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sociedade
O que há de verdade na suposta predileção dos antigos gregos e romanos por orgias
As orgias evocam imagens da antiguidade greco-romana, devido aos filmes mais ou menos eróticos protagonizados por imperadores devassos — ou ao filme Satyricon (1969), de Federico Fellini. O termo é utilizado atualmente para descrever todo tipo de excesso. Para nós, a orgia parece uma celebração absoluta dos prazeres da carne em uma sociedade antiga, livre das restrições morais. Mas o que eram as orgias, na realidade? A palavra vem do grego. Orgia se refere aos rituais realizados em homenagem a divindades como Dionísio, cujo culto celebrava a regeneração da natureza. Esses cultos eram conhecidos como "cultos de mistério", ou seja, reservados a homens e mulheres iniciados que haviam se comprometido anteriormente a não divulgar os seus segredos. Fim do Matérias recomendadas Somente no final do século 18 e ao longo do século 19, sobretudo na literatura francesa, o termo "orgia" passou a designar práticas sexuais em grupo, geralmente associadas ao excesso de comida e bebidas alcoólicas. O escritor francês Gustave Flaubert (1821-1880) , no seu conto Smarh (1839), se refere a "uma festa noturna, uma orgia toda cheia de mulheres desnudas, belas como Vênus". Mas a orgia como evento não é uma invenção moderna. Os banquetes que combinavam prazeres alimentares e eróticos são bem documentados em textos antigos. No século 4 a.C., por exemplo, o orador grego Ésquines, em seu discurso Contra Timarco, acusou seu inimigo de ter se entregue aos "mais vergonhosos prazeres da volúpia" e a "todas as coisas com que um homem livre e nobre não deve se deixar soterrar". Quais eram esses prazeres proibidos? Timarco convidava à sua casa flautistas e outras mulheres venais e promovia festas com elas. É preciso destacar que as flautistas, neste caso, não são meras artistas, convocadas apenas por seu talento musical, mas também jovens prostitutas, dispostas a satisfazer as exigências sexuais dos convidados. Da mesma forma que a contratação de cortesãs, o consumo de peixe, que era muito caro, era objeto de atenção especial por parte dos oradores do século 4 a.C. Demóstenes combina estas duas facetas da libertinagem em seu discurso Sobre a Falsa Embaixada. No ano 346 a.C., a cidade de Atenas havia enviado embaixadores ao rei Filipe 2° da Macedônia, ameaçando militarmente a Grécia. Mas o soberano havia subornado alguns dos enviados atenienses para que apoiassem suas ambições imperialistas. Demóstenes acusou um dos embaixadores, subornado pelo rei da Macedônia, de ter desperdiçado o dinheiro da corrupção com "prostitutas e peixes" — um duplo delito de gula, tanto sexual quanto alimentícia. Os historiadores romanos também descrevem suntuosos banquetes que combinavam sexo e comida. Nos anos 80 a.C., o ditador romano Sila teria sido o primeiro dirigente político de Roma a organizar festas sexuais. Ele teria importado o modelo do oriente grego, onde havia conduzido uma campanha militar. Plutarco relata em sua biografia de Sila que o ditador começava a beber pela manhã com atrizes, músicos e mímicos. A coreografia lasciva era uma atividade complementar praticada pelas cortesãs, de forma que não era incomum que prostitutas trabalhassem como mímicas. Elas se contorciam, às vezes simulando atos sexuais. O historiador latino Suetônio apresenta Tibério como a personificação do imperador libertino. No seu palácio de Capri, ele organizava atrevidos espetáculos pornográficos. Tibério havia recrutado um grupo de jovens atores que, diante de seus próprios olhos, se entregavam aos acasalamentos aconhecidos como spintriae — termo latino, muito provavelmente formado a partir do grego sphinktèr ("ânus"), que remete à sodomia em série. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Suetônio afirma que Calígula, sucessor de Tibério, dormia com suas irmãs à vista dos seus convidados. Incestuoso e exibicionista, ele transgredia assim duas proibições ao mesmo tempo. Calígula também mostrava sua esposa Cesônia a cavalo, vestida de guerreira ou totalmente nua. Suetônio conta que a imperatriz, cúmplice do marido, apreciava muito essas sessões especiais, pois "se perdia na libertinagem e no vício". Cerca de 20 anos depois, o imperador Nero "fazia com que suas festas durassem do meio-dia até a meia-noite", segundo Suetônio. Durante esses longos banquetes, todos os sentidos precisavam ser satisfeitos. Era uma sinfonia de comida, música e corpos servis para serem vistos ou acariciados, enquanto os escravos faziam chover flores do teto do salão e pulverizavam perfumes. Dizem que durante um dos banquetes promovidos pelo imperador Heliogábalo, perto do ano 220 d.C., alguns convidados teriam morrido asfixiados "por não terem conseguido se libertar", conforme narra o autor do livro História Augusta. Mas estes banquetes não eram mais comuns no Império Romano do que são hoje em dia. Por isso, não devemos nos enganar sobre o significado das descrições das orgias feitas pelos escritores antigos. O objetivo é sempre moral: condenar a "libertinagem", em nome da moderação e da temperança. A cristianização do Império Romano apenas reforçou esta perspectiva moral. Um bom exemplo está na obra de Santo Agostinho, no Sermão 16 pela Decapitação de João Batista. A evocação do banquete de Herodes Antipas, governador da Galileia, e sua grande quantidade de alimentos destaca a gula dos convidados. Soma-se a isso a ideia de que a luxúria seria exclusivamente obra de Satanás. Antipas pede à sua sobrinha-neta Salomé que dance. E, depois de exibir os seios na sua frenética coreografia, a jovem maléfica exige a cabeça de São João Batista, servida em uma bandeja, como pagamento pelos seus encantos. Rompendo com esses textos antigos, o filme Babilônia (2022), de Damien Chazelle, apresenta uma grande cena de orgia, sem adotar claramente uma postura de condenação moral. Talvez esta seja uma das razões que levaram a uma recepção tão variada por parte do público — enquanto críticos denunciaram o filme como escandaloso, admiradores o louvaram como uma milagrosa "orgia visual".
2023-07-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9e78md9vd0o
sociedade
Taylor Swift está esnobando o Canadá?
É um bom momento para ser um Swiftie. A cantora de 33 anos está no meio de sua maior turnê em estádios - com um set de três horas e 40 músicas abrangendo todas as eras de sua carreira. Desde 2019, ela lançou quatro álbuns e fez dois relançamentos, incluindo o amado álbum Speak Now de 2010. No entanto, os fãs canadenses de Taylor Swift não estão tão encantados. A turnê Eras, que começou em março, inclui mais de 100 shows até o verão de 2024, nos EUA, México, Europa, Ásia, Austrália e no Brasil. Mas, pelo menos até agora, Swift não tem planos de tocar no Canadá. Será que ela esqueceu a existência do país? O aparente desprezo inspirou o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, a apelar pessoalmente a Swift. Depois que ela anunciou mais 14 shows no próximo ano no Reino Unido e na Europa, Trudeau apareceu nas respostas dela no Twitter, pedindo que ela reconsiderasse o calendário. “Sou eu, oi”, escreveu Trudeau, referindo-se à música de Swift, Anti-Hero. "Eu sei que alguns lugares no Canadá amariam ter você. Então, não torne este outro verão cruel. Esperamos vê-la em breve." Parece que o Trudeau está falando por muitos outros Swifties que se sentem exilados no norte, se perguntando por que eles não podem ter experiências legais. Fim do Matérias recomendadas "É devastador", disse Leila Title, de 33 anos, diretora de marketing em Toronto. "Decepção é a melhor maneira de descrever." A princípio, Title imaginou que Swift incluiria datas canadenses ao longo da turnê internacional. E quando os shows para o México e a América do Sul foram anunciados, sem nada planejado ao norte da fronteira com os Estados Unidos, ela começou a se preocupar que fosse uma falha. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Ainda acho que é possível. Sempre tenho que pensar que é possível", disse ela sobre uma turnê canadense. "Mas está se tornando cada vez menos provável." Jackie Engelberg, outra moradora de Toronto, esperava ver Swift em um de seus shows em Nova York, em maio de 2023, sua "única opção" sem nenhuma parada no Canadá. Mas, apesar dos melhores esforços de Engelberg - "lutando contra os bots do Ticketmaster, enfrentando os sites de revenda" - ela não conseguiu encontrar um ingresso acessível. Então, assim como Title, Engelberg pensou que esperaria pelo anúncio da turnê canadense. "Todas as outras turnês que ela fez, mesmo as que são apenas em estádios, no mínimo há datas canadenses incluídas", disse Engelberg. Mas quando a chance de um anúncio canadense veio e se foi, ela ficou preocupada em perder uma turnê de Taylor Swift - que seria a primeira da fã de longa data. "Estou, obviamente, extremamente desapontada, assim como todos os meus colegas Swifties do Canadá", disse Engelberg. Ela ficou surpresa ao ver pequenas cidades como Varsóvia serem selecionadas para uma temporada de três shows, enquanto Toronto - a quarta maior cidade da América do Norte - foi preterida. "Dada a enorme população de nossa cidade e todos os fãs aqui, tenho certeza de que Taylor lotaria vários estádios", disse Engelberg. Então, por que Taylor Swift está fugindo do Canadá? Ela ainda não nos disse o porquê. Nenhum motivo foi dito por Swift ou a equipe dela e sua gravadora não respondeu aos questionamentos da BBC. Alguns especularam que pode ser devido ao tamanho do local. A maior arena do Canadá, o Commonwealth Stadium em Edmonton, Alberta, acomoda pouco mais de 56.300 torcedores. Isso é o equivalente a uma fração da capacidade de locais como Wembley, em Londres - 90.000 - ou MetLife, em Nova Jersey - 82.500. Mas isso não significa que Swift está evitando todos os locais menores. Ela fará dois shows no Aviva Stadium, em Dublin, com capacidade para 50 mil pessoas, e uma noite no Ernst Happel Stadion, em Viena, que tem espaço para pouco menos de 51 mil espectadores. Outros se perguntam se é a fraqueza do dólar canadense, em comparação com a moeda americana - a taxa de câmbio agora é de aproximadamente 1,33 dólar canadense para cada dólar americano. Mas isso não impediu que outros grandes artistas, incluindo Beyoncé e Ed Sheeran, se apresentassem no Canadá. Por enquanto, pelo menos, o silêncio de Swift deixou os fãs canadenses na expectativa. "Tudo o que eu quero é que Taylor venha aqui", disse Title. "E eu atravessaria o país."
2023-07-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1el8d0e5xo
sociedade
Quem foi Melitta Bentz, a mulher que inventou o filtro de café e revolucionou indústria como empresária
Toda manhã, Melitta Bentz (1873-1950) tomava uma xícara de café. Mas, a cada gole, havia algo que a perturbava. O sabor amargo e os restos dos grãos moídos ficavam na sua boca e acabavam prejudicando aquele momento de prazer. Bentz, que era dona de casa, decidiu tomar então uma atitude. Na sua cozinha em Dresden, sua cidade natal na Alemanha, ela começou a fazer experimentos para tornar o consumo da bebida — que se tornava cada vez mais popular na Europa — ainda mais agradável. Depois de várias tentativas malsucedidas, Bentz arrancou um dia um pedaço de papel do caderno escolar de um dos filhos e o colocou em uma lata velha com alguns furos feitos por ela mesma. Fim do Matérias recomendadas Em seguida, acrescentou café em pó, despejou água quente e... pronto! O café escorreu pelo papel diretamente para a xícara, formando um líquido uniforme, sem resíduos e muito menos amargo. Melitta Bentz havia criado o primeiro filtro de café do mundo. Visionária como poucas da sua época, Bentz testou sua invenção com as amigas mais próximas, organizando "tardes de café". O sucesso foi tanto que, em 1908, ela patenteou o filtro e abriu, em parceria com o marido Hugo Bentz, uma empresa na junta comercial de Dresden para produção e venda de filtros. Convencida de que tinha um produto único, ela visitou todas as lojas, armazéns e feiras comerciais, apresentando sua invenção. Paralelamente, transformou a casa em uma verdadeira oficina de produção, usando os cinco quartos da residência. E seus próprios filhos, chamados Willy e Horst, faziam as entregas em carrinhos de mão. Em 1909, eles venderam mais de mil filtros na Feira Comercial de Leipzig, na Alemanha. Cinco anos depois, Melitta Bentz já havia se tornado uma verdadeira empresária, havia uma forte demanda pelos seus filtros. O crescente interesse pelo produto fez com que ela decidisse transferir sua empresa para uma antiga serralheria. Bentz contratou 15 pessoas e investiu em grandes máquinas que a ajudaram a acelerar a produção. Mas as ambições da empresária alemã foram prejudicadas pelo início da Primeira Guerra Mundial. O conflito dividiu a família quando o marido e o filho mais velho dela, Willy, foram recrutados pelo exército alemão. Com dificuldades, Melitta Bentz conseguiu administrar sozinha a empresa, que precisava agora gerar renda para toda a família. Mas a redução da importação de grãos de café e o racionamento de certos produtos, como o papel, dificultaram os negócios. Em determinado momento, Bentz ficou impossibilitada de produzir os filtros de café e precisou diversificar sua produção, começando a vender caixas de papelão. Após o fim da Primeira Guerra Mundial, a demanda pelos filtros voltou a crescer, e o negócio se expandiu novamente. Foi nessa época que a empresária decidiu oferecer uma série de benefícios para seus funcionários, incluindo um bônus de Natal, aumento dos dias de férias e a redução da semana de trabalho para cinco dias. Mas o projeto de Melitta Bentz seria interrompido novamente poucos anos depois, com a Segunda Guerra Mundial. Em 1942, com Adolf Hitler no poder, a fabricação dos filtros de café foi proibida. O regime nazista obrigou Melitta Bentz a produzir artigos bélicos e fornecer suprimentos militares. A fábrica passou a colaborar diretamente com Hitler, como uma indústria nacional-socialista. Depois da guerra, a empresa contribuiu com um programa social de compensação às vítimas de trabalhos forçados pelos nazistas. Melitta Bentz só conseguiu voltar a produzir filtros de café em 1947. Mas três anos depois, em 29 de junho de 1950, a empresária morreu aos 77 anos. Depois da morte de Melitta Bentz, seus filhos deram continuidade à empresa. Em 1959, eles construíram uma nova fábrica na cidade de Minden, na Alemanha, que contava com a máquina de papel mais avançada da Europa. A fábrica continua operando até hoje. Com o passar dos anos, eles diversificaram os negócios, criando sacos para aspiradores de pó e outros eletrodomésticos. Atualmente, o Grupo Melitta emprega mais de 5 mil pessoas em todo o mundo. Os últimos relatórios da empresa, referentes ao ano de 2021, indicam que seus lucros anuais são de mais de US$ 2 bilhões (cerca de R$ 9,7 bilhões).
2023-07-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czd47j3kje5o
sociedade
Por que animais de estimação feios fazem tanto sucesso
Em Petaluma, na Califórnia (Estados Unidos), jurados examinaram, em junho, uma série de focinhos amassados, dentes irregulares, olhos saltados e bigodes salientes para decidir quem seria o vencedor do concurso do Cão Mais Feio do Mundo. Todos os anos, os concorrentes a esta duvidosa homenagem conquistam os corações dos amantes dos animais em todo o mundo, enquanto fotos pouco lisonjeiras dos cachorros viralizam na internet. Mas por que achamos os animais feios tão atraentes? O que faz com que essas criaturas de aparência estranha pareçam tão fofas? Bem, parte da resposta está na evolução. O zoólogo austríaco Konrad Lorenz afirma que a atração humana por características infantis, como olhos grandes, cabeças enormes e corpos macios, é uma adaptação evolutiva que ajuda a fazer com que os adultos cuidem dos seus filhotes, o que garante a perpetuação da espécie. Em 1943, Lorenz chamou essas características infantis de “esquema do bebê”. Fim do Matérias recomendadas Os animais com aparência esquisita, como o peixe-bolha, os cães da raça pug, os lêmures de Madagascar e os buldogues, possuem essas mesmas características infantis que ativam reações afetuosas entre os seres humanos e um instinto natural de cuidado e proteção. E essas características infantis aumentam o “comportamento protetor, a atenção e a disposição ao cuidado” das pessoas pelos indivíduos, reduzindo a “probabilidade de agressão ao bebê”, segundo a pesquisadora Marta Borgi, do Instituto Superior de Saúde de Roma, na Itália. Borgi estudou como o esquema do bebê se relaciona com a interação entre os seres humanos e os animais. Entre os seres humanos, cujos bebês “dependem totalmente dos seus cuidadores para sustentá-los e protegê-los, esta reação tem clara importância porque contribui para aumentar as chances de sobrevivência dos filhotes”, afirma ela. Um estudo de 2014 realizado por Borgi e outros pesquisadores concluiu que o conceito de “fofura” é comum à espécie e se desenvolve muito cedo. Crianças com até três anos de idade demonstram preferência por animais e seres humanos com olhos grandes, nariz em forma de botão e rosto redondo. “Nós demonstramos que a reação afetiva a características faciais infantis em cães e gatos surge logo no início do nosso desenvolvimento”, afirma Borgi. Os pesquisadores analisaram os movimentos dos olhos das crianças com três a seis anos de idade e concluíram que eles se concentravam mais em imagens de cães, gatos e seres humanos que haviam sido digitalmente modificadas para oferecer características mais infantis. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Eles também pediram às crianças que avaliassem as imagens em uma escala de 1 a 5, em que 1 era “não é fofo” e 5 era “muito fofo”. As crianças deram notas mais altas aos rostos redondos com testas grandes, grandes olhos e narizes pequenos, em comparação com os traços menos infantis. “Nós demonstramos que o grau de esquema do bebê no rosto de cães e gatos é uma característica saliente que afeta a ‘percepção de fofura’ das crianças”, explica Borgi. Já os animais feios frequentemente têm outro valor. Alguns deles, como o peixe-bolha ou o rato-toupeira-pelado, vivem em ambientes extremos e se adaptaram de formas notáveis. Os cientistas se dedicam a estudar esses animais para entender se a sua biologia pode oferecer novas ideias que podem gerar tratamentos de condições de saúde humanas, como o câncer, doenças cardíacas e doenças neurodegenerativas. Mas, embora muitas criaturas feias sejam perfeitamente adaptadas à sua vida selvagem e possam fornecer enormes benefícios aos ecossistemas onde vivem, elas, muitas vezes, não recebem tanta atenção quanto os animais tradicionalmente mais fofos e graciosos. E isso pode resultar em um viés que leva as espécies menos atraentes a serem objetos de pesquisa com menos frequência. Problemas de saúde Existem fatores culturais que também formam nossa obsessão pelos animais feios, mas fofos. “O feio mas fofo é muito elegante”, afirma Rowena Packer, professora de ciências do bem-estar e comportamento de animais de companhia da Faculdade Real de Veterinária da Universidade de Londres. Em parte, isso é incentivado pelas redes sociais, com muitas celebridades e influenciadores exibindo pugs e buldogues franceses no Instagram, segundo Packer. Mas existem sérias preocupações em relação ao bem-estar dos animais sobre essa tendência. Os veterinários estão aconselhando as pessoas a não escolher raças de cães de focinho achatado, ou braquicéfalas, pois eles sofrem sérios problemas de saúde. Os pugs e buldogues franceses que passaram por criação seletiva apresentam dificuldades de respiração, infecções da pele frequentes e doenças dos olhos. Um estudo concluiu em 2022 que os pugs “não podem mais ser considerados cachorros típicos, do ponto de vista da saúde”, devido aos sérios problemas que eles enfrentam. No Reino Unido, os pugs têm probabilidade duas vezes maior de sofrer de um ou mais transtornos de saúde por ano, em comparação com as outras raças. No verão, os pugs também apresentam risco de insolação, pois eles têm dificuldade de regular sua temperatura corporal. “Se você pensar nos lobos, eles têm narizes muito longos”, explica Packer. “Eles dependem da troca de calor através da passagem nasal, que permite que eles regulem eficientemente sua temperatura... eles não suam como nós.” Mas os pugs têm narinas pequenas e vias aéreas estreitas, o que dificulta sua respiração e o resfriamento dos seus corpos em dias de calor. O resultado é que muitos pugs fazem ruídos – eles roncam e bufam, o que as pessoas costumam achar “fofo”, um reflexo da personalidade do cão, segundo Parker. “Mas, na verdade, é um sinal de que suas vias aéreas estão obstruídas.” E, apesar dos seus muitos problemas de saúde, os pugs continuam sendo bastante populares. Segundo a Faculdade Real de Veterinária britânica, os registros de pugs no Kennel Clube – o registro nacional de cães do Reino Unido – aumentaram em cinco vezes entre 2005 e 2017. Já o Kennel Clube dos Estados Unidos relaciona os pugs como a 35ª raça de cachorro mais popular do país, entre 280 raças registradas. Em 2022, outra raça braquicéfala – o buldogue francês – tornou-se, pela primeira vez, o cão mais popular nos Estados Unidos, segundo os registros norte-americanos. “Existem muitas barreiras psicológicas que fazem com que as pessoas evitem aceitar os problemas de saúde dos cães braquicéfalos”, explica Packer. “As pessoas gostam do fato de que os pugs são muito engraçados, muito preguiçosos, e não querem vê-los ficando mais moderados cruzando-os com outras raças. Elas receiam que ele não será mais aquele ‘come-dorme’ engraçado, mesmo que aquilo, na verdade, seja causado pelas doenças que nós estamos impondo a eles.” O cruzamento de cães com focinho achatado com outras raças é “realmente essencial”, segundo ela. “Além de terem fenótipos realmente extremos de formatos de corpo, eles também têm diversidade genética muito baixa.” E a diversidade genética é importante. Sem ela, doenças e traços prejudiciais podem se espalhar rapidamente por uma população e acabar fazendo mal a ela – ou até causar sua extinção. Em 2016, uma análise de 102 buldogues ingleses registrados concluiu que eles tinham pouca diversidade genética nas duas linhagens, materna e paterna, incluindo na parte do genoma que contém genes que regulam reações imunológicas normais. Os buldogues estão “se tornando caricaturas das suas formas originais”, segundo Packer. “Existe uma enorme tendência entre as pessoas de querer cães com dobras da pele muito exageradas e corpos compactos”, afirma ela. “Mas, na verdade, isso reflete malformações da sua coluna – suas vértebras agora são malformadas, o que pode gerar uma enorme variedade de doenças neurológicas.” Por isso, características engraçadas como olhos saltados e focinhos cheios de rugas podem nos fazer rir, mas, pela saúde e bem-estar dos animais, nossa obsessão pelo “feio mas fofo” precisa ser reconsiderada.
2023-07-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ck590dn066wo
sociedade
Os sinais que indicam que seu cachorro pode sofrer de ansiedade
Temos a tendência de imaginar que a alegria, o medo e a tristeza são emoções exclusivas dos seres humanos. Mas a ciência está descobrindo, pouco a pouco, que esta afirmação é totalmente incorreta. Resumidamente, os especialistas determinaram que a nossa espécie não é a única a possuir as bases neurológicas que geram a consciência. Em outras palavras, os animais não humanos possuem a capacidade de ter sentimentos e, portanto, podem manifestar comportamento intencional. Isso também se aplica à capacidade de vivenciar o sentimento, que é o tema deste artigo: a ansiedade. Tanto em cães quanto nas pessoas, a ansiedade é simplesmente uma forma de reação a certas situações problemáticas. Mas, quando ela supera certa intensidade ou ultrapassa a capacidade de adaptação, a ansiedade passa a ser patológica. Como podemos identificar se o nosso cachorro se encontra neste estado? Diferentes formas de comportamento indicam sua vontade de fugir da sensação de inquietação, nervosismo, insegurança e mal-estar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A ansiedade surge quando o cão tem a expectativa de que algo de ruim está para acontecer. Esta expectativa aciona o sistema nervoso simpático, responsável pelas reações do organismo diante de situações perigosas ou estressantes, fazendo com que o animal manifeste uma conduta intensa. Quando a ansiedade é patológica, os sintomas que podemos encontrar são: contínuo estado de alerta, hiperatividade, lambedura excessiva, queda de pelo, problemas digestivos, uivos, tremores, gemidos, latidos em excesso, medo exagerado, agressividade e comportamentos destrutivos, que podem aumentar quando os cães ficam sozinhos. As situações capazes de provocar essa ansiedade patológica também são diversas: medo de ficar sozinho, de barulhos como fogos de artifício, de tempestades ou trânsito... qualquer incidente que supere sua capacidade de adaptação ou que seja frequentemente repetido pode desencadear ansiedade. Muitas vezes, estes são problemas gerados pela incompreensão humana das suas necessidades, como espécie e como indivíduo. Se prolongada, a ansiedade patológica pode causar doenças ao longo do tempo, como transtornos do sistema gastrointestinal, aumento da incidência de tumores ou alterações do sistema imunológico, sem falar do prejuízo à convivência entre as espécies. Soma-se a isso a nossa tristeza e frustração ao ver um animal de estimação sofrendo, sem saber como ajudá-lo. O primeiro passo para o tratamento da ansiedade, depois de diagnosticada pelo veterinário, é a terapia comportamental, conduzida por um etólogo, ou especialista em comportamento animal. Pode-se recorrer à administração de medicamentos se o caso específico exigir, também sob o controle do veterinário. Esta intervenção pode ser comparada à do psicólogo e do psiquiatra em seres humanos. O psicólogo é especialista em compreender o comportamento, enquanto o psiquiatra se dedica aos transtornos mentais e seu tratamento farmacológico. Embora cada caso tenha suas próprias particularidades, a terapia comportamental deve incluir os seguintes objetivos: - Reduzir os níveis de estresse do cachorro; - Ensiná-lo a administrar situações problemáticas; - Oferecer recursos para que ele se acalme; - Reduzir sua sensibilidade aos sinais precursores da ansiedade. O animal pode interpretar nossas ações de pegar as chaves, vestir o casaco ou calçar os sapatos, por exemplo, como o passo anterior a ficar sozinho. Devemos esclarecer a ele que isso não significa, necessariamente, que vamos partir; - Atribuir ao cão uma função clara dentro da família. Precisamos fazer atividades com ele para que se sinta integrado, como brincar ou sair para passear, de modo que o cachorro e o dono se divirtam; - Fazer com que o cão tenha independência social. Ou seja, não podemos estar o tempo todo com ele, nem resolver todos os seus problemas. Se o processo de aprendizado for difícil porque os níveis de ansiedade são altos demais ou devido a circunstâncias específicas do animal, é preciso complementar o processo com medicamentos. Pode ser conveniente recorrer aos remédios, por exemplo, quando o cachorro sente ansiedade ao ficar sozinho e, como seus responsáveis trabalham, ele precisa ficar pelo menos oito horas sem companhia. O cão não pode ficar em um estado contínuo de angústia. É preciso também entender que, da mesma forma que na nossa espécie, há circunstâncias que geram estresse prolongado — que levam ao "estado de ansiedade" — e perfis que são mais ansiosos por natureza, o chamado "traço de ansiedade". A busca das causas da angústia patológica e seu controle não deve se restringir ao controle das consequências com o uso de medicamentos, mas também melhorar a atenção que oferecemos a eles como seres sensíveis, sociais e que precisam de atividades adequadas para cada indivíduo. *Nuria Máximo Bocanegra é terapeuta ocupacional, professora do Departamento de Fisioterapia, Terapia Ocupacional, Reabilitação e Medicina Física, além de diretora da cadeira de Pesquisa com Animais e Sociedade da Universidade Rei Juan Carlos, na Espanha. Colaborou com este artigo a educadora canina Mónica Kern, especialista em adestramento de cães-guia e voluntária na entidade de intervenções assistidas por animais "Perruneando Madrid", na Espanha.
