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sociedade
Por que Relógio do Juízo Final está mais perto do que nunca do Apocalipse
O Relógio do Juízo Final, uma iniciativa que visa alertar a humanidade sobre os maiores perigos que existem, está ainda mais perto da meia-noite, o que deixaria o mundo perto de uma catástrofe. O relógio está marcando 90 segundos para a meia-noite. A entidade sem fins lucrativos Bulletin of the Atomic Scientists (BAS), que administra o relógio, disse que a mudança foi feita, em grande parte, por causa da guerra na Ucrânia. A ideia do relógio começou em 1947 para alertar a humanidade sobre os perigos de uma guerra nuclear. Os ponteiros do relógio se aproximam ou se afastam da meia-noite com base na leitura que os cientistas fazem das ameaças existenciais em um determinado momento. A meia-noite marca o ponto teórico em que a humanidade seria extinta. Fim do Matérias recomendadas A decisão é tomada pelo conselho de ciência e segurança da BAS, que inclui 13 ganhadores do Prêmio Nobel. Este ano, o anúncio foi disponibilizado em ucraniano e russo, além do inglês, devido à guerra na Ucrânia. O conselho afirmou que a guerra levantou questões profundas sobre como as nações interagem e mostrou uma aparente decadência da conduta internacional. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "As ameaças veladas da Rússia de usar armas nucleares são um lembrete ao mundo de que a escalada do conflito — seja por acidente, intenção ou erro de cálculo — é um risco terrível", afirma o comunicado. No boletim deste ano, eles também citam mudanças climáticas, ameaças biológicas e tecnologias disruptivas. "Os efeitos da guerra não estão restritos só a um aumento do perigo nuclear; eles também minam os esforços globais para combater as mudanças climáticas", disse o comunicado. Os países dependentes do petróleo e gás russos já buscaram outros fornecedores de gás natural. O conselho afirma que os líderes mundiais precisarão continuar identificando os riscos biológicos — seja a origem natural, acidental ou intencional — já que o mundo continua sofrendo com as consequências da covid. Uma pandemia, afirma o conselho, não é mais um risco raro. Em 2020, os ponteiros do relógio haviam sido movidos para mais perto da meia-noite em 100 segundos. Nos anos seguintes, em 2021 e 2022, os ponteiros do relógio ficaram no mesmo lugar. O mais distante que os ponteiros do relógio já estiveram foi logo após o fim da Guerra Fria — a 17 minutos da meia-noite. Rachel Bronson, CEO do Bulletin of the Atomic Scientists, disse que embora os humanos criem as ameaças que podem levar à extinção, os próprios humanos podem reduzir os riscos ao se engajarem em soluções.
2023-01-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64397215
sociedade
A herdeira de 8 anos que abandonou fortuna para se tornar monja
Devanshi Sanghvi tem oito anos de idade e poderia crescer até se tornar responsável por uma empresa multimilionária do ramo de diamantes. Mas a menina, filha de um rico comerciante indiano, agora vive uma vida espartana, vestindo sáris brancos comuns, andando descalça e pedindo esmolas de porta em porta. Na semana passada, Devanshi Sanghvi - a mais velha das duas filhas de Dhanesh e Ami Sanghvi - renunciou ao mundo para tornar-se monja. A família Sanghvi faz parte dos 4,5 milhões de seguidores do jainismo, uma das religiões mais antigas do mundo, que se originou na Índia há mais de 2,5 mil anos. Estudiosos das religiões afirmam que o número de jainistas que renunciam ao mundo material vem aumentando rapidamente ao longo dos anos, mas os casos que envolvem crianças jovens como Sanghvi não são comuns. Fim do Matérias recomendadas A cerimônia de quarta-feira (18/01) ocorreu na cidade de Surat, no Estado de Gujarat (oeste da Índia). Nela, Devanshi Sanghvi fez os votos de renúncia - diksha - na presença de importantes monges jainistas. Estavam presentes dezenas de milhares de pessoas. Acompanhada pelos pais, ela chegou ao local da cerimônia na área de Vesu, em Surat, usando joias, roupas de fina seda e uma coroa cravejada de diamantes sobre a cabeça. Após a cerimônia, ela se reuniu com as outras monjas, já vestida com um sári branco que também cobria sua cabeça raspada. Nas fotografias, ela é vista segurando uma vassoura que agora irá usar para afastar insetos do seu caminho e evitar que pise neles por acidente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Desde então, Sanghvi mora em Upashraya, um monastério onde vivem monges jainistas. "Ela não pode mais ficar em casa, seus pais não são mais seus pais, ela agora é Sadhvi [monja]", afirma Kirti Shah, comerciante de diamantes de Surat, amigo da família e também um político local do Partido do Povo Indiano, um dos principais do país. "A vida de uma monja jainista realmente é austera", segundo ele. "Agora, ela precisará andar para ir a todos os lugares, nunca poderá tomar nenhum tipo de transporte, irá dormir sobre um lençol branco no chão e não poderá comer depois do pôr-do-sol." A família Sanghvi pertence à única das quatro seitas jainistas que aceita crianças como monges. As demais admitem apenas adultos. Os pais de Devanshi Sanghvi são conhecidos por serem "extremamente religiosos" e a imprensa indiana citou amigos da família contando que a menina tinha "inclinação para a vida espiritual desde que era bebê". "Devanshi nunca assistiu à televisão, ao cinema, nem frequentou shoppings e restaurantes", segundo o jornal Times of India. "Desde muito jovem, Devanshi reza três vezes por dia e chegou a jejuar com dois anos de idade." Um dia antes da cerimônia de renúncia, a família organizou uma enorme procissão em Surat para celebrar a ocasião. Milhares de pessoas assistiram ao espetáculo, enquanto camelos, cavalos, carros de boi, bateristas e homens com turbantes carregando dosséis andavam pelas ruas, com dançarinos e outros artistas apresentando-se sobre pernas de pau. Devanshi Sanghvi e sua família sentaram-se em uma carruagem puxada por um elefante, sob uma chuva de pétalas de rosas jogadas pela multidão. Foram também organizadas procissões em Mumbai, na Índia, e em Antuérpia, na Bélgica, onde os Sanghvis mantêm negócios. Embora a comunidade jainista apoie a prática, a renúncia de Sanghvi gerou um debate no país. Muitas pessoas perguntaram por que a família não pôde esperar até que ela atingisse a idade adulta para tomar decisões tão importantes em seu nome. Shah foi convidado para a cerimônia de diksha, mas não compareceu. A ideia de uma criança renunciar ao mundo o deixa desconfortável. Ele insistiu que "nenhuma religião deveria permitir que crianças se tornassem monges". "Ela é uma criança, o que ela entende sobre tudo isso?", questiona ele. "As crianças não podem decidir nem mesmo o currículo que irão estudar na escola antes dos 16 anos de idade. Como elas podem tomar uma decisão sobre algo que trará impactos sobre toda a sua vida?" Quando uma criança que renuncia ao mundo é divinizada e celebrada pela comunidade, tudo pode parecer uma grande festa para ela. Mas a professora Nilima Mehta, consultora de proteção infantil em Mumbai, afirma que "as dificuldades e as privações que a criança irá enfrentar são imensas. A vida como monja jainista é muito, muito difícil." Muitos outros membros da comunidade também expressaram preocupação com a separação de uma criança da sua família com tão pouca idade. E, desde que surgiu a notícia, muitas pessoas foram às redes sociais para criticar a família, acusando os Sanghvis de violar os direitos de sua filha. Shah afirma que o governo precisa se envolver e proibir essa prática de renúncia ao mundo por crianças. Mas não é muito provável que isso aconteça. Consultei o escritório de Priyank Kanungo, chefe da Comissão Nacional de Proteção dos Direitos da Criança (NCPCR, na sigla em inglês), para saber se o governo iria tomar alguma medida sobre o caso de Devanshi Sanghvi. O escritório respondeu que Kanungo não queria comentar o assunto por se tratar de um "tema sensível". Mas os ativistas afirmam que os direitos de Devanshi Sanghvi foram violados. Para os que afirmam que acriança se tornou devota "por sua livre vontade", Mehta indica que "o consentimento de uma criança não é consentimento legal". "Legalmente, 18 anos é a idade em que alguém toma uma decisão independente", afirma ela. "Até lá, as decisões em seu nome são tomadas pelos adultos, como seus pais, que precisam levar em conta se é o melhor para os interesses da criança." "E, se essa decisão privar a criança de ter educação e recreação, é uma violação dos seus direitos", conclui Mehta. Já Bipin Doshi, professor de filosofia jainista da Universidade de Mumbai, afirma que "você não pode aplicar princípios legais no mundo espiritual". "Alguns estão dizendo que uma criança não é suficientemente madura para tomar essas decisões, mas existem crianças com melhores capacidades intelectuais que, ainda jovens, podem chegar muito mais longe do que os adultos. Da mesma forma, existem crianças com inclinação espiritual e, neste caso, o que há de errado se eles se tornarem monges?", questiona ele. Doshi também insiste que Devanshi Sanghvi não está sendo sofrendo nenhum prejuízo. "Ela pode ser privada do entretenimento tradicional, mas isso é realmente necessário para todos? E não concordo que ela será privada de amor ou educação", afirma ele. "Ela irá receber amor do seu guru e aprenderá a honestidade e o desapego. Não é melhor?" Doshi também destaca que, caso Devanshi Sanghvi mude de ideia mais tarde e ache que "tomou uma decisão errada sob os efeitos hipnotizadores do seu guru", ela sempre poderá voltar para o mundo. Neste caso, Mehta pergunta por que não deixar que ela decida quando for adulta. "As mentes jovens são impressionáveis e, em alguns anos, ela pode achar que não é a vida que ela quer", afirma Mehta. Ela acrescenta que tem havido casos de mulheres que mudaram de ideia depois que cresceram. Mehta conta que, alguns anos atrás, ela lidou com o caso de uma jovem monja jainista que havia fugido do seu monastério porque estava muito traumatizada. Outra menina que se tornou devota com nove anos de idade causou um certo escândalo em 2009, quando fez 21 anos de idade, fugiu e se casou com o namorado. No passado, também foram apresentadas petições à justiça, mas Mehta afirma que qualquer reforma social é um desafio, devido à sensibilidade envolvida. "Não é só entre os jainistas", segundo ela. "Meninas hindus casam-se com divindades e se tornam devadasis [servas de deuses - embora esta prática tenha sido proibida em 1947] e meninos entram para akhadas [centros religiosos]. No Budismo, crianças são enviadas para viver em monastérios como monges." "As crianças sofrem em todas as religiões, mas questionar a situação é blasfêmia", afirma Mehta. Para ela, as famílias e as sociedades precisam aprender que "uma criança não é sua propriedade".
2023-01-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64404290
sociedade
Como Japão mudou de 'terra do futuro' para 'preso ao passado'
No Japão, as casas são como carros. Assim que você se muda, a sua nova casa começa a valer menos do que você pagou. E, quando você termina de pagar seu financiamento, depois de 40 anos, ela não vale quase nada. Fiquei perplexo ao saber disso, quando me mudei para cá como correspondente da BBC, 10 anos atrás. E, agora que me preparo para sair, a situação ainda é a mesma. O Japão é a terceira maior economia do mundo. É um país próspero e pacífico, com a maior expectativa de vida do mundo, a menor taxa de assassinatos, poucos conflitos políticos, um passaporte poderoso e o extraordinário Shinkansen - a melhor rede ferroviária de alta velocidade do mundo. A Europa e a América do Norte já tiveram medo, um dia, do poderio econômico japonês, da mesma forma que temem hoje a crescente economia da China. Mas o Japão que o mundo esperava nunca chegou. Fim do Matérias recomendadas No final dos anos 1980, os japoneses eram mais ricos do que os americanos. Hoje, ele ganham menos que os britânicos. O Japão vem lutando há décadas com uma economia morosa, contida por uma profunda resistência a mudanças e uma teimosa ligação ao seu passado. E, agora, sua população está envelhecendo e diminuindo. O Japão ficou estagnado. Quando cheguei ao Japão pela primeira vez, em 1993, o que me impressionou não foram as lâmpadas de neon dos distritos de Ginza e Shinjuku, nem a moda selvagem de branqueamento dos cabelos "Ganguro" das meninas de Harajuku. O que me chamou a atenção foi como o Japão parecia muito mais rico do que qualquer outro lugar onde estive na Ásia - e como sua capital, Tóquio, é primorosamente limpa e organizada, em comparação com qualquer outra cidade asiática. Hong Kong era um ataque aos sentidos, cheia de odores e ruídos - uma cidade de extremos, variando desde as extravagantes mansões de Victoria Peak até as sombrias tecelagens clandestinas que exploram funcionários no norte de Kowloon. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em Taipei (capital de Taiwan), onde estudei chinês, as ruas ficavam lotadas ao som das motocicletas de dois tempos que lançavam uma fumaça azeda que envolvia a cidade. A neblina de poluição era tão espessa que, muitas vezes, mal se conseguia olhar a dois quarteirões de distância. Enquanto Hong Kong e Taiwan eram os adolescentes da Ásia, o Japão já era um adulto. Sim, Tóquio era uma selva de pedra, mas belissimamente bem cuidada. Em frente ao Palácio Imperial de Tóquio, o horizonte era dominado pelas torres de vidro das imensas corporações do país - Mitsubishi, Mitsui, Hitachi e Sony. De Nova York, nos Estados Unidos, até Sydney, na Austrália, pais ambiciosos imploravam aos seus filhos para que aprendessem japonês. Eu ficava imaginando se teria cometido um erro apostando no mandarim. O Japão se reergueu da destruição da Segunda Guerra Mundial e conquistou a indústria global. O dinheiro voltou para o país, trazendo um boom imobiliário que fazia com que as pessoas comprassem qualquer propriedade que estivesse disponível - até terrenos florestais. Em meados dos anos 1980, a piada era que o terreno do Palácio Imperial de Tóquio valia o mesmo que todo o Estado americano da Califórnia. Os japoneses chamam essa época de Baburu Jidai - a era da bolha. Mas, em 1991, a bolha estourou. A bolsa de valores de Tóquio entrou em colapso. Os preços dos imóveis despencaram e não se recuperaram até hoje. Um amigo estava recentemente negociando a compra de vários hectares de floresta. O proprietário queria US$ 20 (cerca de R$ 104) por metro quadrado. "Eu disse a ele que a terra florestal só vale US$ 2 (cerca de R$ 10,40) por metro quadrado", disse meu amigo. "Mas ele insistiu que precisava de US$ 20 por metro quadrado, porque foi o que ele pagou nos anos 1970." Quando pensamos nos elegantes trens-bala do Japão ou na maravilhosa fabricação em linha de montagem da Toyota, podemos facilmente pensar que o Japão é o modelo da eficiência. Mas não é. A burocracia pode ser assustadora e enormes montantes de dinheiro público são gastos em atividades de utilidade duvidosa. Em 2022, descobri a história por trás das deslumbrantes tampas de bueiro em uma pequena cidade nos Alpes Japoneses. Em 1924, foram encontrados, em um lago próximo, os ossos fossilizados de uma antiga espécie de elefante, que se tornou símbolo da cidade. Até que, alguns anos atrás, alguém decidiu substituir todas as tampas de bueiro por tampas novas com a imagem do famoso elefante. Isso vem sendo feito em todo o Japão. Existe agora uma Sociedade Japonesa das Tampas de Bueiro, que afirma que existem 6 mil desenhos de tampas diferentes no país. Entendo que as pessoas adorem essas tampas. Elas são verdadeiras obras de arte. Mas cada uma delas custa até US$ 900 (cerca de R$ 4,7 mil). Esta é uma indicação dos motivos que levaram o Japão a ter a maior dívida pública do mundo. E essa conta astronômica é agravada por uma população envelhecida que não consegue se aposentar devido à pressão (de cortes) sobre as pensões e o sistema de saúde. Quando renovei minha carteira de motorista japonesa, os funcionários - extremamente educados - me encaminharam do teste de visão para a cabine de fotografia e o pagamento da taxa. Em seguida, eles me pediram para comparecer à "sala de palestras 28". Estas palestras sobre "segurança" são obrigatórias para qualquer pessoa que tenha cometido uma infração de trânsito nos últimos cinco anos. Dentro da sala, encontrei um grupo de pessoas de aparência desolada, esperando que nossa punição começasse. Um homem elegantemente trajado entrou e disse que nossa "palestra" começaria em 10 minutos e iria durar duas horas! Você não precisa nem mesmo entender a palestra. Eu me perdi na maior parte dela. Enquanto ela se arrastava pela segunda hora, diversos dos meus colegas adormeceram. O homem ao meu lado fez um desenho muito bom da Torre de Tóquio. E fiquei ali, ressentido e entediado, com o relógio na parede zombando da minha situação. "Qual é o propósito daquilo?", perguntei à minha colega japonesa quando voltei ao escritório. "É uma punição, certo?" "Não", respondeu ela, rindo. "É um esquema de criação de empregos para guardas de trânsito aposentados." Quando você vive aqui por mais tempo, até as frustrações se tornam algo familiar e mesmo curioso. Você começa a apreciar os hábitos peculiares - como os quatro funcionários do posto de gasolina que limpam todas as janelas do seu carro enquanto enchem o tanque e fazem uma reverência sincronizada quando você sai. O Japão ainda parece muito o Japão e não uma cópia dos Estados Unidos. É por isso que o mundo é tão fascinado por tudo o que é japonês, da neve em pó até a moda. Tóquio abriga restaurantes excepcionais. O Studio Ghibli produz as animações mais encantadoras do mundo - sorry, Disney!. E é claro que o J-Pop é intragável para muitos, mas o Japão, sem dúvida, é uma superpotência do soft power. Os geeks e pessoas excêntricas adoram o país e sua maravilhosa esquisitice. Mas o Japão também tem seus admiradores na extrema-direita, por rejeitar a imigração e manter o patriarcado. O país, muitas vezes, é descrito como uma nação que conseguiu se modernizar sem abandonar o passado. E há alguma verdade nisso, mas eu afirmaria que o moderno é mais uma fachada. Quando veio a pandemia, o Japão fechou as fronteiras. Até os estrangeiros que eram moradores permanentes foram proibidos de voltar para o país. Eu questionei o ministério do Exterior para saber por que os estrangeiros que passaram décadas no Japão, que tinham casas e empresas aqui, eram tratados como turistas. A resposta foi curta e direta: "todos eles são estrangeiros". O Japão foi forçado a abrir suas portas 150 anos atrás. E, até hoje, o país é cético e até temeroso sobre o mundo exterior. Eu me lembro de estar sentado no salão comunitário de um vilarejo na península de Boso, no outro lado da baía de Tóquio. Fui até lá porque o local estava na relação de 900 vilarejos ameaçados no Japão. Os anciãos reunidos no salão estavam preocupados. Desde os anos 1970, eles vinham vendo os jovens saírem para trabalhar nas cidades grandes. Dos 60 habitantes que sobraram, havia apenas um adolescente e nenhuma criança. "Quem vai cuidar dos nossos túmulos quando morrermos?", lamentava um senhor idoso. Tomar conta dos espíritos é um trabalho sério no Japão. Para mim, nascido no sudeste da Inglaterra, a morte deste vilarejo parecia um absurdo. Ele era rodeada por campos de arroz e montanhas cobertas por densas florestas - cenas dignas de cartões-postais. E Tóquio ficava a menos de duas horas de carro de distância. "É um lugar tão bonito", eu disse a eles. "Com certeza, muitas pessoas adorariam morar aqui. Como vocês se sentiriam se eu trouxesse minha família para morar aqui?" O ar no salão ficou pesado. Os homens se entreolharam, constrangidos e em silêncio. Até que um deles pigarreou e disse, com um olhar preocupado no rosto: "bem, vocês precisariam aprender nosso modo de vida. Não seria fácil." O vilarejo estava a caminho da extinção, mas a ideia de que ele pudesse ser invadida por "gente de fora" parecia ainda pior. Um terço da população japonesa tem mais de 60 anos de idade. Por isso, o Japão abriga a segunda população mais idosa do mundo, perdendo apenas para o minúsculo principado de Mônaco. O país vem registrando cada vez menos nascimentos e pode perder um quinto da sua população atual até 2050. Mesmo assim, a hostilidade à imigração não desapareceu. Apenas cerca de 3% dos moradores do Japão nasceram no exterior, em comparação com 15% no Reino Unido. Na Europa e na América do Norte, os movimentos de extrema-direita apontam para o Japão como um exemplo de pureza racial e harmonia social. Mas o Japão não é tão etnicamente puro como os seus admiradores podem acreditar. Existem os ainus da ilha de Hokkaido, os nativos de Okinawa no sul, meio milhão de coreanos e perto de um milhão de chineses. E existem os filhos de casais japoneses em que um dos pais é estrangeiro, incluindo meus três filhos. Essas crianças filhas de duas culturas são conhecidas como "hafu" - "metades", um termo pejorativo que, aqui, é de uso normal. Entre os hafus estão celebridades e ídolos do esporte, como a estrela do tênis Naomi Osaka. A cultura popular os idolatra como "mais belos e talentosos". Mas uma coisa é ser idolatrado e outra, bem diferente, é ser aceito. Se você quiser saber o que acontece em um país que rejeita a imigração como solução para a queda da fertilidade, o Japão é um bom lugar para começar. Aqui, os salários reais não aumentam há 30 anos. A renda na Coreia do Sul e em Taiwan alcançou e até superou a do Japão. Mas as mudanças ainda parecem distantes - em parte, devido à rígida hierarquia que determina quem mantém as cadeias de poder. "Veja, existe algo que você precisa entender sobre como funciona o Japão", me disse certa vez um eminente acadêmico do país. "Em 1868, os samurais entregaram suas espadas, cortaram seus cabelos, passaram a usar roupas ocidentais, marcharam para os ministérios em Kasumigaseki [o distrito do governo, no centro de Tóquio] e estão por lá até hoje", contou ele. Em 1868, temendo a repetição do destino chinês nas mãos dos imperialistas ocidentais, os reformadores derrubaram a ditadura militar do xogunato Tokugawa e colocaram o Japão no caminho da industrialização a todo vapor. Mas a restauração da era Meiji, como se sabe, não foi como a queda da Bastilha. Foi um golpe de Estado da elite. E, mesmo após uma segunda convulsão, em 1945, as "grandes" famílias japonesas mantiveram seu poder. Essa classe governante, predominantemente masculina, é definida pelo nacionalismo e pela convicção de que o Japão é especial. Eles não acreditam que o Japão tenha sido o agressor na guerra, mas sim sua vítima. Para citar um exemplo, o ex-primeiro-ministro Shinzo Abe, assassinado em julho de 2022, era filho de um ministro do Exterior e neto de outro primeiro-ministro, Nobusuke Kishi. Kishi era membro do gabinete na época da Segunda Guerra Mundial e foi preso pelos americanos como suspeito de crimes de guerra. Mas ele escapou da forca e, em meados dos anos 1950, ajudou a fundar o Partido Liberal Democrata (PLD), que governa o Japão até hoje. Algumas pessoas brincam que o Japão é um Estado de um partido só, o que não é o caso. Mas é razoável perguntar por que o Japão continua a reeleger um partido regido por uma elite poderosa, que deseja descartar o pacifismo imposto pelos Estados Unidos, mas não conseguiu melhorar as condições de vida em 30 anos. Em uma recente eleição, viajei de carro por um vale ao lado de um rio que cortava as montanhas a duas horas a oeste de Tóquio. Era uma região rural, dominada pelo PLD. A economia local depende da fabricação de cimento e da energia hidrelétrica. Em uma cidade pequena, encontrei um casal de idosos caminhando para o posto de votação. "Vou votar no PLD", disse o marido. "Nós confiamos neles, eles irão cuidar de nós." E sua esposa disse "concordo com meu marido". O casal apontou para o vale, onde havia um túnel e uma ponte recém-construídos. Eles esperam que a obra traga mais turistas de Tóquio para passar o fim de semana no local. Costuma-se dizer que as bases de apoio do PLD são feitas de concreto. Esta forma de política clientelista é uma razão por que, em grande parte do litoral do Japão, existem tantos tetrápodes (também conhecidos como pés-de-galinha), enormes blocos de concreto colocados ao lado de estruturas para proteger da ação das ondas marinhas, e também porque tantos rios têm paredes de concreto. É para manter ativa a indústria de concreto. Os redutos rurais são agora fundamentais devido à demografia do Japão. Eles deveriam ter se reduzido, à medida que milhões de jovens se mudavam para as cidades grandes em busca de trabalho, mas não foi o que aconteceu. Para o PLD, isso é bom porque significa que os votos rurais e idosos contam mais. Quando essa geração mais idosa passar, as mudanças serão inevitáveis. Mas não tenho certeza se isso significa que o Japão irá ficar mais aberto ou liberal. Os jovens japoneses estão menos dispostos a se casar ou ter filhos. Mas eles também têm menos inclinação a aprender idiomas estrangeiros ou estudar no exterior do que seus pais ou avós. As mulheres ocupam apenas 13% dos cargos de gerência no Japão - e elas representam menos de 10% do total de parlamentares. Quando entrevistei a primeira mulher governadora de Tóquio, Yuriko Koike, perguntei a ela como o seu governo planejava combater a discrepância de gênero. "Tenho duas filhas que logo irão se formar na universidade", eu disse a ela. "Elas são cidadãs japonesas bilíngues. O que a sra. diria a elas para incentivá-las a ficar e fazer suas carreiras aqui?" "Eu diria a elas que, se eu posso ter sucesso aqui, elas também podem", respondeu Koike. Eu pensei "é só isso que você tem a oferecer?" Vou sentir saudades do Japão, apesar de tudo. O país me inspira enorme afeição, ao lado dos - não muito raros - ataques de irritação. Em um dos meus últimos dias em Tóquio, fui com um grupo de amigos a um mercado de rua de fim de ano. Em uma das bancas, fiquei admirando caixas com antigas e belíssimas ferramentas de xilogravura. A pouca distância, um grupo de jovens mulheres vestidas com lindos quimonos de seda conversava. Ao meio-dia, nós entramos em um minúsculo restaurante para comer um "prato feito" de cavalinha grelhada, sashimi e sopa de missô. A comida, o ambiente acolhedor, o simpático casal de idosos nos servindo - tudo era tão familiar, tão confortável. Depois de uma década morando aqui, eu me acostumei à forma como é o Japão e aceitei o fato de que o país não irá mudar tão cedo. Sim, eu me preocupo com o futuro. E o futuro do Japão trará lições para todos nós. Na era da inteligência artificial, menos trabalhadores podem significar inovação. Os agricultores idosos podem ser substituídos por robôs inteligentes. Grande parte do país pode voltar a ser selvagem. Irá o Japão gradualmente cair para a irrelevância ou conseguirá se reinventar? Minha cabeça diz que, para progredir novamente, o país precisa abraçar as mudanças. Mas meu coração dói com a perspectiva de perder tudo aquilo que faz o Japão tão especial.
2023-01-25
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64388192
sociedade
A brasileira com fissura labiopalatina que posou para a Vogue e se tornou modelo de batom
Foi ainda na gestação que a mãe da maquiadora e modelo Raiza Bernardo Barbosa, de São Roque (São Paulo), descobriu que a filha nasceria com fissura labiopalatina, característica conhecida antigamente como lábio leporino. Sem saber exatamente o que era essa malformação, a mulher foi encaminhada para acompanhamento no Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/Centrinho) da USP, em Bauru, onde Raiza, de 26 anos, faz reabilitação e tratamento até hoje. (Veja mais abaixo o que é a fissura labiopalatina e o tratamento oferecido no Brasil.) "O meu diagnóstico foi uma surpresa, a minha mãe não sabia do que se tratava e na minha família não havia caso da fissura labiopalatina. Naquela época, não tinha internet, as informações eram mais escassas, minha mãe conta que teve que buscar informação tudo de forma manual, conversando com as pessoas e com os médicos", conta a maquiadora. Logo aos oito meses de vida, Raiza passou pela primeira cirurgia para corrigir o lábio. No total, ela já fez quatro procedimentos, incluindo um enxerto labial - os procedimentos fecharam a fissura no lábio, no céu da boca e repararam a malformação na gengiva. A fissura de Raiza é unilateral e afeta o nariz e a boca do lado esquerdo do rosto. Outras duas cirurgias ainda devem ser feitas. "Também coloquei um aparelho interno no ouvido esquerdo - por causa da malformação, tive perda da audição. Para terminar meu tratamento, ainda falta fazer uma cirurgia para reparar o meu nariz e outra para deslocar a mandíbula", acrescenta Raiza. Fim do Matérias recomendadas Já são mais de duas décadas de tratamento e acompanhamento com uma equipe multidisciplinar composta por diversos especialistas como fonoaudiólogo, dentistas, otorrinolaringologistas, psicólogos e cirurgiões plásticos. Raiza afirma que os procedimentos cirúrgicos e a recuperação nunca foram um problema. Porém, lidar com os olhares das pessoas e o preconceito foi algo que a fez por muito tempo tentar se esconder do mundo. Segundo a maquiadora, a adolescência foi a pior fase. Por ser vítima de bullying na escola, ela tentava cobrir a cicatriz e corrigir imperfeições causadas pela fissura labiopalatina com maquiagens e evitava até mesmo falar para que os outros alunos não fizessem piadas com sua voz, que tinha tom anasalado devido à malformação. "A minha infância foi bem tranquila, eu brincava, sorria, não tinha muito entendimento da situação e, para mim, era tudo normal. Já na adolescência foi quando eu conheci o preconceito. Ter que ir para escola era muito difícil porque eu queria me enquadrar no meio dos outros alunos, mas nem sempre conseguia, então evitava sair, conversar e tive um bloqueio psicológico onde eu nunca falava sobre a minha fissura, o assunto me machucava bastante", conta. Foi aos 21 anos que a maquiadora conta que passou a se aceitar novamente e então decidiu começar a falar sobre o assunto nas redes sociais. Além do seu perfil pessoal, ela criou a página Beleza Fissurada no Instagram, dedicada totalmente ao tema. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nas redes sociais, a maquiadora produz conteúdos sobre autoestima, empoderamento feminino e aborda a questão do padrão de beleza irreal imposto pela sociedade em geral. A maioria dos seguidores, cerca de 80%, são pessoas com fissura labiopalatina, e Raiza se tornou uma ativista da causa. "Hoje a fissura, para mim, é um propósito. Quando eu era adolescente, nunca tive uma pessoa que fosse fissurada para eu me inspirar, então eu tive que ser a minha própria inspiração. Por isso, busco falar do assunto mostrando as dificuldades e também que é possível ter uma vida normal", diz. E foi justamente através das redes sociais que Raiza foi ganhando espaço e também passou a fazer palestras sobre o tema. Durante uma ação social que foi como convidada, ela conheceu a modelo Isabel Hickman, que tem um filho que nasceu com a fissura, e foi indicada para ser a primeira mulher com a condição a fazer um ensaio fotográfico para a revista Vogue de Portugal. Após as fotos, publicadas na edição de dezembro, diversas portas se abriram para a maquiadora, que recebeu convites de marcas de maquiagem para propagandas, principalmente de batons. "Representar a causa, para mim, tem sido um legado. A gente precisa trazer mais informações sobre o tema, ainda existe uma carência muito grande para essas pessoas. É preciso desmistificar o assunto, trazer a verdade e não romantizar os desafios", finaliza. A fissura labiopalatina é a malformação craniofacial mais comum no nascimento, atingindo um a cada 650 bebês no Brasil. Durante a gestação, podem ocorrer falhas na formação facial, levando ao aparecimento da fissura labial (lábio aberto) e da fissura palatina ("céu da boca aberto"). Há dois tipos de fissuras e a distinção entre elas está ligada aos fatores que levam a sua ocorrência. As fissuras não sindrômicas - mais comuns, com 70% dos casos registrados -, têm origem multifatorial, ou seja, interações entre fatores ambientais e genéticos. Os fatores ambientais mais conhecidos que são de risco para as fissuras são: bebida alcoólica, cigarros e alguns medicamentos como corticoides e anticonvulsivantes, quando utilizados pela mãe no primeiro trimestre da gestação. Já as fissuras sindrômicas podem ser causadas por mutações gênicas e por alterações cromossômicas. "Já nos primeiros ultrassons, normalmente feitos aos três meses de gestação, é possível diagnosticar a presença das fissuras. Após o diagnóstico, a gestante precisa ser encaminhada para serviços especializados para receber a orientação de todos os cuidados que o bebê vai precisar receber após o nascimento", explica Daniela Franco Bueno, cirurgiã dentista, membro do corpo clínico do Hospital Municipal Infantil Menino Jesus e Hospital Sírio-Libanês. O Hospital Municipal Infantil Menino Jesus (HMIMJ), gerido pelo Instituto de Responsabilidade Social Sírio Libanês, é referência para os pacientes nascidos com fissuras labiopalatinas na capital paulista. Por meio do programa Mãe Paulistana, os bebês de maternidades públicas da cidade de São Paulo que nascem com a malformação são encaminhados para o HMIMJ, onde fazem o tratamento com a equipe multidisciplinar gratuitamente. O tratamento da fissura labiopalatina é complexo, envolve uma equipe multidisciplinar e se estende por grande parte da vida do paciente. Tudo é oferecido gratuitamente pelo SUS (Sistema Único de Saúde). O indicado é que logo nos primeiros meses de vida sejam colocados modeladores nasais e aparelhos ortopédicos funcionais intra-bucais, quando necessário, e então, entre 3 e 6 meses de idade, é realizada a cirurgia de queiloplastia (para fechar o lábio). "O acompanhamento deve começar na gestação porque essas crianças vão ter alguma dificuldade de alimentação, principalmente no caso de fissuras mais amplas, e a depender da extensão, pode comprometer a amamentação e alimentação desse bebê", explica o médico Cristiano Tonello, chefe do departamento Hospitalar do HRAC-USP (Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais da USP), referência no tratamento da fissura labiopalatina, no interior de São Paulo. Atualmente, cerca de 50 mil pessoas fazem acompanhamento no hospital pelo SUS. Com aproximadamente 18 meses, é realizada a palatoplastia (para fechar o palato) e, aproximadamente, entre 7 e 12 anos é realizado o enxerto ósseo alveolar - onde se tira o osso da crista ilíaca (bacia) e coloca para fechar o osso alveolar (osso embaixo da gengiva). Esse procedimento também pode ser realizado na fase adulta.
2023-01-25
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64343736
sociedade
BBB 23: relacionamentos abusivos não são exclusividade de 'mulheres frágeis', alerta especialista
No último domingo, o apresentador do Big Brother Brasil precisou dar um alerta a um dos participantes sobre seu comportamento no reality show. Tadeu Schmidt se dirigiu a Gabriel Tavares e pediu mais cautela ao modelo em seu relacionamento dentro do programa com a atriz Bruna Griphao. "Quem está envolvido em um relacionamento, talvez nem perceba, ache que é normal. Mas quem tá de fora consegue enxergar quando os limites estão prestes a serem gravemente ultrapassados", disse Schmidt, acrescentando que membros da casa consideravam o casal "tóxico". "Gabriel, em uma relação afetiva, certas coisas não podem ser ditas nem de brincadeira", avisou. O alerta veio depois de várias declarações agressivas do modelo de 24 anos, que despertaram acusações de abuso psicológico nas redes sociais. Em um dos episódios, após Bruna dizer que era o "homem da relação", ele respondeu de forma hostil: "Mas já já você vai tomar umas cotoveladas na boca". Em outro momento, Gabriel afirma que a atriz "parece uma sarna" por estar sempre ao seu lado. Fim do Matérias recomendadas Em diversas circunstâncias, porém, a artista rebate as agressões e questiona o modelo por suas atitudes. Por isso e por sua personalidade forte, muitos telespectadores do programa se surpreenderam com o fato de Bruna estar envolvida em um relacionamento abusivo. Mas segundo Daniela Pedroso, especialista em violência contra a mulher que trabalha na área há 25 anos, diferente do que muitos acreditam, não só mulheres frágeis e condescendentes podem ser vítimas de homens tóxicos. "É um mito que só mulheres frágeis ou que não são empoderadas podem sofrer um relacionamento abusivo. Na verdade, ele pode estar presente na vida de todas nós", diz a psicóloga que atende vítimas de violência. Segundo Pedroso, em casos como esses, o fato de uma mulher rebater as agressões de seu parceiro tampouco significa que ela não esteja em uma relação problemática e violenta. "Especialmente quando se trata de casais com mais condições econômicas ou poder social, a situação de abuso muitas vezes não vem à tona. A população desfavorecida tem as paredes de casa finas, enquanto no caso dos mais ricos a parede é grossa e não conseguimos escutar os gritos", explica, usando uma analogia. A especialista chama a atenção para um caso da juíza Viviane Vieira do Amaral, morta pelo próprio ex-marido no Rio de Janeiro em 2020 em um caso de violência doméstica e feminicídio. "Isso prova como o relacionamento abusivo está presente em todo lugar. Essa juíza conhecia a lei, trabalhava com casos de violência e mesmo assim infelizmente foi vítima". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em um relacionamento abusivo, nota-se a presença de pelo menos um destes tipos de violência: verbal, emocional, psicológica, física, sexual, financeira e tecnológica (esta vai desde controle velado das redes sociais da vítima até insistência em obter senhas pessoais, controle de conversas, curtidas e amizades online). Para caracterizá-lo, são levados em conta fatores como o sofrimento causado em uma pessoa, a frequência dos abusos, ciclos de agressão e escalonamento da violência. Além disso, nas relações abusivas costuma haver discrepância no poder de um em relação ao outro, ou seja, uma posição de desigualdade. Esse tipo de relacionamento segue alguns padrões e gera sentimentos recorrentes como dúvidas, confusão mental, ansiedade, insegurança e esperança de que o parceiro mude e os abusos cessem. "E infelizmente muitas vezes a mulher se sente desacreditada, se culpa pelo que está acontecendo", diz Daniela Pedroso. Segundo a especialista, as relações desse tipo ainda costumam seguir um padrão. "Geralmente começam de forma silenciosa e posteriormente seguem algumas fases", diz. A especialista explica que a primeira fase é a de tensão, quando começam os insultos e ameaças. A segunda é a de crise. "Em casos de violência, é quando começam os empurrões, socos e outras agressões". A terceira fase é a lua de mel. "É quando o homem muda o comportamento, pede desculpas e pode haver uma reconciliação. Em seguida, o ciclo recomeça." Uma em cada três mulheres já sofreu violência sexual ou física, segundo a ONU, que aponta que a maioria é praticada por parceiros. No Brasil, a lei Maria da Penha entrou em vigor em 2006 como uma tentativa de facilitar a punição de autores de violência doméstica. E desde 2021, o Código Penal inclui também o crime de violência psicológica contra a mulher. Mas as vítimas são sempre mulheres? Não necessariamente, mas na maioria das vezes. Diferentes pesquisas apontam que em mais de 80% dos casos o abusador é um homem e a vítima é uma mulher. Pedroso viu como positiva a atitude do Big Brother de alertar os participantes sobre o caso, pois além de despertar a consciência dos participantes, também aproveita a oportunidade para tocar no tema em rede nacional. "Muitas mulheres não percebem que estão vivendo uma relação abusiva e chamar a atenção para o problema coloca luz sobre um problema que nós, profissionais da saúde, por vezes só conseguimos abordar com um número limitado de pessoas", diz. A especialista ainda aconselha mulheres que tenham se dado conta de sua situação a procurar ajuda o quanto antes, pois é preciso fazer uma intervenção. "Hoje é muito mais simples buscar ajuda do que no passado. Existem diversos órgão públicos preparados para lidar com casos assim no Brasil", diz. Segundo Pedroso, as mulheres podem procurar as Delegacias de Defesa da Mulher, a Casa da Mulher Brasileira - um centro de atendimento humanizado e especializado no atendimento de violência doméstica - e até os serviços de saúde pública de seu município. Em casos mais graves, as vítimas ainda podem lançar mão da estratégia desenvolvida pela Campanha Sinal Vermelho, que aconselha as mulheres a irem a uma farmácia, drogaria, supermercado, hotel ou condomínio participante da ação e apresentar um X vermelho desenhado em uma das suas mãos a um dos atendentes do local, orientado a pedir ajuda à polícia. Para quem deseja denunciar um caso de abuso físico ou psicológico, a orientação é ligar para a polícia (190) em situações de emergência, como no momento em que uma vizinha está sofrendo violência. Se for para denunciar casos que não estão ocorrendo naquele exato momento, a orientação é entrar em contato com a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (Ligue 180), que é um serviço do governo federal, gratuito e que preserva o anonimato.
2023-01-24
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64388533
sociedade
As estratégias que prometem ajudar a ter 'força de vontade infinita'
Todos nós enfrentamos dias difíceis que parecem surgir para testar o nosso autocontrole. Digamos que você seja um barista, por exemplo, e alguns de seus clientes são particularmente grosseiros e exigentes, mas você consegue manter a elegância ao atendê-los. Ou você pode estar terminando um projeto importante e precisa ficar concentrado em silêncio, sem desviar sua atenção e sem distrações. Se você estiver de dieta, talvez você tenha passado as últimas horas resistindo ao pote de biscoitos. Em cada um desses casos, você fez uso da sua força de vontade - a capacidade de evitar tentações de curto prazo e ignorar pensamentos, impulsos ou sentimentos indesejados, como definem os psicólogos. Fim do Matérias recomendadas Aparentemente, algumas pessoas têm reservas de força de vontade muito maiores do que outras. Elas têm mais facilidade de controlar suas emoções, evitar a procrastinação e permanecer fiéis aos seus objetivos, sempre parecendo controlar com mão de ferro o seu comportamento. De fato, talvez você conheça alguns sortudos que, depois de um dia de trabalho duro, ainda encontram motivação para fazer algo produtivo, como exercícios físicos. Nossas reservas de autocontrole e concentração mental são aparentemente moldadas pela mentalidade. E estudos recentes sugerem estratégias poderosas para que qualquer pessoa consiga aumentar sua força de vontade, com imensos benefícios para a produtividade, saúde e felicidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Até pouco tempo atrás, a teoria psicológica predominante afirmava que a força de vontade seria como uma espécie de bateria. Você pode começar o dia com carga total, mas, sempre que precisa controlar seus pensamentos, comportamentos ou sentimentos, você gasta um pouco da energia daquela bateria. Sem a possibilidade de descansar e recarregar, esses recursos ficam perigosamente baixos, dificultando muito a capacidade de manter a paciência, de concentração e de resistir a tentações. Testes de laboratório aparentemente forneceram provas deste processo. Depois de pedir aos participantes que resistissem à tentação de comer biscoitos mantidos sobre uma mesa, por exemplo, eles exibiam menos persistência para resolver um problema matemático, pois suas reservas de força de vontade haviam se esgotado. Partindo do termo freudiano que designa a parte da mente que é responsável por controlar nossos impulsos, este processo é conhecido como "esgotamento do ego". As pessoas com forte autocontrole podem ter maiores reservas iniciais de força de vontade, mas até elas acabam se esgotando quando colocadas sob pressão. Mas, em 2010, a psicóloga Veronika Job publicou um estudo questionando as bases desta teoria. Ela apresentou evidências fascinantes de que o esgotamento do ego depende de crenças subjacentes das pessoas. Job é professora de psicologia da motivação da Universidade de Viena, na Áustria. Ela começou o estudo elaborando um questionário para que os participantes avaliassem uma série de afirmações, seguindo uma escala de 1 (concordo totalmente) a 6 (discordo totalmente). As questões incluíram: • Quando as situações que desafiam você com tentações se acumulam, fica cada vez mais difícil resistir a essas tentações. • A atividade mental intensa esgota os seus recursos e você precisa se reabastecer em seguida. e • Quando você acaba de resistir a uma forte tentação, você se sente fortalecido e pode suportar novas tentações. • Sua resistência mental alimenta a si própria. Mesmo depois de um esforço mental extenuante, você consegue continuar fazendo mais. Se você se identifica mais com as duas primeiras afirmações, considera-se que você tem uma visão "limitada" da força de vontade. Mas, se você concorda mais com as duas últimas afirmações, sua visão da força de vontade é considerada "ilimitada". Em seguida, Job forneceu aos participantes do estudo alguns testes padrão de laboratório para examinar sua concentração mental, considerando que a concentração depende das nossas reservas de força de vontade. Job concluiu que o desempenho das pessoas com mentalidade limitada costuma ser exatamente igual ao que seria previsto pela teoria do esgotamento do ego. Depois de realizarem uma tarefa que exigia intensa concentração (como a correção trabalhosa de um texto maçante), elas acharam muito mais difícil prestar atenção em uma atividade subsequente do que se tivessem descansado antes. Já as pessoas com visão ilimitada não demonstravam sinais de esgotamento do ego. Elas não exibiam declínio da sua concentração mental depois de realizarem uma atividade mentalmente exaustiva. Aparentemente, a mentalidade dos participantes do estudo sobre a força de vontade era uma profecia autorrealizável. Se eles acreditassem que sua força de vontade se esgotava facilmente, sua capacidade de resistir a tentações e distrações se dissolvia com rapidez. Mas, se eles acreditassem que "a resistência mental se autoalimenta", era exatamente o que acontecia. Job rapidamente reproduziu estes resultados em outros contextos. Trabalhando em conjunto com Krishna Savani, da Universidade Tecnológica Nanyang, em Singapura, ela demonstrou que as crenças sobre a força de vontade aparentemente variam de um país para outro. Eles concluíram que a mentalidade ilimitada é mais comum entre estudantes indianos do que nos Estados Unidos, o que foi refletido em exames da resistência mental. Nos últimos anos, alguns cientistas questionaram a confiabilidade dos testes de laboratório de esgotamento do ego. Mas Job também demonstrou que a forma como pessoas pensam sobre a força de vontade apresenta relação com muitos cenários da vida real. Ela pediu a estudantes universitários que preenchessem questionários sobre suas atividades, duas vezes por dia, ao longo de dois períodos semanais não consecutivos. E, como se poderia esperar, em alguns dias as demandas eram maiores que em outros, gerando sentimentos de exaustão. A maioria dos participantes se recuperava até certo ponto durante a noite, mas os que tinham mentalidade ilimitada realmente verificavam aumento da sua produtividade no dia seguinte, como se tivessem sido energizados pelo aumento da pressão. Mais uma vez, parece ter se tornado realidade a ideia de que "a resistência mental alimenta a si própria". Outros estudos demonstraram que a forma de abordar a força de vontade pode prever os níveis de procrastinação dos estudantes às vésperas de exames e suas notas finais. Os participantes com visão ilimitada desperdiçavam menos tempo. E, ao enfrentar a alta pressão das suas aulas, os estudantes com visão ilimitada também apresentaram melhor capacidade de manter o autocontrole em outras áreas da vida. Eles demonstravam menos propensão a comer bobagens ou gastar por impulso, por exemplo. Já os que acreditavam que sua força de vontade se esgotava facilmente com seu trabalho eram mais propensos a cometer esses vícios, talvez porque sentissem que suas reservas de autocontrole já haviam sido esgotadas pelo trabalho acadêmico. A influência da mentalidade sobre a força de vontade também pode estender-se a muitos domínios, como os exercícios físicos. Navin Kaushal, professor de ciências da saúde da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, e seus colegas demonstraram que a mentalidade pode influenciar os hábitos de exercícios das pessoas. Aquelas que têm crenças ilimitadas sobre a força de vontade, por exemplo, têm mais facilidade de reunir a motivação para se exercitar. E um estudo da professora de psicologia Zoë Francis, da Universidade de Fraser Valley, no Canadá, chegou a resultados surpreendentemente similares. Depois de acompanhar mais de 300 participantes ao longo de três semanas, ela concluiu que pessoas com mentalidade ilimitada apresentam maior disposição para exercitar-se e menos propensão a comer bobagens do que as pessoas com mentalidade limitada. É algo revelador que essas diferenças sejam particularmente pronunciadas à noite, quando as exigências das tarefas diárias começaram a cobrar a conta daqueles que acreditam que seu autocontrole pode esgotar-se facilmente. Se você já tiver mentalidade ilimitada sobre a força de vontade, estas conclusões podem deixar você satisfeito. Mas o que podemos fazer se vivemos acreditando que nossas reservas de autocontrole se esgotam facilmente? Os estudos de Job indicam que simplesmente aprender sobre estes estudos científicos de ponta, lendo textos curtos e acessíveis, pode ajudar a mudar a crença das pessoas, pelo menos no curto prazo. Aparentemente, conhecimento é poder. Se isso for verdade, a simples leitura desta reportagem pode já ter começado a fortalecer sua resistência mental. Você pode acelerar este processo contando a outras pessoas o que você aprendeu. Pesquisas indicam que compartilhar informações ajuda a consolidar a nossa própria mudança de mentalidade. Este fenômeno é conhecido como o efeito "falar é acreditar" e também ajuda a disseminar o comportamento positivo entre as pessoas. As lições sobre a natureza ilimitada da força de vontade podem ser aprendidas desde a infância. Pesquisadores da Universidade Stanford e da Universidade da Pensilvânia, ambas nos Estados Unidos, elaboraram recentemente um livro infantil para ensinar às crianças em idade pré-escolar a ideia de que exercitar a força de vontade pode ser energizante, e não exaustivo, e que o autocontrole pode aumentar quanto mais o praticarmos. As crianças que ouviram a história demonstraram maior autocontrole em um teste de "gratificação postergada" que foi aplicado em seguida, em comparação com seus colegas que haviam ouvido uma história diferente. O teste ofereceu a elas a possibilidade de dispensar um pequeno presente no momento para receber um brinde maior posteriormente. Uma estratégia útil para mudar sua mentalidade pode ser relembrar uma ocasião em que você trabalhou em uma tarefa mentalmente desgastante pelo puro prazer da atividade. Pode ter sido uma tarefa no trabalho, por exemplo, que outras pessoas aparentemente achavam difícil, mas que você achou gratificante. Ou, talvez, um hobby, como aprender uma nova música no piano, que exige intensa concentração, mas parece simples para você. Um estudo recente concluiu que praticar este tipo de recordação altera naturalmente as crenças das pessoas em direção à mentalidade ilimitada, já que elas conseguem ver provas da sua própria resistência mental. Para obter mais evidências, você pode começar com pequenos testes de autocontrole que tragam uma mudança desejada na sua vida - como evitar comer bobagens por duas semanas, afastar-se das redes sociais durante o trabalho ou demonstrar mais paciência com um ente querido irritante, por exemplo. Depois de provar a si próprio que a sua força de vontade pode aumentar, pode ficar mais fácil resistir a outros tipos de tentação ou distrações. Você não pode esperar que aconteça um milagre imediatamente. Mas, com perseverança, você deve observar sua mudança de mentalidade e, com ela, o aumento da capacidade de controlar seus pensamentos, sensações e comportamento. Assim, suas ações irão impulsionar você rumo aos seus objetivos.
2023-01-24
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-64333091
sociedade
'Alugo meu útero': como negócio das barrigas de aluguel cresce na Colômbia
Encontrar uma barriga de aluguel na Colômbia é um processo simples. Trata-se de uma prática relativamente comum no país — com muitas mulheres jovens recorrendo a esse tipo de gestação para sobreviver. "Sou de Bogotá, alugo meu ventre", diz um anúncio em um grupo público do Facebook de uma jovem colombiana — e sua mensagem não é incomum. Mery — uma venezuelana de 22 anos que agora mora na Colômbia — é uma das milhares de mulheres que oferecem seu útero para futuros pais em toda a América do Sul há meses. Como a maioria das mulheres que anunciam nas plataformas, seu motivo é principalmente financeiro. Fim do Matérias recomendadas "Comecei quando me separei do meu marido. Ficamos juntos por quase cinco anos e temos dois filhos. Então, estou fazendo isso para ajudar um casal a conceber, mas mais para me ajudar a pagar as contas." Mery ouviu pela primeira vez sobre a barriga de aluguel em um podcast, mas não pensou muito nisso até que sua situação financeira mudou. Em meio ao aumento do custo de vida e com medo de não conseguir mais pagar as contas, ela passou a cogitar a possibilidade de alugar seu ventre. Algumas mulheres cobram o equivalente a R$ 60 mil e outras, um terço disso, cerca de R$ 20 mil. Mery não sabia quanto deveria cobrar. Ela viu anúncios que variavam entre R$ 40 mil e R$ 200 mil, então finalmente decidiu alugar sua barriga por R$ 50 mil a R$ 60 mil. "Esse dinheiro me ajudaria a criar meus filhos, agora que estou sozinha", conta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lucía Franco, uma jornalista colombiana que vem pesquisando a fundo esse mercado, diz ter ficado chocada ao descobrir como é fácil encontrar indivíduos alugando ou buscando uma barriga de aluguel no país. "Não sabia que funcionava tão abertamente. Foi muito chocante encontrar tantos anúncios em redes sociais como o Facebook. São mulheres muito pobres, que alugam seus úteros porque essa é a única maneira para elas de se sustentar. E por valores bem baixos", diz. A barriga de aluguel, termo popular para a "maternidade por substituição" ou "gestação de substituição", é uma prática legalizada na Colômbia, embora não seja regulamentada. No Brasil, ela é permitida, desde que não haja pagamento pela gestação ou oferecimento de qualquer vínculo comercial. Caso envolva dinheiro, a barriga de aluguel é considerada criminosa — o argumento é de que, constitucionalmente, é proibido no país trocar órgãos ou tecidos por dinheiro. A prática pode culminar em penas de três a oito anos de prisão, além de multa. As punições são aplicáveis aos pais ou à mulher que gerou a criança. No ano passado, o Conselho Federal de Medicina (CFM) flexibilizou algumas das regras, não sendo mais obrigatório, por exemplo, que a barriga solidária tenha grau de parentesco com o casal ou com a mulher que pretende ser mãe. Outras normas não foram alteradas: a mulher que cede o útero continua não podendo ser a doadora dos óvulos ou de embriões, entre outras. Em nota enviada à BBC, o Ministério da Saúde e Proteção Social da Colômbia admite haver um vazio legal. "O governo está atualmente trabalhando em um projeto de lei para controlar as barrigas de aluguel uterinas", informou o órgão. A pasta reconhece que as próprias clínicas de fertilidade acabam ditando as regras devido à ausência de um arcabouço regulatório. Não há, por exemplo, registros oficiais do número de barrigas de aluguel ou de quantas vezes o procedimento foi realizado. Franco diz que essa falta de regulamentação põe em risco tanto a mãe quanto o bebê — deixando as mulheres que oferecem barrigas de aluguel vulneráveis a abusos dos direitos humanos. Em declarações ao jornal El País, o ex-deputado Santiago Valencia disse que as barrigas de aluguel são muitas vezes maltratadas e trancadas em apartamentos alugados pelas agências para controlá-las durante toda a gravidez. A BBC entrou em contato com clínicas envolvidas na prática, mas não recebeu resposta de nenhuma delas. Proibida em muitos países europeus, a barriga de aluguel acaba movimentando um mercado de agências e clínicas na Colômbia; os principais clientes são estrangeiros muitas vezes interessados em alugar um ventre com a menor burocracia possível. Existem duas opções de barriga de aluguel na Colômbia. A mulher pode não ter relação genética com o embrião — carrega apenas o óvulo fertilizado — ou pode doar o próprio óvulo e gestar o embrião por meio de inseminação artificial. Quando uma mãe de aluguel dá à luz na Colômbia, seu nome deve constar na certidão de nascimento. No entanto, subornos são comuns. Clínicas e médicos acabam recebendo dinheiro para registrar os nomes dos pais que pagaram pelo procedimento. Dessa forma, o nome da mãe biológica não aparece na certidão de nascimento ou em qualquer registro. Questionado sobre as supostas lacunas burocráticas nos registros das certidões de nascimento, o Ministério da Saúde e da Proteção Social admitiu tratar-se de uma preocupação grande do governo. "Os dados que vão para a certidão de nascimento devem corresponder à pessoa que concluiu a gravidez e deu à luz, em coerência com o regulamento dos cuidados materno perinatal." Mery também está pensando em subornar a equipe médica. Isso torna o processo mais barato, fácil e rápido para o casal que decide alugar o ventre e levar o recém-nascido de volta para o seu país natal, pois não precisa passar pelo processo normal de adoção, aumentando, portanto, suas chances de encontrar clientes. Ela não se importa de onde são os pais, mas quer oferecer seus serviços de barriga de aluguel a um casal e "ajudar alguém que realmente quer e lutou por isso". Encontrar ofertas não é difícil; há muitas opções, com cada grupo do Facebook apresentando uma região ou solicitação específica. "Alugo meu ventre. 22 anos. Sem filhos". "Quero ajudar uma família a realizar seus sonhos, sou saudável, sem vícios". "Clientes do Equador, por favor, enviem-me uma mensagem inbox... de preferência se puderem viajar para os EUA." Estes são alguns dos anúncios com os quais a reportagem da BBC se deparou online. Algumas mulheres postam fotos de seus filhos para mostrar as características que os pais em potencial podem estar procurando: "Minha filha tem olhos azuis claros. Mais fotos disponíveis." Nos últimos anos, houve esforços para regulamentar esse setor. Membros do Congresso de diferentes partidos políticos, como o Centro Democrático, apresentaram um total de 16 projetos de lei ao Congresso para tornar a barriga de aluguel legal apenas quando não houver fins lucrativos — como no Brasil ou nos Estados Unidos. Nenhum dessas propostas avançou. Em setembro de 2022, o Tribunal Constitucional da Colômbia determinou que o Congresso regulamentasse a barriga de aluguel, dando ao Congresso um prazo de seis meses para isso. Até o momento, não houve progresso, embora um projeto de lei esteja em tramitação. O objetivo da lei "é definir os parâmetros que regulam a barriga de aluguel para gravidez, entre outros, o atendimento e o processo clínico, o tipo de acordo entre as partes, as relações filiais e a proteção da barriga de aluguel [...]". Franco argumenta que regular esse setor problemático é o primeiro e principal passo para lidar com seu crescimento acelerado. Em sua visão, a regulamentação também protegerá as mulheres vulneráveis que estão sendo encorajadas a alugar seu ventre. A prática não é restrita à Colômbia. Aqueles que buscam barrigas de aluguel em países onde a prática é ilegal enfrentam inúmeras barreiras, mas mesmo onde ela é legalizada, há desafios como levar o recém-nascido de volta para casa. Na Colômbia, esse processo é mais fácil, pois existem poucos impedimentos legais, e os nomes dos futuros pais costumam constar nas certidões de nascimento. A barriga de aluguel pode ser gratificante para mulheres que buscam ajudar pessoas incapazes de conceber seus próprios filhos. Muitas fazem isso para realização pessoal — e não visando dinheiro. Daniela, do Chile, por exemplo, diz estar alugando seu ventre "para ajudar uma família a realizar o sonho de ser mãe. A maternidade é muito especial e eu quero fazer parte disso". Mas na Colômbia, Mery, assim como milhares de mulheres, a barriga de aluguel se tornou sinônimo de sobrevivência financeira.
2023-01-24
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64348575
sociedade
Medo de represália inibia denúncias sobre crise dos yanomami, diz médica
A pediatra Priscila Tatiana Gonçalves, de Taubaté (SP), realiza atendimentos com indígenas há quase uma década. Ela é uma das voluntárias da ONG Expedicionários da Saúde (EDS), que desde 2004 planeja expedições para realizar consultas, exames e cirurgias em territórios indígenas espalhados pela Amazônia. Em novembro de 2022, a médica integrou uma comitiva que realizou uma ação emergencial de saúde no território yanomami. Ao longo de dez dias, ela integrou uma equipe com outro colega médico e dois enfermeiros que visitou cinco unidades de saúde indígena (Casai-Boa Vista, Xitei, Surucucu, Missão Catrimani e Demini), fez atendimentos médicos e distribuiu insumos e medicamentos básicos. Em entrevista à BBC News Brasil, Gonçalves disse que o cenário já era "terrível" e "absurdo". Ela também explicou que a crise só ganhou uma proporção maior agora porque há uma "abertura para diálogo" e menos risco de represálias. Fim do Matérias recomendadas "Até recentemente, algumas enfermeiras que atuam nesses locais compartilhavam histórias de que sofriam vários tipos de repressão. Alguns profissionais de saúde que trabalhavam lá há anos foram demitidos desde que a coordenação do serviço foi trocada. E os coordenadores que foram nomeados não tinham nenhuma afinidade com o assunto, nunca trabalharam com saúde indígena", relatou. A pediatra também destacou alguns casos marcantes que marcaram os dez dias de trabalho — como a morte de uma criança indígena com malária cerebral que estava numa região remota, sem acesso a qualquer tratamento. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela ainda ponderou sobre a necessidade de suporte aos indígenas assim que os garimpeiros forem expulsos da região. "Temos que pensar como ficará a situação desses indígenas a partir de agora. O que vai acontecer se todos os garimpeiros forem retirados dali de uma hora para outra? Muitos jovens estão envolvidos nesse trabalho. [...] Num primeiro momento, a saída dos garimpos será ruim para alguns. Porque os indígenas já não têm nada e, quando sair esse garimpeiro que dá saco de arroz e espingarda, vai demorar um certo tempo até eles conseguirem voltar ao modo de vida que tinham antes", aponta. Confira os principais trechos da entrevista a seguir. BBC News Brasil - Como a senhora teve contato com os yanomami? Priscila Tatiana Gonçalves - Eu participo de expedições da EDS desde 2014 e 2015. As expedições são mais voltadas para a área cirúrgica, mas também temos uma parte clínica. Até porque nós vamos para territórios onde muitas vezes não existem médicos fazendo atendimento clínico. Normalmente, as equipes de saúde nesses lugares são formadas por enfermeiros e técnicos de enfermagem. Então, funcionamos como um complemento à expedição. Em relação aos yanomami especificamente, nós já estávamos vendo a situação piorar de forma muito assustadora nos últimos anos. Foi por isso que fomos até lá. Normalmente, nós sempre ouvimos as lideranças locais, com quem a EDS tem um contato muito próximo por causa do vínculo que foi criado ao longo de todos esses anos. Numa das últimas expedições, fomos até a Casa de Saúde Indígena Yanomami, em Boa Vista, e identificamos um cenário que já era terrível. Era exatamente o que veríamos pouco depois, nas denúncias que ganharam o noticiário nos últimos dias. Depois disso, começamos a entrar em contato com as lideranças, para conseguirmos fazer as entradas nessas regiões específicas, que estavam sem atendimento. E é muito difícil chegar até lá. Nessa região onde vivem os yanomami, sabíamos que eles não estavam recebendo as medicações. Também tínhamos ciência de que entrar ali era um risco para nós mesmos. Porque estávamos num local sem acesso a água e luz, em que precisávamos dormir dentro dos centros de saúde, cercados pelo garimpo. E é muito difícil falar sobre o que vimos lá. A situação era absurda. Voltamos já pensando em um plano de ação, tentando contato com os Médicos Sem Fronteiras e a Unicef. O déficit nutricional era gritante. Crianças e idosos estavam muito desnutridos. Praticamente todos estavam nessa condição. E é curioso, porque há áreas dentro do território yanomami onde praticamente não há desnutrição. Fomos, por exemplo, para uma região chamada Demini e ali as crianças estão saudáveis, não tem malária, nem garimpo. Então vimos situações completamente diferentes dentro de um mesmo território, uma mesma população. E não há justificativa para tudo o que está acontecendo. Falta medicamento, falta assistência de saúde. BBC News Brasil - Mas a senhora teve contatos anteriores com os yanomami? A situação era diferente em outras situações? Gonçalves - Sim, geralmente a logística é um pouco diferente quando vamos para alguma área onde os yanomami estão próximos. Nós vamos até eles e fazemos uma triagem, até pelo fato de ser uma comunidade coesa e não ter muito contato com outros grupos. Nós fazemos então o atendimento deles, muitas vezes até antes da expedição começar. BBC News Brasil - Mas se o problema com os yanomami já acontece há alguns anos, por que ele ganhou essa dimensão nacional só agora? A situação de fato piorou recentemente ou ela foi sempre ruim? Gonçalves - A situação é completamente diferente nas regiões de serra, pois os yanomami que habitam esses locais já têm uma dificuldade maior de obter alimentos. O que vimos recentemente, e está muito claro em relatórios de outras instituições, como o Instituto Socioambiental, é o avanço das áreas de garimpo. Nós descemos nas mesmas pistas usadas pelos garimpeiros e eles estavam o tempo todo com a gente. Outra coisa que observamos foi a contaminação da água. As mulheres yanomami costumam passar o dia coletando pequenos crustáceos em igarapés, que são uma fonte importante de proteína. Outras fontes de proteína são a caça e a pesca. E dava pra ver que eles simplesmente não tinham mais acesso a isso. Ou seja, não tinham como obter os tipos de proteína mais comuns da dieta deles. Mesmo as frutas estavam diferentes. Eles consomem o jambo, que é uma fruta grande. Nessa última entrada, vimos indígenas comendo o fruto pequeno, ainda verde, porque não tinham outras opções de alimento. As crianças que atendemos estavam muito desnutridas e pareciam estar há anos sem receber nenhum tipo de medicamento, como os vermífugos. Algumas eliminavam vermes pela boca. Outras tinham o abdômen muito amplo, um sinal claro de verminose, e as demais partes do corpo muito emagrecidas, num claro sinal de desnutrição. Numa situação dessas, qualquer problema de diarreia ou pneumonia pode levar a óbito em poucos dias. Ou seja, as crianças das regiões de garimpo eram muito diferentes de qualquer indígena de outras áreas. A diferença é muito gritante. Quando chegamos, olhamos aquilo e ficamos sem saber por onde começar. Sabíamos que a situação era grave. Sabíamos que as crianças precisavam sair dali para fazer uma recuperação nutricional numa clínica. Mas isso era impossível, não conseguiríamos remover todos aqueles jovens para deixá-los 30 ou 40 dias internados num outro lugar. Em outros territórios indígenas, até vemos quadros de desnutrição. Mas eles são agudos, provocados por uma deficiência nutricional específica, porque faltou algum alimento temporariamente. Em certas regiões yanomami, o problema era geral. Vimos desnutrição, casos de malária sem tratamento, quadros com diarreia e pneumonia. E o pior de tudo é que todas são doenças com tratamento. Dava pra ver que as crianças estavam tristes, quando o estado normal delas é de alegria, de brincar o tempo todo, de interagir com os outros. BBC News Brasil - Mas quantas crianças eram acometidas por esse quadro que a senhora descreveu? Qual a proporção de afetados em relação ao tamanho da população? Gonçalves - Para você ter uma ideia, visitamos regiões com cerca de 150 indígenas, dos quais 40 eram crianças. Dessas, ao redor de 30 se encontravam num estado de desnutrição grave e as outras 10 estavam em vias de iniciar um quadro desses. Esses não são números exatos, mas dão uma ideia do tamanho do problema. Um dos enfermeiros que estava com a gente relatou que foi para o Haiti em 2010. Naquela catástrofe, as pessoas andavam pelas ruas sem rumo. E ali, nessa região yanomami, a sensação era a mesma. Estávamos diante da catástrofe de toda uma população. A região do Surucucu conta com um centro de saúde em que há um médico. E comunidades inteiras vão para lá, após caminharem por quatro, cinco ou seis dias. Eles preferem ficar perto desse posto porque sabem que ali há a possibilidade de comer e receber tratamento. Eu nunca estive num campo de refugiados de guerra, mas acredito que a situação que vimos era similar. BBC News Brasil - Mas esse é um problema que se acentuou nos últimos anos? Ou é algo que já se arrasta por décadas? Gonçalves - Eu não consigo contabilizar exatamente isso, mas o que vimos nesses últimos quatro anos foi o fechamento de muitos dos centros de saúde da região. Alguns deles, inclusive, foram convertidos em áreas de garimpo. Os garimpeiros tomaram conta desses centros, a ponto de os profissionais de saúde não conseguirem mais entrar ali. Ou seja, a população local deixou de ter acesso às consultas de rotina e à vacinação. Fora que, diante de um problema de saúde grave, você não consegue transferir a criança ou o adulto para um centro mais capacitado. Outro ponto é que as medicações não chegavam. Na entrada que fizemos no final de 2022, compramos remédios contra verminoses. O Ministério da Saúde tem alguns protocolos que determinam a aplicação desses remédios de tempos em tempos. Pelo menos uma vez por ano, você oferece esse tratamento para eliminar os vermes daquela população. Isso é importante para que as crianças consigam ter um desenvolvimento nutricional adequado. Agora, se ela tem uma verminose importante, esse é mais um motivo para que tenha uma perda de desenvolvimento. Vimos que todas aquelas crianças estavam sem receber a medicação há anos. Se você olhar as listas do Ministério da Saúde, há informação de que o remédio foi comprado e entregue. Mas ele nunca chegou até lá. BBC News Brasil - Na visão da senhora, o que levou a esse cenário? Como a situação chegou a esse ponto? Gonçalves - Eu não sei. Nesses últimos quatro anos, a EDS recebeu muitos pedidos de socorro dos yanomami. Nós já fizemos expedições lá, então eles conheciam nosso trabalho e sabiam que chegamos com uma estrutura, com a possibilidade de fazer tratamentos médicos e prover alimentos na medida do possível. Resolvemos ir até lá com o auxílio das lideranças locais, para ver se como estava essa região do Surucucu. Conversamos com agentes de saúde indígena, enfermeiros e técnicos de enfermagem que trabalham no local há 10 ou 15 anos, e eles disseram que nunca viram algo assim. Outra coisa que chamou nossa atenção aconteceu na Casai Yanomami, que fica em Boa Vista. Vimos dezenas de famílias inteiras que estavam ali abandonadas. Por que esses indivíduos estavam ali? Não fazia o menor sentido. Eles chegaram lá para fazer algum atendimento na cidade e receberam a recomendação de suporte nutricional. Só que eles estavam lá por um ano, sem nenhuma perspectiva de voltar para a comunidade deles. Não fazia sentido do ponto de saúde estarem ali, pois já deveriam ter recebido alta há tempos. BBC News Brasil - A senhora mencionou a falta de autorização e suporte do Governo Federal. Existia algum bloqueio em falar sobre a crise de saúde dos yanomami? Se sim, isso contribuiu para que o assunto só ganhasse uma proporção maior agora, com a transição de governos? Gonçalves - Eu acho que as próprias mudanças recentes nas coordenadorias de saúde indígena e no Ministério da Saúde facilitaram isso, pois abrem o diálogo e tentam fazer uma união. Porque esse é um problema que ninguém conseguirá resolver sozinho. Precisamos de uma frente. Essas populações conseguem viver muito bem. Basta a gente não atrapalhar. Agora, eles estão nessa situação de risco, então é uma obrigação nossa de pelo menos ajudá-los a sair dessa urgência. Acho que a gente pode falar agora, porque sabemos que eles não vão sofrer represálias. Até recentemente, algumas enfermeiras que atuam nesses locais compartilhavam histórias de que sofriam vários tipos de repressão. Alguns profissionais de saúde que trabalhavam lá há anos foram demitidos desde que a coordenação do serviço foi trocada. E os coordenadores que foram nomeados não tinham nenhuma afinidade com o assunto, nunca trabalharam com saúde indígena BBC News Brasil - Durante a última entrada no território yanomami, a senhora testemunhou alguma história que chamou mais a sua atenção? Gonçalves - Sim, atendemos uma criança com malária cerebral [complicação da infecção marcada por febre alta, dor de cabeça, sonolência, delírio, confusão, convulsões e coma]. Ela provavelmente estava malária e começou a ter convulsões. O problema era que só tínhamos o contato pelo rádio, porque não conseguimos chegar aonde ela estava. Passamos a madrugada toda em contato pelo rádio, falando com o técnico de enfermagem que estava lá. Mas ele não tinha nenhum remédio para convulsão. Ela também não tinha iniciado o tratamento de malária, porque esse remédio também estava em falta. Ficamos em contato pelo rádio, mas a situação era precária. A antena não funcionava direito. Então ficava uma pessoa segurando a antena, e outra falando pelo aparelho. Passamos a madrugada toda tentando chamar o socorro aéreo, para que ele fosse até a comunidade para resgatar essa criança. No final, a criança faleceu. Outra história que nos marcou foi a de uma criança que estava provavelmente com infecção respiratória. Felizmente, ela conseguiu ser levada até onde estávamos. Lá, tínhamos energia elétrica e um pequeno gerador para fazer a oxigenação. Teve um momento, também de madrugada, que a luz acabou e ficamos contando as horas para chegar o socorro aéreo. Felizmente conseguimos transferi-la a tempo. Na maioria das vezes, essas situações são evitáveis. O mínimo que esperamos é ter oxigênio, água e medicações como analgésicos e antibióticos. Pelo menos, assim conseguimos estabilizar o quadro e aliviar o sofrimento enquanto não chega o transporte para um hospital. Para piorar, muitas dessas situações estavam controladas no passado. A malária, por exemplo, estava praticamente eliminada dessa região. Não tínhamos quadros de desnutrição dessa gravidade. E tudo piorou de forma absurda em poucos anos. É algo muito difícil de entender e de falar. Eu nunca imaginei que veria uma coisa dessas. BBC News Brasil - Do ponto de vista técnico, como todas essas questões engatilhadas a partir do garimpo — como a malária, a desnutrição e a falta de assistência em saúde — afetam a saúde das crianças? Gonçalves - A falta de um aporte nutricional adequado faz com que a criança sofra com o agravamento de várias outras doenças. Além disso, a desnutrição impede o desenvolvimento do cérebro e do corpo. E foi o que vimos nesta última entrada que fizemos. As famílias não tinham mais roças, frutas para consumo, pesca, caça ou crustáceos. Isso porque as comunidades geralmente ficam próximas de uma fonte de água, como um rio ou um igarapé. Só que o garimpo se instalou junto das aldeias. Vimos igarapés completamente degradados, com água amarela, com manchas de contaminação. Naquela água, não existem mais condições de vida para os peixes. Para completar, a presença do garimpo afasta a caça. Os garimpeiros usam helicópteros e outras máquinas grandes e barulhentas. Isso assusta os animais, que vão para outros lugares. Todas essas mudanças levam, inclusive, a confrontos entre os indígenas. Porque há grupos que são mais favoráveis aos garimpeiros, enquanto outros são contra. Cheguei a ver crianças pequenas com espingardas nas mãos. Essas armas eram trocadas por trabalho. Elas ficavam o dia todo recolhendo cassiterita [um tipo de minério]. Eram quilos e quilos. Esse material era colocado em sacolas para depois ser recolhido por um helicóptero. Esse trabalho é pago com sacos de arroz ou pequenas espingardas. BBC News Brasil - Vocês sofreram alguma ameaça de garimpeiros enquanto estiveram por lá? Gonçalves - Nós tínhamos contato com eles o tempo todo. Durante o dia inteiro, ouvíamos a chegada dos helicópteros dos garimpeiros. Não sei quantificar com exatidão, mas era uma nova aeronave subindo e descendo a cada duas horas mais ou menos. Foi aí que percebemos que estávamos trabalhando numa situação de risco. De vez em quando, ouvíamos alguns tiros. Quando perguntávamos para os indígenas que estavam por perto, eles diziam que era briga. Também temos que pensar como ficará a situação desses indígenas a partir de agora. O que vai acontecer se todos os garimpeiros forem retirados dali de uma hora para outra? Muitos jovens estão envolvidos nesse trabalho de garimpo, de recolher a cassiterita. Num primeiro momento, a saída dos garimpeiros será ruim. Porque eles já não têm nada. Porém, quando esse garimpeiro, que dá saco de arroz e espingarda, for embora, vai demorar um certo tempo até conseguirem voltar ao modo de vida deles. Até esse período de adaptação, eles não terão o alimento. E já não têm saúde. Muitos indígenas com quem conversamos sempre falavam que o mais importante de tudo é a saúde. E eles precisarão de algum suporte até que decidam como vai ser a vida depois. Eles têm essa autonomia e esse direito. Eles sabem exatamente o que querem. Basta não atrapalharmos. Tivemos no passado outras comunidades invadidas pelo garimpo que foram desestruturadas e depois conseguiram restabelecer os modos de vida tradicionais. Mas eles precisarão de ajuda neste período de transição em que passarão a viver sem os garimpeiros.
2023-01-23
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64381594
sociedade
A nova ofensiva de Putin contra a comunidade LGBT da Rússia
"Eu sou a única drag queen monstro na Rússia", Danya me diz orgulhosa enquanto passa uma maquiagem branca fantasmagórica na frente do espelho. Estamos sentados na cozinha dele, onde uma bandeira de arco-íris decora a parede. A performance do jovem de 22 anos tem como tema o terror — pense em uma drag de Halloween. Ele se apresentava regularmente em uma boate queer em São Petersburgo chamada Gender Blender. Mas seus shows foram cancelados depois que uma nova lei anti-LGBT foi aprovada pelo Parlamento russo em dezembro. O trabalho de Danya praticamente acabou. "De acordo com a lei, é proibido fazer o que estamos fazendo", ele conta. "Estamos muito mais ansiosos agora. Os riscos são muito maiores." A nova lei proíbe a chamada "propaganda de relações sexuais não tradicionais" entre todas as faixas etárias. Qualquer um pego cometendo essa "infração" pode ser multado em até 400 mil rublos (cerca de R$ 30 mil), com multas bem mais altas para organizações ou jornalistas. Fim do Matérias recomendadas Desde que a lei foi aprovada, Danya decidiu deixar a Rússia e se mudar para a França. Ele diz que viver em um país onde é ilegal "ser você mesmo" o deixa com medo. "Minhas mãos estão atadas. Simplesmente não tenho mais escolha. Ou saio do país ou fico aqui e espero que piore ainda mais. O que está acontecendo agora — é muito assustador." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O projeto de lei começou sua jornada pelo sistema legislativo russo no verão passado, pouco depois de Moscou lançar sua chamada "operação militar especial". E não foi por acaso: Vladimir Putin diz que a Rússia não está apenas lutando contra a Ucrânia no campo de batalha, mas também contra os valores "ocidentais". Durante um discurso no Kremlin para marcar a anexação ilegal de quatro regiões ucranianas, o presidente atacou o Ocidente e os direitos LGBT, chamando-os de "puro satanismo". O ativista LGBT Piotr Voznesensky afirma que a relação com a guerra na Ucrânia é "óbvia". Em seu apartamento no centro de São Petersburgo, ele me mostra as peças de seu efêmero museu LGBT — o primeiro da Rússia. Ele abriu a exposição ao público em setembro do ano passado, mas teve que fechá-la novamente com a aprovação da nova lei. Para ele, a lei é uma tentativa do Kremlin de desviar a atenção do público dos reveses no campo de batalha. "A guerra está perdida, a economia está destruída, e as autoridades precisam mostrar às pessoas pelo que elas arriscaram suas vidas", avalia Piotr. "E a melhor ideia que eles tiveram é encontrar um novo bode expiatório — a comunidade LGBT". Esta não é a primeira lei a impor restrições à comunidade queer da Rússia. Dez anos atrás, foi aprovado um projeto de lei proibindo a chamada "propaganda gay" em relação às crianças. Grupos de direitos humanos afirmam que a mesma foi seguida pelo aumento de ataques homofóbicos violentos na Rússia. Olga Baranova, do Centro Comunitário de Moscou para Iniciativas LGBT+, acredita que a nova lei vai estigmatizar ainda mais as pessoas LGBT. "Vamos entrar totalmente na clandestinidade, haverá casamentos fictícios, famílias fictícias. Os privilegiados vão deixar o país. Aqueles que não podem sair do país vão passar à clandestinidade e procurar parceiros de alguma forma — usando canais fechados." A preocupação agora entre a comunidade LGBT é como, quando e contra quem a lei será aplicada. A legislação russa é notoriamente vaga, dando às autoridades um instrumento contundente que pode ser usado arbitrariamente. Mas o medo gerado pela legislação já está levando à censura: plataformas online excluíram filmes e séries de TV com temática LGBT e editaram cenas gays. Em um episódio da aclamada série The White Lotus, da HBO, um serviço de streaming russo mudou a palavra "gay" para "homem", incluiu uma toalha nas costas de um personagem masculino nu e excluiu uma cena de sexo gay, poucos dias após a lei ser adotada. Os livros também estão sendo censurados. Lojas de todo o país retiraram de venda títulos com temas e personagens LGBT. Em uma livraria de São Petersburgo, encontro um título lançado recentemente, Shattered — um romance entre dois homens. Como o livro está lacrado com um plástico, preciso comprar para ver o interior. O texto foi censurado, com seções inteiras substituídas por tarjas pretas. Um dos coautores da lei, um nacionalista abertamente homofóbico chamado Vitaly Milonov, concorda em falar comigo por chamada de vídeo. Ele está supostamente na cidade de Horlivka, no leste da Ucrânia ocupada, tendo viajado para a linha de frente da guerra como combatente voluntário. Ele rejeita as acusações de que a lei é discriminatória, dizendo que a vida privada das pessoas será respeitada. Numa época em que milhares de pessoas estão morrendo na Ucrânia, a Rússia está isolada internacionalmente, e as pessoas estão fugindo do país, pergunto a ele se é apropriado focar em uma lei LGBT. "A Rússia não está isolada, temos um conflito com o mundo ocidental!", diz Milonov. "Por que você deveria indicar que nós que temos a ideologia errada? Acho que é nosso direito soberano ter uma legislação que gostamos de ter." De volta ao apartamento de Danya, ele me mostra algumas das roupas que desenhou com carinho para sua performance como drag. Segundo ele, o público dos clubes de São Petersburgo adora sua apresentação alternativa. Ele não quer sair do país. "Em que tipo de Rússia você consegue imaginar querer viver?", pergunto a ele. "Uma Rússia livre", ele me diz, pensando cuidadosamente sobre a questão. "Uma (Rússia) que não comprometa os direitos humanos mais básicos que toda pessoa deveria ter. Porque acho que minha orientação é meu direito desde o nascimento e ninguém tem o direito de cancelar, proibir ou me processar por isso." * Com produção de Liza Shuvalova
2023-01-23
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64370806
sociedade
Os pais que cortam laços com os próprios filhos
Helen não fala com seu filho há mais de um ano. Na última vez em que teve notícias, ele estava na prisão. Com 31 anos de idade, ele é dependente de opioides há mais de uma década. "Ele tem tentado me ligar, provavelmente para pedir dinheiro, e eu não tenho atendido. No momento, esta é a decisão correta para minha segurança e sanidade", explica ela. Helen mora na Inglaterra e é a principal responsável pela sua neta (filha pequena do seu filho preso). Seu objetivo é oferecer um ambiente seguro e amoroso para a criança. Helen se lembra do seu filho como uma criança impulsiva e destrutiva, mas com ótimo senso de humor e um coração bondoso. Por isso, ela ficou confusa quando, na adolescência, "seu comportamento ficou hostil e ele começou a me trancar no banheiro por horas a fio". Fim do Matérias recomendadas "Quando eu o enfrentava, ele me dizia que eu era a maluca, quem usava drogas", ela conta. "Às vezes, eu queria rir, era muito ridículo." Quando Helen descobriu que ele estava usando heroína, ela não sabia a quem recorrer. Ele desaparecia por dias e voltava com todo tipo de machucados. E, quando estava em casa, era difícil lidar com ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Ele nunca me bateu, mas muitas vezes destruía o apartamento de raiva — ainda tenho um buraco no corredor, onde ele bateu com o joelho", explica ela. No trabalho, Helen recebia em dinheiro e conta que seu filho começou a retirar o pagamento da sua carteira. Sem querer dizer nada para que ele não ficasse violento, ela começou a guardar o dinheiro em um cinto em volta da cintura. "Eu dizia que meu pagamento era creditado em conta para poder ter melhor avaliação de crédito", ela conta. No fim, ela acabou se sentindo insegura morando com alguém com uma dependência tão forte de drogas e rompeu os laços com ele. A relação entre pais e filhos normalmente dura a vida inteira — uma união amorosa e frutífera, que consegue sobreviver aos altos e baixos da vida. Mas, para alguns pais, manter essa conexão pode ser difícil. Às vezes, eles podem sentir que chegaram a um ponto de não retorno e decidir abrir mão do seu papel. Em um mundo cada vez mais polarizado, os casos de filhos que deixam de falar com os pais tornaram-se comuns. Mas também acontece o contrário, ainda que com menos frequência. Os dados confirmam que pais que cortam laços com seus filhos são mais raros. Um estudo de 2015, realizado pela organização britânica especializada em afastamentos familiares Stand Alone, demonstrou que, dos casos de pais e filhos que se afastaram, apenas 5% foram por iniciativa dos pais. Além de ser uma decisão difícil e dolorosa, as pessoas que enfrentaram esse afastamento afirmam que sua relativa raridade o torna especialmente isolador, aumentando o estigma daqueles que decidem seguir esse caminho. "Nas pesquisas e na cultura popular, raramente ouvimos falar em pais que se afastam dos filhos porque é um tabu muito grande e existem muito poucos lugares para falar abertamente sobre essa experiência sem que haja julgamento", explica Lucy Blake, professora sênior de psicologia da University of the West England, em Bristol, especializada em distanciamento familiar. As razões que levam os pais a encerrar suas relações com os filhos são similares àquelas que levam os filhos a se afastar dos pais. Segundo Blake, os motivos mais comuns são conflitos familiares, diferenças de valores pessoais (como crenças religiosas), abuso de substâncias e outros comportamentos tóxicos. A pesquisa da Stand Alone demonstrou que, para os rompimentos de relações com os filhos homens, os motivos mais comuns são questões relativas a divórcio, noras e casamento. Já com as filhas mulheres, são problemas de saúde mental e abuso emocional. Mas essa decisão de romper com os filhos tende a ser muito mais difícil e dolorida. Socialmente, espera-se que os pais estimem os filhos e cuidem deles sem exceções. "Temos expectativas muito altas com relação aos pais, quase divinas, e queremos que eles sejam incondicionalmente amorosos", explica Blake. "Isso pode ser muito problemático, pois sugere que devemos aceitar qualquer tipo de tratamento, incluindo todo tipo de abuso financeiro e psicológico." Talvez seja por isso que, mesmo quando seus filhos os magoam, os pais lutam para continuar. A professora de psicologia Jennifer Storey, da Universidade de Kent, no Reino Unido, é especialista em violência interpessoal. Ela afirma que, na maior parte das suas entrevistas com idosos, vítimas de maus tratos, os pais ainda se preocupam e estão tristes por seus filhos. "Estou tentando me lembrar de um pai que realmente quisesse cortar relações com seu filho", ela conta. "Eles quase sempre queriam a continuidade do relacionamento, mas o fim dos abusos." E pode também ser difícil aceitar a realidade do que está acontecendo, para eles e para as pessoas à sua volta. "Nós consideramos que os pais detêm todo o poder, mas, à medida que os filhos ficam mais velhos, a dinâmica de poder muda", afirma Amanda Holt, autora do livro Adolescent-to-Parent Abuse: Current Understandings in Research, Policy and Practice ("Abuso de pais por adolescentes: entendimentos atuais em pesquisas, políticas e práticas", em tradução livre). Para ela, "achar que o abuso de pais por filhos seja impossível ou que ele pode ser tão intenso que o pai ou a mãe precisam se ausentar é outra razão por que é tão difícil se afastar". A "hipótese da participação intergeracional" também pode aparecer. Essa teoria indica que os pais são tipicamente mais dedicados — emocional, financeira e fisicamente — ao relacionamento entre pais e filhos do que seus filhos. Laços mais positivos com os filhos são associados a maior bem-estar, melhor qualidade de vida e menos sintomas depressivos dos pais, mas ter laços mais positivos com os pais não garantem os mesmos benefícios para os filhos. Isso significa que a decisão dos pais de cortar os laços com um filho, seja de forma abrupta ou gradual, não traz apenas o peso do fracasso. "Ser pai é uma função e uma identidade que é respeitada e admirada — é também transformadora e dura a vida toda", explica Blake. "Quando um pai não tem relacionamento ativo com seu filho, ele pode sentir que fracassou nesse papel, o que traz sentimentos de intensa dor e vergonha, mudando ou questionando como os pais pensam sobre si próprios e quem eles são." Considerando esses elementos, cortar os laços pode ser mais difícil para os pais do que para os filhos. "Pode certamente ser um tipo diferente de dor, pois, para os pais, existe a possibilidade de que a sua vida pareça mais vazia ou menos significativa", afirma Blake. Muitos perderão amizades e relacionamentos com outros familiares como resultado do corte dos laços. "A perda e a dor que acompanham o afastamento se ampliam e atingem muitos aspectos diferentes da vida das pessoas", afirma Blake. Em alguns casos, como o de Helen, a decisão de cortar os laços foi claramente tomada por uma das partes. Mas a causa do afastamento entre pais e filhos pode muitas vezes não ser tão óbvias. Jack mora nos Estados Unidos e foi casado com sua esposa por cerca de duas décadas. Nesse período, eles tiveram quatro filhos juntos. Na época do divórcio, sua filha mais nova tinha um ano de idade. Ele conta que, quando sua ex-esposa se casou novamente, sua filha mais nova gravitava mais junto ao seu padrasto do que junto a ele — e, à medida que crescia, ela parecia não gostar de ficar com Jack. Jack afirma que a ruptura veio durante uma visita, quando sua filha tinha 14 anos de idade. Depois de uma discussão sobre a hora de dormir, ela disse a Jack que odiava seus fins de semana com ele e ligou para a mãe, pedindo uma carona para o evento a que ela pretendia comparecer. "Mandei um e-mail para minha ex, dizendo que, aparentemente, [minha filha] não queria mais passar as visitas em fins de semana alternados comigo e que, se isso mudasse no futuro, ela seria recebida de volta com braços abertos", ele conta. Ele não culpa sua filha por agir daquela forma, mas não a viu nem soube mais dela desde então. Embora sua filha cortasse o contato a princípio, Jack não sentiu necessidade de retomar o contato com ela diretamente. "Quanto mais o tempo passou, menos necessidade eu sentia de restabelecer aquele relacionamento", ele conta. "Foi como se (esse relacionamento) tivesse morrido, e eu segui em frente." Jack prossegue: "Nessa fase da vida, com o nível de conforto que tenho nos meus relacionamentos, duvido que tivesse interesse pelo tempo necessário para investir na construção de uma relação significativa com ela, sem mencionar o drama que isso traria da parte dela." A história de Jack reflete a obscura realidade do afastamento entre pais e filhos. Nem sempre é fácil distinguir quem deixou quem. Sua filha evidenciou seu desinteresse por ele, mas foi o pai que realmente sugeriu que eles parassem de se ver. Os especialistas afirmam que esta não é uma situação incomum. "Para alguns pais afastados, não existe uma resposta clara sobre quem começou o afastamento, é uma situação confusa", afirma Blake. Questionados sobre quem deu início ao afastamento (com as opções "eles", "eu", "nós cortamos os laços entre nós" e "não tenho certeza"), 10% das pessoas pesquisadas no estudo comunitário da Stand Alone escolheram duas ou mais respostas, indicando que a percepção nem sempre é clara. O afastamento familiar também não é sempre um estado permanente ou estático. É comum haver mudanças entre períodos de afastamento e reunificação, especialmente entre mães e filhas, segundo a pesquisa da Stand Alone. Isso também ocorre com muitos pais de filhos dependentes de drogas. Um estudo sueco de 2020 demonstrou que pais de filhos adultos dependentes de drogas mantinham a esperança de uma eventual reconciliação, em parte porque conseguiam ver seus filhos como duas pessoas diferentes: uma, sóbria, e a outra, sob influência de drogas. E, se esta última desaparecesse, o relacionamento poderia continuar. Helen, de sua parte, rompeu os laços com seu filho várias vezes. Eles atravessaram ciclos de afastamento e reconciliação por anos. Mas, agora, ela não tem contato com ele e não sabe o que acontecerá a seguir. "Se ele conseguisse me mostrar que está comprometido em ficar sóbrio e fora da cadeia, talvez eu o quisesse de volta na minha vida", explica ela. "Mas não sei como poderia confiar nele de novo e certamente deixar de cuidar da sua filha pequena." Mesmo para os pais que estão seguros sobre as razões de seu rompimento, a realidade diária da sua decisão está longe de ser fácil. "Existe uma ligação com o filho, configurada por laços biológicos, legais e sociais, que é muito profunda", explica Holt. "De forma que, quando os pais se afastam, a relação pode terminar, mas esses laços persistem. Pode ser muito difícil deixar tudo aquilo para trás." Muitos pais que cortam os laços acham que a vergonha e a culpa em torno da sua decisão geram isolamento e rupturas na sua rede de apoio estabelecida, que vão além dos parentes de sangue. "Pais que decidiram pelo afastamento têm muito poucas [pessoas] com quem podem falar e que demonstrarão compaixão e compreensão", explica Blake. "Pode até haver algum espaço para falar sobre sentimentos de luto e perda, mas em geral isso é visto como algo que passa, como um situação que a pessoa pode superar e seguir com a vida." Jack já discutiu com amigos que não entendem sua falta de relacionamento com a filha e afirmam que nunca conseguiriam dar as costas para uma relação de sangue. "Para mim, só porque alguém é 'de sangue' não lhe dá o direito de te tratar mal", explica ele. Compaixão e um espaço para falar sobre isso podem ser muito importantes em momentos específicos da passagem do ano. São momentos diferentes para cada pai ou mãe. Particularmente, as feridas doem mais nas festas de fim de ano. Segundo a Stand Alone, 90% das pessoas afastadas de um membro da família enfrentam dificuldades no fim do ano, enquanto 85% sofrem nos aniversários e 81% têm dificuldade de ficar ao lado de outras famílias. De sua parte, Helen se sente particularmente triste à medida que o Natal se aproxima e ela mostra as luzes natalinas para sua neta. Era o que ela sempre fazia com seu filho e gostaria que eles pudessem compartilhar isso juntos. "Eu era a única salvação que ele tinha e lidar com minha escolha de me afastar é sempre muito difícil", ela conta. Ela teve a sorte de poder contar com o apoio de sua filha. Seis meses atrás, Helen se mudou para mais perto dela, para que pudessem se ver regularmente. "Sem a ajuda e a compreensão da minha filha, não sei onde estaria, pois esta pode ser uma provação muito solitária", ela conta. "O melhor que posso fazer é me manter bem, para poder fazer o mesmo para os outros — estou tentando levar um dia de cada vez."
2023-01-22
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-64037985
sociedade
Por que governo japonês está oferecendo milhares de dólares para famílias deixarem Tóquio
O governo japonês vai passar a oferecer 1 milhão de ienes (mais de R$ 40 mil) por filho para cada família que se mudar da populosa capital, Tóquio, para um dos municípios localizados nas províncias do país. O novo valor — que representa um acréscimo de cerca de 700 mil ienes ao subsídio atualmente dado às famílias para realocação — será concedido a partir de abril, conforme noticiaram vários meios de comunicação locais, como o jornal Tokyo Shimbun e a agência de notícias Kyodo. De acordo com a imprensa japonesa, a principal intenção do governo é revitalizar as províncias fora da capital, onde a população está envelhecendo rapidamente. De fato, o Japão tem a maior taxa per capita de pessoas acima de 65 anos no mundo. No entanto, o segundo objetivo da medida é reduzir a densidade populacional da área metropolitana de Tóquio, que abriga quase um quarto da população total do Japão: mais de 37 milhões de pessoas, o que faz dela a cidade mais populosa do planeta. Fim do Matérias recomendadas E embora o ano passado tenha sido a primeira vez em 25 anos que a população de Tóquio encolheu, de acordo com o relatório demográfico mais recente, a capital ainda é considerada um forte ímã para os habitantes mais jovens do país. Isso levou algumas regiões a ficarem presas em uma espiral de despovoamento, com escolas em desuso — e, em alguns casos, vilarejos inteiros abandonados. Como informaram autoridades do governo à agência de notícias Kyodo, a oferta é válida para famílias que vivem em uma das 23 divisões que existem na capital japonesa e nas cidades vizinhas de Saitama, Chiba e Kanagawa. E para receber o subsídio, elas devem se mudar para fora desse conglomerado urbano, embora as autoridades tenham deixado claro que também podem residir em algumas zonas rurais nos arredores da capital japonesa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Como observa o jornalista Leo Lewis, do jornal britânico Financial Times, o problema é que Tóquio continua muito atraente mesmo para as pessoas que vivem lá, com um aumento constante na demanda por moradia. Apesar da pandemia de covid-19 e das opções de trabalho remoto, o preço médio de um apartamento novo em Tóquio, de acordo com o Real Estate Economic Institute, superou o pico durante a bolha imobiliária do Japão em 1989. E o aumento do incentivo do governo anunciado agora também tem uma razão subjacente. Segundo o próprio governo, apenas cerca de 2.400 pessoas aproveitaram os subsídios oferecidos para se mudar da capital no último ano fiscal. Isso é apenas 0,006% dos quase 38 milhões de habitantes que residem na capital. Para o jornalista britânico Justin McCurry, do jornal britânico The Guardian, que mora em Tóquio, a principal causa para o programa de incentivo do governo não ter funcionado como esperado é que tem certas exigências que o impedem de ser muito popular. "As famílias que optam por este benefício devem morar em seus novos lares por pelo menos cinco anos, e um membro da família deve estar trabalhando ou planejando abrir um novo negócio", observou o correspondente. "Aqueles que se mudarem antes de completar cinco anos vão ter que devolver o dinheiro em espécie." A emissora pública do Japão, NHK, começou a apresentar uma série de reportagens em que divulga os benefícios de morar fora da cidade grande, para incentivar as famílias que moram na capital a fazer as malas. "Nós vimos esse programa e, naturalmente, você pensa a respeito", afirmou Erika Horiguchi, que mora em Tóquio com o marido e a filha, ao jornal Financial Times. "Mas não temos planos de mudar. Há uma razão pela qual os japoneses vêm para Tóquio, e não acho que o governo possa mudar isso", acrescentou.
2023-01-21
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64161454
sociedade
Por que algumas pessoas chegam sempre atrasadas?
