coleta de dados projetados para encontrar correlações sutis entre o comportamento e as condições médicas podem ter falhas. Mas, dados os benefícios potenciais de ser capaz de identificar pessoas com risco de desenvolver a doença de Alzheimer desde o início, há boas razões para explorar cuidadosamente essas possibilidades agora. "Temos que começar em algum lugar", diz ela.
2021-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-57823544
sociedade
Vídeo, A vida nos microapartamentos de 9 m² em TóquioDuration, 1,38
Um apartamento de 9m²: esta é a área onde vive Hiroshi Sugano, um dos jovens profissionais que têm optado por viver em moradias minúsculas, mas bem localizadas. “O aluguel e o custo de vida seria mais barato nos subúrbios, mas seria muito longe do trabalho. Pegar um trem lotado saindo dos subúrbios é cansativo mental e fisicamente”, diz ele. A área é tão pequena que ele conta que costuma fazer as refeições em pé, já que uma cadeira ou uma mesa ocupariam muito espaço. A atriz em formação Shiho Fujikawa também aprova o estilo de vida: “Você pode considerar isto apenas um apartamento minúsculo, mas fica perto da estação de trem”, diz. Segundo a empresa Spilytus, baseada em Tóquio e responsável pelos apartamentos, pessoas na faixa dos 20 e 30 anos representam 80% dos inquilinos.
2021-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-57828601
sociedade
Por que fluidez sexual é mais comum em mulheres do que em homens
A maneira como pensamos a sexualidade está mudando. Onde antes havia uma única bandeira do arco-íris, hoje tremula uma grande variedade de bandeiras coloridas para mostrar a diversidade de orientações sexuais. As pessoas parecem cada vez mais abertas a discutir sua sexualidade, e identidades de gênero pouco convencionais, até mesmo outrora "invisíveis", estão se tornando parte de um discurso cada vez mais dominante. Com o diálogo aberto, as identidades sexuais estão se tornando menos rígidas e mais fluidas. Mas dados recentes mostram que essa mudança é mais prevalente em um grupo: em muitos países, as mulheres estão agora abraçando a fluidez sexual em taxas muito mais altas do que no passado, e de forma mais expressiva do que os homens em geral. Como se explica essa diferença? Especialistas acreditam que há vários fatores que contribuem para tal comportamento, especialmente as mudanças na esfera social que permitiram às mulheres romper com os papéis e identidades convencionais de gênero. Mas, diante disso, fica a pergunta: o que isso significa para o futuro da fluidez sexual para todos os gêneros? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sean Massey e seus colegas do Laboratório de Pesquisa de Sexualidade Humana da Universidade de Binghamton, em Nova York, estudam comportamentos sexuais há cerca de uma década. Em cada um de seus estudos, eles pediram aos participantes que informassem sua orientação sexual e gênero. Eles nunca haviam analisado como esses dados mudaram ao longo do tempo — até Massey e seus colegas perceberam recentemente que estavam sentados sobre um verdadeiro tesouro de informações sobre atração sexual. "Pensamos, meu Deus, coletamos esses dados por 10 anos", conta Massey, professor associado de estudos femininos, de gênero e sexualidade na Universidade de Binghamton. "Por que não voltamos (a eles) e analisamos para ver se houve alguma tendência?" Eles descobriram que, de 2011 a 2019, as mulheres em idade universitária se afastaram cada vez mais da heterossexualidade exclusiva. Em 2019, 65% relataram se sentir atraídas unicamente por homens, uma queda em comparação com 2011, quando este percentual era de 77%. O número de mulheres que fazem sexo exclusivamente com homens também caiu no mesmo período. Enquanto isso, a atração e o comportamento sexual dos homens permaneceram em sua maioria estáticos no mesmo intervalo: cerca de 85% disseram sentir atração sexual apenas pelo sexo feminino, e cerca de 90% afirmaram ter relações sexuais unicamente com mulheres. Outras pesquisas em todo o mundo, incluindo no Reino Unido e na Holanda, apresentam resultados semelhantes. Em geral, mais mulheres têm relatado sentir mais atração pelo mesmo sexo, ano após ano, do que os homens. "Tudo isso é complicado demais para atribuir a apenas uma coisa", diz Elizabeth Morgan, professora associada de psicologia do Springfield College em Massachusetts, nos EUA. Mas os papéis de gênero — e como eles mudaram e não mudaram — podem ser um fator significativo. Massey e seus colegas atribuem a evolução em grande parte às mudanças culturais, como o avanço do feminismo e do movimento das mulheres, que mudaram significativamente o cenário sociopolítico nas últimas décadas. No entanto, essas mudanças afetaram homens e mulheres de maneiras diferentes. "Realmente se avançou em torno do papel do gênero feminino, e menos em torno do papel do gênero masculino", diz Massey. Embora ele não desconsidere o efeito do movimento LGBTQ + sobre as pessoas que se identificam como sexualmente fluidas hoje, Massy acredita que o feminismo e o movimento das mulheres desempenham um papel no motivo pelo qual mais mulheres se identificam dessa forma do que os homens — sobretudo porque nenhum movimento masculino equivalente permitiu