2023-07-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjejv5vqxl3o
sociedade
As lições de Aristóteles para entender se somos amigos por prazer ou por interesse
Embora a maioria das canções de amor falem das alegrias e dissabores de relações românticas, as relações entre amigos também podem ser bastante intensas e complicadas. Para muita gente, fazer novos amigos ou manter uma velha amizade é um verdadeiro desafio, e um rompimento com um amigo próximo pode ser tão doloroso quanto terminar um namoro. Mesmo assim, os seres humanos sempre valorizaram a amizade. Como escreveu o filósofo Aristóteles no século 4 a.C.: "Ninguém escolheria viver sem amigos", mesmo que pudesse ter todas as outras coisas boas no lugar deles. Aristóteles é conhecido, acima de tudo, por sua influência na ciência, na política e na estética, e não exatamente por seus escritos sobre amizade. Eu estudo a filosofia grega antiga e, quando abordo esse assunto com meus alunos, eles ficam surpresos com o fato de um pensador grego da Antiguidade conseguir lançar tanta luz sobre os relacionamentos deles. Mas talvez não seja surpresa: a amizade existe há tanto tempo quanto os seres humanos. Fim do Matérias recomendadas Eis, então, três lições sobre esse tema que Aristóteles ainda nos ensina. A primeira lição vem da definição de amizade de Aristóteles: uma boa vontade recíproca e reconhecida. Diferentemente da paternidade/maternidade ou da irmandade, a amizade só existe se for reconhecida por ambas as partes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Não é suficiente que alguém deseje o bem a outra pessoa; ela tem que desejar o bem de volta, e ambos tem que reconhecer essa boa vontade mútua. Como diz Aristóteles: "Convém, então, que um tenha boa vontade com o outro e se desejem todo o bem, e e que entendam isso um do outro". Aristóteles ilustra esse ponto com um exemplo de um relacionamento parassocial: um tipo de relacionamento unilateral em que alguém desenvolve sentimentos amigáveis ​​por - ou mesmo acha que conhece - uma figura pública a quem nunca foi apresentada. Em seu exemplo, o filósofo cita um torcedor que pode desejar o melhor a um atleta e se sentir emocionalmente envolvido em seu sucesso. Mas como o atleta não retribui ou reconhece essa boa vontade, eles não são amigos. Isso é tão verdadeiro hoje quanto era na época de Aristóteles. Pense em como você não pode ser amigo de alguém no Facebook, a menos que a pessoa aceite a solicitação de amizade. Por outro lado, você pode ser seguidor de alguém nas redes sociais sem que necessariamente o dono da conta te conheça. Hoje, contudo, pode ser mais difícil distinguir amizades de relacionamentos parassociais. Quando os criadores de conteúdo compartilham detalhes sobre suas vidas pessoais, seus seguidores podem desenvolver uma sensação unilateral de intimidade. Eles sabem coisas sobre a pessoa que estão seguindo que, antes do advento das redes sociais, apenas um amigo próximo saberia. O criador de conteúdo, por sua vez, pode sentir boa vontade para com seus seguidores, mas isso não é amizade. A boa vontade não é genuinamente recíproca se uma das partes a sente em relação a um indivíduo, enquanto a outra a sente em relação a um grupo. Desta forma, a definição de amizade de Aristóteles esclarece a natureza de uma situação essencialmente moderna. Aristóteles distingue três tipos de amizade: as baseadas na utilidade, no prazer e no caráter. Cada uma surge a partir do que é valorizado no amigo: sua utilidade, o prazer de sua companhia ou seu bom caráter. Embora a amizade baseada no caráter seja a forma mais elevada, só se consegue ter alguns amigos íntimos desse tipo. Leva tempo para se conhecer o caráter de alguém — e muita convivência para se manter uma amizade dessas. Como o tempo é um recurso limitado, a maioria das amizades será baseada no prazer ou na utilidade. Às vezes, meus alunos argumentam que relacionamentos utilitários não seriam realmente amizades. Como duas pessoas que se usam podem ser amigas? No entanto, quando ambas as partes enxergam sua amizade da mesma forma, elas não estão explorando uma à outra, mas se beneficiando da relação. Como explica Aristóteles, "diferenças entre amigos geralmente surgem quando a natureza de sua amizade não é o que eles acreditam que seja". Se sua colega de estudos pensa que vocês são amigos porque você gosta da companhia dela, mas na verdade a amizade está baseada no fato de que ela explica bem cálculo, ela pode se sentir magoada. Mas se ambos entenderem, por exemplo, que um precisa melhorar a nota de cálculo e o outro, a de redação, vocês podem desenvolver boa vontade e respeito mútuos com base nos pontos fortes de cada um. Na verdade, a natureza limitada de uma amizade utilitária pode ser exatamente o que a torna benéfica. Considere uma forma contemporânea de amizade útil: os grupo de apoio online. Como só se pode ter um pequeno número de amizades baseadas no caráter, muitas pessoas que estão passando por traumas ou lutando contra doenças crônicas não têm amigos próximos passando por essas experiências. Os membros de um grupo de apoio - como por exemplo um grupo online para pessoas que enfrentam câncer ou que perderam um ente próximo - estão em uma posição única para ajudar uns aos outros, mesmo que tenham valores e crenças pessoais muito diferentes. Essas diferenças podem significar que as amizades nunca vão se basear no caráter ou na índole de cada um; no entanto, os membros do grupo podem sentir boa vontade uns pelos outros. Em suma, a segunda lição de Aristóteles é que existe um lugar para todo tipo de amizade — e que uma amizade funciona quando há um entendimento compartilhado de sua origem. Por fim, Aristóteles tem algo valioso a dizer sobre o que faz as amizades durarem. Ele afirma que a amizade é um estado ou uma disposição que deve ser mantido por meio de atividade: assim como a forma física é mantida pelo exercício regular, a amizade é mantida fazendo coisas juntos. Então, o que acontece quando você e seu amigo não podem participar de atividades juntos? Aristóteles escreve: "Amigos que... se separam não são amigos ativamente, mas têm disposição para sê-lo. Pois a separação não destrói absolutamente a amizade, embora impeça seu exercício ativo. Porém, se a ausência se prolonga, parece provocar um esquecimento do próprio sentimento de amizade". Pesquisas recentes confirmam isso: a amizade pode ser mantida mesmo sem atividades compartilhadas, mas, caso seja esta a situação por muito tempo, a amizade vai desaparecer. Pode parecer que o argumento de Aristóteles perdeu sua relevância, uma vez que as tecnologias de comunicação — do correio tradicional ao FaceTime — tornaram possível manter amizades a grandes distâncias. Mas mesmo que a separação física não signifique mais o fim de uma amizade, a lição de Aristóteles ainda é válida. Pesquisas mostram que, apesar da tecnologia, as pessoas que reduziram suas atividades no primeiro ano da pandemia de covid-19 sentiram um declínio correspondente na qualidade de suas amizades. Hoje, assim como na antiga Atenas, os amigos devem continuar fazendo atividades juntos. Aristóteles não poderia ter imaginado a tecnologia de hoje, o surgimento de grupos de apoio online ou os tipos de relacionamentos parassociais que as redes sociais proporcionam. No entanto, apesar de tudo que mudou no mundo, seus escritos sobre amizade ainda são relevantes. *Emily Katz é professora associada de filosofia grega antiga na Michigan State University, nos Estados Unidos.
2023-07-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1d8321ekz0o
sociedade
Por que EUA estão enviando para Ucrânia bombas proibidas por mais de 100 países
Os Estados Unidos anunciaram que estão atendendo a um pedido ucraniano de fornecer as controversas munições cluster, de fragmentação. A medida foi criticada por grupos de direitos humanos, já que a arma é proibida por mais de 100 países. As munições cluster são um método de fragmentação de um grande número de pequenas bombas de um foguete, míssil ou projétil de artilharia que as espalha em pleno voo sobre uma ampla área. Elas devem explodir com o impacto ao atingir o solo, mas uma proporção significativa é "falha", o que significa que elas não explodem inicialmente - isso acontece especialmente se caírem em solo úmido ou macio. Elas podem então explodir posteriormente ao serem pegas ou pisadas, matando ou mutilando a vítima. Fim do Matérias recomendadas Do ponto de vista militar, elas podem ser terrivelmente eficazes quando usadas contra tropas terrestres entrincheiradas e posições fortificadas, tornando grandes áreas muito perigosas para se movimentar até que sejam cuidadosamente limpas. Mais de 100 países, incluindo Reino Unido, França e Alemanha, assinaram um tratado internacional - a Convenção sobre Munições Cluster - que proíbe o uso ou armazenamento dessas armas devido ao seu efeito indiscriminado sobre as populações civis. As crianças são particularmente propensas a lesões, pois as pequenas bombas podem se assemelhar a um brinquedo deixado em uma área residencial ou agrícola e muitas vezes são apanhadas por curiosidade. Grupos de direitos humanos descreveram as munições cluster como "abomináveis" e até mesmo as consideraram um crime de guerra. Tanto a Rússia quanto a Ucrânia têm usado munições cluster desde o início da invasão em grande escala da Rússia em fevereiro de 2022. Nenhum dos dois assinou o tratado que as proíbe. Nem os Estados Unidos, mas já criticaram o uso excessivo da arma pela Rússia. As munições cluster russas supostamente têm uma "taxa de falha" de 40%, o que significa que um grande número continua sendo um perigo no solo, onde acredita-se que a taxa média de falha esteja perto de 20%. O Pentágono estima que suas próprias bombas de fragmentação tenham uma taxa de falha de menos de 3%. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O presidente dos EUA, Joe Biden, defendeu sua "decisão muito difícil" de dar à Ucrânia bombas de fragmentação, que têm um histórico de matar civis. O presidente disse que demorou "um tempo para ser convencido a fazer isso", mas agiu porque "os ucranianos estão ficando sem munição". O líder da Ucrânia elogiou a medida "oportuna". Mas o primeiro-ministro do Reino Unido sugeriu que o país "desencoraje" o uso de bombas de fragmentação, enquanto a Espanha criticou a decisão. Quando questionado sobre o seu posicionamento em relação à decisão dos EUA, Rishi Sunak destacou que o Reino Unido é um dos 123 países que assinaram a Convenção sobre Munições Cluster, que proíbe a produção ou uso de munições de fragmentação e desencoraja seu uso. A ministra da Defesa da Espanha, Margarita Robles, disse a repórteres que seu país tem um "compromisso firme" de que certas armas e bombas não podem ser enviadas para a Ucrânia. "Não às bombas de fragmentação e sim à defesa legítima da Ucrânia, que entendemos que não deve ser realizada com bombas de fragmentação", disse ela. Mas a Alemanha, que é signatária do tratado, disse que, embora não forneça essas armas à Ucrânia, entende a posição americana. "Temos certeza de que nossos amigos americanos não tomaram a decisão de fornecer tal munição levianamente", disse o porta-voz do governo alemão Steffen Hebestreit a repórteres em Berlim. Biden disse à CNN em uma entrevista na sexta-feira que havia falado com aliados sobre a decisão, anunciada antes da cúpula da Otan na Lituânia, que acontecerá na próxima semana. Os EUA, a Ucrânia e a Rússia não assinaram a convenção, e Moscou e Kiev usaram bombas de fragmentação durante a guerra. O Conselheiro de Segurança Nacional, Jake Sullivan, disse no briefing diário da Casa Branca de sexta-feira que as autoridades "reconhecem que as munições de fragmentação criam um risco de danos civis" devido às bombas não detonadas. Mas ele disse que a Ucrânia está ficando sem artilharia e precisa de "uma ponte de suprimentos" enquanto os EUA aumentam a produção doméstica. "Não deixaremos a Ucrânia indefesa em nenhum momento deste período de conflito", disse ele. O ministro da Defesa da Ucrânia garantiu que as bombas de fragmentação não seriam usadas em áreas urbanas, mas sim para romper apenas as linhas de defesa inimigas. As munições causaram controvérsia sobre sua taxa de falha - ou fracasso, o que significa que pequenas bombas não detonadas podem permanecer no solo por anos e detonar indiscriminadamente mais tarde. Sullivan disse a repórteres que as bombas de fragmentação americanas enviadas à Ucrânia eram muito mais seguras do que as que ele disse já estarem sendo usadas pela Rússia no conflito. Ele disse aos repórteres que os americanos têm uma taxa de insucesso de menos de 2,5%, enquanto os da Rússia ficam entre 30-40%. A ação de Biden contornará a lei dos EUA que proíbe a produção, uso ou transferência de munições cluster com uma taxa de falha de mais de 1%. No início da guerra, quando a Casa Branca foi questionada sobre as alegações de que a Rússia estava usando bombas de fragmentação e a vácuo, o então secretário de imprensa disse que seria um potencial "crime de guerra" se fosse verdade. Houve uma reação mista entre o Partido Democrata do presidente dos EUA. Mais de uma dúzia de parlamentares se manifestou contra o plano. Grupos de direitos humanos também criticaram a decisão, com a Anistia Internacional dizendo que as munições fragmentadas representam "uma grave ameaça para a vida dos civis, mesmo muito depois do fim do conflito". A Coalizão de Munições Cluster dos EUA, que faz parte de uma campanha internacional da sociedade civil que trabalha para erradicar as armas, disse que elas causariam "maior sofrimento, hoje e nas próximas décadas". O escritório de direitos humanos da ONU também criticou, com um representante dizendo que "o uso de tais munições deve parar imediatamente e não deve ser usado em nenhum lugar". Um porta-voz do Ministério da Defesa da Rússia descreveu a ação como um "ato de desespero" e "evidência de impotência diante do fracasso da tão divulgada 'contra-ofensiva' ucraniana". O presidente russo, Vladimir Putin, acusou anteriormente os EUA e seus aliados de travar uma crescente guerra por procuração na Ucrânia. Mas o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, agradeceu ao presidente dos EUA por um pacote de ajuda militar "oportuno, amplo e muito necessário" no valor de US$ 800 milhões (R$ 3,9 bilhões). Ele twittou que isso "aproximaria a Ucrânia da vitória sobre o inimigo e a democracia da vitória sobre a ditadura". A contra-ofensiva da Ucrânia, que começou no mês passado, está avançando nas regiões leste de Donetsk e sudeste de Zaporizhzhia. Na semana passada, o comandante-em-chefe militar da Ucrânia, Valery Zaluzhny, disse que a campanha foi prejudicada pela falta de poder de fogo adequado e expressou frustração com as entregas lentas de armas prometidas pelo Ocidente. As forças da Ucrânia estão ficando sem projéteis de artilharia. Em grande parte porque, como os russos, eles as usam em um ritmo extraordinariamente alto e os aliados ocidentais da Ucrânia não podem repô-las na velocidade necessária. Nas frentes de batalha, em grande parte estáticas e desgastantes do sul e leste da Ucrânia, a artilharia tornou-se uma arma fundamental. Os ucranianos agora enfrentam uma tarefa assustadora ao tentar desalojar os invasores russos de suas posições defensivas bem entrincheiradas ao longo de uma frente de batalha de 1.000 km. Na ausência de projéteis de artilharia suficientes, a Ucrânia pediu aos EUA para reabastecer seus estoques de munições cluster para atingir a infantaria russa. Esta não foi uma decisão fácil para Washington e é profundamente impopular entre muitos democratas e defensores dos direitos humanos. O debate já dura pelo menos seis meses. O efeito imediato será derrubar muito do terreno moral em que Washington se encontra nesta guerra. Os numerosos supostos crimes de guerra cometidos pela Rússia estão bem documentados, mas é provável que esse movimento atraia acusações contra os EUA. As munições cluster são uma arma hedionda e proibida em grande parte do mundo por um bom motivo. Este movimento dos Estados Unidos inevitavelmente os colocará em desacordo com seus aliados ocidentais e qualquer percepção de divisão nessa aliança é exatamente o que o presidente russo, Vladimir Putin, deseja e precisa.
2023-07-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2d5e16yrjo
sociedade
Por que o trabalho híbrido não é tão flexível quanto parece
À medida que dão andamento aos planos de voltar ao escritório, muitas empresas estão optando por configurações híbridas — uma semana de trabalho dividida entre o escritório e a casa do funcionário, incluindo alguns dias fixos de trabalho presencial, geralmente seguindo o horário padrão de 9h às 17h. Estes esquemas geralmente são apresentados como sendo fluidos e ágeis — um meio-termo que oferece aos profissionais grande parte do controle e da autonomia que eles esperam após a pandemia de covid-19. Mas a própria natureza rígida do cronograma de dias e horários para comparecer ao escritório, imposto de cima para baixo pela chefia, pode não fornecer aos funcionários a flexibilidade anunciada. "Muitas vezes, se trata de dar aos funcionários um cronograma híbrido de onde eles devem fazer seu trabalho, sem nenhuma flexibilidade", afirma Tim Oldman, fundador e CEO da empresa Leesman, especializada em pesquisas sobre a experiência profissional, com sede em Londres. "É colocá-los em padrões fixos que podem não ser os melhores para ajudar no seu trabalho." Para alguns profissionais, esta realidade não é apenas inconveniente ou frustrante. A redução da flexibilidade afeta desproporcionalmente alguns funcionários, mais do que outros — particularmente, os profissionais com necessidades especiais e os que têm a responsabilidade de cuidar de outras pessoas. "As políticas híbridas fixas, muitas vezes, não consideram os desafios do retorno ao escritório enfrentados por funcionários com diferentes experiências no local de trabalho", diz Oldman. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os esquemas híbridos podem variar, mas os mais comuns preveem um equilíbrio entre três dias no escritório e dois dias remotos por semana, ou vice-versa. Muitas vezes, os dias no escritório são fixos — e não selecionados pontualmente —, com o objetivo de reunir as equipes de forma consistente ou permitir a colaboração programada e reuniões presenciais. Em teoria, estes arranjos são um acordo razoável tanto para os empregadores, que querem seus funcionários de volta ao escritório, quanto para os funcionários, que podem manter parte do trabalho remoto e sua consequente flexibilidade. Os profissionais continuam valorizando sua autonomia. Em maio de 2023, uma pesquisa realizada com 2.105 profissionais americanos pela empresa de pesquisa de mercado The Harris Poll concluiu que 69% dos profissionais que trabalham ou já trabalharam de forma remota consideram que a independência decorrente do trabalho remoto é mais importante do que os benefícios profissionais do trabalho presencial. Eles também relatam que a flexibilidade do trabalho remoto significa que eles conseguem falar com mais liberdade (74%) e estão mais satisfeitos com seu próprio trabalho (72%). De fato, o cronograma de trabalho híbrido fixo beneficia muitos profissionais. Os dados da The Harris Poll mostraram que 45% deles preferem um cronograma definido. "Sempre haverá um grupo de pessoas que prefere a certeza, sabendo onde vão estar todos os dias", afirma Matthew Davis, professor da Escola de Negócios da Universidade de Leeds, no Reino Unido. Para esta parcela de profissionais, o padrão híbrido fixo fornece flexibilidade e estrutura. Ele permite trabalhar de casa e programar seus dias remotos, usufruindo também dos benefícios do trabalho presencial, como a socialização e a colaboração. Mas esta delimitação, na verdade, é inerentemente bastante rígida. São exigências rigorosas sobre que dias devem ser presenciais — e os horários das jornadas de trabalho nesses dias. "As pessoas costumam reagir muito bem à sensação de que tiveram escolha e controle sobre sua vida em geral", observa Davis. "Para a maioria das pessoas, o cronograma fixo é a opção menos preferida de trabalho híbrido. Geralmente, quanto menos controle as pessoas têm, piores são seus resultados." É importante observar que os horários rígidos no escritório prejudicam particularmente determinados profissionais, segundo os especialistas. "Os que preferem trabalhar de forma mais flexível podem ter responsabilidades de cuidar da família — desproporcionalmente, as mulheres", afirma Brent Cassell, vice-presidente e consultor em prática de recursos humanos da empresa de consultoria Gartner, com sede na Virgínia, nos Estados Unidos. Além de pais e cuidadores, profissionais neurodivergentes ou com necessidades especiais também podem preferir a flexibilidade de trabalhar de casa. "Pessoas com dificuldades físicas ou cognitivas são menos propensas a querer se deslocar até o local de trabalho quando tudo está organizado para eles em casa", explica Oldman. E este pode ser um grande grupo de profissionais. "Na nossa pesquisa, 15% a 18% dos profissionais declaram ter algum tipo de deficiência que os impacta no trabalho", afirma. Especialistas temem que o cronograma híbrido mandatório prive parte dos profissionais da flexibilidade e da autonomia necessárias para que se desenvolvam. "Fala-se muito em diversidade, igualdade e inclusão — compreender a diversidade dos profissionais, reconhecer os talentos e fornecer soluções para esses funcionários", diz Oldman. "Com o cronograma híbrido fixo, corremos o risco de retroceder em relação à conscientização e atendimento às necessidades distintas de certos trabalhadores." Profissionais presos em esquemas de trabalho híbrido inflexíveis têm uma opção óbvia: procurar outro emprego que acomode melhor suas necessidades. "Os funcionários que passam mais tempo no escritório do que gostariam são mais propensos a procurar outro emprego", afirma Davis. "É como se o seu salário não fosse bom — você procura outro empregador que possa atender às suas expectativas." Mas, com as empresas adotando modelos híbridos fixos em um mercado de trabalho competitivo, nem todos os profissionais vão conseguir cargos que garantam a flexibilidade que procuram. "Até as companhias que foram mais flexíveis e adotaram um modelo híbrido livre, no qual os profissionais decidiam onde, quando e como trabalhar, agora estabeleceram uma estruturação maior", diz Davis. "Há tensões entre as escolhas individuais e a capacidade de coordenação das equipes para que o trabalho seja feito em conjunto." Ainda assim, Davis acredita que muitos chefes compreendem que os dias obrigatórios no escritório não atendem a todos — e que mesmo uma estrutura híbrida aparentemente rígida pode ter espaço para flexibilidade. "As empresas ainda estão testando e aprendendo seus modelos de trabalho híbrido", ele explica. "Emboras as estruturas tenham sido criadas para que os importantes dias presenciais valham a pena, muitos empregadores provavelmente ainda permitem liberdade individual e exceções. O cronograma híbrido fixo, na verdade, pode ser mais flexível." Nessas configurações emergentes, Oldman afirma que patrões e empregados podem negociar uma versão mais equilibrada do trabalho híbrido, combinando o melhor do trabalho presencial coletivo com a flexibilidade individual. Mas o ônus é do empregador. "Qualquer patrão precisa tomar decisões para o interesse geral da maioria e para o propósito da organização. E a maioria dos profissionais vai aceitar que são necessárias algumas regras", explica Oldman. "Mas os empregadores podem fazer mais para compreender o verdadeiro espectro da inclusão — e oferecer soluções ágeis e flexíveis para os funcionários, dentro de uma estrutura que atenda às duas partes." Para Davis, esses profissionais também podem reorganizar seu trabalho com seus superiores imediatos, definindo maior autonomia, com diferentes horários de entrada ou escolhendo onde sentar no escritório. "Pode haver conversas sobre decidir trabalhar em uma parte mais calma do escritório, adotar horários flexíveis ou sobre como realizar o trabalho", diz ele. "Pelo menos, isso oferece escolha aos funcionários, permitindo que eles reestruturem seu trabalho para maior flexibilidade." Mas muitos profissionais talvez nunca consigam a flexibilidade total de que desfrutaram trabalhando de casa, enquanto seguirem cronogramas híbridos fixos. A verdade é que, a menos que consigam encontrar uma função que ofereça a autonomia que desejam, eles vão precisar atender o empregador em algum ponto entre os dois extremos. "No mundo moderno, os espaços projetados para morar, muitas vezes, oferecem um suporte melhor aos profissionais intelectuais do que os projetados para trabalhar", afirma Oldman. "O resultado é que quase todos perdem com cronogramas híbridos fixos e obrigatórios. Na verdade, os empregadores deveriam ser quase tão flexíveis quanto os funcionários."