Você é uma dessas pessoas que chegam sempre atrasadas? No mundo atual, onde tentamos fazer cada vez mais coisas, parece que todos estamos correndo contra o relógio. Mas, embora estejamos na mesma corrida contra o tempo, existe um tipo de pessoa para quem parece que, simplesmente, chegar tarde não tem importância. Um estudo do site YouGov de 2014 concluiu que pelo menos um em cada cinco americanos chega atrasado ao trabalho pelo menos uma vez por semana. E, aparentemente, os millennials (nascidos entre 1981 e 1995) são os menos pontuais. O que estará acontecendo? Será que existem pessoas naturalmente "programadas" para chegar tarde aos seus compromissos? Fim do Matérias recomendadas A escritora britânica Grace Pacie decidiu investigar por que ela própria sempre chegava atrasada aos locais que visitava e documentou suas conclusões no seu livro Late! A Timebender's Guide to Why We Are Late and How We Can Change ("Atrasado! Guia para os que fazem dobrar o tempo sobre por que sempre chegamos tarde e como podemos mudar", em tradução livre). "Com relação às personalidades, existe uma curva em forma de sino", conta a escritora. "Em uma extremidade da escala, estão os que chamo de 'protetores do tempo', que são ansiosos por chegar cedo." E, no outro extremo, estão os que, segundo Pacie, "fazem dobrar o tempo". São os timebenders, em inglês - e a própria autora se inclui nesta categoria. "Nós, timebenders, não gostamos de rotina. Não gostamos das tarefas que já conhecemos e nos aborrecemos facilmente", explica Pacie à BBC. "Podemos nos concentrar muito bem quando temos interesse em algo e, se o tempo for curto, podemos trabalhar de forma muito eficiente", ela conta. Pacie explica que, para identificar os timebenders em um escritório, é preciso apenas procurar as mesas mais desarrumadas. "Nem terminamos algo, já estamos começando outra coisa." Mas por que aparentemente algumas pessoas têm esta característica mais marcada do que outras? A resposta pode estar em um traço muito específico da personalidade, segundo explica David Robson, autor do livro The Expectation Effect ("O efeito da expectativa", em tradução livre). Para Robson, chegar sempre atrasado tem relação com o nível de consciência, que é uma característica de personalidade. "Você pode medir esta característica com perguntas como 'qual o seu nível de ordenação e organização?' ou 'essa pessoa é pontual?'", explica o escritor à BBC. Pacie também acredita que os timebenders vivenciam o tempo de forma diferente. Para ela, "temos uma percepção do tempo que é diferente da maioria das pessoas. Nem todos os minutos têm a mesma duração para nós". "O tempo pode acelerar ou desacelerar", prossegue Pacie. "Podemos mergulhar totalmente em algo e perder completamente a noção do tempo. Por outro lado, se tivermos uma hora de dedicação, podemos trabalhar de forma muito eficaz." Um estudo realizado em 2016 por psicólogos da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, concentrou-se exatamente em analisar a percepção do tempo pelas pessoas. Em um dos experimentos, os participantes tinham um tempo determinado para terminar uma tarefa. Eles podiam até conferir o relógio. Mas as tarefas foram projetadas para que fossem fascinantes e distraíssem os participantes, de forma que não olhassem para o relógio. Os resultados foram claros. Algumas pessoas eram naturalmente melhores do que outras para estimar a passagem do tempo e usavam essa aptidão para planejar com eficácia o seu futuro. Pacie afirma que uma das conclusões mais surpreendentes (e possivelmente mais úteis) foi descobrir que os timebenders nem sempre chegam atrasados a todos os lugares. "Podemos chegar a tempo quando nos interessa, ou seja, quando existem consequências para nós quando chegamos tarde", explica a escritora. "Os momentos em que mais esticamos o tempo são quando não existem datas ou horários limite e não há consequências, o que muitas vezes ocorre em eventos sociais", segundo ela. Pacie afirma que isso pode levar os timebenders a ter problemas com seus entes queridos, por darem a impressão de que há pouco interesse para ficar bem com eles. "Acredito que é muito útil reconhecer o poder das horas e datas limite, que sejam reais, impostas e que tenham consequências", acrescenta ela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um dos maiores problemas encontrados por Robson para melhorar a pontualidade das pessoas é que elas acreditam que a impontualidade é uma parte indissociável da sua personalidade. "Eles simplesmente consideram que é algo tão intrínseco aos seus genes e suas características que nem sequer tentam corrigir o comportamento", segundo ele. "É assim que as narrativas que temos de nós mesmos podem se tornar uma profecia autorrealizável." E a ideia de que as características da personalidade não são permanentes - nem definidas ao nascer, mas sim podem ser moldadas - é um dos desenvolvimentos mais empolgantes da psicologia atual. Robson afirma que, se quiser, qualquer pessoa pode se tornar mais consciente fazendo mudanças simples. "Elas podem fazer coisas como um cronograma detalhado todos os dias ou reservar tempo para organizar seu escritório ou seu quarto, se estiverem desarrumados", explica ele. "Coisas que sabemos que deixam as pessoas muito conscientes."
2023-01-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64351566
sociedade
BBB 23: Relacionamento aberto de participantes dá visibilidade a casais que abriram relação na vida real
Durante uma conversa na casa do Big Brother Brasil, a cantora Aline Wirley falou sobre o seu relacionamento com o ator Igor Rickli. "Às vezes as pessoas julgam muito, não entendem exatamente. E é super compreensível elas não entenderem, porque a gente foi formatado para ser de um jeito. Mas é que dá tão certo, dá tão certo, eu sei como dá certo, como a gente é feliz, como a gente se ama, como é de verdade", disse Aline. A declaração da participante do reality show foi feita ao comentar sobre o relacionamento aberto que mantém com o marido. No momento, ela conversava com outro participante do programa, o médico Fred Nicácio, que também tem uma relação semelhante. Em razão dos participantes do reality show, a monogamia e a não monogamia passaram a ser ainda mais debatidas nas redes sociais. Para especialistas ouvidos pela reportagem, essas relações que fogem da monogamia tradicional têm se tornado mais populares nos últimos anos, principalmente em razão da difusão de informações sobre o tema. Fim do Matérias recomendadas "Acredito que a visibilidade desse tema tem aumentado sim, sobretudo a partir das redes sociais e outros ativismos. Isso tem contribuído para que mais pessoas tenham acesso a esse debate e expandam suas percepções", diz Geni Núñez, doutora em Ciências Humanas e conhecida nas redes sociais como Genipapos, onde fala sobre a não-monogamia. Nas redes, diversos casais falam abertamente sobre relacionamentos que admitem que se tenha outros parceiros, seja apenas sexualmente ou até mesmo com envolvimento romântico. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um dos casais que falam sobre o tema nas redes sociais é a estudante Giovanna Rodrigues, de 22 anos, e o assessor parlamentar Luís Moreira, de 31. Juntos, eles mantêm a página "Soluções não-monogâmicas", na qual compartilham a rotina e detalhes do relacionamento. "A gente faz praticamente tudo o que um casal fechado faz, continua sendo uma relação e temos prazer em estar juntos, a diferença é que tiramos a parte de que ele só pode se relacionar comigo", explica Giovanna. "Acredito que ela pode ser livre e feliz com outra pessoa também", defende Luís. Os dois contam que nunca tiveram desentendimentos por causa de seus outros "afetos", como definem os outros parceiros amorosos. "A gente só tem o combinado de avisar quando sair e se vai voltar para casa. Isso é mais por questão de segurança e para não deixar o outro aflito", comenta Giovanna. O casal mora junto em um apartamento no Rio de Janeiro (RJ) e planeja se casar futuramente. "Principalmente porque no Brasil isso dá direitos e é importante como casal para termos um respaldo legal", comenta Luís. O psiquiatra Manoel Vicente, de 32 anos, e o empresário Raphael Piza, de 29 anos, também têm um relacionamento diferente do convencional. Eles, que estão juntos há mais de 10 anos, definem a relação como "livre". Os dois, que moram em Cuiabá (MT), se casaram no início deste mês, pouco antes de o psiquiatra participar da Casa de Vidro, do Big Brother Brasil. Manoel não foi escolhido para ingressar oficialmente no programa, mas a sua breve participação na disputa já fez com que a não-monogamia entrasse em debate. "Até participar do programa, a gente evitava falar sobre esse assunto abertamente. Os meus amigos sabiam que nosso relacionamento é assim, mas a nossa família não sabia. Era algo mais reservado, aí veio o programa e a gente sabia que isso seria divulgado", comenta Manoel. "A gente não escondia exatamente, mas não saía gritando aos quatro cantos (sobre a forma de relacionamento deles). Nunca foi um problema para a gente, mas havia a questão de as pessoas não entenderem", acrescenta Raphael. Segundo eles, a família recebeu com respeito a informação sobre o relacionamento que mantêm. "A minha mãe deu uma resposta maravilhosa quando foi questionada sobre isso. Ela é completamente religiosa e também não sabia como é o nosso relacionamento. Mas depois do programa, quando perguntaram, ela disse que era melhor um relacionamento assim do que trair", diverte-se o psiquiatra. O casal frisa que o principal conceito da relação é o de "prezar pela liberdade". "No nosso entendimento, beijar outras pessoas não é uma traição. Traição é inventar mentiras para quem você ama", diz Manoel. Ele e Raphael tinham um relacionamento fechado durante os quatro primeiros anos de namoro. "A princípio, a gente não conhecia outros modelos de relacionamentos, por isso nem pensava em outras formas. Mas aí comecei a fazer algumas leituras sobre esses conceitos, vi alguns autores que trabalham diferentes formas de se relacionar e a gente embarcou nessa e vendo o que fazia sentido naquele momento", diz Manoel. "A única regra que temos é que a gente não se envolve com nossos amigos de longa data, que são praticamente nossos familiares", acrescenta o psiquiatra. "No fim das contas, tudo se resume na cumplicidade e em não existir segredos entre nós", completa Manoel. Para a psicóloga Geni, conhecida nas redes sociais como Genipapos, essas relações que fogem da tradicional monogamia fazem parte de um "antimodelo", no qual as pessoas deixam de repetir "valores massificados da monogamia como o único possível a todas as pessoas do mundo". "A monogamia ainda se impõe como único caminho na maioria dos filmes, séries, livros, na igreja, na família e no Estado, então é muito interessante ver como muitas pessoas se sentem desconfortáveis com essa imposição e buscam outros modos de vida. Além disso, vivemos um momento em que globalmente as velhas e mesmas respostas não têm dado conta dos dilemas de nosso tempo e há uma busca por outras vias, a não-monogamia faz parte disso", diz Geni. Mas, embora o interesse pelos relacionamentos abertos possa estar aumentando, não há dados sobre a sua real abrangência — ao menos, por enquanto, segundo a reportagem da BBC. No Brasil, por exemplo, não há um estudo aprofundado sobre a abrangência desse tipo de relacionamento. E o tema é vasto. Dentro dessas discussões há diferentes tipos de relacionamentos e não há exatamente um modelo a ser seguido, cada casal costuma criar a sua própria forma de viver a não monogamia. As relações abertas são associadas a indivíduos que têm um parceiro principal, mas podem ter relações casuais com outras pessoas. Há especialistas que afirmam que isso se trata de uma mistura de monogamia (porque há um casal como principal estrutura) com traços de não monogamia (pois há liberdade para ficar com outras pessoas). Já um exemplo claro de não monogamia é o poliamor, que significa ter diversos relacionamentos sérios ao mesmo tempo. Ou seja, não há um casal no centro desse tipo de relacionamento. Essas mais variadas formas de relacionamento têm sido adotadas entre casais de todos os gêneros, idades ou orientação sexual. "No Brasil, a gente usa a não monogamia pra falar de um conjunto gigantesco de formas variadas de relacionamentos que recusam a exclusividade afetiva ou sexual. É uma forma mais genérica para falar que há um monte de possibilidades de relações livres", explica a socióloga e escritora Marilia Moschkovich. Para a socióloga, que é adepta da não monogamia há quase uma década, a monogamia é um modelo cheio de problemas e falhas. "Um dos problemas da monogamia é dizer que a pessoa só pode ficar contigo, porque isso tira a autonomia sexual da pessoa, do próprio corpo e do desejo dela. Um mundo em que há autonomia plena das pessoas inclui o desejo, a sexualidade e não uma retaliação moralista", declara Marilia. Os especialistas acreditam que esse tipo de relacionamento fora daquilo que é considerado tradicional deve continuar crescendo, porque cada vez mais as pessoas devem questionar a monogamia como o principal modelo da sociedade. Enquanto o debate sobre o assunto cresce, aumentam também os ataques àqueles que adotam esse tipo de relacionamento. "Ainda há um grande pânico moral sobre o tema, muito julgamento e discriminação, há uma série de riscos em alguns contextos familiares, de trabalho", comenta a psicóloga Geni Núñez. Recentemente, Giovanna, do perfil "Soluções não-monogâmicas", sofreu diversos tipos de ataques após compartilhar um vídeo sobre o seu relacionamento não monogâmico. "O vídeo tomou uma proporção muito grande. Muita gente me defendeu, mas recebi muitos comentários horríveis e diversas ofensas", lamenta a estudante. Ela denunciou o caso à polícia e avalia a possibilidade de processar as pessoas que a ofenderam. "O nosso conteúdo sempre ficou na nossa bolha não monogâmica e teve uma boa recepção, com poucas críticas. Acho que é a primeira vez que me deparo com tanto ódio", lamenta a jovem. Apesar dos ataques, o casal não planeja parar de produzir conteúdo para a internet, porque acredita que ajuda a esclarecer sobre o tema. "Por causa das nossas publicações, recebemos mensagens de agradecimento de muitas pessoas que também são não-monogâmicas ou se tornaram", diz Luís. E nos próximos meses, o assunto deve ser cada vez mais debatido no decorrer do Big Brother Brasil. Apesar de os especialistas considerarem que as discussões podem ajudar a esclarecer diversos pontos sobre o tema, há também receio sobre como alguns podem reforçar equívocos sobre essas relações. "Uma preocupação que tenho (sobre a ampla discussão sobre o tema em horário nobre) é que como para muitas pessoas "a não monogamia não funciona", já há por parte de muitos uma expectativa da falha ou do erro que confirmem sua profecia anterior. No caso da monogamia, a gente não vê isso. Ninguém diz: "conheço um casal monogâmico que 'deu errado', portanto isso é uma prova do fracasso da monogamia". Já com pessoas não monogâmicas isso é muito comum", afirma Geni Núñez.
2023-01-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64341462
sociedade
As celebridades que prometem não deixar heranças para seus filhos
A recente promessa da cantora country americana Marie Osmond de não deixar herança para os filhos reacendeu um debate sobre os chamados nepo babies. Osmond, com patrimônio líquido estimado em US$ 20 milhões (cerca de R$ 100 milhões), disse a uma revista que sua recusa em compartilhar a fortuna não era maliciosa. Pelo contrário, ela afirmou que queria garantir que os filhos cultivassem suas próprias paixões e alcançassem o sucesso por conta própria. Os nepo babies (abreviação para algo como "bebês do nepotismo") são aqueles que usam a fortuna e a popularidade dos pais para construir suas próprias carreiras. "Não conheço ninguém que se torne qualquer coisa se simplesmente receber dinheiro", declarou Osmond à revista Us Weekly. Fim do Matérias recomendadas A cantora não é a única com uma visão interessante sobre a criação de filhos de celebridades. Outros nomes conhecidos também disseram que planejam optar por não passar adiante suas fortunas. Embora, em alguns casos, a falta de herança não tenha impedido os filhos de capitalizar em cima do sucesso dos pais. A seguir, confira uma lista com algumas dessas celebridades — e como alguns de seus filhos se saíram: O ator britânico Daniel Craig já disse que acha a ideia de herança "detestável", e que seus dois filhos não vão receber sua fortuna de US$ 125 milhões (aproximadamente R$ 636 milhões). "Minha filosofia é me livrar dela ou doar antes de partir", disse o astro de James Bond em 2020. Mas mesmo sem herança, a filha mais velha de Craig, Ella, de 31 anos, já fez seu nome. Ela é representada pela Ford Models, uma das maiores agências de modelos do mundo, e apareceu na capa da L'Officiel, uma revista de moda francesa, no início deste ano. Também seguiu os passos do pai e tentou atuar, estrelando algumas peças com o grupo de teatro Shakespeare & Company, assim como filmes. Ella falou publicamente sobre seu interesse em atuar — e disse que espera ser respeitada "como uma atriz de categoria e fazer realmente um trabalho de boa qualidade". Apesar de serem filhos de um dos chefs mais conhecidos do mundo, os cinco descendentes de Gordon Ramsay nem sempre conseguem desfrutar da fortuna do pai. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Eles raramente comem em seus restaurantes com estrelas Michelin, disse Ramsay. Tampouco se sentam com os pais na primeira classe do avião quando viajam de férias. "Eles não trabalharam nem de longe o suficiente para pagar por isso", disse Ramsay, que tem fortuna estimada em £ 63 milhões (cerca de R$ 397 mihões), ao jornal britânico The Telegraph em 2017. Ele acrescentou que não tem intenção de deixar seu dinheiro para os filhos quando morrer, dizendo que quer evitar mimá-los. Até agora, os filhos de Ramsay parecem ter trilhado seus próprios caminhos. Sua filha mais velha, Megan, de 24 anos, estudou psicologia na universidade, enquanto seu filho mais velho, Jack, de 23 anos, ingressou no Royal Marines, corpo de fuzileiros navais britânico. Já sua filha de 21 anos, Matilda, virou uma personalidade da televisão, assim como o pai. Ela apresentou seu próprio programa de culinária, Matilda and the Ramsay Bunch, na CBBC, o canal de televisão infantil da BBC, e apareceu no MasterChef Junior. Ela também tem mais de um milhão de seguidores no Instagram e outros 10 milhões no TikTok, onde costuma compartilhar vídeos do pai — alguns dos quais se tornaram virais. O cantor e compositor britânico Sting é um dos músicos mais bem-sucedidos do mundo, com um patrimônio líquido estimado em US$ 400 milhões (aproximadamente R$ 2 bilhões). Mas ele diz que seus filhos não vão receber quase nada quando ele se for. "O que entra nós gastamos, e não sobra muito", disse o pai de seis filhos ao jornal britânico Daily Mail em 2014, acrescentando: "Eu certamente não quero deixar para eles fundos fiduciários que são um fardo. Eles precisam trabalhar." Mas isso não impediu os filhos de Sting de embarcar em carreiras notáveis ​​no show business. Sua filha, Mickey Sumner, é atriz — ela apareceu no filme Frances Ha (2012), de Greta Gerwig —, enquanto dois dos seus filhos, Eliot e Joe, são músicos. Sting também levou Joe para abrir sua mais recente turnê mundial, My Songs, em 2022. Algumas dessas celebridades parecem ter se inspirado em Warren Buffett. O magnata americano anunciou que pretende doar mais de 99% de sua fortuna — e que não vai sobrar muito para os filhos. Buffett escreveu em 2021 que "depois de muito observar famílias super-ricas, aqui está minha recomendação: deixe para seus filhos o suficiente para eles fazerem qualquer coisa, mas não o suficiente para eles não fazerem nada". Todos seus filhos adultos embarcaram em carreiras em áreas que vão de filantropia e música a política e conservação ambiental.
2023-01-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64319247
sociedade
BBC se desculpa por 'gemidão do zap' durante transmissão de futebol na TV
A BBC pediu desculpas depois que um gemido alto de sexo — conhecido como "gemidão do zap" — interrompeu a cobertura ao vivo da Copa da Inglaterra na televisão. Os gemidos foram ouvidos enquanto o apresentador da BBC Gary Lineker, ex-jogador da seleção inglesa de futebol, apresentava a partida "replay" entre Wolves e Liverpool pela terceira fase do campeonato na terça-feira (17/01). O comentarista postou depois a foto de um celular que, segundo ele, estava "pregado na parte de trás do estúdio". "Pedimos desculpas a qualquer telespectador ofendido durante a cobertura ao vivo do futebol esta noite", afirmou a BBC. Um porta-voz informou ainda que a BBC estava investigando o incidente. Fim do Matérias recomendadas Lineker tentou rir do ocorrido enquanto apresentava o programa dentro de um estúdio no estádio Molineux, do Wolverhampton, ao lado dos comentaristas Paul Ince e Danny Murphy. Ao chamar o comentarista Alan Shearer, ex-atacante da Inglaterra, que estava nas arquibancadas do estádio, ele disse: "Alguém está enviando algo no telefone de alguém, eu acho." "Não sei se você ouviu isso em casa." Quando a partida começou, ele compartilhou a foto de um celular e três emojis de risada ao lado da seguinte frase no Twitter: "Bem, encontramos isso pregado na parte de trás do estúdio." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Entrevistado mais tarde no programa Newsnight, da BBC, Lineker explicou que inicialmente pensou que haviam enviado um vídeo para o celular de um dos comentaristas do programa. Mas, segundo ele, era "barulhento demais" — foi quando ele percebeu que o incidente era algum tipo de pegadinha. Questionado sobre o volume do efeito sonoro no estúdio, o locutor disse que não conseguia ouvir o que alguém dizia em seu ouvido, tornando "bastante difícil" continuar com a apresentação pré-jogo. Ainda assim, Lineker afirmou que conseguia ver o lado engraçado — classificando o ocorrido como uma pegadinha "boa" —, e questionou por que a BBC emitiu um pedido de desculpas. "Certamente não temos nada para [nos desculpar]", disse ele à apresentadora da BBC Kirsty Wark, enquanto voltava da partida da Copa da Inglaterra. "Se você me dissesse esta manhã que esta noite eu estaria no Newsnight falando sobre um escândalo de pornografia", ele acrescentou rindo, "eu teria ficado apavorado." O incidente não passou despercebido pelos telespectadores — vídeos do momento foram amplamente compartilhados nas redes sociais na noite de terça-feira. O youtuber Daniel Jarvis, conhecido como "Jarvo", afirmou que estava por trás da pegadinha, postando um vídeo no Twitter que parecia mostrá-lo no estádio Molineux. Jarvis foi condenado pela Justiça em outubro do ano passado por invadir o campo do estádio Oval, no sul de Londres, e colidir com o jogador de críquete inglês Jonny Bairstow. Ele recebeu uma sentença de prisão de oito semanas, com suspensão condicional da pena por dois anos — e foi banido por dois anos de qualquer local em que esteja sendo realizada uma partida esportiva na Inglaterra e no País de Gales. Ele também foi proibido de viajar para o exterior por 12 meses e deve cumprir uma atividade de reabilitação.
2023-01-18
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64315239
sociedade
Áudio, Como descobrir se vivemos em uma simulação de computadorDuration, 9,18
Conheça teoria que sugere que realidade à nossa volta é composta de bits de informação — e que Universo pode ser um gigante computador quântico.
2023-01-17
https://www.bbc.com/portuguese/media-64303036
sociedade
'A morte é grande conselheira': a lista de 'últimos desejos' que mobiliza amigos de ativista com câncer
Atualização da reportagem em 27 de janeiro de 2023: Ana Mi faleceu no dia 21, cinco dias após a publicação deste texto. Em tratamento contra o câncer há 12 anos, a jornalista e escritora Ana Michelle Soares é uma das maiores referências do movimento pela valorização dos cuidados paliativos no Brasil. Com a piora de seu estado de saúde, ela precisou ficar internada praticamente o tempo todo durante os últimos três meses. E foi durante uma conversa com amigos próximos que ela teve uma ideia: fazer uma bucket list, ou uma lista de coisas para fazer antes de morrer. Entre os desejos, Ana Mi — como é conhecida — incluiu coisas como "fazer algo perigoso", comer alguns pratos específicos e repetir experiências simples, como rever o cachorro e dormir mais uma vez em casa. Fim do Matérias recomendadas Assim que compartilhou a lista num grupo de WhatsApp, familiares e amigos se mobilizaram para realizar cada um dos desejos dela — e criaram uma rede de apoio que envolveu até a cantora Duda Beat, o chef de cozinha Rodrigo Oliveira e a professora de filosofia Lúcia Helena Galvão. "Esse momento que estamos vivendo mostra o sucesso absoluto de uma vida. No auge da fragilidade, ela foi capaz de tomar decisões sobre o que é importante e sagrado para si mesma", comenta a médica Ana Claudia Quintana Arantes, amiga de Ana Mi e fundadora da Casa Humana, uma instituição que trabalha com reabilitação e cuidados paliativos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ana Mi foi uma das personagens da matéria e compartilhou um pouco de sua história numa entrevista. Na época, ela contou que recebeu um diagnóstico de câncer de mama em 2011, quando tinha 28 anos de idade. Quatro anos depois, em 2015, os exames mostraram que o tumor havia se espalhado para outras partes do corpo, num processo conhecido na medicina como metástase. Com bom humor, Ana Mi lembrou de um episódio logo depois de receber essa notícia há oito anos. Ela se preparava para ir à balada, colocou um vestido vermelho, se olhou no espelho e pensou: "Posso estar morrendo, mas estou bem gata." "À época, eu vi no prontuário médico que, a partir dali, o objetivo do meu tratamento era 'paliativo'", relatou. "Aquela palavra soava estranha para mim, era como se eu estivesse morrendo. E eu me sentia bem." No final de semana após a balada, Soares resolveu entender melhor o que esse tal de paliativo realmente significava. "Quando finalmente compreendi, percebi que era algo óbvio, que deveria ter sido oferecido a mim desde o começo do meu tratamento", disse. "Decidi então começar a fazer cuidados paliativos por mim mesma. Fui atrás de terapia, suporte espiritual e resolvi muitas questões que me causavam sofrimento", completou. Nos últimos oito anos, Soares virou uma das vozes mais ativas do movimento paliativista brasileiro. "Eu posso até estar com uma doença grave. Mesmo assim, ainda vale a pena viver da melhor forma possível", declarou à BBC News Brasil. Arantes destaca que o trabalho de Ana Mi congrega e inspira pacientes em cuidados paliativos de todo o Brasil. "Em 2019, quando montamos a Casa do Cuidar, resolvemos criar também a Casa Paliativa, e Ana Michelle foi a responsável por estruturar esse projeto, que reúne pacientes independentemente do tipo de doenças que eles têm", diz a médica, que também é autora dos livros A Morte é um Dia que Vale a Pena Viver e Histórias Lindas de Morrer (Editora Sextante). "Hoje, a Casa Paliativa tem um grupo de Facebook com mais de 2,3 mil participantes e um banco de 130 aulas disponíveis gratuitamente sobre dor, fadiga, ansiedade, insônia, sexualidade, suporte familiar, luto, desistir e outros temas relacionados ao sofrimento", informa Arantes. "Fizemos fóruns de cuidados paliativos para pacientes em que esperávamos 200 ou 300 pessoas. No total, foram 15 mil inscritos e algumas aulas tiveram mais de 8 mil participantes simultâneos", completa. Numa nova entrevista à BBC News Brasil em janeiro de 2023, realizada por telefone direto do hospital onde estava internada, Ana Mi revelou que a ideia de criar uma bucket list veio a partir da história de uma grande amiga: Renata Lujan, que também teve câncer, foi ativista do setor e morreu em 2018. "Mesmo com a Renata muito mal, as pessoas fingiam que nada estava acontecendo. Todos sempre usavam o discurso de que logo ela ficaria melhor e sairia daquela condição", lembra. "Ninguém entendia que ela estava numa situação grave e precisava de uma rede de apoio, com momentos para dar risada, brincar, falar besteira… Ou seja, deixar de tratá-la com aquele ar morimbundo, para encará-la como uma pessoa viva", explica. O termo em inglês bucket list vem da frase kick the bucket, ou "chutar o balde", em tradução livre. Trata-se de uma figura de linguagem equivalente ao "bater as botas" em português. Essa expressão, inclusive, serviu de título para um filme de 2007, lançado no Brasil como Nunca É Tarde Demais. A história, estrelada por Morgan Freeman e Jack Nicholson, acompanha dois amigos em estado terminal, que resolvem fazer uma viagem e cumprir uma lista de desejos antes que ambos "chutem o balde" — ou "batam as botas". "A Renata tinha pouco tempo de vida, mas conseguimos fazer muitas coisas que eram importantes para ela", diz Ana Mi. Entre os desejos que puderam ser realizados a tempo, Renata conseguiu visitar os campos de lavanda de Cunha, em São Paulo, e recebeu a benção do padre Fábio de Melo, de quem era grande admiradora. "Sempre me incomodou muito o fato de as pessoas só homenagearem alguém querido depois da morte. É só nesse momento que vemos aquelas postagens nas redes sociais, que repetem os mesmos discursos de sempre", aponta Ana Mi. "Por que não dizer isso para a própria pessoa, enquanto ela ainda está viva?", questiona. Foi a partir dessa experiência prévia — e do agravamento de seu quadro clínico e do esgotamento das opções terapêuticas contra o câncer — que a ativista resolveu montar sua própria bucket list. Entre os desejos, ela listou: O empreendedor social Tom Almeida, amigo próximo da ativista, relata que a mobilização em torno da bucket list aconteceu de forma orgânica. Segundo ele, amigos, familiares e admiradores se voluntariaram para ajudar e se organizaram a partir de um grupo de WhatsApp criado pela própria Ana Mi. Uma das primeiras surpresas foi a criação de um clipe musical, em que a cantora Duda Beat faz uma versão da canção Bixinho, uma das preferidas de Ana Mi. A artista, inclusive, gravou uma mensagem em que "deseja muita luz e muito amor" para a ativista. Em um dos trechos, a música diz: "É já que estamos aqui/ Vamos aproveitar/ O tempo que nos resta." Além da artista, várias pessoas também participaram da ação: elas enviaram vídeos em que cantam e dançam o hit de Duda Beat. "Toda essa comoção é bonita e divertida, com muitas pessoas contribuindo e celebrando ao mesmo tempo", resume Almeida, que também é fundador do Movimento inFINITO, especialista em luto e ativista dos cuidados paliativos. "Muitas pessoas vivem esse momento crítico, com risco de perder a vida, e não falam sobre. A morte ainda é um grande tabu", constata ele. "Mas existe vida até o último momento. Ao cumprirmos a lista, estamos celebrando isso e gerando uma onda de amor e de reconhecimento sobre tudo o que Ana Mi construiu e inspirou", complementa. Outra meta concluída recentemente foi a de comer dobradinha preparado no restaurante Mocotó, localizado na capital paulista. O responsável pelo prato, o chef Rodrigo Oliveira, gravou um vídeo em que fala sobre o envio da marmita e deseja que o prato "traga um gosto de casa e um gosto do Nordeste". Para Almeida, o trabalho de Ana Mi é capaz de "legitimar o papel dos pacientes em cuidados paliativos". "Muitas vezes, as associações do setor focam muito naqueles indivíduos que conseguiram se curar, o que de fato é maravilhoso", diz. "Mas também devemos prestar atenção naqueles que não tem a possibilidade de cura. Eles ainda têm a vida. E a Ana Mi consegue trazer tudo isso de forma poética e bem humorada", define. Arantes concorda. "Não existe fracasso no processo de adoecimento e de finitude. Temos que parar de dizer que 'fulano perdeu a batalha contra o câncer'. Falar isso é vergonhoso", critica. Outro desejo de Ana Mi foi o de assistir um documentário sobre longevidade chamado Quantos Dias, Quantas Noites, produzido pela Maria Farinha Filmes, para o qual ela deu entrevistas. "Eu sempre brincava com o Cacau Rhoden [o diretor]: 'Se eu morrer antes de ver o filme, eu te mato'", diz ela. O problema é que o documentário está em fase de finalização e só deve ser lançado daqui a alguns meses. "Eu fiquei muito honrado de ela colocar o filme na bucket list. Não tivemos nenhum tipo de vaidade ou narcisismo em querer revelar o material só quando ele estivesse totalmente finalizado", relata Rhoden. "Como a Ana Mi estava na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], pensei que iríamos mostrar a versão na tela de um computador. Mas os amigos e a equipe do hospital resolveram fazer uma verdadeira sessão de cinema", conta o diretor. No dia 6 de janeiro, toda essa turma decorou o auditório do Hospital Nove de Julho, na capital paulista, com direito a balões, cartazes e pipoca. Ana Mi foi então transferida com todos os cuidados da UTI para o local de exibição. Ao entrar na sala, foi ovacionada, relatam os amigos e profissionais da saúde presentes. "Foi uma das experiências mais emocionantes e loucas da minha vida", admite Rhoden. "O filme traz uma perspectiva completamente diferente sobre a longevidade, não apenas como essa busca incessante por chegarmos a uma idade avançada, mas também por meio da intensidade e da relatividade do tempo", diz. "E a história da Ana Mi traz uma provocação reveladora e contundente sobre como nós nos relacionamos com o tempo que temos", completa. O diretor diz que conhecer a escritora e ativista o transformou completamente. "Nunca mais serei o mesmo. Ela carrega uma força de inspiração que jamais vi. Mesmo com o agravamento da doença, ela traz uma pulsão de vida exuberante." Arantes avalia que toda essa experiência também ajuda a refletir sobre o que é ter sucesso na vida. "Para mim, esse sucesso não significa morrer velhinho e saudável, com o colesterol controlado, sem nunca ter sido diagnosticado com câncer, doença cardíaca ou osso quebrado. Sucesso é chegar no final da vida com a capacidade de fazer um grupo de WhatsApp para que as pessoas viabilizem os seus sonhos", afirma. "O que a Ana Mi faz é despertar o melhor de nós. Ela transforma milhares de vidas por meio do amor, da responsabilidade de abraçar uma causa e de ser dona da própria vida, mesmo que o corpo já esteja frágil." Outras ações relacionadas à bucket list já atendidas foram a visita da professora de filosofia Lúcia Helena Galvão e uma campanha de doação de sangue entre seguidores e admiradores. Em resumo, cuidados paliativos são uma área que lida com o sofrimento gerado pelo diagnóstico e pelo tratamento de uma doença que ameaça a vida. "Muitas vezes, o paciente morre na UTI [Unidade de Terapia Intensiva], longe de seus familiares e submetido a procedimentos que causam angústia e não vão mais salvar a vida dele", apontou. O paliativista atua junto do enfermo e de toda a sua família para aliviar possíveis focos de aflição e garantir o mínimo de bem-estar, dignidade, autonomia e independência neste momento. Para Crispim, os profissionais de saúde ainda carregam uma noção muito equivocada do que é cuidar de alguém. "A nossa medicina é condicionada a entregar três coisas como valor: exames, medicamentos e procedimentos", disse. "Mas há um limite de até onde a medicina vai e nós podemos, sim, prover um outro tipo de cuidado, que aproxima e conecta as pessoas sem 'abandonar' o paciente", completou. "A sociedade tem um entendimento de que fazer intervenções é sempre bom e deixar de fazer é ruim. No cuidado paliativo, nós também prescrevemos tratamentos e procedimentos, mas nosso objetivo principal não é mais o controle da doença ou a cura", resume Arantes. Que fique claro: a decisão sobre fazer ou não determinado tratamento depende de uma conversa franca e honesta, que envolve toda a equipe médica, o paciente (se ele estiver consciente) e a família. A partir dessa reunião, é possível chegar a um consenso e tomar uma decisão em conjunto sobre o melhor caminho a seguir. Ao contrário do que diz o senso comum, os cuidados paliativos não são indicados apenas no final da vida — e idealmente eles devem estar presentes desde o momento do diagnóstico de uma enfermidade que traz sofrimento e é potencialmente fatal (como o câncer e as doenças cardíacas, neurológicas, renais…). Ana Mi entende que toda a comoção e as homenagens das últimas semanas têm a ver com aquilo que ela construiu. "Penso que sou uma pessoa que sempre está à disposição. E isso é algo que a gente escolhe estar. Eu estou sempre à disposição da vida", explica. Questionada pela BBC News Brasil sobre como esses 12 anos recentes transformaram sua visão de mundo, Ana Mi destaca que "a morte se tornou uma grande conselheira". Mas quais seriam os conselhos que ela aprendeu com a morte nesse período? "O primeiro deles é não perder tempo", responde. "E o segundo é apreciar a vida da forma como ela se apresenta", conclui.
2023-01-16
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sociedade
Graceland, a mansão onde filha de Elvis Presley será enterrada e segunda casa mais visitada dos EUA
Lisa Marie Presley, filha de Elvis, será enterrada perto do pai dela na propriedade da família, a famosa Graceland, segundo informações de um porta-voz. A cantora de 54 anos morreu após sofrer uma parada cardíaca em sua casa na quinta-feira (12/1). Ela era a única filha do "Rei do Rock 'n' Roll", Elvis Presley. Graceland foi a residência de Elvis Presley em Memphis, Tennessee (EUA), desde os 22 anos de idade e o local onde ele morreu naquele famoso dia 16 de agosto de 1977. É também onde ele está enterrado, depois que alguém tentou profanar o mausoléu da família no cemitério de Forest Hills e foi feita a transferência. A mansão tornou-se um local de peregrinação inevitável para os fãs. E, também, um negócio lucrativo: é a segunda casa mais visitada dos Estados Unidos, atrás apenas da Casa Branca, residência do presidente. Fim do Matérias recomendadas Todos os anos, cerca de 600 mil pessoas visitam essa meca do rock. Graceland é um verdadeiro reflexo de Elvis Presley: enorme, excêntrica, e fascinante. Originalmente, a área de Graceland era a extensa propriedade de uma rica família de Memphis. Em 1939, o herdeiro H.E. Toof construiu a mansão em estilo colonial e deu a ela o nome de sua filha, Grace. Em 1957, Elvis Presley, com apenas 22 anos, comprou a casa para ser a residência dos pais dele. Ele tinha apenas 22 anos, mas já tinha poder financeiro suficiente para pagar os 100 mil dólares que ela custou. Hoje, seu valor é de 100 milhões de dólares (cerca de R$ 510 milhões). Enquanto Elvis filmava "Jailhouse Rock", seu terceiro filme, as obras da casa avançavam para a reforma de um total de 23 cômodos, sendo oito quartos. Para se isolar e manter a privacidade, ele colocou um portão que ele mesmo projetou. Mas, longe de despistar os fãs, o portão serviu de referência e hoje é um ícone. Após a morte de Elvis, em junho de 1982, Graceland abriu suas portas ao público, com o objetivo de dar-lhe benefícios financeiros. A decoração que os fãs encontraram não era a mesma vista pelo rei do rock em seus últimos dias. Priscilla Presley a redecorou no mesmo estilo de quando ela morava lá, antes do divórcio. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A essência do lugar já foi descrita como ornamentada e kitsch, repleta de tons vermelhos, enfeites dourados, tapetes, espelhos, lustres ou penas reais de pavão, que era o estilo que agradava Lisa Thompson, namorada de Elvis depois de Priscilla. De todos os cantos, um que permanece intacto é a cozinha, com todos os móveis de madeira e luminárias Tiffany's. Outra das salas é a sala de televisão... Ou melhor, televisões, porque Elvis gostava de ter 3 telas ao mesmo tempo. A sala, com uma estética bem futurista, é repleta de espelhos (até no teto) e um enorme sofá. O fato de existirem quartos "temáticos" era algo do gosto de Elvis e assim se mantém até aos dias de hoje. Mas, sem dúvida, a sala mais famosa, marcante e, diga-se de passagem, a preferida do cantor, é a chamada "Jungle Room" (sala da selva). As paredes são feitas de pedra natural, tem uma cascata embutida, carpete verde e é decorada com muitas plantas. Esta sala se tornou o estúdio de gravação do cantor, onde ele gravou boa parte de Moody Blues, seu último álbum. O tour pela mansão, porém, tem uma área fechada: a parte de cima da casa. Ali ficavam o quarto, o banheiro e o escritório de Elvis. Mas, também, o quarto de sua única filha, Lisa Marie. E, de vez em quando, ela ia para Graceland e ficava nesta parte. Em ampliações posteriores, na década de 1970, foi feito um prédio com quadra para raquetebol, algo semelhante ao squash. Foi ali que Elvis colocou todos os discos de ouro. Antes, ele costumava deixá-los na sala de TV. Quando o local foi aberto ao público, eles foram levados para um salão de exposições, o Elvis Presley's Memphis, que fica dentro de Graceland. Lá você pode ver, além dos discos de ouro, os 3 Grammys que ele ganhou. Além de colecionar prêmios por seu talento, Elvis Presley colecionava carros, principalmente Cadillacs. Hoje, quem visita Graceland pode ver até 30 carros. Entre eles, o famoso Stutz Blackhawk preto, o último que o astro dirigiu. Após a tentativa de profanação do túmulo de Elvis, o pai dele decidiu transferir os restos mortais para um local seguro, em Graceland. Onde colocá-lo? Em um dos lugares preferidos do astro do rock, o Meditation Garden (Jardim da Meditação), ao lado da piscina. Lá está enterrado não só ele, mas também seus pais. A área tem uma placa comemorativa em memória do irmão gêmeo de Elvis, que morreu ao nascer. O último parente de Elvis Presley a ser enterrado ali foi Benjamin Keough, neto dele e filho de Lisa Marie, que cometeu suicídio em agosto de 2020, aos 27 anos. Agora, ao lado de seu pai e de seu filho, também estará Lisa Marie.
2023-01-16
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sociedade
Por que algumas pessoas têm dificuldade em distinguir esquerda e direita?
Quando o neurocirurgião britânico Henry Marsh se sentou ao lado da cama de seu paciente após a cirurgia, ele sabia que a má notícia que estava prestes a dar era um erro dele. O homem tinha um nervo preso no braço que exigia uma cirurgia, mas depois de fazer uma incisão na linha média do pescoço, Marsh perfurou o nervo do lado errado da coluna vertebral. Erros médicos evitáveis ​​geralmente envolvem uma cirurgia feita no lado errado - uma injeção no olho errado, por exemplo, ou uma biópsia de mama errada. Esses "never events" (jargão médico para acidentes de segurança do paciente graves e amplamente evitáveis - ou seja, que não deveriam acontecer) destacam que, embora a maioria de nós tenha aprendido esquerda e direita quando crianças, nem todos nos saímos bem. Enquanto para algumas pessoas distinguir a esquerda da direita é tão fácil quanto distinguir de cima para baixo, uma minoria significativa (cerca de uma em cada seis pessoas, de acordo com um estudo recente) tem dificuldade com a distinção. Mesmo para quem acha que não tem dificuldade, distrações como ruído ambiente ou ter que responder a perguntas não relacionadas ao que você está fazendo podem atrapalhar a conseguir dar a resposta certa. Fim do Matérias recomendadas "Ninguém tem dificuldade em dizer (que algo é) para frente e para trás, ou para cima e para baixo", diz Ineke van der Ham, professora assistente de neuropsicologia na Universidade de Leiden, na Holanda. Mas diferenciar a esquerda da direita é diferente. "É por causa da simetria e porque, quando você se vira, é o contrário, e isso torna tudo muito confuso." A distinção entre esquerda e direita é, na verdade, um processo bastante complexo, que requer memória, linguagem, processamento visual e espacial e rotação mental. Na verdade, os pesquisadores estão apenas começando a entender o que exatamente acontece em nossos cérebros quando fazemos isso e por que é muito mais fácil para algumas pessoas do que para outras. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Algumas pessoas podem distinguir de maneira inata a direita da esquerda. Elas podem fazer isso sem pensar", diz Gerard Gormley, médico e professor da Queen's University Belfast, na Irlanda do Norte. "Mas outras têm que passar por um processo." Em um esforço para entender o que acontece em erros médicos envolvendo o lado errado, Gormley e seus colegas conduziram uma pesquisa sobre a experiência de estudantes de medicina tomando decisões esquerda-direita e examinaram o processo. "Antes de tudo, você deve se orientar da direita para a esquerda em você mesmo", diz ele. Quando a resposta não vem instantaneamente, os participantes descrevem várias técnicas, desde fazer um L com o polegar e o indicador, até pensar em qual mão eles usam para escrever ou tocar violão. "Para algumas pessoas, a referência pode ser uma tatuagem ou piercing no corpo", diz Gormley. Então, quando você descobrir de que lado a outra pessoa está, esquerda ou direita, o próximo passo é virar mentalmente para a mesma direção que a outra pessoa. "Se eu estiver de frente para você, minha mão esquerda estará voltada para a sua mão direita", diz Gormley. "Essa ideia de girar mentalmente um objeto adiciona um grau extra de complexidade." Outras pesquisas mostram que as pessoas acham mais fácil julgar se uma imagem mostra a mão esquerda ou direita imaginando sua própria mão ou corpo girando. Uma pesquisa publicada por Van der Ham e colegas em 2020 revelou que cerca de 15% das pessoas se consideram insuficientes quando se trata de identificar esquerda e direita. Quase metade dos 400 participantes do estudo disseram que usaram uma estratégia relacionada à mão para identificar qual é qual. Os pesquisadores usaram o chamado teste de discriminação direita-esquerda de Bergen para aprofundar como essas estratégias funcionam. Os participantes olharam para imagens de pessoas desenhadas como bonecos palito. Algumas figuras olhavam para eles e outras não, e tinham os braços em várias posições. As pessoas então deveriam identificar a mão que se destacava, se era a esquerda ou direita. "Parece simples, mas é um pouco frustrante se você tiver que fazer cem vezes o mais rápido possível", diz Van der Ham. No primeiro experimento, os participantes sentaram-se com as mãos sobre uma mesa à sua frente. "Houve um efeito muito claro na forma como este pequeno boneco foi colocado", diz Van der Ham. Se você olhasse para a parte de trás da cabeça, então ela estava alinhada com você, então as pessoas eram muito mais rápidas e precisas." Da mesma forma, quando o boneco estava de frente para o participante, mas com as mãos cruzadas, de modo que a mão esquerda ficasse do mesmo lado da mão esquerda do participante, as pessoas tendiam a se sair melhor. "Isso nos diz que o corpo está realmente envolvido nisso", diz Van der Ham. A próxima pergunta era se os participantes estavam usando sinais de seu corpo no momento do teste para identificar esquerda e direita ou se estavam usando como referência uma ideia armazenada sobre seu corpo. Para responder a isso, os pesquisadores repetiram o experimento, mas desta vez testaram quatro cenários diferentes: os participantes sentaram-se com as mãos cruzadas ou descruzadas sobre a mesa à sua frente e ficaram com as mãos visíveis durante o teste ou cobertas com um pano preto. Mas os pesquisadores descobriram que nenhuma dessas mudanças influenciou o desempenho do teste. Em outras palavras, os participantes não precisavam ver suas mãos para usar seus próprios corpos para distinguir a direita da esquerda. "Não resolvemos completamente o problema", diz Van der Ham. "Mas fomos capazes de identificar nossos corpos como um elemento-chave para distinguir a esquerda da direita e consultamos nossa representação corporal de uma maneira mais estática". Nos experimentos de Van der Ham, o aumento no desempenho resultante de estar alinhado com o boneco foi mais revelado em pessoas que disseram usar uma estratégia relacionada à mão para diferenciar a esquerda da direita em suas vidas diariamente, assim como em mulheres no geral. Os pesquisadores também descobriram que os homens tendem a responder mais rápido do que as mulheres, mas os dados não corroboram estudos anteriores que mostram que os homens têm um desempenho geral melhor em testes de distinção esquerda-direita. Não está claro exatamente por que as pessoas diferem em sua capacidade de distinguir a esquerda da direita, embora pesquisas indiquem que quanto mais assimétrico é o corpo de uma pessoa (em termos de preferência de mão para escrever, por exemplo), mais fácil é para ela diferenciar esquerda e direita. "Se um lado do seu cérebro é ligeiramente maior que o outro, você tende a ter uma melhor diferenciação direita-esquerda", diz Gormely. Mas também pode ser algo que aprendemos na infância, como outros aspectos da cognição espacial, diz Van der Ham. "Se as crianças estão encarregadas de guiar o caminho, se você apenas deixá-las caminhar alguns metros à sua frente e tomar as decisões, essas são as crianças que acabam sendo melhores navegadores", diz ela. A pesquisa de Alice Gomez e colegas do Lyon Neuroscience Research Centre, na França, sugere que a diferenciação esquerda-direita é algo que as crianças podem aprender rapidamente. Gomez projetou um programa de intervenção de duas semanas, liderado por um professor, para aumentar a representação corporal e as habilidades motoras para crianças de 5 a 7 anos. Quando a capacidade de localizar a parte correta do corpo em si ou em um parceiro (o joelho direito, por exemplo) foi testada após o programa, o número de erros de diferenciação esquerda-direita caiu quase pela metade. "Foi muito fácil para a gente aumentar as habilidades das crianças para localizar (a parte do corpo) com base no nome", diz Gomez. Uma razão para isso pode ser que as crianças aprenderam uma estratégia: pensar na mão que usam para escrever, quando não conseguiam se lembrar da direita e da esquerda. O foco do programa nos próprios corpos das crianças é outra explicação possível, especialmente porque outras pesquisas mostram que um quadro de referência egocêntrico é fundamental ao tomar decisões de esquerda e direita. Em uma sala de aula regular, as crianças podem etiquetar as partes do corpo de um boneco em vez de seus próprios corpos, porque o último consome mais tempo e é mais difícil para um professor avaliar, diz Gomez. Embora existam muitos cenários cotidianos em que é importante distinguir a esquerda da direita, há algumas situações em que isso é absolutamente vital. O neurocirurgião Marsh conseguiu corrigir sua cirurgia de descompressão de nervo, mas um cenário de um cirurgião removendo o rim errado ou amputando o membro errado, por exemplo, teria consequências devastadoras. A medicina não é o único campo onde os erros esquerda-direita podem significar a diferença entre a vida e a morte: é possível que um timoneiro virando o barco para a direita em vez da esquerda tenha contribuído para o naufrágio do Titanic. Mas, enquanto algumas pessoas têm que trabalhar mais para distinguir a esquerda da direita, todos têm chances de errar nessas decisões, diz Gormley. O especialista espera que uma maior conscientização sobre a facilidade de cometer erros desse tipo leve a menos estigma contra aqueles que precisam verificar sua decisão. "Como profissionais de saúde, passamos muito tempo rotulando as orientações espaciais - proximal, distal, superior, inferior - mas não prestamos atenção à esquerda ou à direita", diz ele. "E, na verdade, de todas as orientações espaciais, essa é a mais desafiadora." Cerca de uma em cada dez pessoas é canhota, e estudos com gêmeos mostraram que a genética desempenha um papel importante. Um estudo da Universidade de Oxford, no Reino Unido, revelou recentemente quatro regiões no DNA humano que parecem desempenhar um papel crucial para determinar se alguém é canhoto ou destro. Aqueles que eram canhotos apresentavam "mutações" em quatro genes que codificam o citoesqueleto do corpo, o complexo andaime encontrado dentro das células para ajudar a organizá-las. Exames em pessoas com essas mutações mostraram que a substância branca em seus cérebros tinha uma estrutura diferente. Os lados esquerdo e direito dos cérebros dos canhotos também estavam melhor conectados do que os dos destros.
2023-01-16
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sociedade
Vídeo, O menino prodígio de 11 anos que 'toca piano como Mozart'Duration, 1,22
Jude tem 11 anos, é autista e pode ser o próximo Mozart. Ele começou tocando o teclado da família, que vive no Colorado, nos Estados Unidos. Hoje, ele ouve uma música e sabe imediatamente como tocar. O talento dele chamou a atenção de um afinador de piano, Bill Magnusson, que o surpreendeu com um presente inacreditável — um piano de cauda. "Isso veio de um completo estranho, que nunca conheceu ele, simplesmente decidiu ajudá-lo", conta Isaiah Koife, pai de Jude. "É incrível."
2023-01-16
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64288500
sociedade
Por que autoconhecimento é a melhor ferramenta para encontrar motivação
No início do ano, muita gente naturalmente pensa nas metas para os próximos meses. E, ao fazer isso, vale a pena prestar atenção não só nos desafios em si, como também nos motivos que nos levam a persegui-los. Digamos que você esteja planejando escrever um romance, por exemplo. Você pretende escrever pelo puro prazer de criar um mundo de ficção habitado por personagens curiosos? Ou por que você adora literatura e quer deixar uma contribuição valiosa para a cultura? Talvez você queira simplesmente provar para si mesmo que é capaz de ter um livro publicado. Ou quem sabe você anseie pela fama, e escrever um best-seller pareça um ótimo caminho para reconhecimento. A teoria da autodeterminação afirma que cada uma dessas questões representa uma fonte diferente de motivação com consequências distintas — boas e ruins — para o nosso desempenho e bem-estar. As pesquisas indicam que, escolhendo as metas certas, pelas razões certas, você será mais engajado e determinado, obtendo maior satisfação com seu sucesso. Fim do Matérias recomendadas Como muitas ideias científicas, a teoria da autodeterminação vem sendo elaborada há anos. Ela surgiu em estudos dos anos 1970, mas só começou a atrair interesse de verdade depois da publicação de um artigo pioneiro no ano 2000, que descreveu alguns dos seus principais conceitos relativos à motivação, desempenho e bem-estar. A teoria parte da noção otimista de que a maioria dos seres humanos tem o desejo natural de aprender e se desenvolver. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Ela se baseia na premissa de que as pessoas são orientadas para o crescimento", explica Anja Van den Broeck, professora da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade Católica de Leuven, na Bélgica. A orientação para o crescimento é mais visível no interesse insaciável das crianças pequenas pelo mundo à sua volta. Mas os adultos também podem sentir fascínio e curiosidade inerentes por certas atividades, fazendo com que a simples realização de uma tarefa seja sua própria recompensa. Pense em uma ocasião em que você ficou tão envolvido em uma atividade que não notou o tempo passar. Esta é a chamada motivação intrínseca. Mas, muitas vezes, nossa motivação intrínseca pode não ser suficiente para realizar uma tarefa necessária para atingir nossos objetivos. Nestes casos, precisamos nos incentivar — ou ser incentivados — com diferentes formas de motivação extrínseca, como: Identificação: você pode não gostar da atividade em si, mas ela pode ser importante para seus valores e objetivos mais amplos, o que fornece outra forma de motivação. Para um professor, por exemplo, o reconhecimento da importância da educação e seu papel para melhorar o futuro dos alunos pode motivá-lo a passar mais horas corrigindo deveres de casa. Para o aspirante a romancista, a sensação de estar criando uma obra literária importante pode fazer com que ele revise seu original, mesmo se o ato de escrever propriamente dito possa, às vezes, parecer trabalhoso. Introjeção: às vezes, nós nos pressionamos para preservar nosso ego e autoimagem. "Sua autoestima pode depender da atividade", explica van den Broeck. Você receia que, se não atingir seu objetivo, sentirá vergonha e uma sensação de fracasso. Regulação externa: às vezes, a motivação vem simplesmente de recompensas externas, como fama e fortuna. Em alguns ambientes de trabalho, a regulação externa pode vir na forma de bônus de desempenho e aumentos salariais. Você continua a se concentrar no trabalho para conseguir o dinheiro, mesmo se achar que as tarefas em si são maçantes e sem sentido. Se as pessoas não forem influenciadas por esses fatores, vem a desmotivação. E, como se pode esperar, pessoas desmotivadas normalmente apresentam baixa produtividade e comprometimento. A desmotivação pode ser evidente na educação, com estudantes que aproveitam qualquer oportunidade para faltar aula e não têm intenção de se esforçar nos estudos. Os psicólogos que estudam a teoria da autodeterminação elaboraram diversos questionários para avaliar cada um desses tipos de motivação em vários contextos diferentes. E, ao longo das últimas duas décadas de pesquisa, surgiram alguns padrões muito claros. Van den Broeck, por exemplo, analisou recentemente 104 estudos que examinam a motivação no ambiente de trabalho. E, como era esperado, a motivação intrínseca — o interesse ou prazer inerente causado pelo trabalho em si — previa uma melhor satisfação profissional, dedicação e proatividade, além de proteger fortemente contra o burnout. A identificação — sensação de que o trabalho é importante ou significativo — também foi excelente para o bem-estar, e provou ser ainda mais importante para o desempenho profissional. Já os efeitos dos outros tipos de motivação tendem a ser mais ambíguos. A introjeção (a relação entre o trabalho e a autoestima) parece garantir um melhor desempenho profissional, mas também aumenta o estresse e o risco de burnout, o que é um preço alto a pagar pelo sucesso profissional. E a regulação externa — os incentivos puramente financeiros para alcançar um bom desempenho — provou ter as piores consequências. Como fonte principal de motivação, seus efeitos sobre o engajamento e o desempenho se mostraram limitados, além de prejudicar o bem-estar. Há até algumas evidências de que as pessoas que são motivadas unicamente pelas recompensas extrínsecas são mais propensas a agir com desonestidade, como mentir sobre seu desempenho, para conseguir o reconhecimento que desejam. É importante fazer uma ressalva ao analisar estas conclusões, segundo o psicólogo do trabalho Ian MacRae, autor de livros como Motivation and Performance ("Motivação e desempenho", em tradução livre), em parceria com Adrian Furnham. Embora observe a importância de distinguir os diferentes tipos de motivação, MacRae destaca que sua importância relativa dependerá das circunstâncias mais gerais. Por exemplo, se alguém estiver enfrentando dificuldade com a crise do custo de vida, motivações "externas" como a promessa de um pacote de aumento salarial podem fazer toda a diferença. "Você precisa ter cuidado ao tirar conclusões para todos os setores do mercado de trabalho", ele adverte. Mas, se as suas necessidades básicas estiverem sendo atendidas, a motivação intrínseca se torna muito mais significativa, segundo MacRae. Por isso, se você estiver em uma posição financeira relativamente estável, talvez possa repensar começar um projeto ou aceitar um cargo novo apenas pelo dinheiro extra — a menos que você ache que a proposta também despertaria sua curiosidade ou ofereceria sensação de propósito e significado. MacRae sugere que, ao questionar suas fontes de motivação, você pode melhorar sua experiência no seu emprego atual. "A autoconsciência tem importância fundamental. Um dos principais pontos é entender o que você realmente quer do trabalho — se é uma questão de relacionamento profissional com outras pessoas ou de aprender e se desenvolver, por exemplo." Você pode então procurar oportunidades para capitalizar esses elementos. Do ponto de vista da gestão, MacRae afirma que é essencial que os líderes ouçam atentamente quando seus funcionários expressam essas motivações — e devem fazer um esforço genuíno para fornecer os recursos necessários que permitam aos funcionários buscar esses interesses. Isso pode ser muito mais eficaz para revitalizar a força de trabalho do que oferecer um bônus de final de ano ao membro mais produtivo da equipe. Van den Broeck concorda. Ela destaca que oferecer senso de autonomia aos funcionários influencia as formas intrínsecas e de identificação da motivação. Isso não significa dar aos funcionários total liberdade para fazer o que quiserem, mas que é possível oferecer alguma possibilidade de escolha dentro das atividades que realizam, e explicar o propósito das tarefas inevitáveis que forem atribuídas a eles — para que possam pelo menos entender como seu trabalho se encaixa na missão da equipe. A teoria da autodeterminação não se refere apenas ao mundo do trabalho. Ela também pode servir para os nossos hobbies. Você pretende aprender uma língua estrangeira, por exemplo, simplesmente para impressionar as pessoas? Ou porque você tem um interesse genuíno pela cultura ou uma necessidade específica de se comunicar com falantes daquele idioma? Se a sua inspiração for esta última, você vai achar o inevitável trabalho árduo muito menos penoso do que alguém que quer aprender o mesmo idioma pelo status social de ser poliglota. Já em relação à preparação física, você talvez possa se pressionar a fazer a atividade mais difícil que puder, simplesmente porque quer provar suas habilidades para si mesmo ou para outras pessoas — e pode sentir que está fracassando de alguma forma se não se esforçar ao máximo. Mas nenhuma dessas razões reflete muita motivação intrínseca. Por que então não escolher uma atividade um pouco menos extenuante, mas muito mais prazerosa? Pesquisas recentes indicam que as pessoas que escolhem seus exercícios físicos desta forma apresentam maior persistência do que as que não consideram seus interesses ou prazer nas atividades. Por isso, mesmo que as sessões sejam um pouco menos cansativas, se você tiver mais chance de continuar praticando a atividade, o compromisso de longo prazo renderá dividendos maiores. Afinal, a vida é curta, e há um limite para o que podemos alcançar com o tempo que nos é dado. A teoria da autodeterminação é um lembrete de que precisamos ser seletivos em relação às atividades que buscamos realizar. Se você se concentrar nas metas que sejam pessoalmente mais significativas e agradáveis, ignorando as que foram inspiradas ou impostas por outras pessoas, o autodesenvolvimento não precisa ser uma obrigação — mas, sim, uma fonte de alegria.
2023-01-14
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-64167752
sociedade
Como é viver 10 anos com mão transplantada: 'Salvei minha esposa em infarto'
Em 27 de dezembro de 2012 foi feito o primeiro transplante de mão no Reino Unido. Uma década depois, conversamos com o paciente e o cirurgião pioneiro no procedimento. "Muitos pacientes dizem que, depois da cirurgia, pequenas coisas ficam mais significativas para eles", disse o professor e cirurgião plástico Simon Kay OBE. "Poder escovar o cabelo de uma filha, pegar dinheiro no bolso ou abrir a torneira para encher um copo de água..." Ou, no caso de Mark Cahill, salvar a vida da esposa após ela sofrer um ataque cardíaco. A cirurgia de Cahill foi feita no hospital universitário de Leeds, que abriga a Unidade de Transplante de Mãos do Reino Unido. É o único local que faz esse tipo de procedimento complexo no país. O local é considerado um dos pioneiros mundiais no transplante de mãos em todo o mundo, uma área da medicina que parecia impossível décadas atrás. Fim do Matérias recomendadas Alguns dos pacientes que passaram pelos corredores desse hospital na última década perderam as mãos ou membros devido a acidentes. Outros em razão de condições médicas, como sepse ou esclerodermia (endurecimento da pele e dos órgãos internos que causa comprometimento dos pequenos vasos sanguíneos). Mark Cahill é um paciente modelo nessa unidade médica. Em 2012, após sofrer por anos com gota (doença inflamatória que acomete, principalmente, as articulações), a mão direita dele infeccionou a ponto de exigir amputação. Foi então que a vida dele cruzou com a do "profe", como ele se refere ao professor e cirurgião Simon Kay, uma expressão que reflete a proximidade criada entre ambos ao longo dos anos. "Minha mãe tinha visto o professor Kay na TV dizendo que faria transplantes de mãos", lembra Cahill. "Consegui uma consulta e ele me disse que eu era o candidato ideal. Conversei com a minha família e resolvi fazer: 'tem que ser melhor do que o que eu tenho'. E, de fato, tem sido." Transplante de mãos no Reino Unido Fonte: Leeds Teaching Hospitals NHS Trust Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Cahill foi submetido à cirurgia somente após intensas entrevistas psicológicas. "Eles colocam à prova o seu estado psicológico para ver se você está apto", disse. Um dia depois do Natal, finalmente chegou a ligação que ele e sua família tanto esperavam. "Eles falaram: você pode vir? E explicaram que eu poderia passar um tempo no hospital enquanto faziam os exames para ver se eu era apto. Todo tipo de coisa passa pela sua mente: terei êxito e vou gostar do resultado? Não sabemos essas coisas até depois da operação." Para ele, a decisão de fazer o transplante foi inevitável. A equipe cirúrgica entrou em contato com os cirurgiões da França que fizeram o primeiro transplante de mão em 1998. "Eles me colocaram para dormir e acordei com uma mão nova", diz Cahill, que fez o transplante no dia seguinte. "Lembro-me de acordar na unidade de terapia intensiva e o professor entrar e dizer: 'vamos dar uma olhada'". "Eu podia mover meus dedos um pouco e o professor disse: 'Não faça isso ainda'. Então pensei: 'Está funcionando agora'. É incrível que tenha se movido tão rápido." Foram meses de fisioterapia. "Foi difícil no começo", lembra ele. "Seus nervos demoram muito para crescer e sem eles seus movimentos e sensações não estão lá." Ele diz que a operação mudou a vida dele porque restaurou o que considera sua independência. "Antes eu tinha que pedir para as pessoas fazerem as coisas para mim. Dirigir, por exemplo, consigo dirigir com a mão direita, o que facilita muito." Também acabou salvando uma vida quando, em 2016, sua esposa, Sylvia, sofreu um ataque cardíaco. "Ela ficou desacordada por 19 minutos e por pelo menos 10 deles eu a mantive viva com compressões cardíacas usando minha mão direita." Ele diz que sempre será grato à equipe que o acompanhou. "Eles foram absolutamente fantásticos." O professor Kay olha para o passado com orgulho. "Há dez anos, realizamos o que era considerada uma cirurgia pioneira, tornando esse serviço acessível, bem coordenado e com uma das duas unidades mais importantes do mundo", disse. "O nível de experiência e qualidade do atendimento dessa equipe é excepcional e, claro, nossas cirurgias não seriam possíveis sem a coragem e a generosidade dos doadores e suas famílias", afirmou. "Suas contribuições têm permitido mudar vidas. Trabalhar nessa área é um privilégio." No entanto, uma década após a primeira cirurgia, a doação de mãos ainda não é uma opção que possa ser selecionada no registro de doadores no Reino Unido. "Precisamos de doadores", disse Cahill. "É uma pergunta muito difícil para os enfermeiros fazerem às pessoas (familiares autorizados)."
2023-01-06
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64112974
sociedade
Dia de Reis: corrida por ouro na África ameaça produção de incenso e mirra
Os Reis Magos levaram três presentes preciosos para marcar o nascimento de Jesus, segundo a Bíblia. Agora, uma corrida do ouro moderna na Somalilândia coloca em risco o secular comércio de mirra (planta medicinal) e de olíbano (resina usada na fabricação de incenso). "O ouro, o incenso e a mirra levados pelos três homens sábios para o menino Jesus com certeza saíram daqui", afirma o ancião sentado na areia, à sombra de uma árvore. Encontrei Aden Hassan Salah na montanha Daallo, na cordilheira de Golis, que se estende pela autodeclarada república da Somalilândia e pelo Estado da Puntlândia, na Somália. Os dois territórios reivindicam a região. "As rotas das caravanas de camelos que passaram séculos transportando esses produtos daqui para o Oriente Médio podem ser vistas do espaço", diz Salah. A Bíblia conta como esses animais carregaram os presentes dos Reis Magos para Belém, onde se acredita que Jesus nasceu. Um homem mais jovem, vestido com um sarongue (espécie de saia) e uma camisa do clube de futebol inglês Manchester United, levanta-se do chão. Seu nome é Mohamed Said Awid Arale. Fim do Matérias recomendadas "Como você certamente sabe, 'Puntlândia' significa 'terra de aromas deliciosos'", relembra ele. "Mil e quinhentos anos antes do nascimento de Jesus, a mais poderosa mulher faraó do Egito, Hatshepsut, fez uma expedição famosa até aqui. Ela ordenou a construção de cinco barcos para a viagem, encheu-os com os três produtos preciosos e navegou de volta para casa", ele conta. "O ouro foi usado para adornar o corpo de Hatshepsut, o incenso de olíbano foi queimado nos seus templos e a mirra foi usada para mumificá-la depois que ela morreu", afirma Arale. Ouro, incenso e mirra são exportados da região há milhares de anos. Grande parte do olíbano consumido no mundo para a fabricação de incenso vem da região conhecida como Chifre da África. Mas, atualmente, um dos presentes levados para o menino Jesus - o ouro - está semeando a destruição dos outros dois. E os homens da montanha Daallo fazem parte do problema. Eles lideraram uma corrida do ouro que começou cerca de cinco anos atrás e fez com que fossem arrancadas as plantas de olíbano e as árvores de mirra, algumas com séculos de idade. "Multidões de garimpeiros invadiram as montanhas", segundo Hassan Ali Dirie, da organização ambiental Candlelight. "Eles cortam todas as plantas para limpar a área para a mineração. Eles danificam as raízes das árvores enquanto cavam em busca de ouro. Eles bloqueiam cursos d'água importantes com suas garrafas de plástico e outros tipos de lixo." "Dia após dia, eles estão causando a lenta morte dessas árvores antigas", diz. "Primeiro, morreram as árvores de mirra, que são arrancadas pelas raízes quando as escavadeiras limpam o terreno para a mineração de superfície. As árvores de olíbano duram um pouco mais porque crescem sobre as rochas, mas são destruídas quando os garimpeiros cavam mais fundo na terra." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Subindo um pouco mais pela montanha, encontramos uma aldeia onde as árvores de olíbano são passadas de geração em geração. Ali, uma mulher está sentada em uma cadeira plástica azul na varanda de casa, rodeada por crianças, suas mães e filhotes de cabras. "Não tenho ideia do que você está falando", responde Racwi Mohamed Mahamud, quando pergunto a ela sobre a história dos presentes dos três Reis Magos. "Tudo o que sei é que minha família é dona destas árvores há centenas de anos. Elas são passadas do trisavô para o bisavô, para o avô, para o pai e para o filho", ela conta. Ela pede a um jovem para pegar um pouco de resina de olíbano retirada recentemente da árvore. Ele trouxe um embrulho de pano, colocou-o no chão e abriu. O ar ficou cheio de um delicioso perfume amadeirado. Nós peneiramos a substância grudenta para separar pedaços de olíbano. Esses pedaços são limpos, secos e classificados para serem vendidos a intermediários que os exportam para todo o mundo. O incenso é queimado nas igrejas, mesquitas e sinagogas. O olíbano também é usado para produzir remédios, óleos essenciais, cosméticos sofisticados e perfumes - incluindo o famoso Chanel N° 5. Mahamud lança um olhar vago quando pergunto o que ela acha de ver seu olíbano sendo vendido em lojas de departamento sofisticadas, prometendo propriedades milagrosas contra o envelhecimento e em aromas misteriosos e sedutores. "Parece bobagem para mim", responde ela. "Nós queimamos olíbano para espantar moscas e mosquitos. Nós o inalamos para curar resfriados e o consumimos para tratar de inflamações. É isso." Os colhedores recebem muito pouco pelo olíbano. Um quilo do produto é vendido por US$ 5 a US$ 9 (cerca de R$ 26 a R$ 48). Já houve escândalos envolvendo intermediários inescrupulosos e a ganância de companhias estrangeiras. Eles conseguem um pouco mais pela mirra, que vendem atualmente por US$ 10 (cerca de R$ 53) por quilo. Como o olíbano, a mirra é uma resina extraída de pequenas árvores espinhosas. Ela é usada para embalsamar cadáveres e na fabricação de perfumes, incenso e remédios. Acredita-se que a mirra tenha propriedades antissépticas, analgésicas e anti-inflamatórias. Ela também é usada em cremes dentais, enxaguantes bucais e pomadas para a pele. Os moradores locais explicam como os garimpeiros chegaram à sua região com pás e picaretas. "Nós lutamos contra eles", conta Mahamud, fechando o punho. "Nós dissemos: 'vocês vieram aqui pelo seu ouro, amarelo e bruto. Nós temos o nosso ouro verde e ninguém pode tirá-lo de nós." Os garimpeiros então fugiram e nunca mais voltaram. A atmosfera na vila de olíbano era completamente diferente do acampamento dos garimpeiros. Era simples, mas havia um senso de comunidade. Jovens e anciãos passeavam, conversavam, tomavam chá e se queixavam de como os baixos preços do olíbano dificultaram a sobrevivência, especialmente nestes tempos de inflação alta e forte seca. Levei um tempo para perceber o que havia de tão estranho no acampamento dos garimpeiros. Foi quando percebi que ali não havia mulheres, nem crianças. "Realmente não sabemos o que aconteceu com as nossas famílias", afirma Salah, o ancião que encontrei sentado sob a árvore. "Nós costumávamos ser nômades, mas perdemos várias estações chuvosas a fio e as secas nos fizeram abandonar nosso modo de vida tradicional." Salah explicou como eles chegaram às montanhas em 2017, em busca de ouro. "Não havia nada aqui quando chegamos. Era só um leito de rio seco. Este foi o primeiro lugar onde o ouro foi encontrado. Aqui, nós construímos uma espécie de aldeia", ele conta, apontando para os barracos feitos com gravetos. Perguntei a Salah e às dezenas de outros homens sentados com ele se eles preferiam a vida de minerador à de nômade. Eles balançaram a cabeça negativamente e começaram a gritar com raiva. "Quando éramos nômades, nós tínhamos dignidade", afirma ele. "Não dependíamos de ninguém. Nós vivíamos com nossas famílias, nossos camelos, cabras e carneiros. Nada nos faltava." "Os camelos carregavam nossos abrigos e panelas. Os animais nos forneciam comida e leite. Nós não podemos comer nem beber o ouro que encontramos. Ele não consegue carregar nossos abrigos e pertences", afirma Salah. Os garimpeiros explicam como eles vendem o minério para os contrabandistas que o levam de navio para Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. A mineração não está destruindo só o meio ambiente. Ela está arruinando a vida deles. "Nós viramos dependentes de drogas", afirma Arale, o homem com a camisa vermelha do Manchester United. "Somos reféns dos negociantes de khat", uma folha narcótica mastigada por muitas pessoas na Somália. "Eles controlam nossas vidas. Gastamos todo o dinheiro com khat e não com nossas famílias, que estão perdidas para nós." Enquanto eles falam, uma caminhonete entra na aldeia. Dois homens bem vestidos saem do veículo e os garimpeiros dizem que são vendedores de khat. "O ouro também arruinou nossas vidas de outras formas", afirma Salah. "Ele deixou alguns de nós loucos, como o nosso amigo que encontrou US$ 50 mil [cerca de R$ 267 mil] em ouro e perdeu o juízo." Dirie, da organização Candlelight, explica como o ouro está destruindo a comunidade local. "Houve escolas que fecharam porque todos os professores saíram para a corrida do ouro. Os alunos também estão saindo", ele conta. Dirie afirma que somalis de outras regiões estão chegando às montanhas, causando lutas mortais entre os clãs. "Muitos dos garimpeiros estão armados", afirma ele. "Precisamos sair agora. Não é seguro ficar muito tempo por aqui." Os garimpeiros afirmam que o grupo islâmico Al-Shabab e a facção do Estado Islâmico na Somália começaram a cobrar impostos dos garimpeiros. Enquanto saímos de carro das montanhas pela longa e empoeirada estrada de volta, fico imaginando se as pessoas que compram perfumes, cosméticos e joias caras têm alguma ideia de onde vêm as substâncias usadas para sua produção, do número de mãos pelas quais elas passam e quanta destruição elas causam.
2023-01-06
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64182393
sociedade
Os profissionais brasileiros que sāo valorizados no exterior e talvez você não saiba
"'Oh, futebol, samba, carnaval!", é o comentário, quase sempre acompanhado de um sorriso, que muitos ouvem no exterior quando mencionam que são brasileiros. Mas, se por um lado essa é uma face bastante conhecida do Brasil fora de suas fronteiras, muita gente pode não saber que profissionais dessa nacionalidade também são disputados pelo mundo em outros ramos. A BBC Brasil reúne aqui algumas histórias que contrariam o "complexo de vira-lata" e mostram áreas em que profissionais brasileiros são valorizados pela excelência técnica e eficiência profissional — e em que características "típicas" como espontaneidade e paixão ajudaram bastante. Priscila Kolbe, que atua em Londres há 15 anos, costuma dizer que ninguém senta na cadeira do dentista porque quer, mas que seus pacientes definitivamente se sentem aliviados por estarem sendo tratados por uma dentista brasileira. "O dentista brasileiro não trabalha só com as mãos, ele trabalha com o coração. Nós como brasileiros, pelo menos eu que sou de Salvador, temos uma energia diferente. É um ser humano por trás de um profissional", afirma. Fim do Matérias recomendadas Para além do tratamento e da comunicação com o paciente, a odontologia brasileira é conhecida internacionalmente pela excelência técnica. O curso de odontologia da USP, por exemplo, foi considerado em 2022 o melhor do mundo na classificação internacional SCImago Institutions Rankings (SIR), ranking anual que é ligado ao Conselho Superior de Investigaçōes Científicas (CSIC), agência do Estado espanhol dedicada ao fomento da investigação científica e tecnológica. O Brasil também é exportador de novas técnicas de odontologia como o Digital Smile Design (DSD), conceito desenvolvido em 2007 pelo dentista e ceramista brasileiro Christian Coachman, que permite ao dentista projetar tratamentos e mostrar ao paciente uma prévia do resultado. Para Priscila os negócios vão bem e expansōes estão a caminho. "No Reino Unido essa é uma profissão bem reconhecida e, consequentemente, bem remunerada. Comecei como uma dentista individual que trabalhava muito, um dia abri minha primeira clínica, seguida pela segunda e pela terceira. Hoje nós somos um time de dentistas brasileiros atendendo em Londres" conta a profissional baiana, que também faz sucesso no Instagram com quase 30 mil seguidores. Em 2022, o Brasil foi novamente um dos destaques do Festival de Criatividade de Cannes, o principal prêmio da publicidade mundial. Foram 70 Leōes trazidos para casa e um deles conquistado pela equipe de Daniel Schiavon, da Ogilvy. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É o terceiro país mais premiado do mundo no geral, não é pouca coisa. A gente está competindo com os Estados Unidos e Londres, que são os primeiros lugares, que tem verbas muito maiores, onde estão as matrizes das maiores marcas. E a gente aqui com muito menos eu acho que a gente consegue fazer bastante coisa", diz. O segredo, para Schiavon, está na "mistura" característica do país. "Toda essa miscigenação brasileira faz com que a gente consiga conversar com pessoas com bagagens culturais muito diferentes e isso faz com que a gente performe muito bem em festivais globais. A publicidade brasileira se beneficia do tamanho do país", afirma o publicitário. Para Schiavon, o jeito brasileiro de ser também contribui muito para o sucesso na publicidade. "A gente de fato se comunica muito bem, seja em qual língua for e consegue expressar nossas opiniões sem medo de se colocar e se posicionar. Essa forma latina de saber trazer alegria, emoção e todos esses sentimentos muito fortes ajudam a gente a construir bons projetos porque grandes ideias com uma história contada sem emoção não conseguem performar", diz. Com reputação de inovadora, a publicidade brasileira tem servido de exemplo no mundo todo. "Às vezes a gente acha que a inovação vai partir de um país de primeiro mundo, onde a tecnologia está mais presente. Mas nós aqui com a Lu do Magalu, que foi o case vencedor do Leão de Ouro em Cannes esse ano, somos um projeto que a Ogilvy China usa para vender Inteligência Artificial no país deles". Daniel acha que o motor por trás da inovação é a forma apaixonada de fazer as coisas e uma consequente curiosidade maior que a média. A (personagem digital) Lu do Magalu citada por ele é hoje a maior influenciadora digital virtual do mundo, na frente de nomes como Barbie e Minnie Mouse, mesmo falando português ao invés de inglês. "A Lu já era a Lu antes de se falar de metaverso, as pessoas nem sabiam ainda que existia o metaverso por que faltava um Mark Zuckerberg cunhar um termo", diz o publicitário. Pedro Alvim, Social Media Manager do Magalu, revela que o sucesso da Lu já gera receita ao invés de gastos: "o custo da tecnologia 3D é muito alto, não é uma tecnologia muito democrática. É legal falar que a Lu já paga as roupinhas dela, é mais caro que um Chanel", conta. Quem sente o cheiro do tucupi sendo aquecido em uma das ruas no bairro londrino de Bethnal Green pode até estranhar, mas é que ali funciona uma cozinha que é comandada pelo chef brasileiro Rafael Cagali. Sempre inclinado a usar ingredientes brasileiros em suas descobertas gastronômicas, o paulista tem feito sucesso com o restaurante Da Terra, criado há apenas 3 anos, mas já com duas estrelas Michelin. "Foi em janeiro de 2021 que a gente recebeu a segunda estrela. Foi uma sensação que me arrepia só de lembrar", conta o chef. O nome de Rafael está longe de ser o único de destaque fora do Brasil — onde Helena Rizzo já foi eleita a melhor chef mulher do mundo e Alex Atala chegou ao posto de sexto melhor restaurante global com o autoral D.O.M. Para Rafael, um dos segredos desse sucesso é "o modo do brasileiro ser, muito trabalhador e com muita vontade de fazer acontecer. Isso ajuda a se destacar mais", opina. A biodiversidade do país, que gera sabores únicos em biomas tão diferentes, também é vista por ele como um dos fatores que diferencia a comida de chefs brasileiros. "O pessoal gosta muito da pimenta cumari. Os clientes querem levar pra casa, querem saber onde compra. Eles ficam empolgados para experimentar mais coisas do Brasil", diz. Outra categoria em que brasileiros acumulam prêmios no exterior pode surpreender: é a de mecânicos. O paulista Fernando Henrique Cruz, por exemplo, foi eleito o melhor mecânico do mundo em 2019 no Global TechMasters Truck, uma competição global promovida pela Mercedes-Benz a cada dois anos. Para Marcos Giglioli, que tem, desde 2019, uma oficina mecânica de sucesso em Bournemouth, litoral da Inglaterra, um dos diferenciais no seu ramo é um velho conhecido da cultura brasileira. "O nosso famoso jeitinho brasileiro não é bom para muitas coisas, mas para o nosso ramo aqui, focado em correção e manutenção de veículos, se torna uma vantagem, porque às vezes conseguimos corrigir o problema sem ter que trocar todas as peças como é costume se fazer por aqui", conta. Rogério diz que trocar peças é mais fácil para o mecânico, mas que nem sempre é necessário e torna o serviço mais caro. "Às vezes a gente tem uma peça de suspensão que se eu trocar uma bucha do braço inferior da suspensão resolve o problema, mas aqui eles querem trocar o braço todo", explica, acrescentando que isso faz os clientes serem fiéis aos mecânicos brasileiros quando os conhecem. A habilidade do improviso é, inclusive, uma das razões pelas quais, na hora de contratar, Rogério prefere escolher profissionais da mesma nacionalidade: "Muitos profissionais não gostam de sair dessa caixinha do 'preciso fazer mais rápido para poder ganhar mais'. Para nós que trabalhamos de acordo com o que aprendemos lá no Brasil, vamos sempre optar por contratar o brasileiro porque já trabalhamos no mesmo padrão", diz. A mão de obra mecânica, segundo Rogério, é concorrida e difícil de encontrar no Reino Unido, onde a agenda de sua oficina não tem mais lugar para nenhum cliente pelas próximas semanas. Segundo um estudo do Institute of The Moto Industry, a economia do Reino Unido pode enfrentar um déficit de 2.6 milhões de trabalhadores desse setor até 2030. A escassez de profissionais aliada à eficiência do jeitinho brasileiro formam uma conjuntura positiva para mecânicos brasileiros no exterior. "Se eu for para o Japão sem falar uma vírgula de japonês eu consigo achar um bom trabalho e ganhar um valor que vai me garantir uma vida boa, é uma mão de obra sempre solicitada", conta.
2023-01-04
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sociedade
Como polícia nos EUA aposta em assistentes sociais contra violência
Nos Estados Unidos, policiais e profissionais de saúde trabalham juntos em um número cada vez maior de cidades. Um homem aparentemente idoso, apoiado em uma bengala, gritava por socorro na esquina da avenida Amsterdam com a rua 104, em Manhattan. Ele parecia congelado, incapaz de se mover. Em poucos segundos chegou o socorro e, acompanhando a cena, observei que os paramédicos que saltaram da ambulância reconheceram o morador com distúrbios mentais que volta e meia é recolhido e levado ao hospital para, semanas depois, repetir a rotina. Foi a primeira vez, mas não a última, em que ouvi os gritos daquele vizinho no verão de 2020. O que acontece com ele é comum em grande parte das cidades dos Estados Unidos. E é para lidar com esses problemas de saúde mental e com o desespero por falta de moradia que cresce cada vez mais a presença de assistentes sociais e psicólogos dentro dos departamentos de polícia. Equipes móveis formadas por um profissional de saúde mental e um enfermeiro hoje percorrem cidades em mais de 34 Estados americanos reduzindo a pressão sobre os policiais que, nas últimas décadas, foram obrigados a assumir a responsabilidade pelo atendimento de chamados para os quais não são treinados. Fim do Matérias recomendadas "Já pedimos aos policiais para fazer muitas coisas. Cuidar dos sem-teto, dos drogados, é tudo com eles", diz o professor Jeffrey Coots, advogado e líder do programa "Da Punição à Saúde Pública", da Universidade John Jay de Justiça Criminal, em Nova York. Ele trabalha em iniciativas que reorientam para serviços de assistência médica e social as chamadas de emergência que chegam às delegacias de polícia. Ele também treina promotores públicos para que possam identificar os casos de detidos que precisam de cuidados e não de cadeia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nova York está apenas engatinhando nessa área. Tem um projeto piloto que começou no Harlem, em julho, chamado "B-Heard". Em português seria "Ser Ouvido". Ele reorienta as chamadas que chegam ao número de emergência, o 911, que todo mundo no país aprende a discar, desde criança, em caso de problema. Os funcionários que atendem essas chamadas precisam decidir, rapidamente, se enviam policiais ou bombeiros para o local. Agora, nesse projeto piloto, eles podem acionar equipes móveis de assistência que sempre incluem alguém que se envolveu com drogas ou viveu em situação de rua e, por isso mesmo, é capaz de entender e dialogar mais facilmente com a pessoa que está sendo atendida. Se a situação mudar, se tornar violenta, a equipe se afasta e chama reforço policial. Em Bloomington, Indiana, o sistema é diferente. Em 2019 a cidade, de 80 mil habitantes, contratou a primeira assistente social, Melissa Stone. Ela agora tem duas outras colegas e conta que elas nunca saem sozinhas. O primeiro atendimento é sempre feito junto com a polícia. Nas visitas seguintes, para dar continuidade ao atendimento, elas não precisam dos policiais. Elas se encarregam de encaminhar a pessoa para um tratamento, um abrigo, uma residência permanente. O objetivo é resolver o problema para a pessoa não precisar chamar o serviço de socorro novamente. Ronnie Roberts foi chefe de polícia de Olympia, em Seattle. Mas antes passou por um aprendizado de quase 24 anos em Eugene, no Oregon. A cidade é pioneira no país com um programa que já funciona há três décadas substituindo policiamento por assistência, sempre que possível. "Eu estava lá quando começou", conta o chefe de polícia aposentado, "e nós achávamos que aqueles cabeludos tomariam nossos rádios, nosso emprego, nossas chamadas". Mas aos poucos os policiais foram entendendo que o programa, chamado Cahoots, trazia vantagens para todo mundo. Uma pesquisa do Instituto Vera para a Justiça e do jornal The New York Times mostrou, em 2019, que apenas 2% das chamadas de emergência para a polícia estavam relacionadas a crimes violentos. A grande maioria dos pedidos de ajuda tem origem no consumo de drogas e álcool, na intersecção de moradores em situação de rua com saúde mental. São problemas sociais que acabam na delegacia. Por isso a cidade de Eugene topou a proposta de uma clínica médica e criou a parceria que depois de 30 anos continua crescendo, como conta o atual chefe de polícia da cidade, Chris Skinner. Depois que policiais de Minneapolis mataram George Floyd, em 2020, na rua, diante de testemunhas, os protestos no país explodiram. Muitos pediam a redução do orçamento das polícias e mais investimento em assistência social, saúde e educação. Em Eugene, diz Chris Skinner, o departamento de polícia investe cerca de US $1 milhão (R$ 5,3 milhões) por ano na parceria com a clínica responsável pelo Cahoots. "Sem essa parceria, não daríamos conta porque temos muitas pessoas em crise, nas ruas. Mais de 1% da população da cidade vive em situação de rua. São mais de 17 mil pessoas. Mas o programa é bem sucedido e toda semana falamos sobre ele com outras cidades dos Estados Unidos e do Canadá", conta Skinner. Ronnie Roberts saiu de Eugene para replicar o modelo de parceria em Olympia, no Estado de Washington. Ele assumiu a liderança do departamento de polícia em 2010. Implantou um programa semelhante ao de Eugene e aprimorou o projeto aos poucos. "No começo, era sempre a polícia que atendia as chamadas para depois aparecer a equipe de assistência. Mas invertemos essa lógica", conta. O time começou pequeno, com 10 pessoas, e investiu no treinamento da equipe que faz o primeiro contato com os problemas: o pessoal que atende as chamadas. Eles precisam entender rapidamente do que se trata para saber quem vai responder ao pedido de socorro. Com mais de 30 anos de experiência, Ronnie Skinner aponta os dois maiores obstáculos que esses programas enfrentam: manter os profissionais, já que o trabalho é muito difícil, e contar com os serviços necessários oferecer às pessoas atendidas pelas equipes. A primeira providência para estabilizar pessoas com problemas de saúde mental é a moradia. Garantir um teto é essencial. Se a prefeitura não tem como oferecer residência subsidiada ou abrigo seguro, o atendimento é um paliativo e não uma solução. As cidades também precisam de centros de desintoxicação, reabilitação e um número maior de clínicas especializadas. Em Nova York, Jeffrey Coots se depara com as mesmas dificuldades. Mas vê saída. Ou melhoras lentas. A moradia é o grande entrave. "Temos 50 mil pessoas nos abrigos e outras 35 mil que se recusam a ir para esses lugares, porque têm medo, e vivem nas ruas. Outras 200 mil pessoas moram em residências públicas, subsidiadas pelo governo", diz. Mas agora, desde que o Congresso aprovou a reforma da saúde, mais conhecida como Obamacare, em 2008, aos poucos, essa população passou a ter acesso a tratamentos que antes nem sonhavam em usufruir. Mas é preciso encontrar, cadastrar e orientar essas pessoas. É o que ele tem feito, no Brooklyn, em campanhas que se instalam nas comunidades por cinco ou seis dias a cada quatro ou cinco meses. Sem a presença da polícia, eles ouvem os moradores, descobrem quais são os problemas mais urgentes, cuidam da documentação de quem não tem, encaminham para os serviços disponíveis e checam, na visita seguinte, se o atendimento está andando. Jeffrey Coots se diz otimista apesar da burocracia e do ritmo geralmente lento da máquina governamental. Ele se lançou nesse trabalho há 9 anos e, se antes tinha uma meia dúzia de pessoas envolvidas no projeto, hoje conta com mais de 200 em diferentes áreas de atuação da prefeitura, da academia e de organizações não-governamentais. Ele também enfrenta o desafio de contratar e manter os profissionais de saúde e de assistência social — porque o trabalho é pesado e a demanda por esses serviços só aumentou por causa da pandemia de covid. "Durante 50 ou 60 anos, não encaramos esses problemas. A concentração da população nos centros urbanos só aumentou. Mas hoje, essa estratégia de intervir e dar assistência antes que a pessoa seja detida ou fichada já foi replicada em mais de 40 cidades e participamos de conferências nacionais para discutir o assunto." Por isso, ele não desanima e adianta que esse ano de 2023 vai ser melhor, com mudanças na distribuição de verbas do sistema federal de saúde para Nova York dar mais ênfase a trabalhos como o dele. É um passo importante: o Medicaid é o programa do governo americano que dá assistência médica aos mais pobres. Se ele reconhece a validade da associação entre profissionais de saúde e as polícias municipais no atendimento dessa população, eles terão mais dinheiro para tornar mais amplas e eficientes iniciativas como a B-Heard, de Nova York, a Cahoots, de Eugene, o trabalho já consolidado em Olympia e os mais de 40 projetos em andamento em diferentes regiões do país.
2023-01-03
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64128263
sociedade
A polêmica sobre suposta rede de 'delegacias' instaladas pela China em 53 países
Organizações de defesa dos direitos humanos têm denunciado há anos que a China se transformou em um "Estado vigilante" que usa tecnologia de vanguarda para manter o controle social dentro do país. Mas um grupo de ativistas especializados em China vem advertindo que essa rede de vigilância não funciona somente dentro de suas fronteiras. A ONG Safeguard Defenders, com sede em Madri, na Espanha, divulgou relatos sobre a suposta existência de ao menos 102 "centros de serviços policiais chineses" em 53 países, incluindo sete na América Latina — inclusive o Brasil. Essas "delegacias" teriam sido criadas oficialmente para ajudar em trâmites administrativos que envolvem chineses que vivem no exterior. Mas, segundo o que Laura Harth, diretora de campanha da Safeguard Defenders, disse à BBC, o objetivo na realidade é "persuadir e coagir [cidadãos chineses] a regressarem para a China" para que sejam processados por diferentes delitos, principalmente por fraude. Fim do Matérias recomendadas Em alguns casos, essas "delegacias" também seriam usadas para silenciar críticos do governo chinês, apontou. Os relatos geraram apurações de governos e meios de comunicação de vários países — assim como ordens para que algumas dessas instalações na Europa fossem fechadas. A polícia fedaral americana, o FBI, manifestou "preocupação" e seu diretor, Christopher Wray, anunciou que os "parâmetros legais" desses centros estão sendo revisados. O governo chinês nega que esteja por trás da gestão desses escritórios e diz que voluntários chineses no exterior são os encarregados por promover serviços de ajuda a compatriotas com trâmites como obtenção de carteira de motorista. "Nada disso parte da polícia", manifestou Zhao Lijian, subdiretor do Departamento de Informação do Ministério de Relações Exteriores da China. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O investigador da Safeguard Defenders Jing-Jie Chen disse à BBC Mundo (serviço em espanhol da BBC) que a lista de "delegacias" foi compilada com base em informações publicadas em meios oficiais chineses. A BBC Mundo corroborou a existência de vários artigos da imprensa oficial chinesa que anunciavam a abertura de "Estações de Serviço da Polícia no Exterior" em diversos países — esses textos inclusive passavam os endereços desses lugares. A maioria desses centros, segundo a ONG, está na Europa, mas também há unidades nos outros continentes. Nas Américas há várias, incluindo quatro nos Estados Unidos, cinco no Canadá e 12 na América Latina: sendo três no Brasil e no Equador, duas na Argentina e uma em Chile, Colômbia, Cuba e Peru. No Brasil, segundo os funcionários da Safeguard Defenders, as apurações apontaram que duas dessas supostas "delegacias" ficam no Rio de Janeiro e São Paulo. Não há detalhes sobre a localização da terceira. Para a ONG, a verdadeira função dessas "delegacias" é colocar em prática um sistema ilegal de extradições que forma parte da operação Sky Net: os chamados "regressos voluntários". Essa operação consiste em encontrar fugitivos chineses no exterior e "convencê-los" — segundo a ONG, por meio de extorsão — a retornar voluntariamente à China para enfrentar as acusações. Originalmente, a Sky Net visava altos funcionários chineses acusados de delitos como peculato — como parte da forte campanha anticorrupção lançada pelo presidente Xi Jinping —, mas a operação teria sido ampliada para incluir dezenas de milhares de chineses acusados de cometer fraudes online, "um problema endêmico na China", segundo a ONG. A Safeguard Defenders baseia a sua acusação em um anúncio feito pelo próprio governo chinês em agosto passado, no qual afirmava ter convencido quase um quarto de milhão de fugitivos do exterior a se entregarem. "O número de casos de fraude de telecomunicações transfronteiriços visando residentes chineses caiu significativamente na China, com 230.000 suspeitos de fraude de telecomunicações que foram educados e persuadidos a retornar à China para confessar crimes, de abril de 2021 a julho de 2022", informou o Ministério de Segurança Pública. Segundo a ONG, para "persuadir" os fugitivos, as autoridades chinesas os rastreiam, entram em contato com eles e os ameaçam com ações contra suas famílias na China, caso não retornem ao país, uma conduta que "viola o Estado de direito internacional e os mecanismos de cooperação entre os países", denuncia. A organização colheu depoimentos de ao menos duas pessoas procuradas pela China que relataram ter recebido chamadas ameaçadoras feitas por números locais — o que foi ligado a essas bases policiais no exterior. "Em vez de colaborar com as autoridades locais [para extraditar os suspeitos] em pleno respeito à soberania territorial, [a China] prefere cooperar com 'ONGs' ou 'associações da sociedade civil' no exterior, estabelecendo um sistema policial e judiciário alternativo em países de terceiros, e implicando diretamente essas organizações em métodos ilegais empregados para perseguir os 'fugitivos'", denunciou a ONG. O investigador da Safeguard Defenders Jing-Jie Chen assegurou à BBC Mundo que as primeiras cinquenta bases identificadas foram instaladas pelas forças policiais das cidades de Fuzhou e Qingtian, nas províncias costeiras de Fujian e Zhejiang respectivamente. Ambas têm vários habitantes que partiram para o exterior. Segundo um relatório da ONG publicado em 5 de dezembro, os departamentos de Segurança de outras duas cidades chinesas instalaram cerca de 50 "escritórios" fora do país: Wenzhou, também na província de Zhejiang, e Nantong, em outra província costeira: Jiangsu. Após a divulgação do caso, ao menos uma dezena de países iniciaram investigações para determinar a existência e a possível função dessas bases. Entre eles está o Chile. No fim de outubro, a ministra do interior, Carolina Tohá, declarou que o governo está colaborando com a investigação da polícia no país. "Na medida em que houver informações relevantes para comunicar ao público, vamos comunicar. Por enquanto estamos participando da investigação", disse sobre a suposta "delegacia chinesa" localizada em Viña del Mar, na região de Valparaíso. A BBC Mundo consultou a assessoria de imprensa do Ministério do Interior chileno sobre os avanços dessas investigações, mas não houve respostas. O governo brasileiro, assim como da Argentina e do Equador, indicados no relatório original, também não responderam às perguntas sobre o tema até o momento. Também não houve comentários sobre o tema entre os governos da Colômbia, Cuba e Peru. Na Europa, as autoridades da Irlanda ordenaram que a embaixada chinesa fechasse um desses escritórios relatados em Dublin, que — segundo a Safeguard Defenders — tinha até uma placa do lado de fora que dizia em chinês: "Estação de serviço policial no exterior". O mesmo aconteceu na Holanda, onde as autoridades ordenaram o encerramento de duas bases que, segundo a lista, operavam em Amsterdã e em Roterdã. A mídia holandesa noticiou o caso de um dissidente chinês residente no país, Wang Jingyu, que alegou ter sido perseguido pela polícia chinesa. Wang disse que recebeu um telefonema de alguém que alegou ser de uma dessas bases policiais e lhe deu ordens para retornar à China para "resolver" seus problemas e "pensar em seus pais". Áustria, Canadá, República Tcheca, Alemanha, Portugal, Espanha, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos também anunciaram que investigarão as alegações. O governo chinês ou suas representações em várias partes do mundo negam ter praticado qualquer irregularidade e asseguraram que respeitam a soberania dos países e as normas internacionais. "Suas atividades são para ajudar os cidadãos chineses locais que precisam solicitar a renovação online da carteira de motorista vencida e atividades relacionadas a serviços de exame físico", disse Zhao Lijian, do Ministério das Relações Exteriores da China, ao ser questionado em novembro passado sobre os casos na Holanda. A embaixada chinesa no Canadá disse à emissora pública CBC que o objetivo desses locais é ajudar cidadãos chineses no exterior que não puderam voltar ao país para realizarem os seus trâmites, devido às restrições de viagem impostas pela pandemia do coronavírus. A embaixada também afirmou que esses centros são atendidos por voluntários que não são policiais chineses e que não estão envolvidos em nenhuma investigação criminal ou atividade relevante. Já a embaixada chinesa na capital chilena, Santiago, emitiu um comunicado dizendo que o escritório em Viña del Mar era um "centro de atendimento a cidadãos chineses no exterior que estava a cargo do cidadão chinês Wang Yinle", operado entre março e junho de 2022. "Foi uma medida provisória durante a pandemia. À medida que a situação global da pandemia foi se estabilizando e as medidas de controle foram sendo aliviadas, e com a renovação da plataforma de trâmites online, as autoridades de Fuzhou pediram a seus cidadãos que retornassem à China para realizar esses procedimentos, e os que têm dificuldade de viajar puderam acessar diretamente a plataforma virtual", diz o comunicado. "A especulação de uma suposta 'base secreta de polícia' no Chile é infundada e a sua divulgação visa apenas prejudicar a imagem da China e das relações chino-chilenas", acrescentou a embaixada do país asiático. A BBC Mundo e outros meios de comunicação rastrearam vários dos endereços onde, segundo a lista publicada na imprensa oficial chinesa — e denunciada pela Safeguard Defenders —, estariam as bases policiais. A primeira estação supostamente localizada na capital argentina ficava em um endereço inexistente. No entanto, o veículo Rede Chinesa Argentina — cujo objetivo é fornecer informações locais à comunidade chinesa no país e que é reconhecido como imprensa por autoridades chinesas — noticiou a abertura de uma base policial em Buenos Aires em fevereiro de 2022. "Recentemente foi inaugurada oficialmente na Argentina a Estação de Serviços da Polícia no Exterior de Fuzhou, lançada pelo Departamento de Segurança Pública de Fuzhou", informou o veículo em 16 de fevereiro deste ano. A nota inclui uma foto da inauguração, mostrando um grupo de homens em frente a uma placa com os dizeres "Posto de Serviços da Polícia no Exterior de Fuzhou" e abaixo dela "Buenos Aires, Argentina". A cerimônia de abertura foi realizada na sede da Câmara de Comércio da Associação de Empresários de Ciência e Tecnologia da China e, no final do artigo, é relatado que "as pessoas de Fuzhou que precisarem solicitar a substituição da carteira de motorista e do cartão de identificação" podem agendar uma consulta indo ao local ou acionando a Câmara, em razão dos problemas causados ​​pela pandemia. A agência AP visitou vários dos locais identificados pela Safeguard Defenders em Roma, Madrid e Barcelona e encontrou, respetivamente, um salão de massagens, a sede espanhola de uma associação de cidadãos chineses e uma empresa de tradução jurídica. Segundo a AP, "não havia indícios de delegacias de polícia ou outras atividades diretamente relacionadas ao governo chinês". A maioria das pessoas entrevistadas nesses locais disse não saber nada sobre uma "delegacia" ou atividades policiais. A única exceção foi um funcionário da empresa de tradução que disse que uma base policial de Fuzhou operou no local por algumas semanas no ano anterior. O funcionário, que falou sob condição de anonimato porque não estava autorizado a conversar com a imprensa, disse que os serviços de renovação de documentos foram oferecidos a cidadãos de Fuzhou que vivem na região de Barcelona e não puderam retornar à China devido a restrições da pandemia, informou a agência. Embora mostre satisfação pelas dezenas de apurações abertas após os relatos da Safeguard Defenders, o investigador da ONG Jing-Jie Chen esclareceu à BBC Mundo que a denúncia não visa gerar uma "caça às bruxas" nas associações chinesas no exterior. "Não encorajamos nenhum tipo de intimidação da comunidade chinesa por acreditar que todos sejam espiões", disse ele. "Não estamos culpando todos membros das associações envolvidas. E é bem possível que os funcionários de muitos desses lugares realmente não saibam para o que estão sendo usados", acrescentou, pedindo aos governos que investiguem apenas os líderes por seus possíveis laços com o Partido Comunista da China. No entanto, os dissidentes chineses no exterior permanecem em alerta. O ativista dos direitos humanos Zhou Fengsuo, um dos líderes estudantis dos protestos na Praça da Paz Celestial em 1989 e exilado nos Estados Unidos, considera que essas associações representam um perigo e deveriam ser fechadas. "A maioria das organizações chinesas, sejam elas municipais ou estudantis, até mesmo organizações pessoais, respondem a governos locais e se gabam de suas conexões com o governo chinês", disse ele à BBC Mundo. Segundo Zhou, as autoridades controlam esses grupos de duas maneiras: primeiro, pelo medo. "O medo é porque eles sabem que seus parentes na China estão sendo constantemente vigiados. Isso desencoraja os chineses no exterior de denunciar abusos ou participar de protestos, e os leva a espionar e censurar uns aos outros", disse ele. "Por outro lado, se você faz favores ao governo chinês, eles o recompensam com coisas como viagens gratuitas para visitar a China, onde o levam para comer com luxo ou, no caso de estudantes, oferecem empregos atraentes no governo ou em alguma universidade." Zhou pede aos governos que "desmantelem todas essas organizações" e diz que, para evitar suspeitas, esses grupos deveriam rejeitar qualquer vínculo com autoridades chinesas. No entanto, ele não acredita que o possível fechamento dessas bases faça muita diferença. "Enquanto essas associações e grupos estudantis (no exterior) continuarem funcionando, permanecerá um ambiente de medo entre a comunidade chinesa, onde você sente que não pode confiar em ninguém."