que os homens rompessem com restrições históricas baseadas no gênero da mesma maneira. "Há 50 anos, você não poderia ter uma vida se não se casasse com um homem, porque ele precisava sustentar você", acrescenta Morgan. Nesse sentido, renunciar à heterossexualidade exclusiva pode ser visto como parte da ruptura feminina com os papéis tradicionais de gênero. Enquanto isso, como as mulheres conseguiram encontrar mais liberdade, os papéis de gênero dos homens permaneceram relativamente estáticos, enquanto continuam a ter poder na sociedade "[Os homens] precisam defender um papel de gênero muito masculino para manter esse poder, e parte da masculinidade é a heterossexualidade", explica Morgan. Expressar interesse pelo mesmo sexo pode reduzir esse poder. Como diz Massey, a masculinidade é um "conceito frágil". Pode ser "violado" pela atração pelo mesmo sexo. A coach e educadora sexual Violet Turning, de 24 anos, também aponta a "fetichização" de duas mulheres fazendo sexo ou se beijando, especificamente sob o olhar masculino. Segundo ela, isso tornou a atração pelo mesmo sexo entre mulheres mais socialmente aceitável, embora pelos motivos errados. Em contrapartida, as pessoas parecem achar a ideia de dois homens fazendo sexo muito menos palatável. Um estudo de 2019 que analisou as atitudes em relação a homens e mulheres gays em 23 países mostrou, de forma geral, que "os gays são mais malvistos do que as mulheres lésbicas". Os espaços para as mulheres falarem abertamente sobre sua sexualidade também aumentaram com o tempo. Quando Lisa Diamond, professora de psicologia e estudos de gênero da Universidade de Utah, nos EUA, começou a estudar a fluidez sexual no início da década de 1990, sua pesquisa se concentrava nos homens. Muitos participantes do estudo, diz ela, vinham de grupos de apoio gay, em que a maioria dos membros era do sexo masculino, então os homens eram "mais fáceis de achar para os pesquisadores". Mas Diamond queria analisar a sexualidade das mulheres. Ela começou um estudo em que verificou as orientações e comportamentos sexuais de 100 mulheres a cada dois anos ao longo de uma década. Seu livro, Sexual Fluidity: Understanding Women's Love and Desire ("Fluidez sexual: compreendendo o amor e o desejo das mulheres", em tradução literal), foi publicado em 2008. A obra discute como, para algumas mulheres, o amor e a atração são fluidos e podem mudar com o tempo. Esta ideia entrava em conflito com a linha de pensamento anterior que descrevia a orientação sexual como rígida — visão alcançada por meio de estudos que analisavam apenas homens. Na época em que seu livro foi publicado, celebridades americanas que haviam namorado homens anteriormente, como Cynthia Nixon e Maria Bello, tornaram pública a atração que sentiam pelo mesmo sexo. A apresentadora Oprah Winfrey convidou então Diamond para ir ao seu programa falar sobre a fluidez sexual feminina. O conceito e a prática entraram oficialmente no debate popular. Além disso, Turning observa que a linguagem evoluiu para reconhecer as mulheres como sexualmente não-binárias. Por exemplo, ela conta que sua parceira lésbica pertencia a uma "aliança gay heterossexual" na escola, por volta de 2007. Essa expressão encorajava um indivíduo binário — os membros eram gays ou heterossexuais, não havia opções reais para aqueles que poderiam se identificar em algum lugar no meio — e tampouco continha nenhum termo que expressasse especificamente a sexualidade feminina. "Agora, é como se todos tivessem a opção de se identificar como queer, porque é muito aceitável", diz Turning, que afirma que a fala e a terminologia evoluíram para incluir pessoas de todos os gêneros — incluindo as mulheres. A fluidez sexual pode estar a caminho de entrar em espaços mais masculinos. No TikTok, se tornou popular entre homens jovens heterossexuais representar gays em seus vídeos. Os seguidores deles, em sua maioria mulheres, gostam, de acordo com um artigo do jornal americano New York Times sobre a tendência. Independentemente de se esses criadores se sentem realmente confortáveis ​​em atuar como queer ou fazem isso por cliques, essa tendência ainda sugere mudanças nas atitudes em relação à masculinidade, o que pode abrir caminho para mais homens abraçarem a fluidez sexual no futuro. Mulheres sexualmente fluidas também podem ajudar a pavimentar esse caminho. Mais mulheres falando abertamente sobre suas orientações fluidas significa mais pessoas discutindo alternativas à sexualidade rígida em geral. "Nossa cultura se envergonha muito da sexualidade", diz Diamond. "Qualquer coisa que torne mais fácil e mais socialmente aceitável para as pessoas refletirem sobre seus desejos de uma forma livre de julgamentos e de vergonha", acrescenta ela, tem o potencial de abrir o leque de possibilidades sexuais — ou pelo menos permitir que considerem a ideia de fazer isso. "Precisamos começar a libertar os homens da heterossexualidade compulsória [e] da masculinidade tradicional", completa Massey. "E isso pode ter um resultado diferente, ou talvez um resultado semelhante [ao que teve para as mulheres] em termos de permitir mais diversidade na sexualidade."
2021-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-57802703