2023-07-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd15jm23q85o
sociedade
Como disputa sobre linguagem neutra virou guerra cultural no Brasil
Quando anunciou no Instagram no fim de junho que ainda estavam disponíveis "últimes entrades" para um show, o cantor Djavan sofreu duras críticas. Imaginando que o músico havia alterado o final das palavras para neutralizar o gênero delas, muitos o ridicularizaram nas redes sociais. "Mais fácil aprender japonês em braile", escreveu um comentarista, citando uma letra célebre do cantor alagoano. Alguns então esclareceram que aquele show de Djavan seria em Barcelona - e que o post fora escrito na língua local, o catalão. "Últimes entrades", em catalão, significa "últimas entradas". Era tarde demais. Djavan já havia sido arrastado para uma das grandes batalhas culturais do Brasil atual: a batalha em torno do que vem sendo descrito como "linguagem neutra", ou "linguagem não binária". Fim do Matérias recomendadas Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast trata de diferentes conflitos sociais que têm sido vividos pela sociedade brasileira em campos como gênero, religião e cultura. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há décadas, muitas mulheres denunciam o que consideram um viés masculino na linguagem. Esse movimento fez com que hoje muitos evitem termos masculinos para se referir a grupos de pessoas de gêneros distintos. Por exemplo: em vez de usar os termos "médicos" ou "professores" para se referir a coletivos de pessoas, essas pessoas optam pelas expressões "a classe médica" ou o "corpo docente". Mas a busca por uma linguagem mais neutra só se tornou realmente controversa quando foi associada a uma proposta de mudança mais radical - e que foi abraçada principalmente por parte da esquerda. A ideia era abrir espaço na língua para pessoas que se declaram não binárias, pois não se identificam como homens nem como mulheres, podendo também se identificar com as duas categorias ao mesmo tempo. Para isso, seria preciso alterar o final das palavras pra neutralizar o gênero delas. Alguns propuseram que essa metamorfose se desse pela substituição da letra “o” no final das palavras pela letra “x”, e outros sugeriram o emprego da @. Outros ainda defenderam o uso da letra “e” - que é a fórmula que tem prevalecido. Foi assim que surgiram termos como "todes" e "bem-vindes". Mas nem todos acharam as propostas bem-vindas. O site da Câmara dos Deputados lista 25 projetos de lei em tramitação que são contrários ao uso da linguagem neutra em escolas e/ou concursos públicos. Os primeiros projetos surgiram em 2020. Desde então, o interesse dos deputados pelo tema vem crescendo. Só nos seis primeiros meses de 2023 foram apresentados dez projetos relacionados ao assunto. A maioria das propostas é de deputados aliados de Jair Bolsonaro. “O conceito de 'linguagem neutra' é fruto da ideologia de gênero, a qual ensina que o sexo biológico não é o suficiente para definir a sexualidade humana. Sendo que meninos podem ser meninas e meninas podem ser meninos", diz a justificativa de um projeto de lei contra a linguagem neutra da deputada federal Dani Cunha, do União Brasil do Rio de Janeiro. A deputada diz ainda que, se a linguagem neutra for ensinada nas escolas, "estaria se dizendo para os jovens que o gênero é uma abstração social e que esse jovem pode escolher o que ele quer ser à mercê das próprias vontades". Os argumentos para o projeto de lei mostram como o debate sobre a linguagem neutra se relaciona com outra batalha cultural em curso: o embate entre gênero e sexo como o que determina oficialmente se alguém é um homem ou uma mulher. A partir de 1960, com o surgimento da segunda onda do feminismo, alguns grupos começam a questionar as noções tradicionais de gênero e sexo. Segundo os adeptos dessas ideias, o gênero é uma construção social e deve ter primazia sobre a biologia. Para esse grupo, gênero é algo relacionado a um senso pessoal de identidade: pode ter a ver com as roupas que a pessoa gosta de vestir, com os trejeitos que usa para se expressar ou outros códigos sociais que são normalmente associados a um gênero ou outro. É uma visão que gera discussões acaloradas entre as próprias feministas e que se choca com a noção histórica de que o gênero é determinado pelo sexo biológico e pela composição dos cromossomos de cada um. Numa audiência em 2021 que debateu outro projeto de lei contra a linguagem neutra em materiais didáticos em escolas, proposto pela deputada Chris Tonietto (PL-RJ), o embate entre gênero e sexo também foi evocado. Presente na audiência, o escritor Sidney Luiz Silveira da Costa disse que o projeto de lei em discussão buscava impedir pessoas de "torcer a língua para fazê-la dizer o que ela não diz naturalmente porque A, B ou C têm crises de identidade cromossômica". "Ninguém aqui está defendendo a imposição de nada, e sim apenas que a natureza siga seu curso, a natureza da língua", prosseguiu. Sidney Silveira é um dos mais ativos integrantes do movimento contrário à linguagem neutra. Nos últimos dois anos, ele foi convidado a falar sobre o tema nas Câmaras Municipais de Belo Horizonte e de Niterói, na Assembleia Legislativa do Rio e na Câmara dos Deputados em Brasília. Ele já foi descrito como um “intelectual católico” por Olavo de Carvalho, um dos gurus da direita brasileira. E, assim como Olavo, Silveira é monarquista, começou a carreira escrevendo para jornais e dá cursos sobre filosofia mesmo sem ter formação acadêmica na área. O escritor é formado em Comunicação e trabalhou vários anos como jornalista, mas hoje se define em sua página no Instagram como um “estudioso da escolástica”, uma corrente filosófica da Idade Média. Contatado pelo podcast Brasil Partido com um pedido de entrevista, ele não respondeu até a veiculação do episódio. Outra pessoa engajada no movimento contra a linguagem neutra é Tânia Manzur, professora de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Ela também já participou de audiências sobre o tema no Congresso. Manzur explica ao podcast Brasil Partido por que se envolveu com o assunto. "Porque a língua portuguesa é um patrimônio e eu vejo como uma necessidade de ser preservada das modas." Ela faz uma crítica bastante citada por opositores da linguagem neutra: a de que ela criaria dificuldades de comunicação para muitas pessoas. "Se a gente parte do pressuposto de que a linguagem neutra estaria incluindo as pessoas do grupo LGBTQIA+, eles, pela contagem mais recente, perfariam algo em torno de 3% da população brasileira. Mas o que essa linguagem neutra faria com os surdos que fazem leitura labial? Excluiria, e os surdos correspondem a mais ou menos cinco 5% da população brasileira", afirma. É frequente a queixa de que a linguagem neutra prejudicaria não só surdos que fazem leitura labial, mas também cegos que usam aplicativos de leitura e disléxicos, que são pessoas com dificuldade pra ler. O movimento pró-linguagem neutra reconheceu a pertinência dessas críticas no caso de cegos e disléxicos. Por isso, muitos ativistas hoje defendem que se use a letra “e” pra neutralizar o gênero das palavras, e não a letra “x” nem a @, que podem criar dificuldades na leitura. No caso dos surdos, a coisa é mais complexa. Há nas redes sociais vários surdos que expressam opiniões contrárias à linguagem neutra. Algumas dessas pessoas argumentam que a linguagem neutra realmente criaria problemas para os surdos oralizados - que são aqueles que leem lábios e fazem oralização pra se comunicar. Mas há divergências. Leo Viturinno, que é surdo, gay e professor de Libras, a Língua Brasileira de Sinais, diz ao podcast que surdos oralizados podem se adaptar perfeitamente à linguagem neutra, e que opositores dessa causa podem estar usando os surdos em seu ativismo. Pra ele, esses críticos deveriam expor suas opiniões sem mencionar pessoas com deficiência, porque não falam em nome delas. Se hoje predominam no Congresso propostas contrárias à linguagem neutra, em partes do Executivo e do Judiciário parece existir uma abertura maior à causa. No governo federal, alguns ministérios têm usado o termo "todes" na abertura de discursos e eventos oficiais. "Boa tarde a todas, todos e 'todes'", afirmou o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, na cerimônia em que assumiu o posto, em janeiro. O termo "todes" também já foi citado em eventos dos ministérios da Fazenda, Igualdade Racial e Direitos Humanos, entre outros. E, no Judiciário, uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal pôs um freio às iniciativas legislativas contrárias à linguagem neutra. Em fevereiro, a corte considerou inconstitucional uma lei contra a linguagem neutra aprovada pela Assembleia Legislativa de Rondônia. A lei proibia as escolas de citar a linguagem neutra na grade curricular e em materiais didáticos. Ou seja, não era apenas uma questão de evitar que professores dissessem “bom dia a 'todes'”, mas de impedir que o tema fosse mencionado aos alunos. O relator da ação, ministro Edson Fachin, decidiu que a lei era inconstitucional porque legislar sobre normas gerais de ensino é uma atribuição da União, e não de Estados. Fachin também disse que proibir a linguagem neutra violaria a liberdade de expressão nas escolas e atentaria contra o direito à igualdade sem discriminações. O ministro também disse que “o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade e a expressão de gênero”, e que cabe ao Estado reconhecer a identidade de gênero manifestada por cada pessoa. Engana-se quem pensa que, entre os linguistas, há uma posição unânime sobre a linguagem neutra. Se parte da categoria rejeita a causa, há também quem simpatize com ela na academia. Cecilia Farias, que faz doutorado em Linguística na USP, pertence ao segundo grupo. Pesquisadora sênior do Museu da Língua Portuguesa, ela diz acreditar que o tema mobilize tantas paixões por "mexer com as certezas das pessoas". Ela se refere principalmente a pessoas "que têm uma visão que separa o mundo por gênero, e uma visão biológica de gênero muito forte também, que atribui o papel masculino e o papel feminino como se fosse algo inerente àquela constituição física, sem pensar no quanto isso é social, na verdade". "Na hora que você questiona essas certezas, essas estruturas que as pessoas tomam há séculos como fundantes do mundo... Não custa nada falar um pronome tal, uma palavra com 'e' no final. Não vai cair minha língua, mas desestabiliza uma visão de mundo", opina. Farias rejeita o argumento de que a linguagem neutra seria uma ameaça ao idioma. "Uma língua que não muda é uma língua que já está morta. Qualquer língua que continuar sendo falada, ela vai continuar mudando." "Então, uma defesa de preservação da língua, de manter o nosso legado, é balela. É uma justificativa para não querer que o mundo mude, de certa forma." A BBC procurou o Ministério da Educação para saber a posição da pasta sobre o ensino da linguagem neutra e se existe algum levantamento que meça o quanto - e como - o tema tem sido abordado em escolas brasileiras. O diretor de Políticas e Diretrizes da Educação Integral Básica do MEC, Alexsandro do Nascimento Santos, afirmou ao podcast Brasil Partido que o ministério não tem nenhum levantamento medindo o uso da linguagem neutra nas escolas. Disse também que todas as diretrizes sobre o ensino da língua portuguesa nas escolas brasileiras foram estabelecidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que teve suas últimas versões aprovadas em 2017 e 2018, no governo Michel Temer. Segundo Santos, a BNCC orienta que os currículos da educação básica precisam discutir com os estudantes as diferentes formas de uso da língua. "O fenômeno social da linguagem neutra é mais um desses fenômenos que se manifestam nos usos da língua", diz o diretor do MEC. "Esses fenômenos precisam ser estudados na escola como objetos de conhecimento de uma ciência, que é a linguística (...) O que não significa dizer que haverá qualquer tipo de orientação sobre se este ou aquele fenômeno linguístico é mais correto ou menos correto", afirmou. Embora considere que os professores de português devam discutir a linguagem neutra com os alunos, o diretor do MEC defende que o ensino da língua nas escolas priorize a norma culta. "Porque talvez, para muitos estudantes, esse será o único lugar em que ele terá acesso a esse registro de variação linguística", justificou. Em vários países, o ativismo pró-linguagem neutra tem sido encabeçado pelo movimento queer. Queer é um termo que abarca várias identidades sexuais e de gênero. Por exemplo: um homem que sente atração por homens e mulheres mas só desenvolve relacionamentos com outros homens pode escolher se definir como queer por sentir que os termos gay ou bissexual não se aplicam fielmente a ele. Mas há vários outros motivos que podem levar alguém a se identificar como queer. Muitos nesse movimento acreditam que o gênero de alguém é construído no dia a dia pela maneira como nos comportamos, vestimos, gesticulamos e, principalmente, pela linguagem que nós usamos. Por esse raciocínio, quando chamamos uma pessoa de homem ou mulher, nós estaríamos ajudando a torná-la um homem ou uma mulher. Por isso que a linguagem é um ponto tão importante pro movimento queer: o movimento defende ajustes na língua para que pessoas que não se veem nem como homens nem como mulheres não sejam forçadas a adotar uma dessas identidades. Esse é um tema que mobiliza Pri Bertucci desde o início da década passada. Naquela época, Bertucci - que é uma pessoa não binária e se define como pertencente ao "gênero queer" - tentava adaptar para o português brasileiro propostas que o movimento queer dos Estados Unidos vinha fazendo para a língua inglesa. Bertucci então elaborou com a psicóloga Andrea Zanella o que chamaram de “Manifesto pela inclusão do gênero não binário na língua portuguesa”, publicado em 2015. O manifesto tinha duas propostas principais: a invenção do pronome "ile" para quem não se sentisse representado pelos pronomes “ele” e “ela”, e a substituição da letra “o” no final das palavras pela letra “e” como alternativa ao masculino genérico. "Meu desejo era provocar esse sistema linguístico e fazer uma marcação muito específica da existência de pessoas não binárias", diz Bertucci ao podcast Brasil Partido. "O desafio é como é que a gente tira as pessoas da zona de conforto sem perder os interlocutores nessa conversa", afirma. Mas a estratégia tem funcionado? Um simples “todes” pode gerar uma enxurrada de críticas nas redes sociais, e muita gente argumenta que a pauta não seria prioritária num país com tantas mazelas sociais. Além disso, políticos populares na direita têm usado o tema para mobilizar seus apoiadores. É o caso do deputado federal mais votado última eleição para o Congresso - o bolsonarista Nikolas Ferreira (PL-MG) -, autor de um dos vários projetos contra a linguagem neutra apresentados em casas legislativas em anos recentes. Será que o ativismo pró-linguagem neutra não poderia estar fortalecendo o campo político contrário à causa? "Eu acho que não fortalece", diz Pri Bertucci. "Isso é uma pauta da humanidade, não é uma pauta da direita ou da esquerda." Bertucci afirma que, quando começou a tratar do tema, 12 anos atrás, "não tinha quase ninguém querendo me ouvir". "Esse nível de crítica que a gente vê hoje, lá atrás era muito maior." Segundo Bertucci, seu movimento tem tido sucesso e busca os seguintes objetivos: "Em primeiro lugar, reconhecimento, inclusão. Eu quero fazer parte da sociedade, eu quero poder circular, pegar um voo, ir ao médico e ser 'reconhecide' por quem eu sou". "Não havíamos, enquanto sociedade, parado para pensar que essas pessoas existem, porque a colonização apagou as identidades não binárias dessa conversa." Quando cita a colonização, Bertucci expõe outra bandeira cara a uma parte do movimento queer. Para essas pessoas, a luta pra transformar a linguagem é parte de uma batalha bem maior: uma batalha contra leituras do mundo que o movimento considera binárias, e contra conceitos e convenções culturais que, segundo eles, se espalharam pelo planeta com o colonialismo. "Minha proposta é que sair da binaridade não só da questão linguística e de gênero vai abrir um novo portal de consciência para que a gente possa perceber o que está para além dessa polarização", afirma. Bertucci afirma que, hoje, boa parte da sociedade está presa a polarizações do tipo "preto ou branco, homem ou mulher, direita ou esquerda". "Mas existem outras camadas aqui, entre uma coisa e outra, que precisam ser examinadas. E, se a gente não parar e entender onde a gente está dentro desses processos, vai ficar muito difícil a gente criar uma sociedade um pouco mais sustentável, inclusiva e evoluída", defende.
2023-07-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw4v4dnm09lo
sociedade
As pessoas que sentem culpa quando não estão trabalhando
Para muitas pessoas, uma grande vantagem de ser autônomo é ter controle sobre a administração do próprio tempo. Muitas vezes, no entanto, essa mesma liberdade traz a sensação de culpa pelo tempo passado sem trabalhar — o tempo de lazer que os profissionais autônomos, teoricamente, poderiam usar para ganhar dinheiro. O resultado é que os autônomos podem ter propensão a estender as horas de trabalho e relaxar os limites entre o trabalho e a vida pessoal, com a sensação permanente de que nunca estão fazendo o suficiente. Sei por experiência própria. Enquanto escrevo, neste momento, ouço minha família do lado de fora, aproveitando o sol da primavera de um fim de semana prolongado em Vermont, nos Estados Unidos. Hoje é sábado e, para reduzir minha culpa por não ter aberto o computador nos últimos dois dias, estou no banco de passageiros da nossa van, trabalhando. Fim do Matérias recomendadas Sou jornalista freelancer em tempo integral desde que me mudei para a zona rural da Pensilvânia (EUA), em 2015. Trabalhar por conta própria me ajudou a ganhar mais dinheiro com um trabalho gratificante, pelo qual sou apaixonada. Mas também me transformou em workaholic, o que me faz estender o horário de trabalho nos fins de semana e retardar minha hora de dormir para poder eliminar mais um item da lista de tarefas Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Minha tendência para o excesso de trabalho levada pela culpa é algo comum entre os profissionais autônomos. Shannon Loys é designer gráfica autônoma e mora na Carolina do Norte (EUA). Ela tem 35 anos, e conta que sente mais culpa quando faz algo prazeroso. “Acontece quando você faz alguma coisa que não parece justificável”, afirma ela. “Algo apenas por prazer provavelmente é o maior desencadeador. Não sinto culpa quando estou dobrando roupas; sinto quando estou tentando me dedicar a um hobby.” Esta é uma sensação incômoda que pode rapidamente arruinar um momento agradável para todas as pessoas. Um lado importante de ter sucesso como seu próprio patrão é saber o valor das suas horas. A culpa se acumula, segundo Loys, porque, quando você passa o tempo fazendo algo sem receber, não consegue evitar a sensação de estar perdendo dinheiro. “Você constrói o seu negócio sabendo muito bem o que o seu tempo vale em dinheiro”, explica ela. “É muito difícil desligar quando você parte para qualquer outro setor da sua vida.” “Eu faço tricô, mas não consigo lembrar a última vez em que peguei meu projeto de tricô, porque eu poderia passar três horas tricotando, mas também tenho pleno conhecimento de quanto dinheiro eu poderia ganhar em três horas”, ela conta. “Sempre que você preferir um hobby em vez do trabalho, você está decidindo não ganhar dinheiro.” Pesquisadores canadenses descobriram que pessoas que pensam todo o tempo em termos de dinheiro são mais impacientes ao usar parte do seu tempo para fazer algo que deveria ser prazeroso. O resultado é que o excesso de trabalho e o consequente burnout dos profissionais autônomos pode ser um imenso problema. É claro que muitos profissionais que trabalham em um emprego fixo, em tempo integral, também trabalham demais. E, quando a quantidade maior de horas trabalhadas representa aumento direto de renda, diferentemente da maioria dos funcionários assalariados, o equilíbrio entre o trabalho e o lazer fica ainda mais complicado. “Para os profissionais autônomos e freelancers, esta pressão pode ser ainda mais agravada”, afirma o especialista em carreiras Toni Frana, do site FlexJobs. “Como eles, muitas vezes, não conseguem depender de uma renda estável ou têm medo de perder projetos para possíveis concorrentes, é comum se sentir culpado ao sair do trabalho.” As pesquisas demonstram algo que talvez não seja surpreendente: desligar a mente do trabalho traz imensos benefícios para controlar o estresse e melhorar a saúde mental. Mas, infelizmente para as pessoas autônomas, alguns desses profissionais relatam que é muito mais fácil falar do que fazer, o que pode ser o catalisador para o burnout. A definição de limites é um desafio contínuo para Loys. Ela sempre se lembra — às vezes, em voz alta — da importância de ter um tempo longe do trabalho. “Eu realmente digo em voz alta, para mim e para o meu marido, ‘está tudo bem em tirar um dia de folga. Está tudo bem em não estar trabalhando agora.’ Acho que digo em voz alta porque, um dia, talvez eu realmente consiga acreditar nisso”, ela conta. Existem boas razões para que muitas pessoas continuem trabalhando desta forma, mesmo que um trabalho tradicional possa ser mais fácil em muitos aspectos. Mas muitos profissionais autônomos irão observar a ironia desse paradoxo: trabalhar no seu próprio tempo oferece liberdade e flexibilidade, mas deixa você incapaz de aproveitar o tempo livre se tentar usar aquele tempo para qualquer coisa que não seja trabalho. “Sim, você é o seu próprio patrão”, comenta Loys, “mas pode ser um patrão terrível.”
2023-07-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pld156vz5o
sociedade
O plano de incendiar Wimbledon em protesto pelo voto feminino
Em uma noite fria de fevereiro em Londres, uma mulher rasteja furtivamente, disfarçada na escuridão, em direção às bancadas vazias e quadras de grama impecáveis de Wimbledon. Ela carrega na bolsa cinco latas de óleo de parafina, um pacote de acendedores de fogo, um pacote de raspas de madeira e duas caixas de fósforos. Então ela escolhe um lugar, coloca a bolsa sobre a grama e prepara os ingredientes para destruir um dos espaços esportivos mais famosos do Reino Unido. Este foi apenas um dos incidentes em um ano de protestos nos principais eventos esportivos — a última tentativa de conquistar as mentes e os corações do público sobre uma questão que divide o país e provoca fúria nos dois lados da discórdia. O ano em questão é 1913. E há mais um objeto na bolsa da mulher: um pedaço de papel. Nele, está escrito: “não haverá paz até que as mulheres consigam votar”. Fim do Matérias recomendadas “As suffragettes [defensoras do direito de voto às mulheres] são a maior organização terrorista que já operou em solo britânico, elas não têm paralelo”, afirma a historiadora Fern Riddell. “Elas estavam em outra escala em relação a qualquer outra coisa”, prossegue ela. “Houve centenas e centenas de ataques, com centenas de pessoas presas, e ninguém comenta este fato.” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na verdade, a causa das suffragettes é mais recordada do que os métodos utilizados para defendê-la. No início dos anos 1800, a ideia de que as mulheres tivessem direito a voto no Reino Unido era absolutamente estranha para muitas pessoas. Em 1831, apenas uma minúscula parte da sociedade britânica — cerca de 2% da população — podia participar das eleições parlamentares. No ano seguinte, a Lei da Reforma ampliou o direito ao voto entre os homens, mas excluiu explicitamente as mulheres da cabine de votação. No início do século 20, depois de 60 anos de protestos pacíficos, distribuição de panfletos e apresentação de educados pedidos ao governo para dar às mulheres o direito ao voto, o cansaço e a frustração entre muitas participantes dos movimentos pelo sufrágio feminino eram cada vez maiores. “Havia muitas pessoas que não apoiavam o voto das mulheres — é uma ideia muito complicada para muitas pessoas, por mais bizarro que possa parecer hoje em dia”, afirma Riddell, autora do livro Death in Ten Minutes (“A morte em 10 minutos”, em tradução livre), uma biografia da suffragette Kitty Marion (1871-1944). “A ideia de que as mulheres tivessem direito a voto não tinha grande apoio”, diz. As suffragettes então decidiram que precisavam aumentar suas apostas. Quando as pessoas pensam nas suffragettes, provavelmente vêm à mente imagens de passeatas e protestos com bandeiras, grandes reuniões com líderes do movimento discursando para multidões inflamadas ou mulheres amarradas aos trilhos, recusando-se a sair dali. E, até cerca de 1909, era o que as suffragettes faziam no Reino Unido. Até que o movimento mudou sua forma de ação. Em 1903, foi formada a União Social e Política das Mulheres (WSPU, na sigla em inglês), liderada por Emmeline Pankhurst (1858-1928). Seu lema era “ações, não palavras”. A organização percebeu rapidamente, depois de esgotar outras formas de manifestação, que a violência era mais convincente. Entre 1912 e 1914, elas eram a maior ameaça à paz doméstica do Reino Unido, com células espalhadas por todo o país. Elas realizaram centenas de ataques, com o propósito de causar o máximo de destruição e prejuízo possível à vida diária. Pankhurst afirmava que o objetivo da WSPU era “tornar a Inglaterra e todos os setores da vida inglesa inseguros e desprotegidos”, criando um “reino do terror”. No fim de 1912, 240 pessoas haviam sido presas por atividades militantes das suffragettes. As ações diretas incluíam lançar bombas sobre as casas de parlamentares, colocar explosivos em caixas de correio e realizar ataques incendiários em locais públicos, como trens e igrejas. Os alvos eram cuidadosamente selecionados, com base na sua importância para a vida britânica. Por isso, não é coincidência que alguns dos objetivos preferidos delas fossem também os espaços esportivos. “O esporte é uma parte muito importante da vida cultural inglesa”, explica Riddell. “Se você quiser dirigir as coisas para levar sua causa para as pessoas comuns, é claro que você irá atingir o esporte.” Campos de golfe e hipódromos foram os mais atingidos pelos ataques, porque ficavam frequentemente vazios, eram em grande parte desprotegidos e, como outras instalações esportivas, eram espaços dominados pelos homens. Os membros dos clubes de golfe apareciam frequentemente para jogar pela manhã e descobriam que intrusos haviam passado a noite arrancando a grama, lançando ácido sobre a área verde e escavando no chão as letras VW (sigla de Votes for Women, ou “Votos para as Mulheres”, em inglês). Um incêndio no hipódromo de Ayr, na Escócia, causou prejuízos estimados, na época, em duas mil libras (cerca de 190 mil libras, ou R$ 1,2 milhão, em valores atuais). Já o hipódromo de Hurst Park, perto de Londres, foi incendiado por Kitty Marion, influente integrante do segmento da WSPU que ficaria conhecido como “jovens sangues quentes”, por praticar ações violentas e diretas. As bancadas eram um alvo popular de ataques incendiários nos espaços esportivos. Elas eram grandes e o espetáculo das chamas era certeza de publicidade. Um plano de incendiar a tribuna do estádio Crystal Palace, em Londres, na véspera da final da Copa da Inglaterra foi frustrado em 1913. Mas a tribuna do estádio Manor Ground em Plumstead, também em Londres, foi atacada, causando danos no valor de 1 mil libras (cerca de 95 mil libras, ou R$ 600 mil, em valores atuais). O estádio era a casa do Woolwich Arsenal — como se chamava, na época, o Arsenal F.C. Muitos dos incidentes foram esquecidos ou perdidos nos anais da história, mas um deles permaneceu como marco histórico, com final trágico. Em junho de 1913, durante o Derby de Epsom, na Inglaterra, Emily Davison (1872-1913) ficou em pé, em frente ao cavalo do rei George 5º. Acredita-se que sua intenção fosse adornar o animal com uma bandeira das suffragettes como forma de manifestação — e, com isso, naturalmente chegar à primeira página dos jornais do dia seguinte. Mas Davison foi ferida pelo cavalo e morreu em seguida. A rainha Mary estava sentada com o rei na tribuna de Epsom. Naquela noite, ela descreveu Davison como uma “mulher horrível” no seu diário. Mas o ato trágico da suffragette estabeleceu o caminho do progresso. Davison esteve em Wimbledon um dia antes da sua visita fatal ao Derby de Epsom. Acredita-se que ela tenha visitado sua velha amiga e colega suffragette Rose Lamartine Yates (1875-1954) — a dinâmica líder da filial da WSPU em Wimbledon — para pegar bandeiras com os dizeres “Votos para as Mulheres” que seriam distribuídas no hipódromo. Wimbledon — o subúrbio no sudoeste de Londres, não o famoso torneio de tênis — havia se tornado um centro de atividade das suffragettes, muito antes do ataque à sede do torneio de tênis, o All England Club. Yates desafiou as tentativas das autoridades de proibir suas aparições públicas. Ela discursava todos os domingos no Wimbledon Common, um espaço ao ar livre, atraindo multidões que chegavam a 20 mil pessoas. Em março de 1913, um desses eventos terminou em tumulto, depois que 300 policiais tentaram evitar que as mulheres se reunissem. Na semana seguinte, um protesto contrário às suffragettes usou uma sirene e gás tóxico sulfeto de hidrogênio para tentar dispersar as manifestantes. “Muitos de vocês parecem pensar que estas reuniões são proibidas”, disse Yates a seus detratores em abril daquele ano. “Mas, até que tenhamos conhecimento desse fato, não privaremos vocês do prazer de nos ouvir.” Yates precisou do apoio da cavalaria e de um cordão policial para voltar para casa, rodeada por uma multidão de manifestantes contra as suffragettes. Uma organização local chamada “Liga da Retaliação” prometeu que “todo ato de violência perpetrado por aquelas mulheres será respondido por ataques às casas ou propriedades particulares de militantes suffragettes”. Já a revista feminina semanal The Gentlewoman rotulou as manifestantes como “um grupo de mulheres extremamente irresponsáveis”. Winston Churchill (1874-1965), secretário de Assuntos Internos entre 1910 e 1911, foi citado descrevendo as suffragettes como “um bando de mulheres tolas, neuróticas e histéricas”. A polícia tratava a campanha do grupo como uma empreitada terrorista, mas tinha dificuldade para mantê-las sob qualquer tipo de controle. Eles tentavam desesperadamente identificar e deter membros importantes do grupo sob suspeita de lançar bombas e realizar ataques incendiários. Algumas das mulheres presas entravam em greve de fome para dar continuidade aos seus protestos e eram alimentadas à força. A própria Yates passou um mês no presídio feminino de Holloway, em Londres, por obstrução das vias públicas durante uma passeata das suffragettes em Westminster. Ela promoveu eventos comemorando a libertação de outras prisioneiras pela causa. Embora a WSPU de Wimbledon ainda promovesse festivais de verão, com a venda de roupas de crianças feitas à mão para levantar dinheiro, as ações mais diretas da campanha afastaram parte do público. “Quando você ataca e prejudica a vida das pessoas comuns, você perde o apoio”, explica Riddell. Segundo ela, “quando as suffragettes começaram a bombardear vagões de trem, espaços esportivos e locais públicos aonde as pessoas vão, esperando passar um tempo agradável com a família, o apoio do público enfraquece”. Mas a mensagem do grupo ainda era clara: “não haverá paz até que as mulheres consigam votar”. Mas voltemos àquela noite de fevereiro de 1913 no All England Club e à mulher que se preparava para incendiar uma das bancadas da quadra central de Wimbledon. Será que ela teve sucesso? Resumindo a história, não. O jardineiro responsável pela grama, Joseph Parsons, encontrou a mulher. Ela tentou fugir correndo, mas caiu. Ele a pegou e denunciou à polícia antes que qualquer dano acontecesse. O ataque foi frustrado. A suffragette desconhecida falou apenas uma vez, durante a acusação na delegacia. Ela disse: “protesto contra a acusação. Protesto por ser detida aqui.” Ela compareceu ao tribunal, sem dar detalhes de si própria — nem nome, nem idade, nem local de nascimento. Sua identidade é desconhecida até hoje. Os jornais da época calcularam que a mulher tivesse cerca de 35 anos. Ela foi condenada a dois meses de prisão. A declaração condenatória de Joseph Parsons foi suficiente para selar sua sentença. Seu silêncio no tribunal levou alguns jornais a apelidá-la de “a suffragette silenciosa”. Mas certamente alguém sabia quem ela era. Alguém como Rose Yates. “Se Rose não estava conduzindo esses atos ela própria, ela certamente saberia quem era a pessoa sendo enviada pela liderança da WSPU até o seu território, para conduzir esses ataques”, afirma Riddell. “Ou teria sido alguém que ela conhecia pessoalmente.” A identidade da mulher misteriosa provavelmente nunca será descoberta. Mas seu plano de incendiar Wimbledon foi um dos incidentes de uma vasta operação que durou muitos anos e dominou os debates. Com a Primeira Guerra Mundial, o lançamento de bombas por manifestantes foi colocado de lado, para tristeza de algumas participantes da WSPU, incluindo Yates. Mas as mulheres queriam mostrar que podiam ser úteis e razoáveis, colaborando com o esforço de guerra, como parte da evolução da sua estratégia na luta contra as desigualdades. Mulheres com mais de 30 anos receberam o direito ao voto após a guerra, em 1918. Mas as mulheres britânicas somente conquistaram o direito ao voto nas mesmas condições que os homens — com pelo menos 21 anos de idade — em 1928. “O motivo por que as mulheres votam hoje em dia, em parte, é devido às bombas”, afirma Fern Riddell. “Com o término da Primeira Guerra Mundial, havia um risco muito claro de que as suffragettes começassem novamente sua campanha com bombas”, explica ela. “O governo e a Polícia Metropolitana, que não haviam conseguido impedir as bombas, não conseguia entender quem estava fazendo os explosivos, nem de onde eles vinham.” “Eles eram incapazes de lidar com aquilo, estavam apavorados e o uso de bombas iria começar de novo, em uma sociedade completamente traumatizada pela guerra. Não acho que teríamos conseguido o voto sem as bombas, sem o início da guerra e sem a ameaça do retorno das bombas.” Pouco depois da guerra, o All England Club também pôs em prática algumas mudanças. Ele se mudou da sua sede na Worple Road para o local que ocupa até hoje, na Church Road, em Wimbledon. A razão da mudança foi o aumento do público. E uma das principais atrações do torneio, na época, era justamente a tenista francesa Suzanne Lenglen (1899-1938), a primeira mulher número um do mundo, seis vezes campeã em Wimbledon e, talvez, a primeira mulher superestrela do esporte. A “suffragette silenciosa” pode não ter tido sucesso naquela noite de fevereiro de 1913, mas trouxe progressos fora das quadras. Ela podia estar no lado contrário da lei, mas certamente estava no lado certo da história.