2023-01-03
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sociedade
'Entrei na menopausa antes da minha mãe'
Imagine que você está na adolescência ou na casa dos 20 anos e descobre que já está na menopausa. Não era isso que Emma, ​​Soe-Myat e Elspeth imaginavam que aconteceria no início da idade adulta. O diagnóstico foi o início de uma jornada solitária para aprender sobre um evento de vida que todas as mulheres vivenciam com a idade, mas que é pouco discutido. Era uma manhã de agosto de 2013 quando um médico disse a Emma Delaney que ela estava na menopausa aos 25 anos. Emma estava sentada imóvel na cadeira do hospital, e sua mente vagando de um lado para o outro sobre o que ele estava dizendo. Sua menstruação, que não havia retornado desde que ela havia parado de tomar a pílula alguns anos antes, provavelmente nunca voltaria. Era improvável que ela fosse capaz de ter filhos naturalmente. "Eu não sabia como reagir... Ele me disse que não poderia ter filhos, como se tivesse dizendo que perdi as chaves", diz ela. Fim do Matérias recomendadas Emma faz parte de um grupo de mulheres com uma condição chamada insuficiência ovariana prematura (IOP) — que se refere a qualquer forma de menopausa antes dos 40 anos. Na maioria das vezes, não há causa conhecida, e as mulheres com IOP podem apresentar sintomas da menopausa até os 50 anos. Cerca de uma em cada 100 mulheres no Reino Unido são afetadas pela doença, e os especialistas acreditam que ela pode ser mais comum do que isso. Mas é um assunto que continua sendo pouco discutido. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Não há conversa suficiente sobre a menopausa nas faixas etárias mais jovens", diz Nighat Arif, clínica geral do NHS (sistema de saúde público do Reino Unido) e estrela do TikTok com interesse especial em cuidados com a menopausa. "Normalmente, você vê uma mulher mais velha, branca, de cabelos grisalhos, agitando um leque. Não é representativo." Para algumas mulheres como Emma, não está claro por que seus ovários não estão funcionando, mas a IOP também pode ser causada por condições autoimunes, distúrbios cromossômicos, cirurgia no útero ou nos ovários. Além das consequências físicas, o impacto psicológico de tal diagnóstico pode ser devastador. Depois que o médico deu a notícia a Emma, ela chorou sozinha no carro por uma hora. Emma não sabia quase nada sobre menopausa, a não ser o que tinha ouvido de mulheres mais velhas no movimentado salão de beleza em Manchester em que trabalha. O futuro que ela imaginara — ter e criar dois filhos — havia sido tirado dela. Nos meses seguintes, Emma foi submetida à terapia de reposição hormonal (TRH). Ela descobriu que como seus ovários pararam de funcionar, seu corpo não produzia estrogênio e progesterona suficientes — os hormônios que regulam o ciclo menstrual. O desequilíbrio vinha afetando sua saúde havia anos. Não ajudava o fato de que sua própria mãe, então com apenas 40 anos, ainda não tivesse chegado à menopausa. Suas amigas estavam começando a se casar e ter filhos. "Parecia que ninguém me entendia", diz ela. Emma mergulhou de cabeça no trabalho e evitou discutir seu diagnóstico. Ela preenchia suas noites com baladas e encontros casuais — ela queria ser exatamente o oposto de suas amigas com companheiros e bebês. "Abusei do meu corpo com álcool e sexo... não sabia o quanto precisava falar sobre isso com alguém", diz ela. Se passar pela menopausa prematuramente não fosse difícil o suficiente, para um número cada vez maior de mulheres o diagnóstico vem depois de terem iniciado tratamento para doenças graves. Para Soe-Myat Noe, estudante de design gráfico de Londres, a menopausa surgiu como uma consequência inesperada de um tratamento contra câncer. No início de 2022, com apenas 23 anos, ela foi diagnosticada com câncer de intestino em estágio três. A radiação em sua área pélvica danificou seus ovários, mas na época ela não entendeu o que isso significaria. "Eles [médicos e enfermeiras] estavam focados apenas no meu câncer e no meu tratamento contra o câncer... Acho que ninguém mencionou para mim o que a menopausa implicava", afirma. Seus sintomas — que incluíam zumbido nos ouvidos, ansiedade e fadiga — surgiram repentinamente e foram graves. Conversas sobre menstruação, fertilidade e menopausa não eram comuns quando Soe-Myat estava crescendo, então ela não sabia o que esperar. As amigas da universidade, preocupadas com o DIU e a pílula anticoncepcional, não conseguiam se identificar com sua experiência. "Tudo o que estava acontecendo comigo, sempre associei a pessoas mais velhas... senti como se tivesse pulado um pedaço inteiro da minha vida." Embora Soe-Myat pudesse falar sobre sua saúde mental com um terapeuta, seus sintomas físicos da menopausa não haviam sido levados em consideração. Ela teve que se virar, pesquisando tratamentos no Google enquanto estava exausta da quimioterapia e lidando com uma bolsa de ostomia. Embora a terapia de reposição hormonal (TRH) possa ser inadequada para mulheres com certos tipos de câncer, havia uma forma que era segura para Soe-Myat — e, assim que ela começou, seus sintomas melhoraram. Desde então, ela foi liberada. Além de continuar com a TRH, ela faz coisas por conta própria, como dar caminhadas e evitar bebidas quentes para se ajudar. Mas ela gostaria de ter recebido conselhos sobre como lidar com seus sintomas no início do processo. "Não devia ser tão difícil", diz ela. Os perfis de rede social da médica Nighat Arif estão repletos de mensagens de mulheres que tiveram experiências semelhantes. Ela pede uma "melhor compreensão das nuances" dos cuidados com a menopausa entre os profissionais de saúde, e quer que mulheres de todas as idades "quebrem o tabu" em torno dela. "Por favor, converse com as mulheres em sua vida... tenha essa conversa com sua mãe, sua avó, suas tias, suas primas, sua melhor amiga. Não há nada para se envergonhar — aprenda com o que elas estão passando." Arif diz que agora mais mulheres estão sendo diagnosticadas com IOP por causa de uma maior consciência dos sintomas, mas ainda pode levar muito tempo para obterem um diagnóstico. E se não for tratada, a IOP pode ter consequências a longo prazo para os ossos, coração e saúde mental das mulheres. "Algumas pacientes podem se encontrar na escuridão", diz ela. "Elas podem querer ter filhos, e isso destrói as escolhas de vida que elas achavam que poderiam fazer." Em sua clínica, Arif também vê outras consequências raramente discutidas da IOP — como sexo dolorido e perda da libido. Elspeth Wilson, de 23 anos, entende isso muito bem. Ela foi diagnosticada com insuficiência ovariana prematura (IOP) quando tinha apenas 15 anos. E a dificuldade com o sexo é um obstáculo que ela enfrentou durante toda a sua vida sexual. "É tão difícil estar em um relacionamento com alguém e querer mostrar a essa pessoa que você a ama. Mas seu corpo simplesmente não concorda com isso, e certas coisas são desconfortáveis", diz ela. "O que me frustra é que os médicos nunca disseram que isso poderia ser um problema." Elspeth acabou de conseguir seu primeiro emprego depois da universidade, como pesquisadora de mercado em Newcastle. Embora ela elogie seu empregador por apoiá-la, passar por essa grande transição com IOP pode ser complexo. Ela encontrou conforto em um grupo de WhatsApp de outras mulheres em situação semelhante. No bate-papo em grupo, nada está fora de questão. "É reconfortante apenas ter esse espaço para fazer essas perguntas e desabafar... Se você tem a capacidade de falar sobre isso de uma forma que não tenha nenhum pingo de vergonha, é muito mais fácil." Soe-Myat, que se juntou a um grupo de apoio online para mulheres jovens com menopausa induzida pelo câncer, concorda. "Me senti validada", diz ela. É uma lição que Emma também aprendeu com o tempo. Depois de anos tentando bloquear a dor do seu diagnóstico, Emma finalmente começou a falar sobre suas experiências mais abertamente. Ela começou explicando seus sentimentos a um terapeuta, que a ajudou a se sentir mais como ela mesma novamente. "Não importa meu diagnóstico, eu ainda era eu... eu era maior do que meu diagnóstico... Essa foi uma grande lição que aprendi." Há alguns anos, ela conheceu um parceiro que entende sua condição, e agora eles moram juntos. No Instagram, ela seguiu hashtags relacionadas à menopausa e fundou a Daisy Network, uma instituição beneficente criada para oferecer informações e apoio a mulheres com IOP. Pela primeira vez, ela falou com outras pessoas que entendiam o que ela estava passando. Agora, com 34 anos, ela acha que seu futuro pode incluir filhos. A doação de óvulos e a fertilização in vitro seriam muito perturbadoras, afirma. Então ela está pensando em adotar nos próximos anos. E, de vez em quando, ela usa uma camiseta preta no salão com o slogan "Make Menopause Matter" ("Faça a menopausa ter importância", em tradução livre) escrito no peito em vermelho. Está coberta de manchas por ter sido salpicada com descolorante. Suas clientes vão comentar que ela é muito jovem para estar na menopausa, e ela explicará sua situação enquanto retoca as raízes delas. "Elas me dizem que aprenderam mais sobre a menopausa nos 30 minutos que passaram comigo do que em toda a sua vida." "Fico orgulhosa de estar levando informações a todas as mulheres."
2023-01-03
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sociedade
A história de amor entre monge e freira que acabou em casamento
Vinte e quatro anos depois de se tornar freira, um esbarrão em um monge na sala do convento em Preston, Lancashire (noroeste da Inglaterra), mudou tudo para a Irmã Mary Elizabeth. A prioresa da ordem a levara para conhecer o frade Robert, que vinha de um priorado em Oxford, para ver se ele queria comer alguma coisa. Mas a superiora da irmã Mary Elizabeth foi chamada para atender a uma ligação, então os dois ficaram sozinhos. "Foi a nossa primeira vez em uma sala juntos. Sentamos à mesa enquanto ele comia, e a prioresa não voltou, então tive que deixá-lo sair." Irmã Mary Elizabeth viveu uma vida devota, austera e silenciosa como freira, passando a maior parte de seus dias em sua "cela". Ao deixar Robert sair pela porta, ela esbarrou no braço dele e disse que sentiu algo diferente. "Eu apenas senti uma química, algo, e fiquei um pouco envergonhada. E pensei, Deus, ele sentiu isso também. E, quando o deixei sair pela porta, foi bastante estranho." Fim do Matérias recomendadas Ela lembra que, cerca de uma semana depois, recebeu a mensagem de Robert perguntando se ela iria embora para se casar com ele. "Fiquei um pouco chocada. Eu usava um véu para que ele nem visse a cor do meu cabelo. Ele não sabia nada sobre mim. Na verdade, nada sobre minha criação. Ele nem sabia meu nome mundano", lembra ela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Antes de entrar na ordem carmelita — uma antiga ordem da igreja católica romana — aos 19 anos, a irmã Mary Elizabeth havia sido Lisa Tinkler, de Middlesbrough. Embora os pais dela não fossem religiosos, a peregrinação de uma tia a Lourdes (França) despertou algo em Lisa quando ela tinha 6 anos, de modo que ela pediu ao pai que construísse um altar no quarto dela. "Eu tinha uma estatueta de Nossa Senhora e uma garrafinha de água de Lourdes. Na verdade, eu achava que era a garrafinha que era benta e não a água — então eu só enchia da torneira e bebia a água", conta ela. Lisa frequentava sozinha uma das igrejas católicas romanas em sua cidade natal e sentava sozinha no segundo banco — onde ela diz que desenvolveu um amor arrebatador pela Virgem Maria, mãe de Jesus, e finalmente o sentimento de que tinha uma vocação. Um retiro de fim de semana em um mosteiro quando ela ainda era adolescente a convenceu de sua vocação. O mosteiro era dirigido por freiras carmelitas de uma ordem que teve origem no século 12 e onde a vida era particularmente espartana, reclusa e rígida — mas ela decidiu que era essa a vida que queria levar. Embora Lisa quisesse entrar imediatamente, a mãe dela — que estava preocupada com a decisão da filha — escreveu secretamente ao mosteiro para adiar sua partida por alguns meses, para que Lisa pudesse passar mais um Natal em casa. Ela partiu no Ano Novo. "Desde então, vivi como uma eremita. Tínhamos dois momentos de recreação por dia, cerca de meia hora, quando podíamos conversar. Caso contrário, você ficava sozinha em sua cela. Você nunca trabalhava com ninguém, sempre sozinha", diz. Com o passar dos anos, a irmã Mary Elizabeth sentiu seu vocabulário diminuir, pois ela tinha pouco a conversar com as outras freiras — que eram décadas mais velhas que ela — exceto sobre o clima e a natureza no jardim. Ela via a mãe quatro vezes por ano através de uma grade. "Quando fiz meu aniversário de 21 anos, meu bolo e meus cartões passaram pela gaveta. E, quando meu sobrinho nasceu, ele passou por uma espécie de toca-discos", ela ri, lembrando dos momentos com muito carinho. Ela descreve a maneira como sentiu seu "mundo interior" se abrir à medida em que o mundo exterior se fechava para ela. Havia uma sensação de contentamento e realização. Mas, naquele dia na sala do convento, tudo mudou com o toque de uma manga e uma mensagem perguntando se ela abandonaria a vida monástica e se casaria. Irmã Mary Elizabeth não deu a Robert uma resposta à pergunta dele e não sabia o que fazer. Ele poderia não saber nada sobre ela, mas ela sabia um pouco sobre ele. Em suas visitas de Oxford ao centro de retiro carmelita, em Preston, ele ocasionalmente rezava missas no mosteiro próximo e Lisa assistia aos sermões dele através de uma grade. Ao ouvir as anedotas dele enquanto pregava, ela ouviu trechos de uma vida crescendo na Silésia, na Polônia, perto da fronteira alemã, e sobre o amor pelas montanhas. Embora ela diga na época que isso não teve um impacto profundo nela. Hoje, de repente, isso pode ter mudado. "Eu não sabia o que era estar apaixonada e pensei que as irmãs pudessem ver isso em meu rosto. Então, fiquei muito nervosa. Pude sentir a mudança em mim e isso me assustou", diz ela. A irmã Mary Elizabeth finalmente criou coragem para dizer à prioresa que achava que sentia algo por Robert, mas a resposta que obteve foi de descrença. "Ela não conseguia entender como isso tinha acontecido porque estávamos lá 24 horas por dia, sete dias por semana, sob a vigilância dela o tempo todo. A prioresa perguntou como eu pude me apaixonar com tão pouco contato", lembra ela. A irmã Mary Elizabeth havia imaginado a reação da família, ou de seu bispo, se ela fosse embora. Ela também lutou para saber se o relacionamento com Deus mudaria. Mas a interação com sua superiora a levou a fazer algo estranhamente impetuoso. "A prioresa foi um pouco mal-humorada comigo, então coloquei minhas calças e uma escova de dentes em uma bolsa e saí, e nunca mais voltei como irmã Mary Elizabeth", me conta Lisa hoje. Robert havia enviado uma mensagem para ela dizendo que planejava visitar Preston novamente naquela noite. Desta vez, foi para encontrar um amigo carmelita para um conselho em um pub próximo, a primeira pessoa da ordem em quem ele confiou para contar sobre a situação dele e de Lisa. Lisa imaginou que eles se encontrariam no Black Bull, a cerca de um quilômetro e meio dali, então foi para lá que ela decidiu ir. Mas, em vez de ser um momento de alegria, Lisa foi atirada em um profundo tumulto naquela noite de novembro de 2015. "A chuva caía forte enquanto eu caminhava pela estrada Garstang. O tráfego seguia na minha direção com faróis brilhantes e eu apenas pensei 'Eu poderia terminar isso'", diz ela, referindo-se a um pensamento suicida momentâneo. "Eu estava realmente lutando, pensei que deveria apenas impedir que isso acontecesse e Robert poderia seguir com a vida dele. Mas também me perguntei se ele realmente quis dizer o que disse sobre se casar." Mas Lisa continuou andando até se encontrar em uma noite de sexta-feira encharcada, sem casaco, vestida em seu hábito, do lado de fora do Black Bull. Ela só criou coragem para entrar quando viu o monge lá dentro, por uma porta aberta. "Quando a vi, meu coração parou", diz Robert. "Mas, na verdade, fiquei paralisado de medo, não de alegria, porque sabia naquele momento que tinha que ser inteiramente para Lisa, mas também sabia que não estávamos praticamente prontos para isso", diz ele. Robert já era frade carmelita havia 13 anos. Ele foi um pensador, acadêmico e teólogo que chegou à vida monástica em busca de sentido durante o que descreve como uma crise de fé e identidade. Olhando para trás, ele sente que suas raízes tornaram essa confusão quase inevitável — crescendo em uma região que recentemente fez a transição da Alemanha para a Polônia, com pai luterano e mãe católica. Mas foi um período sombrio após um relacionamento fracassado que o levou a continuar sua busca por realização na Inglaterra, onde, apesar da teologia protestante luterana em que se estabeleceu, foi em um mosteiro católico carmelita onde encontrou seu consolo. "Eu não sabia muito sobre os carmelitas e não tinha pensado em ser um monge. Na verdade, sempre desconfiei muito desse tipo de expressão de fé", diz Robert. Mas ele diz que a ordem o ensinou a abraçar a escuridão, as dificuldades e a crise a ponto de se sentir acomodado. No entanto, o encontro com Lisa — que ele mal conhecia como Irmã Mary Elizabeth — virou sua vida de cabeça para baixo. "Aquele toque de Lisa na minha manga começou uma mudança, mas enquanto eu sentia algo crescendo gradualmente em meu coração, acho que nunca cheguei a um ponto em que senti que estava me apaixonando loucamente. Porque ao se tornar um monge ou um freira, eles ensinam como lidar com emoções como o amor", diz Robert. Ele explica que a mensagem dele para Lisa perguntando se eles poderiam se casar foi quase uma luta intelectual consigo mesmo. "Quando ela apareceu no pub, o pequeno demônio em mim ficou apavorado. Mas meu medo não era religioso ou espiritual, era puramente sobre como eu começaria uma nova vida aos 53 anos", diz ele. A transição foi difícil, principalmente no início. Lisa se lembra de um momento pouco antes do Natal, logo depois que ambos deixaram suas vidas monásticas. "Olhei para Robert e ele estava angustiado e chorando. Naquele momento, nós dois chegamos ao fundo do poço e parecia que deveríamos ter um fim como o de Romeu e Julieta e acabar com isso", diz Lisa. "Foi muito difícil porque ele se sentia muito sozinho e tão isolado que não sabia o caminho a seguir. Mas nós apenas demos as mãos e superamos isso", diz ela. Eles descrevem o momento no centro de empregos quando ambos começaram a chorar quando questionados sobre suas habilidades transferíveis — e outra vez quando eles estavam dirigindo de Preston para Yorkshire. "Encomendei um livro em polonês sobre freiras que deixaram suas ordens por vários motivos. Li e traduzi para Lisa no carro, mas ela teve que encostar na rodovia M62. Nós dois precisávamos chorar porque as histórias eram muito emocionantes e pudemos nos relacionar com elas", diz Robert. O que lhes trouxe paz foi o que os guiou ao monasticismo em primeiro lugar — conectando-se com sua fé pessoal. "Durante toda a sua vida religiosa, você ouve que seu coração deveria ser indiviso e entregue a Deus. De repente, senti que meu coração estava se expandindo para abrigar Robert, mas percebi que também continha tudo o que tinha antes. E não sinto nada diferente em relação a Deus. Isso foi reconfortante para mim", diz Lisa. Lisa primeiro encontrou trabalho em uma casa funerária e depois como capelã de um hospital. Embora estivesse chateada com uma carta de Roma dizendo que não era mais membro da ordem carmelita, Robert logo foi aceito na Igreja da Inglaterra. Ambos se casaram e agora dividem uma casa na vila de Hutton Rudby, em Yorkshire do Norte — onde Robert foi nomeado vigário da igreja local. Eles ainda estão em uma jornada para se ajustar à vida fora do monastério. Lisa, em particular, que estava isolada havia 24 anos e não tinha a vida acadêmica que Robert tinha antes, fala sobre se sentir como uma observadora do mundo exterior. Só agora ela está descobrindo quais estilos de cabelo e roupas funcionam melhor para ela depois de uma vida com um hábito. Ambos ainda anseiam por elementos da vida monástica. Lisa até diz que, se não fosse por Robert, voltaria a ser freira carmelita amanhã. "Nós nos acostumamos tanto com o silêncio e a solidão que é difícil se reencontrar nos negócios do mundo. Você é puxado em tantas direções diferentes, então é uma luta constante para mim e Robert permanecermos centrados e fundamentados", diz Lisa. Mas eles encontraram uma solução que funciona. "Muitas vezes penso que vivo em um mosteiro aqui com Robert, como dois carmelitas, onde tudo o que fazemos é oferecido a Deus. Nós nos ancoramos na oração, mas o amor pode fazer um sacramento de tudo o que você faz e percebo que nada realmente mudou para mim" conta ela. Lisa diz que os dois concordam que há três deles no casamento. "Cristo está no centro e vem antes de tudo. Se o retirássemos da equação, acho que não teria durado muito." Fotografia de Ian Forsyth
2023-01-02
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64147029
sociedade
A escola no Texas onde todas as estudantes são mães adolescentes
No final de um ano que viu a maternidade no centro de um debate acalorado nos Estados Unidos, uma escola para mães adolescentes no Estado do Texas mostra como as vidas das jovens estão sendo assistidas — e transformadas. Era o início de 2021 e Helen vinha comendo mais que o habitual. A jovem, prestes a completar 15 anos de idade, não conseguia explicar por que seu apetite parecia ter aumentado tanto. "Isso é normal?", perguntou ela à sua irmã mais velha. Ela respondeu que talvez fosse. Mas Helen também andava mal-humorada, brigando facilmente com a família e os amigos. Até que sua menstruação atrasou. No dia do seu aniversário, Helen descobriu que estava grávida. "Não podia acreditar", ela conta. Fim do Matérias recomendadas Seus amigos logo começaram a evitá-la, acusando de usar a gravidez para "conseguir garotos". O pai da criança, seu colega de classe, parou de falar com ela. "Eu não queria ficar brigando com eles", segundo Helen. Por fim, perto do final da gravidez, ela decidiu mudar de escola. Vista de fora, a escola Lincoln Park tem a mesma aparência de qualquer outra do ensino médio nos Estados Unidos — tijolos de argila, ônibus escolares estacionados na frente e a bandeira americana balançando ao vento. Mas, no lado interno, além dos sons dos adolescentes indo para suas classes, pode-se ouvir o choro e o balbuciar de bebês. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nas paredes, cartazes incentivando os jovens a irem para a faculdade ficam ao lado de anúncios de serviços de gravidez e cursos para pais. E, ao lado do edifício principal, fica uma creche. A escola fica na cidade de Brownsville, no Texas, cidade norte-americana na fronteira com o México. Ela é um dos últimos prestadores de um serviço educacional específico: lecionar para mães adolescentes. As taxas de natalidade entre os adolescentes nos Estados Unidos caíram nas últimas três décadas. Mas, entre as jovens de origem hispânica, a gravidez de adolescentes segue sendo muito mais comum que para o restante da população. As jovens de origem latina têm a maior taxa de gravidez de adolescentes de qualquer grupo populacional. E os especialistas advertem que, após a decisão da Corte Suprema de eliminar a proteção federal ao aborto, em 2022, os números provavelmente irão aumentar. Quase todas as alunas da escola secundária Lincoln Park, que atende exclusivamente mães adolescentes desde 2005, têm de 14 a 19 anos de idade. Todas elas são de origem latina - um reflexo dos 94% de população hispânica da cidade e das taxas mais altas de gravidez de adolescentes. A maioria delas é de baixa renda e algumas nasceram nos Estados Unidos, moram no México e cruzam todos os dias a fronteira com a cidade de Matamoros, no Estado mexicano de Tamaulipas, para comparecer às aulas nos Estados Unidos. Em meio a discussões culturais e políticas nos Estados Unidos sobre reprodução, a escola Lincoln Park fornece uma noção de como ser mãe molda as vidas das jovens que já enfrentam os desafios dessa mudança de vida monumental e inesperada. Helen conta que se convenceu a mudar para Lincoln Park pela possibilidade de levar sua bebê para escola. Falando para a BBC em junho no intervalo entre as aulas, ela ainda tinha a aparência de uma adolescente tímida de olhos escuros, vestindo uma bermuda rosa-claro e camiseta preta. Mas, na sua mochila, ao lado dos livros e revistas, havia fraldas e roupas de bebê para sua filha Jenine, agora com oito meses de idade. "Costumava ser apenas eu, mas agora preciso pensar em mim e na bebê", ela conta. Cerca de 70 alunas estão matriculadas na escola, mas esse número oscila ao longo do ano à medida que entram novas alunas grávidas e jovens mães preferem voltar às suas escolas anteriores depois do parto. Na época da visita da BBC à escola Lincoln Park, sete alunas do ensino médio com menos de 14 anos de idade estavam matriculadas, além de três outras que tinham três crianças cada uma. O currículo escolar é exatamente o mesmo das outras escolas do distrito e as alunas também devem ser aprovadas nos exames. Mas as diferenças estão nos detalhes. Todos os ônibus escolares que transportam algumas das alunas têm cadeirinhas para os bebês. Pela manhã, as alunas podem pegar café da manhã para elas e para a criança. E os bebês podem ficar na creche da escola, sem custo. As alunas têm permissão para ausências abonadas para consultas médicas das crianças. Em uma das salas de aula, o professor de ciências tem um armário alto no canto, com roupas de bebês para as mães que precisarem. Como Helen, Alexis tinha 15 anos de idade quando descobriu que estava grávida. Ela fez três testes de gravidez em casa e todos tiveram resultado positivo. Ainda negando os resultados, ela consultou um médico, que confirmou que ela esperava um menino. "Foi muito difícil para mim", afirma Alexis. "Eu não queria sair da escola porque sabia que não era a forma certa de lidar com a situação." Até que ela encontrou a escola Lincoln Park. Seu filho agora tem cerca de um ano de idade. Dentro das salas de aula, existe um profundo senso de camaradagem e intimidade. É quase chocante para quem vem de fora, mas claramente muito natural para as alunas e os funcionários. Sentada na aula de matemática em uma terça-feira de manhã, Alexis virou-se para contar ao seu professor, o Sr. Arredondo, que ela já havia se matriculado para o ano seguinte. "Estou cuidando disso", afirmou ela, com o polegar para cima. Alexis e suas colegas olharam para a porta quando uma aluna chegou atrasada para a aula. Visivelmente perto do final da gravidez, ela andava lentamente, cambaleando um pouco. Todas as meninas sorriram e Alexis estendeu seu braço para a colega quando ela chegou mais perto. "Quero tocar sua barriga", pediu ela. O professor Arredondo é a pessoa na sala com menos experiência de cuidar de crianças — pelo menos, em termos de experiência própria. Mas ele lecionou para tantas alunas grávidas que aprendeu uma ou outra coisa. "Quando as meninas dizem que vão precisar de uma epidural, o que você pensa?" perguntou ele. "Acho que vou precisar dela", riu a aluna grávida. "Se você não tiver, meu Deus, dói muito", explica Alexis, rindo. Segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos (CDC, na sigla em inglês), para cada 1.000 mulheres jovens com 15 a 19 anos de idade, 15 delas deram à luz em 2020. Os dados não incluem as taxas de natalidade de adolescentes com menos de 15 anos. Mesmo com a queda geral no país, o Texas ainda está acima da média nacional e é sempre incluído entre os 10 Estados americanos com a maior taxa de gravidez de adolescentes. Em Brownsville, a gravidez de adolescentes representa 12% — mais de um em cada 10 partos da cidade. Existem inúmeros fatores que causam aumento das taxas de gravidez de adolescentes. Mas, no Texas, alguns especialistas mencionam as rigorosas leis antiaborto do Estado e o fato de que a educação sexual não é exigida nas escolas. Chega a 58% o percentual das escolas públicas do Texas que ensinam educação sexual com base apenas na abstinência, enquanto 25% não têm aulas de educação sexual, segundo o grupo liberal de líderes comunitários e religiosos Texas Freedom Network. "Enquanto não repassarmos essas informações, elas não receberão educação", diz a diretora da escola Lincoln Park, Cynthia Cardenas. "Elas não recebem a oportunidade de escolher se querem ou não as consequências." As adolescentes do Texas que ficam grávidas precisam enfrentar um sistema de saúde pública complexo para ter acesso à assistência médica ou enfrentar algumas das leis antiaborto mais rigorosas do país, se decidirem pôr fim à gravidez. Viajar para fora do Estado para o aborto, muitas vezes, não é uma opção viável para as mulheres de baixa renda, especialmente quando são menores de idade. Nem as escolhas sobre o que fazer vêm com clareza ou facilidade. No início da gravidez, Helen considerou fazer um aborto ou dar sua filha para adoção. Sua mãe disse que apoiaria qualquer decisão que ela tomasse. Mas, por fim, depois que ela deu à luz e viu sua bebê, Helen decidiu ficar com ela. "Minha bebê é a melhor coisa que aconteceu para mim", ela conta. Jenine é uma criança ativa que fica na creche e usa um grande arco colorido diferente sobre a cabeça a cada dia, combinando com sua roupa. "Tenho o amor da minha vida nas mãos, ela é tudo para mim", afirma sua mãe. Falta apenas um ano para Helen formar-se no ensino médio. Ela sonha em ir para a faculdade e poder sustentar sua filha. Mas, na verdade, apenas a metade das mães adolescentes conclui o ensino médio e uma proporção ainda menor sai em busca do nível superior, segundo o CDC. Questionada se ela imagina onde estaria, não fosse por Lincoln Park, Helen responde: "Honestamente, não tenho ideia. Provavelmente em casa, em dificuldades com minha bebê." O desafio da maternidade é grande, especialmente no começo. Estudos demonstram que a gravidez na adolescência é um fator de risco para a depressão. Mulheres que ficam grávidas na adolescência representam mais da metade das mães que recebem auxílio do governo. A tensão da pobreza e da juventude enfrentada pelas mães da escola Lincoln Park faz com que algumas se desinteressem pela escola ou pensem que será impossível aumentar sua formação com um filho para criar. Durante o almoço, Alexis e três outras alunas se revezam compartilhando fotos de suas crianças pequenas. Uma delas havia acabado de aprender a andar e outra tinha cortado o cabelo. "Ohhh, que bonita", diziam elas em espanhol, quase em coro. Cardenas almoça com as meninas na maioria dos dias e se aproxima do grupo. Como a maior parte delas está a um ano da formatura, a diretora pergunta se elas prestaram seus exames para entrar na faculdade. "Eu já fui aceita em uma escola, mas não acho que quero ir para a faculdade", afirma Angela, aluna nascida nos Estados Unidos que mora no México. Ela cruza a fronteira todos os dias para vir a Lincoln Park, empurrando seu bebê no carrinho ao longo da ponte para pedestres que separa Brownsville de Matamoros. Para ela, o dia começa às cinco horas da manhã, quando ela vai para a fila da travessia, ao sul da fronteira. Às vezes, ela perde as aulas porque trabalha como diarista para ajudar a sustentar sua pequena família. Mas Alexis interveio para contar a Angela o que ela havia aprendido em uma recente sessão de informações sobre a faculdade. "Lá, eles têm uma creche e, se os seus filhos forem quietos, o seu bebê pode ir para a aula com você", contou ela. "Às vezes, você pode conseguir um dormitório para toda a família, como um pequeno apartamento", acrescentou ela. Os olhos de Angela brilharam. "Agora tenho que ir! Preciso ir!" Todas riram. As estatísticas se acumulam contra elas, mas um dos objetivos da escola Lincoln Park é tentar "plantar a semente da faculdade" nas alunas, segundo Cardenas. "E que elas tenham sucesso e ensinem aos seus filhos que eles também têm uma saída." Alunas se aproximam da diretora para pedir conselhos sobre relacionamentos e criação de filhos, para pedir ajuda sobre moradia, fraldas e alimentos para o bebê. Ela já teve alunas que chegaram depois de serem expulsas de casa e outras que indicaram que queriam sair da escola para trabalhar em tempo integral e sustentar o seu bebê. "Às vezes, elas não sabem como criar um bebê", afirma Cardenas. "Nós temos seu futuro nas mãos como educadores. Precisamos fazer isso da forma certa." Espera-se que a decisão cause impactos desproporcionais sobre as adolescentes, segundo o grupo de pesquisa norte-americano Child Trends, dedicado ao bem-estar das crianças. As adolescentes têm mais probabilidade de saber da gravidez mais tarde, mais dificuldade para encontrar apoio e uma probabilidade maior de necessitar de um aborto. "Estive pensando nas implicações da reversão do caso Roe x Wade", afirma Cardenas. Ela ressalta que as mulheres hispânicas estão entre os maiores grupos de procura pelo aborto nos Estados Unidos. "Minha esperança é promover a educação sexual no fim do ensino fundamental e no ensino médio e que nós, educadores, criemos um plano de ação para seguir se tivermos mais adolescentes tendo bebês por conta [da reversão do caso Roe x Wade]", afirma ela. "Não são muitos os distritos escolares que oferecem escolas como esta", acrescenta. "Se você me perguntar, é preciso? Sim. Mesmo se conseguirmos fazer a diferença na vida de 10 meninas, sim. São meninas que não conseguiriam passar em uma escola tradicional." Painéis de vidro nas paredes da escola mostram fotografias de classes de alunas anteriores que já se formaram, sorrindo. E, toda semana, um profissional local vem se apresentar às estudantes, como parte de uma série de palestras sobre carreiras. "O que vocês fazem, vindo para a escola sendo mães e tendo filhos, é difícil", diz uma jovem palestrante a elas. "Saibam que o que vocês plantarem agora, irão colher a recompensa."
2023-01-02
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sociedade
Por que alguns de nós ficam mais tristes e melancólicos no fim do ano
Para algumas pessoas esta época do ano com celebrações e encontros pode ser um período melancólico. Existe até um termo em inglês para isso — "holiday blues", algo como "tristeza de final de ano". Não é um diagnóstico, nem um termo técnico, mas é relativamente comum. O blues significa melancolia, a pessoa pode ficar mais triste, ansiosa e com a sensação de desconforto, principalmente com a chegada das festas de fim de ano. Diferentemente da depressão e outros transtornos, não existe uma perda da funcionalidade nesta condição. Porém, algumas situações externas podem potencializar esses sentimentos e fazer com que o indivíduo sinta algo diferente em comparação com os demais meses do ano. "Pode ser causado por um luto ainda mal resolvido, preocupação financeira, necessidade de encontrar desafetos em eventos familiares, história de conflitos prévios nesses períodos, mesmo que ela não seja o foco deste, mas acaba presenciando outros", explica Marcelo Daudt von der Heyde, psiquiatra, professor da Escola de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR). Como é algo sazonal, pode passar depois dessas épocas mais festivas. No entanto, merece atenção quando se estende para o convívio com familiares e passa a interferir no dia a dia. Fim do Matérias recomendadas Há ainda quem não goste de celebrar certas datas simplesmente por não curtir determinados padrões impostos pela sociedade e isso também deve ser respeitado. "Existem pessoas que são um pouco avessas a essa determinação social. Tem pessoas que são mais introvertidas e que não são tão influenciáveis com o que está acontecendo ao redor. Geralmente, elas são mais avessas no geral", destaca Valéria Tinoco, psicóloga e especialista em Luto do Instituto de Psicologia 4 Estações, em São Paulo. Embora não atinja todas as pessoas, o sentimento de melancolia pode ocorrer nesta época do ano e tem a ver com fim de ciclos. Isso ocorre, principalmente, pela dificuldade enfrentada ao vivenciar fins e terminar algo pendente. "A pessoa pensa que chegou mais um ano e não atingiu aquilo que queria e tem aquela sensação de que não é mais possível fazer algo. Mais um ano se passou", diz Tinoco. Segundo a especialista, a sensação também é bem comum em aniversários, que trazem ideia de tempo passado e aproximação com a morte. Ligia Prado Fonseca, psicóloga da Vibe Saúde com pós-graduação no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto USP, também chama atenção para as relações laborais que potencializam esses sentimentos neste último mês. "Há uma sobrecarga de muitas conclusões e prazos no trabalho. Também notamos que não atingimos as metas que havíamos estipulado no início", diz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sentimentos de melancolia e tristeza podem se intensificar se um indivíduo está vivendo processos de luto. Geralmente, datas comemorativas são gatilhos e, consequentemente, podem deixar as pessoas mais emotivas. "Hoje não se pensa mais em um tempo adequado para o luto ser resolvido, pessoas que já estão bem há muitos anos podem ter lembranças, ficam momentaneamente mais tristes e com um aspecto mais saudosista e de tempo limitado", afirma Heyde. Pessoas que durante a infância e adolescência estavam em ambientes mais conflituosos têm uma tendência maior a ficarem com o holiday blues, mesmo que ela seja apenas uma espectadora do conflito. Isso é provocado pelo condicionamento que acontece naturalmente em nossos processos psíquicos e por terem memórias traumáticas de anos anteriores. Dessa forma, se reunir, trocar presentes e festejar pode trazer ainda mais sofrimento."Estamos falando de adultos que não conseguiram elaborar e celebrar. Porque têm adultos que passaram a vida e a infância assim", diz Tinoco. Quem tem depressão tende a ter mais dificuldade em seguir com encontros e comemorações, principalmente em dezembro. Falar da vida pessoal, ter que lidar e fazer resoluções podem piorar o quadro de quem está em tratamento ou até não apresenta sintomas da doença nos últimos anos. "Quem tem depressão tem uma tendência muito aumentada em dar significados negativos aos eventos, e portanto tem uma chance aumentada de ter o holiday blues, bem como de ter piora do quadro depressivo. Neste caso, além do desconforto tem a perda da funcionalidade em geral e o sofrimento é muito maior", diz o psiquiatra. Nos transtornos de humor, principalmente os de depressão persistente e transtorno bipolar, é comum ter uma sazonalidade. No hemisfério norte isso é amplificado pela redução da luminosidade, pelo fato destas datas serem no auge do inverno, o que causa a depressão sazonal. Porém, a sazonalidade não está restrita a este aspecto, tanto por motivos biológicos, como por motivos biográficos, destaca o psiquiatra da PUC Paraná. Um indivíduo que tem depressão também pode apresentar uma piora do quadro no fim do ano por não conseguir se divertir nesses momentos, fenômeno que é conhecido como anedonia. Ele também pode apresentar uma tendência em ter memórias negativas dos anos anteriores ou simplesmente sentir-se triste sem um gatilho aparente. Passados três anos desde os primeiros casos de covid-19 no mundo, ainda há muitas pessoas que tendem a sentir-se mais tristes devido às consequências da doença. A infecção causou um aumento da mortalidade e prejudicou o ritual de despedida antes e depois do falecimento de um ente querido, aumentando o índice de luto duradouro. Por causa do isolamento, a rede de suporte que, geralmente, daria apoio a quem perdeu alguém próximo, também ficou limitada. De certa maneira, memórias ligadas à doença aumentam a melancolia nas pessoas, já que muitas não irão celebrar com familiares ou estavam, justamente, passando por um momento delicado no ano anterior. "Foi um momento de muito estresse. Faz também com que as pessoas estejam mais carregadas, mais deprimidas e não tenham motivos que queiram celebrar. Tem pessoas que foram afetadas e que ainda podem estar sofrendo as perdas e o luto durante esse período", afirma Tinoco. Mesmo não sendo considerada uma doença, essa tristeza de fim de ano pode ser tratada e merece atenção. Quando os sentimentos começam a interferir na rotina e prejudica pessoas do convívio, é recomendado o acompanhamento com profissionais de saúde como psicoterapeutas. Se houver comprometimento da funcionalidade ou os sentimentos forem mais graves, é necessário avaliar se não está com um quadro depressivo, que necessita de uma abordagem clínica, podendo ser usado algum medicamento. Em relação ao holiday blues "puro", o trabalho é mais de buscar significados diferentes para esses eventos, de criar estratégias de enfrentamento para dar vazão aos sentimentos negativos e evitar comportamentos compensatórios não saudáveis, como abuso de substâncias ou isolamento social.
2023-01-02
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sociedade
Posse de Lula: quem é homem fardado que se destacou carregando Bíblia na cerimônia
Em meio à cerimônia de posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), uma figura chamou a atenção e despertou reações nas redes sociais. Em diversos momentos do evento, um homem fardado carregando uma Bíblia aberta acima da cabeça, erguendo-a com a mão direita. Trata-se do deputado federal Pastor Isidório (Avante-BA). O deputado, que é ex-sargento da PM e pastor da Assembleia de Deus, costuma se apresentar com trajes militares e com a Bíblia na mão. Reportagens sobre o político apontam que, há cerca de 30 anos, criou a Fundação Doutor Jesus, que ele define como um centro de recuperação de usuários de drogas em Candeias, região metropolitana de Salvador. Em 2018, Isidório foi o parlamentar federal mais votado da Bahia, com 323 mil votos. Já em 2022, conseguiu ser reeleito, mas com uma votação menos expressiva: pouco mais de 77 mil votos. Em 2019, o pastor causou polêmica ao apresentar um projeto para conferir à Bíblia o título de "Patrimônio Nacional, Cultural e Imaterial do Brasil e da Humanidade". Fim do Matérias recomendadas Segundo reportagem publicada no jornal O Globo à época, o pastor se declara ex-gay e considera a homossexualidade um pecado. Ele, no entanto, nega que a sua fundação promova a "cura gay", mas afirma que é comum que gays admitidos no local digam que foram "curados" após o tratamento. Qualquer tipo de terapia que seja considerada "cura gay" é proibida no Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Oposição a Jair Bolsonaro durante o governo do ex-presidente, ele foi defensor ferrenho de Lula durante as eleições deste ano. Quando o atual presidente foi eleito, Isidório comemorou nas redes sociais. "Gratidão a todos e todas que depositaram o amor nas urnas hoje. A palavra é avançar! Vamos avançar com as políticas públicas que cuidam de gente", escreveu o deputado federal. "O amor venceu o ódio. Glória ao Deus da Bíblia", escreveu, na legenda de uma foto compartilhada em seu perfil no Instagram. Reportagem publicada pela revista Piauí em outubro de 2018 apresentava o pastor-sargento como um fenômeno eleitoral na Bahia; naquele ano, ele teve quase o dobro do número de votos do segundo deputado mais votado, Otto Alencar Filho, do PSD (185 mil votos). Casado e pai de sete filhos, Isidório costumava dizer que é um "ex-homossexual" convertido pelo Evangelho, de acordo com a publicação. Temas progressistas sobre sexualidade e identidade de gênero, sobretudo nas escolas, ganham o repúdio do pastor que recorrentemente defende a "preservação dos valores da família". Ainda de acordo com a reportagem, Isidório foi policial militar e entrou para a política após participar de greves de PMs, em Salvador, reivindicando aumento de salário e melhores condições de trabalho para a corporação. No episódio, acabou preso e torturado nas dependências da polícia. Mais tarde, o coronel responsabilizado pelo ato contra ele foi condenado por tortura. Em maio de 2019, o deputado viralizou nas redes sociais ao se oferecer para conversar com Bolsonaro sobre mudanças no decreto de flexibilização de armas. "Eu entendo que é chegada hora de buscar interlocução. Esta Casa precisa tirar uma comissão, ou um parlamentar, para conversar com o presidente da República", afirmou. "E pelo perfil dele, me sinto preparado para falar com ele se for necessário. Porque venho da Bahia, sou conhecido como doido. E para conversar com doido, só outro doido." Segundo reportagem publicada pelo site Poder360 à época, o congressista é um opositor da liberação do porte de armas defendida por Bolsonaro. Ele chegou a fazer uma performance em um corredor da Câmara dos Deputados, simulando que havia sido baleado. Caído ao chão, falava em voz alta as suas ideias. "Imagine o inferno que será esta nação com todos os políticos armados. Imagine a discussão da reforma da Previdência. Se por chamar o ministro de 'tchuchuca' terminou daquele jeito, agora imagine terminando na bala", dizia, segundo a reportagem. Após subir a rampa do Palácio do Planalto na tarde deste domingo (1/1), Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebeu a faixa presidencial de maneira simbólica "das mãos do povo brasileiro", como foi narrado oficialmente na cerimônia de posse. O presidente da República chorou logo após receber a faixa. Lula subiu a rampa acompanhado por pessoas que representam a diversidade brasileira, além da cadela Resistência, pertencente a Lula e à esposa, Rosângela da Silva, conhecida como Janja, Um ponto incomum da cerimônia foi o fato de que a faixa presidencial não foi transmitida pelo presidente no cargo, como é de costume. Jair Bolsonaro (PL) não reconheceu publicamente a vitória de Lula e viajou para os Estados Unidos pouco antes da transmissão de cargo. A solução encontrada pela organização da cerimônia, liderada por Janja, foi que o grupo de pessoas assumisse essa função.
2023-01-01
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sociedade
5 dicas para cumprir suas resoluções de Ano Novo
O início de um novo ano é, para muitos, o momento ideal para estabelecer metas. Economizar mais dinheiro? Conseguir um novo emprego? Aprender uma habilidade diferente? Quaisquer que sejam as suas resoluções de ano novo, há uma coisa que não pode faltar: motivação. Mas como tirá-las do papel? Segundo um estudo da Universidade de Scranton, na Pensilvânia (Estados Unidos), compilado pela consultoria Statistic Brain, apenas 8% das pessoas que fizeram uma resolução de Ano Novo conseguiram cumprir seus objetivos. Fim do Matérias recomendadas Mas você não precisa ser um dos 92% restantes. Confira abaixo cinco maneiras simples de evitar o fracasso e chegar ao final do ano com sua resolução cumprida. Boa sorte! Definir metas realistas pode levar a uma maior chance de sucesso. Parte do problema é que muitas vezes estabelecemos metas enormes "sob a falsa suposição de que você pode ser uma pessoa completamente diferente no ano novo", diz a psicoterapeuta Rachel Weinstein. Começando com um objetivo não tão ambicioso, podemos progredir e passar para níveis mais difíceis. Por exemplo, você pode comprar alguns tênis de corrida e se inscrever para competições de trajetos curtos antes de se comprometer totalmente a correr uma maratona. Não se trata de estabelecer pequenas metas, mas pensar em cumprir os objetivos em etapas para alcançar resultados de longo prazo. Porque, na realidade, "a mudança requer pequenos passos ao longo do tempo", explica Weinstein. Muitas vezes definimos metas sem uma ideia clara de como executá-las. Mas é importante planejar os detalhes. Se você se propõe a "ir à academia nas tardes de terça-feiras e nas manhãs de sábado", é mais provável que você tenha sucesso do que simplesmente dizer "vou mais à academia", acredita o professor Neil Levy, da Universidade de Oxford (Inglaterra). Essas ações concretas e factíveis garantirão que você não apenas tenha uma intenção, mas também estabeleça as etapas para implementá-la. Encontrar outras pessoas com um objetivo semelhante ao longo do ano pode ser uma grande fonte de motivação. Se você for para a aula com um amigo, a dedicação é maior. A mesma coisa acontece quando você torna pública sua lista de compromissos, temos mais chances de cumpri-la. John Michael, filósofo da Universidade de Warwick (Inglaterra), estuda os fatores sociais envolvidos em assumir e manter compromissos. Ele afirma que é mais provável que cumpramos as resoluções se pudermos ver que elas são de alguma forma importantes para outras pessoas ou que "o bem-estar de outras pessoas está em jogo" se falharmos. Portanto, seja para cumprir um compromisso ou obter apoio adicional das pessoas ao nosso redor, envolver outras pessoas pode ajudá-lo a chegar lá. Quando as coisas ficam difíceis, os especialistas aconselham fazer uma pausa e reavaliar a situação. Que obstáculos você encontrou? Quais estratégias foram mais eficazes no processo? Quais foram as menos eficazes? Se necessário, seja mais realista e celebre até o menor sucesso. Se depois de reavaliar a situação você quiser manter a mesma determinação, por que não tentar uma abordagem diferente que possa alimentar sua força de vontade? Mudanças simples em sua vida diária podem ajudá-lo a seguir na direção certa. Se você quiser comer de forma mais saudável, pode trocar macarrão branco e pão por grãos integrais mais saudáveis. Ou você pode tentar reduzir a gordura saturada substituindo bolos e batatas fritas por palitos de vegetais e shakes nutritivos. De acordo com a psicóloga comportamental Anne Swinbourne, as melhores resoluções são aquelas que visam alcançar uma parte do que é um plano de longo prazo que você tem para si mesmo, e não aquelas que são vagas e ambiciosas. Se você nunca demonstrou interesse por um esporte, é improvável que se torne um atleta de destaque. "As pessoas que confiam na força de vontade geralmente falham", diz Swinbourne. Assim que tiver uma resolução que lhe interesse, aborde-a com um plano detalhado desde o primeiro dia. E não tenha medo de buscar ajuda ao enfrentar os obstáculos ao longo do caminho.
2023-01-01
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sociedade
Por que algumas pessoas sofrem mais com ressaca do que outras
Se você acordou de ressaca neste 1º de janeiro de 2023, você não está sozinho. Mas, surpreendentemente, nem todo mundo sofre os mesmos efeitos após uma noite de intensa bebedeira. Estudos científicos medem a ressaca em uma escala de 11 pontos (zero, sem efeito e 10, ressaca extrema). Em minha própria pesquisa, os participantes relataram ter ressaca nesta escala entre um (muito leve) e oito (grave), enquanto outro levantamento estimou que cerca de 5% das pessoas podem ser resistentes à ressaca. Mas o que explica essa diferença? Fim do Matérias recomendadas Não se trata apenas do quanto bebemos. Pesquisadores estão começando a analisar os muitos mecanismos biológicos e psicológicos que podem influenciar nossa experiência de ressaca. Algumas pesquisas sugerem que pessoas com uma variação do gene ALDH2 costumam ter ressacas mais graves. Quando consumimos álcool, a enzima álcool desidrogenase (ADH) o transforma em acetaldeído, uma proteína importante para o aparecimento dos sintomas da ressaca. No entanto, a variante do gene ALDH2 limita a quebra do acetaldeído, levando ao aumento do acúmulo da proteína e, portanto, ao aumento dos sintomas de ressaca. A idade e o sexo também podem influenciar a experiência da ressaca. Uma pesquisa online recente com 761 consumidores holandeses de álcool descobriu que a gravidade da ressaca diminui com a idade, mesmo quando ajustada para a quantidade de álcool consumida. Curiosamente, os autores também relataram diferenças na gravidade da ressaca entre homens e mulheres. Essas diferenças entre os gêneros foram maiores em bebedores mais jovens, com homens jovens (de 18 a 25 anos) tendendo a relatar ressacas mais graves em comparação com bebedores mais jovens. No entanto, atualmente não se sabe por que essas diferenças existem. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Certos traços psicológicos podem estar relacionados a como experimentamos a ressaca, incluindo ansiedade, depressão, níveis de estresse e até personalidade. No passado, a ciência sugeria que a neurose, um amplo traço de personalidade que muitas vezes leva as pessoas a ver o mundo de maneira negativa, poderia prever a gravidade de uma ressaca. No entanto, essa ideia foi recentemente contestada por outro estudo que não encontrou nenhuma relação entre ressacas e personalidade. Isso é um tanto surpreendente, uma vez que a extroversão está associada a comportamentos de consumo excessivo de álcool entre estudantes universitários, embora não pareça estar relacionada a ressacas piores. E isso apesar da evidência de que beber muito e frequentemente está ligado a ressacas mais graves. Ansiedade, depressão e estresse também estão ligados a ressacas mais graves. Cada um desses humores está associado a um "viés negativo", uma tendência a interpretar o mundo de forma mais negativa. Nossas descobertas mostram que as ressacas também tendem a fazer com que as pessoas interpretem o mundo dessa maneira. Como resultado, as ressacas podem exacerbar esse viés negativo, fazendo com que algumas se sintam pior do que outras. É possível que a forma como lidamos com situações adversas esteja no cerne dos motivos pelos quais temos experiências de ressaca tão distintas. A "catastrofização" da dor ocorre quando uma pessoa enfatiza a experiência negativa da dor. Pesquisas mostram que pessoas com altos níveis de "catastrofização" da dor relatam ressacas mais graves. Isso indica que elas estão se concentrando em seus sintomas negativos e possivelmente os amplificando. Outros estudos também mostraram que pessoas que tendem a lidar com seus problemas ignorando-os ou negando-os tendem a ter ressacas piores. A regulação emocional é outro mecanismo psicológico importante que nos ajuda a lidar com situações difíceis, gerenciando as experiências emocionais e respondendo a elas com eficácia. Curiosamente, embora as pessoas com ressaca relatem achar mais difícil regular suas emoções, esse pode não ser o caso, pois pesquisas mostram que os participantes conseguem controlar sua resposta emocional tanto quanto aqueles que não estavam de ressaca. Isso pode significar que as pessoas escolhem estratégias regulatórias mais fáceis (mas menos eficazes) durante uma ressaca, como evitar sentimentos de culpa ou vergonha. Mas isso ainda está para ser determinado. Embora os pesquisadores já tenham identificado alguns compostos naturais que aliviam os sintomas gerais da ressaca, mais pesquisas ainda precisam ser feitas para determinar se eles devem ser recomendados para o seu tratamento. Enquanto isso, cabe a você decidir a melhor estratégia para aliviar a ressaca. No entanto, um estudo indica que uma estratégia comumente usada por estudantes para lidar com a miséria de uma ressaca — "sofrer" juntos e compartilhar essa experiência — pode ser útil para aliviar pelo menos alguns dos efeitos emocionais negativos. Cuidar do seu bem-estar pessoal e encontrar melhores estratégias para reduzir os níveis de estresse, além de adotar melhores mecanismos de enfrentamento, também pode ajudar a lidar com as consequências negativas de uma ressaca. Mas, claro, se você realmente deseja evitar uma ressaca, pode escolher alternativas não alcoólicas. Pense nisso da próxima vez que quiser "encher a cara". *Craig Gunn é professor de psicologia na Universidade de Bristol.
2023-01-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64141023
sociedade
Réveillon em imagens: mundo comemora chegada de 2023
O mundo comemorou a chegada de 2023 com fogos de artifício, shows e festas. O pequeno arquipélago de Kiribati, no Pacífico, foi o primeiro a celebrar o Ano Novo, enquanto o estado americano do Havaí, um dos últimos a dar as boas-vindas a 2023. Confira abaixo como foi a virada do ano ao redor do mundo em imagens.
2023-01-01
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64120519
sociedade
Poliamor solo? Não monogamia ética? As lições sobre amor e sexo de 2022
As formas como pensamos no amor e no sexo estão sempre evoluindo. Elas são influenciadas por acontecimentos culturais, políticos e globais. Este ano não foi diferente. Grande parte dessa influência se espalhou online, especialmente em comunidades que se identificam no espectro LGBTQIA+. Ao mesmo tempo, a autorreflexão conduzida ao longo da pandemia de covid-19 continua abalando, em efeito cascata, o mundo dos relacionamentos de forma geral, resultando em mais práticas intencionais. Com isso, as pessoas passaram a pensar mais sobre quem e como gostariam de namorar. Em 2022, este movimento fez com que mais pessoas se afastassem abertamente dos padrões binários de gênero e atração. Vimos pessoas ainda mais dependentes da internet para encontrar possíveis parceiros, para o bem e para o mal. Fim do Matérias recomendadas E as pessoas passaram a se expressar cada vez mais sobre a experiência de diferentes tipos de relacionamentos, desde o poliamor solo até parcerias de vida platônicas. Na cultura ocidental, os relacionamentos, o gênero e a sexualidade, há muito tempo, são definidos por padrões binários. Ou o casal está namorando, ou não está; alguém é atraído por mulheres ou por homens, a pessoa é homem ou mulher. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, nos últimos anos, esses padrões binários ficaram cada vez menos arraigados e mais pessoas vêm observando as orientações sexuais e identidades de gênero de formas diferentes. E este processo foi especialmente marcante em 2022. Com relação à orientação sexual, o gênero de uma pessoa perdeu relevância para muitos em busca de um parceiro, especialmente no caso de muitos millennials e jovens da Geração Z em seus relacionamentos íntimos. Ella Deregowska tem 23 anos de idade e mora em Londres. Ela afirma que identificar-se como pansexual permitiu a ela mover-se "com maior fluidez e aceitar cada atração que sinto sem achar que preciso reconsiderar minha identidade ou rótulo para explicá-la". Especialistas afirmam que o aumento da abertura para atrações não-binárias, em parte, está relacionado ao crescimento da sua representação em meios populares. Há desde programas de televisão como o canadense Schitt's Creek, em que o ator Dan Levy interpreta o personagem pansexual David Rose, até celebridades como a cantora e compositora norte-americana Janelle Monáe, que se identificou com a pansexualidade. Não foi apenas a orientação sexual que se afastou dos padrões binários neste ano. Outros jovens (e celebridades) também se afastaram dos binários para descrever seu gênero. "Um dia, eu acordo me sentindo mais feminina e posso talvez vestir um top curto e usar brincos. E há momentos em que meio que preciso do meu binder [colete para minimizar o volume dos seios] porque não estou me sentindo daquela forma", afirma Carla Hernando, que tem 26 anos de idade e mora em Barcelona, na Espanha. Mas, com cada vez mais pessoas rompendo os padrões binários de gênero e sexo, namorar ainda pode ser um campo minado para as pessoas que se identificam como não binários. Desde aplicativos de encontros que exigem gêneros binários até pessoas que forçam parceiros não binários a adotar papéis de gênero, nem toda a sociedade aderiu ao movimento para afastar-se das normas de gênero binário. No ano passado, os relacionamentos entre os jovens sacudiram ainda mais as normas arraigadas da sociedade. Essas conexões satisfazem a necessidade de companhia próxima, intimidade e sexo, mas não dependem necessariamente de objetivos de relacionamento de longo prazo — em vez disso, eles ficam em algum ponto entre um relacionamento fixo e um encontro ocasional. Segundo a professora de sociologia Elizabeth Amstrong, da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, que estuda esses tipos de relacionamentos, os jovens da Geração Z acreditam que "a 'situação', por alguma razão, funciona no momento. E, no momento, não vou me preocupar em ter algo que 'dê em alguma coisa'." De forma geral, a abertura para muitos tipos de relacionamentos não tradicionais também ganhou visibilidade. Mas, apesar de tudo isso, muitos mitos e tabus de relacionamento sobreviveram e provavelmente irão permanecer. A maior tranquilidade entre diferentes formas de namoro não facilitou os rompimentos. Muitos casais que floresceram com as restrições da covid-19 sentiram muito essa dificuldade em 2022. Depois de começarem a namorar em "bolhas de casais" durante os lockdowns, muitos estão enfrentando dificuldades para adaptar-se a relacionamentos em condições mais normais. E alguns casais que se deram bem só entre eles não se adaptaram ao mundo real. Esses coaches representam uma mudança rumo à normalização da procura por auxílio terapêutico em tempos de alto nível de estresse e ao longo do processo de divórcio. "Divorciar-se não é mais visto como falha de caráter ou fracasso na própria vida", segundo a psicóloga clínica Yasmine Saad, fundadora dos Serviços Psicológicos Madison Park em Nova York, nos Estados Unidos. Portanto, contratar um coach de divórcio é tão natural quanto "buscar consultoria financeira antes de investir o seu dinheiro". Terapeutas de relacionamento afirmam que têm visto um aumento desta prática em consequência da pandemia, com casais que se sentiram confinados juntos ao longo dos dois últimos anos querendo explorar uma vida solo sem se separarem. Entre os casais decididos a se separarem, as últimas tendências de queda da economia fizeram com que eles ficassem presos um ao outro, morando juntos. Afinal, atualmente não é barato viver sozinho, nem comprar a parte de um ex-parceiro em uma moradia conjunta. Foi o caso de Chantal Tucker, que tem 37 anos de idade e é coproprietária de um imóvel em Londres com seu ex-parceiro: "Eu sabia que nunca conseguiria comprar novamente um imóvel e a perspectiva de viver de aluguel em Londres para sempre era cada vez mais desagradável". Enquanto isso, para os solteiros, ainda é difícil navegar pelas águas traiçoeiras dos aplicativos de relacionamento. É inegável que os aplicativos de relacionamento agora são a principal forma usada pelos mais jovens (millennials e Geração Z) para conhecer pessoas. Existem milhares de sites de encontros online, que são usados por 48% dos jovens com 18 a 29 anos de idade nos Estados Unidos. Mas, infelizmente, o mau comportamento nesses aplicativos é uma constante, incluindo as pessoas que os usam para praticar a infidelidade ou até assédio — a maior parte, dirigido aos usuários identificados como mulheres. Pessoas de todos os gêneros afirmam que ficam sobrecarregadas com as opções disponíveis nos aplicativos de relacionamento. Eles contam que se sentem em um jogo de números e não interagindo com possíveis parceiros reais. "Às vezes, fico esgotada quando sinto que preciso pesquisar literalmente 100 pessoas para encontrar alguém que eu ache razoavelmente interessante", afirma Rosemary Guiser, que tem 32 anos de idade e mora na Filadélfia, nos Estados Unidos. É quase impossível evitar o uso de aplicativos para conhecer alguém. "Você pode comparar um pouco [os aplicativos de relacionamento] com a Amazon ou o Facebook", segundo Nora Padison, conselheira graduada e licenciada de Baltimore, nos Estados Unidos. Mas, devido à pandemia, as pessoas se acostumaram a ter seus encontros iniciais online. Muitos consideram essa pré-seleção uma forma mais segura e inteligente de decidir sair para um encontro real e ainda é assim que muitos solteiros estão se encontrando de forma mais "intencional". Outra forma é abster-se de beber durante os encontros. Uma pesquisa de tendências de 2022 do serviço de encontros Bumble concluiu que 34% dos seus usuários britânicos eram mais dispostos a sair em encontros sem bebida desde o início da pandemia, enquanto 62% afirmaram que teriam mais condições de formar "conexões genuínas" durante os encontros sóbrios. Dados de 2021 demonstram que os millennials casados nos Estados Unidos relataram os maiores problemas com desejo sexual naquele ano, frequentemente atribuídos à exaustão causada pela forte sobrecarga de trabalho, problemas de saúde mental e fatores de tensão financeira. A terapeuta sexual Celeste Hirschmann, de São Francisco, nos Estados Unidos, percebeu que seus clientes casados costumavam levar cerca de 10 a 15 anos para parar de ter sexo entre si. "Agora, pode estar levando de três a cinco", segundo ela. Seu foco não é em estabelecer um relacionamento duradouro como objetivo de vida, mas em estruturar suas próprias vidas antes de trazer um parceiro comprometido ou pensar em começar uma família. Com todas essas opções, alguém tem alguma resolução de Ano Novo em vista?
2022-12-30
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-64124540
sociedade
Gordofobia: 'Usavam minhas fotos para falar do meu corpo no WhatsApp'
"É estranho. Aqui é tão perto da minha casa, mas só cinco anos atrás eu voltei a frequentar a praia." A capixaba Rayane Souza cresceu na Ilha do Boi, em Vitória. Seus pais têm uma casa ampla nesse que é um dos bairros nobres da capital do Espírito Santo, de onde se tem algumas das vistas mais bonitas da cidade. Ela é fundadora do Gorda na Lei, que produz conteúdo sobre os direitos das pessoas gordas e dá aconselhamento jurídico a vítimas de preconceito. No país da harmonização facial e dos influencers fitness, grupos de ativistas antigordofobia têm colocado o Brasil em uma posição particular no mundo. Aqui, cidades têm discutido — e aprovado — leis específicas para melhorar a acessibilidade a todos os tipos de corpos, advogados têm levado à Justiça casos de discriminação, especialmente no ambiente de trabalho, e concursos de beleza celebram o "plus size". Enquanto Rayane dá entrevista à BBC News Brasil, no banco de uma pequena praça em frente à praia da Ilha do Boi, seu namorado tira fotos e filma a conversa. O conteúdo vai para o Instagram, onde a influencer compartilha seu cotidiano com mais de 18 mil seguidores. Fim do Matérias recomendadas Sua versão da mulher de 32 anos passa longe da menina que por 11 anos não pisou na praia. "Quando era adolescente, eu inventava todo tipo de desculpa pra não vir à praia. Falava que estava menstruada, que tinha doença de pele… quando nada dava certo, eu vinha — e era aquela pessoa de legging preta e blusa larga sentada na areia", ela relembra. "Sempre fui gorda, estava acostumada com comentários sobre o meu corpo." Uma experiência traumática na universidade, entretanto, mudou tudo. Em 2012, quando Rayane cursava Direito em uma faculdade particular em Vitória, alguns de seus colegas de sala criaram um grupo de WhatsApp para compartilhar fotos dela. "Eles tiravam as imagens das minhas redes sociais e ficavam falando do meu corpo." A certa altura, alguém se sentiu culpado e decidiu contar — foi assim que ela descobriu. Lidar com o choque abriu a porta para a autodescoberta. Rayane conheceu o conceito body positive, que surgiu nos Estados Unidos nos anos 1970 questionando padrões estéticos e pregando autocuidado, aceitação e amor próprio. "Quando entendi o que era gordofobia, entendi muito do que havia acontecido comigo em toda a vida até ali. O problema não era comigo, era com a sociedade." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Gorda na Lei surgiu em 2019, quando ela convidou a amiga Mariana Oliveira, uma advogada especializada em direitos humanos, a criar um grupo para alertar as pessoas gordas sobre seus direitos. A página no Instagram recebe cerca de 70 mensagens por mês, de pessoas que buscam reparação após sofrerem discriminação ou que apenas querem compartilhar suas histórias e serem ouvidas. As estatísticas do Tribunal Superior de Trabalho mostram que há hoje mais de 1.400 casos em tramitação que mencionam "gordofobia", apenas na esfera trabalhista. O termo não é tipificado como crime na legislação brasileira, mas ativistas como Mariana e Rayane defendem que casos de discriminação de pessoas gordas incluam a expressão para ajudar a quantificar o problema e dar visibilidade a ele. Na prática, os advogados acionam dispositivos existentes na legislação, entre eles injúria e danos morais. Em um caso recente em Minas Gerais em que a vendedora de uma loja entrou com pedido de danos morais, o dono do estabelecimento só lhe pagava um adicional ao salário se ela perdesse peso. O comerciante obrigava-a a subir numa balança nos dias de pagamento e deixava bilhetes em que lhe comunicava as "metas de peso". Após recurso, a 9ª turma do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região confirmou a decisão em favor da vítima e fixou indenização em R$ 10 mil. Em sua defesa, o empresário argumentou que tinha decidido impor o constrangimento à empregada porque "a via como um pai e queria o melhor para a saúde dela". No acórdão, os desembargadores escreveram que nada na interação entre patrão e empregada lembrava uma relação entre pai e filha, e concluíram: "os fatos emergentes deste processo são surreais, embora incontestáveis". Apesar de o número de casos levados à Justiça ter ganhado fôlego, Rayane e Mariana dizem que muita gente prefere não entrar com processo para evitar reviver o trauma. É o caso, elas contam, de uma mulher no Espírito Santo que ficou presa na catraca do ônibus por quatro horas e teve de ser removida pelos bombeiros. "As pessoas ficavam tirando fotos dela, fazendo vídeos, foi horrível", diz a influenciadora. As catracas são uma queixa comum entre pessoas gordas no Brasil. Rayane parou de tomar ônibus aos 14 anos, quando ficou presa no trajeto para o centro de Vitória. "Eu sei que sou privilegiada e tenho a possibilidade de andar de carro, de táxi, mas essa não é a realidade da maioria dos brasileiros." Para ela, as leis precisam mudar para tornar a cidade mais acessível e confortável para pessoas gordas. Em relação especificamente ao transporte público, uma solução seria permitir que as pessoas embarcassem pela porta de trás - hoje, os passageiros têm de pedir ao motorista, e muitas vezes se sentem constrangidas. A quase 2 mil km de Vitória, uma cidade nordestina tem feito algumas dessas mudanças legislativas. Recife aprovou no ano passado duas leis antigordofobia: a criação de um dia de conscientização da luta contra a gordofobia e a obrigatoriedade da compra de carteiras maiores para todas as escolas da capital pernambucana, para que haja pelo menos uma por sala de aula. "Eu sabia de relatos de pessoas adultas que tinham passado muito vexame na infância, que ao chegar na escola tinham que buscar uma cadeira de adulto na direção", diz a autora do projeto, a vereadora Cida Pedrosa (PCdoB). Para ela, ações de inclusão de pessoas gordas são tão importantes quanto as que buscam combater a obesidade e promover uma alimentação mais saudável para jovens e adultos. "Uma coisa não está ligada diretamente à outra. A gente tem a obrigação, enquanto escola e família, de oferecer às crianças alimentação saudável e incentivar uma vida saudável. Mas a gente não pode patologizar as pessoas gordas", diz ela, referindo-se a uma queixa comum entre os grupos antigordofobia, a de que as pessoas gordas são instantaneamente rotuladas de doentes. A vereadora também é autora de um projeto que hoje tramita na Câmara e que proíbe a venda e a distribuição de bebidas açucaradas e de alimentos ultraprocessados nas escolas públicas e particulares do Recife. "Eu conheço atletas gordos. Tem gente que engorda porque tem problemas hormonais, na tireoide, e que não se resolve só com a alimentação. O que a gente está precisando é que as pessoas sejam aceitas, o que nós estamos incentivando é a inclusão." Ela conversa com a reportagem na escola municipal Reitor João Alfredo, onde as novas cadeiras causaram um certo estranhamento entre os alunos quando chegaram. "A última coisa que você quer quando se sente 'diferente' é atrair atenção para si mesmo", explica a diretora Marília Oliveira. Para vencer a resistência, a equipe pedagógica da escola organizou uma campanha antibullying e incorporou a pauta da antigordofobia de forma transversal na sala de aula. "A mudança na lei tem que vir acompanhada de uma mudança de mentalidade, e é isso que estamos tentando fazer aqui." "É importante começar nas escolas. Esse é um lugar em que a gente está sujeito a muitas violências, e é onde a gente se constrói como ser humano. Essas experiências traumáticas acabam moldando nossa personalidade", pontua Aline Sales, fundadora de um dos grupos que trabalharam com a vereadora na elaboração das leis, o Bonita de Corpo. Para Carol Stadtler, do mesmo coletivo, a mudança de mentalidade também deve quebrar o estereótipo de que pessoas gordas são preguiçosas - um preconceito que muitas vezes reduz suas oportunidades de crescimento no mercado de trabalho - ou de que são individualmente culpadas por seus problemas. Para quem ganha baixos salários e tem de passar horas no transporte público para se deslocar nas cidades grandes, ter dinheiro para comer frutas e verduras e tempo para se exercitar pode ser um privilégio, ela diz. "Isso é estrutural, as pessoas estão ficando mais gordas e nós precisamos lidar com isso." No Brasil, mais da metade da população tem sobrepeso e 25% são consideradas obesas, conforme as estatísticas do Ministério da Saúde. Perder peso não é fácil - e a evolução ajuda a explicar isso. Durante a história, os humanos viveram muito mais episódios de escassez do que fartura, o que acabou programando o corpo humano para ganhar apetite quando emagrece, diz a endocrinologista Lúcia Cordeiro O componente psicológico também pode jogar contra - cerca de 30% das pessoas com obesidade têm transtornos alimentares, acrescenta a especialista. É por isso que o tratamento para esses pacientes geralmente envolve a participação de psicólogos e psiquiatras. Outros 30% dos casos têm componentes genéticos. A obesidade é uma doença inflamatória associada a uma variedade de comorbidades, do câncer a males cardiovasculares e apneia. Ainda assim, uma pessoa com sobrepeso ou mesmo obesa pode ser considerada saudável. "E o contrário também: a pessoa pode ser magra e não ser saudável", diz Cordeiro à BBC News Brasil em seu consultório no Recife. "Nós analisamos a saúde global do paciente. Se ele tem sobrepeso, mas não tem hipertensão, diabetes, problemas no colesterol, pode ser considerado um paciente saudável." Em sua visão, o aumento da obesidade é um problema de saúde pública com o qual os países precisam lidar. Isso não significa, contudo, que a sociedade não deva se adaptar para tornar a vida mais confortável para pessoas gordas ou combater a discriminação. É preciso fazer os dois, diz a médica. "Nós precisamos dizer à sociedade que é preciso levar uma vida mais saudável, mas precisamos ter atenção com a maneira como mandamos essa mensagem, para que não se torne preconceito, gordofobia." De volta a Vitória, Rayane comenta que "pessoas gordas sempre tiveram medo de consultório médico". A reportagem ouviu diversos relatos de pessoas que escutaram que precisavam perder peso a despeito de seus sintomas. Muitas dizem que é comum ouvir frases gordofóbicas durante o atendimento. Nos últimos meses, contudo, a influenciadora tem pensado em procurar um profissional da saúde. Ela e o noivo, Thiago, planejam ter um filho e querem que a gravidez seja a mais tranquila possível. "Quero melhorar minha qualidade de vida, comer de forma mais saudável. Se isso me levar a um emagrecimento, é uma consequência - mas não é o foco. Eu acredito que um processo de gravidez pode acontecer de uma maneira muito saudável em um corpo gordo." Em sua visão, um dos principais equívocos que as pessoas têm em relação ao combate à gordofobia é de que ele é uma romantização de um estilo de vida não saudável. O objetivo, segundo ela, é que as cidades sejam mais acessíveis, as consultas médicas mais humanizadas, que o mercado de trabalho tenha mais oportunidades. "Nada tem a ver com apologia a uma vida não saudável - até porque o movimento jamais iria incentivar uma pessoa a continuar em um corpo que é marginalizado. A gente incentiva as pessoas a se empoderarem, a buscarem seus direitos. A decisão do estilo de vida pertence a cada um."
2022-12-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63949805
sociedade
Animais e fogos de artifício: como lidar com o medo dos pets na virada do ano
Nas últimas semanas de dezembro, o interesse por um remédio costuma estar em alta nos sites de pesquisa da internet: o sedativo acepromazina é visto como uma alternativa para aliviar o estresse de cães e gatos que sofrem com o estampido e as luzes dos fogos de artifício. Esses incômodos relacionados ao foguetório, aliás, representam um perigo à saúde dos pets: eles podem trazer efeitos imediatos, com fugas, atropelamentos e convulsões, ou de longo prazo, como doenças cardíacas, imunológicas e metabólicas. Muitas vezes, na tentativa de trazer alívio ao animal de estimação, os donos acabam recorrendo aos remédios anestésicos e relaxantes. Eles são vistos pelos tutores como meios para acalmar os animais no final de ano, especialmente na virada dos dias 31 de dezembro e 1º de janeiro, nas comemorações do réveillon. O uso desses fármacos, porém, também significa uma ameaça aos bichinhos. Sem a orientação de um médico veterinário, essas substâncias podem causar sérios efeitos colaterais. A própria acepromazina é um exemplo disso: apesar de o animal parecer mais relaxado e sonolento após receber o tratamento, ele segue com os sentidos em pleno funcionamento. Fim do Matérias recomendadas Ou seja: na prática, o pet continua a ver e a ouvir todos os estímulos visuais e sonoros ao redor. Ele só não consegue reagir com os comportamentos esperados, como correr, se esconder, procurar os donos, latir/miar… "Nós vemos na prática como a automedicação está crescendo. As pessoas têm facilidade de conseguir esses remédios e dão aos animais na melhor das intenções, mas acabam colocando a saúde deles em perigo", alerta o veterinário Pedro Parussolo, do Hospital Veterinário Sena Madureira, em São Paulo. "Além disso, o retorno do cachorro ou do gato ao estado normal após a acepromazina não é muito legal. Alguns ficam com alucinações e desenvolvem comportamentos compatíveis com uma crise de dor de cabeça", acrescenta o também veterinário Guilherme Soares, professor da Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro. "Não se trata, portanto, de uma alternativa boa para lidar com essas situações", complementa o especialista. Mas por que alguns cães e gatos têm tanto medo dos fogos de artifício? As luzes e os barulhos dos fogos de artifício representam um baita estímulo visual e sonoro para diversos animais. E esses dispositivos são acionados justamente à noite, no momento em que as coisas costumam estar mais calmas, escuras e silenciosas na natureza. Também é preciso ter em mente que a visão e a audição de gatos, cachorros e outras espécies costumam ser mais sensíveis que a dos seres humanos. Com isso, eles conseguem captar muito mais estímulos do ambiente — e o que é um ruído para nós vira um barulhão para outros seres vivos. Soares aponta que o medo dos fogos de artifício possui raízes genéticas e evolutivas. "No passado, os animais que fugiam do barulho sobreviveram para deixar descendentes. Isso nem sempre acontecia com aqueles que não reagiam da mesma forma", compara. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Os primeiros meses de vida também são decisivos para isso: a infância é um período crítico. Se, enquanto filhote, o cachorro teve alguma experiência positiva com relação aos barulhos, ele tende a desenvolver menos comportamentos patológicos dali em diante", diz o veterinário. Vale destacar, portanto, que nem todo cão ou gato desenvolve essa reação aguçada de estresse e medo diante do foguetório. O comportamento varia muito de acordo com cada bichinho. Em 96,8% desses casos, os sinais eram de medo, como procurar os donos para se proteger, tremer, se esconder, fugir ou latir. "Dos cães que apresentaram fobia de ruídos, 83% tinham medo de fogos de artifício, 65% de sons de tempestades, 30% de sons produzidos por armas de fogo, 28% de sons de escapamento de carro, 18% de outros ruídos ambientais altos e 12% de barulhos altos na televisão", calcula o artigo. O impacto disso na saúde dos animais é bem conhecido: o Hospital Veterinário Sena Madureira, por exemplo, observou um aumento de 25% na internação de pets durante o mês de dezembro de 2021 por causa do estresse e do pânico relacionados aos rojões e aos fogos de artifício. E esses incômodos têm consequências imediatas e de longo prazo. Durante eventos barulhentos, gatos e cachorros têm uma diminuição do bem-estar e ficam mais agressivos ou retraídos. Alguns podem até sofrer convulsões. Há uma parcela dos pets que, no desespero, foge de casa ou pula de janelas altas. Isso também representa um perigo, já que eles podem se machucar, se perder ou virar vítimas de atropelamentos em ruas e avenidas. "Com o passar do tempo, os animais mais suscetíveis ainda sofrem com baixas na imunidade, doenças cardíacas e até problemas no metabolismo relacionados a quadros como o diabetes", descreve Soares. Nos últimos dez anos, todos esses desdobramentos incentivaram campanhas e até mudanças na lei em vários lugares do Brasil: no Estado de São Paulo, por exemplo, é proibido soltar fogos de artifício com barulho desde julho de 2021. Soares sugere que os tutores comecem a se preparar com alguns meses de antecedência, se possível. "Se você percebe que o cão ou o gato têm problemas com barulhos, vale buscar um especialista três ou quatro meses antes [do período de festas]", orienta Soares. "Com isso, já é possível colocar em prática treinamentos e mudanças comportamentais. Em alguns casos, também prescrevemos medicamentos", relata. Que fique claro: como citado no início da reportagem, o uso dos fármacos depende de cada caso e deve sempre respeitar a orientação e a dosagem prescrita pelo veterinário, para minimizar o risco de efeitos colaterais indesejados. As medicações que os profissionais costumam prescrever nesses cenários não são os sedativos ou anestésicos. A primeira opção vem da classe dos ansiolíticos, que ajuda a aplacar a ansiedade. Para as pessoas que não conseguiram se planejar com antecedência, Parussolo indica uma série de estratégias que auxiliam na virada do ano. A primeira delas é manter o animal num espaço mais calmo e tranquilo da casa, que tenha o menor contato com os ruídos do exterior. Se possível, vale deixar algum som ambiente na hora do foguetório — colocar uma música relaxante ou deixar a TV ligada com o volume baixo são algumas das ideias. "Também podemos usar alguns fones de ouvido desenvolvidos para os animais, que abafam um pouco o som externo", acrescenta. "Alguns animais se sentem mais confortáveis com a presença dos tutores. Então fazer companhia para eles nesses momentos pode ajudá-los", diz o veterinário. Na hora de selecionar o melhor cômodo da casa para manter os bichinhos protegidos das luzes e dos barulhos, também é importante atentar-se à segurança: para evitar fugas ou acidentes, confira se janelas e portas estão bem fechadas. Por fim, o veterinário pede que os donos fiquem atentos a sintomas prolongados, que indicam algo mais sério. "Se os animais deixam de comer, beber água e fazer cocô ou xixi por muito tempo, é importante fazer uma avaliação", conta. "A virada de ano é um momento em que a maioria das pessoas está feliz e comemorando. Mas temos que pensar que a nossa festa pode ser uma fonte de aflição para outros seres que vivem perto de nós", conclui Parussolo.
2022-12-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64058707
sociedade
Os vídeos do TikTok com 'super dicas' que podem esconder fetiches sexuais
Você provavelmente já os viu na aba 'Para você' do TikTok: vídeos tolos e absurdos ensinando como fazer algo de maneira simples, uma "super dica". Pés descalços mergulhados em silicone, mulheres espalhando comida nos dedos dos pés — aparentemente para combater a pele seca. Muitas vezes anunciadas como dicas para facilitar sua vida, essas "soluções" são quase sempre totalmente irrealistas e inúteis. Recentemente, usuários começaram a se questionar se esse conteúdo estaria atendendo sutilmente a um público com certos fetiches sexuais. Basta dar uma olhada nos comentários desses vídeos, e você verá muitos sugerindo que há "algo mais" acontecendo. Fim do Matérias recomendadas As diretrizes do TikTok proíbem "conteúdo que retrata um fetiche sexual". Mas a empresa diz que revisou os clipes aos quais nos referimos e concluiu que eles não violam suas regras. Uma das maiores contas desse tipo de conteúdo — que a reportagem da BBC optou por não identificar — tem 11 milhões de seguidores e seus vídeos receberam um total de 163,8 milhões de curtidas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A BBC pediu a Alix Fox, escritora, radialista e sexóloga, para assistir a alguns desses vídeos. Muitos se concentram nos pés — um fetiche bem conhecido para algumas pessoas. Mas outros são mais obscuros. Por exemplo, alguém sugere que, se sua calça jeans ficar apertada, você pode entrar no chuveiro com ela, para que fique molhada e seja mais fácil de retirar. Alix observou temas como exagero, foco em partes específicas do corpo, uso de comida e bagunça, antecipação e humilhação — todos os quais ela diz estarem relacionados a tipos de fetiche. Ela argumenta que as empresas que os postam estão cientes da imensa quantidade de espectadores que podem atrair. Se você ler os comentários nos vídeos, muitos usuários parecem convencidos de que estão assistindo a conteúdo fetichista. Em última análise, Alix acredita que é preocupante que crianças de 13 anos "possam ver comentários e discussões sobre tipos de erotismo" e até ser levadas a sites pornográficos. "Os jovens estão sendo expostos a coisas confusas e sexualizadas na internet, deliberadamente ou não", diz ela. O conteúdo se tornou tão popular que o site adulto PornHub agora tem uma seção com temática parecida. Mas, diz Alix, é "extremamente difícil provar" que esses vídeos pretendem atender a fetiches. "As linhas entre o que é absolutamente sabido que os fetichistas vão querer assistir — versus apenas coincidência total... essas linhas estão se tornando cada vez mais tênues", diz ela. Alix admite que, apesar das infinitas semelhanças entre esses vídeos e "as alegorias da pornografia", algumas pessoas podem simplesmente gostar de assistir a esses vídeos bobos como uma forma de relaxar. "Se você sabe que um vídeo de dica será algo terrível e inútil, pode assisti-lo sem a sensação de que é algo a ser acrescentado à sua lista de coisas a fazer", diz ela. É importante observar que alguns desses vídeos, mas não todos, também aparecem em outras plataformas. Uma das contas dessas temáticas mais populares também tem uma forte presença no Facebook e no YouTube. Um grande fator em sua popularidade no TikTok é o algoritmo do aplicativo. "Os algoritmos recompensam esse conteúdo quanto mais reação dos usuários tiver", diz Alix. "Não importa se esse comentário é positivo ou negativo, sexual ou inocente". "Se esse engajamento está acontecendo, então você está trazendo dinheiro."
2022-12-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64117404
sociedade
Os desafios de pessoas com transtorno de personalidade limítrofe para namorar: ‘Fico logo obcecada’
"Quando fui diagnosticada com TPL, pensei que nunca teria relacionamentos saudáveis." Foi assim que Mae, de 21 anos, se sentiu quando soube no início deste ano que tinha Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL) — e este é um sentimento compartilhado nas redes sociais por muitas outras pessoas com o mesmo diagnóstico. Nos países de língua inglesa, vídeos com a hashtag #bpdisorder vêm acumulando mais de 500 mil visualizações até o momento no TikTok. São pessoas compartilhando suas próprias experiências, às vezes com uma injeção de humor, e um tema recorrente que surge é o desgosto e os relacionamentos tóxicos. O TPL está se tornando cada vez mais visível nas redes sociais, e Liana Romaniuk, psiquiatra infantil e professora da Universidade de Edimburgo, na Escócia, acha que isso se deve em parte ao fato de os jovens encararem o diagnóstico de forma diferente das gerações anteriores. "Alguns jovens com quem trabalho me perguntam: 'Posso ter TPL?' Acho que há uma conscientização crescente", diz Romaniuk. Fim do Matérias recomendadas  O Transtorno de Personalidade Limítrofe (TPL) é um problema de saúde mental que causa instabilidade emocional e pode afetar a forma como as pessoas gerenciam seu humor e interagem com outras pessoas. Acredita-se que afete cerca de uma em cada 100 pessoas. Muitas pessoas com TPL sofreram traumas ou negligência na infância, o que pode dificultar os relacionamentos quando adultos. Romaniuk ressalta que "trauma" não precisa significar algo horrível ou abusivo — pode ser resultado, por exemplo, de pais que se separam, são emocionalmente distantes ou a morte de um deles em uma idade jovem. Infelizmente, pode haver um estigma associado ao diagnóstico de TPL. Romaniuk explica: "Muitos médicos acreditavam no passado que o TPL era intratável ou que as pessoas estavam sendo manipuladoras. Felizmente, essa não é a opinião de ninguém com quem trabalho no momento". Há também um "debate contínuo" nos círculos profissionais, diz Romaniuk, sobre se o TPL é de fato um distúrbio de personalidade ou uma reação a um trauma passado. "Não gosto da expressão 'distúrbio de personalidade'", diz ela. "Parece que você está dizendo que há algo fundamentalmente errado com [a pessoa], e esse não é o caso. Penso nisso mais em termos de sobreviventes, eles são adaptadores." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mae começou a pesquisar o TPL porque percebeu que estava ficando "obsessiva" e ansiosa nos relacionamentos. "Percebi que meus sintomas eram muito mais fortes e disfuncionais quando estava em um relacionamento", diz ela, diagnosticada em março de 2021. "Fico obsessiva rapidamente. Vou constantemente querer ligar ou enviar mensagens de texto, e vou me isolar de outros amigos — abandono hobbies e dedico todo o meu tempo a essa pessoa." Coisas simples para quem não tem TPL podem tomar grandes proporções para quem vive com o transtorno. "Uma vez, eu estava no apartamento de um amigo quando recebi uma mensagem do namorado e o tom dele realmente me assustou — eu literalmente peguei todas as minhas coisas e disse: 'Tenho que ir' e corri para o apartamento dele 15 minutos de distância. "Estava tendo um ataque de pânico total. Acontece que estava tudo bem, então voltei para a casa da minha amiga. Deve ter sido muito bizarro para ela, mas não seria capaz de sentar e conversar porque o pânico continuaria a aumentar." O medo do abandono também pode se manifestar como hostilidade. "Nas últimas semanas do meu último relacionamento, terminava com meu ex, dizendo que iria embora algumas vezes e sendo muito rancorosa", diz Mae. "Então, quando ele finalmente terminou comigo, fiquei absolutamente arrasada, liguei para ele chorando, implorando para voltar. O fim do relacionamento estava diretamente relacionado ao meu TPL." Desde seu diagnóstico, Mae iniciou um tratamento chamado Terapia Comportamental Dialética (TCD), que é um tipo de terapia de fala para pessoas que têm dificuldade para regular suas emoções. Também começou a tomar antidepressivos. "Estou me sentindo muito mais positiva", diz ela. "Quando fui diagnosticada pela primeira vez, parecia uma sentença de morte, e seria assim pelo resto da minha vida, mas o TCD está me mostrando uma saída." É importante observar que nem todos os diagnosticados com TPL se comportarão da mesma maneira, diz Romaniuk: "Você não pode fazer uma avaliação de um grupo inteiro de pessoas com base em três letras". Os parceiros de pessoas com TPL às vezes também podem achar difícil — embora muitos com a condição possam construir relacionamentos saudáveis. Este não foi o caso de Ellen*. A mulher de 32 anos namorou um homem diagnosticado com TPL no ano passado. "Não sei como as coisas poderiam ter sido diferentes se ele não tivesse TPL", diz. "Acho que desculpei muito comportamento abusivo, porque pensei que talvez fosse parte da condição." Ellen explica que o ex-companheiro "me fazia sentir culpada" por deixá-lo sozinho, a ponto de ela começar a voltar mais cedo do trabalho. "Se tivéssemos algum tipo de desacordo, ele deixava de falar comigo", acrescenta. "Fiz muitas concessões pensando que era o TPL. Ele começou a me deixar a cada três dias — ele saía no meio da noite, depois voltava e me dizia que eu era o amor de sua vida." Ela diz que parte do comportamento dele era abusivo. Mas este é um rótulo justo para pessoas com a doença? "Essa é uma questão realmente importante que toca no cerne de quem somos como seres humanos", diz a psiquiatra infantil Romaniuk. "Tendo TPL, você ainda é você mesmo. Isso pode predispor você a responder de certas maneiras, mas acho que ainda há um nível de responsabilidade pelo que você faz em um determinado momento. Na maioria das vezes, o comportamento não é manipulador, mas às vezes, pode ser." Na maioria das vezes, porém, o comportamento vem do medo do abandono. "Pelo que outras pessoas com TPL me disseram, há uma tendência de empurrar antes de ser empurrado", diz Romaniuk. "Você pode criar motivos para terminar um relacionamento ou criar testes para garantir que seu parceiro esteja realmente com você. Isso é subconsciente — não é manipulação aberta. Do ponto de vista da sobrevivência do seu cérebro, é sempre melhor estar em guarda e esperar o pior." Ela incentiva a "conversa honesta" entre os parceiros se uma pessoa tiver TPL, mas também recomenda a pessoas sem a condição de "não descuidar de seu bem-estar também". Romaniuk também destaca que cada pessoa com TPL é diferente, e o rótulo não predispõe ninguém a um conjunto específico de comportamentos. "Algumas das pessoas mais adoráveis, dinâmicas e interessantes que conheço têm TPL", conclui. *Alguns nomes foram alterados
2022-12-28
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64107883
sociedade
Plogging, o curioso esporte sueco que combina corrida com recolhimento de lixo
Cuidar do meio ambiente e praticar exercícios físicos. Essa é a fórmula na qual se baseia o "plogging". Há alguns anos, em 2016, o corredor sueco Erik Ahlstrom, cansado de tropeçar no lixo de parques, praças e calçadas, resolveu criar esse esporte tão estranho. É uma contração da palavra sueca plocka upp (recolher) e da palavra inglesa jogging (corrida a pé de baixa velocidade). O conceito consiste em aproveitar uma corrida semanal para recolher o lixo que se encontra pelo caminho. A fórmula rapidamente obteve sucesso na Suécia e no restante do mundo, graças às redes sociais. "Estou impressionado com a quantidade de lixo encontrada na natureza", explicou Ahlstrom em várias entrevistas quando lançou o esporte. Fim do Matérias recomendadas "Os detritos podem ficar na estrada por várias semanas sem que ninguém os pegue, então comecei a fazer isso sozinho. É bom fazê-lo, mesmo que seja um pequeno gesto". Da cidade de Are, conhecida estância de esqui alpino da Suécia, o plogging espalhou-se para Estocolmo e rapidamente pelo mundo, incluindo a América Latina, onde em 2019 chegou mesmo a bater um recorde. "Na verdade, o recorde mundial está na Cidade do México, 4 mil pessoas fazendo plogging em um dia… mas acho que cerca de 10 mil pessoas fazem isso regularmente na Índia. Na Índia, a maior tendência de corrida agora é o plogging", disse Ahlstrom à agência de notícias Reuters em um evento da modalidade em Estocolmo em 2019. No TikTok, os vídeos de plogging têm atualmente mais de 11 milhões de visualizações, e no Facebook as pessoas se reúnem para praticá-lo em grupo. Nas provas de que participa, o corredor sueco motiva as pessoas ao relembrar fatos como, por exemplo, as 3 milhões de bitucas de cigarro que são jogadas fora todos os dias na Suécia e a quantidade de plástico nos oceanos. "A maior parte desse plástico vem do solo, então, quando corrermos, vamos correr com um propósito", ele costuma dizer aos participantes logo no início de uma corrida. Ahlstrom diz não se surpreender com o interesse pelo esporte em todo o mundo. "É muito fácil, e o plogging queima mais calorias do que a corrida normal — você tem que se curvar e agachar, é bom para as pernas e você ganha um corpo melhor", disse ele à Reuters. Não por acaso a ideia de "correr pelo planeta" surgiu na Suécia. Os suecos são conhecidos por seu amor pela natureza e por sua consciência ambiental. A adolescente ativista climática Greta Thunberg ganhou fama global depois que sua greve escolar do lado de fora dos prédios do governo em Estocolmo desencadeou um movimento global. É muito simples. A primeira coisa a fazer antes de começar é verificar se você possui o equipamento adequado, como um par de luvas de borracha, um saco de lixo transparente e, se for sócio de um clube de plogging, a camiseta correspondente, que também serve como informação para que os pedestres saibam o que está acontecendo. Alguns também optam por um bastão com gancho para recolher o lixo do chão, mas isso não é recomendado, pois você se exercita mais ao se curvar. O plogging é tão bom para o planeta quanto para o corpo, pois você pode treinar todos os músculos graças ao trabalho do abdômen e das nádegas sempre que se abaixar ou agachar para pegar algo no chão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além disso, correr, parar e correr de novo é o que os profissionais chamam de "treinamento intervalado", o que aumenta o gasto calórico. Por fim, você também trabalha os músculos do braço enquanto transporta o lixo coletado do chão. De acordo com aplicativos de condicionamento físico, que permitem aos usuários inserir e registrar as calorias queimadas durante o plogging, esse exercício ecológico é muito mais eficaz do que a corrida. Especificamente, meia hora de plogging queima 288 calorias em média, em comparação com 235 de uma corrida normal. E pode ser feito na cidade, na serra, no campo... não há um local específico para correr e recolher o lixo. "Sinto que estou fazendo um bem ao meio ambiente", diz um britânico entusiasta da modalidade à BBC. "É ótimo que as pessoas venham, se reúnam e limpem o ambiente para torná-lo um lugar melhor", diz outra atleta. "Você sai para correr e mesmo que só recolha cinco itens, são cinco itens que não vão parar no mar", acrescenta outro atleta. A paixão por esse esporte levou um estudante indiano a visitar 30 cidades do Reino Unido em 30 dias durante este mês de dezembro para lutar contra as alterações climáticas. Durante a sua estadia em Bristol, no oeste da Inglaterra, onde chegou no ano passado para fazer um mestrado em Política e Gestão Ambiental, Vivek Gurav recolheu 5.000 kg de lixo durante corridas por aquela cidade britânica. "Quero criar uma comunidade de plogging em todo o Reino Unido, como fiz na Índia", explica o estudante de 26 anos à BBC, cujo objetivo é inspirar outras pessoas a criar "seus próprios grupos". Gurav chegou a lançar uma campanha de plogging em sua cidade natal, Pune, na Índia. Conhecidos como "Pune Ploggers", já são mais de 10 mil voluntários que "ajudam a tornar o mundo um lugar melhor", diz ele. Nos últimos quatro anos, Gurav percorreu 675 quilômetros recolhendo mais de 1.000 toneladas de lixo em 120 "missões plogging" e em novembro falou na COY17, a versão jovem da COP27, a cúpula do clima. Ele espera se juntar a outros ploggers, ambientalistas e corredores enquanto visita cada cidade em transporte público para coletar lixo em todo o país. "Acho que o plogging me transformou em um ativista climático que protesta recolhendo lixo", diz à BBC o jovem que foi convidado para Downing Street (residência do primeiro-ministro britânico) em outubro pelo novo premiê do país, Rishi Sunak. "As comunidades podem provocar uma mudança de mentalidade, e isso é crucial para um despertar em massa para a mudança climática e para que os governos de todo o mundo ajam agora". Gurav acrescentou que tenta neutralizar a "mentalidade negativa" das pessoas em relação ao lixo, que ele descreveu como "descuidada" e "irresponsável". Também espera que o projeto comunitário tenha um "efeito positivo" na saúde mental, um "aspecto fundamental" da comunidade plogger que desenvolveu na Índia, segundo ele. "Quero oferecer um espaço seguro onde as pessoas possam falar sobre seus problemas na vida, um lugar para compartilhar suas ansiedades e medos", diz. Para encorajar as pessoas a praticar o esporte de forma regular, Gurav lança desafios e transforma a coleta de lixo em uma "caça ao tesouro", com grupos "competindo" pela maior quantidade de lixo coletada. "Esse tipo de abordagem encoraja as pessoas a recolher o lixo, aumenta a motivação e faz com que elas voltem para mais sessões", conclui.