2023-07-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c97n86yrg2go
sociedade
Sem água e eletricidade e com risco de incêndio: como é viver no crescente número de motorhomes nas ruas de Los Angeles
Logo abaixo das luxuosas casas em Hollywood Hills e em frente ao estúdio da Warner Bros. em Burbank, no estado da Califórnia, nos Estados Unidos, dezenas de motorhomes e trailers podem ser vistos lado a lado na avenida Forest Lawn Drive. Trata-se de um dos muitos parques de trailers improvisados em Los Angeles, onde um número crescente de pessoas vive em vans e motorhomes sem acesso à água corrente ou à eletricidade. Algumas delas são donas de seus motorhomes. Mas um número crescente paga aluguel — algo entre US$ 400 e US$ 1 mil (R$ 1.940 e R$ 4.850) por mês — para os proprietários que os anunciam na internet. Muitos desses veículos estão inoperantes e alguns nem sequer têm motores. Apesar disso, continuam sendo uma alternativa mais acessível à moradia em apartamentos, já que US$ 2 mil (R$ 9,7 mil) por mês geralmente não são suficientes para alugar sequer uma quitinete em Los Angeles. Esses motorhomes ficam estacionados por semanas a fio ao lado de placas de "proibido estacionar" — mas raramente são rebocados e apenas ocasionalmente são multados. Fim do Matérias recomendadas A cidade não tem espaço para abrigá-los, mesmo que houvesse guinchos suficientes. Mas, agora, Los Angeles está considerando reprimir esse tipo de moradia em meio a crescentes reclamações sobre esgoto, danos ambientais e uma série de incêndios nos estacionamentos de trailers. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É terrível", diz Liberty Justice, uma empresária e youtuber que aluga um motorhome em Forest Lawn Drive. "Essa situação não pode continuar — preciso ganhar mais dinheiro." Justice alega que o proprietário de seu trailer a rebocou para vários bairros para evitar multas de estacionamento e se sente "sem voz". Basta buscar a hashtag #vanlife nas redes sociais para ver dezenas de pessoas bonitas viajando pelo mundo e vivendo o que parece ser uma vida fabulosa e fotogênica dentro de um motorhome. Mas a realidade está longe de ser glamorosa, dizem os moradores dos trailers. Para tomar banho, alguns usam paradas de caminhões, academias, casas de amigos ou a praia. Um homem disse que apenas joga água sobre o corpo na calçada. Muitas pessoas usam a pia do banheiro público em um parque do outro lado da rua dos estúdios da Universal, onde as crianças jogam beisebol nos fins de semana. Não se pode chamar a polícia para reclamar que seus vizinhos jogam lixo ou usam drogas. Justice mantém sua área limpa e arrumada e usa geradores solares para conseguir acesso à internet e poder trabalhar. Mas o maior perigo, diz ela, é o trânsito, já que o trailer está estacionado em uma via movimentada. "Estava na minha corrida matinal e fui atropelada por um caminhão", diz ela. "Tento me manter animada, mas às vezes é difícil não ficar com raiva." Segundo o último monitoramento de sem-teto da cidade, há cerca de 6,5 mil pessoas morando em veículos recreativos em Los Angeles — um aumento de 40% desde 2018 —, e esse crescimento tem estado visível em toda a cidade desde a pandemia. As autoridades da cidade e do condado de Los Angeles vêm trabalhando para dar casa aos sem-teto em meio a uma crescente população sem moradia. Desde que Karen Bass foi eleita prefeita em novembro, mais de 14 mil pessoas foram retiradas das ruas por meio de vários programas. Mas muitas dessas pessoas viviam em barracas nas calçadas, lidando com um inverno excepcionalmente frio e úmido. As pessoas em motorhomes muitas vezes não se consideram sem-teto, e a cidade tem dificuldade em persuadir as pessoas a trocar uma van ou um motorhome em troca de uma alternativa de moradia que pode não ser permanente. "Você será despejado em 30 dias e depois?", pergunta um homem do lado de fora do motorhome que ele aluga por US$ 500 (R$ 2,4 mil) por mês em Venice Beach. Ele não acredita que as ofertas de motéis ou abrigos da cidade vão durar e disse que alugar um trailer é muito concorrido. Traci Park, vereadora da cidade, quer reprimir os proprietários que não são obrigados a atender aos mesmos padrões de proprietários regulares, chamando-os de "sem escrúpulos". "Aqui na cidade de Los Angeles, não temos nenhuma supervisão ou regulamentação dessa prática comercial", diz ela. Park apresentou uma moção para começar a criar regras para as pessoas que alugam veículos para moradia. Os proprietários argumentam que estão oferecendo um serviço que a cidade não pôde prover. Um homem — que não quis se identificar — disse ser dono de oito trailers. "Isso ajuda as pessoas", diz ele. "Aonde mais elas vão?" As calçadas ao redor dos trailers estão cheias de bicicletas, cachorros, churrasqueiras e cadeiras, alguns dejetos humanos e alguns jardins bem cuidados. Vizinhos reclamam da bagunça e culpam moradores de trailers pela criminalidade nos bairros. Muitos motorhomes não são seguros. Moradores morreram em incêndios iniciados em trailers. Dejetos humanos e incêndios contaminaram os parques públicos, o que tem frustrado cada vez mais os moradores de Los Angeles. Scott Culbertson comanda a ONG Friends of the Ballona Wetlands — em defesa do último pântano litorâneo da cidade. É o lar de centenas de pássaros, plantas nativas e um dos maiores acampamentos de motorhome da cidade. Um incêndio destruiu grande parte da área há alguns anos, e, nos últimos meses, moradores de vans cortaram árvores para queimar para se aquecer e cozinhar. As pessoas encontram lixo, esgoto e até caixas eletrônicos jogados na água nos pântanos, e todas as placas e cercas foram desfiguradas ou queimadas, diz ele. Alguns têm muito medo de andar nos pântanos perto do parque de trailers e já não levam crianças a essa área porque não é seguro, acrescenta. "Não quero desmerecer o problema dos sem-teto em Los Angeles, mas esta é uma questão ambiental", diz Culbertson. Por outro lado, muitos dizem que têm poucas outras opções. Richard mora em seu motorhome há dois anos — estacionado a alguns quilômetros da casa onde cresceu em Burbank. Antes disso, ele morou em seu caminhão por um ano. Tecnicamente, Richard também é um "proprietário de trailers" — ele aluga o motorhome de seu primo por US$ 400 (R$ 1,94 mil) por mês enquanto ele está preso. "É muito caro morar em qualquer outro lugar", diz ele, acrescentando que trabalha na construção quando pode e está economizando para se mudar para algum lugar mais barato, como Texas ou Arizona.
2023-07-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5q1gv9389o
sociedade
Os 6 melhores alimentos para o cérebro, segundo professora de Harvard
Há alimentos que podem melhorar o humor, aguçar a memória e ajudar o cérebro a funcionar com mais eficiência. É o que argumenta Uma Naidoo, psiquiatra nutricional e professora da Escola de Medicina da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos. A saúde mental e a alimentação estão ligadas da mesma forma que o cérebro e o intestino, numa relação que tem consequências importantes para o corpo. Ela explica que uma das bases biológicas para entender essa relação tem a ver com o fato de que o cérebro e o intestino se originam das mesmas células embrionárias e permanecem conectados à medida que o ser humano se desenvolve. Eles se comunicam em ambas as direções, enviando mensagens químicas. Entre 90% e 95% da serotonina, neurotransmissor relacionado com a regulação do apetite e outras funções, é produzida no intestino. Fim do Matérias recomendadas Se a alimentação não for saudável, o intestino pode ficar inflamado e sofrer as consequências de uma alimentação inadequada. Isso pode influenciar no desenvolvimento de ansiedade, desatenção e doenças como a depressão. Assim, quanto mais você cuida da sua alimentação e do seu intestino, mais você cuida da sua saúde mental, já que “existe uma ligação direta entre a alimentação e o humor”, diz a especialista em entrevista à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). Naidoo, diretora de psiquiatria nutricional e de estilo de vida do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos, diz que sempre amou comida e culinária. Vinda de uma família de médicos, ela conta que sempre buscou uma abordagem científica para as coisas que achava atraentes. Quando estudou medicina, percebeu que não havia formação suficiente em nutrição e, quando se especializou em psiquiatria, ficou claro que mais pesquisas eram necessárias para estabelecer as conexões entre alimentação e saúde mental. “Esse é um campo emergente que está começando a se expandir”, diz ela. Agora, a psiquiatra fala sobre uma seleção de alimentos que considera benéficos para melhorar o humor e fortalecer o poder cerebral. As especiarias são conhecidas por suas propriedades antioxidantes. Algumas, como a cúrcuma, têm efeitos benéficos na redução da ansiedade. A curcumina, o ingrediente ativo da cúrcuma, pode diminuir a ansiedade, alterando assim a química do cérebro e protegendo o hipocampo. Outra especiaria que a psiquiatra gosta muito é o açafrão. A pesquisa mostrou, explica Naidoo, que o açafrão tem efeitos sobre o transtorno depressivo grave. Estudos demonstraram que consumir açafrão reduz significativamente os sintomas do paciente afetado pelo distúrbio. O açafrão é um ingrediente internacionalmente reconhecido por ser caro e ter propriedades antioxidantes. Existe uma grande variedade de alimentos fermentados. Eles são feitos combinando leite, vegetais ou outros ingredientes crus com microrganismos, como leveduras e bactérias. O mais conhecido é o iogurte natural com culturas ativas, mas também existem outros como chucrute, kimchi e kombucha. O que eles têm em comum são fontes de bactérias vivas que podem melhorar a função intestinal e diminuir a ansiedade, segundo a especialista. Alimentos fermentados podem fornecer vários benefícios cerebrais. Uma análise de 45 estudos de 2016 mostrou que os alimentos fermentados podem proteger o cérebro, melhorando a memória e retardando o declínio cognitivo, aponta a especialista. O iogurte rico em probióticos pode ser uma parte poderosa da dieta, acrescenta Naidoo, mas não o iogurte que é submetido a um tratamento com calor. Os efeitos anti-inflamatórios e antioxidantes dos ácidos graxos ômega-3 nas nozes são muito promissores para melhorar o pensamento e a memória. Por outro lado, as nozes têm gorduras e óleos saudáveis ​​que nosso cérebro precisa para funcionar bem, juntamente com vitaminas e minerais essenciais, como o selênio da castanha-do-pará. Naidoo recomenda comer 1/4 de xícara por dia, como complemento de salada ou vegetais. Elas também podem ser misturadas com uma granola caseira ou com frutas secas, porque essas combinações são mais saudáveis ​​do que as disponíveis comercialmente, que geralmente são ricas em açúcar e sal. O chocolate amargo é uma excelente fonte de ferro, que ajuda a formar o revestimento que protege os neurônios e ajuda a controlar a síntese de substâncias químicas que influenciam o humor. Uma pesquisa realizada com mais de 13 mil adultos em 2019 descobriu que as pessoas que comem chocolate amargo regularmente têm um risco 70% menor de apresentar sintomas depressivos. O chocolate amargo também contém muitos antioxidantes e é altamente benéfico. Com quantidades relativamente altas de magnésio, importante para o funcionamento do cérebro, os abacates são outra fonte de bem-estar, aponta a especialista. Existem inúmeras análises que relacionam a depressão à deficiência de magnésio. Vários estudos de caso em que os pacientes foram tratados com uma dose entre 125 e 300 miligramas de magnésio mostraram uma recuperação mais rápida do transtorno depressivo. “Adoro misturar abacate, grão de bico e azeite como uma pasta saborosa em torradas integrais ou como molho para vegetais recém-cortados”, conta a médica. Os vegetais de folhas verdes, como a couve, fazem a diferença na saúde, explica a especialista. Embora não seja uma informação muito conhecida, a verdade é que os vegetais de folhas verdes contêm vitamina E, carotenóides e flavonóides, nutrientes que protegem contra a demência e o declínio cognitivo, diz Naidoo. Outro benefício desses alimentos é que eles são uma grande fonte de folato, uma forma natural de vitamina B9 importante na formação de glóbulos vermelhos. A deficiência de folato pode ser a base de algumas condições neurológicas. É por isso que esta vitamina tem efeitos benéficos no estado cognitivo e é importante na produção de neurotransmissores "As verduras como espinafre, acelga e folhas de dente-de-leão também são excelentes fontes de ácido fólico", acrescenta a especialista.
2023-07-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crg9grxdp5po
sociedade
A influenciadora condenada por acusar falsamente casal latino de tentar sequestrar seus filhos nos EUA
Dentro de seu carro e em frente ao celular, Kathleen Sorensen começou a relatar em vídeo uma situação que a deixou "paralisada de medo": a suposta tentativa de sequestro de seus filhos. A moradora americana de uma cidade ao norte de San Francisco, na Califórnia, descreveu em detalhes como um homem e uma mulher "não muito limpos" tentaram levar seus dois filhos pequenos em uma loja. O seu vídeo, postado no Instagram no final de 2020, alcançou mais de 4,5 milhões de visualizações (antes de ser removido). Também deu grande notoriedade à mulher, que se autodenominava “maternity influencer”, ou seja, uma influenciadora sobre a maternidade. Ela foi convidada a um programa de televisão local para contar o que aconteceu. Mas Sorensen, de 30 anos, foi condenada na quinta-feira (29/06) a 90 dias de prisão, além de 12 meses de liberdade condicional por ter acusado, "consciente da falsidade", um casal de origem nicaraguense de suposta tentativa de sequestro de seus filhos. Fim do Matérias recomendadas “Ela foi condenada a não publicar na mídia social, foi alvo de buscas e apreensões em seus dispositivos eletrônicos, terá que fazer treinamento de 4 horas, bem como várias multas e pagamento de taxas”, informou o Ministério Público dos EUA do Condado de Sonoma, na Califórnia. Sadie Vega Martinez e seu marido Eddie Martinez, o casal falsamente acusado por Sorensen, comemoraram a decisão. "Depois de anos evitando a responsabilização, ouvindo que ela foi considerada culpada e deixada algemada... Sim, a justiça foi feita", disse Sadie Vega-Martinez. Na audiência de quinta-feira, Sorensen alegou que "interpretou mal" o que aconteceu naquele dia, pois estava sobrecarregada com as restrições da pandemia de covid-19. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 7 de dezembro de 2020, Sorensen foi à loja Michaels Craft Store em Petaluma com seus dois filhos pequenos. Depois de comprar alguns itens, a mulher voltou para o carro e foi embora. "Minutos depois, Sorensen ligou para o Departamento de Polícia de Petaluma e relatou que um casal havia tentado sequestrar seus filhos", disseram os promotores na quinta-feira. Ela inicialmente disse que não estava interessada em apresentar queixa e estava apenas procurando denunciar o "comportamento suspeito" do casal. Mas também não deu os detalhes que posteriormente expôs em seu vídeo. Em sua postagem no Instagram uma semana depois, Sorensen disse que ouviu o casal conversando sobre a idade de seus filhos e sobre a pele branca deles na loja. Depois, ela continuou, foi seguida até o estacionamento onde o homem supostamente tentou tirar o carrinho dela. O momento a deixou "paralisada pelo medo", disse ela. “Pela absoluta graça de Deus”, contou ela, um homem mais velho percebeu que algo estava errado e o casal teve que correr para o próprio carro para fugir. Sua história rapidamente viralizou e levantou um alerta em Petaluma. A comoção local levou a polícia a ampliar a investigação do caso, que foi encerrado por não haver réus no início. Eles entrevistaram Sorensen novamente, que nomeou o casal no vídeo das câmeras de segurança da loja "como os perpetradores", disseram os promotores na quinta-feira. "O relato de Sorensen foi determinado como falso e foi fortemente negado pelo casal acusado, bem como pelo vídeo da loja", acrescentou. Os vídeos de segurança mostraram que nem o casal nicaraguense nem ninguém a abordou, como ela garantiu no Instagram. Sadie e Eddie Martinez não sabiam sobre Sorensen até que viram as notícias nas quais eles eram apontados como suspeitos. A mulher foi acusada de três crimes, mas no final o juiz do caso a condenou apenas por contravenção, o que lhe dá o benefício de soltura antecipada e apenas um mês de prisão. “Sorensen foi responsabilizada por seu crime e acreditamos que o juiz proferiu uma sentença justa. Nossa esperança é que essa medida de responsabilização ajude a inocentar o casal que foi falsamente acusado de tentar sequestrar duas crianças pequenas", disse a promotora distrital Carla Rodriguez. Agora, a mulher afirma que estava errada. “Minha intenção era relatar um comportamento que parecia suspeito para mim”, disse Sorensen ao depor na quinta-feira, informou o The Sonoma Index-Tribune. “Eu interpretei mal os acontecimentos daquele dia”, disse ela. Explicou que nessa altura vivia “a apreensão e inquietação” da pandemia, o que influenciava a sua compreensão do que se passava à sua volta. "Senti que havia falhado na hora de proteger meus filhos."
2023-07-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp0z760ynpzo
sociedade
Protestos na França: as falsas imagens de violência que se espalham nas redes
Imagens dos distúrbios — que se espalharam para diversas cidades francesas — estão sendo compartilhadas nas redes sociais. Além de vídeos genuínos, também estão circulando alegações falsas e enganosas, com potencial de aumentar a violência. A BBC investigou algumas dessas imagens. Uma imagem impressionante mostrando um grupo de jovens dirigindo uma van da polícia francesa — com uma pessoa pendurada para fora da janela brandindo uma arma — foi compartilhada no Twitter com as palavras "França, foto do dia". O tuíte postado no início de 2 de julho teve mais de 1,7 milhão de visualizações. Mas o vídeo é falso: não se trata dos distúrbios atuais, mas sim de um filme. Fim do Matérias recomendadas A BBC examinou a imagem e, procurando versões anteriores dela na internet, descobriu que se trata do filme francês Athena (2022), um relato fictício de tumultos em um subúrbio da cidade. As pessoas na van e na motocicleta azul são exatamente as mesmas. A pessoa que postou o tuíte posteriormente esclareceu que a imagem era para ser de natureza meramente "ilustrativa". Mas esse esclarecimento só foi feito depois que a imagem foi retuitada milhares de vezes. Depois, a pessoa excluiu a postagem. Imagens de carros caindo das janelas de um estacionamento de vários andares foram amplamente compartilhadas na internet, com a mensagem, originalmente em inglês: "O que diabos está acontecendo na França…". Mas a imagem é falsa — é uma filmagem antiga que aparentemente está em outro filme. A BBC fez uma pesquisa online para ver se as imagens já haviam aparecido antes. A pesquisa encontrou um tuíte de junho de 2016, que afirmava que a filmagem era do set do filme de ação Velozes e Furiosos 8, que foi rodado em Cleveland, Ohio. Usando as informações desse tuíte, a BBC localizou o estacionamento de vários andares na Prospect Avenue East, em Cleveland. As cores dos carros e da parte externa do prédio batem com uma cena do filme, que foi lançado em 2017. Nos últimos dias, um vídeo foi compartilhado repetidamente no Twitter e no aplicativo de mensagens Telegram mostrando um homem encapuzado em um telhado apontando o que parece ser um rifle. Um usuário do Twitter postou o vídeo com a seguinte mensagem: "Manifestante na França assume a posição de franco-atirador com rifle roubado da polícia". Outro relato afirma que o rifle foi roubado de uma van da polícia. Um usuário do Telegram exibiu o emoji de fogo ao lado da bandeira francesa com a legenda: "saqueadores cobertos por um atirador". O vídeo foi visto centenas de milhares de vezes em diferentes plataformas e contas, e retuitado milhares de vezes. Mas o vídeo não foi filmado durante os distúrbios atuais. Trata-se de um vídeo antigo. Ao pesquisar aparições anteriores do vídeo nas mídias sociais, a BBC verificou que ele foi postado no Twitter em 13 de março de 2022. A roupa do homem, a posição no telhado e os edifícios visíveis são idênticos em ambos os tuítes. Não foi possível confirmar a localização exata ou se o fuzil era real ou uma réplica de arma. Um usuário do Twitter, ciente das postagens anteriores deste vídeo, comentou que o suposto atirador deve estar "lá há mais de um ano". A BBC está analisando outros exemplos de postagens falsas e enganosas sobre os distúrbios na França.
2023-07-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ck59kzr5945o
sociedade
Sensível demais: você é um pai ou mãe 'orquídea'?
Pergunte a qualquer pai ou mãe de filhos pequenos se eles já se sentiram sobrecarregados e a resposta provavelmente será "sim". Mesmo nos lares mais tranquilos, pode haver dias em que o barulho, a bagunça e o caos parecem sair de controle, deixando os pais exaustos e irritados. Afinal, os bebês não têm botão de desligar, nem controle de volume. A sensibilidade pode referir-se a sons, odores ou visões. Seus portadores podem, por exemplo, ter dificuldade para lidar com luzes brilhantes e alto volume de ruído e considerar as situações caóticas muito estressantes. Essa característica pode também causar maior consciência do humor ou dos sentimentos de outras pessoas, trazendo uma sensação de empatia particularmente forte. E, se acrescentarmos as exigências causadas pela criação de filhos, a combinação certamente parece ser desastrosa. Fim do Matérias recomendadas Mas, felizmente, ela também traz algumas vantagens, como indicam as pesquisas. E, para as pessoas afetadas, aprender a compreender essas nuances pode ajudá-las a transformar a criação dos filhos em uma experiência mais alegre e enriquecedora, sem que fiquem sobrecarregadas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Geralmente, as pessoas sensíveis possuem percepção mais alta, elas percebem mais detalhes", explica o psicólogo do desenvolvimento Michael Pluess, da Universidade Queen Mary de Londres, especializado no estudo de pessoas altamente sensíveis e que participou do desenvolvimento do teste. "Elas irão detectar o humor das outras pessoas e ter maior empatia. Elas também processam as coisas com mais profundidade, de forma que perceberão mais coisas sobre o ambiente", explica Pluess. Ou seja, elas têm a tendência de ruminar sobre suas experiências e podem ser profundamente afetadas pelo que veem e sentem (o que explica por que não consigo assistir filmes de terror). Ser altamente sensível envolve uma reação cerebral a certos eventos ou experiências que é mensuravelmente diferente das pessoas menos sensíveis. Em um estudo, os pesquisadores pediram a um grupo de pessoas recrutadas aleatoriamente que fizesse um teste de alta sensibilidade – um conjunto de questionários similar ao teste online – e exibiram fotografias de pessoas alegres e tristes, monitorando sua atividade cerebral por meio de imagens de ressonância magnética funcional. Pluess acrescenta que esta tendência de processar profundamente as informações pode fazer com que as pessoas altamente sensíveis sejam excessivamente estimuladas com facilidade. Eu me identifico um pouco com esta questão. Eu hesito ao ouvir sobre o enredo de um filme macabro. E assistir está fora de questão. Posso sentir dores físicas em um ambiente barulhento quando a acústica é ruim. No metrô de Londres, com seus ruídos estridentes, preciso tampar meus ouvidos – e me pergunto, muitas vezes, por que mais ninguém faz isso. Quando meus filhos gritam, sinto às vezes como se minha cabeça estivesse explodindo. Para atender às necessidades deles e confortá-los, preciso aprender a desligar esta sensação. As dificuldades enfrentadas pelos pais altamente sensíveis – incluindo o estresse e o excesso de estímulos em ambientes caóticos – podem interferir com a "alta qualidade de criação dos filhos" segundo Pluess. Estão também surgindo evidências de que o aumento do estresse entre os pais altamente sensíveis pode ter vida curta. Um estudo piloto que deve ser apresentado na Conferência Europeia sobre Psicologia do Desenvolvimento, em agosto deste ano, concluiu que, embora os pais altamente sensíveis sofram inicialmente altos níveis de estresse, eles demonstram estilos de criação de filhos melhores do que os pais com baixa sensibilidade quando seus bebês atingem nove meses de idade. A responsável pelo estudo foi a pesquisadora Francesca Lionetti, da Universidade G. d’Annunzio em Chieti-Pescara, na Itália. Ela descobriu que havia um outro fator envolvido. Experiências negativas na infância influenciaram a reação das pessoas altamente sensíveis à criação dos filhos. "Se elas tivessem sofrido rejeição [dos seus pais quando crianças], elas relatavam mais estresse e eram mais invasivas nas suas interações entre pai/mãe e filho", explica ela. Lionetti destaca que "ser um pai ou mãe altamente sensível não precisa ser algo negativo". Ter atenção aos detalhes, por exemplo, pode ser um fator positivo na criação dos filhos. No estudo, ela descobriu que, para os pais sensíveis, maior atenção aos seus próprios sinais respiratórios está relacionada à criação de filhos mais positiva. "Isso está relacionado ao fato de que [as pessoas altamente sensíveis] processam mais profundamente o que está acontecendo dentro do seu corpo", explica Lionetti. Mas, depois que se acostumaram com seu ambiente, eles se recuperaram completamente. "Parece que as pessoas sensíveis, a curto prazo, são mais facilmente sobrecarregadas pelas mudanças", explica Pluess. Mas, quando o assunto é a criação de filhos, ele afirma que os pais e mães altamente sensíveis, potencialmente, são excepcionais. "Sua sensibilidade os ajuda a entender seu filho e reagir com maior rapidez e de forma mais adequada às necessidades da criança", segundo ele. É claro que a sobrecarga da criação dos filhos pode afetar qualquer pessoa, seja ela altamente sensível ou não. Por isso, algumas das estratégias de sobrevivência das pessoas altamente sensíveis, na verdade, podem beneficiar todos os pais e mães. Uma delas é conhecer suas próprias reações e saber o que deixa você estressado ou relaxado. A autoconsciência nos permite aceitar o lado positivo e as dificuldades da criação dos filhos, segundo Pluess, e buscar formas de nos sentirmos calmos ou encontrar espaços silenciosos quando nos sentirmos sobrecarregados. É claro que todos nós precisamos de luz e calor e uma pessoa que parece ser um dente-de-leão pode ser apenas uma orquídea forçada a negar suas necessidades. Mas a metáfora pode ajudar a compreender que está tudo bem em tentar mudar um pouco o nosso ambiente, para podermos florescer. Às vezes, a criação de filhos, na verdade, pode ajudar as pessoas a tornar suas vidas mais favoráveis às orquídeas. Na escola, por exemplo, minha filha tem "intervalos para o cérebro", quando os alunos da sua classe cantam para poderem descansar. Ainda não tentei fazer toda a minha família se unir a mim para um intervalo para o cérebro com todos nós cantando, quando as coisas parecerem ficar fora de controle. Talvez seja caso de experimentar.
2023-07-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nvq3y11l2o
sociedade
Os estudantes que dividem casa com aposentados
Poppy Jenkinson tem 23 anos de idade. Todas as noites, ela se senta à mesa de jantar com seus dois colegas de casa para comentar como foi o seu dia — contar notícias do trabalho, dramas das amigas e, às vezes, problemas de relacionamento. Muitas vezes, seus colegas oferecem um ponto de vista diferente. “Eles estão na casa dos 70 anos e são casados há quase 40”, ela conta. “Elas sempre compartilham gotas de sabedoria.” Depois de se formar no ano passado, na Unidade de Falmouth — uma pequena e criativa universidade na Cornualha, no sudoeste da Inglaterra —, Jenkinson teve dificuldade para encontrar uma casa no competitivo mercado imobiliário de Falmouth. Até que, por meio da universidade, ela conheceu Pete e Lee King, de 70 anos de idade, e se mudou para o seu chalé de três quartos nos limites da cidade. É um acordo particular entre eles, mas que reflete uma tendência maior de moradia multigeracional: estudantes e cidadãos idosos vivendo juntos. Nos últimos anos, projetos incentivando gerações diferentes a dividir residência surgiram em todo o mundo, incluindo em universidades, como no Canadá, na Califórnia (EUA) e na Holanda. Fim do Matérias recomendadas Mas nem todas as experiências de moradia multigeracional têm finais felizes, como a de Jenkinson. As pesquisas demonstram que a realidade pode ser mais complicada. Teoricamente, a moradia multigeracional é uma solução inteligente para dois importantes problemas modernos: a falta de moradia acessível para os jovens e o aumento da solidão entre as pessoas mais idosas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “A epidemia da solidão é uma tendência global, especialmente em países onde a população está envelhecendo”, afirma a professora Patricia Collins, do Departamento de Geografia e Planejamento da Universidade Queen’s, no Canadá. Por outro lado, uma enorme quantidade de pesquisas realizadas em todo o mundo destaca as dificuldades cada vez maiores enfrentadas pelos jovens para encontrar moradia a preços que eles possam pagar. Collins queria entender melhor se as moradias multigeracionais realmente estavam ajudando a reduzir os problemas ligado a falta de acomodações. Para isso, ela mapeou a demanda por acordos de coabitação em Kingston (Ontário, no Canadá), pesquisando o interesse dos estudantes de graduação em dividir residência com um cidadão idoso. Com suas vistas à beira-mar e muitas áreas verdes, Kingston é a segunda cidade mais popular do Canadá entre os aposentados, segundo Collins. Mas a cidade também abriga diversas instituições de nível secundário e os estudantes concorrem pelos aluguéis em um mercado imobiliário saturado. “Historicamente, [Kingston] oferece aos estudantes condições de moradia muito abaixo dos padrões”, segundo ela. “Agora, estamos vendo este problema agregado ao aumento dos valores dos aluguéis.” À primeira vista, os estudantes que ela pesquisou pareciam gostar da ideia de gerações diferentes compartilhando residências. Dos 3,8 mil estudantes de graduação pesquisados, mais da metade respondeu que a universidade deveria apoiar este tipo de moradia. Aparentemente, muitos gostaram da ideia na teoria, mas não consideraram uma opção viável para eles próprios. Collins destaca que, “como sociedade, não estamos tão acostumados a interagir com pessoas de outras gerações, a menos que eles façam parte da nossa família imediata.” Uma exceção são os jovens que trabalham voluntariamente com idosos. Os dados indicam que estas pessoas podem estar mais abertas a também morar com eles. Entre os estudantes atraídos pela ideia de coabitação, 56% tinham experiência de trabalho com idosos e 60% tinham experiência de voluntariado com pessoas de mais idade. Mas os acordos que fazem do voluntariado parte do pacote também podem enfrentar dificuldades. Em vez de pagar aluguel, os estudantes passam 30 horas por mês interagindo com os moradores idosos e ensinando a eles conhecimentos como o uso de e-mail ou redes sociais. Mas acrescentar um contrato social a uma dinâmica de coabitação pode ocasionar certos problemas, segundo Gemma Burgess, diretora do Centro de Pesquisa sobre Planejamento e Moradia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. A expectativa era que os estudantes oferecessem “leve envolvimento”, como ajudar os moradores a fazer compras, cuidar da casa ou simplesmente fazer um pouco de companhia. O projeto trouxe lições importantes, segundo Burgess. Uma delas foi que apoiar outra pessoa teoricamente parece simples, mas pode exigir mais tempo e esforço que o esperado pelos estudantes. Em épocas atarefadas e estressantes, como períodos de provas ou de redação de monografias, pode ser difícil para os estudantes incluir as necessidades de outra pessoa no seu cronograma de estudos. “Foi preciso ter muita intervenção para ajudar nos relacionamentos”, ela conta. Burgess destaca que as residências multigeracionais podem ser complexas. “É um pouco idealizado dizer: ‘você irá representar o papel de um avô engraçado e uma pessoa mais jovem fará o papel de um neto coruja’. As pessoas são muito mais complicadas do que isso.” Uma forma de aprender com os erros do passado é incorporar a moradia intergeracional ao conjunto da universidade, mas acrescentando um pouco mais de distância. Os idosos e os estudantes podem não morar na mesma residência, mas permanecem os princípios de compartilhamento de conhecimentos e interação social. Na Universidade do Estado do Arizona, por exemplo, foi aberta uma casa de aposentados em 2020, quase ao lado dos dormitórios dos estudantes. Os moradores podem ter acesso às aulas, à biblioteca e aos eventos esportivos. Voltar a um ambiente estimulante de aprendizado pode trazer uma série de benefícios. Pesquisas indicam que os adultos mais idosos que fazem cursos na faculdade podem aumentar sua capacidade cognitiva e possivelmente reduzir o risco de desenvolver Alzheimer ou outras formas de demência. Em Falmouth, a universidade está colaborando com um projeto de moradia de 170 milhões de libras (US$ 204 milhões, ou cerca de R$ 1 bilhão), conhecido como incorporação Pydar Street. O projeto pretende integrar espaços estudantis à comunidade como um todo. O chefe de incorporações imobiliárias da Universidade de Falmouth, Peter Howells, afirma que a construção ainda está em estágio de planejamento, mas será um mosaico de 300 casas e 160 apartamentos e dormitórios estudantis. “O local irá incorporar moradia mista, aprendizado acadêmico, espaços para inovação, venda de alimentos e bebidas e espaços abertos para que [as pessoas] se encontrem, aprendem e conversem”, explica ele. O escritório de arquitetura britânico PRP, especializado em moradia multigeracional, é um dos elaboradores do projeto. Para a arquiteta-chefe do projeto Pydar Street, Manisha Patel, uma forma de incentivar a interação é simplesmente distribuir os apartamentos levando a idade em consideração, com moradores mais idosos no térreo e os estudantes nos andares superiores. “Gerações diferentes estariam em apartamentos conectados, mas não realmente morando juntas”, ela conta. Uma área comum no centro da construção irá incentivar a formação de relacionamentos. “A moradia multigeracional deve incentivar o intercâmbio de pensamentos – gerações de lados diferentes do espectro têm muito conhecimento a oferecer”, afirma Patel. Para Pete King, dono da casa onde Jenkinson mora, viver em uma casa multigeracional com estudantes trouxe “enormes recompensas”. King é capelão do centro ecumênico da Universidade de Falmouth. No chalé onde ele mora com sua esposa Lee, diversos estudantes ocuparam o espaço vazio ao longo dos anos. Os dois lados contam que tiveram benefícios práticos e emocionais. Para Jenkinson, a “atmosfera familiar” foi a melhor parte da experiência. O trio se revezava na cozinha, embora ela sempre ficasse nervosa quando chegava a sua vez de preparar o jantar. “Os Kings são ótimos cozinheiros, eles sempre fazem tortas ou risotos, enquanto eu faço principalmente comida de estudante, como macarrão ou pizza”, ela conta. Jenkinson pagava menos que o aluguel de mercado, enquanto outros estudantes pagam parte do aluguel em serviços, assumindo tarefas como cuidar do jardim. Os Kings contam que gostaram de aprender sobre as novas tecnologias e a vida estudantil. “Você recebe uma energia indescritível quando está com os jovens”, afirma Pete.