2022-12-27
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64095043
sociedade
'Cérebro quântico', a ousada teoria que aponta caminhos sobre o mistério da mente humana
O que o seu cérebro faz enquanto você lê esta reportagem? Como ele consegue compreender as informações e, ao mesmo tempo, observar o seu entorno, suas percepções e sentimentos? Mesmo com todos os avanços dos estudos do cérebro, continua sendo um mistério entender o que é a consciência e como ela surge. Dois estudos recentes realizados no Instituto de Neurociências do Trinity College de Dublin, na Irlanda, indicam que a resposta a este mistério pode estar na física quântica. No mundo quântico, as certezas da física clássica dão lugar a uma dimensão de probabilidades. E também são registrados fenômenos que podem parecer estranhos, como a conexão entre os objetos, mesmo se distanciados. Os dois estudos foram publicados pela revista Journal of Physics Communications e indicam que os nossos cérebros talvez funcionem como computadores quânticos. E, se os resultados dos pesquisadores forem confirmados, eles podem ajudar a compreender não só o funcionamento do cérebro, mas também o que acontece nos casos de deterioração cognitiva com a idade ou causada por doenças. Fim do Matérias recomendadas No reino da física clássica, que inclui desde a mesa da cozinha até os planetas, os objetos têm locais e velocidades definidas. Já na física do muito pequeno (a escala quântica), as partículas não têm localização fixa, mas sim uma probabilidade de que existam em um lugar e momento determinados. Nesta escala, ocorre também o chamado entrelaçamento quântico — um fenômeno que surge quando duas partículas estão tão conectadas que o acontece com uma afeta imediatamente a outra, não importando a distância que as separe. "A física tradicional encarrega-se de explicar os efeitos macroscópicos que observamos", afirmou à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, o cientista espanhol David López Pérez, doutor em neurociências e um dos autores dos dois estudos. Segundo ele, "a física quântica costuma ser probabilística, já que nunca podemos saber com segurança no que algo em concreto irá se converter". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No primeiro estudo, López Pérez e seu colega Christian Kerskens, do Trinity College, usaram máquinas de ressonância magnética modificadas para escanear o cérebro de 40 indivíduos. Para obter imagens de ressonância magnética (MRI, na sigla em inglês), potentes ímãs fazem com que as partículas magnéticas do corpo fiquem alinhadas na mesma direção. É possível então observar o movimento da matéria dentro do corpo. No caso do estudo, os cientistas observaram no aparelho o comportamento dos prótons no cérebro. "O cérebro tem muita quantidade de água", explica López Pérez. "Na ressonância magnética, é enviado um sinal, um pulso para que os prótons da água fiquem excitados e retornem em seguida à sua posição original." "Digamos que você tenha uma festa. Todos estão conversando entre si e, de repente, o DJ coloca uma música que agrada a todos. Todos se voltam para o DJ para ouvir a música e, quando ela acaba, cada um volta a fazer o que estava fazendo. É o que acontece na ressonância magnética para medir os prótons da água." Neste experimento, os cientistas constataram que era registrado o entrelaçamento quântico entre os prótons do cérebro. "Os prótons interagem entre si, como se estivessem separados e, de repente, é estabelecida uma relação", segundo López Pérez. "O experimento é algo que não se havia feito até agora, porque o que fizemos foi saturar o sinal. É como se o DJ estivesse colocando a melhor música a todo momento e sempre tivesse as pessoas olhando para ele. Nesse momento, observamos esses efeitos", explica ele. Para explorar o funcionamento do cérebro, os pesquisadores aplicaram uma ferramenta desenvolvida no passado para tentar comprovar um fenômeno conhecido como "gravidade quântica". Esta ferramenta destaca que, quando existem dois sistemas quânticos conhecidos que interagem com um sistema desconhecido, se os sistemas conhecidos forem entrelaçados, o desconhecido também deve ser um sistema quântico. "Isso evita as dificuldades de encontrar dispositivos de medição para algo que desconhecemos", explica Kerskens. No experimento com ressonância magnética, os sistemas conhecidos são os prótons que se entrelaçam e o sistema desconhecido com o qual eles interagem é a função cerebral. "Nós afirmamos que os prótons estão entrelaçados porque existe uma função que está mediando o entrelaçamento e, para nós, esta função é a consciência, que age como mediadora", afirma López Pérez. "Não podemos medi-la diretamente, mas medimos os prótons." O cientista explicou à BBC News Mundo que "a gravidade quântica é um mundo puramente teórico que ainda não foi explicado experimentalmente. Ele pretende unir duas teorias que, em princípio, não são compatíveis (a mecânica quântica e a teoria da relatividade). Para isso, foi criada a figura do gráviton, que é algo que não se sabe como é, mas que seria a ponte entre as duas teorias." "É como se tivéssemos duas pessoas com opiniões políticas diferentes, que não conseguem chegar a nenhum tipo de acordo e, graças a um negociador, podem colocar suas diferenças de lado, sentar e conversar." "No cérebro, nós propomos algo parecido. Nós propomos que a forma de funcionamento do sinal de ressonância magnética não pode ser explicada de forma clássica", prossegue López Pérez. "Observamos que os prótons se entrelaçam, mas não sabemos como nem por quê. O que fizemos foi recolher as ideias da gravidade quântica e propor que existe um mediador nesse processo que permite que isso aconteça. Esse mediador, para nós, é a consciência." Os cientistas começaram a pensar na relação com a consciência devido a um paciente que dormiu durante o experimento. "Inicialmente, não pensamos que existisse uma relação com a consciência. Esta ideia nos veio devido a um participante que pediu desculpas por ter dormido no aparelho", afirmou López Pérez. "Observamos como o sinal caía no momento em que o participante dormiu dentro do aparelho e voltava a surgir quando ele acordava. Foi aí que começamos a pensar que havia a possibilidade de relação com o estado consciente do participante." "É a única explicação que encontramos, mas precisamos reproduzir o experimento e realizar um estudo mais avançado, que nos permita demonstrar o que foi apresentado nos dois estudos que publicamos recentemente", explica o pesquisador. Os cientistas também observaram uma relação entre o sinal de entrelaçamento e o funcionamento do coração. López Pérez afirma que "nosso sinal é muito sensível a qualquer perturbação e o sinal que parte do coração certamente interrompe o entrelaçamento. Por isso, nosso sinal era semelhante ao de um eletrocardiograma." O cientista ressaltou que o sinal de entrelaçamento é muito sensível. "Se você está no MRI e se move, o sinal se perde." "E o coração está mandando sangue a todo momento. Com a entrada do sangue, o cérebro se expande e se contrai. Quando ele se expande, o líquido cefalorraquidiano sai e o sangue entra. Quando se contrai, o sangue se vai e o líquido retorna." "De forma que nós acreditamos que esse movimento é o que gera a mudança de sinal, pois estamos perdendo essa relação quântica por culpa do movimento por um momento muito breve", explica ele. Os cientistas colocaram um pulsômetro no dedo dos participantes para medir o fluxo sanguíneo. "Concluímos que as mudanças de sinal de entrelaçamento e os batimentos cardíacos estavam bastante relacionados no tempo, estavam em sincronia", prossegue o pesquisador. Em um segundo estudo, os pesquisadores demonstraram que os sinais de entrelaçamento também dependiam da idade dos participantes. Neste experimento, foram obtidas imagens de ressonância magnética de dois grupos de pacientes diferenciados por idade. Um deles tinha pessoas de 18 a 30 anos e o outro, pessoas de 65 anos ou mais. "O que observamos é que, com a idade, havia mudanças muito importantes no sinal", segundo López Pérez. "É algo que ainda não podemos explicar. Também fizemos um piloto com alguns pacientes com depressão. Eram poucos, mas aparentemente os sinais também eram diferentes." "Então, o que está acontecendo com o entrelaçamento? Essas comunicações cerebrais já não funcionam bem?", questionou ele. "Sabemos que, com a idade, existem muitas mudanças estruturais no cérebro, que diminui de tamanho, a tensão aumenta e o fluxo sanguíneo muda. Talvez, no futuro, esses estudos possam ser utilizados para gerar algum tipo de medicamento." Já Kerstens destacou que, "como as funções cerebrais também foram relacionadas ao rendimento da memória de curto prazo e à consciência, é provável que os processos quânticos sejam uma parte importante das nossas funções cerebrais cognitivas e conscientes". Os pesquisadores destacam que o passo seguinte é realizar estudos em maior escala. "O que tentávamos com os experimentos era basicamente comprovar que o cérebro pode comportar-se de forma quântica", afirma López Pérez. "Queríamos estabelecer evidências físicas de algo sobre o que se vem falando há muitos anos. Porque são feitas conjecturas de que o cérebro pode ser quântico desde que começou a mecânica quântica, nos anos 1930 ou 40", segundo ele. "Mas ninguém havia conseguido provar. O que tentamos fazer no estudo é descartar continuamente a física clássica para provar que, afinal, o cérebro comporta-se de forma quântica." O cientista espanhol destacou que, com a física clássica, pode-se explicar muitos aspectos do cérebro, como as mudanças do fluxo sanguíneo ou a ativação dos neurônios. "Mas a consciência, por exemplo, é algo que não se entende", afirma ele. "Creio que, se quisermos entender o cérebro, precisamos descer a mais um nível na escala quântica." "Com este estudo, esperamos colocar nosso grão de areia no campo da neurociência e seguir uma linha de pesquisa (o mundo quântico). Até agora, havia se teorizado sobre isso (embora, para muitos, este tipo de entrelaçamento não possa existir em um corpo quente e úmido, como o nosso cérebro), mas não se havia encontrado uma prova científica como a que apresentamos." Para Kerstens, "os processos cerebrais quânticos talvez expliquem por que ainda superamos os supercomputadores quando se trata de circunstâncias imprevistas, tomada de decisões ou aprendizado de algo novo. Nossos experimentos... podem lançar luz sobre os mistérios da biologia e sobre a consciência."
2022-12-27
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64103781
sociedade
Conheça Krampus, a versão maligna do Papai Noel
Este texto foi originalmente publicado em dezembro de 2017 e republicado após atualização. Já ouviu falar em Krampus, uma versão "do mal" do Papai Noel? Pois ele existe e, assim como o bom velhinho, também é celebrado em alguns países da Europa e em cidades dos Estados Unidos. Krampus é o oposto do Papai Noel. Enquanto a figura carismática do velhinho de cabelos e barbas brancas entrega presentes para as crianças no Natal, premiando-as pelo bom comportamento ao longo do ano, o espírito maligno chega para punir aquelas que não se comportaram. Ele é descrito nas histórias como uma figura bestial, sendo metade cabra (tem chifres, por exemplo) e metade demônio. Fim do Matérias recomendadas Diz a lenda que ele batia nas crianças com um chicote e as colocava dentro de um cesto. Em alguns casos, chegava a engoli-las. Na Áustria, onde a lenda é muito conhecida, o anti-Papai Noel tem uma festa pagã. Todo início de dezembro, pessoas se fantasiam como Krampus, colocam roupas que imitam pele de animais e chifres e tomam as ruas da cidade. Algumas levam correntes e sinos para fazer barulho — seria dessa maneira que o monstro avisava que estava chegando. Elas saem assustando crianças e adultos. Essa noite do Krampus geralmente ocorre em 5 de dezembro, véspera do dia de São Nicolau, santo que é inspiração para a figura do Papai Noel. Em outros lugares do mundo também há a tradição de celebrar o Krampus antes do Natal. Festas de rua acontecem na Baviera, na Alemanha, em vilarejos do norte da Itália e também em Washington e Chicago, nos Estados Unidos, entre outras. Diz a lenda que depois dessa única aparição, Krampus voltaria a surgir apenas no Natal seguinte. Um filme americano sobre essa figura diabólica foi lançado em 2015, Krampus: O Terror do Natal. Na história, Krampus aterroriza um garoto que começa a perder o gosto pela comemoração do Natal.
2022-12-25
https://www.bbc.com/portuguese/geral-42397729
sociedade
Como é passar o Natal na Antártica
Quando a britânica Clare Ballantyne chegou ao lugar que ela chamaria de lar pelos próximos cinco meses, o encontrou coberto de neve. "Nos aquecemos muito rapidamente cavando muito", diz ela com um sorriso no rosto. Clare foi escolhida junto com outras três mulheres, Mairi Hilton, Lucy Bruzzone e Natalie Corbett, para cuidar do remoto porto de Port Lockroy, cerca de 1.466 quilômetros ao sul das Ilhas Malvinas. Elas superaram milhares de candidatos que também se inscreveram para administrar a base durante o verão antártico para o Fundo do Patrimônio Antártico do Reino Unido, que ajuda a conservar locais históricos e monumentos britânicos na Península Antártica. O que antes era uma base militar britânica e uma estação de pesquisa hoje consiste em uma agência dos correios, museu e loja de souvenires. A equipe dá as boas-vindas aos navios de cruzeiro que passam e monitora a população da ilha de cerca de 1 mil pinguins-gentoo. Fim do Matérias recomendadas Falar com as mulheres é extremamente difícil, mas Clare e Mairi conseguiram relatar à BBC sua experiência por meio de uma linha telefônica via satélite irregular. "Retiramos a neve do acesso aos edifícios, certificando-nos de que os painéis solares estão desbloqueados e funcionando, temos água e gás suficientes e estamos seguras para ficar na ilha", diz Clare. A Marinha Real Britânica veio ajudar a equipe a consertar o telhado do museu, que havia sido danificado pelo peso da neve. Clare se lembra da época em que os marinheiros partiram e a equipe ficou sozinha na ilha, cercada apenas por pinguins e icebergs flutuando silenciosamente no canal. "Foi simplesmente incrível", diz ela. A função de Clare, como agente dos Correios, é enviar os postais dos turistas que visitam a ilha para países ao redor do mundo. "A correspondência que envio daqui leva cerca de quatro semanas para chegar ao Reino Unido", explica.  A equipe está em Port Lockroy há várias semanas e estabeleceu uma rotina bem exaustiva.  "Acordamos às 7h", diz Mairi, responsável por monitorar a vida selvagem. "Tomamos café da manhã e descemos para tirar a neve do local aonde chegam os viajantes." "Temos um cruzeiro pela manhã. Os turistas vêm visitar o museu, a loja e ver os pinguins. Depois almoçamos e um segundo grupo de turistas chega à tarde até as 18h. À noite jantamos, supervisionamos os pinguins e fazemos qualquer outra tarefa que seja necessária", acrescenta. Port Lockroy é o destino turístico mais popular da Antártica, com cerca de 18 mil visitantes por ano. Mas é uma relação simbiótica: a equipe depende muito da ajuda dos barcos que passam. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast  "Não temos água corrente, então pegamos nossa água potável nos navios de cruzeiro", diz Mairi, "e tomamos banho lá também". "Recebemos frutas, legumes e pão frescos dos navios que visitam. As tripulações cuidam muito bem de nós", acrescenta Clare. Como não há conexão de internet em Port Lockroy, a principal forma de a equipe manter contato com suas famílias e acompanhar o que está acontecendo no mundo exterior é usando o Wi-Fi dos navios. E embora tenham recebido treinamento em primeiros socorros, se precisarem consultar um médico, têm que esperar por um a bordo dos navios visitantes. Mas nem sempre é tão simples. A imprevisibilidade do clima antártico pode, de repente, manter a equipe isolada por dias. "Você nunca sabe o que vai acontecer", diz Clare. "Você não sabe se um barco está chegando de manhã, se vai haver uma tempestade. Você tem que ser muito flexível." Mesmo assim, e apesar dos desafios, elas ainda estão maravilhadas com o que as rodeia. "Todas as manhãs, quando você sobe os degraus cheios de neve do edifício, as montanhas e os icebergs no canal ao nosso redor, é simplesmente lindo… Ver os pinguins faz você sorrir", assinala Clare. Questionada sobre como é viver em meio aos pinguins, Mairi diz: "Não são tão barulhentos quanto esperava. São realmente bons vizinhos, e é muito divertido assisti-los." A principal tarefa da equipe em relação à fauna é contar os ovos que costumam ser postos nesta época do ano, embora Mairi afirme que a mudança nas condições climáticas parece ter atrasado a época de reprodução. "Há muita neve e também não temos gelo marinho fixo na baía, o que é incomum. Os ovos de pinguim não sobreviverão se forem postos na neve, então, se continuarmos tendo esses invernos mais quentes e amenos, isso prejudicará os pinguins." Clare e Mairi dizem que ainda não tiveram muito tempo livre, mas estão tentando aproveitar cada momento que passam na ilha. E o Natal? "Tiraremos o dia de folga", diz Mairi. "Vamos fazer um pudim de Natal, mince pies (doce tradicional britânico) e biscoitos de gengibre. Vamos apenas relaxar, cear, enfim, fazer muitas coisas que você normalmente faria em casa, só que na Antártica", conclui.
2022-12-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64087369
sociedade
Muito além do chester: quais são os pratos tradicionais de Natal dos nossos vizinhos latino-americanos
Este texto foi originalmente publicado em dezembro de 2021 e republicado após atualização. Quando se fala em ceia de Natal no Brasil, o mais comum é pensar no peru, chester, tender — e na discussão sobre se pratos como o arroz e a farofa devem ou não levar uva-passa Mas o que se come nesta época em outros países da América Latina e de onde vem essa tradição? Alguns dos exemplos dos pratos típicos das festas de fim de ano são romeritos no México, vitel toné na Argentina, pão de presunto na Venezuela. A BBC News Mundo (serviço de notícias em espanhol da BBC) perguntou aos leitores, no início de dezembro de 2021, quais os pratos e bebidas tradicionais de seus países. Fim do Matérias recomendadas As respostas foram variadas e deliciosas. Também houve muitas coincidências, como suspeitávamos: carne de porco e tamales abundam nos cardápios. Mas de onde vêm essas tradições? A BBC News Mundo ouviu quatro historiadores gastronômicos da região. Romeritos, pozole, peru, porco, tamales, bacalhau... e não se esqueça do ponche de tequila e da salada de maçã. Os leitores da BBC News Mundo fizeram uma longa lista das receitas de Natal do México. As evidências mostram que é muito diversificada e varia de acordo com a região do país de que estamos falando. No entanto, duas refeições se repetem em quase todo o território: peru e porco, principalmente o pernil marinado e recheado. Na área central do México é onde o menu de Natal parece ser mais extenso. Existem os romeritos, que pertencem ao grupo dos quelites — que seriam erva comestível e não devem ser confundidos com o tempero de alecrim. O prato é uma caçarola que contém romeritos, toupeira e pó de camarão seco. "Aparentemente, os romeritos são consumidos desde os tempos pré-hispânicos", diz Yolanda García González, doutora em História e especialista em alimentação dos séculos 16 e 17 no México. No centro do país também se come bacalhau a la vizcaína (molho típico da região basca espanhola), embora com intervenção mexicana. "É bacalhau a la vizcaína mexicanizado. Aqui adicionamos batatas, azeitonas, alcaparras, amêndoas, dependendo também da região onde o preparamos", diz García González à BBC News Mundo. E por que bacalhau? "Essa comida entra pelo golfo, por Veracruz, onde chega o carregamento de bacalhau e se distribui por todo o território. Nos bares e cantinas da Cidade do México é comum encontrar bolinhos de bacalhau nesta época", diz. A historiadora explica que o cardápio natalino no México está profundamente ligado à chegada dos costumes espanhóis e, principalmente, ao que a religião ditava sobre o que comer ou não comer. "Produtos como pernil de porco e cortes de vaca são encontrados nos livros de registros de despesas dos conventos do século 16, principalmente nas festas de dezembro", diz García González, que é diretora do Cocina, um site que aborda as origens da culinária mexicana na história, arte e ciência. "Tamales e porco assado não faltam em Honduras", escreveu um leitor no Instagram. "Pão com peru em El Salvador", publicou outro. "Na Costa Rica, costeletas de porco e tamales", disse um terceiro. Com nuances em cada um, os ingredientes do cardápio natalino da Guatemala, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Costa Rica, Panamá, Cuba, República Dominicana e Porto Rico tendem a coincidir. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Os pratos se repetem porque os ingredientes são os mesmos. O que muda é a forma de prepará-los e os nomes de acordo com as culturas indígenas, sua língua e quem povoou após a conquista, como o caso africano", explica Cruz Miguel. Ortiz Cuadra, historiador portorriquenho e autor de vários livros e ensaios sobre a história da alimentação no Caribe. Entre esses ingredientes comuns estão banana, arroz e carne de porco. Ortiz Cuadra confirma que o porco predomina no cardápio natalino dos países latino-americanos devido aos espanhóis — e precisamente o primeiro a chegar: Cristóvão Colombo. "Os primeiros porcos são trazidos por Cristóvão Colombo em 1493, em sua segunda viagem. Ele os traz da ilha de La Gomera, nas Ilhas Canárias. Estrategicamente traz oito porcas prenhas. Essa era uma tática dos conquistadores europeus para reproduzir os animais assim que chegavam aqui", detalha Ortiz Cuadra, que é professor da Universidade de Porto Rico. Para o espanhol daquela época, o porco era muito significativo porque em sua visão seu consumo estimulava o sangue e tinha um grande valor nutricional. Mas também era um símbolo religioso: quem comia carne de porco era cristão e diferia dos muçulmanos e judeus que eram fortemente perseguidos na época. O animal começa a se reproduzir no Caribe com muita facilidade. "Os porcos se movem por todo o Caribe e são pratos de Natal consagrados e muito fixos", diz Ortiz Cuadra à BBC News Mundo. Embora o porco tenha começado a dominar o cardápio, não se abatia um animal todos os dias. Comer um porco inteiro era para datas especiais, como o Natal. O historiador diz que é provável que a partir dessa época tenha surgido o ditado "lo tienen como lechoncito para Navidad", o que significa que estão criando e engordando o porco para abatê-lo. Outro ingrediente que não pode faltar no cardápio de Natal caribenho é o arroz. "Eu os chamo de arroz composto porque têm vários ingredientes que variam de acordo com o país", diz Ortiz Cuadra. "Na ceia de Natal em Porto Rico sempre haverá arroz com feijão bóer e porco", afirma. Curiosamente, o feijão bóer é uma leguminosa originária da Índia que chegou à África através do comércio português no século 16 e posteriormente foi transferida para a América pelos escravos. O arroz aparece no Caribe pelos espanhóis, e por sua vez chega à Península Ibérica pelos árabes. Segundo os leitores da BBC News Mundo, esse prato também é comido durante o Natal no Panamá. Um prato típico de Natal que nossos seguidores venezuelanos destacaram é o Hallacas. É uma massa de fubá temperada com caldo de galinha e colorida com colorau. Pode ser recheada com carne de vaca, porco ou frango. Tudo isso embrulhado em folha de bananeira. Segundo o professor Ortiz Cuadra, esse prato também é encontrado em Porto Rico e na República Dominicana, mas com outro nome e variações nos ingredientes. No caso dominicano são chamados de bolos de folha e, no portorriquenho, simplesmente bolos. E também no cardápio natalino de muitos países da região estão os tamales. "Os tamales envoltos em palha de milho são originários da Mesoamérica. Mas os índios do Caribe também usavam o milho moído para embrulhar e fervê-lo, como em Porto Rico são chamados de guanimes", diz Ortiz Cuadra. E alguns países até têm tamales com nome próprio, como nacatamales da Nicarágua, que podem ser feitos com carne, verduras e arroz embrulhado em folhas de bananeira. Outro prato que não pode faltar na mesa venezuelana é o pão de presunto. Como o próprio nome indica, é um pão com presunto, toucinho fumado, passas e azeitonas verdes. Segundo o jornalista gastronômico venezuelano Miro Popié, a receita foi inventada em 1905 em uma padaria de Caracas e sua aceitação foi imediata. Nossos leitores da Colômbia deixaram vários comentários na chamada sobre as comidas típicas de Natal. "Bolinhos, bolinhos, bolinhos e bolinhos", escreveu uma leitora. Outros colombianos listaram natilla, hojuelas ou hojaldras (uma massa frita polvilhada com açúcar ou limão) e arroz doce. Ah! "e muito aguardente", escreveu um leitor. "Os pratos típicos da Colômbia são produtos mestiços", diz Cecilia Restrepo, pesquisadora da Academia Colombiana de Gastronomia. E os bolinhos colombianos são um exemplo claro disso, pois se trata de uma massa de milho — ingrediente originário da América — com o queijo que foi trazido pelos espanhóis. E depois é adicionado xarope de açúcar. Segundo a especialista em história da alimentação, na maioria dos casos, a origem dos pratos não é contada nos documentos históricos. "Mas há muitos alimentos espanhóis que têm influência árabe e que chegaram aqui, como esses bolinhos ou almojábanas", que é um pãozinho doce, acrescenta. Restrepo cita também outro doce natalino muito importante que se consome em Popayán, no Vale do Cauca, que se chama desamargado e é preparado com cascas de limão e xarope. E do lado salgado, na mesa do natal colombiano estão tamales — com ingredientes variados dependendo da região —, ajiaco — um ensopado feito com carne, batata, cebola e legumes — e empanadas. Alguns leitores do Peru nos contaram que no Natal costuma-se comer peru, porco, tamales e panetone — o famoso pão doce recheado com passas e frutas cristalizadas, embora existam versões com chocolate. Este último — muito conhecido pelos brasileiros — também é muito comum no Equador. Lá também nos contaram sobre os pristiños, uma massa frita e doce. No Paraguai, o porco se repete como o cardápio estrela do Natal, acompanhado de sopa paraguaia ou um chipá (espécie de biscoito de polvinho) e com uma cidra bem gelada. E na Bolívia você come picanha, leitão, peru e bolinhos fritos com uma xícara de chocolate. No Cone Sul, os cardápios de Natal são compostos por carnes assadas e pratos agridoces. "O churrasco, para qualquer tipo de festa, é o que se come mais no Chile", escreveu um leitor da BBC News Mundo no Instagram. Outro nos contou sobre "rabo de macaco", bebida alcoólica feita com leite, pisco ou conhaque. Na Argentina e no Uruguai também existe o vitel toné, carne bovina coberta com molho de peixe. "Vitel toné é como dizemos no Río de La Plata, mas é vitello tonnato em italiano. Vitello é vaca e Tonnato é 'atum'. E obviamente vem da imigração italiana", detalha o antropólogo uruguaio especializado em alimentação Gustavo Laborde. "É o único prato em que os crioulos do sul aceitam misturar carne de vaca e peixe. Em nenhuma outra ocasião aceitaríamos comer essa mistura", analisa. Também aparece no cardápio dos países do sul o leitão acompanhado da chamada salada russa — que contém batata, cenoura e ervilha, tudo misturado com maionese. Também existe uma tradição de comer cordeiro assado. Mas Laborde afirma que as combinações agridoces se destacam nas festas de final de ano, como o carré de porco acompanhado de purê de maçã ou a entrada de presunto cru com melão. "O presunto com melão é um prato de origem medieval e era receita médica. Eles entendiam que a fruta se decompunha rapidamente no corpo, então para equilibrar era preciso acrescentar algo seco e frio que era o presunto ", descreve Laborde. Mas todos os especialistas concordam em uma coisa: há muita comida no cardápio de Natal. "Abundância é prosperidade. Gasta-se para comer ricamente e para que se possa receber o ano inteiro", diz a historiadora mexicana Yolanda García González. "As festas são particulares do ponto de vista antropológico porque emergem elementos do passado. Tanto o champanhe quanto o açúcar, que eram produtos de luxo na antiguidade, ainda estão associados a essas comemorações", analisa Laborde. "Talvez não haja tantos preparos sofisticados, mas são abundantes", acrescenta.
2022-12-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-59780124
sociedade
'Caganers': a escatológica tradição de Natal da Catalunha
O presépio catalão — pessebre, no idioma local — reúne todos os personagens comuns. Lá estão Maria e José admirando afetuosamente o menino Jesus, que dorme na manjedoura. Há os animais, e talvez alguns pastores. Mas olhe com mais atenção e você irá encontrar um pequeno boneco escondido entre os personagens tradicionais com as calças arriadas, fazendo discretamente suas necessidades. Trata-se do caganer — um boneco comum no Natal da Catalunha, no nordeste da Espanha. O personagem é um camponês vestido com calças pretas, camisa branca e o clássico boné catalão vermelho — a barretina. Às vezes, ele aparece fumando um cachimbo e lendo um jornal. "É a parte engraçada de algo que deveria ser muito sério", explica, rindo, o colecionador de caganers Marc-Ignasi Corral, de 53 anos, que mora na capital catalã, Barcelona. O boneco é tão popular que conta com a sua própria sociedade, a Associação dos Amigos do Caganer. Corral orgulha-se de fazer parte da associação, fundada em 1990 e que tem cerca de 70 membros (alguns até nos Estados Unidos), que se reúnem duas vezes por ano. Fim do Matérias recomendadas Os caganers tradicionais são feitos de argila cozida no forno a mais de 1000°C e pintados à mão. Mas, à medida que o mercado cresceu, o caganer também evoluiu: agora, existem muitos tipos diferentes, ilustrando os mais variados personagens, reais e da ficção, com diversos desenhos e materiais. "Já consegui alguns feitos de sabão, outros de chocolate — mas estes, é claro, devem ser comidos", afirma Corral. Suas estantes são enfeitadas com sua coleção de mais de 200 caganers. "Tenho de vidro... e já vi feitos de cápsulas de café." Solidamente estabelecido na tradição popular, o caganer tem origem incerta, mas geralmente se acredita que ele tenha surgido no final do século 17 ou no início do século 18. Naquela época, a tradição barroca era dominante na Catalunha e em outros locais, concentrando-se no realismo da arte, escultura e literatura. Os escritores Jordi Arruga e Josep Mañà afirmam no seu livro El Caganer que "era uma época caracterizada pelo realismo extremo... tudo dependia inteiramente das descrições da vida e dos costumes locais. Aqui, as condições de trabalho e a vida doméstica eram usadas como temas artísticos". Neste sentido, o caganer era uma ilustração da vida real. A razão por que o personagem atravessou as gerações é que, há muito tempo, a ideia de defecar é ligada a várias coisas boas, desde boa sorte até prosperidade e boa saúde. "Excremento é igual a fertilização, que é igual a dinheiro, que é igual a sorte e prosperidade. Pelo menos, é o que dizem os antropólogos", afirma o historiador Enric Ucelay-Da Cal, professor emérito da Universidade Pompeu Fabra, de Barcelona. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "As pessoas dizem que não colocar um caganer no berço dá azar", acrescenta o fabricante de caganers Marc Alos Pla. Sua família é a maior produtora de caganers do mundo. Eles mantêm o site caganer.com, com expectativa de vendas anuais de mais de 30 mil bonecos. Longe de verem o caganer como grosseiro ou até explícito demais, os catalães consideram que o boneco ilustra apenas um ato natural. "Não achamos ofensivo. É tão ofensivo quanto ir ao banheiro", diz Corral. "Nós escondemos as coisas - vivemos em uma sociedade que esconde tudo. Escondemos a morte, por exemplo." O caganer não é a única tradição escatológica do Natal catalão. O caga tió, ou "tronco que defeca", em catalão, é outra presença comum em muitos lares da Catalunha nas semanas que antecedem o Natal. No dia de Nossa Senhora da Conceição (8 de dezembro), as famílias começam a "alimentar" o caga tió com restos de comida. Ele recebe um cobertor para mantê-lo aquecido até o dia ou a véspera de Natal, quando já "comeu" o suficiente. As crianças batem então nele com bastões para fazer com que ele "defeque". Enquanto isso, elas cantam uma canção: "Caga tió / Tronco que defeca Caga torró, avellanes i mató / Solte torrone, avelãs e mató [tipo de queijo] Si no cagues bé / Se você não defecar direito Et daré um cop de bastó / Vou bater em você com um bastão Caga tió / Tronco que defeca E o tronco não produz excrementos... mas, sim, presentes de Natal. Antes de bater no tió, as crianças vão até outra parte da casa rezar para que ele traga presentes, enquanto seus pais aproveitam para esconder guloseimas, como doces de Natal, embaixo do cobertor. "O tió parece ser uma ideia de Natal bem antiga... na era medieval, ele era encontrado em toda a Europa, da Escandinávia até o oeste do Mediterrâneo. A ideia de um 'tronco pagão' que durou até perto da Segunda Guerra Mundial", explica Ucelay-Da Cal. Mas o que há nessas tradições, que podem ser consideradas grosseiras ou diretas demais em outras partes do mundo, que atrai tantos catalães? "Adoro a transgressão das normas, a tradição que elas representam e a obra de arte em si", explica Corral. Já Ucelay-Da Cal afirma que o caganer "tem uma qualidade subversiva agradável, atrevida, mas divertida, natural." De fato, o tema da defecação não é reservado apenas ao Natal. É uma expressão comum em toda a cultura catalã, desde a linguagem até a arte. "Ele se enquadra no gosto dos catalães (e espanhóis) pelo igualitarismo: todo mundo [defeca], por mais importante que seja", afirma Ucelay-Da Cal. Quando o assunto é a linguagem, os catalães estão repletos de provérbios e expressões relativas aos excrementos. Em português e espanhol, duas pessoas extremamente próximas são como "unha e carne". Mas os catalães dizem que essas mesmas pessoas são como "cul i merda". "Existe um clichê de que os idiomas germânicos são [repletos de] metáforas fecais, enquanto as línguas latinas ressaltam a virilidade", explica Ucelay-Da Cal. "A tradição espanhola - e, mais especificamente, os costumes escatológicos dos catalães — certamente desmentem essa afirmação." A defecação também aparece na arte e na literatura catalã há centenas de anos. O livro Barcelona, do crítico de arte Robert Hughes, analisa a história, arte e cultura da Catalunha. Ele explica que a figura do caganer "entra definitivamente na arte do século 20" na obra de Joan Miró (1893-1983). Observando atentamente o quadro de Miró intitulado A Fazenda (1921-22), existe o que parece ser uma pequena criança agachada perto da mãe enquanto ela trabalha. Hughes escreve que esse menino "é nada menos que o caganer dos Natais da infância de Miró. Pode também ser o próprio Miró, que pintaria futuramente o quadro Homem e Mulher Diante de uma Pilha de Excremento [1935]". Os escritores catalães também ilustram o escatológico há muito tempo. Hughes argumenta que é uma tradição catalã fortemente enraizada. Para ele, "sempre houve uma poderosa corrente de humor escatológico nas canções populares, na poesia popular e nos versos cultos [catalães]". Ele menciona um verso específico do livro Versos Bruts, do século 13, que conta uma discussão entre dois nobres, descrevendo "cem damas da nobreza que saíram ao mar em um barco e, paralisadas, voltaram ao porto soltando gases em coro contra as velas". A alimentação é um setor da cultura catalã que poderia ficar bem longe do escatológico. Mas seria certamente um erro acreditar nisso. A fome pode nos levar a uma padaria na Catalunha, onde encontramos um biscoito popular conhecido pelo nome nada apetitoso de pet de monja — "pum" de freira. Os próprios políticos da Catalunha assumiram o humor escatológico. O forte movimento pela independência da região refletiu-se nos caganers mais vendidos nos últimos anos. Um dos favoritos durante o movimento foi o boneco do ex-presidente regional da Catalunha Carles Puidgemont, agora exilado. Em 2017, o caganer do personagem Piu-Piu chegou a esgotar porque, quando o governo espanhol reforçou a polícia para controlar o plebiscito pela independência da Catalunha em 2017, os policiais dormiram em um navio pintado com um Piu-Piu gigante no lado externo. Em 2018, foi lançado um caganer com uma fita amarela, olhos grandes e uma boca, ilustrando o símbolo usado em solidariedade aos líderes da independência da Catalunha que haviam sido presos. A expectativa era que ali nascia um best-seller. "É um reflexo do que está acontecendo", afirmou Corral na época. "O caganer virou uma forma de registrar a história atual. É uma realidade. Temos prisioneiros políticos." Os caganers estão longe de se tornarem uma unanimidade mundial como a árvore de Natal, mas são cada vez mais conhecidos fora da Catalunha. Os bonecos são uma tradição de longa data em algumas regiões de Portugal e em Nápoles, na Itália, e vêm ganhando admiradores em locais mais distantes. "Na associação do caganer, temos membros da Itália, Alemanha, Japão e dos Estados Unidos. É uma sociedade internacional", afirma Corral. De fato, cerca de 50% das vendas internacionais do site caganer.com vão para os Estados Unidos, segundo Alos Pla. Personagens americanos que foram retratados em caganers populares incluem Barack Obama e Hillary Clinton, além de Donald Trump e David Bowie. Você escolhe se deve dar a alguém um caganer de uma pessoa que ela adora ou detesta. Mas muita gente retratada consideram os bonecos um elogio. "Para pessoas famosas, é uma honra ter seu próprio caganer", afirma Alos Pla. Corral é ainda mais enfático: "Se você não tiver um caganer, você não é ninguém hoje em dia". O que explica por que os lançamentos de 2022 incluem, é claro, o boneco do craque argentino Lionel Messi, agora campeão do mundo de futebol.
2022-12-22
https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-64068078
sociedade
Os jovens herdeiros milionários que querem pagar mais impostos
Marlene Engelhorn é uma herdeira milionária e quer distribuir 90% da sua herança. Para ela, não é questão de querer, mas de justiça. E não é a única. Outros jovens milionários também reivindicam mudanças do sistema de justiça distributiva. As heranças sempre tiveram importância para determinar se alguém é rico ou pobre — e continuam sendo. "Estritamente falando, existem três caminhos para a riqueza: lucro, carreira ou óvulo", resumiu o programa humorístico da TV alemã NDR Extra 3. Engelhorn causou rebuliço quando declarou há cerca de um ano, com 29 anos de idade, que queria doar 90% da sua herança. Fim do Matérias recomendadas "Não trabalhei um dia sequer pela minha herança e não pago um centavo por ela. Está na hora de me fazerem pagar impostos", afirmou a descendente de Friedrich Engelhorn, fundador da empresa química e farmacêutica alemã BASF — considerada a maior empresa química do mundo. O fundador morreu em 1902, deixando uma imensa fortuna. Marlene Engelhorn mora em Viena, na Áustria, e defende impostos sobre as grandes fortunas e a justiça distributiva. "Em uma democracia, não é possível que se desenvolvam elites autoproclamadas", declarou ela ao jornal alemão Frankfurter Rundschau. "Para mim, não é questão de por que vou doar ou não. É uma barbaridade que não se cobre imposto e não se coloque à disposição do erário público." Com este pensamento, Engelhorn ajudou a fundar, em fevereiro de 2021, a iniciativa Taxmenow ("cobre meus impostos agora", em inglês), uma associação alemã de donos de grandes fortunas que defende que os governos fiquem com uma parte muito maior do seu patrimônio herdado. Eles argumentam que essas fortunas recebidas sem trabalhar deveriam ser distribuídas democraticamente pelo Estado. A própria associação define os donos de grandes fortunas como "as pessoas que têm patrimônio maior ou igual a 1 milhão de euros [cerca de R$ 5,5 milhões]" e não se limita apenas aos jovens milionários, mas a todo tipo de pessoas. Seus responsáveis coletam assinaturas para uma petição em busca de melhorias da justiça fiscal. No momento, eles têm 80 mil, das quais 62 são de milionários. Entre outros pontos, a associação pede a reintrodução do imposto sobre o patrimônio para ativos avaliados em milhões e bilhões de euros, limitação das isenções dos ativos empresariais e outras normas especiais para impostos sobre sucessões e doações, além de impostos progressivos em vez de um único tipo de imposto sobre ganhos de capital. "Temos certeza de que maior justiça fiscal é o caminho para uma sociedade orientada aos valores do bem comum, da igualdade de oportunidades e da coesão", afirma a associação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nesse grupo de milionários que apoiam a iniciativa, encontra-se o herdeiro alemão Antonis Schwarz, de 33 anos. Sua família é a fundadora da empresa Schwarz Pharma AG, que foi uma das 80 maiores empresas da Alemanha. Em 2006, a família Schwarz vendeu a farmacêutica por mais de 4 bilhões de euros (cerca de R$ 22 bilhões). Antonis Schwarz recebeu uma herança milionária quando atingiu a maioridade e, agora, reivindica um imposto sobre o patrimônio que atinja os ativos milionários e multimilionários, bem como normas mais severas contra a evasão e artifícios fiscais. "Quando se fala de famílias muito ricas, as preocupações para elas são três", declarou Schwarz para a publicação austríaca Contrast. "Elas querem aumentar seu dinheiro com investimentos. Querem minimizar seus impostos. E querem transmitir seu dinheiro — livre de impostos, se for possível — para a geração seguinte. Depois, educam seus filhos para que façam o mesmo." Por isso, a Taxmenow denuncia que quem tem dinheiro tem poder e defende que a legislação fiscal atual significa que não só são transmitidas enormes quantidades de riqueza, mas também de poder, como em uma dinastia. O dinheiro dos mais ricos não só compra uma vida de luxo, mas influencia sobretudo os negócios, meios de comunicação e até os partidos políticos — preferencialmente, os que ajudem a garantir que não haverá impostos sobre as sociedades comerciais, sobre o patrimônio ou sobre sucessões de maior valor no futuro. Segundo os jovens milionários, cobrar impostos sobre grandes fortunas aumentaria os recursos públicos e retiraria o poder político destas pessoas. "Os negócios e a política estão fortemente relacionados", critica Schwarz. "Isso é feito por meio de doações aos partidos e nomeação de cargos. Na Alemanha, é totalmente legal que as empresas paguem os políticos. É incrível a quantidade de dinheiro que está em jogo." Na mesma linha de pensamento, Engelhorn escreveu seu livro Geld ("Dinheiro", em alemão) sobre a redistribuição da riqueza. Ela descreve sua classe (o 1% mais rico da sociedade) como "uma das sociedades paralelas com pior integração", que tem uma ideia apenas vaga de como é a vida dos 99% restantes. "Os super-ricos precisam reconhecer que seus privilégios, em princípio, são uma injustiça", escreve Engelhorn. De qualquer forma, ela indica que fortunas nada têm a ver com o trabalho. "É mentira que o trabalho deixe você rico. Se você não começar sua vida nos 10% mais ricos da sociedade, é muito pouco provável que você chegue a esse nível. Com ou sem trabalho", admite Engelhorn. Mas os impostos sobre os ganhos do trabalho são significativamente mais altos que os cobrados sobre heranças e doações milionárias. Quis o acaso que Geld fosse publicado dias depois da morte da sua avó Traudl Engelhorn-Vechiatto, de 95 anos, em 22 de setembro. A jovem Marlene Engelhorn tornou-se então multimilionária. "Ainda não sei exatamente de quanto dinheiro é, porque ainda não lemos o testamento, mas provavelmente são dezenas de milhões de euros", disse ela ao jornal francês Le Monde, sobre o montante que receberá de sua avó, que ficou rica ao casar-se com um dos bisnetos de Engelhorn. No momento da sua morte, a revista norte-americana Forbes estimava a fortuna de Engelhorn-Vechiatto em US$ 4,2 bilhões (cerca de R$ 21,9 bilhões), especialmente devido à venda de outra empresa da família, a Boehringer Mannheim, à farmacêutica suíça Roche em 1997, por US$ 11 bilhões (cerca de R$ 57,3 bilhões). O curioso é que as autoridades fiscais da Alemanha não recolheram um centavo sobre essa venda, já que seu tio-avô Curt Engelhorn já havia transferido a sede social da empresa para o exterior. Como herdeira de uma das famílias mais ricas da Áustria, ela questiona exatamente isso: a transmissão da riqueza em dinastias familiares, que ela qualifica de feudal, uma relíquia de tempos pré-democráticos. Na opinião de Marlene Engelhorn, os impostos que os milionários deixam de pagar sobre suas fortunas e heranças fazem falta para creches, hospitais e tribunais. Ela prefere pagar impostos a doar, mas, até o momento, vem doando parte do seu dinheiro ao Instituto Momentum, que defende impostos sobre grandes fortunas e a justiça distributiva. Mas Engelhorn afirma que os ricos não deveriam ser quem decide quais interesses e paixões pessoais merecem os milhões que recebem de herança. "Não há necessidade de outra fundação", afirmou ela ao jornal americano The New York Times. "O que realmente é necessário é uma mudança estrutural." A Áustria, onde mora Engelhorn, aboliu o imposto sobre heranças e doações em 2008. Mas os herdeiros de uma propriedade estão sujeitos ao imposto sobre transmissões patrimoniais. Com isso, pelo menos em público, ainda se fala no imposto sobre sucessões, que, propriamente dito, não existe mais. O número de países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) que cobram impostos sobre as grandes fortunas caiu de 12, em 1990, para 5, em 2020. Mas o número de países que cobram impostos sobre heranças é maior. O valor arrecadado representa 0,5% de todos os impostos. "Com menos dinheiro nas mãos do 1% mais rico, a Europa é menos desigual do que os Estados Unidos. Mas, na Europa, as fortunas familiares são mais frequentes, e a riqueza, as conexões e até as profissões são transmitidas de uma geração para outra", escreveu Engelhorn no The New York Times. Segundo um estudo do Instituto Peterson de Economia Internacional, mais da metade dos multimilionários europeus herdou suas fortunas, enquanto, nos Estados Unidos, foram um terço.
2022-12-21
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64059355
sociedade
'Linhas de desejo': os caminhos inventados por pedestres na cidade feita para carros
Por onde passam os pedestres em uma cidade planejada para carros? Uma série de imagens registradas em Brasília nos últimos dez anos pelo fotógrafo Diego Bresani retrata os trajetos inventados por quem anda a pé na cidade pensada para o trânsito de automóveis. São caminhos formados geralmente na rota mais curta ou mais conveniente para o pedestre - rotas que o fotógrafo aprendeu com colegas da área de urbanismo a chamar de "linhas de desejo". No Plano Piloto (área central de Brasília), essas passagens improvisadas cruzam gramados, encostas e até margeiam vias que nem sequer oferecem calçadas. "Essa é uma cidade em que, definitivamente, a pessoa que anda foi esquecida. Ela é monumental, é uma cidade bonita vista do carro, com certeza. Mas para quem anda nela, é uma cidade muito dura - você não tem calçadas, precisa criar seu caminho, precisa muitas vezes lutar por espaço com carros", diz Bresani. Fim do Matérias recomendadas Símbolo da arquitetura modernista, a capital - Patrimônio Cultural da Humanidade, segundo a Unesco - é conhecida por características como vias expressas e poucos semáforos. Nessas condições, o fotógrafo fala em "valentia" dos trabalhadores que cruzam os espaços da capital. "Alguns lugares até têm uma proposta de calçada, mas essa proposta provavelmente é muito mais bonita de ser vista de cima. É visualmente bonita, mas não é prática", diz. "As pessoas passam no meio, pela grama, porque, óbvio, assim você chega mais rápido à parada de ônibus. Então tem uma espécie de subversão, de transgressão dessa lógica (do planejamento inicial)." A ideia do projeto fotográfico começou em 2013, depois que Bresani - que nasceu e cresceu no Plano Piloto - vendeu o carro e "virou pedestre". "Comecei a ver que existiam essas rotas criadas por pessoas na cidade de Brasília, que quem anda de carro não vê ou não presta muita atenção. Mas quem precisa se locomover sem carro precisa usar essas rotas ou criar novas." Brasiliense de 39 anos, ele diz que, por trás de seus trabalhos, está a inquietação de responder como existir em uma cidade inventada. Ele, que também é diretor de teatro, interpreta esses caminhos como uma "segunda invenção" na cidade inventada. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As fotos, em preto e branco, são feitas em uma câmera analógica de grande formato, com chapas de filmes fotográficos que são reveladas em São Paulo. Durante o processo, Bresani percebeu diferenças no resultado em diferentes épocas do ano. "Uma linha de desejo, no filme preto e branco, sai de diferentes formas. Na chuva, a terra fica molhada e sai mais escura, preta. Na seca, reflete mais luz, então sai branca." O fotógrafo também percebeu que esses caminhos são mais vivos do que parecem. "Durante a pandemia, eu falei: agora será ótimo para fotografar porque não vai ter ninguém na rua - e eu não queria pegar muita gente na rua. Mas cheguei e: cadê os caminhos? Eles foram sumindo. Como não tinha pessoas andando, a grama ia crescendo e eles iam desaparecendo. Quando as pessoas foram voltando para o trabalho, eles foram sendo reconstruídos." E se algumas são rotas consolidadas, outras têm vida curta. "É muito comum um caminho ser reconstruído, outros desaparecerem, porque, por exemplo, abriu uma parada de ônibus em outro lugar. É bem orgânico", diz. "Tem uns que são bem consolidados, mas outros duram, sei lá, seis meses, que é o tempo que durou uma construção. Aí, depois que acabou a construção, ele some." Outra característica que ficou clara nesses anos em que o fotógrafo saiu nas primeiras horas da manhã para fotografar os caminhos - em um momento ainda sem muitos pedestres - foi o perfil do público que diariamente desenha esses caminhos. "São as pessoas que trabalham em Brasília, não são as que moram no Plano Piloto. Então, essa subversão da lógica modernista é feita por pessoas que moram na periferia de Brasília, trabalhadores e trabalhadoras. Não por moradores do Plano Piloto, que, na sua grande maioria, usam carros." O próximo passo do projeto é exatamente fotografar as pessoas que passam por esses caminhos. E Bresani já identificou uma clara predominância de gêneros, dependendo do horário. "Às 6h30 da manhã você encontra basicamente homens, que estão indo para construção civil. Se vai 7h30, 8h, você encontra mulheres que são cozinheiras, babás, empregadas domésticas." A arquiteta e urbanista Thaisa Comelli, formada pela Universidade de Brasília (UnB) e doutora em urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), diz que "claramente existe uma divisão socioeconômica com recortes raciais e de gênero" nesse tema. "Os 'caminhos do desejo', orgânicos, na realidade são 'caminhos da necessidade' para muitos - populações da periferia sem acesso a veículos automotivos - e, se ermos e pouco dotados de infraestrutura, podem ser perigosos para mulheres e outros grupos vulneráveis", diz. "Infelizmente há pouca discussão ainda sobre como as pessoas experimentam a cidade de formas diferentes. Esses temas às vezes entram como pautas supérfluas, estéticas ou cotidianas, quando na verdade são janelas para questões mais sérias." Comelli também destaca a falta de acessibilidade. "Temos muitos avanços na legislação arquitetônica, mas na escala da cidade isso é menos pensado e reforçado. Brasília é um caso especialmente difícil. Imagine o trajeto de uma pessoa cadeirante que quer se deslocar da W3 para a L2? É uma jornada de obstáculos…", diz, em referência a duas das principais vias de Brasília. Na prática, o que faz de Brasília uma cidade "por vezes pouco sensível aos pedestres", nas palavras da urbanista? Comelli cita três características, que refletem paradigmas do urbanismo modernista: Antes de falar em soluções, Comelli destaca que "dentro de Brasília existem muitas Brasílias" e "cada 'pedaço' da cidade vai requer uma solução diferente". "A questão do tombamento gera restrições na escala da cidade, justamente porque o caráter rodoviário é protegido. Intervenções simples e baratas, como colocar um semáforo no Eixão, melhorariam muito a vida dos pedestres, mas são impopulares e consideradas 'agressoras' do desenho de Brasília", diz. Comelli considera, ainda, que "falta vontade política para enfrentar o problema" e menciona que já houve concursos de projeto para melhorar as passagens subterrâneas, por exemplo, mas diz que não houve avanço na implementação. "Considerando esses impasses, o que resta para o brasiliense é apostar nas intervenções na escala de bairro - ou da quadra -, que podem melhorar um pouco a vida, mas que não solucionam questões estruturais da cidade", diz. "Sombrear melhor as passagens já existentes - orgânicas - ou investir em pequenas intervenções comerciais ou de iluminação e mobiliário que deixem os caminhos mais vivos, alegres e seguros também ajuda. Mas o problema da mobilidade a longo prazo não se resolverá com esses pequenos gestos." Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UnB, Frederico Flósculo diz que, na questão da mobilidade associada com acessibilidade, "Brasília é uma das piores cidades do Brasil". "As pessoas são muito mal tratadas", diz. "Se somos patrimônio cultural da humanidade modernista, é nesta cidade que os melhores experimentos de promoção de qualidade de vida deveriam ser feitos. E, paradoxalmente, é nesta cidade que os melhores experimentos de qualidade de vida não são feitos", afirma o professor. Para Flósculo, o equilíbrio entre automóveis e pedestres esteve presente no projeto do urbanista Lúcio Costa para o Plano Piloto, especialmente no sistema de circulação nas superquadras, que foram concebidas "de modo sinuoso, para dificultar a velocidade do automóvel e facilitar a circulação do pedestre por toda a periferia das quadras". O professor atribui algumas das dificuldades sentidas até hoje ao momento de execução do projeto. "Do sonho de Lúcio Costa à realidade da construção de Brasília, houve uma série enorme de ajustamentos feitos por Israel Pinheiro - engenheiro, responsável pela execução da cidade, presidente da Novacap (empresa do Governo do Distrito Federal)". "Israel Pinheiro economizou muito no capítulo pedestres", diz ele, acrescentando que os caminhos alternativos criados por pedestres são vistos há décadas. O grande problema, diz Flósculo, é que problemas antigos não tenham sido resolvidos mais de seis décadas depois. Historicamente, diz ele, "o governo é consistentemente insensível às necessidades da comunidade". "A gente compreende que Lúcio Costa tinha uma tarefa muito pragmática, de execução muito rápida. Mas isso aconteceu naqueles mil dias de execução de Brasília. Só que Brasília está para completar 63 anos de idade - e essa delicadeza já dava tempo de ter sido encarada e o governo não faz isso. Continuamos num modelo de abordagem grosseira, que se revela nos caminhos dos pedestres naquela cidade que deveria ser desenhada para os idosos, crianças, cadeirantes, pessoas com limitações." "O movimento modernista não considerava as fragilidades do cotidiano e a gente ainda não aprendeu isso", diz. A BBC News Brasil procurou o Governo do Distrito Federal (GDF) para responder às críticas sobre falta de acessibilidade em Brasília e de uma política voltada para as necessidades dos pedestres. A assessoria de imprensa da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação respondeu que, "em aproximadamente quatro anos, foram feitos cerca de 530 km de passeios, atendendo a pedestres das 33 regiões administrativas". Disse, ainda, que o projeto Rotas Acessíveis "tem mapeadas várias intervenções para melhorias pela capital" e que atualmente dois locais estão sendo atendidos - o Instituto Federal de Brasília (IFB) em São Sebastião e o entorno do Hospital Regional do Guará. O projeto, segundo a assessoria, seleciona um ponto e, a partir dele, "desenvolve o projeto da rota tomando como base os pontos de ônibus mais próximos, estabelecendo trajetos contínuos, sinalizados e livres de obstáculos". A Secretaria de Transporte e Mobilidade do Distrito Federal disse que está em andamento o Plano de Mobilidade Ativa (PMA), que "tem como foco melhorar as infraestruturas de mobilidade para a população, incentivar a migração dos usuários dos modos motorizados para os modos ativos de deslocamento e requalificar o espaço público para torná-los mais acessíveis e com deslocamentos mais seguro para os pedestres, ciclistas, idosos, cadeirantes e pessoas com deficiência". Segundo o órgão, foram executados projetos na W3, no Setor Hospitalar Sul, Setor de Rádio e TV Sul, na Praça do Povo, entre outros.
2022-12-21
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64038880
sociedade
Britânica é considerada culpada de assassinato por não cuidar de dieta de filha morta por obesidade
Uma mãe admitiu o homicídio culposo de sua filha adolescente após deixá-la se tornar obesa mórbida. Sarah Jane Lloyd-Jones, de 39 anos, se declarou culpada da acusação quando compareceu a um tribunal do País de Gales (Reino Unido) em 12 de dezembro. Sua filha, Kaylea Louise Titford, de 16 anos, foi encontrada morta em sua casa na cidade de Powys em outubro de 2020. Foi alegado em uma audiência anterior que seus pais falharam em atender às necessidades dietéticas de Kaylea, levando-a à obesidade. O pai, Alan Titford, de 44 anos, deve ir a julgamento em janeiro. Ele nega homicídio culposo e causar ou permitir a morte de uma criança ou pessoa vulnerável. Fim do Matérias recomendadas A pena de Sarah Jane será definida nos próximos meses.
2022-12-21
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64050413
sociedade
'Me arrependo de ser mãe, não da minha filha': as mulheres com sentimentos negativos sobre a maternidade
Antes mesmo de ter seu primeiro filho, Libby Ward sabia que tipo de mãe ela queria ser: consciente, paciente e amorosa. Mas sua expectativa ia além disso, especialmente quando observava as mães no seu círculo social. Ela queria imitá-las também de outras formas, com refeições caseiras, uma casa impecável e uma rotina de sono para o bebê. Quando teve sua filha em 2014, Ward sentiu que seria capaz de ser a mãe que pretendia, pelo menos em grande parte. Dois anos depois, seu filho nasceu. Ela teve problemas com a amamentação. Ele não dormia mais de duas horas seguidas — e parecia sentir dores. "Senti que não conseguia oferecer alimento, sono ou conforto suficiente", relembra Ward, que mora em Ontário, no Canadá. Fim do Matérias recomendadas "Não conseguia manter os padrões que havia definido para mim mesma. E tudo simplesmente pareceu desabar." Mais do que qualquer outra emoção, ela sentiu raiva. O ressentimento se voltou para o seu parceiro, para os filhos e até para completos estranhos — qualquer pessoa que parecesse ter mais facilidade do que ela. E ela ficou envergonhada por essa reação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Eu era mãe de dois filhos há cerca de cinco meses quando finalmente me olhei no espelho e não consegui me reconhecer fisicamente, emocionalmente, mentalmente", afirma Ward. "Eu dizia: 'Esta não sou eu. Isso não é quem eu sou. Não é quem eu quero ser. Não é quem eu esperava ser'." Ela estava passando por uma condição vivenciada por muitas mães, mas comentada por poucas: a ambivalência materna. Definida como sentir emoções complexas sobre a maternidade, muitas vezes contraditórias, a ambivalência materna não significa falta de amor pela criança. Na verdade, as mães que se identificam como ambivalentes costumam ter claro que fariam tudo pelos filhos — tanto que, para muitas, a preocupação, o estresse e o medo que elas sentem pelas crianças são alguns dos motivos por que elas acham que ser mãe é um desafio tão grande. Mas elas podem também sentir raiva, ressentimento, apatia, tédio, ansiedade, culpa, tristeza e até ódio — emoções que a maioria das pessoas não costuma associar à maternidade, que dirá com ser uma "boa" mãe. Essa mistura de emoções não é surpreendente. Ser mãe, afinal, é uma tarefa emocional, trabalhosa e que exige tempo. Ela traz uma mudança fundamental na identidade da pessoa, além de alterações psicológicas que, muitas vezes, são difíceis. As mães provavelmente tiveram sentimentos conflitantes desde o início da humanidade. Ainda assim, alguns fatores tornam a ambivalência materna atual um pouco diferente e, muito provavelmente, mais difícil de se enfrentar. Em primeiro lugar, existem os padrões, muitas vezes irreais, sobre o que significa ser uma "boa" mãe (e também um "bom" filho), que são acentuados pela sobrecarga de informações e comparações oferecida pela indústria de aconselhamento aos pais, pela internet e pelas redes sociais. E, em segundo lugar, existe a vergonha e a estigmatização sentidas por muitas mães simplesmente por tocar no assunto, em uma cultura que valoriza posturas como "aproveite cada momento!" em relação à maternidade. As mães podem até conseguir dizer que criar filhos é difícil, mas é um tabu muito maior afirmar que elas não necessariamente apreciam o seu papel. "A ambivalência materna é questão de abraçar o 'e'", diz Sophie Brock, socióloga que estuda maternidade, de Sydney, na Austrália. Ela apresenta o podcast The Good Enough Mother ("A mãe suficientemente boa", em tradução livre). "Temos tantos paradoxos como mães, e a ambivalência está dizendo 'na verdade, eu sinto ambos'", afirma Brock. Pensar que "eu quero passar cada minuto com minha filha, e não consigo passar mais um minuto com ela". "Sou muito agradecida por meu filho existir, e não consigo suportar o que se tornou a minha vida." "Quero ser a melhor mãe possível, e tenho muita raiva por ver como minha identidade mudou." Ou até mesmo "amo intensamente meu filho e, neste momento, também o odeio." A ambivalência pode ser confundida com condições como ansiedade ou depressão pós-parto, ou conviver junto com elas. E, se não for expressa, pode aumentar o risco de piorar a saúde mental. Por isso, é sempre importante buscar assistência profissional em caso de dúvida. Mas, geralmente, a ambivalência materna é normal e saudável, segundo os pesquisadores e psicólogos. "Quase toda [mãe] com quem falei sente-se suficientemente segura para afirmar que sua verdadeira experiência tem sentimentos mistos sobre o seu papel", afirma a terapeuta Kate Borsato, de British Columbia, no Canadá, que estuda a saúde mental das mães. "E isso faz sentido para mim", diz ela. "A vida delas mudou muito. Sua sensação de autoconfiança, a forma como elas passam o tempo, o que elas pensam — tudo é diferente." Uma mãe que conhece essa situação por experiência própria é Jessica Rose Schrody, comediante e criadora de conteúdo digital de Los Angeles, nos Estados Unidos. Quando engravidou com pouco mais de 20 anos, ela questionou se deveria dar prosseguimento à gestação. "Mas, de forma geral, eu dizia: 'Ah, eu vou conseguir, vou dar um jeito'. Agora, com 31 anos, eu penso: 'Uau! Isso complicou muito a minha vida, de todas as formas possíveis'. E nenhuma dessas formas eu conseguia compreender ou realmente processar, com 21 anos." Ser mãe sempre foi difícil. Mas as pressões específicas da atualidade podem dificultar ainda mais. Diferentemente da primeira metade do século 20, por exemplo, agora se espera que as mães deem "tudo" pelos seus filhos em termos de tempo, trabalho e recursos emocionais, mentais e financeiros — e ainda tenham alto desempenho no trabalho e nos relacionamentos. Em 1996, esta construção cultural da maternidade recebeu um rótulo que acabou ficando até hoje: "maternidade intensiva". E, para piorar ainda mais a situação, as mulheres enfrentam dificuldades para atingir esse ideal em uma época em que a assistência para os pais, em grande parte, não acompanhou as exigências da vida moderna. Mesmo alguns dos países mais ricos do mundo oferecem menos de quatro meses de licença-maternidade. E, em famílias no Reino Unido em que os dois pais trabalham, mais de 50% da renda média da mulher em tempo integral vão para a creche. "Todas as mães já conhecem isso: somos sobrecarregadas, trabalhamos demais, carregamos a maior parte do trabalho emocional, a maior parte da esfera doméstica e as pressões do trabalho profissional", afirma Brock. "E as pessoas esperam que coloquemos uma máscara que diga: 'Consegui fazer tudo. Sou a mãe perfeita. Não tenho dificuldades.'" Alecia Carey tem 35 anos, é mãe de dois filhos e trabalha em filantropia política em Boston, no estado de Massachusetts, nos Estados Unidos. Para ela, a ambivalência materna surgiu quando ainda estava grávida — algo que não é incomum. "Quando fiquei grávida, senti que havia sido rebaixada de ser humano para mulher", conta. "Tudo o que os meus colegas de trabalho me diziam era que eu estava grávida. Era a única coisa a meu respeito. Tornou-se toda a minha personalidade. Eu odiava aquilo." Ela conta que foi muito difícil se ajustar à mudança para a maternidade, depois de passar grande parte da vida desenvolvendo sua carreira, seu círculo social e seus interesses e aspirações pessoais — algo que as gerações passadas, que costumavam ter filhos mais cedo, podem não ter vivenciado da mesma forma. Lizzie Laing, de Cornwall, no Reino Unido, tem 27 anos. Ela afirma que também se sentiu despreparada para as transformações que vieram com a maternidade — e que ver outras mães tendo aparentemente mais facilidade fez com que ela se sentisse pior. "Você está de luto pela facilidade da sua vida antiga e pelo seu relacionamento com o seu parceiro", diz ela. "E você vê outras pessoas que estão simplesmente se dando bem. Eu me sentia em outro planeta em relação a todos os demais — com muita dificuldade." "Eu tinha amigas que tiveram bebês mais ou menos na mesma época", afirma. "Mas eu conseguia ver nos olhos delas que elas estavam realmente sendo gentis quando diziam 'sim, eu sei o que você quer dizer', enquanto eu claramente estava em uma situação diferente delas." Carey também se sentia sozinha na sua experiência. "Senti como se tivesse sido simplesmente retirada do nosso círculo social porque fiquei grávida", afirma. "Era muito isolador. E ficou muito mais isolador porque, na internet e nos círculos dessas mães, todas pareciam adorar, aproveitar e tirar o máximo daquilo. Eu achava tudo desconfortável e isolador, e fui corroída pela ansiedade o tempo todo." Mas os desafios em relação à maternidade não se resumem à forma como as mães devem se comportar. Outra dificuldade são as expectativas sobre como as crianças "devem" agir — algo que, muitas vezes, é observado como refletindo a própria capacidade da mãe na criação dos filhos. "A maternidade era tudo o que sempre quis na minha vida", afirma Emily Whalley, de Derbyshire, no Reino Unido. Ela tem 32 anos, teve seu primeiro filho em 2015, e o segundo, em 2019. "É muito difícil admitir que, na verdade, não aproveito tanto quanto gostaria." Grande parte disso se deve ao fato de que seus filhos têm sérios problemas de saúde. Ela conta que ficou bastante obcecada pelo sono do filho, e acabou descobrindo que ele tinha dificuldade para dormir, em grande parte, por uma razão médica: ele tinha língua presa e não havia sido diagnosticado. "Não consegui ter uma boa experiência em ser mãe", afirma ela. "Cuidar de um bebê tem sido fonte de estresse e preocupação." As ideias equivocadas de Laing sobre o comportamento dos bebês também "roubaram sua alegria", diz ela. A tradição familiar e as informações divulgadas na imprensa a convenceram de que o recém-nascido dormiria a maior parte do dia, dando a ela tempo de cumprir as tarefas domésticas ou trabalhar, e que os bebês adormecem sozinhos. A realidade foi um choque para ela. A bebê de Laing chegava a ficar acordada por seis horas seguidas. Ela só dormia com ruído de fundo, em um sling (tecido para carregar a criança), com Laing se balançando sobre uma bola. "Basicamente, nós não tivemos o 'bebê padrão'", ela conta. "Mas aprendi que aquela era a norma e, quando vi que não o meu caso, fiquei ressentida." Ela sentiu como se estivesse fracassando como mãe. É comum sentir vergonha e culpa por não se satisfazer com a maternidade. Isso acontece especialmente quando todas as interações, das redes sociais às conversas familiares, pintam um quadro da maternidade como sendo algo feliz e recompensador — e quando poucas mães se abrem para falar como pode ser difícil na realidade. A estigmatização em torno de admitir isso não é fruto da imaginação. Quando a criadora de conteúdo digital Schrody afirmou que lamentava ter sido mãe em um podcast recente, 90% das reações foram de outras mulheres que se sentiam da mesma forma. Mas ela também recebeu sua parcela de críticas. Ela se recorda particularmente de um vídeo de alguém dizendo como deve ter sido horrível para sua filha. Mais de 30 mil pessoas "curtiram" o vídeo, segundo Schrody. Isso a preocupou. Talvez ela não devesse ter se aberto sobre seus sentimentos. Como a maioria das outras mães, apesar de ter deixado clara sua posição no podcast — "não me arrependo da minha filha, me arrependo da função" —, sua maior preocupação é se irá ferir os sentimentos dela. É claro que não são apenas as mulheres que compartilham seus sentimentos em público que sentem culpa e vergonha. Muitas acabam passando por tudo isso em silêncio. "Eu esperava que as primeiras semanas e meses depois de ser mãe seriam a melhor época da minha vida", afirma Kayleigh Thomas, 30 anos, de Warwickshire, no Reino Unido. "Depois me senti mal porque não estava sendo o que tinha visto online ou lido a respeito." Até as mães que tentaram se libertar deliberadamente das expectativas da maternidade intensiva, como Carey em Boston, nos Estados Unidos, ainda se sentem internamente culpadas. Carey conta que não se permite sentir as "culpas óbvias da maternidade", em relação a coisas como sair para jantar com o marido ou tirar férias sem as crianças. Mas, quando ela foi fazer recentemente uma viagem internacional com o marido, uma amiga enviou uma mensagem perguntando: "Você não sente falta da sua filha?" "Minha sensação era que não", ela conta. "Depois pensei: 'Sou uma pessoa ruim? Sou uma assassina em série? Será que perdi alguma coisa? Esperam que eu queira jogar pela janela tudo a meu respeito e simplesmente adotar essa nova personalidade e novos interesses?'" "Não me sinto capaz de fazer isso e me ressinto quando as pessoas me pedem que faça", afirma. "E meu marido não está sendo questionado." É comum que as mães se critiquem pela sua ambivalência, o que "apenas aumenta a dor em uma situação que já é difícil", diz Borsato. "Já é difícil esconder todas essas emoções. Você não precisa acrescentar mais crítica, mais julgamento, mais sentimentos negativos." E a desvantagem das mulheres que silenciam, segundo ela, é que, se uma mãe se abrir sobre seus sentimentos, provavelmente ela se sentirá menos sozinha e menos autocrítica — sensações que podem levar a situações mais profundas, como a depressão. O problema, de acordo com ela, não é a ambivalência materna em si. É o significado que ela tem. "Se uma pessoa concluir que existe algo de errado com ela, ou que o fato de ser ambivalente deve significar que ela não foi feita para ser mãe, ou que fizeram uma má escolha, ou que seu filho merece uma mãe que não tenha essa ambivalência — isso pode se tornar algo perigoso", explica. Embora siga existindo muita vergonha em torno da ideia da ambivalência materna, essa conversa está mudando lentamente. Algumas mulheres dedicaram suas carreiras a ajudar outras a terem uma experiência mais prazerosa da maternidade — sabendo que não ficar alegre todo o tempo também é aceitável. Depois de enfrentar dificuldades com seu papel como mãe, Borsato, por exemplo, encontrou motivação ao ajudar outras mães a priorizar sua saúde mental. Já Whalley abriu um negócio tentando ajudar os pais a entender mais sobre o sono dos bebês e descartar eventuais problemas de saúde. "É por isso que faço esse trabalho, apenas para tentar tornar a vida das outras pessoas mais feliz do que a minha", afirma Whalley. Outras pessoas se comprometeram a eliminar o estigma de falar sobre o assunto. Schrody ficou abalada com os comentários negativos que recebeu. Mas continuou falando sobre sua experiência, na expectativa de poder mostrar às outras mães que não há problema em ter sentimentos contraditórios sobre a maternidade. "A ideia de que 'você deveria ficar mais em silêncio sobre isso' é perfeitamente alinhada a uma sociedade misógina", afirma. Quando Ward não conseguiu encontrar outras criadoras de conteúdo se abrindo sobre as dificuldades da maternidade, ela decidiu fazer isso. Ward começou a compartilhar sua experiência no TikTok em março de 2020, com o título Diary of an Honest Mom ("Diário de uma Mãe Honesta"). E, seis meses depois, lançou uma conta similar no Instagram. Muitos dos seus vídeos mais curtidos são aqueles que mostram as dificuldades na criação de filhos — como sua frustração quando os filhos não comem o almoço que ela preparou, como a maternidade a deixou menos "divertida" e como sua família a deixou "dormir" no Dia das Mães (spoiler: ela não conseguiu dormir). Atualmente, suas plataformas têm juntas cerca de 1,5 milhão de seguidores. Ward recebe tantas mensagens de mães que precisou contratar uma pessoa para responder. As mulheres contam que não percebiam que outras pessoas achavam tão difícil cuidar dos filhos ou que pensavam que seus sentimentos significavam que elas eram mães ruins. "Muitas mães se sentiam muito envergonhadas e culpadas pelas dificuldades na maternidade", diz ela. "E elas se sentem muito sozinhas com isso." "Percebi que as mães que tentei imitar e que observei no começo nunca falavam sobre as dificuldades", conta Ward. "Elas não falavam sobre a falta de sono. Elas não falavam sobre a vergonha. Elas não contavam como gritavam com os filhos. Elas não falavam nada sobre o que eu estava enfrentando e me faziam sentir totalmente sozinha e isolada." "E só quando comecei a compartilhar essas coisas, percebi que essas experiências eram comuns", conclui Ward.
2022-12-19
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-63782952
sociedade
Por que a seleção argentina é tão branca?
Na disputa entre Argentina e França na final da Copa do Mundo de futebol masculina, uma diferença ficará clara entre as duas seleções antes mesmo da partida começar. De um lado, um país europeu que tem pelo menos metade de jogadores negros no time. Do outro, um sul-americano que não tem nenhum, ou quase nenhum. Esse debate sempre volta a ganhar fôlego nas Copas. Foi assim nas últimas edições e, agora, não foi diferente. Os jornais Washington Post, dos Estados Unidos, e o britânico The Guardian, a rede Al Jazerra, do Catar, o portal UOL, no Brasil - todos eles perguntaram: "Por que não há negros na seleção da Argentina?". Fim do Matérias recomendadas Uns acusam que é racismo. Outros retrucam que foram escolhidos os melhores. É um fato que o time argentino não tem jogadores de pele retinta ou um pouco mais clara como a maior estrela da França, Kylian Mbappé. Mas um olhar mais atento para la Albiceleste mostra que não são todos brancos. "É evidente que há jogadores afrodescendentes ou de ascendência indígena", diz o ativista e advogado Alí Delgado, professor da Universidade de Buenos Aires (UBA). A questão é que muitas pessoas, especialmente entre os argentinos, não os reconhecem assim, diz Delgado. "E o resto do mundo não os vê assim, porque não compreende a questão racial aqui na Argentina." Talvez, então, a pergunta deva ser um pouco diferente: Por que a seleção da Argentina é tão branca? "Quando pensamos em um time nacional cremos que é um reflexo daquele país. Acho que estamos vendo isso com a Argentina", diz Erika Edwards, professora de História Latina da Universidade do Texas em El Paso, nos Estados Unidos. Edwards aponta que há vários jogadores argentinos que poderiam ser descritos como morochos, pessoas de pele escura - como Maradona -, mas não necessariamente considerados negros. "Eles refletem a diversidade racial argentina, e essa diversidade precisa ser reconhecida." Delgado, Edwards e muitos outros apontam que foi criado ao longo da história da Argentina o mito de que o país é uma exceção na América Latina, uma nação branca de descendentes de europeus. O presidente Alberto Fernández disse em uma coletiva em 2021, por exemplo, que "os mexicanos vieram dos índios, os brasileiros vieram da selva, mas, nós, os argentinos chegamos nos barcos" e teve que se retratar. "Na primeira metade do século 20, recebemos mais de 5 milhões de imigrantes que conviveram com nossos povos originários. Nossa diversidade é um orgulho", justificou-se. O presidente argentino disse ainda que não quis ofender ninguém e se desculpou com quem havia se sentido invisibilizado. O sentimento de ser invisível é compartilhado por muitos em um país onde não é incomum ouvir: "Aqui não há negros". O mito da homogeneidade racial na Argentina não "reflete a realidade histórica", diz Orsi, mas "tem se espalhado pela população desde os tempos da colonização e independência, permanecendo quase intacto até o fim da primeira década do século 21, quando começou a ser posto em questão". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A verdade é que a Argentina não sabe exatamente quantos afrodescendentes tem, porque, até pouco tempo, não havia perguntado. O Censo de 2010 foi o primeiro a incluir essa pergunta e, mesmo assim, só para uma parte da população. O resultado foi que haveria 149,5 mil afrodescendentes entre os 40,1 milhões de argentinos, 0,37% do total. A título de comparação, no Brasil negros são mais da metade. Ativistas e acadêmicos dizem que o número é na realidade muito maior. Dificuldades na realização do censo, operacionais, financeiras e políticas, podem ter prejudicado a contagem, explica Eva Lamborghini, pesquisadora do Grupo de Estudos Afrolatinoamericanos (Geala) da UBA. "A inclusão da pergunta foi um feito histórico dos ativistas, mas a campanha de sensibilização à ela e à categoria em si foi muito escassa, em um país onde ainda hoje essa identificação é desconhecida pela maioria", afirma. Um teste piloto para o censo feito cinco anos antes, em bairros de Buenos Aires e Santa Fé, apontou, por exemplo, que haveria 2 milhões de afrodescendentes na Argentina, ou seja, cerca de 5% da população. "Imagino que deve ter ao menos o dobro, e estou sendo conservador", afirma Alí Delgado. Uma conta mais precisa deve sair do Censo de 2022, o primeiro que perguntará a todas as pessoas se elas têm ascendência africana. "A expectativa é que o número cresça, não só pelo alcance da pergunta, mas porque se passaram dez anos do último censo e se avançou muito em termos do reconhecimento afro no país", diz Lamborghini. Delgado também avalia que o percentual oficial vai subir, mas ainda assim não irá refletir a realidade. "Muitas pessoas não sabem que são afrodescendentes - ou não se interessam em saber - e pensam que são brancos. Historicamente, muitas pessoas começaram a ocultar familiares negros, e as famílias foram eliminando outros elementos da cultura africana", afirma. Além disso, há quem não quer ser visto como negro, diz Delgado, por não entender que a ascendência africana faz parte do que é a Argentina ou para escapar dos estigmas associados a ser identificado assim. "Em um mundo racista, isso nunca é positivo", afirma o advogado. "O negro é exótico, hipersexualizado, te olham muito mais na rua, o segurança te segue na loja, não se vive tranquilo." Além disso, o negro é com frequência considerado um estrangeiro à primeira vista, diz Delgado: "Não se concebe o negro argentino. Muitas vezes me perguntam na rua de onde eu sou". A isso se somam o retrato histórico dos negros apenas como escravizados, ausentes de eventos importantes, uma "negação absoluta da negritude" da Argentina, diz Delgado, e a falta de representatividade na sociedade hoje. "Praticamente não há negros nas universidades, são menos ainda entre os professores. Não há na política, pelo menos não nos lugares mais importantes, ou nos âmbitos empresariais ou da Justiça", afirma Delgado. Os negros são parte da história e da sociedade argentina, apesar de isso não ficar imediatamente óbvio com a seleção de futebol masculina. O país foi uma colônia espanhola e recebeu dezenas de milhares de africanos escravizados nesta época. Os negros eram no fim do século 18 cerca de um terço da população, de acordo com dados históricos. Então, como eles se tornaram menos de 1%? Uma explicação corrente é que muitos teriam morrido nas guerras travadas no país no século 19, mandados para a "linha de frente" dos conflitos. Outra afirma que os negros, por serem mais pobres, padeceram mais em epidemias, especialmente a de febre amarela, na mesma época. Ou ainda que a população negra declinou depois da abolição do tráfico de escravos, o que deixou de compensar as altas taxas de mortalidade. Estudos acadêmicos já refutaram essas hipóteses, mas elas são ainda muito citadas nos debates sobre a questão racial no país. O que ocorreu foi na verdade um progressivo "apagamento" dos negros da sociedade, explica Edwards, desde que a Argentina decidiu, no final do século 19 e início do século 20, atrair imigrantes europeus como parte de um projeto de nação mais moderna - e branca. "O número de imigrantes que chegou foi imenso, não dá para negar que essa quantidade de pessoas teve um efeito na proporção de negros na sociedade", afirma Edwards, que escreveu um artigo para o Washington Post sobre o assunto. A historiadora Florencia Guzmán, que coordena o Geala, recorda que a Constituição de 1853 estabeleceu que os cidadãos não seriam mais distinguidos por cor ou raça. "O silêncio racial podia parecer progressista no plano jurídico, mas, na prática não era tanto, porque constituiu a Argentina como um país branco e europeu com a massiva imigração europeia, um 'crisol de raças'", afirma Guzmán. Delgado afirma que, ao mesmo tempo, os negros foram por muito tempo contabilizados na população, junto com indígenas e outras etnias de pele mais escura, como trigueños. "Foi um genocídio discursivo. Criou-se uma categoria racial que meteu a todos no mesmo saco, e isso foi uma via de escape para muita gente, porque não era positivo ser negro. Quem quer ser oprimido?", afirma o pesquisador. Guzmán aponta que os recenseadores tinham ainda uma concepção "restritiva e dicotômica" da população negra. "Eles consideravam negros só os africanos ou a população de cor antes de toda miscigenação. Essa concepção 'purista' não poderia levar a outra coisa que não a subestimar a presença dos descendentes de africanos no país e à homogeneização da população na construção de uma imagem de um país branco, sem raças", afirma. A Argentina também passou por uma miscigenação maior do que, por exemplo, o Brasil, o que "ampliou o conceito de negritude", diz Delgado. "Se a pessoa não tem pele bem escura ou cabelo crespo, não é considerada negra. Isso também reduz muito a quantidade de afrodescendentes." Mas a seleção argentina já teve jogadores negros no passado, lembra Delgado, inclusive entre os seus campeões mundiais. O goleiro Héctor Baley, o "Chocolate", foi da seleção de 1978, e o volante Héctor Henrique, o "Negro Henrique", jogou em 1986. "Então, houve negros no passado, há visivelmente afrodescendentes hoje e haverá outros no futuro, mas a negritude é distinta." O pesquisador diz ainda que, na final da Copa, o time da França também não refletirá a população do país e que isso diz muito mais sobre seu colonialismo. Edwards concorda com a parte do colonialismo, mas considera que a seleção argentina "reflete a Argentina de muitas formas". "Acho isso muito interessante e que tem algo a dizer da imagem que o país tem de si mesmo. Se é uma imagem correta ou não, deixo para os argentinos responderem."
2022-12-17
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64009276
sociedade
Orçamento secreto e cargos no governo Lula: o que está travando a PEC da Transição?
Após uma aprovação rápida no Senado, a PEC da Transição "travou" na Câmara dos Deputados. A estimativa é que ela fosse votada ainda nesta semana, mas o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) sequer a colocou em pauta. A expectativa é de que ela só entre em votação na semana que vem. A proposta de emenda constitucional (PEC) é considerada estratégica pela equipe do governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para cumprir algumas das promessas feitas durante a campanha eleitoral deste ano. A principal delas é o pagamento do Auxílio Brasil de R$ 600 em 2023. Mas por que a PEC aprovada com rapidez no Senado está "patinando" na Câmara dos Deputados? A BBC News Brasil ouviu especialistas que apontaram dois motivos principais para explicar a demora para que a medida seja colocada em votação: a indefinição sobre o chamado "orçamento secreto", cuja legalidade está sendo julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e a pressão feita pelo Centrão por cargos no futuro governo Lula. A medida ganhou o apelido de "PEC da Transição" porque vem sendo desenhada por aliados de Lula. Fim do Matérias recomendadas O texto aprovado no Senado prevê uma ampliação do teto de gastos de até R$ 168,9 bilhões para os anos de 2023 e 2024. Desse total, R$ 145 bilhões serão destinados ao pagamento do Auxílio Brasil de R$ 600 e um bônus de R$ 150 para cada família com criança de até seis anos de idade. Sem essa ampliação do teto, dizem aliados de Lula, o governo não teria como pagar os benefícios nestes valores a partir de janeiro de 2023. Além disso, o texto também prevê que até R$ 23,9 bilhões fruto de arrecadações extraordinárias poderiam ser usados para investimentos. A PEC da Transição é considerada importante para o novo governo Lula porque permite que ele cumpra a promessa de manter o valor do Auxílio Brasil sem violar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), o que poderia gerar eventuais pedidos de impeachment. Além disso, com a ampliação do teto de gastos para o pagamento do auxílio, o governo poderá usar o espaço que será aberto no orçamento para recompor as verbas de outros programas, como o das farmácias populares, além de aumentar as verbas para a merenda escolar. Na etapa anterior, a condução da PEC foi feita por uma espécie de "dobradinha" entre o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), e o senador Alexandre Silveira (PSD-MG). Pacheco se manteve relativamente distante do presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a corrida eleitoral e é visto como uma figura moderada no Congresso Nacional. Silveira, por sua vez, é cotado para assumir um cargo no futuro governo Lula. O resultado é que a PEC demorou apenas dois dias para ser aprovada no Senado. Mas se o consenso no Senado foi tão rápido, a história não se repetiu na Câmara dos Deputados. Sob o comando de Arthur Lira, que foi aliado de Bolsonaro ao longo dos últimos anos e durante a corrida eleitoral, a Casa ainda não começou a apreciar a matéria. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para o professor de Ciência Política na Fundação Getúlio Vargas (FGV) Marco Antônio Teixeira, os dois principais fatores atrasando a tramitação da PEC são: o julgamento no STF sobre o "orçamento secreto" e a pressão de Lira e outros líderes do Centrão por cargos no futuro governo. O "orçamento secreto" é como ficaram conhecidas as emendas do relator-geral do orçamento. As emendas parlamentares são mecanismos em que deputados ou senadores podem destinar verbas do orçamento para municípios, obras ou programas de sua preferência. Essas emendas, normalmente, contém informações sobre quem são seus autores e a quais projetos específicos o dinheiro se destina. Nas emendas de relator-geral do orçamento, esse nível de detalhamento é menor. Críticos afirmam que, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, houve um aumento no valor destinado às emendas de relator, que a falta transparência abria brechas para casos de corrupção e que o mecanismo foi usado para comprar apoio político. Bolsonaro, no entanto, nega responsabilidade no funcionamento do chamado "orçamento secreto". Nesta semana, o STF deu continuidade ao julgamento de uma ação que pede o fim das emendas do relator-geral do orçamento. O julgamento foi interrompido na quinta-feira (15/12) e o placar está cinco a quatro pelo fim do mecanismo "Os deputados estão aguardando o julgamento no STF e tentando alguma forma de manter o orçamento secreto. Essa demora em votar a PEC é uma forma de pressionar o STF a fazer alguma concessão para que o mecanismo não seja extinto", disse o professor. "Eles estão esperando o julgamento porque, se o Supremo julgar o orçamento secreto inconstitucional, eles vão querer barganhar mais recursos em outros tipos de emendas e vão aproveitar a PEC da Transição para fazer isso", disse. Enquanto o julgamento do orçamento secreto no STF aguarda uma conclusão prevista para a semana que vem, deputados e senadores aprovaram uma resolução que muda algumas regras das emendas de relator. Uma das mais importantes delas é o fim da possibilidade de que a autoria de uma emenda de relator possa ser atribuída à nomenclatura "usuário externo", sem a designação exata do seu responsável. A medida é vista como uma forma de dar mais transparência às emendas do relator e apresentar uma satisfação ao STF para convencer a Corte a manter o orçamento secreto em pé. Outro elemento apontado pelos especialistas para explicar a demora na tramitação da PEC da Transição seria a suposta pressão feita por Lira e outros líderes do Centrão por cargos no novo governo Lula. Até agora, Lula anunciou cinco ministros, todos eles do PT ou próximos ao partido: Fernando Haddad (Economia), Rui Costa (Casa Civil), José Múcio Monteiro (Defesa), Mauro Vieira (Relações Exteriores) e Flávio Dino (Justiça e Segurança Pública). Outros nomes são especulados, como o do ex-governador do Ceará Camilo Santana (PT), apontado como futuro ministro da Educação. O desafio do futuro governo, porém, é acomodar o grande número de aliados que se formou durante a eleição e que inclui, por exemplo, a senadora e ex-candidata à Presidência Simone Tebet (MDB). Reportagem publicada no portal "UOL" nesta semana mostra que Lira estaria pressionando o governo eleito para indicar o novo ministro da Saúde, uma das pastas com o maior orçamento do governo federal. Segundo o portal o "Metrópoles", Lira quer o comando do Ministério da Saúde ou de Minas e Energia. Além de Lira, outros partidos do chamado Centrão também estariam pressionando o governo por cargos, como o MDB do senador Renan Calheiros (AL), que é adversário político de Lira em Alagoas. "Há uma briga por espaço na composição do governo. Lira e Renan brigam para ocupar esses cargos e isso está travando, também, a definição sobre a PEC da Transição", aponta Marco Antonio Teixeira, da FGV. "Os deputados estão negociando e usando a PEC da Transição para obter cargos nos ministérios. Enquanto essa negociação acontece, a PEC não anda", diz Denilde Holzhacker, professora assistente no curso de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Oficialmente, porém, Arthur Lira nega que a demora na votação da PEC da Transição seja resultado de algum tipo de barganha. Segundo reportagem publicada pela CNN Brasil, a medida começará a ser votada na semana que vem e o tempo que se levou para colocá-la em votação foi para obter uma "acomodação dos votos", uma vez que, até agora, não haveria apoio suficiente para aprovar a PEC. "Diferentemente do que tem sido noticiado, sem nenhum tipo de barganha, porque essa presidência nunca fez, mas acomodando votos para que se tenha o quórum necessário para enfrentar as votações principais e os destaques que possam vir do plenário desta Casa", afirmou Lira.
2022-12-17
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sociedade
Por ciúme, diarista tem corpo queimado e hoje ajuda outras mulheres: 'É importante ver sem o olhar do amor'
Era tarde 8 de setembro de 2018, uma sexta-feira. A diarista Marciane Pereira dos Santos, à época com 36 anos, chegava cansada do trabalho acompanhada dos dois filhos, de dois e cinco anos. Antes mesmo de entrar na casa onde morava, no bairro Jardim Tropical, em Serra (ES), ela foi abordada pelo ex-marido, com quem foi casada por sete anos e havia se divorciado havia três meses após sucessivos episódios de violência psicológica. Inconformado com o fim da relação, e morando ainda na mesma rua, o homem quis explicações de Marciane ao saber que ela estava iniciando uma nova relação. Para evitar discutir com o ex-companheiro na presença dos filhos, a diarista conta que foi até a casa de uma vizinha, onde deixou as crianças. "Quando eu voltei para a minha casa, ele estava me esperando na porta e nós começamos a discutir. Ele veio para cima de mim com uma faca, jogou solvente em mim e ateou fogo. Não tive tempo de ter nenhuma reação, só me lembro de ver um clarão e meu corpo começou a pegar fogo", conta. A diarista recorda que se jogou no chão e começou a rolar no asfalto na tentativa de apagar as chamas e logo em seguida, ao ouvir seus gritos de desesperos, vizinhos tentaram ajudá-la jogando água em seu corpo. Fim do Matérias recomendadas A doméstica teve queimaduras de segundo e terceiro graus no rosto, pescoço, tronco, pernas e braços. Cerca de 40% do seu corpo foi queimado. "Eu fiquei consciente a todo tempo e só pensava nos meus filhos", diz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Devido à gravidade das queimaduras, Marciane permaneceu três meses internada em coma na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), onde ficou entre a vida e a morte. Após acordar, ela ainda permaneceu mais dois meses internada em estado grave no centro de tratamento do Hospital Estadual Doutor Jayme Santos Neves. A diarista passou por 18 cirurgias e teve a perna esquerda amputada devido à gravidade das queimaduras no local, por isso hoje ela se locomove com o auxílio de cadeira de rodas. "Ainda devo passar por cirurgias plásticas para refazer o nariz, boca e orelhas. Além de procedimentos nos braços e mãos que vão ajudar a melhorar os meus movimentos, que ainda são bastante limitados. Já era para ter feito a cirurgia nos braços, mas na data do procedimento eu tive covid-19 e ainda não consegui remarcá-lo", explica. "Apesar de o meu corpo estar diferente, eu nunca tive dificuldades em me olhar no espelho. A maior dificuldade são as limitações físicas que esse crime me trouxe, principalmente as dificuldades para cuidar de duas crianças", acrescenta. Marciane é mãe de um menino, de seis anos, filho do homem que ateou fogo em seu corpo e de uma menina de 9 anos, fruto de um relacionamento anterior. No início da recuperação de Marciane, as crianças ficaram sob cuidado de familiares, mas atualmente moram com a diarista. Logo após o crime, o ex-marido de Marciane foi preso pela polícia e disse em depoimento que o ocorrido foi motivado por ciúme. Em agosto, o homem foi julgado e condenado a 32 anos de prisão. O julgamento durou mais de oito horas e o júri foi formado por sete jurados, sendo eles quatro homens e três mulheres. Marciane fez questão de acompanhar o júri de perto e ficar frente a frente com seu ex-marido pela primeira vez após o crime. "Quando o vi eu perguntei se ele tinha noção do jeito que ele havia me deixado e ele respondeu que não. Foi um momento muito doloroso e por mais que eu tivesse consciência de que não seria fácil, eu acho que nunca estamos preparados para esse tipo de situação", recorda a diarista. Segundo a doméstica, no início da relação, o ex-companheiro era um homem carinhoso e tinha comportamento tranquilo. Apesar de nunca ter sofrido nenhuma agressão física antes do crime, Marciane conta que, com o passar do tempo, o homem começou a demonstrar comportamento possessivo e passou a agredi-la psicologicamente. "Ele me xingava, gritava e eu aceitava porque o amava e também porque achava que era um momento de raiva dele, não via como uma agressão. As pessoas falavam que aquilo não era correto. Mas, eu não conseguia enxergar o que realmente acontecia na minha vida. Por isso, é importante ouvirmos quem está fora da relação, porque eles veem a situação sem o olhar do amor", diz. Sem poder trabalhar, Marciene se dedica aos cuidados com os filhos e em ajudar outras mulheres que foram vítimas de violência doméstica ou vivem em relacionamentos abusivos. "Faço palestras sobre violência doméstica, converso com as mulheres que enfrentam alguma situação semelhante e uso as redes sociais para chamar a atenção sobre o tema e passar mensagens de apoio àquelas que vivem em uma relação abusiva. Uso o que aconteceu comigo para conscientizá-las sobre os riscos desse tipo de relacionamento", conta Marciane. Marciane sempre teve o sonho de estudar, mas devido às condições financeiras, nunca conseguiu cursar o ensino superior. Situação que mudou este ano após ela ganhar bolsa integral em uma faculdade da cidade e começar a cursar a graduação de Serviço Social. "Há uns 20 anos, quando eu trabalhava como doméstica, um dia meu patrão me disse que eu era uma simples empregada e não deveria perder tempo estudando. Eu acabei acreditando naquilo e deixei meu sonho de lado. Mas, hoje eu vejo que eu posso estudar e posso ser o que eu quiser", conta. "Minha missão aqui é ajudar e sendo assistente social vou poder contribuir na vida das pessoas", acrescenta. No dia 25 de novembro é celebrado o Dia Internacional de Luta contra a Violência à Mulher, instituído em 1999, pala ONU (Organização das Nações Unidas) para chamar a atenção do mundo para o tema. No entanto, apesar dos esforços em conscientizar mulheres e também homens para o assunto, os números de violência contra a mulher ainda são alarmantes. Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), mostram que no primeiro semestre de 2022, data da última atualização disponibilizada pelo órgão, a central de atendimento registrou 31.398 denúncias e 169.676 violações envolvendo a violência doméstica contra as mulheres - uma denúncia pode conter mais de uma violação de direitos humanos. Além disso, o Ministério, por meio da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM), acompanha o número de atendimentos das Casas da Mulher Brasileira (CMB) em funcionamento. Em 2022 as unidades já realizaram mais de 300 mil atendimentos. Desde 2019, quando o monitoramento foi implementado, já são mais de 1 milhão de atendimentos realizados. "O Ligue 180 oferece atendimento confidencial e qualificado por uma equipe formada somente por mulheres. O serviço acolhe denúncias de violações dos direitos das mulheres, encaminha o conteúdo dos relatos aos órgãos competentes e monitora o andamento dos processos. A Central pode ser acionada por qualquer mulher que esteja sofrendo violência ou por terceiros que tenham conhecimento. O sigilo do denunciante é sempre resguardado", explicou o órgão em nota. As denúncias são encaminhadas para cerca de 50 mil destinos, incluindo tanto órgãos assistenciais como penais, como: conselhos tutelares, CRAS, CREAS, delegacias de polícia e Ministério Público. Se engana quem pensa que violência contra a mulher é apenas física, ela também pode ser: psicológica, sexual, moral e patrimonial. Segundo especialistas, as situações de agressões físicas envolvendo mulheres e seus companheiros raramente acontecem do dia para a noite. Geralmente, a vítima já sofreu algum outro tipo de violência praticada por ser parceiro - sendo a violência psicológica a mais comum. Na tentativa de quebrar esse ciclo de violência doméstica, a promotora de Justiça de São Paulo, Gabriela Manssur, criou uma "rede de justiceiras", que oferece ajuda à essas mulheres vítimas de algum tipo de violência praticada por seus companheiros. De forma voluntária, 11.866 mulheres de diferentes profissões (advogadas, psicólogas, assistentes sociais e médicas), oferecem apoio a mulheres de todo o país e também do exterior, de maneira online através do WhatsApp (11) 99639 1212. De março de 2020, quando o projeto foi criado, até novembro deste ano foram 11.457 casos atendidos no Brasil e em outros 27 países. "A violência psicológica é a maioria dos casos, representando 82,37% das situações que recebemos, seguido de ameaça (52,97%), violência sexual (52,97%), violência patrimonial (67,97%) e violência física (59,43%). O que mais preocupa é que 73,72% dos pedidos de ajuda, os crimes ocorrem na casa da vítima", explica Manssur. Após os atendimentos os casos são enviados para a Ouvidoria das Mulheres, no Conselho Nacional do Ministério Público e as vítimas são encaminhadas para os centros de referência da mulher do município em que residem para continuidade dos atendimentos psicológicos e socioassistenciais.
2022-12-16
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sociedade
Como número 13 se tornou 'símbolo de má sorte' na cultura ocidental
Você acharia estranho se eu me recusasse a viajar aos domingos que caem no dia 22 do mês? E que tal se eu fizesse uma pressão na reunião de condomínio do meu prédio para "pular" o 22º andar, passando diretamente do 21º para o 23º? É bastante incomum ter medo do número 22 — então, sim, seria pertinente me achar um pouco estranho. Mas e se, só no meu país, mais de 40 milhões de pessoas compartilhassem a mesma aversão sem fundamento? É neste sentido que muitos americanos admitem que ficariam incomodados em se hospedar no 13º andar de um hotel. De acordo com a empresa de elevadores Otis, para cada prédio com andar número 13, seis outros prédios "fingem" não ter o mesmo, pulando direto para o 14º. Fim do Matérias recomendadas Muitos ocidentais mudam seu comportamento na sexta-feira, 13. É claro que, às vezes, coisas ruins acontecem nessa data, mas não há evidências de que aconteça de forma desproporcional. Como sociólogo especializado em psicologia social e processos de grupo, não estou tão interessado em medos e obsessões individuais. O que me fascina é quando milhões de pessoas compartilham a mesma concepção equivocada a ponto de afetar o comportamento em larga escala. Esse é o poder do 13. A fonte da aversão ao número 13 — a triscaidecafobia — é obscura e especulativa. A explicação histórica pode ser tão simples quanto sua justaposição casual com o número 12 da sorte. Joe Nickell investiga relatos de eventos paranormais para o Comitê de Investigação Cética, uma organização sem fins lucrativos que analisa cientificamente alegações controversas e extraordinárias. Ele destaca que 12 geralmente representa "completude": o número de meses no ano, de deuses do Olimpo, de signos do zodíaco e de apóstolos de Jesus. Treze contrasta com esse senso de bondade e perfeição. O número 13 também pode estar associado a alguns convidados famosos, mas indesejáveis. Na mitologia nórdica, o deus Loki foi o 13º a chegar a um banquete em Valhalla, onde enganou outro participante para matar o deus Baldur. No cristianismo, Judas — o apóstolo que traiu Jesus — foi o 13º convidado da Última Ceia. Mas a verdade é que os processos socioculturais podem associar a falta de sorte a qualquer número. Quando as condições são favoráveis, um boato ou superstição geram sua própria realidade social, formando uma bola de neve, como uma lenda urbana, enquanto desce a colina do tempo. No Japão, 9 dá azar, provavelmente porque soa semelhante à palavra japonesa para "sofrimento". Na Itália, é o 17. Na China, 4 soa como "morte" e é mais ativamente evitado na vida cotidiana do que o 13 na cultura ocidental — inclusive com a disposição de pagar tarifas mais altas para evitá-lo no número de celular. E embora 666 seja considerado um número de sorte na China, muitos cristãos ao redor do mundo o associam à besta descrita no livro bíblico do Apocalipse. Existe até uma palavra para o medo intenso do 666: hexacosioihexecontahexafobia. Há muitos tipos de fobias específicas, e as pessoas têm fobia por uma variedade de razões psicológicas. Podem surgir de experiências negativas diretas — por exemplo, você pode temer abelhas após ser picado por uma. Outros fatores de risco para desenvolver fobia incluem ser muito jovem, ter parentes com fobias, ter uma personalidade mais sensível e estar exposto a outras pessoas com fobias. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Parte da reputação do 13 pode estar ligada a um sentimento de falta de familiaridade, ou "sensação de anomalia", como é chamado na literatura de psicologia. Na vida cotidiana, 13 é menos comum do que 12. Não há 13º mês ou o número 13 no relógio. Por si só, uma sensação de falta de familiaridade não causa fobia, mas pesquisas na área de psicologia mostram que favorecemos o que é familiar — e desfavorecemos o que não é. Isso torna mais fácil associar o 13 a atributos negativos. As pessoas também podem conferir atributos obscuros ao 13 pela mesma razão que muitos acreditam nos "efeitos da lua cheia". As crenças de que a lua cheia influencia a saúde mental, as taxas de criminalidade, os acidentes e outras calamidades humanas foram completamente desmistificadas. Ainda assim, quando as pessoas buscam confirmar suas crenças, elas tendem a inferir conexões entre fatores não relacionados. Por exemplo, sofrer um acidente de carro durante a lua cheia ou em uma sexta-feira 13 torna o evento ainda mais memorável e significativo. Uma vez incorporadas, essas crenças são muito difíceis de se desconstruir. Depois, há os potentes efeitos das influências sociais. É preciso uma aldeia — ou o Twitter — para fazer o medo convergir em torno de um número inofensivo em particular. O surgimento de qualquer superstição em um grupo social — medo do número 13, passar sob escadas, não pisar em rachaduras, bater na madeira etc. — não é diferente do surgimento de um "meme". Embora hoje o termo se refira com maior frequência a imagens amplamente compartilhadas na internet, ele foi introduzido pela primeira vez pelo biólogo Richard Dawkins para ajudar a descrever como uma ideia, inovação, moda ou outra informação pode se difundir entre uma população. Um meme, em sua definição, é semelhante a um pedaço de código genético: ele se reproduz à medida que se comunica entre as pessoas, com o potencial de se transformar em versões alternativas de si mesmo. O meme 13 é uma simples informação associada à má sorte. Ele ressoa com as pessoas pelas razões mencionadas anteriormente, e então se espalha por toda a cultura. Uma vez adquirido, esse pseudoconhecimento dá aos crentes uma sensação de controle sobre os males associados a ele. Os grupos que tratam de relações públicas parecem sentir a necessidade de se curvar às superstições populares. Talvez devido à missão quase trágica da Apollo 13, a Nasa (agência espacial americana) parou de numerar sequencialmente as missões do seu ônibus espacial, chamando o 13º voo de STS-41-G. Na Bélgica, reclamações de passageiros supersticiosos levaram a Brussels Airlines a reformular seu logotipo em 2006. Era uma imagem semelhante a um "b" feita de 13 pontos — e a empresa acrescentou um 14º. Como muitas outras companhias aéreas, a numeração das fileiras de assentos dos seus aviões pula o 13. Dado que as crenças supersticiosas são inerentemente falsas, elas são propensas a fazer tão mal quanto bem — considere as fraudes na área de saúde, por exemplo. Eu gostaria de acreditar que organizações influentes — talvez até empresas de elevadores — ofereceriam um serviço melhor ao alertar o público sobre os perigos de se apegar a falsas crenças do que continuar legitimando-as. * Barry Markovsky é professor emérito de sociologia da Universidade da Carolina do Sul, nos Estados Unidos.
2022-12-14
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-63961009
sociedade
A empresária que deu um grande salto na carreira após ser confundida com pessoa que servia café
A "síndrome do impostor", às vezes chamada de "síndrome da fraude", é um transtorno psicológico no qual as pessoas de sucesso são incapazes de reconhecer suas conquistas. As pessoas que sofrem dessa síndrome sentem que não estão à altura das circunstâncias ou que não merecem o que conquistaram como fruto do seu trabalho. Mas o impressionante desta história é que sua protagonista conseguiu converter sua fraqueza em vantagem. Quando a empreendedora Sarah Willingham estava na casa dos 20 anos de idade, ela ocupava um cargo de alta responsabilidade. Ela era encarregada do desafio de conseguir as melhores compras para uma famosa cadeia de restaurantes do Reino Unido. A responsabilidade comercial era enorme e dependia, em grande parte, das suas habilidades de negociação para conseguir os melhores negócios e fechar contratos de milhares de dólares. Um dia, ela chegou dois minutos atrasada a uma reunião importante que iria discutir os termos de um novo contrato. Fim do Matérias recomendadas "Um dos advogados, que estava sentado na outra ponta da mesa, levantou o rosto e me disse: 'graças a Deus, queria um café com um pouco de leite e uma colherada de açúcar'", conta a empresária, que compreendeu imediatamente que ele a havia confundido com uma assistente do escritório. Como reagiu a empreendedora? Ela deu a volta, serviu o advogado e perguntou aos demais negociadores se mais alguém queria café. Como ninguém mais quisesse, ela serviu a si própria e sentou-se no outro lado da mesa, exatamente em frente ao advogado que a havia confundido. Quando ele se deu conta do que havia acontecido, Willingham conta que ele foi transparente. Naquele momento, o advogado compreendeu a suposição que o havia levado a cometer um erro. "Foi um belo momento na minha carreira, realmente fortalecedor, porque me dei conta de que a síndrome do impostor tornou-se, naquele momento, meu superpoder", destaca ela. "E adivinhe quem saiu daquela reunião com um bom negócio?", pergunta, com um sorriso no rosto. Esta é a experiência vivida pela empresária quando enfrentou os preconceitos que, por vários anos, fizeram-na sentir que não merecia o lugar onde se encontrava. Mas, ao encarar seus medos frente a frente, ela acabou percebendo que podia lidar com eles e até mudar as circunstâncias a seu favor. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para muitos dos que sofrem da síndrome do impostor no mundo do trabalho e sentem frequentemente que suas conquistas profissionais não são merecidas e que, provavelmente, ficarão expostos como uma fraude a qualquer momento, tudo é muito desafiador. A síndrome pode prejudicar a busca pelo sucesso. Se você recear que alguém irá desmascarar a sua "farsa", o seu nível de pressão será tão alto que pode acabar prejudicando seu rendimento devido ao medo do fracasso. Mas não precisa ser assim. Existe o outro lado da moeda. Segundo as descobertas científicas de Basima Tewfik, acadêmica de Estudos do Trabalho e da Organização do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), nos Estados Unidos, os comportamentos exibidos pelos "impostores" tentando compensar suas dúvidas sobre si próprios podem gerar bons profissionais. As pessoas que sofrem da síndrome do impostor podem superar seus colegas "não impostores", abrindo espaço para os sentimentos de insuficiência em vez de resistir a eles. Isso significa que uma característica que muitas pessoas não apreciam em si próprias pode, na verdade, motivá-las a atingir melhor desempenho, segundo os resultados dos experimentos realizados por Tewfik. "Tudo isso me deixa muito emocionada", ela conta. "Pode ser uma vantagem e talvez devêssemos começar a pensar em aproveitá-la." As pesquisas de Tewfik indicam que podem surgir benefícios tangíveis dos pensamentos impostores no ambiente de trabalho. A pesquisadora explica que um dos principais pontos que definem a síndrome do impostor é a diferença entre como os indivíduos percebem sua competência e o quanto você é realmente competente. Por isso, a síndrome é mais relacionada à percepção e não ao desempenho. Neste sentido, a diferença de percepção da capacidade profissional pode não prejudicar a qualidade do seu trabalho, afinal. E, se a dúvida sobre si próprio leva alguém a esforçar-se mais nas suas conexões interpessoais, ela pode também ajudá-lo a superar seus colegas no desenvolvimento das suas habilidades sociais. O psicólogo organizacional Adam Grant, professor da Escola de Negócios Wharton da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, afirma que as conclusões da acadêmica são inovadoras, já que, historicamente, a síndrome do impostor era considerada algo exclusivamente negativo. "Sua pesquisa está abrindo novos caminhos ao destacar que os pensamentos impostores podem ser uma fonte de energia", afirma ele. "Eles podem nos motivar a trabalhar com mais intensidade para demonstrar algo para nós mesmos e com mais inteligência para preencher as lacunas em nossos conhecimentos e capacidades." Embora existam diversas recomendações para ajudar os profissionais a tentar superar a síndrome do impostor, especialistas acreditam que o objetivo, na verdade, deveria ser revisar a noção de que a síndrome do impostor é puramente prejudicial. É verdade que algumas pessoas acreditam plenamente que são uma fraude. Mas, para a maioria de nós, a síndrome se manifesta na forma de dúvidas comuns sobre a nossa capacidade de enfrentar os desafios a que nos submetemos, segundo Grant. E ele acrescenta que, embora possa causar estresse, medo ou redução da confiança em si próprio, a síndrome também revela dúvidas que são normais e até saudáveis. "Em vez de nos paralisar, elas podem nos impulsionar", conclui o especialista.
2022-12-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63970691
sociedade
Pessoas com doenças graves têm direito a benefícios; veja quais são e como obtê-los
Todas as pessoas acometidas por doenças que a deixem incapacitadas para o trabalho e que tenham contribuído ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), no mínimo, pelo período de 12 meses, têm direito de receber um benefício previdenciário mensalmente, inclusive, o 13º salário. São eles: auxílio por incapacidade temporária (mais conhecido como auxílio-doença) e auxílio por incapacidade permanente (conhecido como aposentadoria por invalidez). "Pessoas acometidas por doenças graves, como o câncer, não precisam comprovar a contribuição mínima de 12 meses-- que é o que chamamos de carência, mas, deverão comprovar, além da doença incapacitante, que contribuíram no último ano antes de adoecer", explica a advogada previdenciarista, Lísia Daniella Ferro. O valor é calculado a partir da média das últimas 12 contribuições feitas pelo beneficiário, sendo que o menor valor do benefício será o salário mínimo vigente e o valor máximo deverá respeitar o teto do INSS que, atualmente, equivale a R$ 7.087,22. "As pessoas que começaram a trabalhar, mas que ainda não somaram um ano de contribuição, terão esse histórico considerado, mas, provavelmente, ficarão limitadas a receber um salário-mínimo por conta do cálculo. Ninguém recebe menos que isso", afirma Ivandick Rodrigues, advogado e professor de direito trabalhista e previdenciário da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Já em relação ao tempo, o benefício deverá ser concedido enquanto durar a incapacidade de trabalho para as concessões temporárias. Mas em eventos de concessão por incapacidade permanente, este deverá ser reavaliado pelo INSS a cada 2 anos para comprovar a continuidade da invalidez. Fim do Matérias recomendadas Por outro lado, se a pessoa se recuperar e tiver capacidade de voltar ao trabalho, mas seguir recebendo o benefício, o INSS tem direito de processar esse paciente e requerer seu dinheiro de volta, pago em período indevido. Em casos específicos de doenças graves, há a inserção de algumas doenças raras incapacitantes, que também dão direito à isenção de carência na concessão dos benefícios previdenciários. Contudo, se solicitado ao INSS e for negado, o benefício poderá ser obtido mediante processo judicial, assim como outros direitos que esses pacientes têm, como o custeio de medicações e alimentação diferenciada. O professor de direito trabalhista e previdenciário da Universidade Presbiteriana Mackenzie explica que a carência funciona como uma espécie de investimento. Por isso, as pessoas não podem solicitar o benefício com uma doença pré-existente. "A concessão do benefício está condicionada a uma avaliação médica, então, essas pessoas, necessariamente vão passar pela perícia. Não é só porque foi dado o diagnóstico que a perícia se torna dispensável, ao contrário, ela é fundamental", ressalta o professor. Atualmente, essas doenças graves são: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Essa lista, porém, é apenas um exemplo básico do que não pode ser desconsiderado pelo INSS, tanto que o Ministério da Saúde e do Trabalho e Previdência podem acrescentar outras doenças. Ferro conta que já existem decisões dos tribunais de Justiça brasileiros que admitem que essa lista tem caráter exemplificativo. "Ou seja, outras doenças, se demonstrado o grau de gravidade, podem dar direito à isenção da carência, mas precisarão de decisão judicial para condenar o INSS a pagar o benefício", diz a advogada previdenciarista. Vale ressaltar também que o direito é das pessoas portadoras de enfermidades que estão incapacitadas de trabalhar. Isso significa que a doença, por si só, não dá direito ao benefício, mas sim a doença incapacitante. Por outro lado, pessoas que não contribuíram com o INSS, como crianças ou trabalhadores informais, mas que comprovem a existência de impedimento de longo prazo, isto é, de doenças que as incapacitem por no mínimo 2 anos, e que pertençam a uma família de baixa renda, que ganha menos de 1/4 de salário mínimo per capita (salvo raras exceções), podem obter um Benefício de Prestação Continuada (BPC), no valor de 1 salário mínimo por mês, sem direito a 13º salário. "Além da questão da doença, normalmente, a pessoa terá que comprovar a impossibilidade de contribuir junto ao INSS e, consequentemente, pleitear algum benefício junto a assistência", diz o professor universitário. Ele foi solicitado pela professora Simone Guedes Inácio, 49, em 2017, quando seu filho, Kauã Henrique, na época com 7 anos, foi diagnosticado com linfoma de Hodgkin, um tipo de câncer que se origina no sistema linfático - uma parte do sistema imunológico, de defesa do organismo. Entretanto, não foi fácil conseguir. "Eu só descobri que ele tinha direito a esse benefício depois de uns quatro meses que já estávamos na casa de apoio, porque uma das mães comentou que recebia. Mas nem a assistente social do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (Graacc) comentou que ele tinha algum direito. Até então, eu só sabia que tinha direito de receber pessoas idosas, mesmo que elas não tivessem contribuído com o INSS", relata Simone. Na época, foi um alívio saber que ele também poderia receber, já que a mãe havia deixado o restante da família, casa e trabalho em São Vicente (SP), para acompanhar o filho durante o tratamento em uma casa de apoio em São Paulo, capital. "Eu dei entrada em 2017 e consegui o benefício em 2018. Eu levei um relatório médico com a doença bem especificada e quais medicamentos ele estava usando, mas demorou um pouco, porque antes mesmo de ele ter passado na perícia, o benefício foi negado", conta a mãe. Frente a essa situação, Simone não se conformou e buscou ajuda no conselho tutelar de sua cidade. A conselheira, por sua vez, emitiu um ofício que foi entregue diretamente à assistente social do INSS, que recebeu a documentação e, depois de pouco mais de um mês, foi agendada a perícia médica. "E foi a partir daí que nós passamos a receber o benefício assistencial. Mas eu tenho uma amiga que precisou entrar na Justiça e até hoje não recebeu, e isso já faz 4 anos. E muitas outras também não receberam", desabafa a professora, afirmando que mesmo a mãe tendo que se dedicar 100% ao filho doente e não podendo trabalhar, muitas vezes, o benefício é negado para as crianças. O INSS foi contatado diversas vezes para elucidar quantas pessoas receberam algum benefício previdenciário ou assistencial desde 2020, mas não tivemos retorno até a publicação dessa reportagem. "Eu vejo o benefício assistencial com bons olhos quando a criança consegue, porque é muita burocracia e humilhação a família ter que ficar correndo atrás de uma coisa que está na lei. E a população, infelizmente, não é informada de tudo que nós temos direito", avalia a mãe, dizendo que, atualmente, o Kauã está em remissão da doença, mas continua recebendo o benefício, porque ainda não recebeu alta médica. "Em regra, só 1 pessoa da família pode receber o benefício assistencial por família. No entanto, se houver mais de uma pessoa idosa ou deficiente que tenha direito ao benefício assistencial, poderá haver mais de 1 benefício no mesmo grupo familiar", esclarece Ferro. Para ficar claro: existem dois mecanismos do Estado diferentes. Um deles é a previdência social que está prevista na constituição, é contributiva e pensada para quem contribui junto ao INSS; o outro é a Lei de Assistência Social-- definida justamente para pessoas excluídas do INSS. "Mas se a pessoa começa a trabalhar registrado, ela perde esse direito, porque demonstra que a doença não gera mais impedimento para o trabalho", explica Rodrigues. Em um segundo cenário, em que não houve prévia contribuição, seja de adulto ou criança, o cidadão pode procurar o Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) da sua cidade para receber as informações sobre o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e como requerê-lo. Lembrando que para receber o benefício, não é preciso pagar intermediários ou agenciadores. O paciente não escolhe o tipo de benefício que, possivelmente, ele irá receber. A sua natureza, se temporária ou permanente (aposentadoria), será definida, a partir da análise da documentação médica e do estado clínico da pessoa na perícia. O professor de direito lembra que "somente nos casos de incapacidade total ou parcial é que os mecanismos de benefícios serão ativados". Outro ponto comum, segundo os especialistas, é a negativa do INSS para conceder o benefício previdenciário. Nesse caso, a única saída é a pessoa procurar um advogado particular ou a Defensoria Pública da União para analisar o seu direito e, se for o caso, judicializar a questão, o que vale também para o BPC. Previsto em lei, pacientes atendidos na rede pública ou conveniada/contratada do Sistema Único de Saúde (SUS) que dependem de tratamento fora de seu domicílio têm direito de receber uma ajuda de custo para garantir os deslocamentos necessários, seja em ambulâncias ou não. Esse benefício é chamado de Tratamento Fora do Domicílio (TFD), cujo objetivo é arcar com as despesas relativas ao transporte aéreo, terrestre e fluvial do paciente e seu acompanhante, bem como diárias para alimentação e pernoite, devendo ser autorizadas de acordo com a disponibilidade orçamentária do município ou Estado concedente. A solicitação do Tratamento Fora do Domicílio normalmente é feita pelo médico do paciente e, se negado, ele também pode solicitar na própria Secretaria de Saúde Municipal. A autorização, porém, depende do gestor municipal ou estadual. "Realizada a solicitação de saque, a documentação comprobatória do estado de saúde do trabalhador é analisada pela perícia médica federal num prazo de 30 (trinta) dias úteis, para que então a Caixa possa realizar a análise de mérito do pedido e, se for o caso, efetivar o saque", disse o banco em nota enviada à BBC News Brasil. Só neste ano de 2022, a Caixa apontou que houve saques do FGTS que somaram R$ 796.633.202,86. Por fim, o professor de direito do Mackenzie ressalta que pessoas com doenças graves ou raras têm vários outros direitos. "Na parte tributária, por exemplo, seria possível abater determinadas despesas do imposto de renda ou até mesmo isentá-las completamente; comprar casa ou carro com desconto, ter isenção de IPVA. Mas tudo vai depender da doença incapacitante, da idade, ou se a pessoa é Pessoa com Deficiência (PcD).
2022-12-14
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63924696
sociedade
O que é uma polícula, rede de relações poliamorosas da qual fundador da FTX era adepto
Não foi apenas o colapso da corretora de criptomoedas FTX que virou notícia, mas também a vida pessoal do fundador Sam Bankman-Fried e de seu círculo íntimo. Ocorre que a namorada de Bankman-Fried, Caroline Ellison, que atuou como CEO da Alameda, subsidiária da FTX, e outros envolvidos com a empresa eram adeptos do poliamor. Os relacionamentos poliamorosos são uma forma consensual de não monogamia em que os casais buscam múltiplos relacionamentos românticos ou sexuais. O jornal britânico The Guardian observou que muitas das pessoas no círculo interno do império criado por Bankman-Fried, compartilhavam uma cobertura de luxo nas Bahamas e estavam em uma "polícula": uma teia de relacionamentos românticos interconectados. "Todos os 10 estão, ou costumavam estar, em relacionamentos românticos um com o outro", de acordo com a Coindesk, site especializado em bitcoin e outras moedas virtuais. Fim do Matérias recomendadas Em uma postagem de 2020 em seu blog no Tumblr, Ellison refletiu sobre o poliamor: "Quando... comecei minha primeira incursão no poliamor, pensei nisso como uma ruptura radical com meu passado [tradicional]. [Mas] [para ser honesta], cheguei à conclusão de que o único estilo aceitável de poliamor é caracterizado por algo como [um] 'harém imperial chinês' ... nada dessas bobagens não hierárquicas. Todos deveriam ter uma classificação de seus parceiros, as pessoas deveriam saber em qual posição estão classificadas e deveria haver lutas de poder sobre essas classificações." Como pesquisador que estuda mídia social, namoro online e poliamor, estou preocupado que as postagens de Ellison e as reportagens que as cobrem possam criar mal-entendidos sobre poliamor e estigmatizar ainda mais os estilos de relacionamento não tradicionais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O poliamor, geralmente abreviado como "poli", é focado no relacionamento e baseado no consentimento. Os envolvidos estão cientes do acordo. Não é estritamente sobre sexo. Essas redes de relacionamentos são conhecidas como "polículas" ou "constelações" e podem ser complexas e interligadas. A palavra "polículas" é uma junção de "poliamor" e "molécula", refletindo configurações de relacionamentos que se assemelham à estrutura química das moléculas. Nas "polículas" hierárquicas, às quais Ellison se refere em sua postagem no blog, há uma relação central denominada "primária". Aqueles que estão fora dela são frequentemente chamados de parceiros "secundários" ou "terciários". As opiniões sobre como o status pode operar dentro de estruturas hierárquicas variam. Por exemplo, o blog Scarleteen sugere que "um parceiro 'secundário' não é menos importante, mas pode ser uma parte menor da vida diária de alguém". O site Polyamory Today tem sua própria definição de poli hierárquico: "os parceiros não são iguais entre si em termos de poder dentro do relacionamento e coisas como interconexão e intensidade do relacionamento". Arranjos não hierárquicos, por outro lado, rejeitam um sistema hierárquico. Nesses tipos de configurações de relacionamento, os parceiros não são categorizados com termos como "primário" ou "secundário". Isso também significa que nenhuma pessoa tem maior prioridade ou privilégios ou "poder de veto" sobre outros parceiros. Os debates sobre hierarquia são abundantes nesses círculos não convencionais e muitas vezes provocam opiniões fortes, como reflete o blog de Ellison. Embora Ellison veja o formato hierárquico como superior, não há evidências de que um estilo poli seja melhor que outro em termos de satisfação no relacionamento ou segurança no apego. Diria que os estilos são aceitáveis ​​desde que os envolvidos concordem com o acordo em que estão. Os estilos hierárquicos podem deixar mais claras as expectativas sobre os papéis dentro de uma polícula. No entanto, mesmo que Ellison esteja sendo irônica ou sarcástica, acho importante notar que as "ferozes lutas pelo poder" que ela reivindica são contrárias ao espírito do poliamor. O blog Find Poly afirma que advogar sem competir é uma habilidade vital em relacionamentos poliamorosos, sejam hierárquicos ou não hierárquicos. Além disso, para aqueles que não estão familiarizados com o poliamor, a postagem de Ellison pode ser mal interpretada como uma fusão do poliamor contemporâneo com formas não consensuais de não monogamia. Ao defender o harém imperial chinês como modelo, Ellison invoca o legado das sociedades patriarcais nas quais as mulheres serviam como esposas e concubinas. Estudos recentes mostram que a não-monogamia consensual está se tornando mais comum entre os americanos mais jovens. De acordo com uma pesquisa do site YouGov de 2020, 43% dos millennials "provavelmente dirão que seu relacionamento ideal não é monogâmico". Por esse motivo, é mais provável que as postagens de Ellison reflitam mudanças nas normas de relacionamento, em vez de desvios sexuais.
2022-12-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63931133
sociedade
A verdadeira história de 'Peter Chicoteado', cuja foto mudou percepção sobre escravidão nos EUA
A fotografia de um homem escravizado que sobreviveu a uma surra que deixou seu corpo mutilado e com cicatrizes ajudou a revelar a brutalidade da escravidão americana. O ator Will Smith estrela Emancipation — Uma História de Liberdade, que chegou aos cinemas e ao streaming, um filme que conta a história de "Peter Chicoteado" e sua jornada da escravidão ao Exército. Embora sua pele tenha sido esfolada dezenas de vezes pelas agressões e depois dolorosamente cicatrizada, Gordon, um escravizado fugitivo, posou de forma desafiadora para um retrato em 1863. No auge da Guerra Civil dos Estados Unidos — quando os fatos sobre os horrores da escravidão eram frequentemente denunciados como propaganda falsa - a horrível fotografia revelou a verdade inegável. Os abolicionistas apelidaram o homem da foto de "Whipped Peter" ("Peter Chicoteado", em português) e, embora os historiadores tenham debatido seu nome verdadeiro, há poucas dúvidas sobre o impacto que sua imagem teve na psique americana. A fotografia mostrava que "estas eram pessoas reais com experiências reais. Foi tirada para apresentar uma narrativa visual do horror da escravidão durante a Guerra Civil", diz Barbara Krauthamer, uma importante historiadora da escravidão e emancipação dos EUA e reitora da Escola de Humanidades e Belas Artes na Universidade de Massachusetts, em Amherst. Fim do Matérias recomendadas "O que muitas vezes se perde é o foco no próprio homem — a história desse homem que entende que a Guerra Civil é uma oportunidade de literalmente tomar posse de seu corpo e de sua vida." O filme de Will Smith, Emancipation — Uma História de Liberdade, é inspirado na história real de Gordon/"Peter Chicoteado" e dirigido por Antoine Fuqua (de "O Protetor e Invasão à Casa Branca). Smith disse a jornalistas no lançamento do filme que espera que o longa revele o poder do espírito humano. "Este não é outro filme de escravizados. Este é um filme de liberdade", disse Smith. "Acho que é uma história que todos nós precisamos ver, ouvir e sentir." O filme é visto como um possível recomeço para o ator americano, que foi suspenso do Oscar por 10 anos após dar um tapa no rosto de Chris Rock ao vivo. O comediante, que apresentava a cerimônia, havia feito uma piada sobre a aparência da mulher de Smith, Jada, que sofre de alopecia (calvície) e tinha os cabelos raspados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em abril de 1863, poucos meses depois do fim da escravidão pela Proclamação de Emancipação, de Abraham Lincoln (1809-1865), Gordon chegou a um acampamento de soldados da União nos arredores de Baton Rouge, no Estado da Louisiana. Exausto, quase morrendo de fome e vestindo apenas trapos, Gordon desabou ao ver os soldados negros libertos que lutavam para acabar com a escravidão na América, de acordo com uma coluna de dezembro de 1863 no jornal New-York Daily Tribune. Ele imediatamente pediu para se alistar. Durante um exame médico, Gordon disse aos policiais que decidiu fugir depois de sobreviver a uma surra brutal que o deixou à beira da morte e em coma por dois meses. Após 10 dias sendo perseguido pelos pântanos e bayous da Louisiana por cães de caça e caçadores de pessoas que haviam escapado à escravidão, Gordon finalmente chegou ao acampamento da União onde obteve sua tão sonhada liberdade. Ele então revelou suas "costas açoitadas" como prova. Fotógrafos incorporados aos soldados tiraram a agora infame foto de Gordon posado, de costas nuas e com a mão no quadril. O Tribune observa que a visão de seu corpo mutilado "enviou um arrepio de horror a todos os brancos presentes, mas os poucos negros que estavam esperando ... prestaram pouca atenção ao triste espetáculo, cenas tão terríveis eram dolorosamente familiares a todos". De acordo com a Galeria Nacional de Arte, um jornalista de Nova York observou que a imagem deveria ser "multiplicada por 100 mil e espalhada pelos Estados Unidos". E foi exatamente isso que aconteceu. O retrato de Gordon foi tirado em uma época em que o país debatia se o esforço de guerra valia a pena e se homens negros — escravizados ou libertos — deveriam ter permissão para se alistar como soldados. Em seu livro, Envisioning Emancipation: Black Americans and the End of Slavery ("Imaginando a emancipação: negros americanos e o fim da escravidão", em tradução livre), Krauthamer e sua co-autora, a historiadora da fotografia Deborah Willis, descrevem como os avanços na fotografia permitiram que a imagem de Gordon fosse reproduzida de forma acessível em pequenos cartões de notas e amplamente compartilhada. Abolicionistas venderam reimpressões de sua imagem para arrecadar dinheiro para seus esforços. Mas, diz Krauthamer, as reações ao retrato foram variadas. "Era totalmente comum as pessoas dizerem: é falso, não acredito", diz ela. "Os brancos não achavam que os negros eram testemunhas confiáveis, mesmo de suas próprias experiências." Em 4 de julho de 1863, a popular revista Harper's Weekly reimprimiu uma gravura de Gordon / "Peter Chicoteado" ao lado de imagens de Gordon em uniforme da União. O artigo anexo tinha o título "Um negro típico" e descrevia a angustiante fuga de Gordon da escravidão e seu valente registro de serviço no Exército da União. Mesmo para um artigo antiescravista, os historiadores notaram os tons de racismo, já que o autor do artigo se esforçara para descrever a "inteligência e energia incomuns" de Gordon. A Guerra Civil foi um dos primeiros conflitos a ser documentado através da fotografia — mas muito poucas fotos capturam os horrores e a brutalidade da escravidão tão claramente quanto a imagem de "Peter Chicoteado". Embora suas imagens tenham se tornado uma ferramenta eficaz para mensagens e propaganda antiescravidão, Krauthamer diz que muito pouco se sabe sobre a vida e o legado de Gordon depois de ingressar no Exército da União. "Há um argumento a ser feito, que [o retrato] era apenas outra maneira de objetivar um corpo negro", diz ela, acrescentando que as discussões modernas sobre o retrato de Gordon ressaltam o poder da fotografia para documentar a verdade. Menos de um século depois que o retrato de Gordon foi tirado, a mãe de Emmett Till, Maime, realizou um funeral de caixão aberto depois que seu filho foi brutalmente sequestrado, torturado e linchado porque, em suas palavras: "Queria que o mundo visse o que eles fizeram com meu bebê ." Essa foto do corpo mutilado de Till também chocou a consciência americana e revelou o duradouro legado de racismo nos Estados Unidos. Krauthamer diz que, como historiadora, tenta centralizar não apenas a dor, mas também a alegria da experiência negra americana em seu trabalho. "Acho que grande parte dos meus estudos se concentrou em 'qual é a história verdadeira?' E eu só quero saber como era a vida dele? Quem ele amava? O que ele esperava alcançar?" "Minha esperança é que o filme de Will Smith e esta fotografia abram um portal para isso — nossa capacidade de imaginar essa história e essa humanidade", acrescentou ela.
2022-12-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63945920
sociedade
O que diz o inédito manuscrito assinado por Darwin que acaba de ser leiloado por valor recorde
Um pedaço de papel no qual Charles Darwin expôs sua defesa definitiva da teoria da evolução foi vendido por um preço recorde na Sotheby's, uma tradicional empresa de leilões sediada em Londres, no Reino Unido. O manuscrito, assinado pelo grande cientista, foi vendido por US$ 882 mil (R$ 4,6 milhões). Alguns especialistas do ramo pensaram que a peça rara poderia sair por um valor mais alto, mas o preço supera confortavelmente qualquer outra quantia paga por objetos de Darwin. Darwin escreveu o documento em 1865 para uma revista de celebridades. A publicação, chamada The Autographic Mirror, imprimia reproduções da caligrafia e assinaturas de pessoas famosas, junto com as biografias delas. Fim do Matérias recomendadas Quando o editor pediu a Darwin que contribuísse, o cientista aproveitou a oportunidade para responder aos críticos. À época, seis anos após o lançamento da primeira edição do livro A Origem das Espécies, era comum ouvir que a teoria da evolução não seria capaz de explicar como a vida surgiu no planeta. Darwin admitiu que, de fato, seu trabalho não falava da origem, mas argumentou que isso era irrelevante para as suas observações de como a vida na Terra evoluiu e se diversificou. Tal como acontece com a gravidade, a "essência" pode não ser compreendida, mas as equações de Isaac Newton certamente funcionam, pontuou o cientista. Esse argumento foi retirado da terceira edição do famoso livro de Darwin. O comprador da carta no leilão realizado nos últimos dias preferiu ficar anônimo. O preço de US$ 882 mil já inclui os encargos da Sotheby's para lidar com a transação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O preço mais alto pago anteriormente por um manuscrito de Darwin era pouco mais de £ 400 mil (R$ 2,6 milhões). A carta de Darwin diz: Agora, recapitulei os principais fatos e considerações que me convenceram completamente de que as espécies foram modificadas, durante um longo curso de descendência, pela preservação ou seleção natural de muitas variações sucessivas e favoráveis. Não posso acreditar que uma teoria falsa explicaria, como me parece que a teoria da seleção natural explica, as várias grandes classes de fatos especificados acima. Não é uma objeção válida que a ciência ainda não tenha lançado luz sobre o problema muito mais elevado da essência ou da origem da vida. Quem pode explicar qual é a essência da atração da gravidade? Ninguém agora se opõe a seguir os resultados desse elemento desconhecido de atração; no entanto, Leibnitz anteriormente acusou Newton de introduzir "qualidades ocultas e milagres na filosofia". - Charles Darwin.
2022-12-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63956173
sociedade
O que é a 'doença dos prêmios Nobel', que pode afetar as mentes mais brilhantes
Ela costuma ser chamada de "doença do Nobel", "efeito Nobel", "síndrome Nobel" e até de "nobelite". Ganhar o prestigiado prêmio não é condição fundamental para sofrer do problema, mas a longa lista de vencedores da Academia Sueca que sucumbiram a ele não deixa de ser impressionante. De Pierre Curie (Física, 1903) a Santiago Ramón y Cajal (Medicina, 1906), passando por Richard Smalley (Química, 1996) e Luc Montagnier (Medicina, 2008), para citar apenas alguns. Longe de ser um diagnóstico oficial, o termo é usado de forma irônica para expressar o fato de que alguém altamente inteligente e capaz em uma área do conhecimento não necessariamente terá o mesmo desempenho em outra. "Você não esperaria que pessoas muito inteligentes fizessem coisas estúpidas. Mas o fato de que existem cientistas vencedores do Prêmio Nobel que também são conhecidos por endossar ideias estranhas e alimentar crenças erradas deixa claro que há uma desconexão entre ciência ou êxito científico e racionalidade", argumenta Sebastian Dieguez, pesquisador em neurociência do Laboratório de Ciências Cognitivas e Neurológicas da Universidade de Friburgo, na Suíça, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas O surpreendente número de ganhadores do Prêmio Nobel que abraçam teorias que beiram o absurdo, acrescenta Shauna Bowes, doutoranda em psicologia clínica na Universidade Emory, nos Estados Unidos, mostra que "o pensamento crítico está vinculado a uma área específica do conhecimento, e não ao conhecimento em geral". Ou seja, alguém (não necessariamente um Nobel) pode ter um grande conhecimento de biologia, história, psicologia ou o que quer que seja, mas isso não significa que vai aplicar um pensamento crítico quando se trata de astrofísica ou outros temas fora do seu alcance. Quando se tratam de assuntos fora do nosso domínio, tendemos a recorrer a preconceitos ou atalhos mentais para tomar decisões ou dar sentido ao mundo, e não submetemos esses conceitos a uma avaliação rigorosa (como faríamos com temas que nos são familiares). "Na verdade, aplicar o mecanismo de pensamento crítico exige muito mais esforço e consciência do que provavelmente estamos confortáveis ​​em admitir", diz Bowes. Resumindo: a inteligência não nos imuniza contra ideias malucas. Além disso, acrescenta Bowes, "muitas pesquisas mostram que o pensamento crítico é bastante apartado da inteligência". "Enquanto a inteligência é uma habilidade que nos ajuda a resolver problemas e adquirir informações, o pensamento crítico tem a ver com o que fazemos com essa informação e o significado que atribuímos a ela." "A inteligência torna mais provável que possamos pensar criticamente, mas certamente não garante que seremos bons pensadores críticos, especialmente quando as emoções e a intuição entram em cena." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora todos possamos cair na armadilha de tentar discutir com desenvoltura tópicos que estão além da nossa compreensão, Eleftherios Diamandis, professor e chefe de bioquímica clínica do Departamento de Medicina Laboratorial e Patobiologia da Universidade de Toronto, no Canadá, acredita que o caso do Nobel é especial, e limita a "nobelite" exclusivamente ao prêmio. "O Nobel é muito diferente de qualquer outro prêmio que um cientista pode ganhar. É uma distinção única que torna seu ganhador 'imortal'. Ninguém se lembrará de você se você ganhou um grande prêmio em outro lugar, mas o mundo inteiro vai se lembrar de você se você for um ganhador do Prêmio Nobel", ressalta. "Esse reconhecimento faz com que os laureados sejam tratados de forma diferente, como se fossem celebridades, e o perigo é que alguns, mas não todos, acreditem que a medalha dá a eles a oportunidade de realizar projetos e atividades com os quais não estão familiarizados." "Um exemplo clássico é o de Frederick Banting, que descobriu a insulina no início dos anos 1900. Assim que curou alguns pacientes com diabetes, pensou que poderia curar o câncer." "Ele tentou, mas, como sabia tão pouco sobre o assunto, é claro que não conseguiu", diz. Para Diamandis, a nobelite é um comportamento narcisista (semelhante à húbris ou síndrome de húbris, conceito que descreve o orgulho extremo, a arrogância e a confiança excessiva associada ao poder) assumido por alguns dos premiados, que acreditam ter poderes sobre-humanos e a capacidade de resolver qualquer problema que surja em seu caminho. Linus Pauling (1901-1994) Cientista americano ganhador de dois prêmios Nobel (Química, em 1954; Paz, em 1962), ele foi um pioneiro da química moderna com suas descobertas sobre a natureza das ligações químicas e a estrutura molecular da matéria, aplicando a mecânica quântica. Em paralelo, Pauling chegou a defender que altas doses de vitamina C poderiam ser eficazes na cura de doenças como o câncer e a gripe comum. Seus estudos continham múltiplos erros, e a eficácia da vitamina C para tratar essas doenças nunca foi comprovada. James Watson (1928-presente) Cientista americano, ele recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 1962 (que dividiu com Maurice Wilkins e Francis Crick) por sua descoberta da estrutura de dupla hélice do DNA, considerada um divisor de águas da ciência moderna. Watson endossa ideias pseudocientíficas racistas, que argumentam, por exemplo, que negros são menos inteligentes que brancos — e que as diferenças de QI se devem a fatores genéticos. O biólogo também já afirmou que a exposição à luz solar em regiões próximas ao Equador aumenta o desejo sexual, e que pessoas gordas são menos ambiciosas. Luc Montagnier (1932-2022) O virologista francês Luc Montagnier recebeu o Prêmio Nobel de Medicina em 2008 por ter conseguido isolar o vírus da imunodeficiência humana (HIV) pela primeira vez. Um ano depois de ser agraciado com o prêmio, ele sustentava, sem nenhuma comprovação, que a água guardava a memória de ondas eletromagnéticas supostamente emitidas pelo DNA de vírus e bactérias. Ele também recomendou a ingestão de mamão fermentado contra a doença de Parkinson e criticou as vacinas contra a covid-19, que acusou infundadamente de ser a causa do surgimento de novas variantes do vírus. Ivar Giaever (1929-presente) Físico americano de origem norueguesa, ele dividiu o Prêmio Nobel de Física com Leo Esaki e Brian Josephson em 1973, por "suas descobertas sobre fenômenos de tunelamento em sólidos". Em diversas ocasiões, o pesquisador expressou seu ceticismo em relação ao aquecimento global, que disse não representar um problema — e descreveu como uma "nova religião". Por outro lado, Diamandis lembra que o Nobel costuma ser concedido várias décadas depois que o pesquisador fez sua descoberta, que não é exatamente quando suas habilidades cognitivas estão no auge, observação com a qual Dieguez concorda. "A idade média do Prêmio Nobel é em torno de 70 anos. Os anos mais brilhantes dessas pessoas já passaram", diz o neurocientista, que também questiona a visão do prêmio como sinal de inteligência ou genialidade. "Você pode descobrir algo porque teve sorte, porque você era a pessoa certa no lugar certo." "Também tem havido um número crescente de críticas ao Nobel, pelo menos no âmbito científico, porque ele premia o indivíduo, e sabemos que a ciência geralmente é um processo social", diz Dieguez. O maior problema, argumenta, é que algumas dessas pessoas com conhecimento profundo em uma área específica, que a maioria de nós não entende, se tornaram uma voz importante no debate público. "Mas o fato de você ter feito uma descoberta importante em um tema muito específico não lhe dá o direito de pensar que tem ideias melhores do que os outros em outras áreas", conclui Dieguez. A humildade, até agora, continua sendo um dos melhores remédios.
2022-12-11
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63854027
sociedade
Qual o efeito dos atos de bondade para o sucesso profissional?
Todos nós provavelmente concordamos que ser gentil é bom, ético e agradável — mas será que isso leva ao sucesso profissional? Afinal, gentileza não é colocar os interesses das outras pessoas em primeiro lugar? Vamos analisar três pessoas conhecidas: James Timpson, dono da rede de sapatarias Timpson; Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia; e Gareth Southgate, um dos técnicos mais bem-sucedidos da história da seleção masculina de futebol da Inglaterra. Todos eles são, sem dúvida, "vencedores" nos seus respectivos campos de atuação, mas todos colocam a bondade no centro da sua estratégia de sucesso. O que eles descobriram é que uma abordagem de maior compaixão e aparente suavidade — seja para os negócios, a política ou o esporte — traz resultados positivos, beneficiando não apenas as pessoas que trabalham para eles, mas eles próprios. Fim do Matérias recomendadas A noção tradicional de que você precisa ser implacável, determinado e focado antes de qualquer coisa, se quiser ser bem-sucedido, está sendo desconstruída. Há cada vez mais evidências científicas de que pessoas gentis podem ser vencedoras. Em 2020, fiz parte de uma equipe da Universidade de Sussex, na Inglaterra, que realizou um dos maiores estudos do tipo sobre comportamentos públicos de bondade. Mais de 60 mil pessoas de 144 países aceitaram responder a um extenso questionário chamado The Kindness Test (Teste da Bondade, em tradução livre), que foi lançado nos programas de rádio que apresento — All in the Mind, na Rádio 4 da BBC, e Health Check, no Serviço Mundial da BBC. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quando perguntei onde as pessoas observavam a maioria dos gestos de bondade, o local de trabalho se saiu bem, terminando em terceiro lugar, depois da casa e dos recintos médicos — dois ambientes em que as pessoas presenciavam atos cordiais, e a gentileza era verdadeiramente valorizada. Isso significa que um ambiente com fama de ser selvagem e impessoal, onde as pessoas concorrem por cargos, pode abrigar mais empatia e consideração do que se pensa. Precisamos ter em mente que este foi um estudo de autosseleção — e, à primeira vista, uma pesquisa conduzida por uma consultoria de marca com 1,5 mil profissionais do Reino Unido apresentou resultados menos positivos. Apenas um em cada três participantes concordou inteiramente que seu chefe imediato era gentil, e um quarto deles considerou o líder da sua organização rude. Mas, analisando os resultados com mais detalhes, verificamos que os participantes que tinham chefes gentis eram mais dispostos a afirmar que permaneceriam na empresa pelo menos por mais um ano, que o trabalho produzido pela sua equipe era excelente e que a sua empresa tinha bons resultados financeiros. Ao mesmo tempo, 96% dos funcionários que participaram da pesquisa afirmaram que ser gentil no trabalho era importante para eles, o que sugere que a gentileza realmente importa, se uma organização deseja ter sucesso. Esta ideia é confirmada pela pesquisa do psicólogo americano Joe Folkman, especializado em psicometria (o ramo da psicologia que se dedica a testes e medições). Ele estudou as avaliações de feedback de mais de 50 mil líderes e concluiu que os chefes considerados mais agradáveis pelos seus funcionários também costumavam apresentar melhores avaliações de eficácia. E talvez o mais revelador seja que eram muito raros os casos em que alguém tinha uma avaliação baixa em agradabilidade e alta em eficácia — havia apenas uma chance em cada 2 mil de isso acontecer. Folkman também concluiu que empresas com líderes agradáveis apresentavam resultados melhores em uma série de avaliações positivas, incluindo a lucratividade e a satisfação dos clientes. É significativo que, no campo da pesquisa empresarial, a liderança gentil seja mais frequentemente chamada de liderança "ética" — talvez porque soe menos suave. Mas, seja qual for o nome dado, estudos demonstraram que ela pode gerar uma atmosfera de trabalho mais positiva e melhor desempenho dos funcionários. O comportamento positivo pode influenciar o ambiente de trabalho, segundo um estudo do psicólogo organizacional Michelangelo Vianello, da Universidade de Pádua, na Itália. Ele visitou um hospital público perto de Pádua e perguntou aos enfermeiros sobre seus chefes, de forma confidencial, incluindo até que ponto eles eram justos e abnegados e se defendiam suas equipes. Quando a avaliação era positiva, os enfermeiros eram mais dispostos a manifestar o desejo de fazer algo de bom por alguém, para serem mais parecidos com seu chefe ou para se tornarem pessoas melhores. Há evidências de que até mesmo pequenos gestos de bondade e cooperação de qualquer pessoa podem fazer a diferença no ambiente de trabalho. Existe na psicologia algo chamado "comportamento de cidadania organizacional". Um exemplo disso pode ser consertar a impressora, em vez de deixá-la quebrada para o próximo colega arrumar, ou regar as plantas no escritório. Essas ações não são exigidas como atribuições do cargo, mas, se as colocarmos em prática, o ambiente de trabalho fica um pouco melhor para todos. E elas têm mais importância do que você imagina. Em 2009, o pesquisador Nathan Podsakoff, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, sintetizou em uma meta-análise as conclusões de mais de 150 estudos diferentes. Os resultados foram claros. Esse tipo de comportamento, embora pequeno isoladamente, foi associado a um melhor desempenho no trabalho, produtividade, satisfação dos clientes e eficiência. Existe uma área em que você pode pensar que não há vantagem em ser gentil — o mundo da política, no qual reina o "salve-se quem puder". Mas, mesmo na política, há evidências de que um estilo mais gentil ou cordial ainda pode levar você ao topo, como Jacinda Ardern mostrou na Nova Zelândia. Mas e os políticos mais indelicados, como Donald Trump? Seu sucesso não mostra que uma abordagem mais dura acaba por prevalecer? Entre 1996 e 2015, o acadêmico Jeremy Frimer analisou a linguagem empregada pelos membros do Congresso americano durante os debates em plenário. No seu estudo, ele demonstrou que os índices de aprovação dos congressistas homens e mulheres eram menores quando eles eram incivilizados nos seus discursos, e aumentavam quando eles eram mais educados e generosos. Mais recentemente, a equipe de Frimer analisou as reações aos tuítes de Donald Trump, antes dele ser expulso da plataforma, concluindo que poucos dos seus apoiadores "curtiam" ativamente seus tuítes mais grosseiros. Os tuítes não os impediram de apoiar Trump, mas eles continuaram a apoiá-lo apesar — e não por causa — da incivilidade dele. É claro que há vários exemplos de pessoas que se dão bem na vida e são egoístas e grosseiras com os demais. Mas a questão é que, apesar do que observamos no programa O Aprendiz ou na série Succession, você não precisa ser desagradável e insensível para ter sucesso nos negócios ou em outros setores altamente competitivos da vida. Você não vai ser um vencedor simplesmente por ser gentil, claro — também é preciso motivação, dedicação e habilidade —, mas há cada vez mais evidências de que demonstrar um pouco de gentileza enquanto busca seu objetivo, não é impedimento para o sucesso. * Claudia Hammond é autora do livro The Keys to Kindness: How to be kinder to yourself, others and the world ("As chaves para a bondade: como ser mais gentil com você, com os outros e com o mundo", em tradução livre), publicado pela editora Canongate.
2022-12-11
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-63937204
sociedade
O que é o ‘teto de papel’ que afeta as oportunidades de trabalho de milhões nos EUA
Imagine que você encontre uma oferta de emprego que parece ideal para suas habilidades, mas não pode se candidatar porque o cargo exige um diploma universitário que você não tem. Nos EUA, costuma-se dizer que as pessoas que passaram por este tipo de experiência foram barradas pelo chamado "teto de papel". É como recentemente começou a ser chamada a situação dos profissionais que não conseguem atingir um cargo para o qual eles têm capacidade, mas não o grau universitário exigido. Essa limitação é muito difundida no mercado de trabalho e afeta mais de 70 milhões de pessoas nos Estados Unidos, segundo estimativas da ONG Opportunity at Work, que lançou em 2022 uma campanha conjunta com outras instituições para promover conscientização sobre o problema. Os profissionais que sofrem com o "teto de papel" são os chamados trabalhadores "formados por meios alternativos" (STARs, na sigla em inglês). Fim do Matérias recomendadas Eles adquiriram seus conhecimentos e habilidades diretamente no trabalho, por meio de cursos ou programas de formação não acadêmicos, durante o serviço militar ou por outros caminhos que não envolvem a obtenção de um diploma universitário. Segundo a Opportunity at Work, os STARs representam mais de 50% da força de trabalho dos Estados Unidos, incluindo 61% dos cidadãos afro-americanos e 55% das pessoas de origem hispânica. De fato, o número de profissionais sem grau universitário, de forma geral, é ainda maior entre as minorias do que a média do país. Segundo o Escritório do Censo dos Estados Unidos, 62% dos maiores de 25 anos não têm diploma universitário, mas esse percentual sobe para 72% entre os cidadãos afro-americanos e 79% entre os de origem latina. Mas quais são os efeitos concretos do "teto de papel" sobre a vida profissional? A entrada dos profissionais sem formação universitária nos Estados Unidos vem caindo progressivamente ao longo das últimas décadas. A diferença salarial entre as pessoas que possuem ou não grau universitário duplicou nos últimos 40 anos, segundo a Opportunity at Work. A organização afirma que, ajustando-se os salários à inflação, os STARs ganham hoje menos do que em 1976. E o "teto de papel" é uma das razões, já que, na prática, o que ocorre é que os trabalhadores que não cursaram a universidade enfrentam dificuldades tanto para atingir níveis de gerência nas empresas onde trabalham, quanto para conseguir trabalhos com melhor remuneração em outras empresas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E esta última possibilidade ficou ainda mais reduzida depois que as empresas começaram a recorrer a programas de inteligência artificial para seus processos de recrutamento e seleção de pessoal. Estes programas tendem a usar o diploma universitário como filtro e podem até favorecer candidatos egressos de certas universidades específicas, bem como experiências profissionais anteriores que exigiriam o diploma. "O fato de que os algoritmos são tendenciosos não é necessariamente sua culpa. Esses algoritmos são treinados por seres humanos a partir do histórico. E, infelizmente, nosso mercado de trabalho historicamente usou a exigência de diplomas como sinônimo de capacidade", afirma Shad Ahmed, diretor de operações da Opportunity at Work, ao programa de rádio Marketplace, da emissora pública americana NPR. A exigência cada vez maior de diplomas universitários para acesso a certos postos de trabalho faz parte de um fenômeno chamado "inflação de diplomas", segundo um estudo elaborado pela Faculdade de Negócios da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, pela empresa de consultoria Accenture e pela organização Grads of Life. O estudo relata que "a crescente demanda de diplomas universitários de quatro anos para empregos que antes não exigiam formação é um fenômeno importante e generalizado, que está tornando o mercado de trabalho americano menos eficiente". "Ofertas de emprego que eram tradicionalmente consideradas trabalhos de habilidade intermediária (que necessitavam que os profissionais tivessem um diploma superior ao ensino médio, mas não o grau universitário) nos Estados Unidos agora estabelecem, como exigência mínima de educação, um diploma universitário, algo que somente um terço da população adulta tem como credencial", afirma o relatório do estudo. Esta situação se agravou porque, entre 2012 e 2019, 69% dos novos empregos criados nos Estados Unidos correspondem a ocupações que exigem grau de licenciatura ou bacharelado. Não são só os profissionais sem diploma que sofrem com o "teto de papel". As empresas e a economia como um todo também são afetadas, especialmente neste momento em que, paradoxalmente, os Estados Unidos atravessam uma crise de falta de profissionais. Existem no país 10,3 milhões de vagas de emprego em aberto e apenas cerca de 6 milhões de pessoas desempregadas, segundo os números mais recentes do Escritório de Estatísticas Trabalhistas. Esta falta de trabalhadores obrigou as empresas a aumentar os salários oferecidos para recrutar e manter seu pessoal, em um momento em que a economia americana sofre os níveis de inflação mais altos em mais de três décadas. "Enquanto as empresas se esforçam para encontrar talentos em meio à percepção de uma 'falta de capacidades' e 'escassez de mão de obra', muitas das ofertas de trabalho excluíram sem necessidade a metade dos profissionais do país que não têm diploma, mas que detêm as capacidades para conseguir um trabalho com maior remuneração", destaca Byron Auguste, diretor-executivo da Opportunity at Work, em declaração à imprensa em junho de 2022. De qualquer forma, o problema do "teto de papel" antecede à conjuntura econômica pós-pandemia. O estudo da Faculdade de Negócios de Harvard publicado em 2017 já advertia que a prática de exigir grau universitário quando antes não era necessário "impede que as empresas encontrem os talentos de que precisam para crescer e prosperar e dificulta que os americanos tenham acesso a trabalhos que proporcionem a base para um nível de vida digno". Nos últimos meses, uma coalizão formada por cerca de 50 organizações - incluindo empresas como a Chevron, Accenture, Google, IBM, LinkedIn, Comcast e Walmart - idealizou uma campanha para criar consciência sobre o "teto de papel" nos Estados Unidos e incentivar os empregadores a descartar esta prática. Algumas dessas empresas já vêm reduzindo suas exigências de nível universitário. É o caso, por exemplo, da Accenture, que exige diploma para apenas 26% dos seus postos de trabalho. E, na IBM, essa exigência atinge 29% dos cargos.
2022-12-08
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-63897171
sociedade
Por que a confiança em mulheres líderes está caindo, segundo pesquisas
Cada vez mais mulheres ocupam cargos de chefia nas maiores empresas do mundo. Mas as pesquisas indicam que o aumento da representação feminina vem sendo acompanhado por uma queda de confiança nas mulheres em função de liderança. O quadro parece preocupante para aquelas que conseguiram romper a metáfora do teto de vidro que as impede de subir na carreira em áreas dominadas pelos homens. Em novembro, novos dados do Índice de Reykjavik para Liderança — uma pesquisa anual que compara como os homens e as mulheres são observados em termos da sua adequação a cargos de poder — demonstraram que a confiança nas mulheres líderes caiu sensivelmente em 2021. É a primeira queda deste índice desde que a empresa de pesquisas e análises de mercado Kantar Public começou a coletar os dados, em 2018. Nos países do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido), menos da metade dos participantes (47%) declarou sentir-se "muito confortável" com uma mulher como CEO (diretora-executiva) de uma companhia importante no seu país. Este índice era de 54% no ano interior. Os homens são claramente os que mais criticam as mulheres líderes. Um a cada 10 participantes respondeu explicitamente que não se sentiria confortável com uma mulher no cargo de CEO. Fim do Matérias recomendadas E as respostas às questões sobre mulheres líderes na política seguiram um padrão similar. Apenas 45% das pessoas questionadas no G7 afirmaram que ficam "muito confortáveis" com uma mulher chefiando seu governo. Eram 52% em 2021. Embora haja muitas pessoas desapontadas, acadêmicos e especialistas em liderança e gênero, de forma geral, não estão surpresos com as conclusões da pesquisa. Eles têm diferentes teorias para explicar por que a confiança nas mulheres líderes diminuiu. Mas todos eles alertam que corrigir essa falta de confiança é fundamental para erradicar o preconceito que permeia as companhias e instituições em todos os níveis. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As explicações para a redução da confiança nas CEOs mulheres variam, mas muitas delas seguem direções comuns. Alguns especialistas argumentam que a misoginia institucional e o preconceito de gênero foram exacerbados pelo recente panorama político e pela pandemia. Danna Greenberg, professora de comportamento organizacional do Babson College em Massachusetts, nos Estados Unidos, acredita que a saída de muitas mulheres do mercado de trabalho para assumir o cuidado com as crianças e outras tarefas domésticas durante a covid-19 resultou no "fortalecimento dos antigos conceitos tradicionais" sobre o papel das mulheres no trabalho e em casa. Greenberg acredita que isso teve um efeito multiplicador, tornando o "preconceito contra as mulheres mais socialmente aceitável". Ela também destaca a tendência humana natural de demonstrar preferência pelo que é familiar. Os psicólogos chamam este fenômeno de "efeito da mera exposição" — ou o princípio da familiaridade, que pode ficar mais pronunciado em tempos de crise ou incerteza. "Podemos entrar em um período de recessão econômica e isso significa um período de medo", afirma Greenberg. "O medo nos dirige para onde fomos tradicionalmente ensinados que é seguro. E, quando o assunto é liderança, isso infelizmente ainda significa que os homens estejam no comando." De fato, os dados globais da pesquisa da Kantar Public, que envolveram mais de 14 mil pessoas, compilados em parceria com a conferência anual chamada Fórum Global de Reykjavik e a rede de Mulheres Líderes na Política, demonstraram que os níveis de confiança nas mulheres líderes, de forma geral, acompanharam a trajetória dos principais índices globais do mercado de ações nos últimos anos. Quando os índices S&P 500 e FTSE 100 caíram abruptamente, a confiança nas mulheres líderes também despencou. E especialistas acreditam que, em certos países, pode também haver razões políticas para as mudanças de comportamento com relação às mulheres. "Se você tiver uma discussão nacional para saber se as mulheres devem ter o direito de controlar sua própria assistência médica, o que se pode esperar?", questiona Michelle Harrison, CEO global da Kantar Public. Ela se refere à decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que reverteu a decisão do caso Roe x Wade, em junho de 2022. Em outras palavras, se algo tão íntimo e privado quanto os direitos reprodutivos das mulheres é questionado em público, sua autonomia para tomar qualquer atitude na vida pode ser uma questão aberta para debate. E, se um líder poderoso agir de determinada forma, ele também pode ser considerado um sinal de aprovação implícita de certos comportamentos, afirma Greenberg. Por isso, os comentários e comportamentos do ex-presidente americano Donald Trump sobre as mulheres durante seu mandato, por exemplo, podem ter servido para normalizar o machismo. Este fator pode ter sido exacerbado pelas tendências nas redes sociais. Pesquisas indicam que a quantidade de referências online à misoginia violenta disparou nos últimos cinco anos. O predomínio de conteúdo misógino ou que incentiva a violência contra as mulheres encontrado online é uma causa direta da cultura do machismo na vida diária, segundo a escritora, ativista e pesquisadora britânica Laura Bates escreveu no seu livro Men Who Hate Women ("Homens que odeiam as mulheres", em tradução livre), publicado em 2020. Esta situação traz consequências reais para as mulheres. Em um documento publicado em 2021 sobre a comunidade militar nos Estados Unidos, as acadêmicas Kyleanne Hunter e Emma Jouenne concluíram que as redes sociais têm grande responsabilidade pela difusão de desinformação sobre a capacidade das mulheres de atender aos padrões físicos necessários para o combate armado e pelo impacto negativo das mulheres sobre a eficiência dessas unidades. Um estudo de 2020, realizado pela organização britânica Hope Not Hate, também determinou a conexão entre o que acontece na internet e os comportamentos no mundo real. O estudo demonstrou que, embora as gerações mais jovens normalmente tenham visões mais progressistas que as anteriores, a metade dos homens jovens pesquisados afirmou que, na opinião deles, o feminismo "foi longe demais". Os pesquisadores concluíram que o antifeminismo atrai homens jovens que cresceram no ambiente online e podem "sentir-se fragilizados em uma era de mudança das normas sociais". Refletindo este fenômeno, o Índice de Reykjavik para Liderança deste ano demonstra que, em certos países como o Japão e a Alemanha, os jovens realmente têm visões menos progressistas que as gerações anteriores. Isso significa que eles podem estar menos dispostos a confiar em mulheres líderes, segundo os especialistas. Outra teoria para a queda da confiança afirma que os comportamentos negativos sobre as mulheres líderes foram exacerbados simplesmente porque mais mulheres assumiram posições de poder, o que abalou o status quo. "Historicamente, o mercado de trabalho e os governos foram dominados majoritariamente pelos homens e as culturas foram inadvertidamente criadas para os homens. Isso significa que qualquer exceção à norma pode ser recebida com desconfiança", afirma Allyson Zimmermann, diretora-executiva para a Europa, África e Oriente Médio da organização global sem fins lucrativos Catalyst, que trabalha com CEOs e as principais empresas para formar ambientes de trabalho apropriados para as mulheres. Estudos conduzidos pelo centro de pesquisas norte-americano Pew Research Center em 2020, por exemplo, demonstram que cerca de um a cada três homens americanos acredita que os ganhos obtidos pelas mulheres para tornar a sociedade mais igualitária em questões de gênero trouxeram prejuízos para os homens. E as pesquisas de Cecilia Hyunjung Mo, professora de ciências políticas da Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, confirmam esta questão. "Se você estiver acostumado a estar no topo — se é isso que você conhece, como você se socializou e o que a história ensinou a você — é razoável que você comece a acreditar que tem 'o direito de estar no topo'", afirmou ela em uma entrevista recente para a publicação online da universidade. "Por isso, se você começar a acreditar que existem outros grupos deixando você para trás, fazendo melhor que o que você acha que o seu grupo está fazendo, faz sentido que você comece a sentir-se descontente", afirma Mo. Julie Castro Abrams, CEO e presidente da How Women Lead, uma rede norte-americana de mais de 13 mil mulheres dedicadas à promoção da diversidade de vozes e liderança, acredita que outro fator importante é a forma como a sociedade reage às mulheres líderes. "Nós adoramos transformar as mulheres em vilãs. É parte da nossa cultura", afirma ela. "Quando você tem mais mulheres na liderança, esse comportamento começa a surgir, pois a mulher na liderança rompe a narrativa aceita e que todos nós aprendemos... e as pessoas adoram ver as mulheres fracassarem porque uma mulher de sucesso não se encaixa na narrativa que nos ensinaram." Castro também explica que, quando uma mulher importante enfrenta um fracasso, ela é muitas vezes apontada para justificar por que as mulheres não devem ocupar cargos de liderança. Quando Hillary Clinton perdeu a eleição presidencial para Donald Trump, por exemplo, muitos órgãos de imprensa perguntaram se os Estados Unidos realmente estavam prontos para uma mulher presidente. E um estudo de 2016 da Fundação Rockefeller concluiu que, quando uma empresa dirigida por uma mulher enfrenta problemas, as reportagens costumam culpá-la pelas dificuldades com muito mais frequência que no caso de companhias que têm homens como CEOs. Especialistas afirmam que podemos esperar mais críticas sobre possíveis fraquezas pessoais das mulheres à medida que elas continuam ascendendo nas organizações - como ocorreu com a publicidade explosiva sobre a fundadora da empresa Theranos, Elizabeth Holmes, recentemente presa por enganar o público sobre a eficácia da sua tecnologia de exames de sangue. Alguns comentaristas questionaram por que CEOs de outras start-ups de tecnologia acusados de má gestão não enfrentaram tratamento similar, enquanto mulheres empreendedoras contam que agora precisam convencer os investidores que são diferentes de Holmes. Pesquisas também demonstram que as mulheres têm mais probabilidade de serem selecionadas para cargos superiores em empresas que enfrentam dificuldades ou quando o risco de fracasso é particularmente alto. Este fenômeno é chamado de "penhasco de vidro". Em outubro, a rede de varejo americana Bed Bath & Beyond indicou uma mulher para o cargo de CEO em meio a uma queda acentuada dos preços das suas ações. Já Karen Bass assumiu recentemente o cargo de prefeita de Los Angeles, nos Estados Unidos, enquanto a cidade luta contra uma enorme crise de pessoas em situação de rua e de corrupção. E o caso mais notável talvez seja o da ex-primeira-ministra britânica Liz Truss, nomeada em meio a convulsões políticas e condições econômicas instáveis. Seu curto mandato expôs o rochedo de vidro para o cenário mundial. Cada caso de fracasso pode abalar ainda mais a confiança nas mulheres em posições de liderança. O viés de gênero está enraizado em muitas culturas e ambientes de trabalho e se tornou extremamente resistente. Por isso, nunca existirá uma solução rápida para eliminá-lo. Mas, considerando o aumento lento, mas contínuo, da representação feminina no topo das empresas, pode ser razoável considerar que a confiança nas mulheres líderes acompanharia essa tendência gradual e inegável. Por isso, os últimos dados são particularmente deprimentes, segundo Michelle Harrison, da Kantar Public. "Estou realmente batalhando para encontrar razões para ser otimista", afirma ela. Outros concordam que essa pesquisa é um soco no estômago e afirmam que é muito cedo para dizer se é um retrocesso temporário - um passo para trás antes de novos passos para frente - ou uma reversão mais prolongada de possíveis progressos anteriores rumo à igualdade de gênero. Para os especialistas, a evolução do cenário político, da economia e dos fatores sociais provavelmente irá determinar a trajetória da confiança nos próximos anos. Mas um fator fundamental a ser lembrado, segundo Harrison, é que não se trata do papel dos indivíduos de um gênero específico. "Não se trata de consertar as mulheres e não se trata de consertar os homens", afirma ela, "mas de mudar normas profundamente arraigadas na nossa sociedade. E, no momento, não está havendo progresso."
2022-12-08
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-63897144
sociedade
Mulheres estão ficando mais 'bravas'? O que mostram 10 anos de pesquisa
Um levantamento anual do instituto de pesquisa Gallup indica que mulheres em todo o mundo estão ficando mais bravas nos últimos 10 anos. Mas por que isso está acontecendo? Dois anos atrás, Tahsha Renee estava de pé em sua cozinha quando foi tomada por uma sensação incontrolável de raiva — ela acabou dando um grito a plenos pulmões. "A raiva sempre foi uma emoção fácil de explorar", diz. Mas Tahsha nunca havia sentido nada igual. Foi no meio da pandemia e ela estava farta. Passou os 20 minutos anteriores andando pela casa listando em voz alta tudo o que a deixava com raiva. Fim do Matérias recomendadas Mas depois do grito ela sentiu uma intensa liberação física. Tahsha, uma hipnoterapeuta e life coach, desde então tem reunido mulheres de todo o mundo no zoom para falar sobre tudo o que lhes dá raiva e depois extravasar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com um levantamento da BBC de 10 anos de dados da Gallup World Poll, as mulheres estão ficando mais irritadas. Todos os anos, a pesquisa entrevista mais de 120 mil pessoas em mais de 150 países, perguntando, entre outras coisas, que emoções elas sentiram durante grande parte do dia anterior. Quando se trata de sentimentos negativos em particular — raiva, tristeza, estresse e preocupação — as mulheres relatam senti-los com mais frequência do que os homens. A análise da BBC descobriu que, desde 2012, mais mulheres do que homens vêm relatando sentir tristeza e preocupação, embora isso tenha aumentado para ambos os gêneros. No entanto, quando se trata de raiva e estresse, a diferença com os homens está aumentando. Em 2012, ambos os sexos relataram raiva e estresse em níveis semelhantes. Nove anos depois, as mulheres estão mais irritadas — por uma margem de seis pontos percentuais — e também mais estressadas. E houve uma variação particular na época da pandemia. Isso não surpreende a terapeuta americana Sarah Harmont. No início de 2021, ela reuniu um grupo de pacientes do sexo feminino para gritarem juntas. "Sou mãe de dois filhos pequenos e trabalhava em casa. Sentia uma frustração intensa e profunda que estava se transformando em raiva total", diz ela. Um ano depois, ela entrou em campo novamente. "Esse foi o grito que viralizou", diz ela. Foi captado por um jornalista em um dos grupos online de sua mãe participava e, de uma hora para outra, Sarah passou a receber telefones de repórteres de todo o mundo. Ela acredita que tocou em algo que as mulheres de todos os lugares estavam sentindo, uma intensa frustração de que o fardo da pandemia estava caindo desproporcionalmente sobre elas. Seu dispositivo não consegue visualizar esta imagem Uma pesquisa de 2020 com quase 5 mil pais em relacionamentos heterossexuais na Inglaterra descobriu que as mães assumiram mais responsabilidades domésticas durante o lockdown do que os pais. Como resultado, elas reduziram suas horas de trabalho. Isso acontecia mesmo quando elas eram as que mais ganhavam na família. Em alguns países, a diferença entre mulheres e homens que dizem ter sentido raiva no dia anterior é muito maior do que a média global. No Camboja, a diferença foi de 17 pontos percentuais em 2021, enquanto na Índia e no Paquistão foi de 12. A psiquiatra Lakshmi Vijayakumar acredita que este é o resultado de tensões que surgiram à medida que mais mulheres nesses países se tornaram educadas, empregadas e economicamente independentes. "Ao mesmo tempo, elas estão amarrados por sistemas e cultura arcaicos e patriarcais", diz ela. "A dissonância entre um sistema patriarcal em casa e uma mulher emancipada fora de casa causa muita raiva." Todas as sextas-feiras à noite, na hora do rush em Chennai, na Índia, ela testemunha essa dinâmica em ação. "Você vê os homens relaxando, indo a uma casa de chá, fumando. E você encontra as mulheres correndo para o ônibus ou estação de trem. Elas estão pensando no que cozinhar. Muitas mulheres começam a cortar legumes no caminho de volta para casa no trem." No passado, diz Lakshmi, não era considerado apropriado que as mulheres dissessem que estavam com raiva, mas isso está mudando. "Agora há um pouco mais de capacidade de expressar suas emoções, então a raiva é maior." O efeito da pandemia no trabalho das mulheres também pode estar causando impacto. Antes de 2020, havia um progresso lento na participação das mulheres na força de trabalho, de acordo com Ginette Azcona, cientista de dados da ONU Mulheres. Mas em 2020 parou. Este ano, o número de mulheres no trabalho está projetado para ficar abaixo dos níveis de 2019 em 169 países. Para marcar o 10º aniversário do BBC 100 Women, a BBC encomendou a Savanta ComRes que pedisse às mulheres em 15 países que comparassem o presente com 10 anos atrás. "Temos um mercado de trabalho segregado por sexo", diz a autora feminista americana Soraya Chemaly, que escreveu sobre a raiva em seu livro de 2019, Rage Becomes Her (Raiva se torna ela, em tradução livre). Ela vê muito do esgotamento relacionado à pandemia acontecendo em setores dominados por mulheres, como assistência. "É um trabalho pseudo-maternal e mal pago. Essas pessoas registram níveis muito altos de raiva reprimida, suprimida e desviada. E tem muito a ver com a expectativa de trabalhar incansavelmente. E sem nenhum tipo de limite legítimo". "Dinâmicas semelhantes são frequentemente encontradas no casamento heterossexual", diz ela. Nos Estados Unidos, muito foi escrito sobre o peso da pandemia sobre as mulheres, mas os resultados da Gallup World Poll não indicam que as mulheres são mais raivosas do que os homens. "As mulheres nos Estados Unidos sentem uma vergonha muito profunda pela raiva", pontua Chemaly, e podem ser mais propensas a relatar sua raiva como estresse ou tristeza. Talvez por isso as mulheres americanas relatem níveis mais altos de estresse e tristeza do que os homens. Isso é verdade em outros lugares também. Muito mais mulheres do que homens disseram estar estressadas no Brasil, Uruguai, Peru, Chipre e Grécia. No Brasil, mais especificamente, quase seis em cada 10 mulheres disseram ter se sentido estressadas durante grande parte do dia anterior, em comparação com pouco menos de quatro em cada 10 homens. Bolívia, Peru e Equador também viram uma grande diferença entre os sexos. Na Bolívia e no Equador, quase metade das mulheres disseram ter se sentido tristes durante grande parte do dia anterior — 15 pontos percentuais a mais do que os homens. A tendência das mulheres relatarem emoções negativas com mais frequência do que os homens remonta pelo menos a 2012 nesses países e em muitos parece estar piorando. Mas Tahsha Renee acha que muitas mulheres nos Estados Unidos e em outros lugares já chegaram a um ponto em que podem dizer: "Chega!" "De uma forma que está realmente facilitando a mudança. E elas estão usando sua raiva para fazer isso", argumenta. "Você precisa de fúria e raiva", concorda Ginette Azcona da ONU Mulheres. "Às vezes você precisa disso para agitar as coisas e fazer com que as pessoas prestem atenção e ouçam." Jornalismo de dados por Liana Bravo, Christine Jeanavans e Helena Rosiecka. Com reportagem de Valeria Perasso e Georgina Pearce
2022-12-08
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63886886
sociedade
Indonésia aprova lei que pune sexo fora do casamento com até 1 ano de prisão
O Parlamento da Indonésia aprovou um novo código penal que torna o sexo fora do casamento crime — punível com até um ano de prisão. Faz parte de uma série de mudanças que, segundo os críticos, representam um retrocesso nos direitos da população. O novo código penal, que só entrará em vigor daqui a três anos, também inclui a proibição de insultar o presidente e se manifestar contra a ideologia do Estado. Válida tanto para indonésios quanto estrangeiros, a nova legislação contempla várias leis de "moralidade", que tornam ilegal que casais que não são casados morem juntos e façam sexo. Grupos de direitos humanos dizem que isso afeta desproporcionalmente mulheres, pessoas LGBT e minorias étnicas no país. Fim do Matérias recomendadas As denúncias de sexo fora do casamento vão poder ser feitas pelo parceiro ou pelos pais da pessoa. O adultério também será um crime pelo qual pode-se ir preso. Manifestantes realizaram pequenos protestos contra a nova legislação fora do Parlamento, na capital Jacarta, nesta semana. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ativistas de direitos humanos dizem que o novo código também inibe a expressão política e reprime a liberdade religiosa. Há agora seis leis contra blasfêmia no código, incluindo apostasia — renunciar a uma religião. Pela primeira vez desde a independência, a Indonésia vai tornar ilegal persuadir alguém a ser descrente. Novos artigos contra difamação também tornam ilegal insultar o presidente ou expressar opiniões contra a ideologia nacional. No entanto, os legisladores disseram que haviam acrescentado proteção para a liberdade de expressão e protestos de "interesse público". Ainda assim, a organização Human Rights Watch afirmou nesta terça-feira (06/12) que as normas do novo código eram um "desastre" para os direitos humanos. A diretora do grupo para a Ásia, Elaine Pearson, disse à BBC que foi um "enorme revés para um país que tentou se apresentar como uma democracia muçulmana moderna". Andreas Harsano, pesquisador da organização baseado em Jacarta, advertiu que havia milhões de casais na Indonésia sem certidão de casamento, "especialmente entre povos indígenas ou muçulmanos nas áreas rurais", que se casaram em cerimônias religiosas específicas. "Essas pessoas estarão teoricamente infringindo a lei, já que morar junto pode ser punido com até seis meses de prisão", afirmou ele à BBC. Harsano acrescentou que pesquisas realizadas nos Estados do Golfo, onde existem leis semelhantes regendo o sexo e os relacionamentos, mostraram que as mulheres foram mais punidas e mais alvo de tais leis de moralidade do que os homens. Por Jonathan Head, correspondente da BBC no Sudeste Asiático A Indonésia não é um Estado laico. O ateísmo é inaceitável — tecnicamente, você precisa seguir uma das seis religiões reconhecidas. Portanto, é um Estado multirreligioso com uma ideologia oficial, a Pancasila, que não prioriza nenhuma fé sobre a outra. Essa foi a ideia do líder pós-independência da Indonésia, Sukarno, para desencorajar grandes partes do arquipélago, onde os muçulmanos não são a maioria, de se separarem. Mas desde a queda de Suharto — que reprimiu impiedosamente grupos políticos islâmicos —, houve uma crescente mobilização em torno dos valores islâmicos, uma sensação de que o Islã está ameaçado por influências externas, e mais conservadorismo em muitas áreas da ilha de Java, onde mais da metade dos indonésios vive. Os partidos políticos responderam a isso e exigiram leis mais duras para a polícia da moralidade. O atual líder, Jokowi, é da tradição sincrética javanesa que adota uma forma mais flexível do Islã, mas sua principal preocupação é seu legado de desenvolvimento econômico, em vez da tolerância e valores liberais. Ele mostrou com a prisão do ex-governador de Jacarta, Ahok, acusado de blasfêmia, que está disposto a dar aos muçulmanos radicais um pouco do que eles querem. A Indonésia abriga várias religiões, mas a maioria de seus 267 milhões de habitantes é muçulmana. Desde a transição democrática do país em 1998, a nação segue uma crença conhecida como Pancasila, que não prioriza nenhuma fé, mas não aceita o ateísmo. No entanto, a lei local em muitas regiões do país é baseada em valores religiosos. Algumas partes da Indonésia já possuem leis rígidas sobre sexo e relacionamentos com base na religião. A província de Aceh, por exemplo, impõe leis islâmicas rigorosas, punindo as pessoas por jogos de azar, consumo de álcool e encontros com indivíduos do sexo oposto. Muitos grupos civis islâmicos têm pressionado por mais influência na formulação de políticas públicas na Indonésia nos últimos anos. Os legisladores elogiaram na terça-feira a aprovação do novo código penal, que não havia sido totalmente revisado desde que a Indonésia se tornou independente do domínio holandês. Um rascunho anterior do código estava prestes a ser aprovado em 2019, mas gerou protestos em todo o país, com dezenas de milhares de pessoas participando das manifestações. Muitos, inclusive estudantes, saíram às ruas — e houve confrontos com a polícia na capital Jacarta.
2022-12-06
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sociedade
Por que novo game de terror Callisto Protocol foi proibido no Japão
Você está andando por um corredor escuro de uma nave espacial abandonada. Ao fundo, ecoa um rosnado. De repente, um vidro se estilhaça à sua esquerda e um monstro grotesco cai sobre você. As mãos dele arranham seu rosto. Bem-vindo ao The Callisto Protocol, o lançamento que promete fazer aquilo que muitos tentaram desde os primórdios dos videogames: assustar e chocar os jogadores. O avanço da tecnologia permitiu que os criadores desenvolvessem uma das experiências de jogo mais macabras já vistas - e eles não se arrependem. A obra foi banida no Japão porque sua equipe de criação não aceitou alterar o conteúdo para que ele se encaixasse nos regulamentos de classificação local — o que exigiria que as cenas fossem modificadas e atenuadas. Falando à BBC, o diretor criativo, Chris Stone, diz que, "sem dúvida", é "absolutamente válido" colocar cenas sangrentas na tela. Fim do Matérias recomendadas Considerando que algumas experiências de terror dependem da imaginação do jogador para funcionar, Stone e sua equipe também aproveitaram para explorar a potência dos gráficos dos consoles mais recentes para mostrar, em detalhes, o que acontece com os personagens do jogo quando eles encontram um fim repentino e sangrento. Ele argumenta que os fãs de jogos de terror "gostam dessa adrenalina". "É a mesma razão pela qual as pessoas saltam de paraquedas ou de bungee jump", completa. "Sob uma perspectiva mais mórbida, acho que é a mesma razão pela qual as pessoas dirigem devagar quando passam perto de um acidente de carro. Elas gostam de ver as coisas à distância, é um tabu do qual querem fazer parte." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Louise Blaine, especialista em terror e apresentadora do programa Sound of Gaming da BBC Radio 3, no Reino Unido, "é um verdadeiro prazer ficar chocado com sangue", se isso for "justificado" dentro da história que está sendo contada pelo jogo. Callisto Protocol é o mais recente de uma longa linha de títulos, como Resident Evil e Silent Hill, que usaram medo e muito sangue para entreter o público. "Os jogos são capazes de contar histórias cada vez mais inteligentes. E eles podem ser tão sangrentos quanto quiserem para cumprir esse trabalho", avalia Blaine. "Sentir um momento de horror e depois rir da sensação que isso deu é uma parte vital da experiência de terror. Precisamos passar por algo - caso contrário, qual é o sentido?", questiona. Como o cinema e a televisão, os jogos ocasionalmente incomodam alguns que acham desnecessário exibir conteúdos explícitos nas telas. O mundo dos games tem cada vez mais se afastado dessas discussões, assim como o cinema e a televisão. Mas lançamentos como esse são uma oportunidade para alguns voltarem a questionar a validade de conteúdos explícitos e violentos. Blaine acha frustrante que o gênero de terror seja tratado dessa maneira. "Esse debate aparece toda vez que alguém se atreve a fazer algo um pouco diferente, ou tenta empurrar o gênero para uma nova direção", opina. "Desde que Callisto Protocol possa justificar todo o sangue, mesmo que seja pelo terror cômico, eu não posso acreditar que o jogo cause tanta indignação ou desperte algo sombrio. Acho que nos encharcar com sangue de monstros alienígenas só pode ser uma boa coisa." "E a verdade é que, se você não gosta de videogames de terror, ninguém está obrigando você a jogá-los. Desde que seja direcionado para o público certo, as pessoas podem assistir e experimentar o que quiserem." Em boa parte do mundo, Callisto Protocol é um jogo classificado para maiores de 18 anos. Mas há uma diferença fundamental entre os jogos de terror e seus congêneres no cinema ou na televisão. Nos videogames, o jogador está no controle da história e tem a responsabilidade de criar o resultado. Nesse caso, o consumidor não é passivo e escolhe ativamente abrir uma porta misteriosa ou caminhar por um corredor assustador, tornando a experiência mais pessoal e os sustos, mais intensos. Stone diz que o uso do medo e da violência é projetado para recompensar pelas mortes no jogo. "A imaginação do jogador sempre criará tensão, e há muito disso em nosso jogo. As cenas de morte validam essa imaginação", diz o diretor criativo do projeto. Morrer é parte integrante da mecânica de muitos videogames, seja durante uma missão de guerra em Call of Duty ou quando Mario não consegue pular em uma plataforma suspensa no ar. Nesse contexto, a morte costuma ser um evento para aprender a evitar uma nova falha no jogo e a superar um desafio. Stone argumenta que, embora possa ser "mórbido", os momentos mais horríveis de Callisto Protocol são "quase uma recompensa por morrer no jogo". "Existem muitos jogos em que você morre repetidamente da mesma maneira. Com isso, você fica cansado e desliga o aparelho." "Não é isso que queremos. Desejamos que o jogador ache a experiência dolorosamente recompensadora — dessa forma eles vão querer fazer tudo de novo e ver o que acontece a seguir. Nos esforçamos muito para criar todos esses momentos de terror." A atriz Karen Fukuhara interpreta Dani Nakamura, uma personagem central que lidera um grupo de resistência numa prisão. Ela está acostumada a atuar em projetos com muito sangue, já que também interpreta uma das principais personagens da série The Boys, da Amazon Prime. Fukuhara entende que as experiências de terror são populares porque "as pessoas adoram perder o controle", especialmente se "estiverem em um ambiente confortável". "Existe uma espontaneidade que vem com o horror, porque existem esses sustos e o aumento da tensão — especialmente em nosso jogo, que é tão brutal. Obviamente, essas não são coisas que você encontra na vida cotidiana. Ser capaz de fazer isso em um jogo, e ter esse tipo de experiência em um lugar seguro, é o que atrai as pessoas para o gênero", diz. "Adoro fazer projetos como este, o que é engraçado, porque sempre que vejo outros programas com tanto sangue fico assustada! Sempre penso: 'Ah não, por que eles mostraram isso?!'" "Mas sempre que confiro o resultado dos projetos dos quais participo ou quando estou trabalhando nas cenas, sinto uma espécie de conforto. É divertido estar no set de filmagens para trabalhar nessas cenas malucas que vão deixar as pessoas desconfortáveis", conclui. The Callisto Protocol foi feito por alguns dos cérebros por trás da série de videogame Dead Space e é visto como uma espécie de sucessor da franquia. Seja você um fã de terror ou não, uma coisa é certa: o novo jogo não foi feito para os corações mais sensíveis.
2022-12-04
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sociedade
Por que ter 'brancos' na mente pode ser bom para nós
No dia 25 de fevereiro de 1988, em uma apresentação em Worcester, em Massachusetts (EUA), o cantor americano Bruce Springsteen esqueceu os primeiros versos do maior sucesso da sua carreira nos Estados Unidos, a música Born to Run. O conhecimento existente sobre a natureza dos lapsos de memória, estabelecido ao longo de décadas que remontam até a virada do século 20, aponta que isso simplesmente não deveria ter acontecido. Esquecer parece uma consequência inevitável da entropia. Com o passar do tempo, os rochedos tombam sobre o mar, os carros novos se deterioram, os jeans azuis desbotam e a nossa memória, que representa uma espécie de ordenação no nosso cérebro, inevitavelmente acaba se desordenando. O próprio Springsteen diz, na sua música Atlantic City: "tudo morre, querida, é um fato." E por que as informações na nossa mente seriam diferentes? A preservação de informações como letras de músicas exige manutenção constante. Mas, no caso de Born to Run, ninguém pode acusar Springsteen de negligência. Fim do Matérias recomendadas Em 1988, ele certamente já havia repetido milhares de vezes a letra da sua música de sucesso, gravada em 1975. E, quando ele ficou olhando perplexo para o público que o acompanhava em Worcester, sua única reação foi confessar ao microfone: "cantei isso tantas vezes e esqueci a letra". Segundo o modelo entrópico do esquecimento, esse tipo de lapso faz pouco sentido. E, se esse modelo estivesse errado (Springsteen certamente não foi o único a sofrer com os caprichos de um cérebro que se recusa a lembrar alguma coisa), haveria enormes consequências. As escolas e os sistemas educacionais em todo o mundo foram construídos com base nas melhores teorias psicológicas do início do século 20. Se esses modelos de aprendizado - e seu oposto, o esquecimento - estivessem errados, inúmeros estudantes teriam recebido uma péssima educação. E, mesmo fora da escola, quantos de nós teríamos passado incontáveis horas repetindo automaticamente, por exemplo, tacadas de golfe, verbos em francês ou discursos de casamento - em um esforço inútil? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As primeiras tentativas de explicar o esquecimento datam do final dos anos 1800, quando os pesquisadores da psicologia começaram a incorporar ferramentas matemáticas aos seus experimentos - a princípio, lentamente. O psicólogo alemão Hermann Ebbinghaus (1850-1909) estudou seus próprios poderes de memória decorando longas séries de sílabas sem sentido e registrando o quanto ele se lembrava delas com o passar do tempo. Ele concluiu que sua capacidade de relembrar essas informações sem sentido diminuía ao longo do tempo, seguindo uma curva. Ele perdia rapidamente a maior parte das sílabas memorizadas, mas um pequeno percentual delas persistia na memória muito tempo depois dos seus esforços iniciais de memorização. Estes resultados pareciam confirmar a ideia intuitiva de que esquecer algo é consequência da simples erosão das informações. Mas, mesmo nesses estudos iniciais, surgiram algumas falhas nos dados, sugerindo que poderia haver algo no esquecimento que não estávamos conseguindo enxergar. É importante observar que o momento da memorização de Ebbinghaus causou enorme influência sobre o quanto ele se lembrava das informações. O treino espaçado trouxe melhores resultados do que grupos de sessões de memorização reunidas. Esta descoberta foi misteriosa e indicava que a mente fazia certas exigências para memorizar. Mas, ao mesmo tempo, não foi uma surpresa. Na verdade, os benefícios de se espaçar os estudos já eram conhecidos pela maioria dos estudantes. Segundo Ebbinghaus, "o estudante não insiste em aprender seu vocabulário e todas as regras à noite, mas sabe que deve reforçá-los novamente de manhã". No tempo de Ebbinghaus, esse tipo de método quantitativo era uma exceção na pesquisa psicológica. Mas, uma geração depois, ele rapidamente ganhou novos adeptos. Talvez nenhum psicólogo tenha sido mais responsável por essa mudança do que o amante dos números Edward L. Thorndike (1874-1949), da Universidade Columbia, nos Estados Unidos. Ele argumentou que, "se algo existe, existe em alguma quantidade; e, se existe em alguma quantidade, pode ser medido". É quase impossível ignorar a influência de Thorndike sobre a psicologia de pesquisa e a prática educacional. Ele escreveu inúmeros livros e artigos, incluindo livros de aritmética e uma série de dicionários estudantis, além dos primeiros testes padronizados. Thorndike também foi presidente da Associação Norte-Americana de Psicologia e, posteriormente, da Associação Norte-Americana para o Avanço da Ciência. E talvez o mais importante tenha sido o fato de que sua pesquisa formou a base do behaviorismo, influente movimento que surgiu na Psicologia em meados do século passado. Essa corrente tenta explicar os comportamentos puramente em função do condicionamento ambiental, sem a interveniência de processos mentais. As pesquisas iniciais de Thorndike referiram-se ao aprendizado animal e frequentemente incluíram gatos, que ele costumava observar tentando escapar de gaiolas resistentes. Suas observações geraram três leis básicas de aprendizado, igualmente válidas para seres humanos e animais. Elas abordavam como o cérebro "marca" as associações (o que ele chamou de Lei do Efeito), sob quais condições ocorre o aprendizado (sua Lei da Prontidão) e como as memórias são mantidas ou esquecidas - sua Lei do Exercício, que é divida em subteorias de uso e desuso. A teoria do desuso é simples. Se você não usar a recordação, você a perde. Já o uso pode preservá-la, mas só quando acompanhado de algum tipo de recompensa satisfatória - como apreciar o som de uma multidão aplaudindo, por exemplo. A teoria do esquecimento de Thorndike acompanha, em grande parte, as observações de Ebbinghaus. Mas ela não explica o fato, ainda misterioso, de que a memorização espaçada aparentemente torna as informações mais resistentes ao esquecimento. Os cientistas cognitivos só viriam a criar um modelo de esquecimento que explicasse satisfatoriamente essa questão décadas depois. Mas, enquanto isso, as três leis de aprendizado de Thorndike intensificaram as tentativas de padronização da educação no início do século 20. É preciso deixar claro que Thorndike não foi o único responsável pelas formas de regularização da educação adotadas em todo o mundo no século 20. Mas suas ideias - que o aprendizado seria quantificável e que alguns alunos seriam naturalmente melhores do que outros - apoiavam visões de escola com condições rigidamente padronizadas, não só em termos de exames, mas também do tempo passado nas carteiras, do tamanho e da forma das salas de aula, de pedagogia e das medidas de avaliação dos estudantes. Essas condições intercambiáveis permitiam a comparação dos estudantes entre si, supostamente para fins de meritocracia. Na padronização da educação e nas pesquisas contínuas sobre o aprendizado, o esquecimento ficou um tanto menosprezado. Mas sua importância começou a aumentar graças a duas linhas de pesquisa separadas, iniciadas nos anos 1960 e 1970. Uma dessas pesquisas trata dos neurônios e é conduzida por meio de eletrodos minúsculos implantados nas células. Já a outra opera em nível de psicologia cognitiva e utiliza questionários inteligentemente elaborados. Em nível celular, o neurocientista Eric Kandel, em uma série de estudos que renderam o prêmio Nobel, demonstrou que as memórias são preservadas na forma de conexões fortalecidas entre os neurônios. Ele mostrou que os regimes de treinamento, sejam eles conduzidos em animais intactos, vivos e em aprendizado ou estimulando neurônios eletricamente em uma placa, criam esse reforço das conexões. E, como Ebbinghaus observou pela primeira vez, o treinamento (memorização ou estudo) com maior intervalo programado entre as sessões fez com que essas conexões fossem mais duradouras. Este é um fato que permanece verdadeiro em todo o reino animal, desde as lesmas-do-mar até os mamíferos. A estrutura celular responsável pela manutenção das lembranças pode então ser prejudicada em favor da preservação de informações que nós, animais, encontramos repetidamente. Mas o que acontece exatamente nos espaços entre esses regimes de treinamento, prática ou estudo? Em nível celular, parte da resposta pode ser que alguns dos mecanismos envolvidos na preservação das lembranças parecem precisar de algum tempo de inatividade - períodos de recarregamento, na verdade, antes que os neurônios possam retornar ao trabalho de fortalecimento das suas conexões. Mas uma resposta diferente, talvez complementar, está chegando ao conjunto de pesquisas da psicologia cognitiva. Diversos estudos indicam que espaços no cronograma de estudos ou memorização de uma pessoa são tão úteis porque, ao contrário do esperado, eles criam a oportunidade de se ter um pouco de esquecimento saudável. Para entender como o esquecimento pode ser útil, é importante reconhecer, em primeiro lugar, que a memória nunca é simplesmente forte ou fraca. Na verdade, a facilidade com que você pode recuperar uma recordação (sua capacidade de recuperação) é diferente da extensão da sua representação na mente (sua capacidade de armazenagem). O nome do seu pai ou da sua mãe, por exemplo, seria um exemplo de recordação com alta capacidade de armazenagem e de recuperação. Um número de telefone que você teve na cabeça apenas por um momento uma década atrás pode ser considerado um exemplo de baixa capacidade de recuperação e de armazenagem. O nome de alguém que você conheceu em uma festa poucos minutos atrás pode também ter alta capacidade de recuperação, mas baixa capacidade de armazenagem. E, por fim, a letra de uma música que você cantou milhares de vezes, mas teima em fugir da sua mente enquanto você olha para o público no palco do Worcester Centrum, teria alta capacidade de armazenagem, mas capacidade de recuperação preocupantemente baixa. Mas, com a indicação correta - se o público oferecer os versos iniciais, por exemplo -, a capacidade de recuperação aumenta rapidamente. Os psicólogos tomaram conhecimento da distinção entre armazenagem e recuperação já nos anos 1930, quando o psicólogo John Alexander McGeoch, da Universidade de Missouri, nos Estados Unidos, pediu aos pacientes de um estudo que memorizassem pares de palavras sem relação entre si. Toda vez que eu disser "lápis", por exemplo, você responde "tabuleiro". Ele concluiu que a tarefa ficou muito mais difícil quando, antes de pedir aos pacientes que recitassem o que haviam memorizado, ele apresentava pares enganosos: "lápis" e "queijo", "lápis" e "mesa". Aparentemente, os pares enganosos concorriam com o par verdadeiro pela atenção do memorizador. À medida que esta linha de pesquisa ganhava força, a metáfora do esquecimento mudou. Aparentemente, o esquecimento era menos parecido com um rochedo que desaba lentamente no mar e mais com uma casa no fundo do bosque que fica cada vez mais difícil de encontrar. A casa pode estar perfeita - ou seja, sua resistência de armazenagem permanece alta - mas, se o trajeto até ela ficasse rodeado por outros caminhos igualmente plausíveis que levassem para o destino errado, o mapa mental da pessoa, que antes era claro, podia tornar-se um labirinto. No caso de Springsteen, é fácil observar como sua localização mental pode ter saído dos trilhos. "O motivo do constrangimento aparentemente foi que ele estava muito concentrado na introdução falada, dizendo à audiência como a música havia adquirido um novo significado para ele ao longo dos anos", segundo escreveu o crítico de música do jornal Los Angeles Times dias depois do evento. A nova introdução significava que ele estava procurando a mesma recordação antiga a partir de um conjunto de indicações diferente - um ponto de partida diferente. Subitamente, o caminho até os versos iniciais da música, que antes era confiável, ficou rodeado de trajetos falsos. Mas, rapidamente, a letra veio em um estrondo. E, considerando que, desta vez, a maior acessibilidade da recordação permanecesse, ela teria acompanhado as pesquisas de ponta da época sobre a resistência de recuperação e de armazenagem - medidas que, embora diferentes entre si, não são independentes. Em um documento histórico de 1992 em The New Theory of Disuse ("A nova teoria do desuso", em tradução livre - um título diretamente relacionado a Thorndike), os psicólogos cognitivos Robert e Elizabeth Bjork, da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), nos Estados Unidos, descreveram um nível fascinante de conexão entre a armazenagem e a recuperação. Eles demonstraram que a recuperação de uma memória aumenta sua resistência de armazenagem, mas com retornos reduzidos. Você pode conhecer alguém em uma festa e repetir seu nome para você mesmo, tentando acrescentá-lo à resistência de armazenagem da memória. Mas a repetição não leva você muito longe: a sexta repetição não irá acrescentar muito mais força do que a quinta. O que irá aumentar sua resistência de armazenagem é o que os Bjorks chamam de "recuperação com dificuldade" daquela recordação. Quando o nome estiver quase esquecido, "algum tempo depois, observar a sala e recuperar qual é o nome daquela pessoa pode ser um evento realmente poderoso, em termos de sua capacidade de relembrar aquele nome mais tarde na mesma noite ou no dia seguinte", afirma Robert Bjork para o nosso livro Grasp: The Science Transforming How we Learn ("Compreensão: a ciência transformando como aprendemos", em tradução livre). Ao realizar uma recuperação difícil, você pode aumentar a resistência de armazenagem de uma dada recuperação e também suas possibilidades de recuperá-la no futuro. No exemplo da festa, o intervalo de tempo entre o momento em que você conhece a pessoa e quando você precisa do nome dela mais tarde é o que causa o esquecimento. Mas, em uma série de experimentos anteriores, a partir dos anos 1970, Robert Bjork encontrou outras formas de desorientar seus pacientes de pesquisa nos seus caminhos até a recordação desejada. Por exemplo, ele introduzia dados confusos ou irrelevantes, como fez McGeoch, ou substituía as indicações sensoriais - visões, sons e aromas que possam acionar a memória -, pedindo a eles que relembrem as informações em novos ambientes. E, independentemente da forma do esquecimento, sua superação gerou recordações mais fortes e duradouras. Atualmente, o esquecimento com o passar do tempo é parte de um conjunto maior de abordagens educacionais que os Bjorks chamaram de "dificuldades desejáveis" - estratégias que podem inicialmente perturbar os estudantes, mas que acabam gerando benefícios. O tipo de esquecimento que gera recordações mais fortes e acessíveis pode ser produzido criando espaços no cronograma de estudos de uma pessoa, por exemplo, e também intercalando as sessões de estudo de um paciente com as de outro. Colocar o material de lado e consultá-lo novamente mais tarde também pode eliminar uma falsa sensação de domínio do estudante, pois as lembranças com resistência de recuperação momentaneamente alta podem acabar sendo menos acessíveis alguns dias depois. Nos anos que se seguiram à publicação da Nova Teoria do Desuso, os Bjorks trabalharam para divulgar o esquecimento e outras dificuldades desejáveis - um trabalho necessário pelo simples fato de que a escola tipicamente não é projetada para facilitar os atos benéficos de esquecimento. Longe disso: diversas pesquisas já demonstraram que, no dia de um exame, os estudantes que estudam na última hora, na verdade, atingem melhor desempenho que seus colegas que espaçam os estudos. Somente depois de semanas e meses, o cronograma espaçado começa a levar vantagem, com os estudantes que espaçam seus estudos apresentando desempenho substancialmente melhor que os alunos de última hora. Mas aí, o exame já passou. As estruturas padronizadas de tempo e avaliação educacional, muitas das quais estabelecidas quando as teorias de aprendizado de Thorndike ainda eram novas, até hoje desencorajam o que agora sabemos que são práticas de aprendizado superiores. Mas isso não deve impedir os estudantes de todas as idades - incluindo os adultos no mercado de trabalho - de aproveitar o máximo da nossa ampla capacidade, não apenas de absorver novas informações, mas de ter acesso a elas no momento exato em que precisamos delas. Até o conhecimento que podemos considerar perdido nas areias do tempo pode ainda estar escondido no nosso cérebro, esperando pela indicação correta para vir à superfície. Como Springsteen nos relembra em Atlantic City: embora tudo morra um dia, o verso seguinte diz: "talvez tudo o que morre retorne algum dia". * Sanjay Sarma é professor de engenharia mecânica e chefe de aprendizado aberto do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT, na sigla em inglês), nos Estados Unidos. Sua conta no Twitter é @mitopenlearning. Luke Yoquinto é escritor de ciências e pesquisador do programa AgeLab do MIT. Sua conta no Mastodon é @LukeYoquinto.