2023-07-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz9gpkpg7wko
sociedade
Por que cada vez menos pessoas têm plano B na carreira
Chris tem 35 anos e trabalha na indústria de animação há mais de uma década. Ele ainda fica animado com suas tarefas semanais. Chris adora o seu emprego, mas a instabilidade financeira o está forçando a considerar outras opções. “A indústria não investe no planejamento de produção de longo prazo, nem na retenção de talentos”, explica ele. “Por isso, quando a produção acaba, você é descartado – sem rescisão, sem nada.” No passado, ele conseguia lidar com as incertezas. Mas, agora, ele quer ter filhos e as flutuações do fluxo de caixa estão ficando problemáticas. Por isso, o animador (que mora na Califórnia, nos Estados Unidos) pensa em se mudar para uma “carreira alternativa” em design de experiência do usuário, um mercado que está crescendo rapidamente com salários relativamente altos. Ele considera que esta é uma opção bastante segura. Muitos outros profissionais como Chris têm um plano B para o caso de sua carreira não decolar – uma espécie de retorno em um setor mais estável, ao qual eles podem se voltar se a sua carreira original não der certo. Em alguns casos, essa contingência pode estar em um campo relacionado aos seus hobbies e interesses. Em outros, é um campo tolerável que consegue pagar as contas. Essencialmente, a carreira alternativa é um setor com muitos empregos e segurança, geralmente estável, mesmo com fortes ventos contrários na economia. Os profissionais que assumem empregos em setores voláteis ou seletivos podem se sentir seguros por saberem que têm uma opção “estável” se a sua primeira escolha de carreira não funcionar. “Ter um plano B de carreira mais ‘seguro’ atende à necessidade das pessoas de sentir segurança e confiança para buscar carreiras menos tradicionais”, afirma a cientista comportamental Sarah Henson, da plataforma digital de coach de carreiras CoachHub. De fato, ao longo dos anos, ter um plano B na manga era geralmente uma possibilidade realista. Mas, atualmente, com os altos custos da nova formação, o burnout da indústria e a instabilidade nos setores tradicionalmente seguros, migrar para uma carreira preparada com antecedência não é tão fácil, ou mesmo possível, como era no passado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Não existem carreiras “à prova de falhas”. Mas muitos profissionais consideram manter um plano B em setores como a educação ou o comércio, que são mais estáveis. No caso de Chris, ele está se mudando para um setor que parece estar se expandindo rapidamente e procurando talentos com conhecimento das novas tecnologias. As carreiras alternativas têm fama de permanecerem fortes – em sua maioria, elas parecem estáveis ou suficientemente “seguras” frente às mudanças do panorama econômico. “Esses cargos tendem a estar onde existe falta de conhecimento e, por isso, eles oferecem boas perspectivas de trabalho”, afirma a professora Fiona Christie, da Universidade Metropolitana de Manchester, no Reino Unido. Ela é especializada em empregabilidade e recém-formados. É verdade que a maioria desses empregos realmente é estável, mas buscar uma nova carreira, muitas vezes, exige novo treinamento ou formação, o que custa tempo e dinheiro. É claro que sempre foi assim, mas as condições econômicas atuais estão fazendo com que fique mais difícil absorver estes custos adicionais. “Existem barreiras significativas para novos treinamentos, incluindo o pagamento do curso simultaneamente aos custos básicos de vida e a possibilidade de reduzir as horas de trabalho para fins de estudo”, segundo Catherine Foot, diretora do centro de pesquisa e debates Phoenix Insights, mantido pela seguradora britânica Phoenix Group. “Isso foi exacerbado pela elevação do custo de vida, que coloca mais pressão sobre a renda disponível”, explica ela. Estas são preocupações de Tiffany, que tem 30 anos de idade e está ansiosa para mudar de carreira, depois de passar uma década trabalhando no setor culinário. “Mesmo em uma padaria respeitada, que paga altos salários, estou tendo dificuldade para não me sentir culpada por comprar sapatos ou alimentos”, ela conta. “A animação seria minha próxima carreira ideal, mas o grande problema são os estudos – simplesmente não tenho dinheiro para me sustentar.” Tiffany mora em Minnesota, nos Estados Unidos. Para ela, pedir um empréstimo parece “assustador”, já que ela receia nunca ganhar o suficiente para pagar a dívida e ainda cobrir suas despesas normais. Já para Chris, evitar os gastos com educação está definindo sua estratégia sobre a mudança de carreira. Ele definiu o design de experiência de usuário porque não precisaria estudar em tempo integral. “Como tenho mais de 30 anos e estou a ponto de formar família, quero evitar ter que voltar para a escola e perder renda com isso”, ele conta. Mudar de carreira é difícil para muitas pessoas, mas pode ser particularmente problemático para aquelas que não dispõem de “uma rede de segurança financeira, como economias familiares” ou que têm a responsabilidade de cuidar de outras pessoas, segundo Christie. Um profissional que conseguiu fazer essa mudança é Lee, de 36 anos. Depois de trabalhar como técnico musical freelancer por seis anos, ele quis um emprego mais sólido e confiável, com padrão de trabalho fixo e benefícios. E, para ajudá-lo, ele herdou algum dinheiro de um parente e investiu nos estudos para se tornar professor de ensino médio. Mas, mesmo com a receita inesperada, os custos de vida têm sido um problema na transição para a carreira que ele esperava ser a garantia do sucesso. Lee precisou se mudar para uma região mais cara na Inglaterra, para ficar perto da escola onde estudava. Com isso, seu aluguel disparou no ano passado. E, sem receber salário no seu primeiro ano de magistério, ele precisou trabalhar também como tutor para cobrir suas despesas e está exausto de gerenciar tudo aquilo. “Eu sempre tive o magistério em mente, mas não teria conseguido dar o salto sem o dinheiro que entrou”, ele conta. “E, mesmo agora, estou pensando se fiz a escolha certa. Com a inflação e tudo o mais, [o dinheiro] não durou tanto quanto planejei.” O cenário profissional atual também está prejudicando a viabilidade de algumas dessas carreiras alternativas tradicionais. “Muitos setores, mesmo aqueles que tradicionalmente eram considerados opções ‘seguras’, como TI ou direito, também enfrentaram desemprego e mudanças organizacionais em níveis alarmantes”, afirma Henson. Por isso, os profissionais estão repensando os empregos que antes eram considerados seguros, com salários decentes e, às vezes, até muito altos. O setor de tecnologia, por exemplo, foi atingido por uma onda significativa de demissões em massa, que ainda não chegou ao fim. No Reino Unido, por exemplo, milhares de professores e enfermeiros entraram em greve, devido ao excesso de trabalho e aos baixos salários. Os dados indicam que o burnout está aumentando nesses setores. Este é um problema que foi exacerbado pela pandemia e está afastando os profissionais existentes, em vez de incentivar a vinda de novos trabalhadores. Uma pesquisa realizada em 2022 pelo instituto YouGov entre professores com 34 anos de idade ou menos demonstra que, se pudessem voltar atrás, dois em cada cinco deles hoje não seriam professores. “Não podemos mais idealizar este tipo de plano B de carreira, nem acreditar que ele esteja firme e a pleno vapor”, afirma Christie. Mudanças como essas aumentaram a incerteza sobre o futuro das carreiras alternativas – e até mesmo da própria ideia de um plano B de carreira. Mas nem tudo são más notícias: os avanços da educação na pandemia reduziram um desses problemas. “Três anos se passaram e a demanda por ferramentas digitais de aprendizado e desenvolvimento permanece alta. O ensino à distância mostrou-se uma forma conveniente para que as pessoas desenvolvam seu crescimento individual no seu próprio ritmo”, segundo Henson. “Além da oferecerem valiosos conhecimentos que estão em alta demanda, as ferramentas de ensino à distância permitem que os profissionais experimentem realizar as tarefas relacionadas ao novo emprego, garantindo que eles tomem a decisão correta antes de saltarem para o plano B em outro setor”, afirma ele. Tiffany afirma que assistiu a aulas online de design gráfico gratuitas para aprender o básico e espera que isso ajude no seu progresso. Mas não é possível obter nova formação online em todos os setores. Alguns deles exigem treinamento prático ou intensos períodos de estudos e exames, com horas de experiência profissional (normalmente, com pagamento simbólico ou, como Lee, sem pagamento). Tudo isso dificulta ainda mais o ingresso nesses setores que, antes, eram seguros, especialmente em tempos de retração da economia. Lee ainda está buscando sua nova formação como professor, mas pretende trabalhar como entregador à noite e nos feriados, para suplementar seus ganhos como tutor. Ele acredita que, quando começar a ganhar dinheiro como professor qualificado, irá se sentir financeiramente mais estável. “Não muito tempo atrás, voltar a estudar para ser professor parecia um caminho delicado, mas atraente”, ele conta. “Agora, percebo que desfazer a vida, voltar a pegar os livros e receber pouco para isso é uma mudança bastante arriscada – em qualquer momento.” “Só espero que valha a pena e vou ficar feliz quando chegar lá.” Os sobrenomes de Chris, Tiffany e Lee são omitidos para manter sua segurança profissional.
2023-07-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy0j583xzk0o
sociedade
Quem era jovem morto pela polícia que desencadeou protestos na França
O assassinato de Nahel M., de 17 anos, provocou tumultos em várias cidades da França, bem como na cidade de Nanterre, a oeste de Paris, onde ele cresceu. Filho único criado pela mãe, ele trabalhava como entregador de comida e jogava rúgbi. Ele estava estudando em Suresnes, não muito longe de onde morava, para se formar como eletricista. Aqueles que o conheceram disseram que ele era muito querido em Nanterre, onde morava com sua mãe Mounia, e aparentemente nunca conheceu seu pai. Pouco depois das nove da manhã de terça-feira, ele morreu após ser baleado no peito, à queima-roupa, ao volante de um carro Mercedes por fugir durante uma fiscalização de trânsito da polícia. Fim do Matérias recomendadas Ele não tinha antecedentes criminais, mas era conhecido da polícia. "O que eu vou fazer agora?" perguntou sua mãe. "Dediquei tudo a ele", disse ela. "Só tenho um, não tenho 10 [filhos]. Ele era minha vida, meu melhor amigo." Sua avó fala dele como um "menino bom e gentil". "A recusa em parar não lhe dá licença para matar", disse o líder do Partido Socialista, Olivier Faure. "Todos os filhos da República têm direito à justiça." "Nada justifica a morte de um jovem (...). É inexplicável, imperdoável." Com estas palavras, o presidente da França, Emmanuel Macron, reagiu na quarta-feira (28/6) à notícia da morte do jovem. O presidente pediu "calma para que a justiça seja feita". No entanto, a França registra há dois dias protestos violentos na cidade onde o adolescente morreu e em outros locais do país. Mais de 6 mil pessoas compareceram à vigília, junto com sua mãe, na cidade de Nanterre. A mídia francesa informou que algumas pessoas que queriam participar da passeata temiam que mais violência ocorresse. Uma mulher disse à BBC que foi porque o incidente a fez questionar o quanto ela poderia confiar nas autoridades. Com as autoridades prevendo outra noite de violência, foi anunciado que haverá toque de recolher em algumas áreas de Paris - além do fechamento dos serviços de bonde e ônibus. Um deles será aplicado no subúrbio de Clamart, a sudoeste de Paris, entre as 21:00 hora local (16:00 no horário de Brasília) e as 06:00, a partir desta noite até segunda-feira, 3 de julho. "Clamart é uma cidade segura e tranquila e estamos determinados a mantê-la assim", diz uma mensagem no site da cidade. Enquanto isso, a cidade de Lille também suspenderá alguns serviços de transporte público esta noite. Os trens e ônibus pararão de operar a partir das 20h, segundo um comunicado das autoridades de Lille. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nahel passou os últimos três anos jogando pelo clube de rúgbi Pirates of Nanterre. Ele fazia parte de um programa de integração para adolescentes com dificuldades na escola, administrado por uma associação chamada Ovale Citoyen. O programa visava levar pessoas de áreas carentes para o aprendizado e Nahel estava aprendendo a ser eletricista. O presidente da Ovale Citoyen, Jeff Puech, era um dos adultos que o conheciam melhor. Ele o tinha visto poucos dias atrás e falava de um "garoto que usava o rúgbi para sobreviver". "Ele era alguém que tinha vontade de se encaixar social e profissionalmente, não um garoto que traficava drogas ou se divertia com o crime juvenil", disse Puech ao Le Parisien. Ele elogiou a "atitude exemplar" do adolescente, muito longe do desagradável assassinato de reputação pintado nas redes sociais. Ele conheceu Nahel quando ele morava com sua mãe no subúrbio de Vieux-Pont, em Nanterre. Não passou despercebido que sua família era de origem argelina. "Que Alá lhe conceda misericórdia", dizia uma faixa estendida sobre o anel viário de Paris do lado de fora do estádio Parc des Princes. Um pouco antes, o advogado do adolescente assassinado Nahel falou ao programa Newshour do Serviço Mundial da BBC. O policial que atirou e matou Nahel já foi indiciado por homicídio doloso. O advogado de Nahel, Yassine Bouzrou, disse que a impunidade dos policiais na França é parte do problema. Bouzrou disse que o sistema judicial, e não o racismo, foi o culpado pelo que aconteceu com o jovem de 17 anos. "Temos uma lei e um sistema judicial que protege os policiais e cria uma cultura de impunidade na França", disse ela ao Newshour, acrescentando que casos semelhantes ao longo dos anos mostram que "o sistema judicial ainda não está funcionando para as vítimas" em todo o país.
2023-06-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgle47y42vxo
sociedade
A mudança que deixou os sul-coreanos um ano mais jovens
Sul-coreanos se tornaram um ou dois anos mais novos com uma nova legislação que alinhou a forma de contar a idade no país com os padrões internacionais. A nova lei foi aprovada em dezembro e passou a valer nesta quarta-feira (28/06). Ela faz com que o único sistema considerado oficial passe a ser o sistema internacional que baseia a idade na data de nascimento. Os dois sistemas tradicionais de contagem de idade no país deixaram de ser considerados para fins oficiais. Em um dos sistemas tradicionais de contagem, o "sistema de idade coreano", as pessoas têm um ano no momento do nascimento, considerando o tempo de gestação, e completam mais um ano no dia 1º de janeiro, e não na data do aniversário. Fim do Matérias recomendadas Por esse sistema, uma pessoa nascida em 31 de dezembro teria 2 anos no dia seguinte. Outro "sistema de contagem" também considera que as pessoas envelhecem no dia 1º de janeiro, mas considera que elas têm zero no nascimento. Isso significa que uma pessoa nascida em 29 de junho de 2003 teria, em 28 de junho de 2023: O presidente Yoon Suk Yeol fez campanha pela mudança quando concorreu à eleição no ano passado. Segundo ele, os métodos tradicionais criam "custos econômicos e sociais desnecessários". Um exemplo são disputas sobre pagamentos de seguros e elegibilidade para programas assistenciais do governo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar das mudanças, os sistemas tradicionais vão continuar valendo para algumas coisas. Por exemplo, os sul coreanos podem comprar cigarros e álcool a partir do ano (e não do dia) em que completam 19 anos. Três em cada quatro sul-coreanos eram a favor da padronização em janeiro de 2022, de acordo com uma pesquisa do instituto Hankook. Algumas pessoas acreditam que a mudança vai ajudar a mudar a cultura profundamente hierárquica da Coreia do Sul. "Existe uma camada inconsciente de etarismo no comportamento das pessoas. Isso é evidente até no sistema complexo de contagem da idade. Eu espero que o fim do sistema de idade coreano e a adaptação ao sistema de contagem internacional ajude e nos livrarmos de velhas relíquias do passado", diz o criador de conteúdo Jeongsuk Woo, de 28 anos (pelo sistema internacional). "Eu amo, porque agora sou dois anos mais novo. Meu aniversário é em dezembro, então eu sempre senti que o sistema coreano de idade me tornava socialmente mais velho do que eu realmente sou", diz o médico Hyun Jeong Byun, de 31 anos de idade. "Agora que a Coreia está seguindo o padrão global, eu não preciso mais explicar minha 'idade coreana' quando estou no exterior." Segundo ele, o setor médico já vinha adotando o sistema internacional antes da legislação. Os métodos tradicionais de contagem de idade já foram usados por outros países do leste asiático, mas a maioria os abandonou. O Japão adotou o padrão internacional em 1950. A Coreia do Norte seguiu o exemplo e adotou o sistema internacional na década de 1980.
2023-06-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjrqgw29zlgo
sociedade
Milionário chinês fracassa pela 27ª vez em 'vestibular'
Um milionário chinês foi reprovado nos exames de admissão a universidades do país pela 27ª vez. Na semana passada, Liang Shi, de 56 anos, descobriu que havia conseguido apenas 424 de 750 pontos. A nota está 34 pontos abaixo do necessário para se candidatar a qualquer universidade na China. Quase 13 milhões de estudantes fizeram os exames este ano. Liang, morador de Sichuan, já havia sido destaque na imprensa por suas tentativas anteriores de conseguir uma vaga no ensino superior. Ele fez os exames dezenas de vezes desde 1983. Liang disse à imprensa local que ficou decepcionado com seu resultado este ano e agora se questiona se algum dia conseguirá realizar seu sonho. "Eu costumava dizer 'simplesmente não acredito que não vou conseguir', mas agora estou dividido", disse Liang à mídia chinesa Tianmu News. Fim do Matérias recomendadas O exame, chamado Gaokao, é conhecido por ser difícil. Ele avalia os conhecimentos dos alunos que concluíram o ensino médio em chinês, matemática e inglês e em alguma outra disciplina de ciências ou humanas de sua escolha. Dados do governo chinês mostram que apenas 41,6% dos candidatos foram aceitos em universidades ou faculdades em 2021. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Gaokao é visto como uma oportunidade que pode mudar a vida dos candidatos — especialmente para aqueles de famílias mais pobres, em um país onde um diploma é considerado essencial para um bom emprego. As provas são o foco do sistema educacional do país desde a década de 1950, embora tenham sido suspensas durante a Revolução Cultural. Liang disse que sempre sonhou em ser admitido em uma universidade de prestígio e se tornar um "intelectual". Após fracassar na primeira tentativa, em 1983, quando tinha 16 anos, ele trabalhou em diferentes empregos, mas continuou se candidatando todos os anos até 1992, quando foi considerado muito velho. Depois que a fábrica em que trabalhava faliu no mesmo ano, Liang abriu seu próprio negócio atacadista de madeira em meados da década de 1990. Ele logo se tornou um empresário com remuneração muito maior do que um estudante — ganhou um milhão de yuans em um ano (cerca de R$ 660 mil, em valores atuais) e começou um negócio de materiais de construção. Mas em 2001, quando o governo chinês removeu o limite de idade para o Gaokao, ele reiniciou seus estudos para o exame. Desde então, ele só perdeu os exames anuais devido a problemas de saúde ou à sua movimentada agenda de trabalho. Ao longo dos anos, sua motivação para passar no exame mudou — em vez de buscar uma oportunidade para mudar sua vida, ele agora queria mostrar que não desistiria diante de fracassos. "Se você não cursa uma faculdade, sua vida não estará completa sem o ensino superior", disse ele ao jornal local The Papers em 2014. Em 7 de junho deste ano, ele voltou a fazer os exames. Durante a fase de preparação, ele se absteve de beber e jogar mahjong (jogo de mesa de origem chinesa) para se concentrar nos estudos. Mas, novamente, não foi sua vez de entrar na faculdade. Liang disse que, ao contrário dos anos anteriores, ele está começando a se sentir derrotado. "Estive pensando se devo continuar", disse ele ao Tianmu News. "Talvez eu precise refletir sobre mim mesmo." Em outra entrevista, Liang expressou mais dúvidas. "Talvez eu desista (no próximo ano)", disse ele. "Se eu comparecer no ano que vem, vou deixar de usar meu sobrenome, Liang, caso seja reprovado."
2023-06-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g0yv2j8d9o
sociedade
Vídeo, As fotos de natimortos que ajudam mães no luto: ‘É tudo que tenho dela’Duration, 12,44
Alerta: Essa reportagem contém depoimentos e imagens que podem sensibilizar ou entristecer. No Reino Unido, a prática de tirar fotos de bebês que nascem mortos, para oferecer às mães, virou orientação oficial em vários hospitais públicos. A psicóloga Daniela Bittar, especializada em luto materno, explica que o contato da mãe com o bebê e o acesso a fotos dele são importantes para processar a perda. A perda dessa criança também pode provocar dor intensa no parceiro, que acompanhou a gestação da mulher. Mas ainda sim, a conexão física torna a experiência da mãe única, segundo Bittar. Ela explica que, no Brasil, muitas pessoas e até médicos obstetras acham, por desconhecimento, que o melhor para amenizar a dor de uma mãe que perde o bebê ao nascer é limitar o contato dela com o filho que partiu. No choque, muitas mulheres não querem ver o corpo e seguem o conselho dos médicos, de não segurarem o bebê. Mas, depois, essa ausência de despedida dificulta o processo de elaboração do luto, diz a psicóloga. As fotos ajudam a mulher que, no choque da perda não quis ver o filho, a se despedir posteriormente e a reconhecer a existência daquele filho, diz Bittar. Neste vídeo, nossa repórter Nathalia Passarinho conta a história da brasileira Sara Tonkin, que viveu essa perda com o marido no Reino Unido, onde vivem. Sara conta como as fotos da filha a ajudaram a enfrentar o luto. Assista e confira.