2022-12-04
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sociedade
O mito da madrasta malvada que persiste até hoje
O mundo da ficção está repleto de madrastas bastante desagradáveis — algumas delas retratadas como monstros assassinos. A madrasta invejosa da Branca de Neve ou a madrasta de João e Maria, que obriga os enteados a se perderem na floresta, pertencem a uma classe de mulheres malvadas com "apetite voraz", às vezes "até pela carne e sangue ou pelo fígado e pelo coração dos seus próprios parentes", segundo Maria Tatar, professora de literatura, folclore e mitologia da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, no seu livro The Hard Facts of the Grimms' Fairy Tales ("A Cruel Realidade dos Contos dos Irmãos Grimm", em tradução livre). Essas vilãs são mostradas como frias e antagônicas, para dizer o mínimo. Na adaptação de Cinderela feita pela Disney em 1950, por exemplo, a cruel madrasta obriga sua enteada a fazer trabalhos pesados e incentiva as filhas biológicas a rejeitar a irmã postiça. Já o filme O Grande Amor de Nossas Vidas, de 1961, também produzido pela Disney, apresenta duas irmãs gêmeas que foram separadas sem saber quando os pais delas se divorciaram. Elas unem suas forças para derrotar a horrível noiva do seu pai e reunir a família. E, no filme de terror e comédia A Madrasta, de 1989, a personagem interpretada por Bette Davis não é apenas uma madrasta — ela é, literal e figurativamente, uma bruxa. Fim do Matérias recomendadas Por tudo isso, não é coincidência que as madrastas sejam atualmente observadas com menos simpatia do que qualquer outro membro da família. Existem mais de 900 histórias escritas em todo o mundo sobre madrastas maldosas ao longo dos séculos (sem falar na corrente interminável de adaptações cinematográficas) que fazem com que elas, muitas vezes, sejam consideradas menos afetuosas, gentis, alegres e agradáveis — e mais cruéis, injustas e até odiosas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O preconceito pode ser observado até no idioma, pelos nativos de fala inglesa. "Madrasta", em inglês, é "stepmother" — "step" evoluiu do inglês arcaico "steop", que tinha sentido de perda e privação. Mesmo coloquialmente, descrever algo metaforicamente em inglês como "stepchild" ("enteado") indica inferioridade. Famílias com padrastos e madrastas de todos os tipos certamente enfrentam dificuldades e conflitos que podem até reforçar alguns elementos desses estereótipos. Mas não existem evidências reais que sustentem a caricatura perversa da madrasta. Na verdade, existem pesquisas que demonstram que as madrastas podem ser muito benéficas para as famílias, servindo como o laço que une familiares entre si depois de uma separação e fornecendo maior apoio para as crianças que sofrem com a perda. Por que, então, esses juízos hostis persistem? E, com as madrastas se tornando cada vez mais comuns em todo o mundo, será que um dia essas imagens irão desaparecer? O estereótipo da madrasta perversa existe há milênios nos contos de fadas e no folclore em todo o mundo. Algumas histórias datam dos tempos dos romanos. Outras referências podem ser encontradas na Bíblia. Sara, a matriarca que deu à luz Isaac, filho de Abraão, conseguiu com que o pai expulsasse o outro filho, Ismael, para evitar a divisão da herança. A pesquisadora Maria Tatar explica que boa parte das madrastas fictícias conhecidas hoje, assim como outros personagens clássicos, se estabeleceram no nosso imaginário, com ajuda de filmes e livros, a partir de 1812, quando os irmãos alemães Jacob e Wilhelm Grimm publicaram, pela primeira vez, a coleção Contos de Grimm. Os autores usaram fragmentos de histórias orais existentes e se apropriaram de outras para formar novas narrativas. Essa combinação gerou contos de fadas como João e Maria, Cinderela e Branca de Neve. Embora sejam obras de ficção, o foco nas madrastas, de fato, reflete algumas verdades sobre a sociedade do século 19. "Quando esses contos de fadas foram criados, a expectativa de vida era extraordinariamente baixa", afirma Lawrence Ganong, professor emérito de desenvolvimento humano da Universidade de Missouri, nos Estados Unidos. Ganong estudou famílias com madrastas por décadas. Naquela época, as mulheres morriam frequentemente no parto, deixando as crianças aos cuidados apenas dos pais. As madrastas malvadas que apareciam nas páginas dos contos de fadas ofereciam um alerta para que a família tivesse cautela. Os pais deveriam proteger e sustentar os seus filhos e as madrastas deveriam cuidar bem dos seus enteados — ou algo de ruim iria acontecer. As histórias também ofereciam aos leitores soluções terapêuticas seguras para processar sentimentos tidos como tabu, como a raiva materna, segundo Tatar. No século 19, os pais frequentemente se casavam novamente com mulheres mais jovens, que poderiam ter idade próxima de suas enteadas. Nessas circunstâncias, poderiam surgir situações e sentimentos "intensos e estranhos", como a rivalidade pela atenção do pai, "concursos de beleza" entre gerações, como vemos em Branca de Neve, e "um nível considerável de disputas, raiva e conflitos", afirma Tatar. Da publicação dos contos de Grimm pra cá, a madrasta perversa transportou-se das histórias para a vida real. E, mesmo quando o divórcio, o novo casamento e a criação de famílias com madrastas e padrastos ficaram mais comuns no final do século 20, diversos psicólogos ajudaram a diluir a fronteira entre a ficção e a realidade. Algumas pessoas acreditavam que os seres humanos são biologicamente programados para proteger seus filhos genéticos em relação aos enteados, segundo a psicóloga britânica Lisa Doodson, especializada na dinâmica das famílias com madrastas e padrastos. Isso colocaria os enteados em maior risco de sofrer maus tratos. Nos anos 1970, os pesquisadores deram um nome aos casos de abuso por parte de madrastas e padrastos: o Efeito Cinderela. Desde então, estudos concluíram que padrastos e madrastas realmente prejudicam as crianças com mais frequência do que os pais genéticos, mas é importante observar que virtualmente todos os casos de violência envolvem os padrastos — e não as madrastas. Outros estudos também ajudaram a perpetuar o mito, talvez de forma não intencional. Pesquisas dos anos 1980 concluíram que as madrastas admitem que se sentem mais próximas dos seus filhos biológicos que dos enteados, mesmo quando ambos têm o mesmo pai biológico. E as madrastas que têm filhos próprios também afirmam que se sentem menos satisfeitas com seu papel como madrasta. Mas nada disso significa que as madrastas sejam cruéis. Também não foi preciso ter evidências empíricas para que os estereótipos das madrastas horríveis e negligentes fossem mantidos. Eles continuaram se proliferando pelas mesmas razões de séculos atrás, segundo Ganong. As ideias culturalmente dominantes giram em torno da toda importante família nuclear e o relacionamento sagrado entre os pais e filhos biológicos. Ao longo dos anos 1990 e no início dos anos 2000,variações inspiradas em filmes clássicos da Disney — como Branca de Neve: Um Conto de Fadas de Terror, de 1997, e Para Sempre Cinderela, de 1998 — continuaram depreciando as madrastas. A ideia parecia estar firmemente incrustada na psique do público: as madrastas eram cuidadoras negligentes de segunda classe, na melhor das hipóteses (e assassinas abomináveis, no pior dos casos). Mas, apesar da persistência dessas metáforas, existem poucas evidências de que as madrastas se comportem como as imagens caricaturadas da cultura popular, de pessoas sem coração — e muitas evidências demonstram que não é este o caso. "A maioria das madrastas se dá bem com seus enteados", afirma Ganong. Ele leu cerca de 3 mil relatórios de pesquisa sobre esse tema e conversou com incontáveis famílias com madrastas. "As madrastas perversas não aparecem nos dados", concorda o professor e pesquisador Todd Jensen, da Universidade da Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Ele estuda padrões de relacionamento entre padrastos, madrastas e enteados. Em uma pesquisa com 295 enteados realizada em 2021, Jensen concluiu que a maioria deles tinha relacionamentos positivos com as madrastas. Perguntou-se aos participantes o grau de proximidade deles com suas madrastas, o quanto achavam que as madrastas cuidavam deles, se elas eram amorosas e afetuosas e o grau de satisfação com a comunicação e o relacionamento de forma geral. Nesta amostra, a avaliação média da qualidade de relacionamento entre a madrasta e o enteado foi de 3,91 (de um máximo de 5). Esse tipo de relacionamento positivo com a madrasta pode ser muito benéfico para a criança. Em comparação com os relacionamentos mais negativos, Jensen concluiu que ele gera crianças com níveis mais baixos de desconforto psicológico, ansiedade, depressão e solidão causados pela formação da nova família, além de melhores resultados sociais e acadêmicos. As madrastas realmente podem "trazer uma contribuição única para o bem-estar de uma criança", diz Todd Jensen. Isso é especialmente válido após um divórcio, segundo a psicóloga canadense Cara Zaharychuk, que estudou o papel das madrastas nas separações. Ao passar tempo de qualidade com crianças de casais recém-divorciados, Zaharychuk concluiu que as madrastas podem ajudá-las a se sentirem novamente parte de uma família. Elas "podem também ser um apoio incrível para crianças mais novas que sofreram uma perda", afirma Doodson. Pesquisas também relataram que crescer com diversos relacionamentos com adultos traz diversos resultados positivos. Um estudo com quase mil alunos do nono ano nos Estados Unidos demonstrou que ter bons modelos além dos pais biológicos aumentou a resiliência emocional, melhorou o desempenho acadêmico e neutralizou os impactos da dinâmica familiar negativa. As madrastas podem oferecer o mesmo sentido de apoio adicional para as crianças. "Ter mais pessoas que amam e cuidam de você é sempre positivo", afirma Doodson. Isso não significa que famílias com madrastas e padrastos não enfrentem desafios — e alguns deles podem permitir que as caricaturas negativas venham à tona. "Embora sejam imensamente exagerados, esses estereótipos representam algumas das tensões comuns enfrentadas pelas famílias com madrastas e padrastos", afirma Jensen. O que muitos dos antigos contos de fadas destacaram foi uma espécie de batalha por recursos e atenção entre a madrasta e seus enteados. São "desafios muito reais", que podem resultar em sentimentos de ciúmes, segundo Jensen. No tempo dos irmãos Grimm, a maior parte das famílias com madrastas era formada após a morte da mãe biológica. Jensen destaca que, atualmente, o mais provável é que um novo padrasto ou madrasta ingresse na família após um divórcio. E, com a mãe ainda presente, a criança pode ter conflitos de lealdade. A criança não quer que sua mãe biológica "seja substituída". Por isso, ela pode resistir a formar conexão com sua madrasta, por instrução real ou percebida da mãe, segundo Jensen. E esta dinâmica pode ser exacerbada no caso de existir um conflito entre os pais biológicos. E não são apenas as crianças que podem ter problemas para se ajustar à nova dinâmica familiar. A vida também pode ser dura para as madrastas, que vivem em medo constante de serem rotuladas de perversas. Uma pesquisa de 2018, com 134 madrastas moradoras na Nova Zelândia, concluiu que 22% delas alteraram ativamente o seu comportamento para não causar impressões negativas. Isso pode trazer inúmeras consequências. "As madrastas fazem de tudo para ser supermadrastas", afirma Doodson. Mas isso é insustentável e pode ser contraproducente para as crianças, que se ressentem por receberem cuidados excessivos de uma nova figura adulta. Em última análise, as pesquisas indicam que as madrastas não são vilãs, como os livros e filmes podem nos fazer acreditar. Seu papel percebido na família depende de muitos fatores — como a cultura íntima que estão adentrando, os comportamentos da mãe biológica e o que os enteados podem querer ou precisar em termos de cuidados e supervisão — e os dados existentes indicam que seu impacto sobre as famílias, na maioria dos casos, é positivo. "A vida na família com madrastas e padrastos é difícil, mas muitos indivíduos desempenham bem os seus papéis junto aos enteados", afirma Ganong. "É muito ruim que as madrastas também precisem lidar com esses mitos insistentes sobre elas." Atualmente, parece que as madrastas ainda têm de lidar com percepções um tanto duvidosas, enraizadas em estereótipos antigos. Lawrence Ganong realiza frequentemente um exercício de associação de palavras com seus alunos. O termo "madrasta" atrai adjetivos como "malvada, perversa, má ou desinteressada". Muitas madrastas com quem Ganong conversou em suas décadas de pesquisa também relutam em adotar a denominação devido às histórias que ouviram quando crianças. "Para mim, esta é uma indicação de que o estereótipo ainda existe e é potencialmente prejudicial", afirma ele. Mas o fato é que as famílias com madrastas e padrastos estão se tornando mais comuns e isso pode estar mudando a percepção das pessoas. Nos Estados Unidos, por exemplo, as altas taxas de divórcio significam que cerca de 40% das pessoas tinham pelo menos um padrasto ou madrasta em 2011. Naquele mesmo ano, 10% das crianças dependentes no Reino Unido viviam com um padrasto ou madrasta — mas Lisa Doodson suspeita que este número seja subestimado. E dados do censo canadense de 2016 indicam um quadro similar, embora as estimativas não incluam crianças com mais de 14 anos de idade. Enquanto as famílias com padrastos e madrastas se proliferam cada vez mais, existem sinais de que os estereótipos negativos sobre as madrastas estão sendo reduzidos. "Acho que não há dúvida de que o estigma real e tangível em famílias com padrastos e madrastas vem diminuindo, em grande parte porque elas são muito comuns", afirma Todd Jensen. "Se você disser a alguém que tem um padrasto ou que você mesmo é um padrasto ou madrasta, as pessoas muito provavelmente não ficarão chocadas, nem manifestarão oposição." A indústria moderna do entretenimento também conta agora histórias mais variadas de madrastas, desde o filme Lado a Lado, de 1998, até o relacionamento feliz e tranquilo que a personagem Glória tem com seus enteados - quase da mesma idade dela - na série de TV Família Moderna; e o apoio carinhoso que a personagem Juno, grávida, recebe da sua madrasta no filme que leva seu nome, de 2007. Até a Disney pode começar a acelerar este processo algum dia. Ela vem mostrando cada vez mais relacionamentos positivos entre mulheres, como os laços entre as irmãs em Frozen - Uma Aventura Congelante, de 2013, e a avó amorosa de Moana - Um Mar de Aventuras, de 2016. E, em 2020, uma petição no site Change.org pressionou a Disney a, finalmente, apresentar uma madrasta bondosa. Seguindo este progresso, Maria Tatar espera que possamos continuar a reescrever o roteiro das madrastas, de forma que reflita as realidades da sociedade atual. Ela defende a preservação dos registros históricos, mas não acha que devemos reforçar metáforas que possam ser prejudiciais. "As histórias evoluíram", afirma ela. "Devemos reconhecer isso, pois o folclore é nosso para recriarmos."
2022-12-04
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63763967
sociedade
O que é a retroalimentação facial e por que pode te fazer sentir melhor
"Ria, e o mundo inteiro rirá com você. Chore, e você vai chorar sozinho." Dae-su, personagem do filme sul-coreano Oldboy, repete esses versos da poetisa Ella Wheeler Wilcox (1850-1919) enquanto força um sorriso. Ao mesmo tempo, ele tenta entender porque o mantiveram sequestrado durante 15 anos num quarto sem outra companhia senão uma televisão e um quadro com esses versos, para depois o libertarem com um celular e uma carteira cheia de dinheiro. Se quiser saber mais sobre esta misteriosa trama, terá de ver o filme — você não vai se arrepender. Estamos tristes porque choramos ou choramos porque estamos tristes? Um sorriso, mesmo falso, pode nos animar? Charles Darwin, em seu livro A Expressão das Emoções no Homem e nos Animais, de 1872, já descrevia o efeito amplificador das manifestações físicas das emoções (alterações fisiológicas, expressões faciais, etc.) sobre nossas experiências afetivas. Com base nessas ideias, o filósofo americano William James e o médico dinamarquês Carl Georg Lange propuseram há mais de um século que essas experiências seriam determinadas pela percepção de sinais corporais gerados pela atividade do sistema nervoso periférico, como os batimentos cardíacos ou a frequência respiratória. Fim do Matérias recomendadas Desde então, esse tem sido um assunto muito estudado pela ciência. Uma das linhas de pesquisa explora a hipótese da chamada retroalimentação facial. Essa abordagem sustenta a ideia de que a ativação dos músculos faciais envolvidos na expressão de certas emoções influencia diretamente a maneira como as experimentamos. Assim, franzir a testa nos faria sentir raiva, enquanto levantar os cantos dos lábios aumentaria nossa sensação de bem-estar. No entanto, esse procedimento foi criticado pelo fato de que as pessoas podem ter sido influenciadas a gerar um sorriso ou fazer uma cara de raiva — o que interferiria no estado emocional delas. Os resultados mostraram que os participantes que foram forçados a sorrir disseram que se divertiram mais do que aqueles que foram impedidos de fazer o mesmo. Com base neste tipo de achado, foram desenvolvidas algumas estratégias terapêuticas, como as que convidam a sorrir por alguns segundos todos os dias em frente ao espelho para aumentar a sensação de bem-estar. Alguns pesquisadores até propuseram que a injeção de toxina botulínica (que enrijece os músculos) entre as sobrancelhas reduziria os sintomas de depressão. Em um dos experimentos, os participantes tiveram que reproduzir o típico gesto de alegria demonstrado pela fotografia de um ator. Em outro, as pessoas foram instruídas a mover voluntariamente alguns dos músculos envolvidos no sorriso. Quando os participantes foram posteriormente questionados sobre o estado de humor, eles relataram sentir-se mais felizes, mostrando uma mudança semelhante em ambas as tarefas. Além disso, descobriu-se que os efeitos eram independentes de as pessoas saberem que estavam imitando um sorriso ou sendo observadas por uma câmera. No entanto, é importante destacar que o aumento da sensação de felicidade foi pequeno, semelhante ao obtido a partir da visualização de fotos de cachorros ou bebês. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por fim, um grupo de participantes foi submetido ao procedimento do lápis na boca. Nesse caso, o aumento do sentimento subjetivo de felicidade foi mínimo. Em suma, os resultados deste trabalho não fornecem suporte definitivo para a hipótese da retroalimentação facial, mas fornecem uma confirmação importante de que certos movimentos das estruturas envolvidas no sorriso, como o músculo zigomático, ou a imitação de expressões faciais de alegria promovem um estado de bem-estar. Podemos concluir que sorrir é uma ferramenta para elevar nosso humor, embora não seja algo tão potente assim. Então, você já sabe: se quiser sentir-se um pouco mais feliz, levante os cantos dos lábios ou mexa as bochechas (mas não é necessário morder um lápis). *José Antonio Hinojosa Poveda e Pedro Raúl Montoro Martínez são professores titulares do Departamento de Psicologia Experimental, Processos Cognitivos e Fonoaudiologia da Universidade Complutense de Madri e do Departamento de Psicologia Básica I da Universidade Nacional de Educação à Distância (UNED) da Espanha.
2022-12-03
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63755018
sociedade
Por que uma em cada 150 pessoas no mundo está em situação de escravidão
Em todo o mundo, uma pessoa em cada 150 vive em situação de escravidão moderna, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência especializada da ONU. O número total de pessoas afetadas é de 50 milhões — acima dos 40 milhões de apenas quatro anos atrás, segundo a organização. A escravidão moderna é um termo abrangente que descreve a exploração de pessoas por meio de práticas que incluem: "Tudo se resume à exploração de pessoas vulneráveis, geralmente para ganhos econômicos", diz Monti Datta, professor associado de ciência política na Universidade de Richmond, nos Estados Unidos, e ativista contra a escravidão. "Ocorre com base em coerção, que pode ser física ou psicológica." Fim do Matérias recomendadas A OIT diz que 27,6 milhões de pessoas são obrigadas a fazer trabalho forçado. Os trabalhadores migrantes são particularmente vulneráveis ​​a isso. São pessoas de países pobres que são recrutadas para trabalhar no exterior em indústrias como construção, agricultura, confecção de roupas e tarefas domésticas, que ficam presas nesses empregos e não podem viajar para casa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Estimamos que há quatro bilhões de pessoas no mundo que não são protegidas pelo estado de direito", disse Euan Fraser, da organização International Justice Mission UK, que trabalha para acabar com a violência contra as pessoas que vivem na pobreza. "As pessoas são presas em trabalhos forçados e traficadas quando os empregadores podem explorá-las impunemente". Datta diz que a Índia pode ser o pior país para o trabalho forçado. "A grande preocupação é o uso de trabalho forçado em locais como olarias e o uso de mão de obra infantil", diz ele. Acredita-se que 4,9 milhões de mulheres e crianças em todo o mundo são obrigadas a fazer trabalho sexual. "O trauma desse tipo de escravidão talvez seja pior do que o trauma de lutar em uma guerra", diz Datta. "E há um estigma associado, por isso é difícil para os sobreviventes falarem sobre o tema. Pode levar anos para os sobreviventes se recuperarem dos danos físicos e psicológicos." A OIT também diz que 22 milhões de pessoas em todo o mundo estão presas em casamentos forçados. Dois terços deles acontecem na região da Ásia-Pacífico. A Índia e os países vizinhos, como o Paquistão, são particularmente conhecidos pelos casamentos forçados envolvendo pessoas com menos de 18 anos, diz Datta. No entanto, os números da OIT sugerem que os casamentos forçados são mais prevalentes nos países árabes do Golfo — com 4,8 pessoas em cada mil na região em casamentos forçados. Os empregadores privados são responsáveis ​​por 86% do trabalho forçado no mundo (incluindo trabalho sexual forçado). A OIT estima que, em todo o mundo, empregadores lucram US$ 150 bilhões com o trabalho forçado. A organização diz que US$ 51,8 bilhões desse dinheiro foram obtidos por empregadores na região da Ásia-Pacífico, a partir de 15,1 milhões de pessoas em trabalho forçado. Outros US$ 46,9 milhões foram obtidos em países desenvolvidos e na União Europeia. No entanto, diz a OIT, a região que tem mais pessoas em situação de escravidão moderna em comparação com qualquer outro lugar do mundo, em proporção à população, são os estados do Golfo Árabe — com 5,3 em cada mil pessoas presas em trabalho forçado. Euan Fraser, da International Justice Mission UK, diz que o número de pessoas presas ao trabalho forçado está aumentando por causa da pandemia. "Por causa da covid, muitas pessoas ficaram presas no exterior ou perderam seus empregos. Elas estavam mais desesperadas por dinheiro e, portanto, mais vulneráveis ​​aos traficantes", diz. "Foi uma tempestade perfeita para o aumento da escravidão."
2022-12-03
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63833814
sociedade
O pouco conhecido filme de diretora belga eleito o melhor da história em votação de críticos
Um filme dirigido por Chantal Akerman foi eleito o melhor de todos os tempos por um grupo de especialistas. Jeanne Dielman (título original: Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles), dirigido por Chantal Akerman, liderou a votação Sight and Sound do British Film Institute. É a primeira vez que uma obra dirigida por uma mulher chega ao top 10 — a pesquisa, realizada a cada década, foi criticada no passado pela falta de diversidade. O topo do ranking foi mantido por 40 anos por Cidadão Kane, de Orson Welles. Em 2012, filme de Welles foi superado por Um corpo que cai (Vertigo, no título original), de Alfred Hitchcock. Jeanne Dielman, lançado em 1975, é a história de uma viúva belga que se prostitui para sobreviver, mas mata um de seus clientes. O filme dura quase três horas e meia. Fim do Matérias recomendadas Embora não seja tão conhecido fora do mundo da crítica de cinema quanto os vencedores anteriores, foi elogiado como uma "obra-prima" e uma peça inovadora do cinema feminista. Chantal Akerman, a diretora belga, morreu em 2015 aos 65 anos. Lillian Crawford, crítica de cinema e escritora que contribuiu para a votação, disse que o filme era o "texto essencial" no cinema feminista. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Jeanne Dielman não é um filme que eu recomendaria a alguém que está entrando no mundo do cinema como 'este é o primeiro filme que é obrigatório você ver'", disse ela à BBC. "Acho que se você vai assistir aos filmes da lista, talvez seja melhor fazer isso na ordem inversa e construindo um caminho em direção a este filme, porque é um pedido e tanto convidar as pessoas para ver isso. Mas no sentido acadêmico, pensando no cinema, e encorajando mais pessoas a buscar filmes experimentais, filmes de mulheres, e em termos de história do cinema feminista, este é com certeza o tipo de texto fundamental." Em um artigo para o British Film Institute, Laura Mulvey, professora de estudos de cinema na Birkbeck University (Inglaterra), chamou a votação de uma "revolução repentina". "As coisas nunca mais serão as mesmas", escreveu ela. A pesquisa é realizada pela revista Sight and Sound, do British Film Institute, a cada dez anos, desde 1952. A lista já enfrentou críticas no passado por falta de diversidade tanto dos especialistas consultados como dos filmes escolhidos. Em 2012, Jeanne Dielman foi um dos dois únicos filmes dirigidos por mulheres que entraram na lista, além de uma obra de um diretor negro — Touki Bouki, de Djibril Diop Mambéty. Ao longo dos anos, o número e a diversidade de pessoas consultadas aumentaram. Este ano, 1.639 críticos, programadores, curadores, arquivistas e acadêmicos foram convidados a escolher seus dez melhores filmes. O vencedor da última vez, Um corpo que cai, conquistou o segundo lugar, enquanto Cidadão Kane foi o terceiro. Tokyo Story, de Yasujirō Ozu ficou em quarto lugar, seguido por In the Mood for Love, de Wong Kar Wai, em quinto lugar.
2022-12-02
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63833811
sociedade
9 em cada 10 sequestros de SP são 'golpes do Tinder'; entenda como agem os criminosos
Um homem conhece uma mulher em um aplicativo de relacionamento, troca mensagens e, tempos depois, eles marcam um encontro. Mas, ao chegar ao local, o homem é sequestrado por uma dupla ou grupo armado. E o que seria um momento especial se torna um pesadelo que chega a durar dias. A vítima sofre tortura psicológica e algumas vezes até física enquanto têm suas contas esvaziadas. A Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP) afirmou à BBC News Brasil que "mais de 90% dos sequestros registrados em São Paulo são feitos a partir de relacionamentos formados a partir de perfis falsos criados em aplicativos como o Tinder. Apenas em 2022, a SSP informou que a Divisão Antissequestro do Dope, unidade especializada em sequestro da Polícia Civil paulista, esclareceu 94 ocorrências desse tipo, prendeu 251 suspeitos e apreendeu 9 adolescentes infratores. Segundo a pasta, os criminosos estudam suas vítimas. "Observam usuários que ostentam poder econômico nas redes sociais e marcam um encontro na casa da 'isca', abordando as vítimas geralmente em ruas desertas'', informou por meio de nota. Em meados deste mês, um médico do Hospital das Clínicas foi sequestrado e mantido em cárcere por cerca de 14 horas após marcar um encontro por meio de um aplicativo de relacionamento em Pirituba, na zona norte de São Paulo. Fim do Matérias recomendadas A vítima só foi liberada após os criminosos fazerem transações bancárias por meio de empréstimos, compras e transferências no valor total de R$ 75 mil. Mas como evitar situações como essas e identificar possíveis criminosos que atuam nesses aplicativos? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A BBC News Brasil conversou com policiais e especialistas em segurança digital para entender como essas quadrilhas atuam e quais são os principais sinais de que o encontro seja apenas uma armadilha para um crime. O Tinder, principal aplicativo de namoro citado por policiais e vítimas de sequestro , foi questionado sobre quais ferramentas e métodos de segurança existem na plataforma para evitar esses golpes. Em nota, o aplicativo informou que usa tecnologia e orienta seus usuários para evitar esses crimes. "Levamos a sério a segurança de nossos membros, utilizamos tecnologia e lembramos regularmente os membros do app sobre dicas de segurança para ajudar a garantir que todos possam paquerar livremente e com segurança em nosso aplicativo. Ao longo dos últimos anos, lançamos diversos recursos de segurança, incluindo verificação por foto e vídeo chat para ajudar os membros a confirmar que seu match é a mesma pessoa das fotos do perfil antes de se encontrarem na vida real." A plataforma disse ainda que fornece todas as informações necessárias para ajudar nas investigações. "Se um membro do app relatar para nós qualquer comportamento preocupante, não hesitaremos em remover a conta da nossa plataforma enquanto investigamos. Forneceremos todas as informações às autoridades para ajudar na investigação". Um tenente da Polícia Militar que atua na zona norte de São Paulo e pediu para não ser identificado afirma à reportagem que as vítimas são geralmente homens mais velhos e financeiramente bem-sucedidos. "São pessoas acima de 40 anos, solteiras, que geralmente são comerciantes ou possuem pequenas empresas. São pessoas com alguma posse. A maior parte atrai a vítima pelo Tinder, com mensagens sedutoras e um pedido de encontro o mais rápido possível", diz ele. As vítimas, segundo o policial, são escolhidas pelo aplicativo de acordo com as informações que ela passa, como fotos e profissão. Os principais alvos são aqueles que publicam fotos em viagens internacionais e ao lado de carros de luxo. "Os encontros geralmente são marcados em bairros mais afastados entre o fim da tarde e início da noite. Um dos casos que atendi, um homem tinha tentado marcar o encontro com uma mulher em um shopping, mas ela disse que estava doente e lamentava não poder sair de casa para encontrá-lo. Ele acabou se iludindo com a situação e foi até o local encontrar o par romântico, mas foi sequestrado", conta. O policial disse que a maneira de agir de cada quadrilha varia de acordo com o perfil de cada vítima. Ele diz que a vítima geralmente não está atrás de um romance, mas apenas de um encontro rápido, sem compromisso. "Pelo que a gente conversou com as vítimas, o encontro presencial acontece depois de um ou dois dias após o primeiro contato no aplicativo. O cara acredita que a mulher vai para o 'vamos ver' com ele sem muita frescura." O policial disse acreditar que existe subnotificação desses crimes por diversos motivos. O primeiro deles é a vergonha que muitas vezes a vítima tem de fazer um boletim de ocorrência para registrar o caso. Algumas vezes isso é causado por ela estar em um relacionamento ou por sentir que foi ingênua em cair num golpe como esse. "O que acontece são os casos que a gente retira a vítima do cativeiro. Não sei se os números da SSP englobam todos os outros casos que não são resolvidos pela divisão, mas, sim, pelo policiamento local", afirma o policial. Ele diz também que vítimas comprometidas preferem não dizer que caíram no "golpe do Tinder" para que o parceiro não descubra. O mais comum é que essas vítimas digam que foram roubadas na rua e, na sequência, sequestradas. Um dos policiais disse que o que mais o impressiona é a frequência de casos de homens com alto poder aquisitivo e formação acadêmica que caem nesses golpes por toparem ir a bairros mais distantes para terem encontros românticos. Os policiais explicam que, na maior parte das vezes, o desaparecimento da vítima só é identificado no dia seguinte ao sequestro, quando a família da vítima sente falta dela. "Alguém da família nota que a pessoa desapareceu e dão o alerta. Eles passam a localização de onde foram os últimos contatos com ela. Algumas vezes, moradores também relatam movimentações estranhas. Eu nunca peguei caso de vítima que foi levada para o mesmo cativeiro, mas a região é a mesma. Algumas vezes até na mata", relata o policial. Especialista em segurança digital da Safernet, Guilherme Alves afirma que os aplicativos de namoro são usados por criminosos para cometer principalmente crimes de estelionato fora da plataforma. "Um ponto importante é entender o que é responsabilidade da plataforma. O que acontece fora dela foge da esfera da empresa, mas é possível solicitar na Justiça dados sobre o perfil golpista, caso haja algum crime, como localização", afirmou. Segundo Guilherme Alves, o Marco Civil prevê que as empresas armazenem as informações informações de acesso à plataforma por ao menos 6 meses. Ele explica que, em alguns casos, os golpistas não usam fotos e perfis falsos, mas sim pessoas reais para atrair as vítimas. Mandam áudios e mandam fotos reais da pessoa com quem a vítima conversa. Mas o especialista alerta para alguns sinais comuns entre os golpistas. "Se for um golpe de catfishing (em que uma identidade falsa é criada na internet), o perfil é sim falso e há situações em que o criminoso tenta levar a pessoa para outra plataforma, como WhatsApp, saindo do aplicativo de paquera. Em alguns casos, o golpista alega que excluiu o perfil da plataforma com a justificativa de que quer algo sério", afirmou. Guilherme Alves identificou diversos comportamentos que são um sinal de alerta para quem está conhecendo uma pessoa na plataforma e pretende marcar um encontro presencial. "Excluir o perfil da plataforma após o primeiro encontro pode sinalizar que a pessoa queira esconder informações. Outro ponto são pessoas que querem marcar encontros muito rápido e saírem da plataforma para conversar no WhatsApp. Encontros em locais privados também devem ser evitados", disse o especialista em segurança cibernética. Ele recomenda que o ideal é sempre guardar registros das conversas, do perfil e marcar encontros sempre em locais públicos de grande movimentação de pessoas, como um shopping. Ele ressalta ainda que o golpe pode ocorrer mesmo após os primeiros encontros. "Em outro caso, a vítima teve dois encontros com o criminoso, mas só no terceiro que ele roubou a moça e sumiu", conta à reportagem. A reportagem conversou com policiais de outras regiões para entender se esse crime se espalhou pelo país. No entanto, as autoridades policiais disseram que os golpes envolvendo aplicativos de namoro têm sido mais comuns nas grandes metrópoles. O secretário de Segurança Pública em Pontaporã, no Mato Grosso do Sul, Marcelino Nunes afirma que esse crime ocorre na região que faz fronteira com a cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, mas com uma frequência pequena. "O que a gente percebe é que são pontuais e não são feitos por quadrilhas. São pessoas que acabam sendo lesadas financeiramente ou vítimas de violência, mas sem sequestro. O crime mais comum que atendemos envolvendo esses aplicativos é o chamado estelionato digital. Já houve casos em que o criminoso simulou uma dívida e pagamento de exames médicos como forma de extorsão por meio desses relacionamentos", afirma. Policiais de Santa Catarina ouvidos pela reportagem também disseram que esses crimes envolvendo aplicativos de namoro são incomuns na região.
2022-12-01
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63733202
sociedade
Como a indecisão pode te deixar mais inteligente
A indecisão pode ser considerada uma característica totalmente indesejável. Mas as pesquisas indicam que, na verdade, ela pode levar a ponderações mais inteligentes. Na série de TV The Good Place, o personagem Chidi Anagonye é definido pela sua incapacidade de tomar as decisões mais simples - desde o que comer até declarar seu amor por sua alma gêmea. A própria ideia de fazer uma escolha, muitas vezes, resulta em sérias dores de estômago. Ele está preso na sua "paralisia de análise" permanente. Nós ficamos conhecendo Chidi na vida após a morte, e a série nos mostra que foi a indecisão que colocou fim à sua vida. Ele estava parado na rua, em uma hesitação interminável para decidir a qual bar deveria ir com seu melhor amigo, quando um ar-condicionado cai do apartamento sobre a sua cabeça, matando-o instantaneamente. "Sabe o som de um garfo no triturador de lixo? É o som que o meu cérebro faz todo o tempo", afirma Chidi em um episódio da série. E, além de fazê-lo infeliz, a falta de confiança do personagem nos seus próprios julgamentos enlouquece as pessoas à sua volta. Fim do Matérias recomendadas Se isso parece uma versão exagerada de você mesmo, fique sabendo que você não está sozinho. A indecisão é uma característica comum. Enquanto algumas pessoas fazem ponderações muito rápidas, outros têm dificuldade para avaliar as opções e podem até evitar tomar qualquer decisão. Chidi mostra que a indecisão pode estar ligada a problemas como a ansiedade, mas pesquisas recentes indicam que ela pode também ter um lado positivo. Ela nos protege de erros cognitivos comuns, como o viés de confirmação. Com isso, quando a pessoa finalmente conclui sua análise, geralmente sua decisão é mais inteligente que a das pessoas que julgam com rapidez. O segredo é aprender quando esperar e quando romper a inércia paralisante. Os psicólogos têm diversas ferramentas para medir o grau de indecisão. Um dos questionários mais comuns é a Escala de Indecisão de Frost, em que os participantes avaliam uma série de afirmações em uma escala de 1 (discordo totalmente) a 5 (concordo totalmente). As questões incluem: - Tento postergar a tomada de decisões; - Tenho dificuldade de planejar meu tempo livre; - Fico frequentemente preocupado com tomar decisões erradas; - Parece que levo muito tempo para decidir sobre questões triviais. Usando essa escala, os psicólogos demonstraram que a indecisão, muitas vezes, é fruto do perfeccionismo. Os perfeccionistas têm medo da vergonha ou do arrependimento que pode vir da tomada de uma decisão errada. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por isso, postergam a tomada de decisões até terem a certeza de que estão tomando a decisão certa. E, em alguns casos, simplesmente nunca atingem esse nível de confiança. A frustração decorrente pode ser uma barreira para a felicidade. Geralmente, quanto mais alta a avaliação na escala, menor será a satisfação com a vida, segundo um estudo do professor de Psicologia Eric Rassin, da Universidade Erasmus, na Holanda. Eles são menos propensos a concordar com declarações como "as condições da minha vida são excelentes", por exemplo, ou "se pudesse iniciar minha vida de novo, não mudaria quase nada". Saltar para as conclusões A julgar por estes resultados, a indecisão parece ser uma característica totalmente indesejável. Mas pesquisas recentes indicam que a dificuldade para chegar a uma decisão rápida - por mais desconfortável que seja - também pode ter um lado positivo, porque protege as pessoas de certos vieses cognitivos importantes. As evidências desses benefícios vêm de um trabalho recente da pesquisadora Jana-Maria Hohnsbehn e da professora de Psicologia Social Iris Schneider, da Universidade Técnica de Dresden, na Alemanha. Em vez de usar a Escala de Indecisão de Frost, Hohnsbehn e Schneider concentraram-se na medida da "ambivalência de características", que examina mais especificamente os pensamentos e sensações subjacentes à tomada de decisões das pessoas (ou sua ausência). Pediu-se às pessoas, por exemplo, que avaliem afirmações como: - Meus pensamentos são frequentemente contraditórios; - Muitas vezes, sinto-me dividido entre dois lados de uma questão; - Às vezes, quando penso em um assunto, quase me sinto como se estivesse me movendo fisicamente de um lado para outro. "Se essas afirmações encontrarem ressonância, provavelmente temos ambivalência de características em alto grau", afirma Hohnsbehn. É esperado que pessoas com alto grau de ambivalência de características levem mais tempo para tomar decisões. Mas Hohnsbehn e Schneider concluíram que elas são menos sujeitas a vieses em seus julgamentos. Em um experimento, por exemplo, elas pediram aos participantes que se confrontassem com uma série de cenários, como este: Você conhece uma pessoa e gostaria de descobrir se ela é introvertida ou extrovertida. Você acredita que a pessoa seja extrovertida. Quais das perguntas abaixo você faria para ela? - Você gosta de ficar sozinho(a) em casa?; - Você gosta de ir para festas? Muitas pessoas escolhem a segunda pergunta, mas este é um sinal de viés de confirmação - você está procurando informações que estejam de acordo com o que você acredita e não buscando evidências de que você pode estar errado. Hohnsbehn e seus colegas concluíram que pessoas com alto grau de ambivalência de características eram menos propensas a esse viés. Elas decidem questionar sua crença, para ter certeza de que têm as informações necessárias para chegar a uma resposta correta. Em outro experimento, os participantes leram sobre um funcionário, o sr. Müller, que queria renovar seu contrato de trabalho. Depois de uma decisão preliminar sobre manter ou não o sr. Müller no cargo, os participantes receberam afirmações adicionais sobre ele de especialistas no setor. Algumas dessas afirmações estavam de acordo com as decisões iniciais dos participantes e outras, não. A tarefa dos participantes foi avaliar a credibilidade e a importância de cada uma dessas afirmações. Hohnsbehn e Schneider concluíram que as pessoas com alto grau de ambivalência eram mais propensas a ter a mente mais aberta para as afirmações contrárias ao seu ponto de vista inicial e sua avaliação de credibilidade e importância era mais alta, enquanto as que tinham baixa ambivalência de características eram mais dispostas a menosprezá-las. Essas conclusões são importantes, porque o viés de confirmação é um dos nossos erros cognitivos mais comuns. Ele nos impede de analisar racionalmente as evidências em todos os aspectos da vida, desde os relacionamentos pessoais até nossas visões políticas. A ambivalência de características ajuda a nos proteger desse tipo de pensamento excessivamente simplista - e pode também nos ajudar de outras formas. Estudos de Schneider indicam, por exemplo, que pessoas com alto grau de ambivalência de características também são menos propensas ao "viés da correspondência", que é uma tendência a ignorar o contexto do comportamento de alguém e, em vez disso, atribuir fracassos e sucessos diretamente às próprias pessoas. Para dar um exemplo direto: se alguém escorregar, o viés de correspondência pode nos levar a concluir que ele é inerentemente desajeitado (fator interno), sem reconhecer que o piso pode estar escorregadio (fator externo). O viés de correspondência pode também nos levar a considerar que alguém tem dificuldades de aprendizado simplesmente por falta de inteligência, sem considerar suas dificuldades financeiras ou responsabilidades na família. Pessoas com alto grau de ambivalência de características são mais propensas a reconhecer esses outros fatores do que as pessoas que fazem julgamentos rápidos e confiantes. Ação sobre a inação As pesquisas de Hohnsbehn devem ser boas notícias se você já se sentiu impaciente com sua incapacidade de chegar a uma decisão com rapidez. "A experiência geral de ser ambivalente precisa ser aceita", sugere ela. "Ela pode nos dar a pausa necessária, sinalizando que as coisas são complexas e que precisamos nos dedicar a pensar com mais cuidado, por mais tempo, sobre nossa decisão." Somente quando esse processo se torna excessivo, começamos a enfrentar problemas. "Como ocorre com a maioria das questões, existe um equilíbrio que precisa ser atingido", acrescenta Hohnsbehn. Isso pode explicar por que as pessoas indecisas, muitas vezes, têm avaliações mais baixas em termos de satisfação na vida. Sua ambivalência, ao enfrentar escolhas importantes, é devastadora. Uma medida simples pode ser estabelecer um limite de tempo para sua decisão final, para não passar tempo demais ruminando sobre as diferentes opções sem avaliar novas perspectivas. Dependendo do tipo de problema que você esteja enfrentando, Hohnsbehn sugere até considerar uma série de tarefas - como dedicar duas horas à busca de novas informações, por exemplo, antes de passar um certo período de tempo deliberando. Se, mesmo assim, você ainda se sentir paralisado, pode buscar inspiração em um estudo do economista Steven Levitt, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, que examinou a felicidade geral das pessoas depois de realizar mudanças importantes na vida. Levitt é um dos autores do livro Freakonomics e criou um site onde as pessoas descreveram diversos dilemas que estavam enfrentando nas suas vidas - desde fazer uma tatuagem até mudar de casa, voltar a estudar ou pedir demissão. Pede-se então aos participantes que joguem cara-ou-coroa para que o resultado defina se eles devem ou não tomar uma atitude. Ao acompanhar os participantes nos meses que se seguiram, Levitt concluiu que muitas pessoas haviam corrido o risco. Quando a moeda disse que eles deveriam seguir em frente, a maioria fez a mudança de vida. E eles relataram estar significativamente mais felizes do que aqueles que continuaram como estavam (independentemente do resultado do cara-ou-coroa), sem sair do emprego, mudar-se ou fazer aquela tatuagem. Podemos supor que, antes do estudo, a maioria desses participantes já havia pensado cuidadosamente sobre a situação em questão, mas suas preocupações em fazer a escolha errada haviam evitado que elas corressem o risco. A moeda agiu simplesmente como um empurrãozinho para que eles finalmente superassem sua ambivalência. A moral do estudo, portanto, não é que devemos basear todas as decisões em um resultado de cara-ou-coroa. Mas que superar a dúvida e a hesitação pode deixar você mais feliz do que imagina. "Uma boa regra geral na tomada de decisões é que, sempre que você não conseguir decidir o que fazer, escolha a ação que represente uma mudança, em vez de manter o seu status quo", conclui Levitt. Como Chidi em The Good Place, podemos ponderar todos os prós e contras de cada situação e essa ambivalência nos ajudará a tomar decisões mais inteligentes. Mas, depois que o pensamento ambivalente tiver cumprido sua função, você precisa aprender a colocá-lo de lado - com a certeza de que qualquer decisão frequentemente é melhor que não fazer nenhuma escolha.
2022-11-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63788527
sociedade
A impressionante foto de imigrantes que viajaram 11 dias em leme de navio
Uma foto compartilhada na terça-feira (29/11) mostra três homens que sobreviveram a uma viagem de 11 dias da Nigéria para a Espanha sentados na pá do leme de um grande petroleiro. A imagem foi divulgada pela agência Salvamento Marítimo, vinculada ao governo da Espanha, que socorreu os três homens após eles chegarem ao porto de Las Palmas, na ilha de Gran Canária. O resgate, segundo informaram os órgãos oficiais e a agência EFE, ocorreu depois que os três migrantes — de origem africana — foram avistados na parte inferior do navio. Eles viajavam no petroleiro de bandeira maltesa chamado Alithini II, que partiu do porto de Lagos, na Nigéria, no dia 17 de novembro, segundo informou a agência de resgate. O local onde foram encontrados é um espaço localizado na chamada pá do leme, fora do casco do navio, onde ficam ao relento e vulneráveis ​​à violência do mar. Fim do Matérias recomendadas Os migrantes foram encaminhados para centros de saúde da ilha onde se constatou que, apesar das condições da viagem e da desidratação, tinham um bom quadro geral de saúde. "Eles deixaram a Nigéria há mais de uma semana, o tempo que passaram no leme do navio, muito perto da água. A odisseia da sobrevivência supera de longe a ficção. Não é a primeira e não será a última. Os clandestinos nem sempre têm a mesma sorte", escreveu no Twitter o jornalista espanhol Txema Santana, especializado em questões migratórias. As autoridades indicaram que não é a primeira vez que são detectados migrantes no leme de um navio. Em novembro de 2020, outras três pessoas foram encontradas na pá do leme do navio Ocean Princess II. Um deles, um menino de 14 anos, contou ao jornal El País como sobreviveu à viagem bebendo água salgada e como revezou para dormir em um buraco acima do leme com os outros homens com quem viajava. "Estávamos muito fracos. Nunca imaginei que pudesse ser tão difícil", disse ele. Em outro incidente no mesmo ano, quatro homens foram encontrados no leme do petroleiro norueguês Champion Pula, após terem viajado de Lagos para Las Palmas. Relatórios da época diziam que os homens se esconderam em um compartimento atrás do leme durante seus 10 dias no mar. O número de migrantes que cruzam de barco da África Ocidental para as Ilhas Canárias aumentou significativamente nos últimos anos. As viagens são longas, perigosas e mortais. Em 2021, a Organização Internacional para as Migrações (OIM), da ONU, registrou 1.532 mortes na rota.
2022-11-29
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63801754
sociedade
A cirurgia estética radical com quebra de ossos cada vez mais popular entre homens
"As mulheres geralmente não namoram homens que são mais baixos do que elas. Às vezes a coisa mais difícil era sentir que não encontraria uma esposa." A frase é de Sam, um britânico de 30 anos que apostou em uma tendência de cirurgias estéticas para homens em países como Estados Unidos, Reino Unido e até Espanha: alongamento de pernas para aumentar a estatura. A operação invasiva consiste em quebrar o fêmur para ganhar alguns centímetros. Sam destaca que, graças à cirurgia, ganhou 8 centímetros de altura e passou de 1,62 metros para 1,70 metros em poucos meses. "Sempre pensei que ser alto e ser bem-sucedido são fatores relacionados. É por isso que tive que encontrar minha própria solução", disse ele à BBC. A operação requer semanas de convalescença e um processo de recuperação durante o qual o paciente não consegue andar por meses. Fim do Matérias recomendadas Mas não é só isso — em alguns casos os homens pagam cerca de US$ 70 mil (aproximadamente R$ 370 mil) para ganhar alguns centímetros de altura. "É uma operação dolorosa, que implica em um longo processo de recuperação porque uma parte do osso é mole, então você tem que esperar antes de poder andar até que esse osso possa suportar o peso do corpo novamente", disse à BBC Mundo o cirurgião Kevin Debiparshad. Debiparshad chega a realizar até 50 cirurgias desse tipo por mês em seu consultório em Las Vegas, chamado LimbplastX Institute, onde diz ter notado um aumento na demanda de pacientes do sexo masculino. "O tabu de que homens não fazem cirurgias estéticas está caindo. Essa operação em especial é uma que muitos homens procuram", diz Debiparshad. Mas nem sempre foi assim. Durante anos, especialmente em países orientais, como a China, muitas mulheres procuravam esse tipo de cirurgia. Agora, nos países ocidentais, os números indicam que este fenômeno está crescendo entre homens. A cirurgia é polêmica. Tanto a Associação Americana de Cirurgiões Plásticos quanto a Academia Americana de Ortopedistas apontam que a cirurgia de alongamento de pernas é um procedimento ortopédico para fins estéticos. O pioneiro dessa técnica foi um cirurgião ortopédico soviético que inovou nos tratamentos de reabilitação para soldados mutilados durante a Segunda Guerra Mundial. Seu nome era Gavril Ilizarov, um médico que durante seu tempo no campo de batalha percebeu — junto com experimentos que havia feito durante seus anos de estudante — que os ossos, especialmente o fêmur, tendiam a se expandir e "preencher" a lacuna entre duas partes quando sofria uma fratura. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ilizarov desenvolveu então uma técnica que consistia em quebrar o osso, mas sem comprometer a parte conhecida como periósteo (que é a parte externa do osso), separando-o um pouco e esperando que o próprio osso se encarregasse de ocupar o espaço que ficou no meio. "Essa técnica evoluiu muito, mas na verdade a ideia inicial é a mesma: o que fazemos é com que o próprio osso preencha esse espaço e é aí que se ganha os centímetros extras que o paciente deseja", explica Debiparshad. Conforme explicam vários cirurgiões consultados pela BBC, o tratamento padrão é o seguinte: primeiro, é perfurado um buraco nos ossos das pernas, que são partidos em dois. Em seguida, uma haste de metal é colocada cirurgicamente dentro do osso e mantida no lugar por uma série de parafusos. A haste é lentamente alongada em até 1 milímetro por dia, estendendo-se até que o paciente atinja a altura desejada e seus ossos sejam deixados para cicatrizar novamente. O procedimento é doloroso e o tempo de recuperação é demorado. "Na minha primeira consulta, o médico deixou bem claro para mim o quão difícil seria a cirurgia. Eu estava preocupado com o que poderia fazer depois de ter aqueles centímetros a mais. Ainda vou conseguir andar? Ainda vou conseguir correr?" disse Sam, o paciente britânico. Sam conta que fez fisioterapia algumas horas por dia, três a quatro vezes por semana, durante seis meses. "Foi uma experiência muito humilhante. É meio louco... É como ganhar pernas novas e aprender a andar de novo. Parece só uma cirurgia plástica, mas afetou muito mais a minha saúde mental", diz. Esse é um dos aspectos que mais chama a atenção da comunidade médica quando se trata dessa intervenção: os riscos de se submeter a um procedimento tão invasivo para fins estéticos. Alguns especialistas alertam para possíveis complicações, de danos nos nervos e embolias arteriais até a possibilidade de os ossos não se fundirem novamente. "As técnicas e a tecnologia melhoraram substancialmente nas últimas duas décadas, tornando o procedimento mais seguro. No entanto, além dos ossos que precisam crescer, também é preciso desenvolver mais músculos, nervos, vasos sanguíneos. O procedimento continua extremamente complexo", disse Hamish Simpson, um cirurgião ortopédico, à BBC. E não se trata apenas uma questão física. Os especialistas alertam para os riscos psicológicos que devem ser levados em conta, como o fato de alguns desses pacientes poderem apresentar dismorfia corporal - transtorno psicológico de aversão a supostos defeitos na aparência. E isso os leva, segundo especialistas, a priorizar a cirurgia em detrimento do bem-estar físico e mental. "Ao enfrentar o dilema de escolher um lugar com experiência cirúrgica nesses tipos de operações ou um lugar onde fazer o procedimento sem gastar muito, não acho que as pessoas estejam necessariamente cientes de todas as coisas que podem e costumam dar errado", disse o cirurgião ortopédico britânico David Goodier à BBC. "E como muitas vezes essas operações são feitas fora do país, quem acaba lidando com essas falhas são os médicos locais, que não realizaram a cirurgia inicial", diz Goodier. Debiparshad concorda que não é uma intervenção simples e que possui vários aspectos que a tornam arriscada. "São necessários equipamentos de alta tecnologia para reduzir os riscos pós-operatórios, mas acima de tudo deixamos muito claro com os pacientes os riscos da operação e que o processo de recuperação será muito lento", afirma o cirurgião. "Além disso, oferecemos suporte pós-operatório às pessoas que se submetem a essa cirurgia para garantir o sucesso do procedimento", acrescenta. Mas o que é inegável é que o alongamento de pernas é uma operação que os homens buscam cada vez mais para ganhar alguns centímetros. Consultadas pela BBC, clínicas nos Estados Unidos, Canadá, Espanha e Reino Unido confirmaram que houve um aumento no número de homens que solicitam a realização. Debipashard diz que as consultas desse tipo dobraram nos últimos três anos. "O que ouço dos meus pacientes do sexo masculino é que eles perderam o medo de fazer esse tipo de cirurgia e acreditam que isso pode ajudá-los a melhorar sua autoconfiança ", observa. A pressão social é um dos fatores que influencia na decisão dos homens. Dados da revista Forbes sugerem que a altura média das 500 pessoas mais ricas do planeta é de 1,82 metros. A Associação Americana de Cirurgiões Plásticos afirma que as cirurgias plásticas em homens aumentaram 30% em relação à década anterior. Mas todos os especialistas consultados pela BBC fazem os mesmos alertas: trata-se de uma operação complexa, cara, de alto risco e com um longo processo de recuperação, que deve ser supervisionada por especialistas.
2022-11-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63761083
sociedade
'Perdi meus três filhos para o câncer por causa de uma síndrome hereditária e hoje luto contra a doença'
Em 2009, o economista Régis Feitosa Mota ficou abalado ao descobrir que a filha mais velha dele, Anna Carolina, na época com 12 anos, estava com leucemia linfoide aguda, o tipo de câncer mais comum entre crianças. Foram quase três anos até a jovem encerrar o tratamento com radioterapia e quimioterapia contra a doença. "Depois disso, ela ficou muito bem", diz Régis, de 52 anos, à BBC News Brasil. Mas ali era apenas o começo de uma história que marcaria para sempre aquela família de Fortaleza (CE). Em pouco mais de uma década, foram 11 diagnósticos de câncer entre Régis e os três filhos. No último dia 19, Anna Carolina morreu em decorrência de um tumor no cérebro. Foi o terceiro filho que Régis perdeu em razão do câncer. "Em quatro anos e meio, perdi todos os meus filhos", lamenta. Ele perdeu a filha caçula, Beatriz, em 2018, em virtude de uma leucemia linfoide aguda. Dois anos depois, outro filho dele, Pedro, morreu em decorrência de um câncer no cérebro — anteriormente, ele já havia tratado outros tumores. Enquanto chorava pelas mortes dos filhos, Régis ainda teve que lidar com os próprios tratamentos de saúde. Desde 2016, ele trata uma leucemia linfoide crônica. Já em 2021, ele descobriu um linfoma não Hodgkin, câncer que surge no sistema linfático (rede de pequenos vasos e gânglios que é parte dos sistemas imunológico e circulatório). Os casos na família do economista foram relacionados a um problema que ele descobriu em 2016: uma síndrome hereditária chamada Li-Fraumeni (LFS), causada por uma mutação genética que aumenta significativamente o risco de câncer (saiba mais abaixo). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Antes do primeiro diagnóstico de câncer em 2009, Régis afirma que ele e os três filhos eram saudáveis e a família não tinha histórico de problemas de saúde. Depois que Anna Carolina encerrou o tratamento contra a leucemia, passaram-se alguns anos até que o câncer voltasse a preocupar. "O segundo diagnóstico (na família) foi em 2016, quando descobri uma leucemia linfoide crônica, após apresentar sintomas como febre, inchaço no pescoço e fraqueza", detalha o economista. A equipe médica informou a Régis que a doença dele costumava ter uma evolução lenta e ele poderia conviver com ela por anos. Ainda em 2016, ele começou o tratamento com quimioterapia oral. Também em 2016, o filho dele, Pedro, então com 17 anos, foi diagnosticado com osteossarcoma, câncer que se desenvolve no osso, na região da perna esquerda. Os diagnósticos dele e do filho, além daquele que Anna Carolina recebera anos atrás, chamaram a atenção do economista. "Nesse momento, a gente passou a acreditar que esses três casos não poderiam ser coincidência. Nesse período decidimos que seria melhor investigar", diz Régis. Ele e os três filhos — Anna Carolina e Pedro eram filhos do primeiro casamento e Beatriz, do segundo — passaram por exames genéticos em São Paulo. "Os resultados mostraram que eu tinha uma alteração genética que, lamentavelmente, passou também para os meus filhos, e que potencializa o surgimento de câncer", conta o pai. Segundo o economista, nenhum outro parente próximo dele ou as mães de seus filhos têm essa síndrome. "Não sabemos a origem dessa minha alteração genética, até porque meus pais não têm. O meu pai atualmente tem 85 anos e a minha mãe tem 78. São saudáveis", explica Régis. Para entender a alteração ao qual o economista se refere, primeiro é preciso compreender o gene TP53. A partir dele é produzida a proteína p53, que impede o crescimento de tumores. Essa proteína executa diversas funções no ciclo celular e tenta impedir a proliferação das células que têm erros — que dão origem aos tumores. Mas para aqueles que carregam essa mutação nesse gene, há uma produção inadequada ou uma falta de produção da p53. "Com isso, o risco para o desenvolvimento do câncer é muito maior. O risco (entre quem possui essa alteração) vai chegar a quase 20% até os 10 anos de idade e, no adulto ao longo da vida, vai chegar a quase 90%", explica a médica geneticista Maria Isabel Achatz, que pesquisa o tema há mais de duas décadas e já publicou estudos sobre ele em revistas científicas internacionais como Frontiers in Oncology e Lancet Regional Health Americas. Essa alteração no gene TP53 é chamada de síndrome de Li-Fraumeni, ou LFS. Os estudos apontam que ela tem 50% de chance de ser passada de pai ou mãe para filho. Segundo a especialista, o risco entre essas pessoas é aumentado para quase todos os tipos de câncer — alguns dos mais frequentes para os portadores da síndrome são os sarcomas e o câncer de mama. Um portador dessa mutação genética pode ter somente um tumor, diversos tumores independentes ou mesmo nunca desenvolver a doença. Mas, em geral, é comum que tenham um histórico de diversos familiares que morreram de câncer. Achatz e outros especialistas têm acompanhado de perto quadros de Li-Fraumeni no Brasil, já que as regiões Sul e Sudeste têm revelado uma presença maior da alteração genética do que outras partes do país e do mundo. Existe uma "variante brasileira" da síndrome, caracterizada por um tipo de mutação específica no gene TP53, a R337H. Estudos já estimaram que a incidência de pessoas carregando uma alteração no gene em todo o mundo varia entre 1 a cada 5 mil pessoas a 1 a cada 20 mil. No Sul e Sudeste brasileiro, a frequência da mutação R337H é muito maior, estimada em 1 a cada 300 pessoas. "A gente tem todos os indícios de que essa seja uma síndrome mais moderada do que a síndrome mundial. Por que a gente tem tanta gente no Brasil (com a síndrome)? Porque ela mata menos aqui", explica Achatz, doutora em oncologia pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora da unidade de oncogenética do Hospital Sírio-Libanês. A médica alerta que, uma vez descoberto que uma pessoa tem a síndrome, outros familiares devem buscar acompanhamento médico para investigar se também têm a condição — o que é feito, entre outros procedimentos, por meio de exames e do sequenciamento (análise) do gene TP53. Não há cura para a síndrome, mas o diagnóstico permite que a saúde do paciente seja acompanhada mais de perto e traz oportunidades para que possíveis tumores sejam detectados precocemente. Achatz explica que o tratamento para câncer em pessoas que têm a síndrome não muda em comparação com aquelas que não têm Li-Fraumeni. No caso de Régis, os exames apontaram que ele tem — e passou para os filhos — a síndrome clássica, aquela que não é a mais comum no país e é considerada mais severa que a variante encontrada no Brasil. Após a descoberta da síndrome, Régis e os três filhos passaram a fazer acompanhamento médico constante. Em 2017, o economista comemorava a sua recuperação e o bom resultado do tratamento de Pedro quando a filha caçula foi diagnosticada com leucemia, a mesma que Anna havia tido no passado. Bia, como a garota era chamada, tinha 9 anos quando começou o tratamento contra a doença em São Paulo. Ela passou por um transplante de medula, no qual a mãe dela, Camila Barbosa, foi a doadora. Em 2018, exames feitos meses após a garota encerrar o primeiro tratamento apontaram que a doença havia voltado. "A gente achava que ela iria superar e ficar curada, como a irmã ficou quando mais nova. Mas a doença voltou muito rápido, ela não tinha mais força para outro transplante naquele momento e morreu em junho de 2018", conta Régis. Além da perda da caçula, o economista também acompanhava a luta do filho contra o câncer. Ao longo dos últimos anos de vida, após o primeiro tratamento, Pedro teve metástase (quando a doença se espalha para outras partes do corpo) no pulmão, na coluna torácica e na coluna lombar. "Foram vários anos de quimioterapia. Ele foi considerado curado nessas quatro vezes. Entre um tratamento e outro, tinha uma vida normal, porque todos eram bem-sucedidos", diz Régis. "Ele, assim como as irmãs, sempre foi muito positivo e tinha expectativas de que se curaria", conta. Pedro sonhava em se formar em engenharia elétrica. Ele chegou a cursar cerca de dois meses, mas logo parou em razão do tratamento de saúde. Em 2019, Pedro descobriu um câncer no cérebro, "Dessa vez, infelizmente, ele não conseguiu se recuperar", conta o pai. O jovem morreu em novembro de 2020, aos 22 anos. "Ele era um rapaz com uma alma bastante evoluída. Todos eles eram muito evoluídos, totalmente tranquilos e gostavam de viver de forma alegre. Não havia tristeza ou trauma por conta do tratamento", diz Régis. A última perda do economista ocorreu há menos de duas semanas, quando Anna Carolina morreu após um duro tratamento contra um câncer no cérebro. A doença foi descoberta no ano passado, em um dos períodos mais felizes da vida dela: a conclusão do curso de Medicina. "Ela queria ser médica desde criança, por causa do tempo em que ficou no hospital tratando a leucemia e também por causa do padrasto (já falecido), que também era médico", comenta Régis. Segundo ele, a filha não teve nenhum outro diagnóstico entre 2012 e 2021 — intervalo entre o fim do tratamento contra a leucemia e o diagnóstico no cérebro. "Foi bastante dramático quando ela descobriu o câncer no cérebro, porque ela estava formada, cheia de sonhos e expectativas", diz o pai. "Ela estava noiva, queria se casar em 2022 e se especializar em dermatologia", detalha Régis. Ele conta que a filha acreditava na cura da doença, mas passou a aceitar que não tinha mais jeito quando a situação agravou. "A partir daí, ela passou a dizer que já tinha cumprido a sua missão, ela passou a encarar assim, dizia que tinha se realizado como pessoa e que conquistou o seu objetivo de ser médica", conta. Para Régis, as perdas dos filhos podem ser definidas como situações traumáticas e dolorosas. "É a inversão da ordem natural da vida." O economista afirma que nunca se sentiu culpado por ter a síndrome ou por ter passado para os filhos. "Os meus filhos diziam que eu fui tão vítima quanto eles", diz. Após enfrentar os diversos problemas de saúde na família, ele diz que mudou completamente a forma como enxerga a vida. "Hoje a minha visão é de que a gente tem que viver intensamente, com a máxima alegria. O meu filho dizia uma frase muito coerente: ninguém consegue medir a dor do outro. Não acredito que exista problema maior ou menor, o fato é que a gente não consegue medir a dor do outro." Régis segue em tratamento contra a leucemia crônica e contra o linfoma não Hodgkin. "Esses tratamentos não têm prazo para terminar. Por enquanto não estou curado, só estabilizado por causa dos medicamentos diários e monitoramento mensal com exames." O economista conta que usou todo o dinheiro que havia guardado ao longo da vida nos tratamentos de saúde dos filhos em São Paulo e que agora precisa do apoio financeiro dos pais. Régis diz que um de seus objetivos para o futuro é começar a dar palestras para contar sobre a sua história e também falar sobre superação. Há alguns anos, ele compartilha a sua vida nas redes sociais. No Instagram, atualmente ele acumula mais de 185 mil seguidores em seu perfil (@regisfeitosamota). "Comecei usando as redes como forma de me comunicar com os amigos e familiares, para que acompanhassem a gente, mas isso acabou crescendo muito. Hoje recebo muitas mensagens de pessoas dizendo que foram impactadas positivamente pela nossa história", diz. Ele também quer que a sua história possa dar mais visibilidade à síndrome Li-Fraumeni, para que outras pessoas conheçam mais sobre o tema e até façam acompanhamento necessário, caso tenham o mesmo problema ou desconfiem que possam ter. Sobre o futuro, Régis diz que o seu objetivo principal é viver um dia de cada vez. "Como a minha filha dizia, quero buscar a alegria em cada dia e tentar olhar para a vida de forma que eu veja luz e felicidade." "O meu filho Pedro dizia que a felicidade é apenas questão de ponto de vista", acrescenta.
2022-11-29
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63761506
sociedade
Por que Tutancâmon era invocado em sessões de espiritismo no começo do século 20
Há 100 anos, foi descoberta a tumba do faraó egípcio Tutancâmon, que reinou ainda menino no século 14 a.C. A tumba de Tutancâmon foi descoberta em novembro de 1922 por uma equipe de escavadores (a maioria deles egípcios) liderada pelo arqueólogo britânico Howard Carter. O relato de Carter dominou a narrativa do que se sabe hoje sobre essa descoberta histórica. Sua publicação, em três volumes, The Tomb of Tut-Ankh-Amen ("A tumba de Tutancâmon", em tradução livre) é responsável por imortalizar a resposta que ele teria dado à pergunta do seu patrono, George Herbert, o lorde Carnarvon: "Você consegue ver alguma coisa?" Ao que ele respondeu, "sim, coisas maravilhosas". E também tornou famosa a visão de "brilho de ouro em toda parte" que teve, quando olhou pela primeira vez para dentro da tumba. Houve na época muito interesse pela descoberta, o que levou a uma enorme cobertura na imprensa. Uma reportagem que constantemente ressurgia e ainda é popular refere-se à história de uma suposta "maldição da múmia" que teria atingido os envolvidos na escavação. A ideia de que as pessoas que presenciaram a abertura da tumba tiveram mortes inesperadas, entretanto, foi amplamente desmentida. Fim do Matérias recomendadas Existem outras histórias e lendas sobre a descoberta, sobre as escavações que se seguiram e sobre seus legados. Elas contribuem para um entendimento mais completo do amplo e enorme impacto do evento. Uma dessas consequências culturais menos conhecidas foi que o faraó começou a aparecer regularmente nos círculos espiritualistas depois da descoberta de sua tumba. O espiritualismo - movimento religioso que acredita na sobrevivência do espírito após a morte e que os espíritos dos mortos podem se comunicar com os vivos - teve seu apogeu internacional no século 19. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sua popularidade caiu depois que diversos médiuns conhecidos foram expostos como fraudes pouco antes de 1900. Mas o espiritualismo ressurgiu durante e após a Primeira Guerra Mundial, quando as pessoas tentavam se comunicar com seus entes queridos mortos no conflito. Nos anos 1920, um novo espírito começou a ganhar celebridade "aparecendo" nas sessões, nas quais um grupo de pessoas, muitas vezes formando um círculo em volta de uma mesa, tentava fazer contato com os mortos. Tutancâmon começou a transmitir mensagens "do além", segundo as pessoas que nele acreditavam, aparecendo em sessões espíritas em todo o mundo. As pessoas especulavam que ele não havia se anunciado em círculos mediúnicos antes da descoberta da sua tumba porque "o espírito [foi] trazido de volta para os pensamentos terrestres pela atenção concentrada nele". Em uma ocasião, foi dito que Tutancâmon havia sido canalizado por uma médium chamada Blanche Cooper, que trabalhava no British College of Psychic Science (o Colégio Britânico de Ciências Mediúnicas, em tradução livre). Um relato afirma que, da boca de Cooper, veio uma "voz grave masculina" que "falava em língua estrangeira, suave e musical". A comunicação de Tutancâmon supostamente listava o que podia ser encontrado no interior da sua tumba. A proliferação de supostas mensagens do faraó menino após a descoberta da tumba foi tanta que as pessoas que compareciam às sessões espíritas reclamavam de que estavam "ficando um pouco cansadas de Tutancâmon". Mas o faraó nem sempre era uma presença positiva. A publicação britânica International Psychic Gazette relatou um encontro mais hostil, verificado em 1929: "Ocorreram violentos acontecimentos sobrenaturais [...] no estúdio do Sr. Folt, conhecido escultor, dono de uma esplêndida mansão em Vinohrady, [...] Praga [atual República Checa]. Muitas pessoas renomadas nos círculos artísticos e intelectuais compareceram a uma sessão espiritualista naquele local. Tudo corria calmamente até a conclusão, quando um participante pediu que o espírito de Tutancâmon [...] fosse convocado. O médium presente entrou em transe e anunciou que o espírito estava se aproximando. Ele então emitiu um grito de dor, acompanhado por clamores sobrenaturais de ira profunda. Imediatamente, desencadeou-se no estúdio um tumulto assustador, com um vendaval tão poderoso que partiu a maioria das vidraças. As testemunhas dessa súbita tempestade ficaram horrorizadas. Elas se levantaram imediatamente da mesa e acenderam as luzes. O estúdio estava totalmente devastado diante dos seus olhos. Todas as estátuas de personagens egípcios esculpidas por Folt estavam quebradas. Uma delas, de bronze, havia sido atirada pela janela em direção ao jardim. Outra estava caída no chão, com traços de sangue sobre os lábios e a testa. [...] Essas perturbações extraordinárias tiveram lugar com extrema rapidez e não duraram mais do que 30 a 35 segundos." O que esses relatos sugerem é que o espírito de Tutancâmon aparecia para essas pessoas de formas diversas, como uma força benevolente mas também como um destruidor vingativo; como um indivíduo que não se abalou com a invasão da sua tumba até como uma entidade disposta a atirar destroços sobre as cabeças das pessoas que violaram seu espaço sagrado. Com o nome de Tutancâmon novamente presente na consciência pública, no centenária da descoberta de sua tumba, somos lembrados de que ele é um faraó destinado a "retornar" periodicamente - seja na forma de aparição espiritual ou em estudos científicos. Suas manifestações nos círculos espiritualistas da década de 1920 são apenas uma das formas em que a fascinação popular pelo faraó se manifestou ao longo dos anos. *Eleanor Dobson é professora de literatura do século 19 da Universidade de Birmingham, no Reino Unido.
2022-11-27
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63568057
sociedade
A corrida da Ciência pelas causas da morte súbita de bebês
Atenção: esta reportagem contém detalhes que podem ser sensíveis para alguns leitores. Faltavam três dias para o segundo aniversário dos gêmeos. Quando a mãe das crianças, Carmel Harrington, os colocou para dormir, ela esperava que Charlotte a acordasse várias vezes. Já seu irmão Damien — um bebê doce e envolvente, com seu cabelo ondulado castanho e apaixonado pela sua motocicleta de brinquedo — sempre dormia com mais tranquilidade. Mas Harrington acordou na manhã seguinte sentindo-se renovada. Até que, ao entrar no quarto dos gêmeos, ela encontrou o pior pesadelo para um pai ou uma mãe: Damien havia morrido durante a noite. Existem poucos cenários mais terríveis do que esse. E, mesmo após 30 anos de estudos no setor de saúde pública, essa ainda é uma realidade para milhares de famílias em todo o mundo, todos os anos. Fim do Matérias recomendadas Na Austrália, onde mora Harrington, a síndrome da morte súbita do lactente (SMSL) ainda é uma causa importante de morte de bebês. Cerca de 100 bebês por ano morrem de forma súbita e inesperada todos os anos, normalmente durante o sono — uma categoria conhecida como "morte súbita inesperada na infância" (SUDI, na sigla em inglês), que inclui a SMSL, acidentes como sufocação ou estrangulamento e causas desconhecidas. No Reino Unido, cerca de 300 bebês morrem subitamente durante o sono todos os anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Já nos Estados Unidos, a SMSL é a principal causa de morte de bebês com um mês a um ano de idade. Estima-se que 1.389 bebês tenham morrido de SMSL no país em 2020. No mesmo ano, outras 1.062 crianças morreram de causas desconhecidas e mais 905 mortes foram atribuídas a sufocação ou estrangulamento acidental na cama ou no berço. Apesar das tragédias pessoais que cada um desses casos representa, os números gerais são frequentemente interpretados como histórias de relativo sucesso, já que os índices costumavam ser muito maiores. Em 1990, por exemplo, para cada 100 mil nascidos vivos nos Estados Unidos, 155 bebês morriam de forma súbita durante o sono, de causas diversas que incluem SMSL. Dez anos depois, essa taxa havia caído para 94 a cada 100 mil nascidos vivos — e reduções similares foram observadas em todo o mundo. Mas, nos últimos 20 anos, os índices se estabilizaram. Em 2020, a taxa foi de 93 bebês a cada 100 mil nascidos vivos. E, embora os avanços da assistência médica, vacinas e medicamentos tenham ajudado, em muitos países, a combater e até erradicar diversas doenças que antes matavam milhares de crianças pequenas — como sarampo, caxumba, pólio e coqueluche, para mencionar algumas —, as mortes súbitas noturnas continuam sendo um mistério. Não existe uma "vacina contra a SMSL". Mais do que isso, a SMSL é um diagnóstico por exclusão. Se não houver uma causa clara de morte, a SMSL frequentemente é o que aparece no atestado de óbito. E também não sabemos o que causa a SMSL. "Por muitos anos, achamos que havia algo chamado SMSL. Este não é o modelo de trabalho atualmente", afirma Richard Goldstein, importante pesquisador da SMSL e especialista em cuidados pediátricos paliativos do Hospital Infantil de Boston e da Faculdade de Medicina da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. "A SMSL é descritiva — é a descrição de algo que ocorreu. E essa ocorrência é que um bebê aparentemente saudável é colocado para dormir e morre durante o sono sem causa aparente", explica ele. É verdade que conhecemos muitas formas de reduzir o risco da morte súbita inesperada na infância. É por isso que os pais são instruídos a manter as vacinas dos seus filhos atualizadas, não fumar, dormir no mesmo quarto dos bebês, colocar os bebês para dormir de barriga para cima e nunca dormir com seu bebê na cadeira ou no sofá, em superfícies muito moles ou sob a influência de álcool ou drogas. Entre outras instruções para reduzir o risco de SMSL, aconselha-se aos pais que nunca deixem seu bebê em uma posição em que o queixo fique sobre peito, o que restringe suas vias aéreas (como pode acontecer em um moisés, cadeirinha para carro ou miniberço). Eles também não devem "embrulhar" o bebê, o que pode causar superaquecimento. Produtos para dormir inclinados, como miniberços e protetores de berço, foram recentemente proibidos nos Estados Unidos devido ao risco que eles representam, mas permanecem no mercado em outros países. E uma das razões que servem de incentivo à amamentação é sua relação com o menor risco de SMSL. Algumas dessas orientações remetem à fisiologia infantil básica. "O mais importante para o seu bebê é ter em mente que o que eles precisam durante o sono é fundamental. É diferente do que os adultos precisam durante o sono", segundo a pesquisadora Anna Pease, da Universidade de Bristol, no Reino Unido, que estuda formas de ajudar a prevenir a SMSL. "Os bebês respiram preferencialmente pelo nariz", explica ela. "Nas primeiras semanas, eles respiram apenas pelas narinas quando estão dormindo. São orifícios minúsculos, muito pequenos, e eles precisam conseguir todo o oxigênio para sobreviver através dessas minúsculas narinas. É por isso que eles precisam ter o rosto livre." "Tudo bem, eles querem agarrar o ursinho ou você pendurou um pedaço de musseline ao lado do seu rosto — arranque. Parece bonito para você, mas aquelas narinas estão mantendo o bebê vivo. Tenha certeza de que elas não sejam cobertas de nenhuma forma", ensina Pease. Os bebês e crianças pequenas também se superaquecem com mais facilidade que os adultos. É por isso que as famílias são instruídas a não colocar roupas demais nas crianças e também evitar comportamentos comuns, como cobrir o carrinho para ficar mais escuro. Quando o assunto é especificamente a SMSL, minimizar o risco não é o mesmo que erradicar as mortes — e compreender o que aumenta o risco da síndrome não é o mesmo que conhecer as suas causas. Uma análise de 4.929 casos de morte súbita inesperada na infância nos Estados Unidos, incluindo a SMSL, concluiu que quase 75% das mortes ocorreram em um ambiente de sono com pelo menos um fator de risco. Mas isso também significa que mais de um a cada quatro bebês que morreram estavam em ambientes que aparentemente seguiam ao pé da letra as orientações de sono seguro. Da mesma forma, uma análise das práticas de proteção das crianças contra todos os tipos de mortes súbitas inesperadas na infância, incluindo SMSL, na Inglaterra e no País de Gales em 2018/19 concluiu que "fatores que poderiam ser modificados" foram identificados em 60% dos 325 casos. E, em 40% dos casos, não foram encontrados fatores de risco (o que, vale a pena notar, pode também ser devido à falta de informação). Também é preciso ter em mente o que é considerado fator de risco. Nos Estados Unidos, por exemplo, fator de risco é qualquer desvio de um conjunto específico de circunstâncias: uma criança deitada de barriga para cima em um berço, sem nada além de um colchão seguro aprovado e um lençol adequado. Alguns casos classificados como apresentando fatores de risco podem ser bebês que dormem junto com um dos pais que havia consumido álcool ou drogas, enquanto outros podem ser simplesmente bebês deitados de barriga para cima em um berço, com um urso de pelúcia próximo. Existe ainda outro problema. "Nós não temos dados comparativos para mostrar quantas crianças com os mesmos fatores de risco não morrem — nós não compreendemos o denominador", afirma Goldstein. Harrington, por exemplo, havia seguido todas as recomendações sobre sono seguro. Para ela e para a maioria dos pesquisadores da SMSL hoje em dia, era preciso ter um motivo para que alguns bebês com problemas pudessem acordar, enquanto outros, como Damien, não conseguiam. Tecnicamente, o diagnóstico de SMSL agora é usado apenas para bebês com menos de um ano de idade. Hoje, a morte de Damien seria considerada "morte súbita inexplicável na infância". Mas muitos pesquisadores acreditam que os fenômenos e as causas podem ser similares. "Eu não conseguia entender por que esses bebês não acordam", afirma Harrington. "Nós temos mecanismos de sobrevivência muito poderosos. Um bebê acorda com muita rapidez quando está insatisfeito." Damien morreu em 1991. Em 1994, Harrington, que já tinha graduação em ciências com especialização em bioquímica, saiu do seu emprego como advogada para dedicar sua carreira à pesquisa da SMSL. Em 2021, depois de mais de 25 anos, ela estava pronta para desistir. Em dezembro, ela tinha certeza de que seu estudo mais recente, para verificar se havia alguma associação entre um possível marcador bioquímico chamado butirilcolinesterase (BChE) — uma enzima que desempenha papel fundamental nas funções autônomas, como a respiração e o sono — e a SMSL, não iria encontrar nada. Ela pensou em se aposentar e passar o resto da vida pintando ou aprimorando seu francês. Até que ela examinou os números. Em uma amostra de cerca de 700 bebês, incluindo 26 que morreram de SMSL, os bebês que sofreram SMSL tinham, em média, menor atividade de BChE, medida em coágulos sanguíneos secos retirados dois ou três dias após o nascimento, em comparação com os bebês que não morreram de SMSL. Impulsionadas por um otimista comunicado à imprensa, as descobertas deram a volta ao mundo. As manchetes promoveram o estudo de Harrington de forma exagerada, afirmando que ela havia encontrado a "causa" da SMSL, ou que a "cura" era iminente. Mas, infelizmente, nada disso é verdade. "Este é apenas um biomarcador. Não é a causa", afirma Harrington. "Neste estágio, o que ele mostra é um aumento da vulnerabilidade. O estudo ainda precisa ser confirmado por um laboratório independente. Mas o mundo precisa muito de uma resposta porque simplesmente não sabemos quais bebês irão morrer." A morte súbita de um bebê durante a noite é uma tragédia tão antiga quanto a história humana. Uma referência antiga na literatura vem do Velho Testamento. Nele, o rei Salomão soluciona uma disputa entre duas mães sobre qual é o filho de cada uma delas. Uma das mães havia perdido o bebê durante a noite porque havia "se deitado sobre ele". O medo de sufocamento permaneceu forte por séculos. Nos anos 1800, nos países ocidentais, mais famílias começaram a colocar os bebês em quartos separados dos pais. Mas os bebês continuaram morrendo. E não foi só isso. Ao longo do século 20, as taxas dispararam em muitos países — embora fossem mais baixas em países como o Japão, onde as famílias frequentemente dormem em camas compartilhadas. Ficava claro que estava acontecendo algo mais do que "deitar-se sobre o bebê". Na verdade, agora sabemos que bebês que dormem em quartos separados dos pais têm risco mais alto de SMSL e, por isso, geralmente se recomenda que pais e bebês durmam no mesmo quarto. "No final dos anos 1980, quando a SMSL era muito mais comum, havia cerca de 1,5 mil mortes por ano" no Reino Unido, segundo Pease. "Todos pareciam conhecer alguém, ou conhecer alguém que conhecia alguém, que teve um bebê que morreu, totalmente sem motivo, durante o sono." Primeiramente, a resposta para o que estava acontecendo parecia estar na forma em que os bebês eram colocados para dormir. Na Holanda, por exemplo, as mortes por SMSL mais que dobraram depois que os pais foram instruídos a colocar os bebês para dormir de bruços. Agora está claro para nós que colocar os bebês para dormir de bruços, ou de barriga para baixo, aumenta muito o risco de SMSL. Isso pode ocorrer porque, aparentemente, essa posição impede a reação dos bebês de despertar — o que normalmente os agitaria se estivessem com dificuldade para respirar, por exemplo — e também aumenta a possibilidade de superaquecimento. Os países começaram a promover campanhas de saúde pública, destacando a importância das orientações sobre o sono seguro. Normalmente se atribui a essas campanhas a redução pela metade das taxas de SMSL e a incidência de bebês que sofreram SMSL encontrados de bruços diminuiu significativamente. Mas, embora as campanhas fossem conhecidas como "Volte a Dormir", este é um nome muito simplista. Além de instruir os pais a colocar os bebês deitados de barriga para cima, elas enfatizaram fatores como não fumar, já que o fumo aumenta o risco de SMSL. Também se pode observar que as taxas de SMSL caíram ao mesmo tempo que a mortalidade infantil por outras causas - um sinal de que mudanças mais sistêmicas, como a maior universalidade da assistência pré-natal, podem ter colaborado. A determinação dos fatores de risco para a SMSL é importante e já salvou milhares de vidas. Mas não se chegou à causa da SMSL, nem ao fornecimento de uma cura. "Meu trabalho é lidar com famílias que passaram por isso. Em nome delas e em meu próprio, eu diria: 'faça tudo o que puder'", afirma Goldstein. "Mas, como pesquisadores que querem erradicar a SMSL, queremos saber qual é o processo causador para podermos combatê-lo diretamente." Existem diversos motivos para que a SMSL seja tão difícil de desvendar. Um deles é que ela acontece durante o sono, quando o bebê normalmente não está sob vigilância. Outro motivo é a forma de classificação da SMSL. Quando a SMSL começou a ser acompanhada, os médicos examinadores muitas vezes classificavam a morte de um bebê durante o sono como SMSL. Mas, atualmente, essa classificação é mais precisa. Por isso, parte da redução da SMSL pode dever-se a um efeito estatístico artificial - embora os pesquisadores indiquem que, novamente, a queda e a estabilidade da morte súbita inesperada refletem os níveis gerais da mortalidade infantil, de forma que é improvável que este efeito isoladamente tenha grande influência. Atualmente, segundo Pease, em vários países, incluindo o Reino Unido e os EUA, uma morte é definida como SMSL quando, mesmo após o exame post-mortem, avaliação do histórico clínico e investigação das circunstâncias, não houver causa concreta da morte. Mas, mesmo nesses casos, muitos patologistas sentem-se mais confortáveis com o termo "indeterminada", afirmando sua percepção de que a SMSL indica um único fator patológico desconhecido. Por isso, as taxas de SMSL podem sofrer subnotificação. Também existem outras razões pelas quais pode haver mais casos de SMSL do que pensamos. Se um bebê for encontrado deitado de bruços, por exemplo, muitos patologistas diagnosticarão a causa da morte como algo como "asfixia posicional" e não SMSL - mesmo se as crianças nessas circunstâncias, em sua maioria, acordarem e mudarem de posição sozinhas, segundo o cientista forense Torleiv Ole Rognum, importante pesquisador da SMSL da Universidade de Oslo, na Noruega. Ou, conforme o recente artigo de Goldstein e seus colegas, os médicos examinadores muitas vezes afirmam que a causa da morte foi "sufocamento" quando observam algum fator de risco relativo ao sono no local da cena, como um cobertor ou travesseiro, mesmo que não haja evidências físicas de que o bebê tenha sofrido obstrução da respiração. O processo de investigação também varia de um país para outro. Na Noruega, segundo Rognum, realiza-se autópsia completa em até 48 horas após a morte, incluindo um elemento particularmente importante: a microbiologia. Já no Reino Unido, uma autópsia médica leva uma semana e uma autópsia forense só é completada em um mês. "Isso é estranho", segundo ele. "O que você pode encontrar em uma autópsia depois de um mês? Já demonstramos que você não pode confiar na microbiologia por mais de 48 horas depois da morte." Além disso, segundo Goldstein e seus colegas, as mortes súbitas de bebês são avaliadas fora das instituições que investigam doenças não diagnosticadas. Muitas vezes tratadas inicialmente como investigações criminais, elas recebem autópsias forenses, que não envolvem técnicas como identificação fenotípica avançada e pesquisas moleculares que são empregadas para diagnósticos clínicos. E isso ocorre mesmo sabendo que a SMSL é "a última doença não diagnosticada", segundo Goldstein. "Além de não responder à confusão e à dor emocional das famílias, nós permitimos que a avaliação post-mortem concentre-se principalmente na questão legal da forma da morte, em vez da questão médica de causas biológicas e ambientais", segundo o estudo. Goldstein e seus colegas prosseguem: "a abordagem atual pode responder questões sobre maus-tratos, mas elimina todos os esforços para saber mais sobre fatores etiológicos, incluindo possíveis riscos para os irmãos, para os familiares enlutados. A medicina não tenta exaustivamente explicar essas mortes, mesmo que essa prática seja rotineira em outras doenças." Tudo isso dificultou a obtenção de uma amostra representativa das mortes por SMSL. É uma dificuldade acentuada pela sensibilidade do processo de pesquisa, particularmente em estudos que analisam amostras de tecido ou de sangue, como nas pesquisas realizadas por Harrington, pois os pais precisam fornecer seu consentimento prévio. E, como as pesquisas dependem de pais que se sintam "capazes ou interessados" em contribuir, segundo Goldstein, as famílias brancas, ocidentais e relativamente abastadas são sobrerrepresentadas — mesmo sabendo que o risco de SMSL é muito mais alto entre as famílias em situação socioeconômica mais baixa e que, em países como o Reino Unido, a diferença de probabilidade de morte súbita na infância entre as classes socioeconômicas está aumentando. "Os grupos sociodemográficos das crianças com maior risco de SMSL são os que têm menor probabilidade de participar [dos estudos]", segundo ele. "Também é razoável afirmar que são os grupos sociodemográficos mais sujeitos a serem tratados com mais severidade e suspeitas durante o atendimento à morte dos seus filhos." Como ocorre com todas as mortes súbitas e inesperadas, os casos de SMSL são inicialmente tratados com suspeita, ou seja, a primeira medida é eliminar qualquer possível delito por parte dos cuidadores. E existe a relativa falta de recursos de pesquisa. Nos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos, a maior fonte de financiamento médico do mundo, a SMSL é uma das áreas de pesquisa pediátrica que recebe menos recursos. Mas, mesmo com todos esses obstáculos, os pesquisadores estão chegando mais perto de compreender a SMSL. Apesar da ampla cobertura jornalística, Harrington não foi a primeira pesquisadora a encontrar um possível "biomarcador da SMSL". Nem estamos totalmente perdidos sobre quais podem ser as possíveis causas. Primeiramente, existe outra razão por que, ao longo dos anos, as mortes por SMSL diminuíram: nós descobrimos por que alguns desses bebês estão morrendo. Não foram apenas as mudanças de classificação das mortes como SMSL. Na verdade, em alguns casos, nós conseguimos evitar essas mortes. Tomemos como exemplo os distúrbios da oxidação dos ácidos graxos (DOAG), que são defeitos genéticos que eliminam a capacidade do corpo de produzir energia e podem fazer com que um jejum seja mortal em questão de horas. Sabemos agora que até 5% das mortes que eram classificadas como SMSL foram causadas por DOAG. Atualmente, os recém-nascidos são examinados rotineiramente em muitos países para determinar o tipo mais comum de DOAG, a deficiência de acil-CoA desidrogenase de cadeia média (MCADD, na sigla em inglês), que afeta um a cada 20 mil bebês com ascendência do norte da Europa. Os exames de recém-nascidos não são a panaceia. Mas, no caso da MCADD, que é uma condição rara na qual o corpo não consegue decompor a gordura para obter energia e pode ser especialmente perigosa se a pessoa ficar algum tempo sem comer, o exame salva vidas. Rognum relembra uma criança que morreu depois de vomitar por algumas horas. A autópsia revelou uma mutação da MCADD, além de uma doença hepática, provavelmente causada pela deficiência. "Isso não deve acontecer de novo", afirma ele. "Se conhecermos o diagnóstico [da deficiência], cuidaremos para que aquela criança não sofra hipoglicemia e ela não irá morrer." "Acho que encontraremos mais dessas causas que podem ser explicadas", acrescenta Rognum. "Elas precisarão ser excluídas do 'conjunto' da SMSL." Mas a maioria dos pesquisadores ainda acredita que, mesmo que diagnósticos mais precisos de doenças como a MCADD ajudem a oferecer explicações para algumas das mortes que teriam sido classificadas como SMSL, eles nunca irão contar toda a história. Existe um fenômeno central comum a muitos bebês que morrem de SMSL. Ele está relacionado com o despertar do sono. Essa teoria surgiu nos anos 1980, quando os hospitais começaram a usar monitores médicos para recém-nascidos, incluindo os que morreram de SMSL sob cuidados médicos. Observando esses novos dados, os pesquisadores começaram a observar que os bebês que sofreram SMSL tinham padrões de sono diferentes. Particularmente, os bebês que morreram de SMSL moviam-se menos e se agitavam e despertavam espontaneamente com menos frequência. E, ao observar os dados dos bebês nos momentos anteriores à morte por SMSL, enquanto eram monitorados, os pesquisadores também observaram algo mais. Goldstein explica que, quando um bebê saudável tem pouco oxigênio ou níveis elevados de dióxido de carbono, sua respiração é suspensa (a chamada "pausa apneica") antes que ele comece a ofegar. "Essa respiração ofegante, em bebês saudáveis, normalmente causa aumento dos batimentos cardíacos", segundo Goldstein. "Os bebês despertam e ocorrem os reflexos relativos ao despertar: eles se curvam, bocejam, se viram, acordam e choram, o que libera a maioria dos bebês das obstruções relativamente pequenas e eles sobrevivem." "Mas os bebês com SMSL não fazem isso. Eles não despertam e permanecem 'desligados' entre essas respirações ofegantes, que são dirigidas por certos centros do cérebro, e a reação cardíaca", afirma ele. Isso significa que existe um "círculo vicioso", no qual o sistema de feedback não funciona, fazendo com que o bebê entre em coma e morra, segundo Rognum. Mas por quê? Na Noruega, Rognum e o pediatra e neurocientista Ola Didrik Saugstad apresentaram a teoria do "triângulo fatal", que eles definiram como "um período vulnerável após o nascimento, alguma predisposição genética e um evento acionador". E, nos Estados Unidos, mais ou menos na mesma época, uma equipe liderada por Goldstein e Hannah Kinney, do Hospital Infantil de Boston, apresentou uma ideia similar: o "modelo do risco triplo". Esta foi a denominação que se popularizou e esta teoria é agora a principal explicação entre os pesquisadores da SMSL. A teoria vai de encontro ao que os cientistas suspeitavam pelo menos desde os anos 1970: que a SMSL não é causada por um único evento, mas por diversos fatores reunidos. "Não existe uma única razão", afirma Goldstein. "Nós a incluímos mais na categoria de expressão de uma doença rara não diagnosticada que, pelo menos por parte do tempo, na sua apresentação inicial, é incompatível com a sobrevivência." Rognum havia observado que o período de maior risco de morrer de SMSL - entre o segundo e o quinto mês depois do parto - é também um período em que o sistema imunológico se desenvolve rapidamente. "Algo que se desenvolve muito rapidamente também é instável", afirma ele. Este é o período de maior vulnerabilidade após o nascimento. O evento acionador pode ser uma infecção respiratória sazonal ou dormir de bruços, ou ambos - uma combinação que aumenta em 29 vezes o risco de SMSL. Mas Rognum ressalta que, muitas vezes ao contrário da crença popular, o risco de SMSL nos primeiros meses de vida em comparação com os meses posteriores é menor do que antigamente - e que segue havendo risco de morte após os cinco meses de idade. Já a identificação da predisposição pode ser o quebra-cabeça mais difícil no campo da SMSL. Mas este mistério também vem sendo desvendado nos últimos anos. Diversos pesquisadores, incluindo Kinney, pensavam que poderia ser algo relacionado ao sistema serotonérgico - os neurotransmissores concentrados no tronco encefálico que regulam diversos processos automáticos, incluindo o sono e a respiração. Nos últimos 20 anos, a equipe de Kinney aprimorou sua hipótese com diversos estudos. A elevação da serotonina (5-HT) no sangue, particularmente, é um biomarcador da SMSL em cerca de 30% dos casos. E outras equipes confirmaram suas descobertas. Um estudo de autópsias, por exemplo, concluiu que os níveis de serotonina eram 26% mais baixos em casos de SMSL do que em bebês saudáveis - um biomarcador descoberto antes da conclusão de Harrington. Da mesma forma, Rognum acreditava que o elemento genético pudesse dever-se a variantes, ou polimorfismos, nos genes que produzem as interleucinas, que podem ser moléculas anti-inflamatórias ou pró-inflamatórias. Elas normalmente são produzidas em resposta a danos causados por lesões ou infecções, de forma que variantes desses genes podem fortalecer ou enfraquecer esta parte da reação imunológica. "Descobrimos que os casos de SMSL apresentavam níveis significativamente mais altos de interleucina-6 no líquido cefalorraquidiano. É a interleucina que nos causa febre", afirma Rognum. "Metade dos casos de SMSL apresentou níveis similares a crianças que morreram de meningite e septicemia, sem que elas tivessem essas doenças." Em um estudo, Rognum, Kinney e outros pesquisadores examinaram como estas duas descobertas podem ser reunidas, observando se os bebês com SMSL apresentam maior propensão a ter seu sistema serotonérgico comprometido, alterando a forma de expressão dos receptores de interleucina-6. E a resposta foi afirmativa. Particularmente, o estudo demonstrou que, na parte do tronco encefálico envolvida nas reações de proteção ao acúmulo de dióxido de carbono, os bebês exibiram expressão anormal do receptor de interleucina-6. E é claro que o acúmulo de dióxido de carbono pode ser causado pela sua reinspiração, por exemplo, por dormirem de bruços. "Os bebês com SMSL são bebês 'normais' que morreram sufocados acidentalmente?", questionaram Kinney e outros pesquisadores em outro estudo. "Na verdade, a pesquisa do tronco encefálico indica que eles apresenta vulnerabilidade subjacente no sistema de alarme serotonérgico, o que os torna suscetíveis à morte súbita. Este é o modelo do risco triplo." Os pesquisadores chegaram a demonstrar o mesmo efeito em filhotes de camundongos. Ao inibir-se a transmissão serotonérgica, os filhotes têm menos possibilidade de recuperar-se da apneia - a súbita suspensão da respiração durante o sono - causada pela falta de oxigênio e apresentam maior probabilidade de morrer. Esta sequência é idêntica à observada pelos pesquisadores nas gravações dos monitores do sono de bebês que morreram de SMSL. Outros defeitos do DNA também podem estar relacionados. Uma variante do gene SCN4A, que afeta a função dos músculos respiratórios e é observado em alguns distúrbios neuromusculares, foi associado ao aumento do risco de SMSL. Mas, embora haja um elemento genético para a SMSL em alguns bebês, não existe um "gene da SMSL". Um estudo concluiu que os genes associados a doenças conhecidas que parecem colaborar para a morte súbita infantil compõem cerca de 11% dos casos conhecidos, enquanto outro estudo concluiu que este índice pode ser de 20%. São números significativos, mas que estão longe de explicar todas as mortes. Também parece haver uma relação entre a SMSL e a epilepsia. Os bebês que morrem de SMSL são mais propensos a exibir essas condições ou biomarcadores, mas nem todos os exibem. E, embora esses biomarcadores às vezes estejam presentes em crianças que morrem de SMSL, eles também podem ser encontrados em crianças que não sofreram a síndrome. O modelo de risco triplo permanece sendo mais uma descrição do que uma explicação real da SMSL. Ainda não está claro por que alguns bebês nascem com esses problemas e outros, não. E, talvez o mais importante para os pais, além de reduzir os fatores de risco no ambiente em que os bebês dormem, ainda é difícil saber como usar estas informações mais amplas para salvar vidas. "Exames de serotonina durante autópsias nunca foram um procedimento generalizado nos cuidados clínicos", afirma Goldstein. "Na verdade, ninguém sabe o que fazer com isso. É uma ciência complicada que não foi transformada em exames com aplicações clínicas." Isso nos leva à questão sobre o que fazer com os biomarcadores da SMSL, de forma geral. Pesquisadores como Kinney descreveram que a esperança é de que as informações possam ser empregadas para selecionar pacientes e evitar mortes, utilizando "biomarcadores neurais e estratégias de tratamento relacionadas ao cérebro". Mas ainda não chegamos a este ponto. Podemos tomar como exemplo a possível descoberta feita por Harrington de níveis mais baixos de atividade de BChE em bebês que morreram de SMSL. Isso pode indicar um problema de respiração ou outras funções autônomas. Embora o nível médio de atividade de BChE seja diferente entre os bebês que morreram de SMSL e os controles, as faixas de BChE entre os grupos coincidiram, o que significa que pode ser difícil indicar exatamente qual nível de BChE pode indicar um problema, se é que esse nível existe. Mesmo se considerarmos que existe um nível que pode ser empregado para identificar um possível problema, o que fazer com essa informação é um dilema ético. Todos os pais já são instruídos a seguir orientações de sono seguro. As "estratégias de tratamento relacionadas ao cérebro" mencionadas por Kinney ainda não existem. Na ausência de conselhos adicionais para os pais cujos filhos podem ser vulneráveis e considerando que a maioria das crianças que têm esses biomarcadores não morrerá de SMSL, informar os pais pode amedrontar as famílias sem necessidade. Sem uma causa específica, a SMSL continua sendo uma trágica combinação de fatores. A SMSL não é um mistério total. E, quanto mais descobrimos sobre ela, mais sabemos que os hábitos de sono seguro - embora sejam fundamentais - não contam toda a história. Esse conhecimento é importante, não apenas para nos aproximarmos da erradicação da SMSL, mas também para as famílias que, muitas vezes, enfrentam a vergonha e a culpa além do seu luto, segundo Goldstein, que trabalhou com centenas de famílias enlutadas ao longo da sua carreira. Ele ressalta que apenas cerca de 18% das mortes causadas por SMSL têm evidências suficientes de sufocação ou que a probabilidade de ocorrência de mortes por SMSL é muito maior nas creches do que nas casas de família, mesmo que os bebês nas creches não tenham maior probabilidade de serem encontrados de bruços ou em condições de sono inseguro que na casa dos seus pais. "Existe essa insinuação de negligência e talvez, às vezes, seja o caso", afirma Goldstein. "Mas a SMSL não é a história de pais que não estão ouvindo seus médicos e ignorando orientações." Mesmo nos casos que envolviam situações de risco, em que os cuidadores não seguiam todas as orientações de sono seguro, a análise dos incidentes de SMSL conduzida pelo órgão de análise das práticas de proteção das crianças da Inglaterra concluiu que "não houve, em nenhum dos [14] casos [analisados], nenhuma indicação de que os pais houvessem tentado causar qualquer dano para o seu filho - pelo contrário, a maioria desses pais apresentou-se tão dedicada, amorosa e cuidadosa quanto qualquer outro pai". Mas o órgão recomendou que, além de informar aos pais sobre o que fazer, as orientações deveriam também explicar por quê - explicar, por exemplo, como as minúsculas vias aéreas do bebê podem ficar obstruídas se ele estiver dormindo com o queixo sobre o peito. O líder do relatório, Peter Sidebotham, acrescentou que fatores fora do controle da família podem acabar também sendo fatores de risco. Um profissional de saúde pode não ter oferecido orientações sobre o sono seguro para os pais, por exemplo, ou a família pode ter sido despejada da sua residência, acabando em acomodações temporárias ou inadequadas. Mas culpar os cuidadores é uma história tão antiga quanto a da própria morte súbita infantil. Basta ver a história das duas mães no Velho Testamento, mencionada anteriormente. "Não há compaixão com a outra mulher", afirma Goldstein. "Você poderia ter facilmente imaginado que fosse uma explicação do profundo desespero por perder o seu filho. Mas ela é simplesmente abandonada na história." Isso nos traz de volta ao argumento central de Goldstein e de outros pesquisadores: é importante continuar a instruir os pais sobre o sono seguro. Mas identificar os fatores de risco nunca será uma bala de prata. Para encontrar uma cura para a SMSL, a ciência precisa identificar a sua causa. "Ainda não conseguimos. Nem chegamos perto", afirma Harrington. Mas agora ela pode contar sua própria contribuição para a pesquisa sobre a SMSL e para o longo caminho em busca de respostas. "Se você me perguntar qual é a minha esperança, ela sempre foi, desde que Damien morreu, de poder fazer alguma coisa no estágio de recém-nascido, que possamos identificar e proteger", ela conta. "Esta sempre foi a minha esperança. Esta descoberta me deixou mais esperançosa." A síndrome da morte súbita do lactente (SMSL) é definida como a morte súbita e sem explicação de um bebê aparentemente saudável, normalmente durante o sono (incluindo sonecas). Ela continua sendo uma importante causa de morte de bebês em todo o mundo. A SMSL enquadra-se em uma categoria mais ampla chamada "morte súbita inesperada na infância" (SUDI, na sigla em inglês), que inclui a SMSL, acidentes como sufocação ou estrangulamento, além de causas desconhecidas. Como determinar se um bebê morreu de SMSL ou de um acidente como sufocação pode ser algo complexo, é comum observar a taxa geral de SUDI para verificar se as taxas estão aumentando ou diminuindo. Em países como os Estados Unidos, após uma grande redução nos anos 1990, as taxas de SUDI se estabilizaram. Os pesquisadores ainda estão determinando o que causa a SMSL. A esperança é que, quanto mais pudermos compreender quais são as causas da SMSL, mais poderemos evitar sua ocorrência. Ainda não conhecemos exatamente as causas da SMSL, mas sabemos que determinadas práticas de sono trazem aumento do risco de morte dos bebês durante o sono. Por isso, as orientações abaixo são recomendadas para todo tipo de sono, incluindo as sonecas. Elas foram elaboradas pela organização britânica Lullaby Trust:
2022-11-26
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-63582633
sociedade
Cabeleireira fica careca após diagnóstico de alopecia: 'perdi os fios e minhas clientes'
O amor pelos cabelos e a vaidade fizeram Yasmin Torquato Ribeiro escolher ser cabeleireira ainda na adolescência. Mas, por ironia do destino, em 2017, quando ela tinha 23 anos e já trabalhava há quase cinco cuidando do cabelo de dezenas de mulheres de Juiz de Fora (MG) ela começou a perder as suas madeixas. Seis meses mais tarde veio o diagnóstico: ela possuía alopecia areata. A alopecia areata é uma condição rara que se caracteriza pela perda de cabelo em áreas arredondadas ou ovais do couro cabeludo. Ela acomete homens e mulheres, independentemente da idade, e atinge de 1% a 2% da população. "Eu tinha um cabelo grande, bem cuidado e em bastante volume, jamais imaginei que um dia eu pudesse ter algum problema relacionado a eles. Até receber o diagnóstico corretamente passa mil coisas na nossa cabeça, eu achava que tinha alguma doença rara que os médicos não conseguiam descobrir e até mesmo que eu pudesse morrer", recorda. Desde que recebeu o diagnóstico de alopecia areata, Yasmin, hoje com 28 anos, passou por diversos médicos e especialistas. Todos os profissionais diziam que, apesar dos tratamentos e medicações, não dava para garantir que o problema seria resolvido e a queda diminuiria. Alguns chegavam a dar esperança, mas outros eram categóricos em dizer que os tratamentos não fariam efeito e ela perderia grande parte dos seus fios. "No começo, a falta de fios atingia uma parte do meu coro cabeludo, formando um buraco do tamanho de um copo. Com o tempo ele foi aumento e a cada semana meu cabelo caia mais. Mesmo fazendo acompanhamento psiquiátrico e psicológico, entrei em depressão, principalmente por trabalhar na área da beleza e saber o que o cabelo representa. Aquela situação me assustou demais", conta a cabeleireira. Fim do Matérias recomendadas Além dos olhares atravessados, a queda dos fios e a falta deles em algumas áreas do couro cabeludo também afetou os negócios da cabeleireira. Muitas clientes pararam de frequentar o salão que ela tem e até mesmo familiares se afastaram após o diagnóstico da condição rara. "Receber o diagnóstico tão nova foi um baque muito grande. Minhas clientes foram se afastando, algumas achavam que era uma doença contagiosa, outras pensavam que eu pudesse ter usado produtos de má qualidade que causou a queda dos meus cabelos. Por mais que eu explicasse que não era nada disso, nada adiantou e minha situação financeira ficou bastante complicada", recorda a cabeleireira. "Não tive apoio, apenas duas pessoas ficaram ao meu lado desde o diagnóstico até quando eu decidi raspar meu cabelo", acrescenta Yasmin. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sem tratamento que fizesse seus fios nascerem e crescerem novamente nos pontos de falha, Yasmin decidiu há dois anos raspar totalmente os cabelos, conviver com o visual careca e encarar o preconceito e olhares tortos das pessoas. "Determinei que se até o dia 31 de dezembro [de 2020] os tratamentos não fizessem efeito eu iria raspar meu cabelo. A data já é um marco por determinar uma passagem para o novo ano e eu determinei que era a data que eu tomaria as rédeas da minha vida, porque até então a doença estava tomando conta de mim. Ali seria o prazo máximo do meu sofrimento", conta Yasmin. Desde então, Yasmin raspa seus fios e mantém um visual careca. Hoje, ela afirma que convive melhor com a sua condição e vê a reação das pessoas como falta de conhecimento sobre a alopecia e sua condição autoimune, que pode atingir qualquer pessoa independentemente dos cuidados que ela tem com os cabelos. "Às vezes na rua uma pessoa me via com a cabeça raspada e perguntava o que eu fiz com o meu cabelo e aquilo me doía muito, porque não era o que eu fiz, mas o que aconteceu para eu perder o meu cabelo. Eu voltava para casa arrasada. Hoje sou muito bem resolvida quanto a isso. Eu não fico mais observando as pessoas ao meu redor e não olho quem está me olhando. Eu estar bem comigo, evita que as pessoas façam comentários maldosos, que me julguem pelo meu cabelo e aparência, ou me façam perguntas desconfortáveis", conta. Mesmo aceitando sua falta de cabelos e assumindo o visual careca, Yasmin afirma que possui quatro laces, as populares perucas, e as utiliza como acessório sempre que quer mudar o visual. "Aproveito para ter vários visuais diferentes, amo essa versatilidade de poder ser loira e daqui a um segundo estar morena com o cabelo grande ou curto, essa é a parte legal de usar a lace, virou um acessório", diz. Além de fazer a manutenção das próprias laces - elas precisam ser lavadas e cuidadas como nosso cabelo - Yasmin, por ser cabeleireira, também faz esse tipo de serviço em seu salão, atraindo diversas mulheres com a mesma condição que a sua. Hoje Yasmin fala abertamente sobre sua condição rara e busca, através do seu exemplo, ajudar outras mulheres que possuem alopecia e enfrentam situação semelhante. Através de vídeos nas redes sociais e até mesmo conversas pessoalmente em seu salão, a cabeleireira busca acolher essas pessoas e mostrar que há muita vida apesar da condição que as fazem perder os cabelos. "Muita gente me procura para pedir ajuda, como deixar a lace mais natural, cortar ou fazer mexas e dou esse suporte para essas pessoas. Ajudo até mesmo com uma palavra, recebo essas pessoas, converso com elas e passo um pouco da minha experiência. É uma forma de mostrar para que é possível ter uma vida normal após o diagnóstico da alopecia e não há nada de anormal em ser careca", conta. Toda pessoa perde, em média, 100 fios de cabelo por dia, mas quando os fios caem além desse padrão, isso é considerado queda e é importante buscar ajuda profissional, segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD). "Cada fio de cabelo cresce por média de 6 anos, quando ele cai deve ser substituído por um fio igual a ele e muitas dessas alopecias não permitem que esse novo fio substituía o que caiu interrompendo o ciclo natural do cabelo", explica a dermatologista Fabiane Andrade Mulinari Brenner, coordenadora do Departamento de Cabelos e Unhas da SBD. Os tratamentos variam conforme o tipo da doença e em alguns casos, como em situações de falta de determinadas vitaminas no corpo, o cabelo retoma o crescimento com a mudança na alimentação. Em outras situações, é indicado o uso de medicamentos e até mesmo terapias para estimulação da área. Há basicamente três tipos de alopecias, sendo popularmente chamadas de queda de cabelo excessiva e cada uma possui características especificas. Elas afetam homens, mulheres e até mesmo criança, já que não tem relação direta com o sexo ou idade. Encarar o diagnóstico de alopecia areata nem sempre é tarefa fácil; por isso, há 20 anos, foi fundado o AAGAP - Grupo de Apoio aos Paciente com Alopecia Areata, com parceria com a Sociedade Brasileira de Dermatologia. O objetivo do grupo é dar orientações sobre como conviver com a condição e com mais qualidade de vida. Além dos pacientes, familiares e amigos também podem participar. Uma vez por mês, aos sábados, acontecem encontros presenciais em São Paulo, onde os presentes recebem orientações de dermatologistas e psicólogos. "Nós criamos o grupo onde fazemos reuniões informais para auxiliar essas pessoas e tirar dúvidas. Além disso, o ambiente com diversos pacientes que compartilham da mesma dor, ajuda com que eles se sintam acolhidos, dividam experiências e criem mais forças para seguir uma vida normal", explica a dermatologista Enilde Borges Costa, que integra o AAGAP.