2023-06-27
https://www.bbc.com/portuguese/geral-66032219
sociedade
Feminismo atual é voltado a uma minoria privilegiada, diz filósofa feminista
O feminismo atual é "distante" para a grande maioria das mulheres e só encontra eco entre as "muito privilegiadas". Essa avaliação é feita por Nancy Fraser, filósofa americana e professora titular de ciências políticas e sociais da New School for Social Research, em Nova York. Feminista, Fraser publicou diversos livros sobre filosofia política e social nos EUA e Brasil, incluindo Feminismo para 99% - um manifesto, e conversou com a BBC News Brasil sobre o debate acerca da diversidade e pautas identitárias que toma conta do cenário político atual. Ela faz críticas à esquerda sobre representantes de movimentos identitários que, segundo ela, se unem a uma "agenda neoliberal", que teve efeitos negativos no bem-estar social dos trabalhadores em todo o mundo, em uma luta para 1% da população. "O feminismo para os 99%, como entendemos, é um projeto de entender que você não pode separar gênero de raça, classe, sexualidade, ecologia, democracia e políticas econômicas", disse. Fraser cunhou o termo "neoliberalismo progressista" para tentar descrever uma aliança entre parte da elite capitalista, centrada em Wall Street e no Vale do Silício - e que busca o livre mercado para empresas e a redução da intervenção do Estado - e liberais de movimentos feministas, antirracistas, ambientalistas e LGBTQIA+. Fim do Matérias recomendadas Para ela, a aliança do "neoliberalismo progressista" dominou a pauta política das últimas décadas e ajudou na ascensão de nomes como Donald Trump, nos EUA, e de Jair Bolsonaro, no Brasil. Fraser também critica o debate que se formou acerca da indicação do advogado Cristiano Zanin Martins para a vaga no STF (Supremo Tribunal Federal) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva neste mês. Políticos de esquerda e representantes da sociedade civil afirmaram que a opção deveria ter sido por uma mulher negra. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para a filósofa, contudo, as condições de sexo e raça do candidato não devem ser as únicas a serem consideradas para a escolha. Confira a entrevista da BBC News Brasil com a filósofa: BBC News Brasil -Para começar, queria entender melhor a sua definição do "neoliberalismo progressista" e como a senhora vê a atual crise pela qual a democracia passa em países como EUA e Brasil? Nancy Fraser - O neoliberalismo progressista é um termo que cunhei para tentar descrever uma aliança entre uma fração da elite capitalista, centrada em Wall Street, no Vale do Silício e Hollywood, lugares simbólicos do capital hi-tech, e de parte dos liberais mainstream de movimentos feministas, antirracistas, ambientalistas e LGBTQIA+. Em muitos países, o neoliberalismo se consolidou com esse tipo de aliança com os progressistas. Você poderia citar Ronald Reagan [ex-presidente dos EUA] e Margaret Thatcher [ex-primeira ministra do Reino Unido], tipos originais de conservadores e que introduziram o neoliberalismo nesses países, mas em outros locais, o neoliberalismo foi realmente consolidado por um tipo de política quase que de centro-esquerda. Falamos, por exemplo, de Bill Clinton, que construiu o que chamamos de “Novos Democratas” - uma força política utilizada para marginalizar a ala esquerda do partido Democrata. Podemos citar também o novo Partido Trabalhista de Tony Blair, no Reino Unido, que são os exemplos mais célebres. Clinton e Blair colocaram, em um mesmo movimento político, feministas, antirracistas, ambientalistas e ativistas LBGTQIA+ de um lado e uma parte muito cosmopolita e super tecnológica dos empresários do outro. A ideia era realmente promover uma liberalização, mercantilização e financeirização da economia, mas que teve efeitos muito negativos na segurança econômica e no bem-estar social das classes trabalhadoras em todo o mundo. As forças que desejavam esse tipo de projeto econômico precisavam de algum carisma, algum tipo de toque especial, que faria esse projeto se tornar atrativo e vinculado a algo que poderia obter amplo apoio. Isso, de certa forma, forneceria cobertura perante a sociedade, dado que essa política econômica é feita para os ricos, mas que, com isso, poderia ser vista como algo amigável pelo restante. Portanto, tal política econômica foi fundida com uma forma de feminismo meritocrático, antirracista e ambientalista. Com isso, essa forma de política socioeconômica conseguiu a imagem de ser algo emancipatória, excitante, que olhava para frente. Em alguns países, como na Alemanha liderada pelo ex-primeiro-ministro Gerhard Schröder, do SPD (Partido Social-Democrata alemão), essa política teve muito sucesso, mas acho que nunca houve um nome para isso. Por isso, comecei a definir esse conjunto de políticas como “neoliberalismo progressista”, pois eu queria realmente sinalizar o neoliberalismo como um projeto econômico muito inconstante e oportunista. BBC News Brasil - O "neoliberalismo progressista" fez com que as discussões se tornassem mais identitárias, ao invés de econômicas, tanto nos EUA como no Brasil? Fraser - Eu distinguiria a discussão entre políticas de distribuição e políticas de reconhecimento. Distribuição é exatamente sobre economia. É sobre trabalho, seguros, salários, sobre também quem paga impostos, quanto as empresas deveriam pagar ou quanto a classe média deveria pagar. Tudo isso é o que eu penso sobre as políticas de distribuição. Do outro lado, há as políticas de reconhecimento, que tem a ver realmente como nós reconhecemos todos os membros da nossa sociedade. Pessoas que pertencem a grupos que são historicamente marginalizados, como, por exemplo, gays e lésbicas, trans, mulheres negras, imigrantes, minorias religiosas, entre outros. Essas pessoas serão reconhecidas como membros plenos da nossa sociedade? Eles terão os mesmos direitos? Para mim, você precisa das duas discussões. Para ter uma sociedade genuinamente justa, precisamos de uma política de inclusão e reconhecimento e de políticas de distribuição igualitárias. E, caso haja um desbalanceamento, se focar em um e ignorar o outro, as coisas irão dar errado. Eu diria que na era do New Deal e da social democracia nos EUA, havia um grande stress sobre políticas mais igualitárias de distribuição, sem uma atenção igual para políticas de reconhecimento. Nas décadas seguintes, em especial nas décadas de 1980, 1990 e 2000, a ênfase mudou apenas para o reconhecimento ou diversidade. Acredito que, por muito tempo, isso sugou o oxigênio de outras discussões. O foco principal dos movimentos sociais progressistas não estava na parte da distribuição, o que foi um desastre porque foi nessas décadas que o neoliberalismo estava se desenrolando e que era o momento real em que você precisava redobrar a atenção sobre a distribuição de renda. Ao invés de trabalharmos para que ambas políticas fossem o foco e houvesse uma conexões entre eles, nós tivemos o foco apenas no reconhecimento ou, como você diz, nas pautas identitárias. Mas, tenho que dizer que recentemente as coisas estão mudando novamente. Eu acho que nós estamos tendo, desde a eleição de Trump nos EUA em 2016, uma mudança das massas, que começam a se virar contra o sistema. Com essas circunstâncias, há mais atenção sobre distribuição e há versões disso na direita e na esquerda, como Trump e Sanders, nos EUA, por exemplo. Agora, a diferença entre os dois está no reconhecimento. Trump é um branco, nacionalista, anti-imigração, antigay e antitrans, enquanto que do outro lado há inclusão. Estamos começando a retornar nessa questão de distribuição e reconhecimento e, nos EUA, neste momento, a direita está fomentando uma guerra cultural focada naquilo que podemos falar nas escolas, o que devemos ensinar sobre o racismo nas escolas, dentre outras coisas. Isso é uma estratégia deliberada para distrair a atenção para longe das políticas econômicas porque os Republicanos, incluindo Trump e seus concorrentes, ainda têm um programa econômico pró-ricos. Eles não querem falar muito sobre isso. Isso é distração. Então, o desafio para o outro lado é resistir a ser tragado pela guerra cultural e deixar o debate econômico de lado ou, ao menos, entender como conectar essas duas visões novamente. A diversidade está se tornando uma palavra utilizada apenas pelas empresas. Todas as companhias, toda universidade, tem um departamento de diversidade e essas pessoas são completamente desconectadas de qualquer ideia de como um conteúdo crítico deveria ser. Isso é uma política muito rasa. Não é algo igualitário. As vezes, aqui nos EUA, nós dizemos "black faces in high places". Então, sem qualquer atenção para a situação da massa das pessoas negras, essa diversidade não possui um conteúdo real e é uma nova distração basicamente. BBC News Brasil - Mas isso ocorreu por causa da própria esquerda ou a extrema-direita pautou o debate? Fraser - Eu acho que é uma ótima questão, mas muito complicada. Eu venho pensando muito nisso. De um lado, nós não devemos fazer parte dessa política de distração, não podemos deixar com que todos os debates institucionais sejam sobre esses problemas. Nós não podemos jogar o jogo deles. Ao mesmo tempo, o que eles estão fazendo é tornar alvo e usando de bode expiatório pessoas reais. Então, nós não podemos lidar com um projeto que nega serviços sociais para uma juventude trans, por exemplo, que está em uma situação frágil e vulnerável. Nós temos que, de alguma forma, estarmos preparados para defender indivíduos que estão sendo usados, ao mesmo tempo que defendemos os direitos de reprodução, que é um outro foco de ataque. Por isso, deveríamos falar sobre tais pontos, mas a parte difícil é perceber como conectar esses dois problemas. Isso não é fácil. BBC News Brasil - A senhora acha que esse "neoliberalismo progressista" ajudou na eleição de presidentes da direita radical, como Trump nos EUA e Bolsonaro, no Brasil? Fraser - Sim, com certeza. Nos EUA não há dúvidas que o bloco do neoliberalismo progressista, que consolidou o neoliberalismo e marginalizou a parte pró-trabalhista do partido Democrata, realmente tem uma grande parte de responsabilidade na deterioração das condições e dos padrões de vida no país. No chamado Cinturão da Ferrugem, que é historicamente o coração da indústria americana e hoje é um terreno baldio com muitos problemas de vício em opioides e violência armada, o neoliberalismo progressista tem muito o que responder. Eles, basicamente, supervisionaram a transição de uma classe trabalhadora altamente sindicalizada para uma massa de trabalho mal paga e precarizada. Não há dúvidas que isso ajudou Trump, mas também ajudou Bernie Sanders. Em outras palavras, as pessoas entenderam, em um certo momento, que eles não poderiam seguir essas políticas neoliberais, que eles precisavam de uma alternativa para uma situação que Antonio Gramsci chama de “crise da hegemonia”. Elas perceberam que o establishment não é mais confiável, o senso comum já não era mais persuasivo, então as pessoas estavam olhando para uma alternativa radical. Algumas olharam para Trump, outras para Sanders, e o que é muito interessante é que às vezes elas optavam por Sanders, mas com ele fora da disputa, votaram em Trump, em um fenômeno semelhante ao que ocorreu no Brasil, com o voto “Bolsolula”. Qualquer forma de neoliberalismo se tornou tóxica, politicamente falando. As pessoas começaram a procurar alternativas para esse sistema. Em um país como os EUA, onde o neoliberalismo se aliou aos progressistas, é compreensível que Trump fosse o beneficiário maior dessa busca. Isso porque o neoliberalismo se associou muito ao tema da diversidade e, ao rejeitar esse sistema econômico, acabam por rejeitar também a pauta identitária. BBC News Brasil - No livro Feminismo para os 99% por que a senhora afirma que “o feminismo liberal está falido” e que “é necessário um feminismo para a grande maioria”. O que seria isso? Fraser - O feminismo sempre foi um movimento com muitas correntes e facções diferentes, ou seja, o feminismo é algo com muitas visões e argumentações. No entanto, em países como os EUA, o feminismo liberal vem sendo hegemônico. Isso se tornou um padrão porque o liberalismo é muito forte na nossa cultura, em geral. O feminismo surgiu como um movimento radical, em uma nova esquerda, anti-imperialista e anticapitalista, mas assim que a poeira baixou, o feminismo virou um grupo de interesse por assim dizer, e amplamente colado ao partido Democrata nos EUA. Isso se tornou um assunto normal, uma tendência, e mais e mais focado em como colocar um pequeno número de mulheres em posições de poder dentro de uma hierarquia corporativa, do mundo político e até mesmo na hierarquia militar. A ideia era que segurar as mulheres embaixo seria uma discriminação e se removessemos essa discriminação, essas mulheres super talentosas poderiam alcançar o topo. Isso é uma visão absurdamente rasa, que ignora completamente as bases da subordinação das mulheres em uma sociedade moderna, que é como dividimos o trabalho produtivo do trabalho de reprodução social, onde pagamos um e o outro não. Isso é uma característica arraigada profundamente na sociedade, que tem efeitos gigantescos nas chances de vida de homens e mulheres. Então, focaram na ideia de que queremos a meritocracia, da ascensão talentosa, mas a meritocracia não é o mesmo do que igualdade. Eu acho que nós tivemos evidências suficientes nos últimos 40 anos para ver que esse feminismo realmente não é capaz de garantir uma condição satisfatória e igualitária para mulheres de todas as classes sociais e raças. Isso foi manejado de maneira perfeita pela classe dominante, que já tem uma boa educação, boa formação cultural e muitos recursos, mas por isso nós tivemos basicamente um “feminismo de uma só questão”, focado apenas no gênero de uma mesma classe social. Então, agora eu acredito que o problema é conseguir entender que não podemos isolar a questão de gênero. Se tentarmos, nós acabaremos no feminismo para 1% da população. O feminismo atual é um grito distante para a grande maioria e faz eco apenas para essas mulheres muito privilegiadas, que possuem o luxo de dizer que nós não precisamos nos preocupar com classes, cor ou temas econômicos, apenas com gênero. O feminismo para os 99%, como entendemos, é um projeto de entender que você não pode separar gênero de raça, classe, sexualidade, ecologia, democracia e políticas econômicas. Eu acho que sempre houve feministas que praticam esse tipo de feminismo para os 99%, mas que pode ter outros nomes pelo mundo. Nos EUA, os movimentos feministas populares existem, mas são muito marginalizados, enquanto que a mídia foca no feminismo de Hillary Clinton, das atrizes de Hollywood com o movimento “Me too”, mesmo que a maioria das vítimas de assédio sexual sejam trabalhadoras de fazendas ou de hotéis, por exemplo. Quando Hillary Clinton perdeu para Donald Trump, no exato momento em que estávamos escrevendo o livro, pensamos que seria um tipo de chamado, uma derrota do feminismo liberal. Agora, eu não diria que o feminismo liberal está derrotado, mas acho que há mais abertura agora para formar alternativas de feminismo, como o que ocorre no Brasil e Argentina, onde algumas feministas conquistaram grande visibilidade e que representam o que chamamos de feminismo para 99%. BBC News Brasil - No Brasil, o STF deverá colocar em julgamento a possibilidade do aborto legal ainda neste ano. No mesmo livro, as autoras afirmam que “o aborto legal faz pouco pelas mulheres pobres”. O que isso significa? A luta pelo aborto legal, em si, não é suficiente? Fraser - Eu sou uma forte apoiadora do aborto legal, quero deixar isso bem claro. Mas, se você pensar qual é o objetivo que buscamos alcançar ao tornar o aborto legal é tentar dar as pessoas a liberdade, incluindo os recursos que elas precisam para entender a liberdade e fazer que a decisão de ter um filho seja autônoma. Para que elas consigam organizar suas vidas, elas precisam viver com o poder de decisão, mas também com dignidade, segurança e com suporte de um sistema público forte. De maneira simples, eu estou dizendo que o fato de podermos interromper a gravidez quando nós quisermos é necessário, mas não o suficiente para ter uma autonomia reprodutiva. Aborto legal é uma condição absolutamente necessária, mas apenas uma. Há outras e precisamos de segurança dos meios de subsistência, moradia decente e acessível, assistência médica e suporte para as crianças, com escolas, etc. Isso faria com que as mulheres tivessem uma decisão realmente empoderada e autônoma. No momento, as pessoas estão fazendo o seu melhor em termos de tentar dar o poder de decisão sobre a gravidez, mas infelizmente isso não é o ideal. Agpra, é a hora das feministas de esquerda tentar unir o direito ao aborto para o serviço social, com garantia de renda e moradia. É o mesmo caso da violência contra a mulher. A esquerda entendeu que apenas colocar o parceiro abusador na cadeia não é o suficiente, que é necessário oferecer saídas reais para que as mulheres possam realmente sair de relações abusivas. Elas precisam ter um local seguro para criar suas crianças e reconstruir suas vidas, o que, novamente, é algo para o serviço social e o direito à renda e moradia. BBC News Brasil - Neste mês, o presidente Lula indicou seu ex-advogado, um homem branco, para a Suprema Corte. Parte da esquerda criticou a indicação apenas por ser um homem branco, enquanto que a outra parte silenciou, mas sem uma discussão acerca das posições políticas do indicado. Como a senhora vê isso? Fraser - Em uma escolha para uma Suprema Corte, eu acredito que é necessário prestar muita atenção para entender as posições jurídicas e em relação ao mundo do candidato. Se voltarmos às eleições de 2016 nos EUA, eu apoiei Bernie Sanders contra Hillary Clinton. Eu sou uma feminista. Você acha que eu achei incrível ter mais um homem branco na Casa Branca? Mas o mais importante para mim, naquele momento, era o que Bernie e Hillary representavam. Para ser honesta, as feministas estavam divididas e também existiu esse tipo de debate que surgiu agora no Brasil. Nós tivemos a experiência de eleger o primeiro presidente negro dos EUA, Barack Obama, e foi um momento de muita esperança, mas que se tornou uma grande decepção. Isso mostra os limites sobre essa discussão de ter que eleger um político que apenas pareça você fisicamente. Claro que seria incrível ter uma pessoa negra e tenho certeza que há muitos negros e negras qualificados para serem indicados para o STF no Brasil. Mas, eu diria que focar exclusivamente na questão identitária é um problema. BBC News Brasil - Discussões sobre as escolhas no STF baseada em diversidade também fazem surgir críticas sobre a suposta “americanização” da política brasileira, cada dia mais influenciada e pautada pelos debates e formas dos EUA. A senhora acredita nisso? Fraser - Eu não tenho certeza. Vocês ao menos têm um partido dos trabalhadores, coisa que não temos por aqui (risos). Eu diria que o que ocorre em todo lugar é a influência das redes sociais e da tecnologia na comunicação política. Isso é uma mudança no jogo e, com certeza, tem um efeito gigantesco. Se você me perguntar o que fez Trump ter a possibilidade de capitalizar os efeitos negativos do neoliberalismo na classe trabalhadora, eu responderia a mudança radical na estrutura da mídia e na comunicação política. O que começou lá atrás, com a rádio, depois TVs como a Fox News, se transformou para as redes sociais. Agora, temos um mundo estranho da não-comunicação, fatos alternativos, etc. Discutimos os depoimentos de Trump para a Justiça, mas nas redes a população se divide como eles enxergam isso. Não sei se as coisas são exatamente assim no Brasil, mas claramente podemos ver como a tecnologia também impacta a política por aí. Quando essa tecnologia de transformação encontra a deterioração das condições de vida da população, coisas como a eleição de Trump, que é um gênio da comunicação e da demagogia, podem ocorrer. Então espero que o Brasil consiga escapar dessa espiral.
2023-06-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv211rld5ggo
sociedade
Por que 101 pessoas e uma cadela disputam o cargo de prefeito de Toronto
Toronto decidirá nesta segunda-feira (26/6) quem será seu próximo prefeito, depois que revelações de um caso extraconjugal tiraram o antigo líder da cidade do cargo. Não faltam candidatos para escolher — na verdade, um total histórico de 102 nomes estará na cédula, incluindo Molly, uma cadela. A cachorra de seis anos da raça husky e seu dono, Toby Heaps, estão prometendo "parar o ataque de sal" nas estradas da cidade durante o inverno. O sal é comumente usado em estradas durante o inverno rigoroso porque ajuda a derreter o gelo e a neve, tornando as estradas mais seguras para viagens. No entanto, o uso excessivo de sal pode ter impactos ambientais, como danos à vegetação e aos ecossistemas aquáticos. Além disso, argumenta Heaps, pode machucar as patas de cães de patas sensíveis como Molly. Fim do Matérias recomendadas Sua campanha também propõe uma solução para a inacessibilidade à moradia, um aumento de impostos sobre empresas bilionárias e a proibição de sistemas de aquecimento de combustíveis fósseis em novas residências e prédios comerciais. Se ele vencer, afirma, designará Molly como a primeira prefeita honorária canina da cidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Acho que a prefeitura tomaria decisões melhores se houvesse um animal na sala", disse ele à BBC. Heaps disse que esta eleição é uma oportunidade que ele simplesmente não pode perder. É a primeira eleição suplementar na história de Toronto desde que sete municípios se uniram para formar o que é coloquialmente conhecido como "mega-cidade" há 25 anos. O concurso foi convocado após a renúncia de John Tory, prefeito da cidade nos últimos oito anos. A ascensão de Tory ao poder em 2014 foi vista como um alívio bem-vindo da gestão de Rob Ford, que ganhou as manchetes internacionais por admitir ter fumado crack enquanto estava no cargo. Mas Tory foi criticado por não ter uma visão significativa para Toronto e por aprofundar a desigualdade em uma das cidades mais caras do mundo. Uma coluna do jornal canadenses Toronto Star o descreveu como "raramente inspirador e muitas vezes excessivamente cauteloso". Ele também é criticado por supervisionar uma Toronto que aparentemente está em um ponto de crise, especialmente porque a cidade ainda se recupera dos efeitos da pandemia de covid-19. Durante seu mandato, muitos apontam para problemas como aumento na violência armada, escassez e preço alto de moradias, e violência no transporte público. Apesar dessas críticas, Tory foi eleito três vezes. A mais recente foi em outubro de 2022, quando apenas algumas dezenas de candidatos o desafiaram na época, já que ele era visto como um candidato à reeleição. Até que um escândalo próprio o forçou a deixar o cargo alguns meses depois. Um artigo de fevereiro no Toronto Star revelou que o prefeito casado de 68 anos teve um caso com uma funcionária de 31 anos durante a pandemia de covid-19. Ele renunciou alguns dias após a publicação. Com ele fora de cena, a próxima eleição suplementar em 26 de junho é "uma disputa aberta", disse Nelson Wiseman, professor emérito de ciência política da Universidade de Toronto. "A diferença entre a última vez e esta é que não sabemos quem vai ganhar", disse o professor Wiseman. Uma taxa de C$ 250 (cerca de R$ 904) e 25 assinaturas é tudo que um cidadão de Toronto precisa para concorrer a prefeito. Ao contrário de outras grandes cidades norte-americanas, como Nova Iorque, Los Angeles e Chicago, os candidatos não concorrem de acordo com as linhas partidárias, o que significa que não existe um processo de nomeação que reduza o número de candidatos. Karen Chapple, diretora da Escola de Cidades da Universidade de Toronto, disse que, com o campo aberto, alguns são atraídos para concorrer apenas para ver se têm uma chance. "Há uma espécie de aspecto de aposta nisso", disse ela à BBC. Juntamente com o comparecimento de eleitores consistentemente baixo nas eleições para prefeito de Toronto, isso significa que os candidatos mais bem-sucedidos já precisam de um pouco de reconhecimento. A favorita na corrida é Olivia Chow, considerada o oposto político de John Tory, que ocupa um cargo público desde 1992 e é viúva de Jack Layton, o líder mais celebrado da história do Novo Partido Democrático do Canadá. Muitos de seus opositores são ex-vereadores, com perfis próprios na comunidade. Mas a amplitude e diversidade de candidatos desta vez — de Molly, a cachorra, a uma jovem de 18 anos recém-saída do ensino médio — conta uma história de como a cidade se tornou fragmentada, disse Chapple. Com uma população de quase 3 milhões, incluindo muitos recém-chegados e imigrantes, Toronto é a quarta maior cidade da América do Norte e constantemente citada como uma das cidades mais diversificadas do mundo. Mas com todas essas perspectivas, surgem diferentes perspectivas sobre que tipo de cidade Toronto deveria ser. Alguns conseguem pagar pelo impressionante mercado imobiliário da cidade, enquanto outros alugam apartamentos no porão com colegas de quarto. Há pessoas que vivem nos limites externos da cidade lutando contra o tráfego diário e moradores do centro disputando espaço no metrô. Esses pontos de vista diferentes são refletidos no grupo de candidatos. O ex-chefe de polícia Mark Saunders prometeu aumentar o orçamento da polícia da cidade para combater o crime, enquanto Chow concentrou suas promessas na crise imobiliária de Toronto, prometendo construir casas em terrenos de propriedade da cidade. "Você está vendo uma espécie de reflexo e microcosmo do que Toronto é como cidade", disse Chapple. Enquanto isso, Chloe Brown, uma jovem analista de políticas que passou a maior parte de sua carreira trabalhando com comunidades carentes, afirmou sem rodeios que "Toronto não precisa de mais policiamento", prometendo, em vez disso, financiar apoio à saúde mental. Especialistas e candidatos disseram que ter mais de 100 candidatos na cédula pode ser positivo e negativo. Por um lado, garante que uma variedade de perspectivas seja ouvida e incluída. Mas, por outro lado, Chapple disse que isso também significa que o próximo prefeito de Toronto provavelmente será definido por uma porcentagem muito pequena da população. "Você poderia ter uma situação em que poderia ter uma minoria extrema tomando decisões essencialmente pela cidade", disse ela. Com tanta concorrência, Heaps, tutor de Molly, disse que está ciente de que pode não se tornar o próximo prefeito de Toronto. Sua decisão de concorrer, disse ele, nasceu de uma conversa com seu filho de sete anos. "Eu disse: 'Ok, bem, você sabe que há uma boa chance de não vencermos. Como você se sentiria então?'", lembrou Heaps. "Ele disse: 'Eu ficaria bravo, ficaria triste, mas ficaria feliz por você ter tentado'." "Isso foi bom o suficiente para mim."
2023-06-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c14xvvg1wyyo
sociedade
O resgate de dois homens que sobreviveram após 84 horas presos em submersível há 50 anos
Cinquenta anos atrás, dois marinheiros britânicos afundaram a mais de 450 metros em um submersível de águas profundas a 240 quilômetros da Irlanda. Presos em uma esfera de aço de 1,8 metro de diâmetro por três dias, os homens tinham apenas 12 minutos de oxigênio quando finalmente foram resgatados. A BBC publicou originalmente esta reportagem em 2013. Em razão do incidente com o submersível Titan, o caso de cinco décadas atrás voltou a despertar interesse. Embora a história do Pisces III (nome dado ao submersível) tenha sido uma grande notícia há 50 anos, estava esquecida até recentemente. Naquela quarta-feira, 29 de agosto de 1973, o ex-marinheiro da Royal Navy Roger Chapman, então com 28 anos, e o engenheiro Roger Mallinson, com 35, afundaram no Oceano Atlântico em um acidente. A operação de resgate internacional levou 76 horas e eles passaram mais de 84 horas lá. Fim do Matérias recomendadas Veja como o incidente e o esforço de resgate se desenrolaram: Os pilotos Roger Chapman e Roger Mallinson começaram um mergulho de rotina no Pisces III. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O submersível comercial canadense, que trabalhava em um transporte para os Correios, estava instalando um cabo telefônico transatlântico no fundo do mar, a 240 quilômetros a sudoeste da cidade de Cork, na Irlanda. "Levou cerca de 40 minutos para afundar a não mais de 500 metros e um pouco mais rápido para voltar", lembra Chapman. "Estávamos fazendo turnos de oito horas, percorrendo a superfície do fundo do mar a meia milha por hora (0,8 quilômetro), instalando bombas e jatos que liquefaziam a lama, colocando cabos e certificando de que tudo estava coberto. Era um trabalho muito lento e com pouca visibilidade." Mallinson diz que essa pouca visibilidade tornava o trabalho exaustivo. "Era como dirigir em uma rodovia sob forte neblina e tentar seguir uma linha branca: você tinha que se concentrar além do que você poderia imaginar." Para Mallinson, aquele turno exaustivo foi seguido por um período de 26 horas sem dormir. "Um mergulho anterior danificou o manipulador, então trabalhei o dia todo consertando. Eu conhecia o Pisces III de dentro para fora, tendo o reconstruído quando chegou do Canadá como um naufrágio", disse. Por um golpe de sorte, o engenheiro também decidiu trocar o tanque de oxigênio. "Era o suficiente para fazer o mergulho, mas por algum motivo decidi trocá-lo para um tanque cheio, o que não foi um feito físico pequeno, pois era muito pesado." "Eu poderia ter me metido em problemas por trocar um tanque pela metade, mas acontece que, se não tivesse feito isso, não teríamos sobrevivido", contou. Os pilotos também tiveram que cuidar do suporte de vida. A cada 40 minutos, eles ligavam um ventilador de hidróxido de lítio para sugar o dióxido de carbono exalado e injetavam uma pequena quantidade de oxigênio. Eles também registraram cada mergulho em vídeo. O Pisces III estava terminando a operação quando, de repente, o inesperado aconteceu. "Estávamos esperando para amarrar o cabo de reboque para nos levantar e nos levar de volta ao navio-base", disse Chapman. "Houve muita pancada de cordas e grilhões, como é normal na última fase da operação, quando de repente fomos jogados para trás e afundamos rápido. Ficamos pendurados de cabeça para baixo e depois subimos", contou Chapman. A esfera traseira – uma esfera hermética menor onde estava o maquinário – havia sido inundada quando a escotilha foi aberta. De repente, o submarino pesava mais de uma tonelada. "Enquanto estávamos afundando, minha maior preocupação era se estávamos perto da placa continental, porque se a atingisse, seríamos esmagados." Mallinson se lembra do submersível balançando e tudo se soltando enquanto eles caíam. "Foi muito assustador, como um bombardeiro de mergulho com motores gritando e medidores girando." Os pilotos desligaram os sistemas elétricos e deixaram escuridão total, deixando cair um peso de chumbo de 181 quilos para torná-lo mais leve enquanto desciam. "Demorou cerca de 30 segundos até chocarmos. Desligamos o indicador de profundidade a 500 pés (152 metros), pois poderia ter explodido. Conseguimos encontrar um pano branco para colocar em nossas bocas para não mordermos nossas línguas também", contou Mallinson. O submarino atingiu o fundo, a 480 metros, às 9h30. Mallinson diz que a primeira coisa que sentiu foi alívio por estarem vivos. Posteriormente, ele descobriu que caiu a uma velocidade de 65 quilômetros por hora. "Não nos machucamos, mas havia ferramentas por toda parte e estávamos segurando os canos. Ficamos sentados lá com uma lanterna. Sem saber, havíamos atingido uma ravina, então meio que desaparecemos no fundo do mar", disse Chapman. O Pisces III conseguiu fazer contato telefônico, enviando uma mensagem dizendo que ambos estavam bem e eles estavam se organizando. As primeiras indicações sugeriam que o suprimento de oxigênio duraria até o início da manhã de sábado. O submarino tinha 72 horas de oxigênio em caso de acidente, mas já havia usado oito horas no mergulho. Eles tinham 66 horas restantes. Os pilotos passaram as primeiras horas "se organizando", de acordo com Chapman. “O submarino estava quase de cabeça para baixo, tivemos que reorganizá-lo, consertar a caixa de ferramentas e garantir que não houvesse vazamentos”, disse ele. Se queriam que o oxigênio durasse, tinham que se mexer pouco. "Se você se acalmar, usa um quarto do oxigênio. Você não fala nem se move", contou. Os dois homens ficaram o mais alto possível no submarino, acima do ar pesado que se depositava no fundo, de acordo com Mallinson. O diâmetro interno da esfera da tripulação era de apenas 1,8 metro, então os pilotos tinham pouco espaço. "Quase não nos falamos, apenas nos demos as mãos e nos cumprimentamos para mostrar que estávamos bem", contou Mallinson. "Estava muito frio, estávamos molhados. Eu não estava nas melhores condições, de qualquer maneira, tendo apenas uma intoxicação horrível por carne e torta de batata por 3-4 dias. Mas nosso trabalho era permanecer vivo", disse. Na superfície, o resgate estava em andamento. O navio de apoio Vickers Venturer, então no Mar do Norte, foi contatado pouco depois das 10h30 e recebeu ordem de levar o submersível Pisces II (irmão do Pisces III) ao porto mais próximo. O HMS Hecate da Marinha Real foi enviado ao local por cordas especiais às 12h09 e aeronaves sobrevoaram a área. Um submersível da Marinha dos EUA, CURV III, projetado para coletar bombas do mar, foi enviado da Califórnia e o navio da Guarda Costeira canadense John Cabot deixou Swansea na costa galesa. O navio Vickers Voyager chegou a Cork (na Irlanda) às 8h para carregar os submersíveis Piscis II e Piscis V, que chegaram durante a noite de avião. O navio deixou Cork às 10h30. Enquanto isso, Chapman e Mallinson observavam como os suprimentos estavam acabando. Os pilotos tinham apenas um sanduíche de queijo e chutney e uma lata de limonada, mas não quiseram comer ou beber, segundo Chapman. "Permitimos que o CO2 aumentasse um pouco para economizar oxigênio. Tínhamos cronômetros para monitorar a cada 40 minutos, mas queríamos esperar um pouco mais. Isso nos deixou um pouco letárgicos e sonolentos." "Também começamos a pensar em nossas famílias. Eu tinha acabado de me casar, e me concentrava em minha esposa, June. Roger Mallinson tinha quatro filhos pequenos e sua esposa, e começou a ficar um pouco ansioso sobre como eles estavam”, disse. "Sexta-feira foi um desastre do ponto de vista da superfície", contou Chapman. O Pisces II foi lançado com uma corda especial de polipropileno presa a um gancho dobrável às 2h, mas a corda de içamento se rasgou e teve que ser devolvida à base para reparos. O Pisces V também foi lançado em uma corda de polipropileno e, embora conseguisse chegar ao fundo do mar, não conseguiu encontrar o Pisces III, porque ficou sem energia. Ele voltou à superfície e tentou novamente. "Era quase 13h quando o Pisces V nos encontrou. Foi incrivelmente encorajador saber que alguém sabia onde estávamos. Mas quando Pisces V tentou prender um gancho, a tentativa falhou devido à flutuabilidade da corda", contou Chapman. O Pisces V recebeu ordens de ficar com o Pisces III, embora não pudesse levantá-lo. O Pisces II desceu novamente, mas teve que voltar à superfície depois que a água entrou em sua própria esfera. Em seguida, o CURV III, que havia chegado por volta das 17h30, teve uma falha elétrica e não conseguiu zarpar. "À meia-noite de sexta-feira, tínhamos apenas o Pisces V e dois submersíveis quebrados", disse Chapman. "Então o Pisces V foi ordenado a emergir logo após a meia-noite, o que foi um pouco difícil. Era como se estivéssemos de volta à estaca zero sem ninguém por perto." "Nossas 72 horas de oxigênio estavam acabando, estávamos ficando sem hidróxido de lítio para limpar o CO2, estava muito sujo e frio e estávamos quase resignados", contou Chapman. Mallinson concordava que a esperança estava diminuindo na época. Porém, ele afirmou que teve uma coisa que o ajudou: a presença dos golfinhos. "Nós os vimos no dia 28 e, embora não pudéssemos vê-los naquele momento, pude ouvi-los no telefone subaquático durante os três dias inteiros. Isso me deu muito prazer", contou. O Pisces II foi relançado com uma alavanca especialmente projetada e outra corda de polipropileno. "Pouco depois das 5 da manhã, eles nos viram na esfera de popa; eles sabiam que ainda estávamos vivos", diz Chapman. "Então, às 9h40, o CURV III desceu e fixou outra corda, com o bastão inserido na abertura da esfera de popa. Ficamos nos perguntando o que estava acontecendo, por que não estávamos sendo levantados." Chapman diz que foi nesse ponto que os pilotos souberam que a linha estava conectada. Mas Mallinson disse que não tinha certeza se o resgate funcionaria. "A esfera traseira não era o ponto forte. Estávamos na esfera dianteira e fiquei muito chateado por não estarmos sendo levantados por ela. Achei que era a decisão errada." "Acho que, naquele momento, se qualquer um de nós tivesse sido perguntado se queríamos ser colocados no chão ou levantados, ambos teríamos dito 'deixe-nos em paz' ​​- a recuperação era tão assustadora e as chances de nos levantarmos eram quase nulas”, acrescentou. Até que o levantamento do Pisces III começou. "Assim que saímos do fundo do mar, foi muito difícil, muito desorientador", diz Chapman. O elevador parou duas vezes durante a subida. Uma vez a 100 metros, para desembaraçar o CURV, e uma segunda vez a 30 metros, para que os mergulhadores pudessem prender cabos de elevação mais pesados. "Estávamos rolando e balançando, então eles precisavam de mais cordas para que pudéssemos ser puxados juntos", diz Mallinson. O Pisces III foi arrastado para fora da água. "Aparentemente, eles pensaram que estávamos mortos quando olharam para nós, tudo tinha sido tão violento", disse Chapman. "Quando eles abriram a escotilha e o ar fresco e a luz do sol entraram, ficamos com dores de cabeça ofuscantes, mas ficamos exultantes." "Foi muito difícil sair de lá tão amontoados que mal conseguíamos nos mover." Mallinson disse que levou uns bons 30 minutos para abrir a escotilha. "Estava preso. Quando abriu, disparou como uma arma, sentimos o cheiro da maresia", disse ele. Os pilotos estavam no Pisces III havia 84 horas e 30 minutos quando finalmente foram resgatados. "Estávamos com 72 horas de suporte de vida quando começamos o mergulho, então conseguimos durar mais 12,5 horas. Quando olhamos para o cilindro, tínhamos 12 minutos de oxigênio restantes", diz Chapman. O resgate chamou a atenção da mídia e do público. Logo após o salvamento, Roger Chapman criou a empresa Rumic, que fornece operações e serviços submarinos. Ele se tornou uma autoridade líder em resgate submersível, sendo contatado para o naufrágio do Kursk em nome da Royal Navy em 2000, e desempenhando um papel central no resgate bem-sucedido da tripulação de 7 homens do submarino russo AS-28 Prize, em 2005. A Rumic foi adquirida pela empresa britânica James Fisher and Sons e agora é conhecida como James Fisher Defense. Enquanto isso, Mallinson, que mora em Lake District, no Reino Unido, continuou trabalhando para a mesma empresa em submersíveis até 1978. Ele se envolveu fortemente na restauração de motores a vapor e até foi premiado por seu trabalho. Os dois homens mantiveram contato e se encontraram todos os anos. Chapman morreu de câncer em 2020, aos 74 anos. Embora o dramático resgate subaquático de Chapman tenha claramente influenciado sua carreira, em 2013 ele disse que não houve outra consequência em sua vida. "Estou um pouco mais relutante em entrar no elevador, acho que é por subir e descer, mas é a única coisa que me preocupa fisicamente", disse ele. Mallinson afirmou que, se o submarino afundasse novamente, "eu não faria nada diferente." "Roger Chapman (era) um grande homem. Outra pessoa poderia ter entrado em pânico. Se eu pudesse escolher alguém para me acompanhar, teria sido ele", disse.
2023-06-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgrm4j44p8lo
sociedade
Os profissionais que desistiram de ser nômades digitais
Os nômades digitais se tornaram personagens característicos da era moderna do trabalho remoto. A expressão, muitas vezes, faz imaginar um escritor ou profissional da tecnologia com seu computador, perambulando pelas ruas de uma pitoresca cidade estrangeira ou pilotando seu teclado em um café em frente à praia. Eles observam o mundo, conhecem novas pessoas e trabalham nos seus próprios horários. Mas os nômades digitais podem ser muitos tipos de trabalhadores diferentes. Alguns são freelancers ou terceirizados; outros são empresários que estão construindo seus próprios negócios; e outros trabalham em cargos remotos em tempo integral para empresas ao redor do mundo. Alguns são assalariados, outros ganham por tarefa. E especialistas afirmam que, de forma geral, muitos desses profissionais são da área administrativa e têm bons níveis de formação educacional. Fim do Matérias recomendadas Os dados dos especialistas e histórias isoladas demonstram que a quantidade de nômades digitais vinha crescendo nos últimos anos, com um grande pico na chegada da pandemia de covid-19. E, em países onde há menos dados disponíveis, existem inúmeros recursos para ajudar os profissionais remotos a seguirem seu caminho pelo mundo. Mas um número cada vez maior de profissionais que tentaram seguir o estilo de vida nômade relata que, por trás dos idílicos blogs de viagem e das postagens inspiradoras no Instagram, a realidade desta prática nem sempre é tão glamourosa. Existem muitas vantagens para os profissionais que tentaram este estilo de vida, mas muitos deles também afirmam que a falta de laços traz consequências para a saúde mental e física, até prejudicando sua satisfação profissional. O resultado é que alguns nômades abandonaram esse estilo de vida e suas vistas para o mar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 2011, Lauren Juliff demitiu-se do emprego em um supermercado no Reino Unido para ver o mundo. Ela lançou um site de viagens para financiar suas aventuras. E, para sua surpresa, em um ano ela começou a ganhar o suficiente para se tornar uma nômade digital. “Eu adorei viajar. Meu sonho sempre foi ver o máximo do mundo possível e, quando transformei aquele sonho em realidade, decidi que nunca iria desistir dele”, ela conta. “Explorar novos países me fez sentir viva e aprender muito – sobre novas culturas e sobre mim própria – todos os dias.” Mas, depois de cinco anos, o entusiasmo pelo estilo de vida nômade pelo mundo começou a diminuir. Agora aos 34 anos, Juliff conta que sua jornada – inicialmente idílica, parecendo um sonho – se transformou em uma obrigação cansativa que ela queria abandonar desesperadamente. Viver e trabalhar em constante mudança teve repercussões inesperadas sobre a sua saúde física e mental. “Comecei a ter ataques de pânico todos os dias, que só paravam quando eu imaginava que tinha uma casa”, ela conta. A falta de uma comunidade estável resultou na perda de amizades antigas, gerando sentimentos de solidão e depressão. A saúde de Juliff foi prejudicada por sofrer infecções e intoxicações alimentares com frequência. Sem acesso a uma cozinha ou academia, ela conta que seu estilo de vida não era saudável. Juliff dependeu de refeições de restaurantes três vezes por dia, todos os dias, por anos. E sua vida pessoal também foi prejudicada. “Eu não tinha hobbies porque era muito difícil mantê-los vivendo com uma mochila nas costas”, ela conta. E manter a produtividade na estrada também resultou ser um desafio. Tentar administrar o trabalho, explorar novos lugares e lidar com conexões de internet muitas vezes não confiáveis era desanimador. “Eu tinha dificuldades para manter meu negócio com eficiência”, segundo ela. “Eu trabalhava deitada na cama porque raramente tinha acesso a uma mesa.” A ruptura veio quando os ataques de pânico – que ela atribui ao estilo de vida nômade – a levaram a encontrar uma casa para servir de base. Depois de se instalar em Portugal e alugar um apartamento, Juliff viu sua renda triplicar em um ano. Ela acredita que a melhoria se deve à consistência de estar em um só lugar e não viajando constantemente. Seus ataques de pânico desapareceram, ela passou a frequentar a academia, começou a cozinhar refeições saudáveis e estabeleceu uma sólida comunidade de amigos. Romper com o estilo de vida nômade foi uma decisão difícil para Juliff, pois ela precisava construir sua identidade em torno da vida de nômade digital em tempo integral. Tudo o que ela fazia era concentrado em viagens: ela mantinha um blog de viagens, planejava futuras viagens no seu tempo livre e todos os seus amigos eram viajantes. “Tomar a decisão de parar foi difícil”, ela conta. “Tive um pouco de dificuldade para aprender quem eu era como pessoa sem viajar o tempo todo.” A socióloga Beverly Thompson, do Siena College, nos Estados Unidos, pesquisa a atividade de nômade digital. Ela explica que as pessoas que escolheram o estilo de vida nômade digital não estavam preparadas para as desvantagens, em parte, porque a sua comunidade costuma apresentar uma imagem idealizada nos blogs e nas redes digitais, escondendo os aspectos negativos como a solidão, problemas de saúde mental e dificuldades financeiras. Alguns profissionais consideram que este ainda é um cenário sustentável, especialmente, segundo Thompson, aqueles que monetizam o estilo de vida nas redes sociais. Mas ser nômade não funciona para todas as pessoas que se aventuram nessa atividade. “Você é totalmente restrito pelo seu passaporte”, afirma Thompson. “Você precisa ter um passaporte poderoso.” Ela indica que passaportes mais restritos limitam o número de países que podem ser visitados sem visto de turista. A burocracia foi um problema para Darius Foroux. Seus primeiros meses depois de adotar o estilo de vida nômade digital foram felizes. Ele gostava do tempo ensolarado e das palmeiras à beira da praia, mas logo percebeu que, para ter um ambiente remoto adequado, ele precisava ter uma casa como base. Quando Foroux começou a procurar um apartamento permanente, ele percebeu que o processo não era fácil como ele esperava. Havia procedimentos legais complicados e um prazo de vários meses que ele não conseguia administrar. Ele também enfrentou o mercado imobiliário inflacionado nas regiões de Málaga e Marbella, na Espanha. O aumento da demanda aumentou o preço dos aluguéis e não havia regulamentação que limitasse o que as imobiliárias poderiam cobrar. Foroux foi surpreendido pelas exigências de depósito e pelas altas taxas das imobiliárias. “Eu não esperava isso”, ele conta. “Eu me mudei para a Espanha pensando que o custo de vida seria mais baixo, mas acabou sendo tão caro quanto na Holanda. Essencialmente, eu estava pagando um adicional pelo clima agradável.” Depois de menos de seis meses na Espanha, Foroux voltou para a Holanda, planejando uma vida de estabilidade e com o tempo de concentração de que ele precisava como escritor e microempreendedor. É claro que muitas pessoas ainda estão fazendo o estilo nômade digital funcionar. Mas, como revelaram os profissionais, até os bem sucedidos enfrentam dificuldades para manter a produtividade, a saúde e os relacionamentos pessoais durante as constantes mudanças. E, embora o número de nômades digitais tenha aumentado muito nos últimos anos, segundo os dados disponíveis, eles ainda são um pequeno percentual dos profissionais em todo o mundo e tendem a se concentrar em alguns poucos países com passaportes vantajosos. A tendência “não irá parar”, segundo Thompson. “Os mais jovens talvez passem alguns anos tentando ser nômades digitais. Mas cada vez mais pessoas, afinal, estão observando a realidade deste estilo de vida.” “Ao mesmo tempo, as empresas querem os funcionários de volta para os escritórios. Por isso, a tendência continuará crescendo, mas talvez com menos rapidez”, conclui Thompson.
2023-06-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgdqepgy17o
sociedade
Submarino desaparecido em missão ao Titanic: como aviões para buscas 'enxergam' embaixo d’água
As autoridades afirmam que os sinais continuam sendo investigados e analisados. Mas como uma aeronave voando alto acima das ondas pode detectar algo tão profundo no oceano? Tradicionalmente, alguns dos maiores e tecnologicamente mais avançados aviões da força aérea de qualquer país têm como único propósito a busca por submarinos. Fim do Matérias recomendadas Frequentemente inspirados em projetos civis, essas máquinas utilizam um conjunto de potentes sensores de ruídos para localizar submarinos militares embaixo d’água. Normalmente, a busca é um jogo de gato e rato entre a aeronave e os submarinos que querem ficar escondidos. Mas não é este o caso do Titan. Os caçadores aéreos estão equipados com novas e avançadas tecnologias, o que pareceria dar a eles a vantagem nas buscas. Mas, como demonstra o submarino perdido, ainda é muito difícil encontrar veículos submarinos, especialmente a 3,8 mil metros de profundidade, onde se encontram os destroços do Titanic. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Orion P-3, que detectou o misterioso ruído, é um turbopropulsor com três motores. Ele entrou em operação em 1962 e seu projeto é baseado no avião comercial Electra, da empresa Lockheed. “O intervalo de 30 minutos entre os ruídos aquáticos é um ótimo sinal”, segundo o professor de geociências forenses Jamie Pringle, da Universidade de Keele, no Reino Unido. “O [ruído do] propulsor de um navio na superfície seria contínuo.” “O ruído acústico viaja por longas distâncias na água. Por isso, esta é uma boa e uma má notícia”, explica ele. “Você precisa de [pelo menos] três dessas boias estáticas para poder triangular a fonte do som e conseguir uma posição fixa.” O Orion P-3 da Lockheed também é equipado com detectores de anomalias magnéticas, que captam distúrbios minúsculos no campo magnético da Terra, causados por cascos metálicos de submarinos. Se uma aeronave equipada com esses detectores sobrevoar uma grande massa de metal na sua faixa de detecção, ela irá registrá-la. Mas a presença conhecida dos destroços de um grande navio de aço como o Titanic dificulta o uso desta técnica. O P-3 não é a única aeronave envolvida na busca. Outros aviões que estão varrendo o Atlântico incluem o Hercules C-130 e o relativamente novo Poseidon P-8 da Boeing, conhecido como o veículo de patrulhamento marítimo mais avançado do mundo. O Poseidon parece familiar porque foi derivado do avião de passageiros Boeing 737. Seu alcance é muito menor que o do P-3: 2.250 km, contra 9.000 km. Mas ele pode voar a uma altitude 3.660 metros maior e com mais rapidez. Como em um jogo de batalha naval, a tripulação do Poseidon usa um padrão de grade para descobrir onde está ou não o submarino. Em seguida, ela se fecha onde o submarino, chamado de submersível por especialistas, pode estar. Isso é possível empregando uma das formas mais eficazes de rastrear submarinos: campos de sonoboias. Disparadas de um lançador giratório em grande altitude, as boias Multiestáticas Ativas Integradas (MAC, na sigla em inglês) geram diversos pulsos de sonar ao longo do tempo, para que durem mais tempo e ampliem o seu alcance. A disposição de boias como estas é um dos maiores segredos existentes entre os equipamentos militares contra submarinos. Um único P-8 pode lançar mais de 120 boias. Além das boias, o Poseidon usa todo um conjunto de tecnologias que inclui o seu próprio sensor acústico, um radar de abertura sintética (SAR) para detectar, classificar e rastrear submersíveis na superfície e detectar periscópios a longa distância, uma torre eletro-óptica de infravermelho que pode identificar escapamentos de submarinos, Medição Eletrônica de Apoio (ESM) como sensor eletromagnético que é particularmente útil para rastrear as posições de emissores de sinais de radar e até um sistema de rastreamento de hidrocarbonetos, para “farejar” a presença de submarinos militares elétricos a diesel. Mas o Poseidon voa alto demais para usar com eficiência a detecção de anomalias magnéticas. Por isso, estão sendo utilizados drones – Veículos Aéreos Não Tripulados (UAVs) – equipados com esses detectores para lançamento a partir dos seus tubos de sonoboias. O que não mudou, mesmo para as aeronaves com tecnologia mais avançada, é a necessidade da velha inteligência. “Para ser mais eficaz, o P-8 precisa primeiro ter uma noção geral da localização e da direção do submarino para encontrá-lo”, segundo o pesquisador Sidharth Kaushal, do think tank (centro de pesquisa e debates) britânico sobre defesa e segurança Royal United Services Institute (RUSI). Na pesquisa militar, essa “noção geral” depende da inteligência obtida por meio de sinais, imagens de satélite, contato pessoal e até redes cada vez maiores de hidrofones instalados no leito oceânico – muitas vezes, em “pontos de obstrução”, para detectar quando os submarinos passam sobre eles. Mas, no caso do submarino perdido Titan, estas indicações são poucas e espaçadas. Talvez uma das capacidades mais importantes do Poseidon (que o diferencia do Orion) é a possibilidade de trabalhar como centro de comunicações – um “nó”, como se estivesse no centro de uma rede de navios, UAVs equipados com sensores e Veículos de Superfície Não Tripulados (USVs), o que, de fato, multiplica sua potência. E esta potência em rede faz com que alguns analistas acreditem que o surgimento de um avião como o Poseidon esteja levando a uma era em que o mar irá se tornar “transparente”, impossibilitando os submarinos de se esconderem. Mas, embora as tecnologias e capacidades do Orion e do Poseidon façam parecer que eles tenham grandes vantagens, existem também suas limitações. Os pulsos de sonar, por exemplo, podem sofrer interferência de camadas de água com diferente temperatura e salinidade. Os submarinos podem esconder-se debaixo delas. A tecnologia de detecção magnética costuma ter curto alcance, detectando apenas os submarinos que estão perto da superfície e da posição da aeronave. E os veículos submersíveis também podem evitar que sejam detectados, permanecendo escondidos no “ruído ambiente” do oceano. O P-8 pode ser o caçador de submarinos mais avançado do mundo. Mas o analista de defesa independente H. I. Sutton afirmou à BBC que “sistemas como o do Poseidon ainda precisarão saber para onde devem olhar”. Na verdade, encontrar um submarino pode também ser questão de sorte. Afinal, foi o Orion P-3, com 60 anos de idade, que detectou as batidas que podem estar vindo do submarino perdido. Nota: Apesar da definição genérica de submarino se aplicar também a embarcações submersíveis do tipo do Titan, tecnicamente falando uma embarcação submersível difere de um submarino pela sua capacidade autônoma de deslocamento. Segundo a National Oceanic and Atmospheric Administration, do Reino Unido, submarino é uma embarcação com capacidade de navegar no oceano por si mesma a partir de um porto de origem, enquanto um submersível possui reservas limitadas de energia tendo que ser transportado ao local de imersão por um outro veículo que se encarrega do lançamento e resgate do veículo.
2023-06-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pnwk0j8wko
sociedade
Mulheres têm 20% de chances de engravidar naturalmente após ter filho com inseminação artificial, diz estudo
A chance de engravidar naturalmente após ter um bebê de fertilização in vitro é bastante alta, cerca de uma em cinco — algo que os casais devem estar cientes, dizem os pesquisadores. São notícias que podem dar uma nova esperança em relação ao planejamento de uma família, dizem eles, ou informações importantes sobre contracepção. Eles analisaram dados de mais de 5 mil mulheres para julgar o quão comum era essa relação. As revelações são médias aritiméticas, então as chances são diferentes entre as pessoas. De acordo com o NHS, o serviço público de saúde britânico, a chance de qualquer casal conceber naturalmente no ano seguinte, se já estiver tentando há alguns, é de uma em quatro, ou menos. A infertilidade geralmente é diagnosticada depois que um casal não conseguiu conceber, apesar de um ano de tentativas. Fim do Matérias recomendadas Mas, como a fertilidade feminina diminui com a idade, as mulheres com mais de 35 anos e qualquer pessoa que já saiba que pode ter problemas de fertilidade devem consultar seu médico de família mais cedo. Os problemas de fertilidade podem ser permanentes ou ir e vir e podem afetar qualquer um dos parceiros. Existem muitas razões tratáveis, mas um em cada quatro casais pode não encontrar uma possível causa. Tratamentos de fertilidade, como fertilização in vitro, nem sempre são gratuitos no NHS. Um ciclo de tratamento de fertilização in vitro pode custar até 5 mil libras esterlinas (cerca de R$ 30 mil) ou mais. Shema Tariq, de Londres, foi diagnosticada com "baixa reserva ovariana", o que significa que ela tinha menos óvulos restantes e disse que suas chances de conceber sem uma fertilização in vitro eram quase zero. Foram necessárias seis rodadas de fertilização in vitro para conceber o filho dela, que nasceu em 2018. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Meu médico mencionou brevemente a contracepção para mim depois que ele nasceu —mas nós dois rimos e concordamos que não era relevante", diz Shema. "Nunca me ocorreu que poderia engravidar, apesar de ser uma médica especialista em saúde sexual. Eu tinha 43 anos e me disseram que minhas chances de engravidar naturalmente eram de menos de 1%. Oito meses depois, eu estava inesperadamente e naturalmente grávida de nossa filha”, conta. "Ela foi a surpresa mais maravilhosa —mas, quando descobrimos, me senti sobrecarregada e despreparada para outra gravidez. "Se eu soubesse que uma em cada cinco mulheres engravida naturalmente após a fertilização in vitro, eu teria usado contraceptivos até estar pronta novamente, tanto emocional quanto fisicamente." A principal autora da nova pesquisa, publicada na revista Human Reproduction, Annette Thwaites, da University College London, disse: “Nossas descobertas sugerem que a gravidez natural após ter um bebê por fertilização in vitro está longe de ser rara. "Isso contrasta com as opiniões amplamente difundidas —por mulheres e profissionais de saúde— e aquelas comumente ditas pela imprensa de que é um evento altamente improvável". Os 11 estudos internacionais que a equipe analisou descobriram que pelo menos uma em cada cinco mulheres concebeu naturalmente depois de ter um bebê usando tratamento de fertilidade, principalmente dentro de três anos. E isso se aplica a diferentes tipos e resultados de tratamento de fertilidade. A embriologista clínica Marta Jansa Perez, da British Fertility Society, disse: "Este estudo destaca a importância de fornecer aos pacientes informações precisas sobre suas chances de concepção em qualquer momento, principalmente após o parto de um bebê de fertilização in vitro. "É uma boa notícia que uma proporção tão alta de pacientes seja capaz de conceber naturalmente após a fertilização in vitro. Mas as pessoas devem estar cientes de que, nos casos em que a idade da mulher é um fator para a falha inicial na concepção ou há infertilidade masculina grave, seria aconselhável procurar tratamento para um segundo filho mais cedo ou mais tarde."
2023-06-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gz8jz10gro
sociedade
'Oxigênio de submarino vai durar mais do que pensam', diz ex-passageiro que visitou Titanic
O empresário Oisin Fanning, que já participou de uma viagem no submarino Titan até o local de naufrágio do Titanic, disse conhecer algumas das pessoas que estão no submarino desaparecido no oceano desde domingo (18/06). Equipes de resgate estão em uma corrida contra o tempo para encontrar o submarino turístico que tinha como objetivo visitar os destroços do Titanic. Cinco pessoas estão a bordo do veículo. Já Fanning acha que as pessoas a bordo sabem como maximizar seu suprimento de oxigênio, previsto para durar até a manhã desta quinta-feira. "Eles vão tentar preservar o oxigênio", disse Fanning. "Eles farão de tudo para se manterem calmos, respirarem superficialmente e preservarem o oxigênio pelo maior tempo possível." Segundo Fanning, antes do mergulho no submarino, os passageiros participam de um treinamento. Fim do Matérias recomendadas Ele afirmou à BBC News que os participantes acordam às 4h e que os procedimentos de segurança são feitos por cerca de quatro a cinco horas antes do veículo submergir. Nesta quarta-feira (21/6), mais três embarcações chegaram ao local de busca, uma delas com recursos de sonar de varredura lateral. Acredita-se que as pessoas a bordo do submersível Titan tenham menos de 24 horas de suprimento de oxigênio. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A tripulação do submarino perdeu contato com seu navio de base na superfície, o Polar Prince, uma hora e 45 minutos depois de iniciar a descida em direção aos destroços do Titanic. Na terça-feira (20), às 13h na costa leste dos EUA (14h em Brasília), a Guarda Costeira dos Estados Unidos estimou que restavam cerca de 40 horas de suprimento de oxigênio no submarino. Ou seja, haveria suprimento até aproximadamente 6h da manhã de quinta-feira (22) no horário de Brasília. Os destroços do Titanic estão a cerca de 700 km ao sul da cidade de St. John's, no Canadá, embora a missão de resgate esteja sendo executada a partir de Boston, nos Estados Unidos. Agências, militares e empresas dos Estados Unidos e do Canadá que atuam em águas profundas estão ajudando na operação de resgate, usando aviões militares, um submarino e boias de sonar. O Polar Prince está recebendo na área o apoio do navio para lançamento de cabos Deep Energy, enquanto o navio de abastecimento Atlantic Merlin está a caminho. O capitão Jamie Frederick, da Guarda Costeira dos EUA, afirmou que equipes dos EUA e do Canadá "estão trabalhando sem parar" durante as "complexas ações de busca". O professor Alistair Greig, especialista em submarinos da University College London, diz que um dos grandes problemas é que os socorristas não sabem se devem procurar na superfície ou no fundo do mar — é "muito improvável" o submarino estar no meio do caminho, diz, acrescentando que cada um desses pontos (superfície ou fundo do mar) traz seus próprios desafios.