2022-11-23
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sociedade
Jovem descobre doença rara após preenchimento labial com inchaço incomum
Após realizar um preenchimento labial com ácido hialurônico, a empresária Pamela Andrade, de 23 anos, sofreu um forte inchaço na boca, no rosto, nos olhos e pensou que os sintomas fossem efeito colateral do procedimento estético. A região da face ficou tão inchada que, ao divulgar o alerta em seu perfil no Tik Tok, algumas pessoas pensaram que as imagens postadas eram montagem. Para sua surpresa, os sintomas eram devido uma doença genética rara que, por muitos anos, foi negligenciada pelos médicos e atribuída a alimentos. "Eu voltei na hora para clínica e não relacionei com a doença. Achei que tinha ocorrido algo errado", diz em entrevista à BBC News Brasil. O primeiro sinal começou com na parte de cima dos lábios. "É normal inchar, mas não daquele jeito. Me levaram ao hospital, tiraram fotos e nunca tinha acontecido nada daquela forma. Fiquei tomando soro e cheguei a ouvir do médico que era alergia ao ácido hialurônico. Tomei um antialérgico e fiquei esperando", conta. Mesmo recebendo medicação, o inchaço não passou por completo e Pamela só voltou a ter o rosto "normal" depois de quase oito dias. Fim do Matérias recomendadas Por muitos anos a jovem acreditou que o inchaço que tinha no corpo era por causa de alimentos. Uma vez, ao comer pipoca com bacon, seu rosto e mãos ficaram bem inchados e ela relacionou a alteração à comida. A empresária recorda que os primeiros sinais começaram na adolescência e, aos 17 anos, chegou a ir para o hospital. "Uma vez ficou bem feia a alergia, mas sempre foi tratada como algo alimentar. Aplicavam corticoide, mas não dava resultado", relembra. Em algumas ocasiões, o inchaço ocorria até depois de ela bater o celular nos lábios. "Estava mexendo no celular, caía e batia na boca, por exemplo, aí desencadeava uma crise. Mas sempre que ia ao médico, era tratado como uma alergia alimentar", diz. "Minha mão já chegou a inchar e, posteriormente, o intestino incha também. Parecia uma gastrite e eu vomitava bastante", afirma. Quando já estava adulta, começou a suspeitar que não era somente uma irritação alérgica provocada por comida. Da última vez que teve a crise, após o procedimento estético, decidiu investigar mais a fundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Após o inchaço diminuir, a jovem procurou um alergologista, pois os sinais relacionados aos alimentos não faziam sentido. Ao chegar no consultório, informou os sintomas e a médica pediu exames específicos. "Ela fez várias perguntas que batiam com uma doença e tive que fazer um exame raro de sangue e só um laboratório fazia", destaca. O primeiro resultado deu inconclusivo e foi preciso refazer o teste. Ao analisar o segundo exame, foi constatado que ela sofria com angioedema hereditário, doença genética rara. Mesmo seus pais não tendo o problema, ela acredita que herdou a condição da tia, que também sofria com inchaços quando era viva. Na época, o medicamento para tratar o problema custava em torno de R$ 8 mil e era preciso entrar na Justiça para adquiri-lo. No entanto, a médica também encaminhou a jovem para o ginecologista, pois o anticoncepcional tomado durante anos poderia ser um dos fatores desencadeantes das crises alérgicas. "Eu tomava desde os 15 anos, pois tenho ovário policístico. O médico me fez parar os métodos com estrogênio. Tomava pílula só com progesterona", disse. Desde que substituiu a composição do remédio anos atrás, ela não teve mais nenhum sintoma alérgico. Atualmente, optou por não usar nenhum tipo de hormônio. "O anticoncepcional era como um gatilho para as crises", destaca. Depois de muita investigação, ela descobriu que o trauma gerado pela agulha durante o preenchimento labial foi o motivo pelo inchaço e crise após o procedimento na clínica de estética. "Não foi o ácido hialurônico, mas sim a agulha", diz. Ao publicar seu relato nas redes sociais, Pamela recebeu diversos comentários de outras pessoas que, provavelmente, sofrem com o problema, mas até hoje não sabem que têm a doença. Somente em uma única postagem, o vídeo tem pouco mais de quatro milhões de visualizações e 534 mil curtidas. Segundo a jovem, o conteúdo foi feito como alerta para que outras pessoas também possam receber um diagnóstico precoce e seguir com o tratamento correto. "Se eu tivesse sido tratada corretamente não teria tomado tantos corticoides, adrenalina e poderia ter descoberto que era o anticoncepcional que causava o problema e evitado muitas crises", ressalta. Além da face, ela também sofria com inchaço no intestino e acreditava que o incômodo era algo gastrointestinal ou outro problema. "Eu faltava muito no trabalho, pensava que era gastrite e tomava remédio. Mesmo assim, os sintomas só melhoravam depois de três ou quatro dias", conta. "São sintomas que você vai no pronto-atendimento e os médicos tratam como alergia e gastrite, dão medicação, mas esse remédio não faz efeito nenhum e resulta em um sofrimento muito grande". Hoje, ela já está há algum tempo sem nenhuma crise e celebra, mesmo que tarde, a descoberta da doença. "Tenho uma vida totalmente normal e não tive mais nenhum inchaço." É uma doença genética rara, que acomete 1 em cada 50 mil pessoas e que os principais sintomas são ataques de inchaços deformantes. "Acomete principalmente o rosto, mas também pode atingir as extremidades como mãos e pés, deixando-os bem assimétricos. Pode ainda atacar a genital e pegar a via respiratória como língua, laringe e provocar um edema de glote. Também pode ter edemas nas alças intestinais, provocando dores abdominais", explica Marcelo Aun, professor de Imunologia da Graduação em Medicina da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein. O tipo mais comum é o chamado angioedema com deficiência no inibidor de C1 esterase. Esta é uma proteína responsável por controlar a ativação de outras proteínas da nossa imunidade que são conhecidas por "sistema complemento". Assim como ocorreu com Pamela, traumas locais podem desencadear e aumentar as crises alérgicas. "Os traumas são fatores importantes no desencadeamento e geralmente as crises iniciam algum tempo depois no local traumatizado, ainda que seja de baixa intensidade", destaca Alex Isidoro Ferreira Prado, imunologista da USP (Universidade de São Paulo ) e especialista da equipe técnica da Clínica Croce. Os anticoncepcionais com estrogênio também podem aumentar as crises alérgicas, piorando os inchaços. "No caso do angioedema hereditário, o estrógeno pode desencadear as crises e está presente em anticoncepcionais combinados, reposição hormonal e durante o ciclo menstrual", diz Anete Grumach, membro do Departamento Científico de Imunodeficiências da ASBAI (Associação Brasileira de Alergia e Imunologia). Segundo a especialista, o estrógeno atua nos sistemas controlados pelo inibidor de C1, resultando em aumento de bradicinina, que é a responsável direta pelas crises do angioedema. Geralmente, quando mulheres querem continuar com métodos contraceptivos, o recomendado é usar somente os à base de progesterona. É importante um diagnóstico precoce, já que as crises alérgicas podem atrapalhar a qualidade de vida do paciente. Contudo, os médicos destacam que, em muitos casos, pode levar anos, já que a própria classe médica em alguns casos trata como alergia a alimentos ou medicações. Embora seja difícil o diagnóstico, a linha terapêutica é mais acessível aos pacientes e o tratamento deve ser feito por um médico imunologista. A pessoa pode receber medicações nas crises e remédios que vão impedir novas profilaxias. Alguns indivíduos também podem adquirir medicamentos profiláticos antes de procedimentos cirúrgicos em locais de risco como a face. Existem tratamentos mais antigos e que podem ser fornecidos pelo SUS, como os andrógenos atenuados e medicamentos como o ácido tranexâmico. "Temos medicamento para prevenção de crise, que é um comprimido à base de hormônio masculino, mas às vezes falta no SUS", reforça Aun. Algumas medicações novas agem diretamente na doença, bloqueando, por exemplo, a bradicinina, substância importante nas crises. Outros tratamentos fornecem ao paciente a proteína que ele não produz, chamada inibidor de C1. Há ainda medicações injetáveis, mas que são de alto custo e não estão disponíveis no SUS (Sistema Único de Saúde). Os especialistas destacam que cada tratamento deve ser avaliado individualmente e que a pessoa nunca deve se medicar sozinha. "Quando não tratada adequadamente, a doença pode levar a óbito em até 40% dos casos pelo angioedema de laringe, gerando asfixia", diz o especialista da USP. "Pacientes devem sempre se atentar para gatilhos, evitar as crises e utilizar profilaxias. Cada orientação deve ser individual, mas no geral deve-se evitar traumas, esportes de alto impacto, cuidado com procedimentos odontológicos e estéticos", conclui o especialista.
2022-11-21
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sociedade
Adoção de criança indígena por casal branco nos EUA gera debate sobre lei
Uma menina indígena de quatro anos de idade está no centro de uma batalha judicial nos Estados Unidos que poderá ter impacto profundo não apenas em futuros casos de adoção no país, mas também nos direitos e na soberania das mais de 500 tribos reconhecidas pelo governo federal. Na semana passada, a Suprema Corte, mais alta instância da Justiça americana, ouviu os argumentos orais de um caso em que famílias brancas envolvidas na adoção de crianças indígenas contestam uma lei aprovada há 44 anos com a missão de "proteger os interesses" desses menores. A Lei do Bem-Estar da Criança Indígena (ICWA, na sigla em inglês), aprovada pelo Congresso americano em 1978, estabelece que famílias indígenas devem ter sempre prioridade na adoção de crianças que são membros de uma tribo ou cujos pais pertencem a uma tribo. A lei também garante que as tribos tenham voz ativa nos casos que envolvam esses menores. A ICWA dificulta a remoção de crianças indígenas de suas tribos e foi criada para corrigir mais de um século de abusos sofridos por esses menores nos Estados Unidos. Durante décadas, milhares foram separados à força de suas famílias e tribos e enviados para internatos ou lares brancos, onde deveriam abandonar sua cultura, em um processo de assimilação. Mas os autores da ação, encabeçados por um casal branco que briga na Justiça com membros da Nação Navajo para adotar uma menina cuja mãe pertence à tribo, pedem que a Suprema Corte derrube a lei. Fim do Matérias recomendadas Um dos argumentos é o de que a ICWA é discriminatória ao dar preferência a determinado grupo racial, o que viola o direito a igualdade de proteção e é inconstitucional. Além disso, os autores do processo alegam que a lei interfere na autonomia dos Estados. Os defensores da lei, entre eles o governo federal, rejeitam esses argumentos e dizem que as tribos indígenas nos Estados Unidos não são grupos raciais, mas sim políticos. A decisão final da Suprema Corte só deve ser anunciada na metade de 2023. Os argumentos orais ouvidos pela Suprema Corte nesta semana se referem a quatro casos consolidados sob o nome de Haaland versus Brackeen, movidos pelo Estado do Texas e por um grupo de famílias. No centro do processo estão Jennifer e Chad Brackeen, moradores da região metropolitana de Dallas-Fort Worth, no Texas. Em 2016, os Brackeen, que são brancos, evangélicos e pais de dois filhos biológicos, receberam em sua casa um bebê indígena de 10 meses de idade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O menino, identificado no processo pelas iniciais ALM, foi viver com o casal por meio do sistema de acolhimento familiar. Nesse sistema, menores de idade que foram separados de suas famílias por decisão judicial são colocados em lares temporários até que possam voltar a ser reunidos com os familiares ou sejam formalmente adotados. A mãe do bebê pertence à Nação Navajo. Quando ele nasceu, ela vivia no Texas e já havia perdido a guarda de seis outros filhos. O pai do menino é Cherokee. Quando os Brackeen decidiram adotar ALM formalmente, receberam o apoio dos pais biológicos, mas enfrentaram resistência inicial por parte de representantes da Nação Navajo, que defendiam que o bebê ficasse com uma família indígena, conforme prevê a ICWA. Depois de algum tempo, porém, tanto os Navajo quanto os Cherokee acabaram aceitando que o casal adotasse o menino. Os Brackeen evitaram dar entrevistas às vésperas dos argumentos na Suprema Corte. Mas, em declarações anteriores à imprensa, contaram que, durante o processo de adoção de ALM, descobriram por meio das redes sociais outras famílias em situação parecida. Em 2017, com medo de que a adoção de ALM pudesse ser revogada, eles concordaram em se unir a um processo judicial federal contestando a ICWA. Um ano depois, em 2018, a mãe de ALM deu à luz uma menina, identificada no processo pelas iniciais YRJ. Logo após o nascimento, mãe e bebê testaram positivo para a presença de metanfetamina, e agências estaduais colocaram YRJ no sistema de acolhimento familiar. Quando os Brackeen ficaram sabendo que seu filho adotivo tinha uma meia-irmã, entraram com pedido de custódia da menina. Em depoimentos à Justiça, Chad, que é engenheiro civil, mas atualmente se dedica integralmente aos cuidados dos filhos, disse acreditar que as duas crianças devem crescer juntas. Mas, desta vez, os esforços do casal para adotar mais um bebê indígena enfrentaram forte oposição da Nação Navajo. A tribo entrou com um pedido na Justiça para que a custódia de YRJ ficasse com uma tia-avó, que vive no Arizona, dentro da reserva Navajo, em uma casa humilde cercada por familiares e perto de alguns dos outros meio-irmãos da menina. Um juiz decidiu que o casal e a tia-avó dividiriam a custódia, e YRJ moraria na casa dos Brackeen, mas passaria temporadas na reserva. A decisão desagradou ambas as partes, e o caso está agora em um tribunal de apelações do Texas, com julgamento marcado para dezembro. Mas, enquanto esse caso corria na Justiça estadual, o processo federal, iniciado em 2017, continuou a ser litigado, chegando à Suprema Corte. "É importante que as pessoas entendam que isso não é apenas uma lei, é sobre essas crianças e seu valor. É sobre pessoas reais", disse Jennifer, que é anestesista, em entrevista à agência de notícias Associated Press antes dos argumentos na Suprema Corte. Ela e o marido ressaltam que tentam manter as crianças envolvidas em atividades culturais que promovam contato com sua herança indígena. Em entrevista a jornais americanos antes dos argumentos, um dos advogados da família ressaltou que o objetivo da ICWA é evitar que famílias indígenas sejam separadas injustamente, mas YRJ nasceu no Texas e nunca viveu numa reserva ou com uma família indígena. Segundo especialistas, o destino de YRJ poderá ser determinado pela Justiça do Texas já no julgamento do mês que vem. Mas o caso separado que está diante da Suprema Corte, cuja decisão só é esperada para 2023, terá impacto muito mais amplo, afetando adoções no resto do país. "As vidas de inúmeras famílias e crianças indígenas poderão ser afetadas pela decisão da Suprema Corte", diz à BBC News Brasil a professora de direito Kathryn Fort, diretora da Clínica de Direito Indígena da Universidade Estadual de Michigan e especialista na ICWA. As origens da ICWA estão relacionadas a um passado trágico. Durante mais de cem anos, centenas de milhares de crianças indígenas nos Estados Unidos foram removidas de suas famílias e tribos, muitas vezes à força, e enviadas para internatos administrados pelo governo ou por igrejas ou colocadas em lares brancos e cristãos. Essa política, liderada pelo Gabinete de Assuntos Indígenas do governo federal, começou em meados do século 19. O principal marco veio algumas décadas depois, com a inauguração da Carlisle Indian Industrial School (Escola Industrial Indígena de Carlisle), em 1879, na Pensilvânia. Seu fundador, o general de brigada Richard Henry Pratt, ficou famoso por ser o autor da frase "Mate o índio, salve o homem". Ao longo dos anos seguintes, mais de 400 desses internatos se espalharam pelo país. O objetivo era forçar um processo de assimilação, no qual as crianças deveriam esquecer seus costumes, cultura, religião e língua nativa e aprender a se comportar como os americanos brancos. Ao chegar aos internatos, os menores tinham o cabelo cortado e ganhavam nomes em inglês. Era comum que as famílias indígenas não soubessem do paradeiro de seus filhos. A prática se estendeu por décadas. Calcula-se que, na década de 1920, mais de 80% das crianças indígenas em idade escolar estavam nesses internatos. Milhares foram submetidas a espancamentos, confinamento solitário e outros abusos, e centenas morreram ou desapareceram. Em 1928, um relatório do governo federal já lançava luz sobre os abusos, ao revelar que, além de não receberem educação adequada, as crianças sofriam de desnutrição, excesso de trabalho e punições severas. "As medidas para o cuidado das crianças indígenas em internatos são gravemente inadequadas", dizia o documento. Segundo o relatório, a dieta era "deficiente em quantidade, qualidade e variedade", as instituições eram "superlotadas além de sua capacidade", e as crianças, muitas delas pequenas, passavam horas fazendo "trabalho industrial pesado", sem propósito educacional. Mais de 40 anos depois, um novo relatório do governo foi ainda mais duro, descrevendo a situação como "uma tragédia nacional". No ano passado, a secretária do Interior dos EUA, Deb Haaland, primeira indígena a ocupar o cargo e ela própria descendente de sobreviventes dos internatos, ordenou uma investigação para detalhar os abusos e localizar restos mortais nos locais onde essas instituições funcionavam. "Essa foi uma parte importante da história de séculos de remoção forçada de crianças indígenas como ferramenta de genocídio cultural", diz uma das representantes da organização de direitos civis União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU, na sigla em inglês), Theodora Simon, que é membro da Nação Navajo. A ACLU é uma das organizações que apoiam a ICWA no caso na Suprema Corte. "Reverter as proteções que a ICWA oferece pode trazer de volta uma era em que crianças indígenas eram indiscriminadamente separadas de suas famílias", afirma Simon. "A destruição de famílias indígenas coloca em risco a futura sobrevivência das tribos e da cultura indígena." Mesmo depois que os internatos começaram a ser desativados, na metade do século passado, a prática de separar crianças indígenas de seus pais e suas tribos e colocá-las sob os cuidados de famílias brancas ainda se manteve por vários anos. Entre 1958 e 1967, o governo federal financiou um programa de adoções que colocou centenas de menores indígenas em lares brancos. Segundo a Associação para o Bem-Estar da Criança Indígena, estudos no final da década de 1970 indicavam que entre 25% e 35% das crianças indígenas do país estavam sendo removidas de suas famílias. Destas, 85% eram colocadas em lares fora de suas comunidades tribais. Documentos analisados pelo Congresso na época indicavam que, muitas vezes, as crianças eram removidas não por sofrerem abusos ou negligência, mas simplesmente porque os assistentes sociais consideravam a família indígena muito pobre. Foi nesse contexto que, em 1978, o Congresso aprovou a ICWA, com o objetivo declarado de "proteger os interesses das crianças indígenas e promover a estabilidade e a segurança de tribos e famílias indígenas". A lei não se aplica a crianças que vivem nas reservas, cujos casos ficam a cargo dos tribunais indígenas. Mas, nos casos de menores indígenas que vivem fora das reservas e cuja guarda está sendo decidida por tribunais estaduais, essa lei federal estabelece uma série de exigências que devem ser cumpridas antes que se possa separar as crianças de suas famílias. As regras se aplicam tanto a menores que já pertencem a uma tribo indígena quanto aos que não pertencem, mas são filhos de membros e cumprem os pré-requisitos necessários para também se tornarem membros. Um dos objetivos do Congresso ao aprovar a ICWA era evitar que assistentes sociais e juízes removessem crianças indígenas de suas famílias sem motivos apropriados. A lei determina que tribunais estaduais devem sempre notificar as tribos quando uma criança indígena que vive fora da reserva é retirada de seu lar. Além disso, a ICWA estabelece regras para decidir quem ficará com essas crianças. Familiares, mesmo que distantes, devem ter sempre a preferência. Nos casos em que isso não for possível, o menor deve ser colocado em um lar pertencente à mesma tribo. Se não houver essa possibilidade, a criança deve ir então para uma família indígena de outra tribo. Durante esses processos, assistentes sociais devem comprovar que estão fazendo todo o possível e oferecendo recursos e serviços de apoio para que o menor possa voltar a viver com sua família, e a tribo deve ser consultada em todas as etapas. Um juiz estadual só pode decidir contra o candidato escolhido pela tribo se tiver motivos "claros e convincentes". A Associação para o Bem-Estar da Criança Indígena ressalta que especialistas em bem-estar infantil consideram a ICWA "o padrão de excelência", por levar em conta considerações culturais e o status político único desses menores. Não há dados completos em nível federal sobre os casos em que a ICWA foi aplicada e seu impacto. Especialistas observam ainda que a lei nem sempre é seguida e que sua aplicação pode variar de acordo com o local. Outro problema apontado por alguns é o número muitas vezes limitado de famílias indígenas disponíveis para adotar esses menores. A Associação para o Bem-Estar da Criança Indígena salienta que, apesar do progresso desde a aprovação da ICWA, famílias indígenas ainda têm uma taxa desproporcionalmente mais alta de crianças removidas em comparação a famílias brancas. "Apesar dos avanços desde 1978, as proteções da ICWA ainda são necessárias", diz a organização. Mas os autores das ações na Suprema Corte argumentam que, ao tratar menores e famílias indígenas de maneira diferente dos americanos brancos, a lei discrimina com base em raça e, portanto, é inconstitucional. Para os advogados dos Brackeen, ao colocar famílias que não são indígenas "no fim da fila para adoção", a lei acaba prejudicando as crianças. Eles alegam que, em vez de aplicar o princípio legal que considera "os melhores interesses" dos menores, as decisões são baseadas na raça dos envolvidos. Entre os apoiadores da ação está o Instituto Goldwater, organização conservadora com sede no Arizona. Segundo o vice-presidente para assuntos legais do instituto, Timothy Sandefur, que assina alguns dos documentos enviados à Suprema Corte em apoio aos autores do processo, a ICWA impõe "obstáculos mortais aos que tentam proteger crianças indígenas de abuso e negligência". Sandefur reconhece que a intenção do Congresso ao aprovar a lei era acabar com "as políticas racistas do governo". Mas, para ele, ao impor regras e obstáculos adicionais com o objetivo de garantir que os menores voltem a viver com suas famílias indígenas, a lei se tornou "uma das maiores causas de abusos" dessas crianças. Ele cita casos em que crianças indígenas foram mortas ao afirmar que a lei acaba "forçando" assistentes sociais do Estado a devolverem menores abusados a lares perigosos". "Isso não aconteceria se essas crianças fossem brancas, negras ou de qualquer outra raça", escreveu Sandefur em um artigo de opinião às vésperas dos argumentos na Suprema Corte. Sandefur também critica o fato de que famílias indígenas, mesmo que de outras tribos, tenham preferência na adoção. "Como há falta de famílias indígenas que querem adotar, o resultado é que crianças indígenas são privadas da oportunidade de viverem em lares seguros, amorosos e permanentes", diz. Segundo Sandefur, decisões envolvendo menores que não são indígenas são guiadas pelo princípio do "melhor interesse". "Mas a ICWA considera sempre ser do melhor interesse de uma criança indígena ser colocada em um lar indígena, independente de suas necessidades individuais", critica. Outros especialistas, no entanto, discordam desse argumento. Segundo Fort, da Universidade Estadual de Michigan, o princípio do "melhor interesse da criança" é algo que os juízes consideram a cada passo do processo, seja ou não um caso relacionado à ICWA. "O que a ICWA faz é garantir que o juiz não está descartando a conexão da criança com sua terra, sua cultura, seu povo, sua comunidade e sua família devido a racismo ou preconceito", ressalta Fort, observando que a lei também leva em conta o melhor interesse da criança no longo prazo. "Para que quando tiver 13, 14, 15 anos, saiba quem seus familiares são, de onde veio, qual é a sua cultura." Defensores da ICWA rejeitam o argumento de que seria discriminatória e afirmam que a lei não é baseada em raça. Eles lembram que a lei não se aplica a todas as crianças de origem indígena, mas somente àquelas que pertencem a uma tribo ou cumprem os pré-requisitos para serem membros. Além disso, ressaltam que as tribos não são grupos raciais, mas sim entidades políticas. A Constituição americana reconhece as tribos como nações soberanas, com autonomia, status reafirmado em diversos tratados. Cada uma das 574 tribos reconhecidas pelo governo federal estabelece seus próprios critérios para definir quem pode ser considerado membro. Alguns comparam esses critérios às regras adotadas pelos países para decidir quem pode ter cidadania. "Casos com base na ICWA se parecem mais com casos de adoção internacional", diz a Associação para o Bem-Estar da Criança Indígena. Mas Sandefur, do Instituto Goldwater, ecoa o argumento de outros críticos da lei ao afirmar que "uma criança pode ser considerada 'indígena' pela ICWA mesmo se não tiver nenhuma ligação política ou cultural com uma tribo, mesmo se nunca tiver visitado uma reserva". Para ele, isso demonstra que "a ICWA é aplicada com base em biologia, não em afiliação tribal". Outro argumento dos que contestam a ICWA é o de que impõe uma lei federal sobre tribunais estaduais, cujo papel seria aplicar a lei estadual em casos que envolvam bem-estar infantil. Assim, a imposição de regras federais estaria interferindo na autonomia dos Estados em lidar com seus processos de adoção, e violaria a 10ª emenda à Constituição, que protege os Estados de excessos do governo federal. Mas críticos desse argumento afirmam que a ICWA não exige que os Estados tomem qualquer tipo de ação, mas simplesmente estabelece que, quando autoridades estaduais decidem iniciar um processo envolvendo crianças indígenas, devem seguir determinadas regras. Lembram ainda que o Congresso define como os Estados devem agir em várias outras áreas. Além do Instituto Goldwater, várias outras organizações apoiam os autores da ação, entre elas a Aliança Cristã para o Bem-Estar da Criança Indígena e advogados especializados em adoções. Do outro lado, o governo federal e cinco tribos, listados no processo como defensores da ICWA, são apoiados por quase 500 tribos, 87 membros do Congresso, 23 Estados e dezenas de organizações de bem-estar infantil. Fort, da Universidade Estadual de Michigan, ressalta que a Suprema Corte poderá optar por uma decisão mais limitada, que afete apenas algumas partes da lei, ou mais ampla. Os juízes também podem aceitar apenas um dos argumentos dos autores da ação, mas rejeitar os outros. Caso decidam derrubar a lei, ou partes dela, sob o argumento de que interfere na autonomia dos Estados, o impacto seria mais limitado. Alguns Estados já estão adotando suas próprias versões da ICWA, com o objetivo de proteger a lei nesse caso. Mas uma decisão que considere as tribos classificações raciais, e não políticas, poderia afetar de maneira mais ampla seu status como nações soberanas. "O argumento dos opositores da ICWA pode afetar toda a relação entre o governo federal e as tribos", ressalta Fort. "Foi construído de uma maneira que ataca diretamente a soberania tribal nos Estados Unidos e os direitos das tribos de fazer suas próprias leis e serem governadas por elas." A soberania significa que as tribos têm seus próprios governos, serviços sociais e de saúde, tribunais e jurisdição criminal, entre outros aspectos. Especialistas dizem que, dependendo do quão ampla for a decisão dos juízes, todas essas áreas poderiam ser afetadas, além dos direitos sobre terras e águas e até a operação de cassinos em territórios indígenas. Durante os argumentos orais na semana passada, os nove juízes se mostraram divididos. Os três juízes que formam a chamada ala liberal (indicados por presidentes do Partido Democrata) e o juiz conservador Neil Gorsuch, nomeado por Donald Trump, pareceram apoiar a lei. Em decisões anteriores, Gorsuch sempre apoiou a soberania das tribos, muitas vezes votando contra os outros juízes da maioria conservadora. Brett Kavanaugh, também nomeado por Trump, disse que é preciso encontrar "a linha entre dois valores constitucionais fundamentais". Segundo Kavanaugh, de um lado está "o enorme respeito à autonomia tribal" e "o reconhecimento da história de opressão e discriminação contra tribos". Do outro, "o princípio fundamental (segundo o qual) não tratamos as pessoas de maneira diferente por causa de raça, ou etnia, ou ascendência".
2022-11-20
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63659508
sociedade
Como cidade americana enfrenta pior seca em 1,2 mil anos
Enquanto o sudoeste dos Estados Unidos enfrenta a pior seca em mais de mil anos, uma cidade construída às margens do leito seco de um rio pode ter a solução para a coleta de água no deserto. Em frente à casa térrea de adobe de Val Little, perto do centro de Tucson, no sul do Arizona (Estados Unidos), uma placa pequena, mas orgulhosa, destaca-se no gramado: "Esta casa coleta a chuva". A cada dois meses, Little, com 68 anos de idade, sobe uma pequena escada para limpar as folhas das calhas da sua casa. "Elas sempre entopem o pequeno orifício por onde a água passa", explica ela, referindo-se à abertura entre as calhas e o cano de descida. O cano de descida conduz a água da chuva que cai sobre o telhado até uma cisterna plástica de 4,9 mil litros no seu quintal. Ela tem duas dessas cisternas e, no final de setembro, ambas estavam quase cheias, alimentadas pelas chuvas abundantes de verão. Fim do Matérias recomendadas "Nunca vi meus tanques com menos da metade da capacidade", afirma Little, que borrifa sobre sua horta a água coletada da chuva, que também é usada para cozinhar, beber e irrigar suas árvores de sombra e frutíferas fora da estação das chuvas. Little não é a única. Ao longo dos últimos 15 anos, milhares de moradores da região de Tucson - uma cidade desértica, árida na maior parte do tempo, onde cerca de 30 cm de chuva caem em média por ano - começaram a coletar água da chuva para atender parte das suas necessidades domésticas. Eles adotaram os esforços da cidade para promover a prática, como parte de um conjunto de iniciativas de conservação de água. Enquanto cada vez mais cidades e municípios no oeste dos Estados Unidos e em outras partes do mundo enfrentam rápida redução das fontes de água doce, especialistas afirmam que a coleta da água da chuva em Tucson pode trazer lições valiosas sobre como uma cidade pode equilibrar seu fornecimento de água e aumentar sua resistência. "Tucson é realmente um exemplo bem sucedido de como a coleta de água da chuva pode ser usada para reforçar as fontes de água existentes e aliviar a pressão sobre o sistema sem construir nova infraestrutura", afirma Paula Randolph, diretora associada do Lincoln Institute of Land Policy's Babbitt Center for Land and Water Policy. "Há muito o que aprender aqui." Da mesma forma que em muitas outras cidades do oeste dos Estados Unidos, o fornecimento municipal de água de Tucson vem de duas fontes. A primeira é a água de superfície bombeada do rio Colorado por meio do Projeto do Arizona Central (CAP, na sigla em inglês), que é um canal de 540 km e um sistema de tubulações gigantesco que transporta água para o centro e o sul do Arizona. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A segunda é a água do lençol freático, bombeada do aquífero subterrâneo local. Mas a água do CAP é, de longe, a maior fonte de abastecimento e representa 82% do fornecimento de água da cidade. O rio Colorado é uma artéria vital que abastece 40 milhões de pessoas e 1,6 milhão de hectares de terras agrícolas em sete Estados do sudoeste americano, mais dois Estados do norte do México. Mas seus recursos vêm sofrendo pressão cada vez maior. Décadas de bombeamento excessivo e a pior seca dos últimos 1,2 mil anos provocaram severo esgotamento do rio e dos reservatórios abastecidos por ele. No ano passado, pela primeira vez na história, o governo dos Estados Unidos declarou escassez das águas do rio, o que causou restrições generalizadas em toda a região. Espera-se que a situação fique ainda pior. Em um estudo de 2021, cientistas do Serviço Geológico dos Estados Unidos concluíram que o rio pode perder cerca de um terço do seu fluxo nos próximos 30 anos. A previsão é que as mudanças climáticas reduzam as geleiras nas suas nascentes e tragam temperaturas mais altas, que reduzirão ainda mais o fluxo de água. Uma seca no verão de 1974 fez com que Tucson tivesse uma amostra sombria do que pode ser a escassez de água. Certa tarde, durante o pico da demanda, a cidade - que, até então, dependia totalmente do lençol freático - ficou com tão pouca água que o serviço de abastecimento não conseguiu garantir o atendimento doméstico, nem oferecer proteção adequada contra incêndios, para todos os clientes nas partes mais altas da cidade. Impelida a agir, a cidade comprometeu-se com a conservação, dando início a um programa que, entre outras medidas, levou à criação de leis exigindo que as novas construções incluíssem soluções paisagísticas que necessitassem de pouca ou nenhuma irrigação (conhecidas como xeropaisagismo) e de um sistema escalonado de cobrança de água, com preços mais altos para usuários maiores. Ambas as medidas seguem em vigor até hoje. Little lembra-se daquele verão e a da ética de conservação que se seguiu. "Aquela crise trouxe toda uma nova consciência sobre a água na comunidade", afirma ela. "Depois daquilo, a maioria das pessoas mudou seus comportamentos e nunca retomou seus velhos hábitos." Além de limitar a demanda, permaneceu o desafio de ampliar o fornecimento de outras fontes. Uma intervenção fundamental - a coleta da água da chuva - levaria cerca de três décadas para instalar-se na região de Tucson. Grande parte dessa mudança deve-se a uma pessoa: o entusiasta da permacultura Brad Lancaster. Lancaster começou a cultivar seu quintal em meados de 1990. Ele ficou frustrado com o que chama de "políticas de desperdício no gerenciamento de água da cidade" e viajou para o sul da África em busca de soluções alternativas. Ali, ele teve a oportunidade de conhecer o agricultor Zephaniah Phiri Maseko, que havia transformado o terreno estéril da família no Zimbábue em um verdadeiro oásis, apenas coletando a água da chuva com um sistema de bacias, valas e represas de pedra. "Eu não conseguia acreditar no que ele fez com tão poucos recursos", relembra Lancaster. "Phiri me mostrou o que apenas uma pessoa pode fazer." De volta para casa, Lancaster decidiu colocar as lições de Phiri em prática. Usando sua propriedade como local piloto, ele cavou canteiros de solo na beira da estrada, plantou arbustos e árvores nativas e aterrou o local em volta das plantas para drenar a água da chuva. À medida que as árvores cresciam, ele foi além e fez pequenos cortes no meio-fio para dirigir a água da chuva para o seu jardim na calçada. Lancaster sabia que essa prática era ilegal - o governo municipal havia proibido cortes no meio-fio devido a preocupações com os direitos à água dos demais usuários - mas seus primeiros cortes funcionaram tão bem que ele começou a fazer mais. A reação das plantas despertou o interesse da maioria dos vizinhos, até que Lancaster decidiu pedir à prefeitura que legalizasse a prática. Inicialmente, as autoridades locais relutaram a aceitar a ideia. "Eles achavam que as ruas foram projetadas para drenar água e nada os convencia do contrário", relembra Lancaster. Mas, em 2007, depois de três anos de convencimento - e "enormes trabalhos burocráticos", como ele descreve - a cidade acabou legalizando o processo, dando início a uma mudança de paradigma mais ampla que transformou radicalmente a forma como Tucson lida com a água da chuva. "A filosofia aqui, há décadas, era tratar a água da chuva como resíduo", afirma Rodney Glassman, ex-vereador de Tucson que ajudou a comandar os esforços para legalizar os cortes no meio-fio das ruas. "O exemplo de Lancaster nos fez perceber que a água da chuva é, na verdade, algo que podemos usar e que pode trazer benefícios." Após a campanha de Lancaster, Tucson criou diversas medidas para aproveitar totalmente a água da chuva para o abastecimento. Em 2008, a cidade criou o primeiro decreto do país exigindo que novos imóveis comerciais irrigassem metade dos seus jardins usando água de chuva. E, em 2013, ela adotou uma Política de Ruas Verdes, exigindo que todos os projetos viários com financiamento público coletassem os primeiros 1,3 cm de chuva durante uma tempestade. Com uma iniciativa mais recente, a Infraestrutura Verde de Água da Chuva de 2020, Tucson começou a cobrar um pequeno valor nas contas de água dos moradores para levantar cerca de US$ 3 milhões (cerca de R$ 16 milhões) por ano para sustentar projetos públicos de coleta de água da chuva, como a iniciativa de um milhão de árvores da cidade. Candice Rupprecht, gerente de conservação de água da Tucson Water, a empresa de abastecimento de água da cidade, afirma que, tomadas em conjunto, essas medidas significam que "sempre que construirmos uma rua, um estacionamento ou destruirmos e substituirmos infraestrutura pública e privada, fazemos isso de forma que trabalhe com a natureza para gerenciar a água da chuva o mais perto possível da fonte". Este tipo de abordagem, segundo ela, traz benefícios que vão além da conservação da água, incluindo a redução da erosão do solo, dos riscos de enchentes nas ruas e a criação de áreas verdes que resfriam a superfície do solo e ajudam a reduzir o efeito de ilha de calor urbano, cujas consequências são mais fortes nos bairros de baixa renda e de população majoritariamente de origem latina. Em 2012, a Tucson Water começou um ambicioso programa de incentivos que oferece descontos de até US$ 2 mil (cerca de R$ 10,6 mil) aos proprietários de casas pela compra de equipamento de coleta de água da chuva, como tanques, ou a adoção de projetos paisagísticos que coletem a água da chuva para uso interno e externo. Mais de 2,6 mil residências já adotaram o programa, segundo a empresa. Nos primeiros anos, apesar do sucesso da adesão ao programa, a Tucson Water percebeu que as residências participantes não estavam conservando água em maior quantidade do que um grupo controle de proprietários que não recebiam descontos. Na verdade, alguns moradores com direito ao desconto até aumentaram seu consumo geral de água, por terem acrescentado novo paisagismo que exigia rega tradicional para se estabelecer. Mas, à medida que os moradores e as autoridades municipais aprendiam com suas experiências e a vegetação criava raízes, o quadro mudou. Segundo o Relatório de Conservação de Água de Tucson de 2021, o programa de descontos economizou 158 milhões de litros de água potável, somente no último ano. Até o momento, a iniciativa resultou na conservação de mais de 15 bilhões de litros de água - o equivalente à quantidade de água que flui na foz do rio Hudson, em Nova York, por cerca de sete horas - ou quase três horas de vazão média das Cataratas do Iguaçu. Com cerca de um milhão de moradores na área metropolitana de Tucson, Rupprecht sabe que esses números são uma gota no oceano. Mas ela afirma que eles indicam as possibilidades que podem surgir com o aumento ainda maior da adoção dessa prática e da educação. Brad Lancaster hoje tem uma empresa de consultoria em permacultura que assessora Tucson e mantém contatos em todo o mundo. E ele concorda. Em um ano típico, cai muito mais chuva em Tucson do que o consumo doméstico de água da rede pública de todos os seus moradores. "É maluquice gastar ainda tanto dinheiro para trazer água de qualidade inferior a 480 km de distância quando temos essa enorme quantidade de água chegando de graça do céu e que podemos usar como fonte principal", afirma ele. Já Paula Randolph não acredita que a coleta de água da chuva possa fornecer água na mesma escala de um sistema de reservatórios. Ela também afirma que essa opção não é adequada para todas as cidades que sofrem com a falta d'água. Mas, à medida que o clima fica mais quente e a demanda cresce, ela acredita que coletar a água da chuva será uma prática mais frequente, como parte da solução para manter o abastecimento de água no futuro.
2022-11-17
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63665516
sociedade
MrBeast: quem é o novo youtuber mais popular do mundo
MrBeast encerrou o reinado de PewDiePie como o YouTuber com mais assinantes do mundo — a primeira mudança no topo da lista em quase 10 anos. O criador de conteúdo sueco PewDiePie, cujo nome verdadeiro é Felix Kjellberg, tornou-se o YouTuber com mais inscritos em agosto de 2013 com seus vídeos de reação a jogos. Em 2019, ele foi a primeira pessoa a atrair 100 milhões de seguidores. Mas a filantropia de MrBeast, na verdade chamado Jimmy Donaldson, fez com que ele chegasse ao número de 112 milhões de assinantes neste mês. Embora o YouTube não mostre os números exatos, ele superou os 111 milhões de PewDiePie. Fim do Matérias recomendadas MrBeast é conhecido por vídeos com distribuição de generosos brindes e prêmios em dinheiro, e também por trabalhos de caridade. Em 2021, ele lançou um canal separado no YouTube, voltado para filantropia, que já tem mais de 10 milhões de assinantes. Ele ainda mantém uma instituição de caridade que funciona como um banco de alimentos para distribuir comida a comunidades nos Estados Unidos. Ele e seu colega, o também youtuber Mark Rober, organizaram projetos internacionais de arrecadação de fundos, como TeamSeas e TeamTrees, voltados para questões ambientais. A última delas captou mais de US$ 24 milhões (R$ 130 milhões) para plantar 20 milhões de árvores em todo o mundo. O próprio PewDiePie doou quase US$ 70 mil (R$ 377 mil) para o projeto TeamTrees. O youtuber britânico Steven Bridges, cujos vídeos têm milhões de visualizações na plataforma, disse à BBC que MrBeast "dominou a habilidade" de criar conteúdo atraente. "Provavelmente não há outro youtuber no mundo que entenda isso tão bem quanto o MrBeast", disse ele. "Fazer um vídeo divertido é uma coisa, mas garantir que cada segundo dele mantenha o espectador totalmente ligado é muito difícil de conseguir, e a retenção de MrBeast — a porcentagem média do vídeo que o espectador assiste — e as contagens de visualizações falam por si." "Realmente, o MrBeast está jogando o jogo de fazer os vídeos mais divertidos que atraem o maior número de pessoas, e ele está consistentemente tirando isso de letra." "Acho que não há nenhum youtuber por aí que esteja surpreso que MrBeast tenha conquistado o primeiro lugar", diz Bridges. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora nenhum dos dois tenha comentado sobre o marco, PewDiePie disse anteriormente que achava que MrBeast "definitivamente" o ultrapassaria. "Mal posso esperar para que isso acabe", brincou ele em um vídeo de agosto de 2022. "Ele definitivamente merece. Espero que ele consiga." E embora MrBeast tenha se tornado o usuário individual com mais inscritos no YouTube, ele está longe de ter o maior canal do YouTube. A T-Series, uma editora indiana de videoclipes, lidera nessa categoria, com mais de 200 milhões de assinantes. Apesar de sua aparente rivalidade pela coroa do YouTube, MrBeast apoiou publicamente PewDiePie quando o canal de videoclipes dele ganhou destaque. Em 2018, PewDiePie tinha o maior canal do YouTube, ele entrou, em clima de bom humor, em uma "disputa" com a rival T-Series pelo primeiro lugar. MrBeast foi o primeiro youtuber proeminente a fazer vídeos de apoio a PewDiePie, comprando anúncios de rádio e outdoors na Carolina do Norte e incentivando as pessoas a se inscreverem nele. Ao longo de um ano, PewDiePie acabou perdendo o primeiro lugar do canal para a T-Series, embora tenha passado de cerca de 60 milhões para 90 milhões de assinantes, tornando sua liderança como principal youtuber aparentemente inabalável. Isso acabou provando não ser o caso.
2022-11-17
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63657239
sociedade
Mundo chega a 8 bilhões de habitantes: quem são as crianças nascidas no 5º, 6º e 7º bilhão
A Organização das Nações Unidas (ONU) afirma que a população mundial atingiu oito bilhões de habitantes, apenas 11 anos depois de ultrapassar a marca de sete bilhões. Após um grande aumento em meados do século 20, o crescimento populacional já está desacelerando. Pode levar 15 anos para chegar a nove bilhões de habitantes, e a ONU não tem expectativa de alcançar 10 bilhões até 2080. É difícil calcular o número de pessoas no mundo com precisão, e a ONU admite que suas contas podem ter uma margem de erro de um ou dois anos. Mas 15 de novembro é a melhor estimativa da organização para que a marca de oito bilhões seja batida. Fim do Matérias recomendadas Nos anos anteriores, a ONU selecionou bebês para representar o nascimento da 5ª, 6ª e 7ª bilionésima criança do mundo — será que suas histórias podem nos dizer algo sobre o crescimento da população mundial? Poucos minutos depois de nascer, em julho de 1987, Matej Gaspar tinha uma câmera disparando flashes em seu pequeno rosto, enquanto um bando de políticos engravatados rodeava sua mãe exausta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Preso na parte de trás de uma comitiva do lado de fora, o oficial britânico da ONU, Alex Marshall, se sentia parcialmente responsável pelo caos momentâneo que havia causado nesta pequena maternidade nos subúrbios de Zagreb, capital da Croácia. "Basicamente olhamos para as projeções e tivemos essa ideia de que a população mundial passaria dos cinco bilhões em 1987", diz ele. "E a data proveniente da estatística era 11 de julho." Foi assim que eles decidiram chamá-lo de 5º bilionésimo bebê do mundo. Quando ele procurou os demógrafos da ONU para contar a ideia, eles ficaram indignados. "Eles explicaram para nós, pessoas ignorantes, que não sabíamos o que estávamos fazendo. E que não deveríamos escolher um indivíduo entre tantos." Mesmo assim, eles decidiram ir adiante com o plano. "Tratava-se de dar um rosto aos números", explica. "Descobrimos onde o secretário-geral estaria naquele dia e partimos dali." Trinta e cinco anos depois, o 5º bilionésimo bebê do mundo está tentando esquecer sua chegada espetacular ao mundo. Sua página no Facebook sugere que ele está morando em Zagreb, casado e trabalhando como engenheiro químico. Mas evita dar entrevistas e se recusou a falar com a BBC. "Não o culpo", diz Alex, lembrando do circo midiático no primeiro dia de vida de Matej. Desde então, mais três bilhões de pessoas foram adicionadas à nossa comunidade global. Mas nos próximos 35 anos, pode haver um crescimento de apenas dois bilhões — e então a população global provavelmente se estabilizará. Nos arredores de Dhaka, em Bangladesh, Sadia Sultana Oishee está ajudando a mãe, descascando batatas para o jantar. Ela tem 11 anos e preferia estar na rua jogando futebol, mas seus pais são bastante rígidos. A família teve que se mudar para cá quando seu negócio de venda de tecidos e sáris foi prejudicado pela pandemia de covid-19. A vida é mais barata no vilarejo, então eles ainda conseguem pagar a mensalidade escolar das três filhas. Oishee é a caçula e o amuleto da sorte da família. Nascida em 2011, ela foi nomeada um dos 7º bilionésimos bebês do mundo. Sua mãe não tinha ideia do que estava prestes a acontecer. Ela nem sequer esperava dar à luz naquele dia. Após a visita de um médico, ela foi levada para uma cesariana de emergência. Oishee chegou ao mundo um minuto depois da meia-noite, cercada por equipes de TV e autoridades locais que se amontoavam para vê-la. A família ficou surpresa, mas encantada. Embora seu pai esperasse um menino, ele agora está feliz com as três filhas inteligentes e trabalhadoras. A mais velha já está na universidade, e Oishee está determinada a ser médica. "Não estamos tão bem de vida, a covid tornou as coisas mais difíceis", diz ele. "Mas farei de tudo para que o sonho dela se torne realidade." Desde que Oishee nasceu, mais 17 milhões de pessoas foram adicionadas à crescente população de Bangladesh. Esse crescimento se deve a uma grande história de sucesso médico, mas a taxa de expansão de Bangladesh diminuiu bastante. Em 1980, uma mulher tinha, em média, mais de seis filhos, agora tem menos de dois. E isso graças ao foco que o país colocou na educação. À medida que as mulheres se tornam mais instruídas, elas optam por ter famílias menores. Isso é crucial para entender para onde a população mundial provavelmente caminha. Os três principais órgãos que fazem projeções sobre a população global — a ONU, o Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (IHME, na sigla em inglês), da Universidade de Washington, e o IIASA-Wittgenstein Center, em Viena — variam em relação aos ganhos que esperam na educação. A ONU diz que a população global atingirá seu pico na década de 2080 com 10,4 bilhões de habitantes, mas o IHME e Wittgenstein acreditam que isso acontecerá mais cedo — entre 2060 e 2070, com menos de 10 bilhões. Mas são apenas projeções. Desde que Oishee nasceu, em 2011, muita coisa mudou no mundo, e os demógrafos são constantemente surpreendidos. "Não esperávamos que a mortalidade por Aids caísse tanto, que o tratamento salvaria tanta gente", diz Samir KC, demógrafo do IIASA. Ele teve que alterar seu modelo porque uma melhora na mortalidade infantil tem um impacto de longo prazo, já que as crianças sobreviventes passam a ter filhos. E depois há ainda as quedas impressionantes na fertilidade. Os demógrafos ficaram chocados quando o número de filhos nascidos por mulher na Coreia do Sul caiu para uma média de 0,81, conta Samir KC. "E quão baixo pode chegar? Esta é a grande questão para nós." É uma realidade com a qual cada vez mais países terão de lidar. Enquanto metade do próximo bilhão de habitantes virá de apenas oito países — a maioria deles na África —, na maioria dos países a taxa de fertilidade será inferior a 2,1 filhos por mulher, o número necessário para sustentar uma população. Na Bósnia-Herzegovina, uma das populações em declínio mais rápido do mundo, Adnan Mevic, de 23 anos, pensa muito sobre isso. "Não vai sobrar ninguém para pagar as pensões dos aposentados", diz ele. "Todos os jovens terão ido embora." Ele tem mestrado em economia e está procurando emprego. Se não conseguir encontrar um, se mudará para a União Europeia. Como muitas partes do leste europeu, seu país foi atingido pelo duplo golpe da baixa fertilidade e alta emigração. Adnan mora nos arredores de Sarajevo com a mãe, Fatima, que tem lembranças surreais do nascimento do filho. "Percebi que havia algo incomum porque médicos e enfermeiras estavam se reunindo, mas eu não sabia o que estava acontecendo", recorda. Quando Adnan chegou ao mundo, o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, estava lá para nomeá-lo como o 6º bilionésimo bebê do planeta. "Eu estava tão cansada que não sei como me sentia", lembra Fatima, rindo. Adnan e a mãe folheiam álbuns de fotografias. Em uma das fotos, um garotinho está sentado em frente a um bolo gigante, rodeado por homens de terno. "Enquanto outras crianças tinham festas de aniversário, eu recebia a visita de políticos", diz Adnan. Mas também havia vantagens. Ser o 6º bilionésimo bebê do mundo levou a um convite para conhecer seu herói, Cristiano Ronaldo, no Real Madrid, quando ele tinha 11 anos. Adnan acha impressionante que em 23 anos a população mundial tenha aumentado em dois bilhões de habitantes. "É muito realmente", diz ele. "Não sei como nosso lindo planeta vai aguentar."
2022-11-15
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63635738
sociedade
Os bastidores da megaoperação que capturou iate de oligarca russo
O rádio fervilhava de estática enquanto um dos superiates mais caros do mundo entrou pela névoa na baía de San Diego, nos Estados Unidos. Na popa, a bandeira americana tremulava sobre a suntuosa piscina de mosaico do Amadea. O iate de US$ 325 milhões (cerca de R$ 1,7 bilhão) havia passado a maior parte do tempo visitando portos pitorescos do Mediterrâneo. Agora, sob o controle das autoridades americanas, ele se dirigia a um cais de concreto cinza em um porto de uso industrial. É o troféu mais luxuoso ostentado pela força-tarefa que, nas palavras do presidente americano, Joe Biden, foi formada para confiscar os "ganhos ilícitos" de oligarcas russos. A BBC teve acesso exclusivo aos bastidores do confisco desse superiate. Fim do Matérias recomendadas Enquanto os mísseis caíam sobre a Ucrânia nos primeiros dias da guerra, o procurador americano Andrew Adams estava no seu escritório em Nova York com uma relação de bilionários ligados ao Kremlin e seus bens de luxo. Mas parecia que o tempo estava se esgotando. Em um mapa digital do tráfego marítimo, ele podia ver superiates ligados a oligarcas em uma corrida em busca de segurança, navegando para países onde, segundo ele suspeitava, seus proprietários acreditavam estar livres de sanções. Entre os opulentos alvos flutuantes, destacava-se um "superiate". O Amadea tem aproximadamente o comprimento de um campo de futebol, com um heliporto na proa e uma piscina de 10 metros na popa. O seu interior inclui uma academia de ginástica, salão de beleza, cinema e adega. Existem cabines de luxo para 16 convidados e acomodações para 36 tripulantes, que atendiam todas as necessidades dos hóspedes. À distância, o iate parece a ponta de um iceberg. Linhas limpas e elegantes, além de uma fachada branca e brilhante, parecem projetar uma imagem de pureza cristalina. As despesas com a simples manutenção do Amadea são imensas. O custo anual é estimado em 25 milhões de libras (cerca de R$ 157 milhões) ou mais. Mas quem é seu dono? E de onde veio o dinheiro para bancar essa ostentação toda, traduzida nos pisos de mármore e convés de madeira de teca? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Investigadores americanos afirmam que o proprietário do iate é o bilionário e senador no Parlamento russo Suleiman Kerimov - que nega ser dono da embarcação. Ele tem 56 anos de idade e é um dos homens mais ricos da Rússia, segundo a revista Forbes, que estima o patrimônio dele e da sua família em US$ 12,4 bilhões (cerca de R$ 66,3 bilhões). Ele fez fortuna após a queda da União Soviética, comprando grandes participações em empresas russas, incluindo os maiores produtores de gás e ouro do país. Os Estados Unidos impuseram sanções a Kerimov em 2018. O Reino Unido acompanhou as medidas em março, assim como a União Europeia, que afirmou que ele havia implementado ou apoiado políticas que prejudicam a independência, a estabilidade e a segurança da Ucrânia. A lista de membros da elite russa proibidos de gastar sua fortuna em países ocidentais vinha crescendo desde 2014, quando os governos tentaram isolar o presidente russo Vladimir Putin após a anexação da Crimeia. E, quando os tanques russos invadiram a Ucrânia em fevereiro, veio um novo escrutínio das atividades de oligarcas. "Estamos nos associando aos aliados europeus para encontrar e confiscar os seus iates, apartamentos de luxo e aviões privados", anunciou o presidente Biden em 1° de março. Adams - procurador do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, um homem magro de olhos azuis - foi nomeado chefe de uma nova força-tarefa, denominada KleptoCapture, dedicada a executar as sanções americanas. Ele planejou usar sua experiência no combate ao crime organizado para fazer cumprir o compromisso do presidente. Com táticas desenvolvidas na luta contra a Máfia, a força-tarefa - que inclui agentes e analistas do FBI e do Serviço Secreto dos Estados Unidos - pretende identificar alvos de alto escalão, encontrar provas de descumprimento de leis e então "confiscar ativos da forma mais rápida e agressiva possível", segundo ele. Mas, duas semanas depois do início da invasão na Ucrânia, Adams conseguiu ver o Amadea "tentando fugir de águas onde normalmente poderíamos confiscá-lo". "A coisa ficou mais crítica quando ele desligou seu monitor de localização, seu transponder", ele conta. "Basicamente, o navio tentou navegar no escuro." Em 12 de março, o Amadea saiu da ilha de Antígua, no Caribe, e atravessou, cinco dias depois, o Canal do Panamá, parando rapidamente no México antes de se aventurar pelo Oceano Pacífico, em 25 de março. Depois de mais de 15 dias no mar, ele chegou a Fiji. O iate estava programado para partir para as Filipinas em 48 horas, mas os EUA acreditavam que seu verdadeiro destino fosse Vladivostok, um porto russo perto da fronteira com a China e a Coreia do Norte. Adams conta que, enquanto o Amadea navegava pelo Pacífico, os investigadores americanos procuravam evidências de violação das sanções que pudesse ser usada como "gancho" para confiscar o iate. O objetivo era provar que Kerimov era o dono da embarcação e que foram usados dólares americanos na sua compra, abastecimento ou manutenção. Rastrear o verdadeiro dono de um superiate exige mais que uma busca no Google, segundo Adams. "Pode ser extremamente difícil desvendar quem é o dono desses navios." A propriedade muitas vezes é escondida por trás de empresas de fachada e fundos, registrados em países onde a informação é "rigidamente controlada e não é algo a que os Estados Unidos possam sempre ter fácil acesso", afirma. Mas a guerra da Rússia gerou um "boom de informações" compartilhadas por países estrangeiros, incluindo aqueles que "historicamente eram considerados pouco transparentes" - locais onde é difícil investigar a propriedade das empresas, segundo Adams. Foram necessárias várias investigações em um período curto. Adams conta que membros da força-tarefa entrevistaram fontes que conheciam as finanças do navio e examinaram extratos bancários e registros de empresas. "Conseguimos obter as informações, em parte, porque houve uma enorme onda de apoio à Ucrânia e a estes esforços", afirma Adams. Os documentos judiciais americanos indicam que os investigadores descobriram provas que demonstram, segundo eles, que Kerimov era o dono do navio desde agosto de 2021 - três anos depois de ele sofrer as primeiras sanções do Tesouro americano. "Descobrimos que Kerimov é o dono da embarcação e que ele detinha valores substanciais em dólares americanos que financiaram o navio ao longo dos anos, violando as sanções dos Estados Unidos", afirma Adams. Quando o iate atracou em Fiji, as autoridades locais buscaram o Amadea e encontraram registros de transações financeiras remontando a quatro meses antes. Horas depois, com mais esta informação, os agentes do FBI pediram a um juiz americano a ordem de confisco do navio. Representantes de Kerimov negaram que ele fosse dono do Amadea. Uma semana depois que o navio chegou ao arquipélago no Pacífico, um advogado local interveio em nome de uma companhia formalmente registrada como proprietária do superiate. A ação levou a uma disputa judicial que durou sete semanas, já que os recursos contra a ordem de confisco chegaram até a Suprema Corte de Fiji. O advogado argumentou que não havia provas de que a aquisição do iate tivesse sido feita com rendimentos de atividade criminosa e afirmou que, na verdade, ele pertencia a outro oligarca bilionário russo. Eduard Khuadainatov é o antigo CEO da gigante estatal russa do petróleo Rosneft. A União Europeia impôs sanções a ele em junho, afirmando que Khuadainatov agora era dono de uma das maiores empresas petrolíferas privadas da Rússia. Ele não sofre sanções dos Estados Unidos. O advogado afirmou ao tribunal de Fiji que havia "provas inquestionáveis" de que Khuadainatov era o dono do Amadea. Ele também é o proprietário declarado de um iate de US$ 700 milhões (cerca de R$ 3,75 bilhões) ligado a Putin, que foi confiscado pelas autoridades italianas. Mas os Estados Unidos afirmam que ele é um "laranja", usado para ocultar a identidade dos verdadeiros proprietários. Adams disse ser "totalmente improvável um empresário de nível médio possuir vários iates de meio bilhão de dólares". Khuadainatov não respondeu aos pedidos de comentários feitos pela BBC. Agentes do FBI voaram para Fiji enquanto o Amadea estava atracado nas águas azul-turquesa do arquipélago no início de maio. Sob o sol escaldante, uma fila de homens em ternos escuros abordou o navio enquanto membros da tripulação vestidos de camisas polo brancas aguardavam no convés. Os agentes descobriram que "parecia um iate de luxo que esteve em uma corrida em alta velocidade através do Pacífico", segundo Adams. Ele havia "enfrentado muitas dificuldades". No seu interior, eles encontraram mobiliário ornamentado, incluindo candelabros, ornamentos dourados e obras de arte de alto valor. A força-tarefa ainda está calculando o valor total dos objetos de luxo e a autenticidade das peças mais relevantes ainda está sob investigação. Entre eles, um item notável se destaca: um objeto que parece um raro ovo Fabergé. Apenas algumas dezenas deles foram produzidos para a família imperial russa e eles se tornaram símbolos de poder e opulência. "Talvez seja um ovo Fabergé real, talvez não", afirma Adams. "O tempo dirá." Depois de cerca de dois meses atracado ao lado de contêineres, a justiça de Fiji permitiu que os EUA confiscassem o navio. O confisco virou um espetáculo internacional. Após a decisão em junho, o chefe de polícia da ilha posou para fotografias no convés com autoridades da Embaixada americana, com a bandeira dos Estados Unidos tremulando sobre sua cabeça. O navio, que navegava com as cores das ilhas Cayman, agora estaria sob a bandeira americana. Mas, antes que o iate pudesse partir para os Estados Unidos, Adams decidiu substituir a tripulação. "Precisávamos de uma tripulação na qual pudéssemos confiar", ele conta. Após três semanas de viagem, o Amadea chegou aos EUA. Ele entrou na baía de San Diego, na Califórnia, no dia 27 de junho. Foi um momento de orgulho para a força-tarefa, mas era "apenas o começo de um processo aqui nos Estados Unidos", afirma Adams. "Não é o fim." Para os Estados Unidos, o objetivo é vender o barco. "Para fornecer fundos para a Ucrânia", segundo Adams. Mas, primeiro, é preciso convencer um tribunal de que Kerimov é o verdadeiro dono do iate e que foram violadas sanções para pagar pelo navio. Para preparar o caso, os investigadores estão analisando "terabytes de dados", incluindo registros bancários e inúmeras comunicações eletrônicas, enquanto linguistas especializados no idioma russo pesquisam documentos financeiros. Não é o único superiate capturado na rede da força-tarefa. Dias antes da chegada do Amadea a Fiji, agentes do FBI e a polícia espanhola confiscaram o navio Tango, de US$ 90 milhões (cerca de R$ 481 milhões), de propriedade do bilionário Viktor Vekselberg, que também sofreu sanções. O Tango segue atracado em Mallorca, na Espanha, mas Adams espera que ele também possa ser vendido para ajudar na reconstrução da Ucrânia. Na Europa, especialistas em segurança vêm seguindo atentamente a saga do Tango e do Amadea. Eles revelam uma diferença importante entre os métodos de execução legal nos dois lados do Atlântico. Diversos superiates ligados a oligarcas estão sendo retidos nos Estados Unidos e um no Reino Unido, mas os navios foram congelados e não confiscados. "Em princípio, se você simplesmente congela um bem, ele irá retornar para o proprietário em algum momento. Se ele for confiscado, eles o perdem para sempre", afirma Tom Keatinge, diretor do Centro de Estudos sobre Segurança e Crimes Financeiros do Royal United Services Institute de Londres. Enquanto os Estados Unidos têm leis antigas para combater o não-cumprimento de sanções e confiscar ativos, Keatinge afirma que as autoridades de Londres e de Bruxelas, na Bélgica (sede da União Europeia), estão "tentando elaborar mecanismos legais" que permitam confiscar ativos que foram inicialmente congelados. Desde a invasão da Ucrânia pela Rússia, o Reino Unido impôs sanções a pelo menos 1,2 mil pessoas, incluindo mais de 120 oligarcas, com patrimônio líquido somado estimado em mais de 130 bilhões de libras (cerca de R$ 815 bilhões). Mas as ações tomadas concentraram-se no congelamento de bens. Em março, o então ministro dos Transportes do Reino Unido, Grant Shapps, filmou um vídeo caseiro ao lado de um iate chamado Phi, avaliado em 38 milhões de libras (cerca de R$ 238 milhões), no dia em que o navio foi retido em Londres pela Agência Nacional do Crime. Ele afirmou que a medida havia "transformado um ícone do poder e riqueza da Rússia em um aviso claro e absoluto para Putin e seus amigos". Para a detenção do Phi, no entanto, o Reino Unido fez uso de uma lei com escopo mais amplo que as usadas pelos seus aliados estrangeiros. O dono do navio, Sergei Naumenko, não está em nenhuma lista de sanções. E, ainda assim, segundo a lei britânica, os navios podem ser detidos simplesmente por serem de propriedade ou operados por alguém ligado à Rússia. O capitão do iate, Guy Booth, afirmou que Naumenko "certamente não é um oligarca, nem um amigo pessoal próximo de Vladimir Putin, como se afirmou. Se este fosse o navio de um oligarca, ele seria quatro vezes maior". Booth afirma que a operação pareceu "encenada" para ter publicidade, acrescentando que Shapps parecia estar "posando como um grande caçador que havia acabado de atirar em um leão". O Departamento de Transporte britânico afirma que mantém firmemente sua decisão de deter o Phi, acrescentando que o Reino Unido "continuará a agir dentro dos seus poderes constituídos para acelerar a pressão econômica sobre a Rússia e tornar a vida mais difícil para as elites russas". Booth permanece otimista e acredita que "um dia, acabaremos saindo do Tâmisa". Enquanto os governos ocidentais lutam para confiscar bens congelados, Adams espera que outros países sigam sua abordagem "agressiva" sobre os confiscos. "Queremos que seja o mais difícil possível para as pessoas se beneficiarem da corrupção na Rússia e, ao mesmo tempo, viverem com luxo fabuloso no Ocidente", afirma ele. No ano anterior à invasão, o Amadea passou a maior parte do tempo na Europa. Ele ancorou no litoral de Mônaco, em Marselha (na França) e em Montenegro, segundo estudos do provedor de dados e análises Spire Global para a BBC. Hoje, ele está ancorado ao lado de um movimentado terminal de carga ocupado por enormes navios cargueiros enferrujados, usados para o transporte de carros. Perto do ancoradouro fica um parque público e habitantes locais vêm compartilhando fotos do seu novo e glamouroso vizinho nas redes sociais. "Eles deviam abrir o navio para os sem-teto da região", comentou uma pessoa. Já outra disse: "Espero que eles o vendam para ajudar os refugiados ucranianos".
2022-11-14
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63600050
sociedade
Vídeo, Onde estão concentrados os 8 bilhões de habitantes da TerraDuration, 1,02
Acredita-se que a população mundial tenha atingido oito bilhões neste mês, mas ela é distribuída de forma desigual. Este mapa mostra as densidades populacionais de alguns dos lugares mais lotados — e vazios — do mundo.
2022-11-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63628547
sociedade
O que Ciência diz sobre pessoas sem parentesco que se parecem muito fisicamente
Agnes estava viajando de trem quando um homem se aproximou dela e começou a conversar sobre assuntos de que ela não tinha ideia. O sujeito logo percebeu que "ela não era quem ele pensava". E não demorou muito para ele dizer que conhecia seu doppelgänger, um termo alemão para "sósia". Agnes foi incentivada a conhecer a amiga de seu companheiro de trem e, pelo Facebook, viu Ester. Mais tarde, elas se conheceram pessoalmente. "Nós nos demos muito bem imediatamente. Não é apenas nossa aparência, mas nossas personalidades também se assemelham." Para Ester, "é estranho e maravilhoso ver parte de você em outra pessoa". Mas o que torna a experiência muito especial é o fato de que ela e a sósia são semelhantes em caráter e interesses. "Temos os mesmos gostos: música, roupas, tatuagens." Fim do Matérias recomendadas Quando Ester tinha 32 anos e Agnes 28, posaram para François Brunelle, que compartilhou a história das duas holandesas com a BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. O fotógrafo canadense lembra que, ao vê-las, sentiu-se "muito feliz por ver o quanto eles se pareciam". O artista passou anos retratando pessoas, em diferentes partes do planeta, que não são parentes e se parecem muito. Foi assim, na imagem abaixo, que ele fotografou Ester e Agnes em 2015. Agnes e Ester são apenas duas das centenas de participantes do projeto de Brunelle, "Eu não sou um sósia!". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Talvez você já tenha visto nas redes sociais, pois também se deparou com uma das centenas de artigos na internet com fotos de pessoas não famosas que se parecem com figuras públicas ou celebridades muito parecidas entre si. De fato, uma dessas comparações que se tornou popular nos últimos anos é a do fundador da equipe Ferrari, o italiano Enzo Ferrari, e a do jogador de futebol alemão de origem turca Mesut Ozil. O que Brunelle pode não ter imaginado quando iniciou seu projeto é que ele se tornaria a base para pesquisas científicas pioneiras. Ele foi contatado por um grupo de especialistas do Instituto Josep Carreras de Pesquisa em Leucemia de Barcelona, na Espanha, ​​​​que estão tentando entender as semelhanças físicas entre indivíduos que não têm vínculos familiares. Manel Esteller, diretor do instituto e professor de Genética da Faculdade de Medicina da Universidade de Barcelona, ​​liderou o estudo e contou à BBC News Mundo sobre as fascinantes descobertas. Em agosto, os resultados da pesquisa, iniciada em 2016, foram publicados na revista científica Cell Reports. Os autores explicaram que o estudo visava caracterizar, de forma molecular, "seres humanos aleatórios que compartilhavam objetivamente características faciais". São os indivíduos que, por sua "alta semelhança", são chamamos coloquialmente de sósias. Os pesquisadores entraram em contato com Brunelle e com as 32 duplas voluntárias que participaram de seu projeto. As fotos de seus rostos foram analisadas com três softwares de reconhecimento facial, como os usados, por exemplo, em aeroportos, na polícia ou para desbloquear celulares. "Estes são programas que informam o quão semelhante um rosto é comparado a outro", explicou Esteller. Em gêmeos, por exemplo, a similaridade detectada por esses programas chega a 90%-100%. No estudo, eles foram usados ​​para determinar o grau de "semelhança" dos rostos e encontraram "uma alta taxa". "O número de pares que foram correlacionados por pelo menos dois programas foi muito alto (75% de similaridade em 25 de 32)", disse o instituto em um comunicado. De acordo com Esteller, isso é "muito próximo da capacidade humana de reconhecer gêmeos idênticos". Em metade dos pares, todos os três programas encontraram correlações, ou seja, 16 pares extremamente semelhantes. Os pesquisadores depois analisaram "o material biológico" dos participantes, algo que foi um pouco "complicado" de obter porque muitos estavam "em países diferentes", disse o médico. Assim, foram coletadas e analisadas amostras de DNA da saliva. "Estudamos esse material biológico, o genoma e mais dois componentes: o epigenoma, que são como marcas químicas que controlam o DNA, e também o microbioma, o tipo de vírus e bactérias que temos." O genoma, a genética, foi o que acabou unindo "os casais", enquanto a epigenética e o microbioma - aspectos relacionados ao meio ambiente - os distanciaram. "O que o estudo está mostrando é que o mais importante nesses casos é que (os pares) têm genética parecida, uma sequência de DNA parecida, e (a semelhança) não é porque eles têm famílias em comum, não há relação entre eles." "É porque o acaso, com certeza, acabou criando sequências ou áreas de DNA idênticas para essas pessoas." De fato, os pesquisadores retrocederam "séculos e séculos" na história familiar dos voluntários e "não encontraram nenhum parente comum entre eles". As sequências referidas pelo especialista são decisivas na formação dos aspectos característicos do nosso rosto. O fato de duas pessoas se parecerem tanto é "como jogar na loteria": é muito difícil você ganhar o prêmio, mas você pode ter sorte. "Essas duas pessoas, apesar de não serem parentes, acabam tendo variantes genéticas que lhes dão a mesma forma." Ou seja, certas características de seu DNA são semelhantes. Imagine que ambas as pessoas compartilham uma variante que torna as sobrancelhas mais grossas, outra que torna os lábios mais grossos, outra que as faz ter um certo tipo de queixo e assim por diante. "Juntas, todas essas variantes tornam seus rostos parecidos. A semelhança pode ser expressa em porcentagem e tem a ver precisamente com os diferentes graus em que as variantes genéticas são compartilhadas." Este estudo é inovador no campo da genética porque, como Sarah Kuta aponta na revista Smithsonian, embora "possa parecer óbvio que pessoas com características faciais semelhantes também teriam um pouco do mesmo DNA, ninguém havia provado isso cientificamente até agora." Mas também há algo que vai além do físico. Os voluntários foram convidados a preencher um questionário com mais de 60 perguntas sobre seus hábitos de vida "para ver se eles também eram semelhantes nisso e, em alguns casos, havia semelhanças", disse o professor. Outros aspectos físicos como peso, idade e altura também foram analisados. O estudo descobriu que, entre os 16 pares bastante semelhantes, "muitos tinham pesos semelhantes, e a análise de seus fatores biométricos e de estilo de vida também mostrou que havia semelhanças". "Traços comportamentais como tabagismo e nível de escolaridade foram correlacionados em pares semelhantes, sugerindo que a variação genética compartilhada está relacionada não apenas à aparência física, mas também pode influenciar hábitos e comportamentos comuns", afirma o comunicado. Um dos aspectos que Esteller gostaria de aprofundar com esta pesquisa é o seu potencial de aplicação na Biomedicina. "Identificamos genes e suas variantes que são importantes na determinação do formato do rosto e, portanto, do nariz, boca, testa, orelhas, e que também podem estar envolvidos em patologias. De um rosto, podemos deduzir parcialmente o genoma dessa pessoa, e isso pode ser útil para a triagem inicial para doenças genéticas." O objetivo seria estar atento a qualquer mutação que torne uma pessoa propensa a desenvolver uma determinada doença para ajudar a evitá-la. Os pesquisadores reconhecem que o estudo é pequeno, mas acreditam que é "corretamente alimentado", então, eles estão confiantes de que suas descobertas não mudarão se forem feitas em um grupo maior. "Como a população humana é agora de 8 bilhões, é cada vez mais provável que essas repetições semelhantes ocorram", disse Esteller no comunicado. "A análise de um conjunto maior fornecerá mais variantes genéticas compartilhadas por esses pares individuais especiais e também poderá ser útil para elucidar a contribuição de outras camadas de dados biológicos para definir nossos rostos." "Uma pessoa 100% idêntica a um de nós é difícil, mas uma pessoa 75% ou 80% idêntica a nós provavelmente já está por aí, porque existem muitas pessoas no mundo", respondeu o médico. Depois de anos fotografando estranhos muito parecidos, Brunelle está fascinado. "Acho que as pessoas são iguais em todos os lugares, uma vez que você faz uma busca um pouco mais profunda. Somos uma espécie, qualquer que seja a nossa aparência!"
2022-11-12
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-63600059
sociedade
Tuberculose pulmonar ultrapassa fronteiras de presídios e favelas no Brasil
A tuberculose é uma doença que acompanha os brasileiros há décadas e persiste em acometer a população, sobretudo os socialmente vulneráveis, embora possa infectar qualquer pessoa que entre em contato com um doente. Antes da covid-19, a tuberculose era a doença infecciosa mais mortal do mundo. No Brasil, a média de diagnósticos era de cerca de 70 mil por ano, e, em 2019, ano dos dados mais recentes registrados no Datasus [sistema de informações do Ministério da Saúde], foram 4,5 mil mortes pela doença, o que equivale a 12 a cada dia. Mas, depois de o novo coronavírus se espalhar pelo país, os números caíram. "Em vez de um bom indicador, foi uma falsa sensação de queda", diz Paulo Victor Viana, pesquisador em saúde pública da epidemiologia da tuberculose no Centro de Referência Professor Hélio Fraga, vinculado à Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). "O que ocorreu nos anos de pandemia foi um subdiagnóstico causado pelo comportamento de grande parte da população de evitar se expor e buscar atendimento médico por medo de ser infectado pelo coronavírus", Muitos que tinham tuberculose e estavam sintomáticos com tosse por mais de três semanas supuseram que se tratava de covid-19 ou tiveram medo de procurar serviços de saúde com medo de pegar covid-19. Fim do Matérias recomendadas "Ou, quando procuraram ajuda, encontraram profissionais de saúde que estavam com o olhar bem voltado à covid. Houve um certo esquecimento da doença, o que refletiu uma queda no número de casos." No mundo, de acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), em 2020, mais pessoas morreram de tuberculose, com muito menos pessoas sendo diagnosticadas e tratadas ou recebendo tratamento preventivo em comparação com 2019, já que gastos gerais com serviços essenciais para a doença diminuíram. A previsão da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que, pelas consequências da pandemia de covid-19, até 1,5 milhão de pessoas a mais possam morrer de tuberculose no mundo até 2025. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há um estigma de que a tuberculose é uma doença "de presídios" ou restrita às favelas. De fato, os bacilos podem se espalhar com mais facilidade em ambientes socialmente precários, onde as pessoas estão naturalmente mais expostas a infecções e comorbidades, que, por sua vez, podem prejudicar o sistema imunológico. Além disso, entre as razões que contribuem para que os mais pobres sejam os mais afetados, estão a aglomeração de pessoas em um mesmo cômodo, falta de acesso rápido aos serviços de saúde (o que contribui para que uma pessoa que tenha a doença não seja diagnosticada e não se isole, contaminando outras) e até a dificuldade em manter o tratamento. "Muitos postos de saúde requerem que o paciente faça o tratamento assistido, ou seja, vá até a unidade todos os dias para tomar o medicamento na frente do agente de saúde, mas nem todos podem ir diariamente", explica Viana, descrevendo a realidade de milhares de brasileiros que atravessam suas cidades para trabalhar e, às vezes, mantêm mais de um emprego. Mas qualquer pessoa pode ter o bacilo causador da doença, que é passado por transmissão aérea após o espirro ou tosse de um doente. "Basta ter contato com um portador de tuberculose no ônibus, metrô, em uma festa ou qualquer outro lugar para que ele se aloje no organismo", diz Viana. Mas, para a maioria das pessoas, as defesas naturais do sistema imunológico são suficientes para combater a infecção primária. "Mas, se há uma piora na imunidade por qualquer razão, a bactéria pode sair do estágio adormecido e começar a se proliferar", aponta o pesquisador. "Pessoas com maior poder aquisitivo, acesso à saúde e à boa alimentação passam anos ou a vida inteira sem manifestar a tuberculose. Mas isso não significa que não possam ter a doença." A pessoa sintomática, explica Viana, costuma ter perda de peso com possível quadro de desnutrição e uma aparência adoecida, o que contribui para o estigma negativo da tuberculose. "O outro estigma, já histórico, é a tosse. Uma tosse crônica, por mais de três semanas, que faz às vezes o paciente expectorar sangue por comprometimento pulmonar. É a chamada de 'tosse de tuberculoso'." Antes de existir o tratamento efetivo, que hoje é oferecido gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em todos os Estados e no Distrito Federal, algumas pessoas com a doença eram internadas em sanatórios de tuberculose. "Ainda que hoje esse isolamento seja feito em casa e que o paciente não transmita mais o bacilo depois de 15 dias, o tratamento é longo. A duração normal é de seis meses, mas, para casos resistentes, pode durar até dois anos." A advogada Thalita Giraldi, de 24 anos, moradora da Zona Leste de São Paulo, acredita que tenha entrado em contato com o bacilo causador da doença em 2017. "Foi quando comecei a ter sintomas de pneumonia que não cessaram com o tempo, o que levou a uma investigação mais minuciosa." Embora o exame PDD (prova tuberculínica) tivesse dado reagente para tuberculose, por conta de uma reação de pele paralela e a falta de produção de escarro, que geralmente é analisado em um segundo exame, de broncoscopia, para confirmar o diagnóstico, Thalita passou por diferentes especialistas sem um plano de tratamento adequado. "Fui encaminhada para o Hospital das Clínicas, estudaram meu caso, mas não conseguiram 'bater o martelo' em um diagnóstico. Com a chegada da pandemia em 2020, parei de ir atrás", conta a advogada, que ainda sofria de tosse constante. Em janeiro de 2022, ela foi infectada pelo vírus da covid-19 e, mesmo vacinada, teve sintomas intensos, como dor no corpo, tosse e cansaço. Passados quatro meses, ela ainda tinha sequelas, e, dado ao seu histórico clínico, o médico pediu um teste laboratorial chamado QuantiFERON, que analisa a resposta do sistema imune ao bacilo da tuberculose. O resultado, assim como o do exame PDD, foi positivo. "Meu tratamento terminou recentemente, mas foi uma jornada difícil, que me fez abrir mão de algumas coisas durante os últimos seis meses", diz Thalita. "Achava que era uma doença muito antiga. No início da investigação, não dei tanta atenção por conta das outras várias possibilidades de diagnóstico, e também porque a tuberculose soava como algo muito sério, eu tinha medo de morrer se fosse tuberculose", conta Thalita. Já para Mariana Romano, os sintomas começaram em 2018, e o diagnóstico veio um pouco mais rápido, mas não antes de a doença fazê-la perder 10 kg. "Eu trabalhava muito, estudava e era dona de casa. Fazia muita coisa ao mesmo tempo e não me alimentava direito. Um dia minha, imunidade caiu, e eu não parava de tossir e estava com febre alta. Fui na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] e me passaram tratamento de pneumonia, só que eu não melhorava e perdia peso a cada dia", diz ela, que tinha 17 anos na época e morava na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, um local conhecido por ter um alto índice da doença. Já bastante debilitada, Mariana procurou ajuda no hospital municipal Miguel Couto e, com a broncoscopia, recebeu o diagnóstico de tuberculose. Mariana, que hoje tem 21 anos e é promotora de eventos, cursava o ensino médio e estava de férias na época do diagnóstico, mas precisou se afastar do curso de assistente administrativa e do trabalho que tinha em uma drogaria. "Precisava tomar quatro comprimidos enormes que me davam muito enjoo. Nada parava no estômago, e, para ser sincera, apesar de ter feito o tratamento pelo tempo certo, tinha dia em que eu passava tão mal que não conseguia tomar os remédios." Quando chegou a pandemia, a médica de Mariana recomendou que ela mudasse para a casa da mãe. "Eu morava em um beco muito estreito, onde só passava uma pessoa por vez e não dava nem para ver o céu direito. Era úmido, e meu pulmão estava muito comprometido ainda, então, ela sugeriu que eu morasse com a minha mãe no bairro de Belford Roxo para evitar pegar covid-19." A vacina que existe contra tuberculose hoje não protege contra o tipo pulmonar, que é o mais comum em adultos. A BCG, como é chamada, é administrada em crianças de até 4 anos de idade e funciona contra os tipos mais comuns que acometem essa faixa etária: a meningite tuberculosa e a tuberculose miliar (forma grave que ocorre quando as bactérias caem na corrente sanguínea e se disseminam). "A proteção é muito boa até a adolescência, mas, depois, diminui. Aí, não sabemos se é a BCG que não oferece imunidade contra a tuberculose pulmonar ou se ela se torna o tipo mais comum em adultos porque a eficácia da vacina diminui com o tempo", explica Luciana Cezar de Cerqueira Leite, pesquisadora do Laboratório de Desenvolvimento de Vacinas do Instituto Butantan. Apesar de ser obrigatória para recém-nascidos, a vacina BCG - que protege contra as formas graves da tuberculose - tem registrado baixos índices de cobertura. Dados do Datasus mostram que a cobertura vacinal caiu de 105%, em 2015, para 68,6% em 2021. "Há vários fatores que contribuíram para essa queda, inclusive a falta periódica da BCG", afirma Leite. Desde 2016, a única fábrica nacional que produz a BCG e a Onco BCG, pertencente à Fundação Atalpho de Paiva (FAP), no Rio de Janeiro, passou por sucessivas interdições da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) - e, a partir daí, o fornecimento da vacina no país passou a ficar intermitente. Nos primeiros meses de 2022, o Ministério da Saúde pediu para que Estados fizessem o racionamento de doses, conforme mostrou a BBC News Brasil em reportagem publicada em maio. "Há também questões do dia-a-dia. É mais fácil encontrar a vacina em uma capital, onde você atravessa a rua e tem um posto de saúde. Mas, se você está em região rural, precisa viajar para fazer a aplicação e, quando chega, não há doses, pode acabar desistindo de voltar outro dia", diz a pesquisadora, reforçando a importância de ter os imunizantes amplamente disponíveis. "Por fim, é uma luta constante da Ciência para mostrar que a vacinação é importante." Existem atualmente diversos estudos ao redor do mundo que estão buscando alternativas para proteger a população economicamente ativa, entre 20 a 49 anos, contra a tuberculose pulmonar. Leite faz parte de um dos estudos desses imunizantes, que está em desenvolvimento no Butantan. Até o momento, os testes em animais mostraram que a vacina é capaz de proteger mais do que o imunizante tradicional. Mas ainda há um longo caminho de testes até que algum benefício para humanos seja comprovado.
2022-11-12
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63408032
sociedade
O que é a convergência linguística, fenômeno que te faz imitar sotaques sem perceber
Não importa da onde você vem ou qual seu sotaque. Se você viajar para outro Estado, é muito provável que seu sotaque comece a ficar mais parecido com o jeito de falar local. Para algumas pessoas, esse mimetismo acontece imediatamente — e sem querer — ao começar a conversar com uma pessoa de sotaque diferente, sem nem ao menos precisar viajar. Enquanto o jeito de falar da pessoa muda, o interlocutor pode ficar com a leve suspeita de que estão tirando sarro dele. Mas a verdade é que quem imita sotaques inconscientemente provavelmente está sob o efeito de um fenômeno chamado convergência linguística — algo que, em menor ou maior grau, acontece com todos. "Quando nos referimos à mudança de sotaque, à maneira como pronunciamos certas palavras, estamos falando de convergência fonética", explica à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) Zuzana Erdösová, professora de linguística da Universidade Autônoma do Estado do México. Mas, em geral, "não é apenas o sotaque que acabamos imitando quando ouvimos outras pessoas falarem, mas também adotamos seu léxico. Ou seja, as palavras típicas de um determinado grupo ou de uma determinada região." Fim do Matérias recomendadas Essa incorporação dos termos usados ​​pelo outro, da forma como uma frase é articulada é o que chamamos de convergência linguística. Enquanto a imitação do sotaque tende a ser um ato inconsciente, a adoção da estrutura gramatical (como usar a forma ativa ou passiva de um verbo, por exemplo) e o vocabulário que nosso interlocutor usa tende a ser uma escolha. Por quê? As razões para a mudança de discurso são várias. Uma das razões está ligada à aceitação social, explica Erdösová. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Dentro de cada sociedade prevalecem certas relações e hierarquias. Pessoas com maior consciência disso adaptam seu discurso para alcançar a aceitação." "Se decido convergir com a forma como o outro fala, é porque busco integração e certo vínculo identitário", diz a pesquisadora. Enquanto se fizer o contrário — o que se chama de divergência linguística — você está conscientemente marcando uma distância social entre si e o seu interlocutor. Lacy Wade, professora de linguística da Universidade da Pensilvânia, concorda que as pessoas, consciente ou inconscientemente, mudam sua fala para mostrar proximidade com a outra pessoa. "É uma maneira de dizer, 'Ei, eu sou como você!' É uma maneira de mostrar que você gosta da pessoa ou que quer que ela goste de você", afirma. "Mesmo que muitas vezes o fenômeno passe despercebido e não percebamos que estamos agindo assim, isso não significa que não seja um gesto socialmente motivado". Ela explica que às vezes as pessoas percebem que estão mudando a maneira de falar no momento em que o fazem e depois continuam por notar um benefício social positivo. Outra razão para a convergência está ligada ao nosso desejo de diálogo. "Nós nos comunicamos melhor quando estamos em sincronia, quando usamos as mesmas palavras, porque entendemos melhor alguém que soa como nós", explica Wade. A sensação de falar "na mesma língua" nos ajuda a melhorar a interação. Além disso, diz ela, a convergência é uma consequência cognitiva automática da compreensão da linguagem. "Há pesquisas que indicam que, quando ouvimos alguém falar, armazenamos esses sons em nossa memória e esses sons influenciam nossa própria fala." Curiosamente, também acontece que às vezes modificamos nossa maneira de falar não de acordo com o que ouvimos, necessariamente, mas com base em nossas expectativas sobre o que vamos ouvir. "Muitas vezes estamos assumindo o correto, mas em muitas ocasiões nos baseamos em crenças e estereótipos", diz Wade em relação a imitações imprecisas e exageradas ou quando supomos que o outro é estrangeiro e não poderá nos entender, e falamos com ele pausadamente, em voz alta. Isso, diz ela, pode ser problemático mesmo quando o falante tem a melhor das intenções. A intensidade da convergência também varia de acordo com a personalidade e a facilidade que cada indivíduo tem com relação às línguas. Por um lado, "há pessoas mais abertas, outras mais fechadas e há aquelas que são mais aptas com sotaques. Alguns até conseguem imitar perfeitamente certos sotaques ou dialetos de alguns idiomas, como você pode ver em muitos vídeos do YouTube", diz Erdösová. "Isso é uma questão de audição, e como nosso cérebro é capaz de primeiro processar e distinguir quais são as diferenças fonéticas entre uma região e outra, e depois reproduzi-las." Wade admite que isso também acontece com ela, por exemplo, quando assiste a uma série de televisão ambientada no sul dos Estados Unidos. "Quando desligo a TV depois de ver um programa com atores do sul ou com sotaque da região, me pego conversando com meus filhos como uma pessoa do sul. Depois de um tempo, volto ao meu sotaque normal", afirma. Então, da próxima vez que você se deparar com alguém com um sotaque diferente do seu, preste atenção para ver se você também é propenso à convergência linguística.
2022-11-10
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-63558560
sociedade
'É libertador': as pessoas que abandonam redes sociais
Quando Gayle Macdonald chegou ao pico de uma montanha em Sierra Nevada, na Espanha, no início deste ano, ela não parou apenas para apreciar a paisagem. Em vez disso, ela, que tem 45 anos de idade, fez o que muitas pessoas fariam: procurou o melhor lugar para tirar uma selfie e postar nas redes sociais. Ela admite até que chegou perigosamente perto de um precipício para isso. Foi depois daquele momento, após ser repreendida por seu marido, que ela decidiu abandonar as redes sociais. "Eu pensei 'isso tem que parar'", relembra Macdonald, cidadã britânica que mora perto de Granada, na Espanha. "Tirar foto era a primeira coisa em que pensava quando saía do carro", ela conta. "Pensar todo o tempo em criar conteúdo e me preocupar com o que dizer estava ocupando espaço demais na minha cabeça e me deixando deprimida." Fim do Matérias recomendadas Uma semana depois, ela postou no Facebook e no Instagram que estava deixando as plataformas. "Foi surpreendente ver que foi a minha postagem mais curtida no Instagram. Todos estavam comentando 'eu queria poder fazer o mesmo' e 'você é muito corajosa'." Macdonald é coach pessoal, especializada em ajudar as pessoas a parar de beber. Ela percebeu que passava, em média, cerca de 11 horas por semana nas redes sociais. E afirma que a ideia de abandonar os aplicativos era muito mais assustadora do que a ação real de sair. "Depois que saí, não tive mais vontade de voltar", ela conta. "Foi bem libertador. Estou agora há mais de seis meses sem acessar as redes sociais e recuperei parte daquela sensação de paz e liberdade que experimentei quando parei de beber." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Muitos de nós passamos uma parte enorme do tempo nas redes sociais. Um estudo global em julho de 2022 estimou que uma pessoa passa, em média, duas horas e 29 minutos por dia nesses aplicativos e websites — cinco minutos a mais do que no ano anterior. Algumas pessoas podem achar que este é apenas um mau hábito que deveria ser eliminado. Mas, para outras, é uma forma real de dependência que requer ajuda externa para ser superada. A organização UK Addiction Treatment (UKAT), que mantém centros de tratamento de dependência em redes sociais, afirma que houve um aumento de 5% da quantidade de pessoas que buscam auxílio para o problema nos últimos três anos. "Sem dúvida, a sociedade desenvolveu forte dependência das redes sociais e da internet, de forma geral, durante a pandemia", afirma Nuno Albuquerque, consultor da UKAT. O aumento da conscientização sobre essas preocupações levou mais pessoas como Macdonald a abandonar as redes sociais ou pelo menos reduzir o tempo gasto nelas. E os provedores estão de olho nessa tendência. No início de 2022, a empresa Meta, proprietária do Facebook, informou que seu número diário de usuários ativos tinha diminuído pela primeira vez na sua história. E um relatório interno do Twitter que vazou em outubro afirmava que seus usuários mais ativos agora estão tuitando menos. O Twitter não desmentiu a autenticidade do vazamento. Até o novo dono do Twitter, o bilionário Elon Musk, tinha especulado, no início do ano: "o Twitter está morrendo?" E, recentemente, sua aquisição fez com que celebridades de Hollywood declarassem que irão sair do Twitter, por estarem insatisfeitas com as opiniões de Musk sobre a liberdade de expressão e seus planos para o serviço. Mas, de volta ao mundo real, quais são as outras razões que estão levando as pessoas a abandonar as redes sociais? A empresária Urvashi Agarwal saiu do Instagram em 2014, mas sua ausência durou apenas cerca de um ano. Até que, em agosto de 2022, ela excluiu sua conta pessoal pela segunda vez e afirma categoricamente que, desta vez, não haverá retorno. "Saí definitivamente", afirma a fundadora da marca britânica de chás JP's Originals, que mora em Londres. "Cem por cento. Não é só uma grande perda de tempo, mas parece que simplesmente há cada vez menos privacidade no mundo. Tudo o que você faz é constantemente publicado." Agarwal também não usa mais o Twitter, nem o Facebook. Ela acha libertador: "Adoro. Agora, leio 15 páginas de um livro todas as noites." A psicoterapeuta de Londres Hilda Burke, autora do livro The Phone Addiction Workbook ("Caderno de exercícios para vício em celular", em tradução literal), afirma que existe atualmente uma maior consciência sobre a quantidade de tempo que as pessoas estão "desperdiçando" nas plataformas das redes sociais. "Agora, isso pode ser quantificado facilmente, pois a maioria dos telefones mostra detalhadamente como você está passando seu tempo online", afirma ela. "Ver a soma de tudo isso pode ser um alerta poderoso", explica Burke. "Muitos dos meus clientes expressaram correlação entre o uso intenso das redes sociais, má qualidade de sono e aumento da ansiedade." Ela aconselha às pessoas que saírem das redes sociais a informarem todos os seus amigos, para que eles não continuem tentando entrar em contato por meio das plataformas. "Ofereça outras formas de contato. Talvez uma ligação telefônica à moda antiga possa atender melhor ao relacionamento na ausência de mensagens diretas", aconselha Burke. Já a executiva de relações públicas Kashmir, que prefere não informar seu sobrenome, tem 27 anos de idade e mora em Rochester, no Reino Unido. Ela saiu do Instagram 10 meses atrás e, antes, também já havia abandonado o Snapchat. "O principal fator foi minha saúde mental", afirma ela. "Existe muita pressão para acompanhar o que as outras pessoas estão fazendo, o que realmente não é representativo, nem a realidade daquela pessoa." "Eu ficava rolando a tela à noite para depois ter uma noite de sono ruim e não me sentir revigorada quando acordava", conta Kashmir. "Agora, não estou fazendo comparações na minha vida diária e realmente não sei o que as celebridades estão fazendo." "Isso me permite estar mais firme e presente, comprometida com as decisões que tomo, em vez de ser influenciada", ela conta. Kashmir acrescenta que não estar no Instagram, nem no Snapchat, não afetou seu trabalho em relações públicas e que ela ainda usa o LinkedIn sempre que está procurando um novo emprego. Nuno Albuquerque, da UKAT, afirma que as redes sociais podem causar dependência por muitas razões. A principal delas é que as redes servem de forma de escape, especialmente para a geração mais jovem. "É simplesmente uma forma de se conectar sem conexão, um conforto disponível a todo momento para fazer companhia a muitas pessoas", explica ele. "Mas a dependência alimenta o isolamento e, se alguém passar mais tempo vivendo online que no mundo real, naturalmente ela ficará isolada, o que pode gerar mais dependência." Ele aprova o fato de que mais pessoas estão abandonando as redes sociais. "É provável que, em algum momento, começaremos a perceber os danos que elas podem causar aos nossos relacionamentos, à nossa saúde mental e à nossa experiência dos momentos da vida real." De volta à Espanha, Gayle Macdonald afirma que está mais feliz sem as redes sociais. "É tão libertador sentar e tomar uma xícara de chá sem me preocupar com a imagem, a legenda e se deve ou não ser um story, reel ou postagem. Realmente, existem outras coisas na vida além disso."
2022-11-09
https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-63567891
sociedade
Vídeo, A família indiana com 72 membros vivendo na mesma casaDuration, 2,14
No Estado indiano de Maharashtra, 72 membros da família Doijode vivem juntos na mesma casa. São quatro gerações dividindo o espaço. Confira o que eles dizem sobre como é viver com tantas pessoas sob o mesmo teto.
2022-11-08
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63556488
sociedade
'A casa é o lugar onde nasce a maioria dos monstros do mundo'
"Se alguém perguntar: que feridas são essas que você traz no peito? A resposta será: são aquelas que fizeram na casa de quem me ama." Desde criança, a casa foi o refúgio de Kathy Serrano, que nasceu em 1968 na Venezuela. Na residência havia coisas bonitas, mas também violência. Com apenas 16 anos, ela decidiu morar sozinha em Caracas. Depois, seguiu até a antiga União Soviética e terminou em Lima, no Peru, onde vive desde 1994. Em seu primeiro romance, El Dolor de la Sangre" (A Dor do Sangue, em tradução livre), a protagonista Martha é uma venezuelana que vive no Peru e foge de seu país e do encontro com o seu irmão violento. Até que ela precisa voltar à sua origem. Martha se vê confrontada com uma Venezuela atual (embora atemporal) da qual ela tem lembranças, mas à qual não pertence mais. É uma jornada na qual ela também precisa enfrentar os monstros do passado. Fim do Matérias recomendadas A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com a autora do livro durante a divulgação do Hay Festival Arequipa, evento realizado entre 3 e 6 de novembro na cidade peruana. BBC News Mundo - A ideia desse romance já rondava a sua cabeça havia tempo, certo? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Kathy Serrano - Escrevi o primeiro capítulo em 2018, em um voo para o Equador, mas sem dúvidas há algo que vem de toda a vida. Eu tenho um irmão violento. E quando cheguei a Caracas escrevi uma peça de teatro sobre a relação de uma mulher com um irmão com essas características. Logo começou a obsessão com o tema do retorno. Escrevi sobre isso, mas minha casa foi assaltada e perdi tudo o que havia escrito. Tenho cinco contos que não acredito que publicarei. Há cinco anos me dedico somente a escrever e, de novo, surgiu essa obsessão do retorno, com a ideia do caminho percorrido, da infância. E esclareço: não é uma autobiografia, só por precaução. Eu não me apaixonei pelo meu irmão (risos). BBC News Mundo - Ainda assim, há muitas semelhanças entre a protagonista, Martha, e você. Ambas saem de casa cedo, a questão do irmão violento, ambas acabam morando em Lima e não voltam para a Venezuela, inclusive evitam isso. O que há da Martha em você e vice-versa? Serrano - Há muito. Às vezes eu sinto que definitivamente nos apegamos às coisas que vivemos. Como artistas, pegamos as coisas que nos marcaram, que nos quebraram. Lar, infância e família permanecem em sua alma, em seu corpo. São eles que nos nutrem, nos quebram e nos deixam cicatrizes. Há muitas coisas que absorvi de mim para criar Martha. Não é muito comum que aos 16 anos você vá morar sozinho em uma cidade como Caracas. Sou migrante desde os 16 anos e isso marcou meu jeito de ser, minha alma. Conheço a violência desde criança e vi e vivenciei coisas fortes e não só minhas, mas de outras pessoas. Vi a violência refletida em outras famílias, em outras mulheres, em amigas. Por sua vez, Martha tem coisas que eu gostaria de ter. Como conhecer a fotografia ou o tipo de força interior que você tem. Ela vem de meus próprios medos e minhas próprias experiências. BBC News Mundo - Em 2012 você iria dirigir uma peça de um dramaturgo peruano. É curioso, porque também tinha a palavra "sangue" no título. Serrano - Nessa época, havia 10 anos que eu não voltava à Venezuela. Quando terminei de ler a obra, sem falar com ninguém, me levantei da cama, coloquei um moletom esportivo e fui a uma agência em um shopping e comprei uma passagem para a Venezuela. Além do irmão que, infelizmente, é violento, tenho outro que me adora. E pedi que ele me acompanhasse no meu périplo à minha cidade natal. Eu precisava ir, voltar e enfrentar. Não em um plano de raiva, mas com a minha vulnerabilidade, com as lembranças agradáveis e as desagradáveis. Confrontar essas recordações para poder chegar mais leve ao Peru. Foi uma jornada de fazer as pazes internamente com uma série de memórias e coisas que nos tocam. Agora falam mais sobre a violência contra as mulheres, mas essa violência sempre existiu. BBC News Mundo - O romance é envolto de violência, não somente física, mas uma ampla e sutil gama de violência. Serrano - Me interessa como ser humano e como artista tocar no tema da violência, que me obceca. Falar sobre ela e torná-la visível. É transversal à nossa existência, como mulheres e também para as crianças. Me interessava falar desse espaço fechado que é a casa, que é a família. Desde que me lembro, dizem que ela é a base da sociedade, o lugar em que deveria estar absolutamente seguro, onde não deveria acontecer nada que possa prejudicá-lo fisicamente ou psicologicamente. Mas acredito que esse é o lugar onde nasce a grande maioria dos monstros de todo o mundo. Pense, reflita, compartilhe. Vamos falar sobre essa violência. BBC News Mundo - No livro também aparece a violência contra o migrante, não só pelo país de acolhimento, mas também pelos compatriotas que permanecem no país natal... Serrano - A minha migração foi diferente dos meus compatriotas, mas vivi a falta de emprego ou de espaço por ser estrangeira. É algo dissimulado e você descobre depois, mas acontece. Você decide ficar em um país, mas nunca vai pertencer a ele porque não nasceu ali. Mas quando você volta, como eu fiz na Venezuela em 2012, te dizem coisas como "você não é mais daqui, você não esteve na família". Isso foi o que uma irmã me disse. Você não é mais. Outras pessoas me dizem que já não falo mais, não me mexo, não me visto como uma venezuelana. E há outra sensação, uma que não tem palavras, na qual sentia que não havia lugar pra mim, que não te mostram esse lugar. Cheguei a sentir medo do país. Amo a Venezuela e amo o Peru, mas sinto que não sou exatamente de nenhum dos lados. É um não pertencer doloroso, não poder se sentir totalmente aceita em nenhum dos lados. É um não ser. Então, a Venezuela veio em mim e me dei conta de que por anos havia reprimido a minha 'venezuelanidade' para me adaptar ao lugar onde estava vivendo. Agora estou deixando fluir. BBC News Mundo - Martha passa por um processo curioso com as palavras. Ela esquece como algumas coisas são ditas na Venezuela e diz à maneira do Peru. Palavras, são esquecidas e colocadas em um canto para não se lembrar ou sobreviver no novo lugar? Serrano - Acho que são as duas coisas. Há muitas coisas que esqueci como mecanismo de defesa. Esquecer é uma forma de sobrevivência. Por exemplo, deixei escapar um "estoy arrecha" (estou com raiva) e no Peru isso significa outra coisa (estou excitada). As pessoas me olhavam surpresas. Quando cheguei a Lima em 1994, quase não havia venezuelanos. Lima era outra. Agora que as coisas mudaram. São palavras, tons de voz, modo de falar. Nós, venezuelanos, falamos mais diretamente, frontalmente. No Peru é diferente e eu também modifiquei isso. Você tem que se adaptar. Eu fui adormecendo a minha identidade venezuelana. Não sei se era para me encaixar ou por preferir assim, para imitar (os peruanos) para sobreviver. BBC News Mundo - Mas você diz que logo a "Venezuela caiu em cima"... Serrano - Quando acontece na Venezuela (a crise dos últimos anos) começo a sentir no peito que algo racha, quebra. Falava com a minha família e dizia para eles o que havia visto e vivido quando estudava na União Soviética e me diziam que não, que algo assim não aconteceria. Então as pessoas logo começaram a migrar e caminhar por estradas, pessoas com seus filhos nos braços... Tudo foi extremamente doloroso pra mim. E me vi confrontada comigo mesma quando chegaram a Lima. É como se rompesse um ovo e dentro dele saísse uma borboleta colorida. A Venezuela caiu em cima de mim para que a minha 'venezuelanidade' voltasse à tona, fosse mais livre. Sou uma peruana que nasceu na Venezuela. É doloroso. BBC News Mundo - Há uma cena, em uma cafeteria de Caracas, em que tudo é incrível. Até que uma simples pergunta desencadeia demônios de todo o mundo. Serrano - Eu queria que uma palavra explodisse tudo. É o que está embaixo e há camadas e camadas. Por trás da alegria, do belo e do incrível está a dor, a tragédia. E, o fato de sermos assim, de "ficaremos bem de todas as maneiras", perpetuou essa situação por tantos anos. Isso pinta um retrato exaustivo da Venezuela, bastante detalhado para quem a conhece, com luzes e sombras. Mas nos coloca em um tempo indeterminado, não sabemos o ano, quem governa. Eu não estava com vontade de contar isso, esse é outro romance no qual eu teria que me trancar, estudar e ser muito meticulosa. O que mostro é uma Venezuela híbrida. Estou mais interessada na sutileza. BBC News Mundo - A mãe e a avó de Martha são colombianas. Em um ponto do livro, reflete-se a rejeição da migração colombiana pelos venezuelanos... Serrano - Isso tem a ver com a minha família. Minha avó, mãe e bisavó eram colombianas. Elas eram muito pobres e chegaram à Venezuela caminhando. Queria usar isso (no livro). Quando eu era menina, em Táchira (Estado fronteiriço entre Venezuela e Colômbia), todos eram estrangeiros: portugueses, alemães, turcos, chineses... Mas havia algo doloroso que era a luta dos colombianos. No tratamento, os apelidos, o medo que eles tinham. Para o romance, fiz uma extensa investigação e conversei com diferentes pessoas sobre isso. Essa coisa de ida e volta. Hoje eu te maltrato e amanhã você me maltrata. Não aprendemos nada. O venezuelano viveu uma época de ouro com muita abundância, muitos migrantes chegaram e fizeram fortunas, mas outros infelizmente receberam rejeição. Agora é o contrário, esse povo que teve tanto, que não estava acostumado a migrar, a não ser para férias ou estudos, teve uma lição muito dura. Eles vão para outros lugares e os recebem de portas abertas, mas também há rejeição. BBC News Mundo - Este livro te ajudou a se curar e a se redimir de sua própria história? Serrano - O ato de escrever pode servir muito para te libertar, para transformar aquela parte da história que te machuca, que te causa dores e você tem guardada em si. Há algumas cenas (no livro) que são fortes. Eu não queria fazer autoficção, por isso transformo as coisas. BBC News Mundo - Dentro dessa limpeza, dessa redenção e cura (com o livro), também há uma demonstração de amor ao país natal, Venezuela. Tudo está cheio de comida, música e cheiros do país. Serrano - Foi algo que surgiu. E nasceu da viagem que fiz em 2012 com dois dos meus irmãos, onde voltei a sentir os sabores e cheiros do país. Eu sinto que isso é parte do amor. Sinto muita beleza e muito amor. Eu queria fazer uma mistura de amor, beleza e violência. Este artigo é parte da versão digital do Hay Festival Arequipa, um encontro de escritores e pensadores entre os dias 3 a 6 de novembro na cidade peruana.
2022-11-07
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63493291
sociedade
O caso de estupro de menina de 11 anos que mudou lei na França
Um homem de 33 anos foi condenado na última sexta-feira, 4 de novembro, por estuprar uma menina de 11 anos em um caso que ocorreu em 2017. O episódio, chamado de 'Caso Sarah' pela imprensa francesa (embora a vítima não tenha sido identificada), levou à criação de nova lei sobre a idade mínima para o consentimento sexual na França. O acusado, que não foi identificado, admitiu ter feito sexo com a vítima, uma menina que cursava a 6ª série do ensino fundamental, em 2017, depois de conhecê-la em um local próximo à escola onde ela estudava, na cidade Val-d'Oise. De acordo com o jornal francês Le Monde, o episódio aconteceu em 24 de abril. Sarah concordou em seguir o homem, que na época tinha 28 anos, após ele abordá-la em uma praça. O jornal descreve que ele a levou para o seu prédio e eles tiveram duas relações sexuais, uma na escada e outra em um apartamento. "O homem não usou violência, e 'Sarah' não ofereceu resistência", diz a publicação. Fim do Matérias recomendadas Depois, o homem pediu para que ela não contasse a ninguém, mas Sarah ligou imediatamente para a mãe e disse que havia sido estuprada. Na época do julgamento, que ocorreu em 2018, a acusação de estupro foi reduzida a agressão sexual, o que fez com que uma onda de protestos surgisse, de acordo com a agência de notícias AFP. Até então, a lei francesa exigia que um acusador com menos de 15 anos mostrasse que houve "violência, constrangimento ou ameaça". Agora, a lei, divulgada pelo governo após este caso e promulgada em abril de 2021, considera que sexo com qualquer pessoa com menos de 15 anos como automaticamente não consensual e, portanto, estupro. Uma nova investigação foi iniciada, mas como a lei não pode ser aplicada retrospectivamente, o caso foi julgado com base na legislação anterior. Ainda assim, o homem foi acusado de estupro depois que os magistrados decidiram que havia "constrangimento moral e surpresa" em suas ações. Ele recebeu a sentença de oito anos de reclusão em um julgamento fechado ao público.
2022-11-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63530460
sociedade
A história das 14 mulheres liberadas de uma clínica psiquiátrica na Alemanha que virou livro no Peru
Novembro de 1984. Um grupo de 14 mulheres está na estação de trem na cidade alemã de Stuttgart prestes a pegar vários trens para suas respectivas casas. A cena está longe de ser um acontecimento casual: é um ato incomum de libertação. Trata-se da liberação de pacientes que até poucas horas estavam internadas em um prestigiado centro psiquiátrico. Anne Kahl, alemã nascida em 1942 na cidade bávara de Berchtesgaden e secretária da clínica, encarregava-se de enviar essas mulheres para suas casas, onde continuariam seus tratamentos longe da reclusão alienante nas instalações do excêntrico e brilhante doutor Curtius Tauler. Embora os nomes sejam todos fictícios e os prontuários inventados, a trama central do livro publicado no Peru é real. Foi assim que a própria Anne Kahl contou à escritora peruana Teresa Ruiz Rosas, que anos depois decidiu contar essa história incrível em seu romance "Estación Delirio", com o qual ganhou o Prêmio Nacional Peruano de Literatura 2020. Fim do Matérias recomendadas A escritora, nascida em Arequipa em 1956, vive na cidade alemã Colônia há mais de duas décadas, embora sua intenção seja se mudar para Barcelona em breve. Filha do poeta José Ruiz Rosas, a autora entrelaça saúde mental com feminismo, arte e literatura em seu premiado romance. A BBC Mundo conversou com ela no âmbito do Hay Festival Arequipa que acontece entre 3 e 6 de novembro na cidade peruana Arequipa. BBC News Mundo - "Estación Delirio" (Estação Delírio, na tradução literal para o português) gira em torno de Anne Kahl, uma mulher que trabalha em uma famosa clínica alemã no início dos anos 1980, e foi encarregada de libertar 14 pacientes. Quanta realidade há nessa história? Teresa Ruiz Rosas - Há muita realidade. A Anne Kahl de "carne e osso" era uma amiga minha, muito mais velha que eu, que conheci nos últimos anos da escola em Arequipa. Assim como no livro, ela estava lá porque seu marido era um cooperador. Ficamos amigas por causa do idioma. Eu falava alemão porque tinha sido educada em uma escola peruana alemã. Tínhamos uma amizade muito legal. A certa altura, ela me escreveu e me contou sobre esse trabalho na clínica psiquiátrica e depois sobre a alta dos pacientes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Tudo isso é verdade, o que eu inventei foram as histórias de cada uma das 14 pacientes liberadas, porque eu não tive acesso ao prontuário, e a Anne não me contou por questão de sigilo profissional. Além disso, ela já morreu há muitos anos. O que fiz foi refrescar minha memória para escrever sobre isso. Também é verdade que o psiquiatra deu às pacientes um sedativo para que pudessem voltar para casa. Ele as havia preparado para que mais tarde pudessem ficar sem ele. O psiquiatra era um homem que poderia ter se aposentado oito anos antes, mas que continuou a dirigir a clínica. A certa altura, quando ele queria se aposentar, não conseguia pensar em uma maneira melhor do que fechar a clínica e mandar as pacientes para casa. Enquanto escrevia o romance, consegui localizar o médico assistente-chefe. Ele já era nonagenário, mas me recebeu. Ele ficou muito animado com o fato de que eu estava escrevendo sobre o tema. Foi ele quem me disse que 14 mulheres foram liberadas. Eu não sabia o número exato antes. BBC News Mundo - O diretor da clínica é um psiquiatra alemão famoso por sua aplicação de eletrochoque em suas terapias... Teresa Ruiz Rosas - Isso foi o mais interessante. Na verdade, minha amiga me contou como essas pacientes adoravam esse psiquiatra, como voltaram e como queriam essa terapia. Elas o viam como seu redentor. Aparentemente (o método) tem um efeito muito positivo, quando bem dosado, que certamente terá consequências mais tarde, mas ele aplicava bem (a terapia). Alguns anos antes de publicar o romance, dei-o a uma amiga minha que dirige uma grande clínica psiquiátrica nos Estados Unidos para que ela pudesse ler, e ela também me disse algumas coisas que depois alterei no texto. Ele me explicou que é uma terapia que atualmente é usada com muita cautela, mas que os estados mais graves de depressão só se curam com essa terapia, que não tem outro jeito. Se eles realmente querem evitar que uma pessoa cometa suicídio, essa terapia é aplicada e, em muitos casos, funciona. O problema, como em muitas coisas, é o abuso que foi feito e quantas pessoas que provavelmente não precisavam também foram diagnosticadas, fazendo com que essa terapia fosse administrada de forma brutal. Há histórias de terror. BBC News Mundo - O que mais o surpreendeu em sua pesquisa em psiquiatria para escrever este livro? Teresa Ruiz Rosas - Além do que já falei sobre a aplicação de eletrochoque, aprendi muito sobre a história da psiquiatria em geral, sobre as coisas horríveis que eram feitas antes dos anos 1950, 1960. E pude ver quanto abuso há das pílulas, um assunto muito sensível e muito polêmico. Ouvi falar de tristes casos de vícios nesse tipo de medicamento, que não vão ao fundo do problema que levou a pessoa ao estado de necessitar tratamento. São usados não para resolver a angústia, mas apenas como um paliativo. Claro que existem fatores genéticos, mas isso é outro assunto. Mas nos casos em que a genética não é o fator determinante, sempre ou quase sempre há uma experiência ou muitas experiências traumáticas, e você não as apaga com uma pílula. BBC News Mundo - No romance, o médico cita a frase do escritor Friedrich Glauser: "Nunca podemos traçar a linha entre um doente mental e uma pessoa normal". Você concorda? Teresa Ruiz Rosas - Acho que há muita verdade nisso. De fato, Glauser estave em um hospital psiquiátrico e escreveu romances memoráveis lá. Lembro-me do ditado, que acho que ouvi de meu pai pela primeira vez, "de médico, poeta e louco, todos nós temos um pouco". Se pensarmos no presente, podemos pensar em todas as atrocidades que acontecem dentro das quatro paredes de milhões de casas das quais ninguém sabe nada. Pessoas que parecem estar muito bem do lado de fora. Isso é saúde mental. Existem pessoas que maltratam, que estupram, que se aproveitam das outras e andam soltas e até têm empregos — elas estão bem da cabeça? Acredito que não. No âmbito particular é muito difícil saber o que está acontecendo. A gente descobre aos poucos. Você só sabe o que acontece em público. Se um pobre coitado saiu nu na rua, chama a atenção, mas se faz barbaridade dentro de casa, ninguém sabe. É por isso que toda essa definição ou categorização é uma questão tão delicada. Com todo respeito aos psiquiatras. BBC News Mundo - A história de cada uma das 14 mulheres da clínica também reflete o que significa viver em uma realidade que oprime, objetifica e destrói as mulheres. Como você selecionou essas histórias? Teresa Ruiz Rosas - O fato de a clínica ser apenas para mulheres já me inspirou a tocar no assunto das mulheres que, em geral, tiveram menos oportunidades naquele momento de desenvolver todo o seu potencial como seres humanos. A primeira ou segunda onda do grande feminismo estava apenas começando a dar frutos na época. A mulher ainda tinha que cumprir um papel subordinado. Queria destacar essa dificuldade ou impossibilidade das mulheres poderem ter uma vida completamente emancipada como podem agora se quiserem. BBC News Mundo - Tanto a alemã Anne quanto a peruana Silvia lutam contra os padrões patriarcais. Que diferença você vê entre as duas sociedades? Teresa Ruiz Rosas - O caso da Alemanha é o de uma sociedade que vivenciou esse feminismo que surgiu a partir dos protestos de maio de 1968 na França. Um de seus legados é a revolução sexual e dentro dela está o feminismo, a ideia de que uma mulher pode decidir sobre seu corpo como bem entenda. Mas a Alemanha também tem muita migração. As pessoas que vieram trouxeram outros costumes e dinâmicas, e a maior das minorias é muçulmana. E já sabemos como cultura muçulmana enxerga as mulheres. Além disso, na Alemanha não há apenas numerosos feminicídios pelas mãos de alemães, mas também não podemos esquecer o número de alemães que vão à Tailândia para comprar sexo com adolescentes. E então toda a questão que denunciei em meu romance anterior, Nada que declarar: El libro de Diana ("Nada a declarar: O livro de Diana", em tradução livre). A questão da legalização da prostituição em que, no final, o que foi conquistado é pior do que a prostituição forçada, em minha opinião. Os ônibus chegam a lugares remotos para fazer turismo sexual. Se isso não é sexista e não é antifeminista, por favor, me explique o que é. Além disso, a diferença é que há uma classe média muito grande na Alemanha com muitas mulheres muito avançadas nesse assunto, e elas levam isso com absoluta naturalidade. Elas nunca considerariam a subordinação ou submissão. Isso também é um fato. BBC News Brasil - E o que acontece no Peru? Em Arequipa? Teresa Ruiz Rosas - Arequipa cresceu muito, e isso traz mudanças inevitáveis. Embora existam alguns aspectos, quase culturais, que ainda estão vivos, como o arranjo pessoal das mulheres para agradar os homens, as mulheres estudaram e têm independência econômica, o que é um fator chave. Dentro de seus próprios núcleos familiares elas já não permitem mais uma série de coisas. Há homens que nunca foram machistas de coração. Eles podem ter sido mais ou menos culturalmente machistas, mas nunca tiveram uma alma machista. Eles veem de forma positiva e não se sentem ameaçados pelo fato de que as mulheres agora têm os mesmos direitos, as mesmas possibilidades e que querem ganhar a mesma quantia de dinheiro pelo mesmo trabalho. Mas há outros homens, muito poucos, que se sentem ameaçados, que no fundo têm um complexo de inferioridade, porque em muitos casos não podem se defender sem uma mulher que resolva suas vidas, por exemplo, ou que seja responsável por ajudá-los com tudo. Eles veem que seu poder não será mais o mesmo e que eles estarão abaixo. Esses são os que são irrefutavelmente contra e são violentos e muitas vezes até matam. Acho que essa é outra questão chave. Embora o machismo esteja necessariamente retrocedendo por diferentes razões, o triste é que ainda há feminicídios, que ainda há violência sexista nos lares.
2022-11-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63530114
sociedade
Aumenta busca por vasectomia após mudança em direito a aborto nos EUA
Em uma sexta-feira de janeiro, Lyon Lenk irá ao consultório do seu urologista em Kansas City, no Missouri (Estados Unidos). Ele receberá um anestésico local, o médico fará uma pequena incisão na bolsa escrotal de Lenk, localizar seu canal deferente - o tubo que leva o esperma através do pênis -, cortá-lo e vedar as extremidades. A incisão será fechada e Lenk irá para casa, tomará analgésicos comuns e, desde que não haja complicações, estará livre de qualquer desconforto em até uma semana. Lenk tem 35 anos de idade. Ele e sua parceira não têm filhos e querem continuar assim. Quando a Corte Suprema dos Estados Unidos decidiu, no caso Dobbs x Jackson Women's Health Organization, que não existe direito constitucional ao aborto - revertendo a decisão do caso Roe x Wade, que protegia o direito ao aborto desde 1973 -, ele programou uma vasectomia. Fim do Matérias recomendadas "Penso como muitas outras pessoas na minha situação, que provavelmente estávamos em cima do muro com relação a este assunto antes da reversão do caso Roe x Wade", afirma Lenk. "Mas é a única opção para garantir a segurança da minha parceira nesta conjuntura, já que eu moro em Missouri. E Missouri tinha uma das 'leis de gatilho' que entraram em vigor, [criminalizando o aborto] assim que houve a reversão. De repente, tudo ficou muito real e assustador." Outros homens jovens estão se informando e se submetendo à vasectomia. É uma tendência que vem sendo observada informalmente em diversos países e atingiu particularmente seu pico nos Estados Unidos, desde a decisão da Suprema Corte. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Google Trends observou um enorme aumento nas buscas por "vasectomia" nos Estados Unidos, além dos termos de busca relacionados "Roe" e "aborto". E o volume de buscas foi ainda maior em lugares onde havia leis de gatilho. Um relatório da companhia de pesquisas de saúde Innerbody Research demonstrou que as buscas por "onde posso fazer vasectomia" aumentaram em 850% nos dias que se seguiram à notícia, com saltos maiores nos Estados americanos conservadores do Texas e da Flórida. Uma clínica na Flórida declarou à rede americana CBS News que o número de homens sem filhos submetendo-se à vasectomia com menos de 30 anos de idade dobrou desde a decisão judicial, enquanto urologistas de Nova York, Califórnia, Iowa e outros lugares relataram aumentos similares. É uma tendência que está desafiando os padrões. A responsabilidade pelo controle de natalidade, mesmo para casais em relacionamento longo, sempre recaiu desproporcionalmente sobre as mulheres. A esterilização feminina, anticoncepcionais de uso oral, DIUs e outras opções para as mulheres permanecem sendo as formas mais comuns de controle da natalidade nos Estados Unidos. Mas, com mais americanos preocupados com decisões contraceptivas após a decisão do caso Dobbs, o aumento do interesse pela vasectomia pode sinalizar uma mudança, com os homens assumindo maior grau de responsabilidade por sua própria reprodução. Em muitos países, a vasectomia é uma prática restrita. As taxas são especialmente baixas nos países em desenvolvimento, com prevalência média (como forma de contracepção entre os parceiros de mulheres com 15 a 49 anos de idade em relacionamentos) de 0% a 2%. Em outros países, ela é mais comum. Dados de 2015 das Nações Unidas indicam que, no Canadá e no Reino Unido, a prevalência é de 21,7% e 21%, respectivamente. E, nos Estados Unidos, esse número é de 10,8%. Embora a vasectomia tenha diminuído entre os homens americanos com 18 a 45 anos de idade entre 2002 e 2017, estudos documentaram alguns picos notáveis, especialmente durante a Grande Recessão, entre 2007 e 2009. "O aumento de 34% da prática de vasectomia durante a Grande Recessão... apresentou forte correlação com o aumento da taxa de desemprego", segundo pesquisadores do Departamento de Urologia da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Mas as condições econômicas não são o único fator do aumento da vasectomia. Preocupações relacionadas ao clima e à superpopulação também trouxeram para algumas pessoas o desejo de limitar o tamanho da família ou de não ter filhos. Na Austrália, a prática de vasectomia é relativamente alta, em comparação com alguns países desenvolvidos. Os médicos australianos estão relatando aumento dos homens com menos de 30 anos de idade que procuram o procedimento. Entre 2020 e 2021, "houve um aumento de cerca de 20% do número de homens sem filhos com menos de 30 anos procurando vasectomia", segundo contou um médico australiano à rede local SBS News. E também têm surgido relatos de episódios que demonstram que a vasectomia entre os homens jovens está se tornando mais comum no Reino Unido e até na China, onde a esterilização segue sendo um tabu cultural. Nos Estados Unidos, o professor Alexander Pastuszak, da divisão de cirurgia urológica da Universidade de Utah, afirma que a razão mais comum para os homens buscarem a vasectomia costumava ser "minha esposa me pediu". Mas ele afirma que, desde a decisão da Suprema Corte, mais homens parecem estar tomando para si a responsabilidade das suas opções reprodutivas, já que as opções das mulheres ficaram mais limitadas. "Particularmente nos Estados onde as leis contra o aborto realmente foram restauradas, meus colegas observaram um aumento claro do número de homens que os procuram para fazer vasectomia", afirma Pastuszak. "Existe a sensação de que, sabe, não podemos mais ter sexo como quisermos." Já o professor de urologia clínica Stanton Honig, chefe de medicina sexual e reprodutiva da Faculdade de Medicina da Universidade Yale, em Connecticut (EUA), também acredita que o clima político é um fator decisivo para o aumento do número de vasectomias. "Nós vimos, de fato, um pico inicial dos pedidos de vasectomia com a reversão de Roe x Wade", segundo o professor. "Muitos urologistas estão agora com espera de meses para vasectomias." Honig afirma que a enxurrada de ligações agora diminuiu um pouco no seu consultório, mas sua agenda continua cheia. "Mas, nos Estados republicanos... tenho um amigo no Kansas que me disse que continuou a aumentar", ele conta. "O mesmo acontece em Wisconsin. Acho que ainda há medo - este é um fator real. Não acho que seja algo que as pessoas estivessem analisando antes, mas, falando com os pacientes, fica claro que isso meio que os colocou contra a parede." O criador de conteúdo Keith Laue, de Austin, no Texas (EUA), tem 23 anos de idade e afirma que se submeteu ao procedimento porque acredita que as mulheres não devem carregar sozinhas o ônus do controle de natalidade. "O Texas não tem sido nada gentil com os direitos reprodutivos das mulheres, para dizer o mínimo", afirma ele. Laue e sua parceira têm uma filha com três anos de idade e estão certos de que não querem mais filhos. Depois de conversar com ela sobre sua experiência "muito difícil" com contraceptivos, Laue conta que decidiu facilmente assumir a responsabilidade pelo controle de natalidade do casal. Laue tomou a decisão de submeter-se à vasectomia no ano passado, depois que o Texas aprovou a "lei dos batimentos cardíacos", proibindo o aborto depois de seis semanas. "Eu posterguei a marcação da consulta, na verdade", ele conta. "Mas, quando vazou a decisão de Roe, foi como se eu dissesse, 'preciso realmente fazer isso agora'. Foi quando marquei a consulta." Honig indica que o medo de que outras formas de controle de natalidade pudessem ser colocadas em risco frente a novas leis sobre os direitos reprodutivos pode estar incentivando o aumento da prática da vasectomia nos Estados Unidos. "Sabe, é um aumento cada vez maior", afirma ele. "Especialmente em Estados como Ohio, Indiana e Missouri, onde, assim que Roe x Wade foi revertido, o aborto deixou de ser legal, existiu o medo de que talvez em breve eles não conseguissem nenhum tipo de planejamento familiar."As mulheres tiveram que assumir a maior responsabilidade no controle dos métodos contraceptivos no casal. Foi uma possibilidade que, segundo Lenk, "passou pela minha cabeça quase imediatamente". E é parte do que o motivou a agendar a vasectomia enquanto ainda era possível. Ele conta que, até aquele dia, a responsabilidade pela contracepção era da sua parceira, o que trazia dificuldades. "Ela tem problemas com o controle hormonal da natalidade", ele conta. "Ele traz uma série de efeitos colaterais, mas ela ainda toma. Afeta o humor dela e interfere com outros remédios que ela toma. E o DIU também não é ideal para ela." Poupar sua parceira do desconforto dessas opções foi outro fator importante para Lenk. Apesar das aparentes vantagens do procedimento, o número de homens que se submetem à vasectomia é tradicionalmente baixo nos Estados Unidos. Isso se deve, em grande parte, à norma geralmente aceita de que a contracepção é responsabilidade das mulheres. Quem afirma é a professora de sociologia Krystale Littlejohn, da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos. Ela aconselha analisar esse aumento recente dentro do seu contexto. "O ônus vem recaindo sobre as mulheres e as pessoas que ficam grávidas há décadas", afirma ela. "E, ainda assim, pelo menos uma a cada quatro mulheres norte-americanas em idade reprodutiva passará pela ligadura das trompas. Compare esses 25% com o índice muito baixo de vasectomia. Nós observamos esses picos, mas qual a impressão que fica se esse número até agora era tão baixo?" Littlejohn ressalta que o aumento do número de vasectomias, após a reversão do caso Roe x Wade, é notável. Alguns homens estão se adiantando, seja por preocupação com suas parceiras, por medo de terem filhos que não querem, como declaração política contra as restrições ao aborto, ou por uma combinação dos três fatores. Mas existe a possibilidade de que seja apenas uma tendência reativa e temporária. "Acho maravilhoso que eles estejam fazendo isso", afirma Littlejohn. "Acho que irá colaborar para melhorar um pouco as coisas para as mulheres e as pessoas que ficam grávidas, mas simplesmente não acho que será uma mudança profunda da responsabilidade, como acreditam alguns observadores." "Às vezes, como muitas outras coisas que acontecem em meio às crises da nossa sociedade, você pode ter um pico de interesse logo depois que algo acontecer. Mas ele precisa ser mantido para podermos ver mudanças reais", segundo a professora. Já Pastuszak considera que o recente pico da procura pela vasectomia é mais do que algo temporário. "A decisão sobre Dobbs realmente foi uma espécie de marco histórico", afirma ele. "Suspeito que haverá um aumento nos próximos anos, enquanto essa legislação estiver em vigor." A decisão do caso Dobbs forçou algumas pessoas a examinar as possíveis ramificações da gravidez indesejável das mulheres, especialmente em Estados com maioria de direita. Em um país pós-Roe, alguns legisladores americanos estão pedindo leis que evitem que as mulheres viajem para outros Estados para fazer abortos legais. Isso significa que as mulheres podem ser acusadas de crime ao fazerem um aborto legal, arriscar sua saúde em abortos ilegais ou ser forçadas a prosseguir com a gravidez indesejada. A ameaça dessas consequências fez com que Laue procurasse o procedimento de vasectomia, uma decisão que ele considera, ao menos em parte, uma declaração política. "Depois da reversão de Roe x Wade, tomei essa decisão com muito mais confiança do que nunca", afirma ele. "Acho que está na hora de nós, como homens, começarmos a apoiar as mulheres e assumir a nossa parte no controle de natalidade." Embora esta seja uma mensagem útil e positiva, Littlejohn afirma que mudanças reais na sociedade exigirão uma linha de pensamento diferente. Ela afirma que, "enquanto observarmos isso como algo que os homens estão fazendo para 'dar uma mão para as suas parceiras' como algo nobre, em serviço das suas parceiras que não podem evitar a gravidez", perpetua-se a narrativa de que os homens não são os principais responsáveis pela contracepção. Para que haja uma verdadeira mudança sistêmica, o pensamento deve passar a ser simplesmente que "os homens detêm um papel na prevenção da gravidez", prossegue Littlejohn, "em vez de que agora é o momento para os homens assumirem a responsabilidade, porque existe uma ameaça ao aborto e aos métodos de controle da natalidade para suas parceiras". "Se quisermos ver essa mudança, realmente precisamos nos concentrar na promoção da ideia de que, independentemente do que aconteça com o controle da natalidade para as mulheres, os homens detêm responsabilidade", conclui a professora. Alexander Pastuszak espera que o pico da procura pela vasectomia se traduza em aumento do interesse pelo controle de natalidade entre os homens em geral, o que impulsionará as pesquisas sobre as opções hormonais e não hormonais masculinas. "O que estamos vendo é uma alta demanda, especialmente entre os homens mais jovens, por opções contraceptivas", afirma ele. "Isso não significa opções permanentes." "Significa que mais homens estão interessados em explorar e possivelmente realizar abordagens contraceptivas. É o tipo de coisa que, eu acho, podemos esperar para os próximos cinco a dez anos. E que verdadeiramente oferecerão a liberdade reprodutiva que os homens jovens, em especial, estão procurando", afirma Pastuszak. Keith Laue e Lyon Lenk afirmam que marcar o procedimento foi simples. Ambos receberam informações sobre o fato de que a vasectomia é considerada um procedimento permanente. É possível revertê-la, mas a possibilidade de gravidez bem sucedida é reduzida ao longo do tempo. "As únicas perguntas que [o meu médico] fez foi sobre a minha convicção", segundo Laue. O urologista quis saber se ele tinha filhos. "Ele perguntou 'você quer ter mais filhos?' Quando eu respondi que não, ele terminou de fazer perguntas a este respeito." Para Lenk, submeter-se à vasectomia era como se ele protegesse a si mesmo e à sua parceira, simplesmente assumindo a responsabilidade pelo seu próprio comportamento. Não foi uma decisão leviana e ele tem certeza absoluta de que foi correta. "Levei muito mais tempo, análise e conversa com minha parceira do que talvez eu imaginasse inicialmente, mas tudo valeu muito a pena", segundo ele. "Minha parceira e eu ficamos ainda mais próximos e tenho todo o apoio da minha família e dos meus amigos." Lenk espera que cada vez mais homens comecem a pensar no seu papel no processo reprodutivo. "Parece que, duas décadas atrás, estávamos falando sobre o controle de natalidade pelos homens. Fiquei esperando desde então e isso nunca veio", segundo ele. "Agora, parece que ficamos com essa solução cirúrgica imperfeita, mas é o que eu preciso fazer."
2022-11-05
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63522348
sociedade
Por que falar com desconhecidos pode nos deixar mais felizes
Como muitas pessoas criadas nos Estados Unidos nos anos 1980, cresci sendo orientado a ter medo de estranhos. O "perigo dos estranhos" era repetido por todos naquela época. A preocupação dos pais e a cautela natural da humanidade com relação às pessoas desconhecidas foram ampliadas pela cobertura da imprensa sensacionalista e pela queda vertiginosa da confiança da sociedade, causando total pânico moral. Policiais, professores, pais, líderes religiosos, políticos, celebridades e organizações de promoção do bem-estar infantil deixaram de lado suas diferenças e trabalharam em conjunto para difundir a mensagem de que a interação com estranhos poderia colocar as crianças em risco. É claro que existem pessoas que passaram por experiências traumáticas com estranhos, mas o "perigo dos estranhos" não tem bases estatísticas reais. Tanto naquela época quanto agora, a maior parte dos crimes sexuais e violentos contra crianças (e também contra adultos) é cometida por pessoas conhecidas das vítimas: parentes, vizinhos e amigos da família. Os raptos cometidos por pessoas de fora da família - incluindo os casos em que a criança é levada por alguém desconhecido - representam apenas 1% dos casos de crianças perdidas relatados ao Centro Nacional de Crianças Perdidas e Exploradas dos Estados Unidos. Fim do Matérias recomendadas Mas, como o risco parecia real, ele se tornou real. Estranho virou sinônimo de perigo e as duas palavras se uniram de forma indissociável. Essa forma de pensar pode ter prejudicado nossas interações na vida adulta? Acabamos perdendo algo de importante com isso? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Cientistas sociais acreditam que ensinar às crianças que literalmente todas as pessoas do mundo que elas não conhecem são perigosas pode ter sido bastante prejudicial. A cientista política Dietlind Stolle, da Universidade McGill, no Canadá, argumenta que passar décadas ouvindo essa mensagem pode ter prejudicado a capacidade de confiar nas pessoas de toda uma geração. Isso é problemático, já que a confiança é a chave para o funcionamento de muitas sociedades. "Quantas oportunidades sociais ou econômicas nós perdemos simplesmente por termos medo de estranhos?", pergunta-se Stolle. Não estou defendendo que estranhos abordem crianças ou vice-versa, mas acredito que, como adultos, precisamos repensar os benefícios de falar com estranhos de forma segura. Por vários anos, pesquisei por que não falamos com estranhos e o que acontece quando os abordamos, para escrever meu livro, The Power of Strangers: The Benefits of Connecting in a Suspicious World ("O poder dos estranhos: os benefícios da conexão em um mundo desconfiado", em tradução livre). Esse trabalho me levou a entrar em contato com antropólogos, psicólogos, sociólogos, cientistas políticos, arqueólogos, urbanistas, ativistas, filósofos e teólogos, além de centenas de estranhos aleatórios com quem falei em toda parte. Tudo isso me fez aprender que perdemos muito com o nosso medo dos estranhos. Falar com estranhos - sempre em condições corretas - é bom para nós, para os nossos bairros, cidades, países e para o mundo. Falar com estranhos pode trazer ensinamentos, aprofundar você, tornar você um cidadão melhor, fazer você pensar melhor e melhorar você como pessoa. É uma boa forma de viver, mas é mais do que isso. Em um mundo em rápida mutação, infinitamente complexo e furiosamente polarizado, é uma forma de sobreviver. Há mais de 6 mil anos, os seres humanos vivem em cidades, uma forma de organização social caracterizada pela superabundância de estranhos. Mas só recentemente os psicólogos começaram a estudar o que acontece quando falamos com todos esses estranhos sem rosto à nossa volta todos os dias. Em 2013, os psicólogos Gillian Sandstrom, da Universidade de Sussex, no Reino Unido, e Elizabeth Dunn, da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, publicaram os resultados de um experimento, durante o qual 30 adultos sorriram e conversaram com seu barista em uma cafeteria de Toronto, no Canadá, enquanto outros 30 fizeram suas transações da forma mais eficiente possível. "As pessoas são sensivelmente pessimistas sobre quase qualquer aspecto de falar com estranhos", afirma Sandstrom, mas esse pessimismo não parece ser inevitável. Os participantes do estudo que interagiram ao comprar o seu café contaram que sentiram uma sensação mais forte de pertencimento e melhor humor do que aqueles que não conversaram com o estranho. Os autores concluíram que "na próxima vez em que você precisar melhorar o seu humor, considere a possibilidade de interagir com o barista do Starbucks... para colher essa fonte de felicidade facilmente disponível". Ganhar coragem para iniciar uma conversa com um estranho pode parecer difícil. Não é o normal para muitos de nós. Os cientistas do comportamento Nicholas Epley e Juliana Schroeder, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, pediram às pessoas no trânsito que falassem com estranhos no transporte público, táxis e salas de espera - locais onde as normas sociais de Chicago inibem as pessoas de conversar. A maioria dos participantes previu que essas interações trariam maus resultados, o que é compreensível. Sabendo que estariam violando uma norma social, eles temiam que o estranho se ressentisse pela intromissão e os rejeitasse, tornando suas viagens ainda mais desagradáveis do que o normal. Mas, quando os participantes saíram às ruas e fizeram a interação real com as pessoas, eles concluíram que os estranhos eram surpreendentemente receptivos, curiosos e agradáveis. "Eles pareciam acreditar que falar com um estranho representava um risco significativo de rejeição social", segundo Epley e Schroeder. Mas, "até onde sabemos, não houve risco algum". Pelo contrário. Os participantes que falaram com estranhos contaram que as conversas eram agradáveis, interessantes e duravam mais tempo do que o previsto, tornando suas viagens mais agradáveis. Epley e Schroeder acrescentam que isso indica "profunda incompreensão das interações sociais", concluindo que "os seres humanos podem ser animais sociais, mas nem sempre sociais o suficiente para o seu próprio bem-estar". Receando que esses resultados tenham sido influenciados pela cordialidade do centro-oeste americano (onde fica Chicago), Epley e Schroeder conduziram o mesmo experimento em um local historicamente menos amistoso. As pessoas precisaram conversar com estranhos no transporte público de Londres - algo que muitos londrinos observam com um misto de horror e desprezo (e onde normalmente se evita inclusive o contato visual). Mas Epley e Schroeder obtiveram os mesmos resultados. As conversas saíram surpreendentemente bem. Desde então, o mesmo resultado se repetiu em outros países, com uma variedade de participantes. As conclusões desses estudos foram incrivelmente consistentes: muitas pessoas tinham medo de falar com estranhos, mas, quando falaram, a tendência foi que se sentissem bem: mais felizes, menos solitários, mais otimistas, mais empáticos e com sensação mais forte de pertencimento às suas comunidades. Diversos especialistas, além de membros do público que falam com estranhos, contaram que isso realmente fez com que eles se sentissem mais seguros, atestando rapidamente que as pessoas à sua volta têm boas intenções. Ainda assim, existem muitas razões para que as pessoas se sintam desconfortáveis para conversar com estranhos. Elas relatam preocupações com a possível violação de uma norma social, receiam não saber falar direito, que não teriam nada a dizer ou que ficariam apreensivos sobre falar com alguém de um grupo diferente e sofrer ataques ou dizer algo de errado. Muitos fatores conspiram para nos fazer evitar falar com estranhos. Com os telefones celulares, evitar interações com as pessoas no nosso ambiente imediato ficou mais fácil do que nunca. E podemos ter o receio natural de abordar alguém que, para nós, não parece ser de confiança, mesmo se nunca tivermos encontrado essa pessoa. Preferimos cooperar com pessoas que sejam parecidas com alguém em quem confiamos no passado e não com alguém que se pareça com um antigo conhecido que não era de confiança. Por isso, não surpreende que as pessoas fiquem aliviadas quando esses temores são desmentidos. Eu mesmo senti isso quando tive interações positivas com estranhos. "Acho que esse alívio pode ser exatamente o sentimento de que nos venderam essa mensagem de que o mundo é um lugar assustador", afirma Sandstrom. "E, quando você tem uma conversa com uma pessoa aleatória e tudo corre bem, é como se 'talvez o mundo não seja tão ruim, afinal'." Isso é importante. Em uma época em que tantas pessoas se sentem solitárias, distantes, excluídas, desconectadas e pessimistas, essas descobertas são úteis e encorajadoras. Interagir com estranhos, mesmo que de passagem, pode nos ajudar a construir ou reconstruir redes sociais, reconectar-nos com nossas comunidades e reforçar a confiança nas pessoas à nossa volta. Como relatou um estudante universitário que participou dos experimentos mais recentes de Sandstrom: "eu me senti como se tivesse esquecido como fazer amigos, mas este estudo me lembrou que a maior parte das pessoas é amistosa e você só precisa se colocar para fora". Como homem branco e hétero, percebi logo no começo que minhas interações com estranhos podem ser menos inquietantes que para outras pessoas. Por isso, enquanto pesquisava para o meu livro, cuidei de conversar com uma ampla diversidade de pessoas que tinham como prática falar com estranhos. E, mesmo com seus variados antecedentes e experiências, a maioria relata os mesmos efeitos positivos que encontramos na literatura de pesquisa. Mas eu não pensaria em sugerir que essas interações são iguais para todos, nem descartaria, de nenhuma forma, as preocupações de pessoas que tiveram experiências traumáticas com estranhos. E ainda sugiro enfaticamente que outros homens na minha posição tenham isso em mente ao conversar com desconhecidos. Sandstrom oferece conselhos para falar com alguém que você não conhece. Faça uma pergunta aberta para que eles falem primeiro e depois responda com algo que vocês têm em comum. Aliás, não é sem motivo que é tão comum começar falando sobre o tempo. Mas, se você puder, vale a pena tentar. Falar com estranhos pode afetar você de formas mais profundas que você pode esperar e trazer muitos benefícios para a saúde. Falar com estranhos também pode nos deixar mais inteligentes, mundanos e empáticos, segundo a professora Danielle Allen, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e bolsista da Fundação MacArthur. Quando lecionava na Universidade de Chicago, Allen foi repetidamente aconselhada pelos colegas a permanecer longe da parte pobre da cidade. Ela acredita que esse "medo dos estranhos realmente estava destruindo muitas das capacidades sociais e intelectuais [dos seus colegas]." Ela se recusou a se afastar e desenvolveu alguns dos seus trabalhos mais admirados naqueles bairros. Desde então, ela dedicou sua carreira a fomentar conexões entre pessoas e grupos que, de outra forma, não interagiriam entre si. "O conhecimento real do que está além do jardim da sua casa cura o medo", escreve Allen, "mas somente falando com estranhos podemos adquirir esse conhecimento." Ao falar com estranhos, você tem uma ideia da extraordinária complexidade da espécie humana e da infinita variedade das suas experiências. É um clichê, mas você começa a ver o mundo do ponto de vista de outra pessoa. Sem isso, é impossível ganhar conhecimento. Mas a tarefa não é fácil. Você precisará revisitar constantemente suas crenças sobre o mundo e seu lugar nele. Isso pode ser difícil e desorientador, mas também é estimulante e até divertido. É assim que crescemos como indivíduos e permanecemos juntos, enquanto sociedade. É como passamos a nos conhecer e somente nos conhecendo podemos, algum dia, esperar viver juntos. É irônico que, depois de ter sido criado para ter medo dos estranhos, agora os vejo como uma fonte de esperança. Quando essas interações têm bons resultados - o que geralmente acontece -, a percepção positiva do estranho pode criar melhores sentimentos sobre as pessoas, de forma geral. Para mim e para muitos dos respeitados especialistas e dos completos estranhos com quem conversei, tudo é questão de dados. Se eu baseasse minhas percepções de humanidade no que tenho disponível no meu telefone ou computador, teria uma visão incrivelmente negativa da maioria das outras pessoas. Eu ficaria paralisado com o "perigo dos estranhos" e teria todas as justificativas para evitar essas pessoas malcriadas, paranoicas, histéricas, criminosas, charlatãs, criadoras de caso e demagogas. Mas eu saí para o mundo exterior e falei com as pessoas. Minha percepção de mundo, em grande parte, é baseada nelas. E, por ter falado com estranhos, minha visão é um pouco mais otimista. "Eu gosto da humanidade, de forma geral, porque falo com estranhos", afirma Allen. Como mulher negra nos Estados Unidos, suas interações podem ser muito mais complicadas que as minhas. Mas, ainda assim, quando o assunto é falar com estranhos, ela conta que "os pontos positivos superam em muito os negativos". Em 2018, o Centro de Crianças Perdidas e Exploradas da Virgínia, nos Estados Unidos (historicamente, um dos principais expoentes da mensagem do "perigo dos estranhos") finalmente aposentou essa expressão. Na época, Cal Walsh, executivo do centro, explicou: "estamos tentando empoderar as crianças para que elas tomem decisões seguras e inteligentes, sem assustá-las por toda a vida". Sua decisão foi seguida por outras entidades de apoio às crianças em todo o mundo. É um bom começo.
2022-11-05
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-63492822
sociedade
Os eleitores de Trump que ainda ameaçam iniciar guerra civil nos EUA
As eleições de meio de mandato para o Congresso dos EUA, em 8 novembro, a primeira votação nacional desde que os apoiadores de Trump invadiram o Capitólio há quase dois anos, estão deixando muitos americanos com os nervos à flor da pele. Karen e Steve não querem pegar em armas. Mas se os republicanos perderem, esse casal de idosos do Arizona diz que uma guerra civil se avizinha e, sim, eles vão lutar. Já discutiram isso entre eles e acreditam que pegar em armas é a melhor opção. Foi nesse momento que nossa conversa ficou um pouco sombria, e minha fé na força da democracia americana ficou um pouco abalada. Conheci os Slatons em sua loja de parafernálias dedicadas a Trump em Show Low, no Arizona. Fim do Matérias recomendadas Foi uma das primeiras paradas que fiz em uma viagem de carro de um mês pelos EUA no verão — uma jornada para entender por que as próximas eleições parecem tão importantes, talvez até um pouco sinistras. O casal foi encantador como anfitrião. Ambos se mostraram engraçados e generosos. Me levaram para fazer um tour por seu extenso estoque de mercadorias extravagantes de Trump e explicaram que, sim, realmente há quem pague US$ 100 por um boneco de papelão em tamanho real do ex-presidente vestido de Rambo para colocar no meio da sala. Muita gente, na verdade. Trump como Rambo é um dos artigos mais vendidos da loja. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Conversamos sobre história, economia e até aborto. Mas o único momento em que as coisas ficaram tensas foi quando questionei a crença deles de que a eleição de 2020 havia sido roubada. Não seria possível, perguntei, que milhões de americanos simplesmente não gostassem do presidente Trump e por isso Joe Biden havia ganhado a eleição? Foi Karen quem respondeu, de forma áspera: "Se você é uma liberal louca, simplesmente não estamos interessados. As notícias centrais, digamos assim, não vou chamá-las de notícias falsas, mas é uma notícia falsa dizer que os EUA não gostam de Trump. Os EUA amam Trump". A BBC não é "notícia falsa", mas eu deixei passar. A ideia de guerra, no entanto, exigia esclarecimento. "Vai começar em pequena escala, será algo como cidade contra cidade, Estado contra Estado", disse Steve, que tinha claramente pensado a respeito. As pessoas estão lançando essa ideia de uma segunda guerra civil americana há alguns anos, desde as eleições de 2020, desde a violenta invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Acho difícil de acreditar — talvez me falte imaginação — mas a ideia de os americanos entrarem em guerra por causa de uma eleição perdida ainda parece implausível. Mas essa é a opinião de Steve sobre o que aconteceu da última vez: "Quando Lincoln venceu, provocou o Sul". Essa não é a única visão que existe sobre as origens da Guerra Civil Americana, mas não era o momento para um debate histórico; é o presente que precisa de atenção. Quando me despedi dos Slatons, Steve me deu um aviso. Ele tinha um típico sorriso americano amistoso no rosto, mas não deixou de ser assustador. "Isso pode ficar realmente desagradável", ele disse. Quão desagradável era o que eu estava tentando descobrir. Os americanos votam pelo controle do Congresso a cada dois anos. As eleições que caem nos anos em que eles não votam para presidente são chamadas de eleições de meio de mandato. Como o comando da Casa Branca não está em disputa, as eleições legislativas de meio de mandato geralmente não recebem muita atenção — e a participação gira em torno de 40%, inferior aos 50-60% que votam nas eleições presidenciais. Mas neste ano parece diferente. Esta é a primeira eleição nacional desde a invasão do Capitólio — e vai testar se os Estados Unidos são capazes de realizar uma eleição sem violência. Para ficar claro, o discurso de guerra de americanos como os Slatons não é uma retórica pré-eleitoral normal. Em duas décadas e meia nos EUA, eu cobri 10 ciclos eleitorais no país, e nunca ouvi os eleitores falarem sobre política dessa maneira violenta. As visões de Karen e Steve tampouco são marginais. A crença de que a eleição de 2020 foi roubada se infiltrou como um vírus que agora infecta todo o processo democrático. As pesquisas feitas desde a eleição sugerem que cerca de 70% dos republicanos acreditam que Joe Biden não é o presidente legítimo. Isso representa cerca de um terço do eleitorado americano, ou mais de 50 milhões de pessoas. Neste verão, em um giro pelos Estados do Arizona, Wyoming, Geórgia e Pensilvânia, conversei com dezenas de eleitores que estão convencidos de que Joe Biden não é o presidente legítimo dos Estados Unidos. Se você achasse que uma eleição foi roubada de você, também ficaria com raiva. O problema é que não há qualquer prova que sustente as acusações de que a eleição foi roubada. Os advogados de Trump apresentaram mais de 60 processos judiciais alegando fraude eleitoral. Todos, exceto um, foram encerrados por falta de provas. Alguns dos processos foram até analisados por juízes nomeados por Trump, e eles também rejeitaram os casos. As principais autoridades eleitorais republicanas em Estados decisivos, como Arizona e Geórgia, também disseram que o processo eleitoral foi justo e preciso. Não há evidências de fraude que anulariam a vitória de Joe Biden. Isso não impediu, no entanto, que o vírus da conspiração de fraude se espalhasse. Trump pode ter começado, mas agora ela se espalhou pelo país e ganhou vida própria. É diferente de questões políticas como porte de armas ou impostos. As pessoas também têm convicções fortes sobre esses temas — Steve e Karen Slaton certamente tinham. Mas as divergências em relação a essas questões são baseadas em fatos que ambos os lados podem debater. A "eleição roubada" não é um tema discutível. Não há fatos nesse lado do argumento. Nesse sentido, é mais como um sistema de crenças inabalável. E, pelas minhas entrevistas, não tenho certeza se os fiéis mudariam de opinião, mesmo que o próprio Trump dissesse de repente que Biden venceu de forma justa e honesta. O impacto dessa conspiração sobre o sistema eleitoral dos EUA ficou claro para mim na Geórgia, nos escritórios eleitorais do condado de Paulding, onde os funcionários se preparam para as eleições de meio de mandato com uma certa apreensão. Deirdre Holden é uma funcionária pública que atua como supervisora ​​de eleições e registro de eleitores. É responsável pela mecânica da eleição, assegurando que os centros de votação funcionem sem problemas, que as cédulas sejam coletadas com segurança e contadas com precisão. Holden não chora com facilidade, mas quando relê a carta com a ameaça que recebeu após a eleição de 2020, ela engasga, por apenas um segundo. "Esta eleição está manipulada", diz o texto. (Deirdre é excepcionalmente educada, ela tem aquela maravilhosa gentileza sulista, e me poupou dos palavrões contidos no texto.) "Detonações vão ocorrer em todos os locais de votação neste condado. Ninguém nesses locais será poupado. Se você acha que estamos blefando, experimente. Você foi avisada. Vamos acabar com todos vocês", Deirdre larga a carta e enxuga os olhos. Se eu recebesse essa mensagem, ficaria com medo de ir trabalhar, mas o que estou vendo não é medo, é raiva. "Eu nunca fiquei com medo. Estava com raiva. Com raiva porque alguém tenta nos ameaçar, ameaçar as pessoas que só querem votar. Aquilo não me caiu bem", diz Deirdre. Quando seu escritório no condado de Paulding (que, por sinal, votou em Trump, embora isso realmente não deva importar) recebeu essa ameaça após a eleição de 2020, a repassou para o FBI, a polícia federal americana. Os agentes aconselharam Deirdre a começar a estacionar o carro em frente à janela do escritório; isso ajudaria a limitar o impacto da força de uma explosão, eles explicaram. Ela não foi a única funcionária eleitoral a ser ameaçada depois dessa votação. O comitê especial que investiga o motim no Capitólio entrevistou várias testemunhas que foram ameaçadas, junto com suas famílias. Depois que Al Schmidt, comissário republicano eleito da cidade da Filadélfia, defendeu a integridade da eleição e confirmou a vitória de Biden, ele recebeu uma mensagem de texto que dizia: "Você mentiu. [É] um traidor. Talvez 75 cortes e 20 balas cheguem em breve". O Brennan Center for Public Justice analisou o rescaldo das eleições de 2020 e concluiu que as ameaças contra funcionários eleitorais (eleitos para o cargo ou não) atingiram níveis sem precedentes. Suas descobertas mostraram que um em cada três funcionários eleitorais disse não se sentir seguro ao fazer seu trabalho. Não é de surpreender que um grande número tenha pedido demissão após 2020. A questão é por que tanta desconfiança e raiva agora? Os americanos estão polarizados há décadas — e esta não é a primeira teoria da conspiração a se firmar aqui. Mas nunca tínhamos testemunhado uma invasão do Capitólio antes, nem tantas ameaças a funcionários eleitorais, nem tanta atenção dada à tentativa de mudar as regras eleitorais. A resposta, conforme a maioria dos analistas políticos sugere, é uma confluência de eventos que permitiram que a conspiração negacionista da eleição se espalhasse, enfraquecendo assim todo o sistema. Primeiro, Trump começou a dizer que iriam manipular a votação contra ele, muito antes da eleição acontecer. Ele minou a confiança no pleito antes de um único voto sequer ser depositado nas urnas. Depois, as regras eleitorais mudaram em 2020 para se adaptar às restrições impostas pela pandemia de covid-19. Aqueles que contestam o resultado das eleições dizem que essas mudanças, que incluíram mais votação antecipada e mais votos pelo correio, deixaram o sistema aberto a fraudes generalizadas (embora não haja evidências disso). O centro Brennan também aponta para o impacto das redes sociais. "Em 2020, os atores políticos intensificaram as mentiras sobre os processos eleitorais, muitas vezes nas redes sociais", diz o relatório da instituição. "Esta desinformação mudou indelevelmente as vidas e carreiras dos funcionários eleitorais." Quase 80%, segundo o relatório, dizem que o aumento da desinformação dificultou seu trabalho. Mais da metade acredita que isso o deixou mais perigoso. "As pessoas simplesmente perderam a confiança. E é isso que parte meu coração", diz a funcionária eleitoral Deirdre Holden. E, assim como os Slatons, ela se despede de mim com um aviso — as eleições de meio de mandato de novembro serão piores. Deirdre é apartidária. Passei algumas horas com ela e posso dizer honestamente que não tenho ideia de como ela vota. É exatamente como deveria ser. A realização de eleições democráticas deve estar nas mãos de funcionários que não tenham viés. As pessoas que organizam a votação, contam os votos e certificam os resultados não devem introduzir sua própria visão política no processo. Quando fazem isso, se perde a confiança. E, nesse sentido, a controvérsia em relação à eleição de 2020 mostrou que o sistema americano é excepcionalmente vulnerável. Os EUA são a única democracia ocidental em que os altos funcionários eleitorais não são servidores públicos. A nível estadual, é o cargo de secretário de Estado que administra a eleição. E essa pessoa é eleita, como democrata ou republicana. Em novembro deste ano, há cerca de 200 candidatos republicanos que dizem acreditar que a eleição de 2020 foi roubada. Em pelo menos sete estados, há candidatos que negam o resultado das urnas e que podem assumir cargos com impacto direto nos sistemas de votação. Em uma eleição apertada em 2024, essas pessoas podem ser fundamentais para decidir quem ganha a corrida pela Casa Branca. Um desses cargos críticos é o de secretário de Estado de um estado. No passado, era um posto que recebia muito pouca atenção nas campanhas eleitorais, certamente não era um cargo que chamaria a atenção da imprensa nacional e até mesmo internacional. Então, o fato de que neste verão eu sobrevoei o deserto em um avião particular para entrevistar o candidato a secretário de Estado do Arizona, é uma indicação reveladora de como esta eleição de meio de mandato é diferente. Em um mundo em que os resultados das eleições são contestados, o secretário de Estado de repente se torna muito importante. Ele tem a capacidade de mudar a forma como as pessoas podem votar e até mesmo mudar as regras em torno da contagem de votos. Trump entende claramente a importância deste cargo. Em 2 de janeiro de 2021, ele ligou para o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, e instou o republicano a "encontrar" para ele 11.780 votos adicionais para poder vencer no estado. Raffensperger negou o pedido de Trump. Agora, o ex-presidente quer ter aliados no cargo de secretário de Estado, de modo que, se concorrer em 2024, possa contar com eles para ajudá-lo. Às vésperas das eleições de meio de mandato, o dinheiro e a atenção, de ambos os partidos, estão sendo investidos nas campanhas para secretário de Estado em pelo menos seis estados decisivos. É por isso que passei o dia, e uma viagem de avião terrivelmente turbulenta, com Mark Finchem. E também é o motivo pelo qual ele tinha um jatinho particular à sua disposição antes de tudo. Joe Biden venceu no Arizona por apenas 10 mil votos. Finchem é um negacionista convicto do resultado da eleição, que acredita que Trump foi roubado no estado, e gostaria de anular o resultado da votação de 2020. Se for eleito em novembro, ele planeja proibir o voto pelo correio (opção preferida de 80% do eleitorado do Arizona), proibir a votação antecipada e acabar com as urnas eletrônicas. Tudo isso até 2024, quando acontece a próxima eleição presidencial. Ele diz que só quer eliminar qualquer possibilidade de fraude. Seus críticos dizem que Finchem é uma ameaça à democracia, que ele quer controlar o processo de votação de forma que poderia pender a favor dos republicanos. Um deputado estadual republicano até retirou seu apoio a Finchem e está apoiando seu adversário democrata na disputa. Finchem tem um misto de charme e veemência que desarma. Ele me disse que não acredita que os democratas possam vencer no Arizona, nem em 2020, nem em 2022 e nem em 2024. Ele está concorrendo contra o democrata Adrian Fontes e parece bem posicionado para vencer a corrida. Em setembro, uma pesquisa realizada pelo OH Predictive Insights mostrou Finchem na frente de Fontes, com 40% das intenções de voto, contra 35% do adversário. Assim, um homem que diz que a última eleição foi armada e que também não acredita que os republicanos possam perder no estado, pode acabar no comando das eleições. Não é difícil ver para onde isso pode se encaminhar. Se Finchem e outros candidatos como ele em todo o país mudarem o sistema de votação de maneira que seja quase impossível perder, então, em 2024, os democratas, com alguma razão, também não vão confiar nos resultados. Eles vão dizer que roubaram a vitória deles. E não serão necessários muitos ciclos eleitorais até que ninguém confie nos resultados das votações nos EUA. Enquanto viajava milhares de quilômetros pelo país, ficou claro que ambos os lados acreditam que a democracia dos Estados Unidos está em perigo, por razões muito diferentes. Cada lado culpa o outro. Não há uma solução óbvia para essa espiral de desconfiança. Em todo o país, ouvi relatos de raiva, ansiedade e até mesmo falas de violência. Estamos acompanhando essas eleições de meio de mandato com muita atenção, em parte por causa da invasão de 6 de janeiro do Capitólio e, em parte, porque vão ajudar a preparar o terreno para saber se Trump vai se candidatar novamente. Falta pouco para 2024. E é provável que tenhamos dois anos tumultuados pela frente.
2022-11-03
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-63496713
sociedade
Dia de Finados: como celebração dos mortos, que nasceu entre pagãos, foi incorporada pela Igreja
"Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que nele habitam./ Porque ele a fundou sobre os mares, e a firmou sobre os rios./ Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem estará no seu lugar santo?/ Aquele que é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à vaidade, nem jura enganosamente./ Este receberá a bênção do Senhor e a justiça do Deus da sua salvação." "Na Igreja Católica, a liturgia de Finados foi iniciada por Santo Odon de Cluny e oficializada no ano de 998", conta o teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Júnior, professor de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Odon de Cluny (878-942) foi um abade francês, responsável por diversas reformas no sistema religioso da época. Na data, é comum que o papa faça uma cerimônia dedicada aos mortos na cripta do Vaticano. Fim do Matérias recomendadas "É um dia de celebrar as vidas de todos os fiéis falecidos. No Brasil e em Portugal, o dia é reservado para visitar os túmulos", comenta Altemeyer. "Para os católicos, é dia de penitência e recolhimento. Na casa de minha avó e de minha mãe, não se podia ligar rádio nem televisão. Era tempo de silêncio interior e exterior, dia de recitar o Salmo 24." Conforme contextualiza o teólogo, apesar da formalização e da oficialização ter ocorrido apenas no século 10, já havia uma data em memória aos mortos desde os tempos pré-cristãos, inclusive em culturas do chamado paganismo antigo. "A Igreja toma a data e 'batiza' com significado próprio", diz Altemeyer. "Mas celebrar os mortos é algo antropológico. Desde o Cro-Magnon (ou seja, das primeiras populações de Homo sapiens) temos ritos funerários e de expectativa do além túmulo." E não é à toa que, na liturgia católica, o Dia de Finados sucede o Dia de Todos os Santos, celebrado em 1º de novembro. O "Martirológio Romano", o calendário oficial da Igreja, explica ambas as datas. Sobre o Dia de Todos os Santos, ele diz: "Solenidade de todos os Santos que estão com Cristo na Glória. Na mesma celebração festiva, a santa Igreja ainda peregrina sobre a terra venera a memória daqueles cuja companhia alegra os Céus, para que se estimule com o seu exemplo, se conforte com a sua proteção e com eles receba a coroa do triunfo na visão eterna da divina majestade". E sobre o Dia de Fiados: "A Igreja, mãe piedosa, quer interceder diante de Deus pelas almas de todos os que nos precederam marcados com o sinal da fé e agora dormem na esperança da ressurreição, bem como por todos os defuntos desde o principio do mundo cuja fé só Deus conhece". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Muito antes de a Igreja Católica institucionalizar o Dia de Finados, um livro lançou as bases para como os cristãos acabam tratando os mortos. Trata-se de De Cura pro Mortuis Gerenda, texto do ano 421, atribuído ao teólogo Agostinho de Hipona (354-430), o Santo Agostinho. "A obra trata do culto devido aos mortos. É uma preciosidade, com verdadeiras pérolas do maior teólogo da Igreja", comenta Altemeyer. Conforme escreveu o estudioso da fé católica Carlos Martins Nabeto, especialista em Direito Canônico, na obra "Santo Agostinho aborda uma série de fatos importantes e interessantes a respeito dos mortos, que até hoje são conservados e respeitados pela Igreja". "Entre outras coisas, fala da utilidade da oração pelos mortos (antiquíssimo testemunho do Purgatório, ainda que tal palavra não apareça), a possibilidade da aparição dos mortos aos vivos (por meio do ministério dos anjos ou por permissão direta de Deus), a oração dos santos falecidos a nosso favor, o dia que a Igreja dedica a todos os falecidos (Dia de Finados)", exemplifica o estudioso. Uma celebração de Finados, de certa forma, está implícita no seguinte trecho do livro - o que sugere que, mesmo longe de ter sido formalizada e oficializada pelo rito católico, já se faziam as orações aos mortos em geral, em data específica. "A Igreja tomou para si o encargo de orar por todos aqueles que morreram dentro da comunhão cristã e católica. Ainda que não conheça todos os nomes, ela os inclui numa comemoração geral", diz a obra. Santo Agostinho também aborda questões referentes aos ritos fúnebres, ressaltando que "não deixa de ser marca dos bons sentimentos do coração humano escolher para seus entes queridos que serão sepultados um lugar próximo aos túmulos dos santos". "Já que o sepultamento é, por si só, uma obra religiosa, a escolha do local não poderia ser estranha ao ato religioso. É consolo para os vivos, uma forma de testemunhar sua ternura para com os familiares desaparecidos. Não enxergo, porém, como os mortos podem encontrar aí alguma ajuda, a não ser quando o lugar onde descansam é visitado e são encomendados, pela oração [dos visitantes], à proteção dos santos junto ao Senhor. Contudo, isso pode ser feito ainda quando não é possível sepultá-los em tais lugares santos", afirma. Sobre túmulos construídos como verdadeiros monumentos, o teólogo também faz considerações. "Isso é feito para que as pessoas continuem a se lembrar deles, para que não aconteça de, tendo sido retirados da presença dos vivos, também sejam retirados do coração pelo esquecimento", escreve. "Aliás, o termo 'memorial' indica claramente esse sentido de recordação, da mesma forma como 'monumento' significa 'o que traz à mente', ou seja, o que a faz recordar. Eis o motivo pelo qual os gregos chamam de mnemeion ao que chamamos de 'memória' ou 'monumento'. Na língua deles, 'mnème' significa 'memória', a faculdade com a qual recordamos." Agostinho trata da importância das orações aos mortos. "Assim, quando o pensamento de alguém se concentra sobre o lugar onde o corpo de um ente querido jaz e esse local esteja consagrado pelo nome de um mártir venerável, então a afeição amorosa recorda-se e reza, recomendando o falecido querido a esse mártir", pontua. "A morte é natural, é universal, e não pode ser tratada como um tabu", diz a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, estudiosa do luto e professora da PUC-SP. "As culturas e as sociedades vivem o luto de acordo com uma herança que vem há séculos e vai dando sentido a uma experiência importante como a morte, carregada de significados próprios que passam pela espiritualidade e pela religião." De acordo com a pesquisadora, para compreender essa questão cultural é preciso ter em mente que o homem não têm conhecimento definitivo do que acontece depois da morte. E, mesmo do ponto de vista biológico, entender a morte do corpo é uma consciência relativamente recente. "Na falta de explicações, o homem foi construindo significados. E esses significados, ao longo da história, foram pautando comportamentos", explica ela. Seja na maneira de realizar os procedimentos referentes ao velório, seja no Dia de Finados, variações desse comportamento são notados em diversas culturas. Sobretudo em cidades menores, no Brasil ainda é costume que um carro com alto-falantes percorra as ruas da cidade divulgando a "nota de falecimento" e convidando a todos para participarem do velório e do enterro. No interior da Itália, por exemplo, é comum que, quando um parente morre, familiares afixem no portão da casa um aviso fúnebre, muitas vezes decorado com fitas e ilustrado com uma fotografia do falecido, além de um texto semelhante aos anúncios de obituário de jornal. Já a celebração de Finados mais famosa, sem dúvida, é a que ocorre no México. "É uma cerimônia bastante conhecida. Eles promovem um momento de encontro entre os vivos, que vão celebrar, visitar e honrar seus mortos nos cemitérios", explica Franco. "Há varias comidas que são próprias dessa época, comportamentos que são esperados... É muito bonita como cerimônia." Alegria também está presente no rito fúnebre de Bali. Lá, o mais comum é que os mortos sejam cremados. E a cerimônia é acompanhada por uma grande festa em honra ao falecido. Conhecida por ser a capital do jazz, Nova Orleans, nos Estados Unidos, tem também um ritual fúnebre embalada pelo gênero musical. Trata-se de uma procissão fúnebre que mescla tradições africanas, francesas e afro-americanas. Conduzidos por uma banda, os enlutados alternam entre alegria e tristeza. É uma celebração catártica, que procura evocar bons momentos vividos pelo morto. Comunidades budistas da Mongólia e do Tibete acreditam ser necessário devolver o corpo à natureza, para que a alma siga em frente. Assim, têm o costume de cortar o defunto em pedaços e, então, depositá-lo no alto de uma montanha, para que abutres façam o trabalho. Nas Filipinas, diferentes grupos étnicos lidam de forma diferente com a morte e com as práticas funerárias. Os integrantes da cultura Itneg têm o hábito de vestir os defuntos com as melhores roupas, sentarem-no em uma cadeira e colocar um cigarro aceso em sua boca. Benguet, por sua vez, vendam os mortos e os velam ao lado da entrada principal da casa. Já os Caviteño sepultam os mortos fazendo de um tronco oco de árvore o caixão. Os Apayo enterram os mortos sob o chão da cozinha. Em Madagascar, por sua vez, persiste o costume de um ritual chamado farmadihana. Trata-se de uma celebração, que ocorre geralmente a cada sete anos, em que familiares exumam os restos mortais de seus entes queridos, pulverizando os ossos com vinho ou perfume. Uma banda acompanha a cerimônia, que ocorre de forma feliz. Em Gana, é costume que o morto seja enterrado em caixões que representem o que ele fazia em vida, do trabalho aos hobbies. Executivos, por exemplo, podem ser sepultados em sarcófagos em forma de carros de luxo; um fotógrafo pode ser enterrado em uma câmera fotográfica gigante; um pecuarista, em um caixão que represente uma vaca.
2022-11-02
https://www.bbc.com/portuguese/geral-46026338
sociedade
Jovem com nanismo faz sucesso nas redes sociais mostrando sua rotina de mãe
Com 1,25 m de altura, a influenciadora digital Rafaela da Conceição Lyma, de 21 anos, nasceu com hipocondroplasia, um dos tipos de nanismo — condição que tem como característica a deficiência no crescimento. A baixa estatura sempre foi encarada com normalidade por Rafaela, já que ela não é a única que apresenta o transtorno na família. De origem genética, o avô e a mãe da influenciadora digital também possuem nanismo. "Minha mãe soube que eu tinha nanismo no meu nascimento. De origem humilde e tendo que trabalhar muito, ela não tinha o hábito de fazer ultrassom. Com o passar do tempo, se eles percebiam que a gente não estava crescendo, era caracterizado o nanismo", conta a jovem que nasceu em Picos, no Piauí. Na infância, Rafaela recorda que não teve problemas devido à baixa estatura. Ela brincava, corria e se divertia como crianças da sua idade. Porém, com a chegada da adolescência os desafios se tornaram gigantes em um universo todo feito para pessoas com alguns centímetros a mais. Diariamente, ela tinha que lidar com desafios como falta de acessibilidade em todas as situações, das mais simples às mais complexas. Na escola, o banheiro, as carteiras e o bebedouro de água eram feitos pensados em adolescentes de estatura mediana, por exemplo. Com os obstáculos físicos, veio também o preconceito. Fim do Matérias recomendadas "Foi uma fase bastante difícil, os colegas da escola zombavam de mim e aquela situação era rotina na minha vida. Sempre ouvi piadas como: 'Quando você crescer eu namoro você' ou 'quando você crescer eu vou casar com você', como se fosse impossível eu ter um relacionamento", recorda. O preconceito gerou em Rafaela medo de sair de casa e de estar entre as pessoas. Na fase do ensino médio, ela recusou uma vaga para estudar em uma escola federal devido ao receio de virar alvo de piada entre os novos colegas de sala. "Frequentei um mês de aula e abandonei a escola. Na minha cabeça todos estavam me olhando e fazendo chacotas de mim, fato que nunca aconteceu, mas eu fantasiava aquela situação", diz. Ao concluir o ensino médio, Rafaela tentou entrar no mercado de trabalho, porém, segundo ela, as portas sempre se mantiveram fechadas, situação que ela atribui ao seu transtorno de crescimento. "Entreguei dezenas de currículo e nunca fui chamada. Ninguém fala que é por causa do nanismo, mas eu sinto que é. As empresas e as pessoas não estão preparadas para nos receber e aceitar de forma igual", diz. Sem conseguir um emprego formal, Rafaela encontrou nas redes sociais a alternativa para trabalhar, e mais do que isso, quebrar barreiras de preconceito. Desde 2019 ela trabalha como influenciadora digital produzindo conteúdo sobre capacitismo (preconceito contra pessoas com alguma deficiência), o dia a dia de pessoas com deficiência e outros assuntos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há sete meses, Rafaela encara um novo desafio: cuidar do seu primeiro filho, Lohan. Tornar-se mãe também deu novo rumo à sua carreira de influenciadora digital, que tem agora a "maternidade real" como o principal tema para a produção de seus conteúdos. "Eu sempre sonhei em ser mãe e sabia que teria uma dificuldade a mais devido à minha estatura, mas nunca deixei que isso atrapalhasse ou mudasse meus planos. Tive meu primeiro filho e me apaixonei tanto pela maternidade que tenho planos de ter o segundo daqui a alguns anos", conta. Lohan nasceu de parto cesariano e não nasceu com o nanismo como condição, assim como o pai. Apesar de o menino ter apenas sete meses, Rafaela relata que já tem dificuldades para carregar o bebê — que atualmente está com 70 centímetros e pesa quase 10 quilos. "Ele já tem mais da metade do meu tamanho e é bastante pesado para mim. Me sinto muito fadigada e com dores nas costas devido aos cuidados, mas faço questão de fazer de tudo como dar banho, trocar, dar comida e ficar com ele no colo", conta. Para os cuidados com o bebê, a influenciadora digital conta que algumas adaptações foram feitas, como a banheira, que é colocada no chão, e as trocas são feitas na cama. Além disso, os objetos e roupas são sempre colocados em locais mais baixos. Toda a rotina de mãe e filho é dividida com cerca de 63 mil pessoas que acompanham Rafaela nas redes sociais. "Mostrar a minha rotina é uma forma de quebrar preconceitos e mostrar que quem tem nanismo é tão capaz quanto qualquer pessoa. A minha altura não define o que eu sou e nem é isso que vai definir se sou uma boa mãe", diz. O nanismo é caracterizado pela alteração no ritmo do crescimento dos ossos de uma pessoa, que resulta em baixa estatura (alcança no máximo 1,40 m). Atualmente há mais de 400 variações já registradas no mundo, sendo a mais comum a acondroplasia, com origem genética, que acomete cerca de 250 mil pessoas ao redor do planeta. Nesse caso, se o pai ou a mãe tem o problema, há 50% de chance de o bebê apresentar essa displasia nos ossos. Já quando o casal possui a alteração, a probabilidade é de 75% de o bebê nascer com a condição. "Nesses casos indicamos o aconselhamento genético para uma análise mais profunda de cada caso. A FIV (fertilização in Vitro) é uma das alternativas de a criança nascer saudável", explica Temis Maria Félix, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica. Ainda segundo Félix, no nanismo, a deficiência no crescimento dos ossos pode vir acompanhada de diversos problemas de saúde. "Pessoas com nanismo tendem a ter problemas respiratórios, endócrinos, motores e ortopédicos. Além disso, as pessoas que possuem a condição têm tendência a ganhar peso, resultando na obesidade. Devido às comorbidades, a expectativa de vida de quem possui a condição é de 10 anos menos do que a média do brasileiro", explica Temis Maria Félix, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica e Genômica. No Brasil, desde 2004, o nanismo se enquadra no rol das deficiências físicas devido ao comprometimento da função física e de seus impactos na vida de quem possui a condição. No dia 25 de outubro é celebrado o Dia Nacional de Combate ao Preconceito Contra as Pessoas com Nanismo. A data é comemorada em diversos países e homenageia o ator e ativista norte-americano Billy Barty, que possuía a condição. Na década de 1950, ele criou uma associação que lutava pelos direitos das pessoas com nanismo. Durante décadas, houve associação a figuras cômicas e um tratamento de forma infantilizada. Para Juliana Yamin, presidente do Instituto Nacional de Nanismo (INN), que atende cerca de 3.000 pessoas no Brasil, a data é mais uma ferramenta na tentativa de conscientizar a população sobre a importância dessa parcela da sociedade — que estuda, trabalha, têm filhos e vive como os demais. "As pessoas com nanismo sofrem muito preconceito, sendo usadas em memes e situações vexatórias. Elas muitas vezes são fotografadas e filmadas para virarem piada na internet e precisamos parar com isso, conscientizar as pessoas. Deficiência não é piada. A data é um marco porque mostra que eles são como qualquer pessoa, basta que a sociedade não os limites", diz.
2022-11-01
https://www.bbc.com/portuguese/geral-63420340
sociedade
O que é o pão do morto e como surgiu essa tradição no México
Quando o dia 2 de novembro se aproxima, um aroma muito característico começa a ser percebido nas padarias de várias regiões do México. Na data que marca o Dia dos Mortos, celebração familiar dedicada aos entes queridos que se foram, uma parte central da tradição mexicana é montar uma oferenda com comida, incluindo o pão do morto: um pão doce cuja forma varia em cada região, mas o mais difundido é em formatos que lembram ossos. "O pão do morto é um dos produtos mais tradicionais nas padarias mexicanas (...) é parte da nossa cultura. Ninguém celebra a morte como nós (mexicanos) no mundo e crescemos com isso", explica o chef Carlos Ramírez no portal de divulgação cultural da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM). "É um pão redondo que tem 'ossinhos' na parte superior, que são uma preparação mais dura da mesma massa. Se adiciona um pouco mais de farinha e se molda com os dedos em forma de 'ossinho'. E a bolinha no topo representa um 'crânio'", diz ele. Embora seja um pão característico dos altares e oferendas que são preparados para a celebração do Dia dos Mortos, desde semanas antes (às vezes até meses) pode ser encontrado nas padarias como uma espécie de anúncio da festividade. Fim do Matérias recomendadas Ao falarmos da sua origem, devemos viajar no tempo, cerca de cinco séculos atrás. A referência mais antiga conhecida vem das crônicas dos conquistadores espanhóis. Os povos pré-hispânicos preparavam o pão de várias maneiras, mas para a celebração dedicada aos mortos havia um feito à base de pão com farinha de amaranto torrado e milho seco chamado papalotlaxcalli, uma palavra náuatle (asteca) que significa "pão de borboleta". Assim como o pão do morto hoje, o alimento feito no passado também costumava ter a forma de ossos, segundo as crônicas dos frades Diego de Durán e Bernardino de Sahagún. Eles faziam "um grande ídolo à imagem de Deus, o adornavam e o vestiam" e faziam grandes ossos que depositavam aos pés do ídolo. Eles o distribuíam assim que a festa acabava e comiam Parte disso é tradição até hoje: montar um altar, com uma oferenda aos defuntos em 2 de novembro, Dia de Finados, e depois distribuir os alimentos oferecidos. O papalotlaxcalli ou pão de borboleta era mais semelhante em forma a uma tortilha — mais plano do que redondo. O que mais se assemelha ao consumido no centro do país, mais redondo, é o huitlatamalli, uma espécie de pamonha. A passagem do tempo e a influência da culinária europeia (particularmente espanhola e francesa) são vistas no pão do morto. A antropóloga Erika Méndez, da UNAM, diz que "as receitas para fazer o pão tradicional foram escritas em antigos compêndios de alimentos onde você pode ler que era feita uma 'massa básica' que era aromatizada com diferentes ingredientes como anis, água de flor de laranjeira e às vezes adicionavam laranja em suco ou raspa para dar um sabor característico". "No entanto, é importante ressaltar que esse sabor é na verdade o de muitos outros pães que já eram preparados antes", destaca a antropóloga da UNAM. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A receita do pão dos mortos mais conhecida da Cidade do México e arredores só apareceu em meados do século 20, no livro de receitas de Josefina Velázquez de León, Repostería Selecta. Se trata de um pão de forma arredondado adornado com "ossinhos" cruzados e um "crânio" no centro. Geralmente é polvilhado generosamente com açúcar. Mas em outras regiões do país são adotadas diferentes formas: pode ser uma rosca, um triângulo, uma cruz, um boneco, ossos trançados, animais como coelhos ou ovelhas, entre outros. ''Em Alcozauca (um município do México), podemos ver que alguns pães representam os falecidos que morreram feridos. nesta região este pão é decorado com uma cor vermelha. Por outro lado, em Tepoztlán, também é feito um pão que homenageia as mulheres que morreram no parto e a figura é a de uma mulher com um bebê", explica a antropóloga Méndez. "Mais do que significados, o que vemos são representações das diversas formas de apreciar o mundo. Eles representam o que veem em seu pão."
2022-11-01
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-63441787
sociedade
Os relatos de viajantes 'presos' em rodovias por bloqueio de caminhoneiros bolsonaristas
O bancário Caio Guitton mora em São Paulo (SP) e viajou ao Rio de Janeiro para votar no domingo (30/10). Ele retornaria para casa na manhã seguinte. Porém, os planos dele foram alterados quando passou por uma experiência que avalia como angustiante. Caio estava em um ônibus que saiu do Rio de Janeiro na madrugada de segunda-feira e seguia em direção a São Paulo. Ele planejava chegar à capital paulista cerca de sete horas depois. No entanto, o trajeto foi interrompido em decorrência de um bloqueio na via, causado por uma paralisação de apoiadores do presidente derrotado Jair Bolsonaro (PL) — entre eles, muitos caminhoneiros. "Eu saí do Rio de Janeiro por volta das 23h40, porque queria chegar em São Paulo em torno das 6 da manhã para seguir para o trabalho. Mas por volta das 1h40 ou 2 da manhã, o ônibus parou na Via Dutra, em Barra Mansa (RJ) e ficou em uma escuridão, ninguém sabia o que estava acontecendo", diz o bancário à BBC News Brasil. "Depois, por volta de umas 2h20, a concessionária da rodovia colocou uma nota no site em que informou sobre a manifestação dos caminhoneiros. Aí eu entendi o que estava acontecendo", acrescenta. Ele precisou buscar uma forma para ir a uma rodoviária para retornar ao Rio de Janeiro e, ainda sem previsão, voltar para São Paulo. Fim do Matérias recomendadas O protesto que impediu o tráfego do ônibus de Caio é um exemplo de uma medida tomada por caminhoneiros bolsonaristas de diversos estados: eles fecharam rodovias em manifestação contra a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Em Mato Grosso, a professora Simone (nome fictício), que mora em Cuiabá, fazia uma viagem a uma cidade do interior do Estado quando o ônibus em que ela estava ficou parado na estrada. "Era para chegarmos a Barra do Garças (MT) às 6h, mas chegamos às 12h", diz. Até o momento, essas manifestações foram registradas em rodovias de 16 estados, de acordo com a Polícia Rodoviária Federal (PRF). Pelo país, as regiões atingidas pelo movimento tiveram longos engarrafamentos, que chegaram a até mais de 12 horas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O protesto causou um engarrafamento de grandes proporções na Via Dutra, diz Caio. Enquanto o dia amanhecia, ele notava a fila "interminável" de veículos parados. "Tinha um engarrafamento de cerca de 4 quilômetros à frente do ônibus e atrás era ainda maior", detalha. "Foi uma situação angustiante. A gente está há meses vendo a guerra na Ucrânia, com quilômetros de engarrafamentos e nunca acha que vai acontecer com a gente. É um sentimento de obscuridade total", comenta. Ele classifica a situação como "algo semelhante a uma mistura de guerra na Ucrânia com The Walking Dead (série americana) tupiniquim". O bancário acredita que boa parte dessa situação poderia ser evitada se Bolsonaro fizesse uma declaração na qual aceitasse a vitória de Lula - ele não se pronunciou até o momento. "Boa parte de tudo isso talvez pudesse ser evitado se houvesse um gesto democrático (de Bolsonaro) de aceitar o resultado das urnas e diminuir os ânimos exaltados", comenta. Por volta das 11h, ele deixou o ônibus. "Eu precisava trabalhar e estava apreensivo. Algumas pessoas começaram a deixar o ônibus quando o dia amanheceu. Eu coloquei um prazo até 11 da manhã para ver se algo aconteceria, mas nada mudou. Então, 11 em ponto saí do ônibus e comecei a buscar alguma alternativa de caminho na rodovia", detalha. Pouco antes de deixar o veículo, ele descobriu, por meio das redes sociais, que uma colega de trabalho, Beatriz Sá, também estava parada em outro ônibus no engarrafamento. Os dois desceram ao mesmo tempo na rodovia. "Caminhamos pela rodovia por mais ou menos 20 minutos. Foi assustador, porque havia um trânsito danado", diz. Eles conseguiram uma carona com um desconhecido que avistaram no sentido oposto da via e seguiram para a rodoviária de Volta Redonda (RJ). "Agora vamos voltar para o Rio de Janeiro para tentar comprar passagem de avião para conseguir voltar para São Paulo", diz Caio. Ele diz que não há possibilidade, ao menos nesta segunda-feira, de conseguir voltar de ônibus. Para a professora Simone, a manifestação dos bolsonaristas é um ato "totalmente antidemocrático, que não respeita e não aceita o sistema e o processo eleitoral". Ela avalia que não há uma "pauta realmente digna de luta". "É (um protesto) por puro e simples descontentamento com o resultado das eleições e com o desejo de quase 51% da população", declara. Nas cerca de seis horas em que ficou no ônibus na rodovia parada, ela diz que ficou "à deriva" junto com os outros passageiros. "Muitos passageiros estavam revoltados porque estavam com crianças, pessoas doentes, com fome, sede e afins. O movimento pró-Bolsonaro estava questionando o resultado das eleições e desconsiderou o nosso direito de ir e vir", declara. Em determinado momento, os caminhoneiros abriram passagem para os veículos que estavam no engarrafamento na rodovia de Mato Grosso. "Mas não sei se foi uma liberação total ou parcial", diz. Apesar de a proporção dos protestos não ter se alastrado como na greve de 2018, o movimento causa preocupação. A manifestação após a vitória de Lula tem dividido caminhoneiros. Enquanto alguns reforçam que o movimento deve crescer cada vez mais em protesto à eleição de Lula, outros defendem que a categoria respeite a eleição do petista. "As manifestações estão crescendo rapidamente, e não tem uma intervenção imediata da PRF como houve em outras ocasiões. Além disso, a demora de Bolsonaro para se pronunciar pode contribuir para que os protestos se alastrem", disse Wanderlei Dedeco, caminhoneiro de Curitiba, Paraná, que atua como "conselheiro" das lideranças dos caminhoneiros. Até a tarde desta segunda-feira, de acordo com a Polícia Rodoviária Federal (PRF), havia 136 protestos. Foram registradas manifestações em Alagoas, Amazonas, Acre, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraná, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande de Norte, Roraima e Rondônia. A Procuradoria-Geral da República pediu nesta segunda-feira que o diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, preste esclarecimentos em 24 horas sobre os bloqueios nas rodovias por caminhoneiros e esclareça as providências tomadas para liberar o fluxo de veículos. Em nota, a PRF afirma que adotou as providências para o retorno da normalidade das rodovias afetadas desde a noite de domingo. "direcionando equipes para os locais e iniciando o processo de negociação para liberação das rodovias priorizando o diálogo, para garantir, além do trânsito livre e seguro, o direito de manifestação dos cidadãos, como aconteceu em outros protestos". Além disso, a PRF afirma que acionou a AGU (Advocacia-Geral da União) para conseguir liberar estradas bloqueadas.
2022-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63460012