2023-06-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1e70p94838o
sociedade
Sexta-feira sangrenta: por que 55 anos depois não se sabe quantos morreram em repressão a estudantes no Rio
Era um Brasil onde não se podia confiar nas estatísticas oficiais, aquele de poucas décadas atrás. Não faz muito tempo: há exatos 55 anos, o episódio que ficou conhecido como Sexta-feira Sangrenta até hoje não tem um consenso sobre o número de vítimas. De um lado, a versão oficial aponta que foram três os mortos. Já conforme dados do Centro de Documentação de História Contemporânea, da Fundação Getúlio Vargas, teriam sido 28 mortos, além de dezenas de feridos e mais de mil prisões. No verbete dedicado ao tema, a instituição afirma que o número foi obtido conforme informações de hospitais. Na edição de 22 de junho de 1968, o Jornal do Brasil noticiou o episódio com direito a foto na capa. Segundo o texto, a manifestação havia deixado um saldo de um policial morto e, provavelmente, dois civis. Além de cerca de 80 feridos. O volume 3 do relatório da Comissão Nacional da Verdade identifica cuidadosamente todas as 45 pessoas que, confirmadas, foram mortas pelo regime militar brasileiro entre 1964 e 1968. Segundo o documento, foram três militantes, todos civis, que morreram na Sexta-feira Sangrenta. Mas apenas uma, a comerciária Maria Ângela Ribeiro, de 22 anos, morreu durante a manifestação — “morta a tiros pela polícia”, como enfatiza o relatório. Fim do Matérias recomendadas Com apenas 15 anos de idade, o comerciário Fernando da Silva Lembo morreu no Hospital Souza Aguiar em 1º de julho daquele ano. Ele foi para ali levado, segundo o texto “depois de ter sido atingido por disparo de arma de fogo, em 21 de junho, durante uma manifestação pública no centro do Rio de Janeiro”. De acordo com o relatório da Comissão da Verdade, o terceiro óbito relacionado ao episódio ocorreria em 5 de agosto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na data, o estudante e comerciário Manoel Rodrigues Ferreira, de 22 anos, morreu no Hospital Samaritano. Ele havia sido transferido para lá depois de passar por duas outras instituições de saúde e ter se submetido a uma cirurgia. Ferreira havia tomado dois tiros na cabeça durante a repressão. Professor na Fundação Escola de Sociologia de São Paulo e da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), o sociólogo Paulo Niccoli Ramirez explica à BBC News Brasil que a dificuldade em se chegar ao número correto de vítimas é devido à própria falta de transparência da ditadura militar. “Em primeiro lugar, havia uma censura. Em segunda, os militares não queriam difundir o número exato [de vítimas] para não gerar uma maior insatisfação em relação ao regime, com base no que poderia circular inclusive nos meios de comunicação”, avalia Ramirez. Para o historiador Victor Missiato, pesquisador do Grupo Intelectuais e Política nas Américas, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), e professor do Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, “o número de 28 mortos é muito incerto, muito impreciso”. “Não estou aqui corroborando a versão oficial dos três mortos, mas sim colocando em perspectiva o tema. A identificação dessas pessoas é muito imprecisa e dizer que é de acordo com informações de hospitais é algo muito impreciso”, afirma ele, à BBC News Brasil. Missiato arrisca que o número total de vítimas tenha ficado entre três e seis. “Próximo à versão oficial me parece verossímil”, aponta ele, citando que os dados dos hospitais da época não são precisos e “daí vem a dificuldade de precisar esse número de mortos em uma época em que era completamente cabível a investigação do número de óbitos desse tipo de evento”. Os ânimos se acirraram a partir do dia 18 de junho, quando o líder estudantil Jean Marc von der Weid acabou preso ao fim de uma passeata. Nova manifestação estudantil ocorreu no dia 19, com repressão violenta por parte da polícia. No dia seguinte, estudantes da Universidade Federal do Rio de Janeiro se reuniram e forçaram um debate com o reitor. Na saída do encontro, policiais os aguardavam. Entre golpes de cassetetes e outras demonstrações de força e violência, cerca de 300 foram detidos — e há relatos de que sofreram espancamentos. O cenário estava formado. Naquele contexto de ditadura militar, a revolta estudantil se voltava contra o regime. Mas não só. Era 1968 e ventos de manifestações semelhantes de outras partes do mundo também sopravam no Brasil. “Os movimentos sociais do Brasil daquele ano estão inseridos dentro de um ano muito específico e especial para os movimentos sociais do mundo afora. Estão interligados a uma crise de paradigmas, tanto a crítica ao socialismo quanto à crítica à invasão estadunidense ao Vietnã e, principalmente, os movimentos de crítica às instituições mais tradicionais”, contextualiza Missiato. “Esses atos representam um ano de transformações, com críticas às grandes narrativas daquele momento, tanto no sistema soviético como no sistema capitalístico global”, acrescenta ele. “No caso do Brasil, essas manifestações se inserem na crítica ao sistema militar que, quatro anos depois de instaurado, já contava com uma percepção inicial modificada. Então era crítica ao regime e lutava pela democracia.” Ramirez ressalta que “o ano de 1968 foi muito importante no mundo inteiro”, com manifestações iniciadas na França e, depois nos Estados Unidos, “inflamando também os estudantes brasileiros a tomarem uma atitude mais de oposição em relação à ditadura militar”. Ele lembra que o cenário pós-1964, com crescente censura e o visível não retorno à democracia “como havia sido prometido pelos militares” somou-se à demandas que existiam como lutas “pelas liberdades sexuais e mais espaço para mulheres no mercado de trabalho”. Os estudantes universitários eram protagonistas deste debate. E, ao mesmo tempo, se tornaram alvo dos militares. “Foram muitas prisões de estudantes, líderes acadêmicos. E isso contribuiu para aumentar mais e mais a contestação do público estudantil”, explica Ramirez. Além disso, o sociólogo lembra que havia também demandas próprias da classe estudantil. Em um Brasil que se tornava mais urbano, a quantidade de vagas nas universidades públicas não acompanhava esse crescimento. “Além do mais, professores foram aposentados de forma compulsória pela ditadura. Os estudantes estavam muito distantes do apoio do governo federal”, afirma ele. Era o caldo que estava preparado. “E a Sexta-feira Sangrenta foi uma espécie de ápice desse descontentamento”, define Ramirez. “No fim das contas, os jovens resolveram se rebelar e isso, de alguma forma, inflamou uma parte do resto da população civil. O resultado foi uma batalha campal entre estudantes e policiais, com direito a pedras arremessadas contra eles.” Na manhã daquele dia 21, o que era para ser uma nova passeata dos estudantes contra a ditadura no centro do Rio acabou já começando em clima de guerra. Munidos de rolhas e bolinhas de gude, os estudantes armaram um obstáculo aos cavalos do policiamento, fazendo com que eles tombassem. De um lado vinham os tiros, do outro o revide com pedras. Até helicópteros foram utilizados para arremessar bombas de gás lacrimogêneo. No início da tarde, a confusão já estava espalhada por boa parte do centro do Rio. A batalha só terminou à noite. Com o saldo até hoje impreciso de mortos e feridos. Um dos fotojornalistas que registraram o episódio — suas imagens foram publicadas pelo Jornal do Brasil, onde ele atuava —, Evandro Teixeira comentaria anos mais tarde que aquele havia sido “um dos dias mais sangrentos que […] o Rio de Janeiro viveu, nesta época”. “O Jornal do Brasil era o palco das reações. Tudo começava em frente ao jornal, que neste dia foi fechado a bala. A polícia começou a atirar e a fechar as portas”, relembrou ele, em depoimento ao próprio Jornal do Brasil. “Eu participei ativamente com barreiras, fugindo das cavalarias, vendo estudante caindo. Inclusive tenho a foto do fotógrafo Rubem Seixa, do Correio da Manhã, quando a polícia o surrou depois de ter quebrado seu equipamento.” A Sexta-feira Sangrenta foi um dos antecedentes que motivariam, cinco dias depois, a famosa Passeata dos Cem Mil, uma manifestação que reuniu artistas, intelectuais e formadores de opinião, todos nas ruas contra a ditadura militar. Do outro lado, o governo também reagiu com firmeza. O crescente clima de oposição acabou sendo contra-atacado com mais repressão. “O estado de exceção, no final das contas, promoveu uma censura generalizada. Não que isso já não ocorresse desde 1964, mas a partir do fim de 1968, o AI5 [Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, o quinto dos 17 decretos emitidos pela ditadura] deu legitimidade jurídica, infelizmente, para que os militares agissem da forma mais severa possível, não só contra estudantes, mas também contra a imprensa”, comenta Ramirez. “Assim, essas manifestações como as que ocorreram no Rio foram o estopim para que a ditadura se tornasse, de forma escancarada, mais violenta”, afirma o sociólogo.
2023-06-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjejz4rydn2o
sociedade
Titanic: onde afundou o transatlântico e como seus restos foram encontrados em 1985
Autoridades dos Estados Unidos e do Canadá estão trabalhando incessantemente para tentar encontrar o submarino que desapareceu com 5 pessoas a bordo enquanto fazia um mergulho para visitar os destroços do Titanic. O barco desapareceu na manhã de domingo (18/6) 1 hora e 45 minutos após o início do mergulho. A OceanGate Expeditions, empresa que opera o submarino desaparecido, disse em comunicado que está "explorando e mobilizando todas as opções" para trazer a tripulação de volta com segurança. A empresa informou que recebeu "extensa assistência" de "várias agências governamentais e empresas especializadas em águas profundas" em seus esforços para restabelecer o contato com a embarcação. Os restos do Titanic ficam no Oceano Atlântico Norte, cerca de 600 km a sudeste da costa da Terra Nova, no Canadá, e a cerca de 3,8 mil metros de profundidade. Fim do Matérias recomendadas Os restos do naufrágio estão divididos em duas partes — com a proa e a popa separadas por cerca de 800 metros. No entorno das duas partes, há um enorme campo de detritos. Os restos do naufrágio ficam ao sul do Grand Bank of Newfoundland, em uma área conhecida como Titanic Canyon. O nome da região foi sugestão do geólogo marinho Alan Ruffmann em 1991. No começo do século 20, o Titanic se tornou o maior navio de passageiros do mundo e ficou famoso porque entre a noite de 14 de abril e a madrugada de 15 de abril de 1912, afundou em sua viagem inaugural de Southampton, no Reino Unido, rumo a Nova York, nos EUA, após colidir com um iceberg. Mais de 1,5 mil pessoas morreram na tragédia. A história de como os restos foram encontrados em 1985 tornou-se conhecida graças à revelação de alguns documentos que foram mantidos por décadas sob sigilo pelo governo dos EUA. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Robert Ballard, um oficial de inteligência que havia participado de missões secretas para a Marinha dos Estados Unidos, foi um dos que tentaram procurar os restos do Titanic na década de 1980. A Marinha dos EUA concordou em fornecer a ele os meios para procurar o navio, mas apenas se ele usasse esses mesmos recursos para encontrar dois submarinos nucleares americanos que haviam afundado no Atlântico na década de 1960. A missão secreta franco-americana a bordo do navio de pesquisa Knorr começou em agosto de 1985. A desculpa da busca pelo Titanic foi perfeita para que os russos e a imprensa não suspeitassem que eles estavam procurando os submarinos afundados. A primeira parte da missão foi bem-sucedida. Ballard encontrou os submarinos USS Thresher e USS Scorpion. O problema de Ballard é que ele só tinha 12 dias para encontrar o Titanic, pois o barco que ele estava usando já havia sido alugado por outras pessoas. Com a experiência adquirida na busca pelo Scorpion, Ballard encontrou o Titanic em apenas 8 dias, em 1º de setembro de 1985, graças ao submersível Argo, que era equipado com câmeras que podiam transmitir imagens à superfície. Ballard relembrou em entrevista à BBC em 2021 o momento de euforia ao avistar os destroços do navio. Mas essa felicidade rapidamente se esvaiu. "Percebemos que estávamos dançando no túmulo de alguém", lembrou Ballard. "Ficamos com vergonha."
2023-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g00lk0dk1o
sociedade
O único restaurante do mundo que serve carne cultivada em laboratório
Parece frango, tem cheiro de frango e gosto de frango. Eu jamais imaginaria que o pedaço de carne que está na minha frente não veio de uma fazenda. Mas ele foi feito em um laboratório, em uma propriedade industrial, a alguns quilômetros de distância. Estou no Huber's Butchery and Bistro, em Singapura, o único restaurante do mundo a oferecer o que se chama de "carne de cultura" no cardápio. A resposta dos clientes tem sido "fenomenal", de acordo com o proprietário do restaurante. A criadora da carne, a empresa californiana Eat Just, garante que seu produto consegue ser ético, limpo e ecológico, sem abrir mão do sabor. Fim do Matérias recomendadas Bilhões de dólares estão sendo investidos nesse setor, mas há grandes dúvidas sobre sua viabilidade a longo prazo. Desde que o primeiro hambúrguer produzido em laboratório foi apresentado em Londres, em 2013, uma criação que custou impressionantes US$ 330 mil (R$ 1,8 milhão), dezenas de empresas em todo o mundo se juntaram à corrida para comercializar carne cultivada em laboratório a preços razoáveis. Até agora, apenas a Eat Just conseguiu que seu produto fosse aprovado para venda ao público depois que os reguladores de Singapura, o único país do mundo que permite a venda desse tipo de carne, deram luz verde ao seu frango em dezembro de 2020. Mas o produto está longe de ser produzido em larga escala. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nuggets de frango cultivados em laboratório estiveram brevemente no menu de um clube privado em 2021. Essa parceria durou alguns meses e, neste ano, o Huber's começou a oferecer ao público em geral um sanduíche de frango e um prato de macarrão com frango, embora apenas uma vez por semana. "Carne cultivada é carne de verdade, mas você não precisa abater um animal", disse Josh Tetrick, executivo-chefe da Eat Just, que falou à BBC de São Francisco. "Esta forma de comer faz sentido para o futuro." Ao contrário dos substitutos à base de plantas, a carne cultivada é literalmente carne. O processo envolve a extração de células de um animal, que são alimentadas com nutrientes como proteínas, açúcares e gorduras. As células podem então se dividir e crescer, antes de serem colocadas em um grande biorreator de aço, que funciona como um tanque de fermentação. Depois de quatro a seis semanas, o material é "colhido" do biorreator e adiciona-se alguma proteína vegetal. Em seguida, é modelado, queimado e impresso em 3D para obter a forma e a textura necessárias. As tiras de frango frito no meu prato com macarrão orecchiette certamente tinham gosto de frango normal, embora um pouco processado. Talvez o tipo de frango que você comeria em um restaurante de fast food. "É carne, é perfeita!", disse Caterina, uma estudante italiana que veio aqui especialmente para experimentar o frango criado no laboratório. Normalmente, por questões de sustentabilidade, eu não comeria carne, mas Caterina garantiu que eu comeria isso. Sua única objeção? O frango é servido com macarrão, o que não costuma acontecer na Itália. Outro cliente em Singapura disse que ficou surpreso com o fato de o frango de laboratório parecer tanto com carne de verdade. "É legítimo", disse ele. "Eu não saberia de onde veio. Minha única preocupação seria o custo." O prato de macarrão com frango que pedi custou US$ 13,70 (R$ 65,91, na cotação atual), mas está com um grande desconto em relação ao custo de produção dessa carne. A Eat Just não diz exatamente quanto gasta para fazer seu frango, mas a capacidade de produção da empresa é atualmente de 3 kg por semana em Singapura. Quando você compara isso com os 4.000 a 5.000 kg de frango convencional vendidos semanalmente apenas na Huber's, você tem uma ideia da escala da tarefa que a empresa enfrenta. Simplificando, eles precisarão aumentar massivamente a produção para evitar perdas em cada porção de frango. A Eat Just observa que já alcançou uma redução de 90% nos custos desde 2018. A empresa me levou para um tour por sua nova unidade de produção multimilionária em Singapura, que espera abrir em 2024. O par de biorreatores de aço brilhante de 6.000 litros é certamente um sinal de que a intenção existe, mas é uma pequena fração das milhões de toneladas de frango que precisam ser produzidas para se igualar ao preço atual do frango tradicional. A indústria implora por paciência, mas muitos cientistas dizem que já viram o suficiente. “A narrativa que essas empresas apresentam é muito forte”, disse Ricardo San Martín, codiretor do Alt: Meat Lab, da Universidade da Califórnia (UC) em Berkeley. "Mas você tem que contrastar esse discurso com a ciência", acrescentou. "Faça as contas, olhe para cada artigo científico escrito por especialistas independentes e você verá que a resposta é clara." "Você pode fazer isso, em escala, a um custo razoável? Não. Você pode falar sobre salvar o mundo com isso? Novamente, não. Essas empresas precisam ser honestas. Isso é uma ilusão." Não há apenas dúvidas sobre a possibilidade de aumentar a produção. Também há incerteza sobre as credenciais verdes da indústria, que foram questionadas pelos cientistas. Em teoria, reduzir a dependência da terra e do gado para a produção de carne deveria reduzir as emissões de carbono. Mas, por enquanto, a tecnologia necessária para criar carne cultivada em laboratório requer tanta energia que anula qualquer benefício. Um estudo da Universidade da Califórnia em Davis chegou a estimar que o processo produz entre 4 e 25 vezes mais dióxido de carbono do que a carne comum. No entanto, a East Just chama esse estudo de "problemático". Quando questionada pela BBC se todo o projeto poderia falhar, Josh Tetrickz, do Eat Just, respondeu: "Claro". "Fazer carne dessa maneira é necessário e muito incerto", disse ele. "Não é fácil. É complicado. Não é garantido e pode não funcionar. Mas a outra opção para nós seria não fazer nada. Então decidimos apostar e tentar." Muitos investidores decidiram fazer a mesma aposta. Estima-se que US$ 2,8 bilhões (R$ 13,47 bilhões) tenham sido investidos até agora este ano no desenvolvimento da carne de laboratório. No entanto, tentar tornar a carne cultivada artificialmente mais do que uma alternativa de nicho para os ricos do mundo desenvolvido dependerá de investimentos de empresas privadas. E pode não ser suficiente. Os governos, observou Tetrick, precisarão investir "uma quantia significativa de dinheiro público" em carne de laboratório para que ela possa competir com a carne convencional. "É como fazer a transição para energia renovável... É um projeto para toda a vida, talvez um projeto para várias vidas", disse ele. Até agora, nenhum país exceto Singapura autorizou a venda de carne cultivada artificialmente, muito menos se comprometeu com qualquer grande investimento. De acordo com Ricardo San Martín, da UC Berkeley, o financiamento público e privado para empresas de carne de laboratório vai secar se essas empresas não "se olharem no espelho" em breve e apresentarem previsões realistas aos investidores. "A menos que haja um caminho claro para o sucesso em algum momento no futuro, investidores e governos não vão querer gastar dinheiro em algo que não seja cientificamente comprovado."
2023-06-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxxerjx6zg8o
sociedade
O soldado americano que aprendeu a tocar com piano de Saddam Hussein e hoje é músico premiado
Michael Trotter estava na terceira série do ensino fundamental quando teve a oportunidade de aprender a tocar piano. Mas ele não aproveitou essa chance. "Minha mãe me inscreveu, mas só fiz uma aula e desisti. A professora era uma senhora muito rígida e eu tinha outros interesses. Sinceramente, pensei naquela época que viraria rapper", disse Trotter à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. A segunda oportunidade veio mais de uma década depois, mas desta vez ele foi autodidata. Aprendeu a tocar em um palácio em Bagdá, em um piano que pertencera ao ex-presidente iraquiano Saddam Hussein. O ano era 2003 e Trotter fazia parte das tropas americanas que ocuparam o Iraque. Essa experiência transformou sua vida em muitos aspectos - deixando cicatrizes físicas, mentais e emocionais - e acabou sendo o início de uma carreira musical que agora segue em trajetória ascendente. Trotter faz parte, juntamente com sua esposa, Tanya Trotter, de The War and Treaty, uma dupla que já lançou três álbuns e que vem conquistando seu lugar no cenário musical americano. Em 2019 e 2020, eles venceram na categoria artista do ano nas premiações Americana Music Honors & Awards e no Folk Alliance International, respectivamente. Ainda em 2020 apresentaram-se no Grammy, prestigiosa cerimônia de premiação da indústria musical dos EUA, e neste ano foram indicados a dupla do ano no Academy of Country Music Awards. E tudo isso começou em um palácio de Saddam, com um piano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A primeira vez que Trotter teve contato com o piano Hussein foi graças a Robert Scheetz, um dos capitães de sua unidade. "Ele percebeu o medo que eu tinha quando cheguei no Iraque. Não é como ir à Disney. Você vai para a guerra e desde o momento que você chega sente o ambiente. Você ouve os tiros, as explosões e sente até o cheiro da perda de vidas", diz Trotter. "Scheetz me identificou como o elo mais fraco, como a pessoa que poderia morrer. Ele precisava me tirar do meu medo, e leu no meu perfil que a música era o que me libertava de tudo. Como ele sabia que no palácio onde estabelecemos nossa base havia um piano pertencente a Saddam Hussein, ele me levou para o porão onde estava o instrumento", conta. Era um piano vertical preto "magnífico", segundo Trotter. Hoje ele confessa - anos depois, quando conseguiu tocar outro piano - ter descoberto que aquele instrumento estava desafinado. Não foi fácil chegar àquele porão - era preciso passar por escombros, tijolos e ruínas. Mais uma lembrança da guerra. "Quando você pensa em um palácio, imagina algo bonito, mas este era um palácio bombardeado. Algumas das paredes haviam sido derrubadas, parte do telhado ainda estava caído. Muitas partes foram destruídas. Às vezes eu tinha que escalar escombros só para chegar ao piano", relata. Seguindo o conselho de Scheetz, que o convidou a usar o piano "sempre que quisesse encontrar o caminho de volta para casa", Trotter desceu ao porão todos os dias durante 15 meses, tentando aprender a tocá-lo. O amor pela música é de família. Sua avó materna toca piano e todas as suas tias cantam música gospel. Também é o caso de sua mãe, que ele descreve como uma cristã devota e cujo fervor religioso acabou marcando seu amor pela música. "Eu cresci em Cleveland, Ohio, onde havia uma infinidade de estações de rádio oferecendo todos os tipos de coisas boas e muito ruins. E minha mãe, para garantir que eu não sucumbisse às ruins, mexeu aparelho de rádio de casa pra que ele sintonizasse uma estação AM que durante o dia só falava da Bíblia, mas que à noite tocava umas músicas velhas e boas. Foi isso que acabou definindo meu gosto musical", diz. Foi assim que ele conheceu a obra de Nat King Cole, Willie Nelson, Patsy Cline, Nina Simone, Harry Belafonte e os Everly Brothers. "Eles não focavam em um gênero específico. Se a música fosse boa, tocavam. Tudo era muito emocionante", lembra. Assim, quando teve a oportunidade de sentar-se ao piano de Saddam Hussein, embora não soubesse tocá-lo, Trotter já era apaixonado por música. "Sempre consegui ouvir as notas e harmonizar. Então, descia lá e tentava tocar com um só dedo. Minha estratégia era encontrar três notas no piano. Harmonia. Não sabia que se chamavam acordes. Eu não conhecia nenhum termo. E uma das músicas com a qual comecei foi Lean On Me, porque é muito fácil de tocar no piano", diz Trotter, que começa a cantarolar esta clássica canção de Bill Withers. "Então, de repente, eu dizia: 'Uau'. Essas notas soam muito bem juntas. E pensava que se tentasse a mesma coisa com a mão esquerda, talvez pudesse encontrar uma maneira de tocar. E, de repente, estava desenvolvendo meu próprio estilo neste magnífico instrumento." Trotter gostava de sentar ao piano todos os dias, tentando aprender a tocar e compor, mas foi somente com a morte do capitão Scheetz durante uma missão que sua relação com aquele instrumento ganhou sua verdadeira dimensão. "Eu tocava, e havia momentos em que sentia que tinha algo bom. Mas me faltava uma ligação emocional com o instrumento, até que ele foi morto. Dali em diante, eu tinha um novo propósito, um novo motivo para aprender a tocar. Eu queria homenagear a ele e a meus colegas. Eu queria me conectar com eles e ter uma sensação de cura. Acho que a sua morte me desbloqueou e me permitiu conectar com o instrumento e mergulhar na composição", diz. Trotter escreveu sua primeira música em homenagem a Scheetz e cantou para seus companheiros no funeral, um gesto que acabaria transformando sua vida. "Normalmente, durante os funerais militares, os soldados são muito estoicos. Eles se mantêm muito controlados, mas não foi o que aconteceu durante essa música. Nós desabamos, choramos juntos e nos abraçamos. E isso mudaria meu trabalho." "Meu comandante viu aquele momento. E ele queria saber se eu havia escrito aquela música e quanto tempo havia demorado. Eu respondi e ele me disse: 'Bom, agora esse vai ser o seu trabalho. Você vai escrever músicas sobre os soldados e vai cantá-las em funerais. Porque isso está ajudando a curar nossos rapazes e, de uma forma estranha, está levantando o moral da minha unidade'." Esta nova função daria um novo significado à sua estada no Iraque. Quando Trotter decidiu se alistar para ir para a guerra, ele estava tentando colocar sua vida em ordem. Tinha 20 anos e sua namorada na época acabara de engravidar. "Eu estava determinado a parar de tomar decisões horríveis. Eu faria algo para garantir que minha filha tivesse uma chance na vida e que eu pudesse cuidar dela. Entrei para o exército porque isso significava ter acesso a um plano de saúde e não precisar mais me preocupar com aluguel nem com nada além de comida e conta de celular", comenta. Mas, como descobriu quando voltou do Iraque, através da música ele encontrou mais do que estabilidade financeira. "Na segunda vez que me alistei para ir ao Iraque, eu fiz por escolha. Quando voltei para casa me senti muito vazio. Senti que ninguém mais entendia quem eu era e que estava desorientado, sem rumo. Senti que meu trabalho lá não havia terminado e então voltei e fiquei lá até fevereiro de 2007." Nessa segunda passagem pelo Iraque, Trotter se dedicou principalmente a fazer música. Ao voltar para os Estados Unidos, contudo, se sentiu novamente desorientado. "Mentalmente, no Iraque, passei por muita coisa, estava perdendo amigos, irmãos e irmãs. Não estava lidando com minha própria cura. Estava muito focado em cantar e fazer as pessoas felizes, e não em ser feliz eu prório." Ele voltou com lesões físicas e mentais, sofrendo de transtorno de estresse pós-traumático crônico (TEPT), ansiedade crônica, depressão crônica e lesões nas pernas. Assim, ficou vagando sem um objetivo claro, tentando dar sentido à sua vida até que, em 2010 conheceu a atriz e cantora Tanya Blount (hoje Trotter), sua atual esposa. Juntos formaram um duo musical em 2014, que em 2017 rebatizaram para The War and Treaty, um nome que remete a sua experiência de vida e à ideia da música como ferramenta de cura. "O amor e a música me deram esperança. E acredito que todos merecem sentir essa alegria que eu sinto. Por isso, não incluímos em nossos discos ou em nossos shows nenhuma música que não nos comova." Com um estilo que Trotter identifica como americana - por conter elementos de blues, country, jazz, rock and roll, soul, R&B e gospel em suas formas clássicas - a dupla entrou para a lista de artistas emergentes da Billboard neste ano. No entanto, o caminho até aqui não tem sido fácil - incluindo uma grave crise em setembro de 2017, quando Trotter esteve prestes a tirar a própria vida. "Eu havia parado de tomar remédios. Estava em um momento da minha vida em que sentia que nada estava funcionando. Fui demitido do trabalho. Tínhamos um aviso de despejo na porta de casa. Eles levaram meu carro por falta de pagamento. Senti que tinha atingido o fundo do poço em termos de fracasso. Minha depressão e meu estresse pós-traumático estavam em alta e eu decidi que eu era o problema, então eu iria sair de cena", relata o artista. "Eu estava pronto, mas minha esposa identificou a depressão em mim naquele dia e, antes que eu percebesse, a polícia e os paramédicos estavam na minha porta. Ela se sentou ao meu lado e disse: 'Sei que você está planejando tirar sua vida hoje, mas eu só preciso que você espere mais cinco minutos. Me dê cinco minutos para te amar e fazer tudo fazer sentido.' Nós dois choramos e eu disse 'ok'.". "E ainda estou vivendo esses cinco minutos."
2023-06-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c97n65yqrm2o
sociedade
Febre maculosa: quem deve responder pelas 3 mortes no interior de SP?
Após a confirmação de três mortes por febre maculosa e outros três casos estarem sob investigação, a prefeitura de Campinas, no interior de São Paulo, disse que tomou uma série de medidas para evitar novos casos. A intenção é que as regiões de mata e locais onde há maior chance de proliferação da doença sejam sinalizados e evitados. O Instituto Adolfo Lutz, da capital, aponta que a Fazenda Santa Margarida, no distrito campineiro de Joaquim Egídio, é apontada como o provável lugar onde as seis pessoas foram infectadas, durante um evento chamado Feijoada do Rosa, em 27 de maio. O espaço foi interditado preventivamente pela prefeitura. A Fazenda Santa Margarida só poderá fazer novos eventos após apresentar um plano de comunicação e de contingência ambiental para orientar os frequentadores sobre os riscos que a região apresenta. Mas existe um responsável por essas infecções transmitidas pelo carrapato-estrela (Amblyomma cajennense), em uma situação já considerada um surto na região? A prefeitura de Campinas disse, em nota enviada à BBC News Brasil, que, “por tratar-se de local sem casos de febre maculosa conhecidos até então”, não havia exigências sanitárias específicas em relação a essa doença. No entanto, Campinas e os municípios que compõem sua região metropolitana são endêmicas para a doença. A partir de agora, o município disse que exigirá um plano de comunicação para que os frequentadores de eventos semelhantes estejam cientes dos riscos. Dessa maneira, não há expectativa de que a fazenda, seus donos e os organizadores do evento no qual as pessoas podem ter sido infectadas sejam responsabilizados pelas contaminações. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em nota, os organizadores da Feijoada do Rosa lamentaram as mortes e se solidarizaram com as famílias das vítimas da febre maculosa. A organização afirmou que esta edição contou com a presença de 3.500 pessoas e disse que, “até o momento, não se pode descartar que as contaminações tenham eventualmente ocorrido durante essa frequência na Fazenda Santa Margarida, mesmo porque a Vigilância Sanitária local veio a público reforçar que a cidade de Campinas ganha especial expressão como foco da referida doença”. “É importante trazer ao conhecimento de todos que a Feijoada do Rosa é uma festa tradicional da cidade de Campinas, tendo realizado neste ano a sua 22ª edição, sendo que nos últimos 10 anos teve como palco a Fazenda Santa Margarida, no Distrito de Joaquim Egídio, conhecido e consagrado espaço de grandes celebrações há décadas.” A administração da Fazenda Santa Margarida também lamentou as mortes e afirmou que “sempre agiu e age de acordo com todas as normas e exigências legais relacionadas à vigilância sanitária”. A fazenda disse que “está trabalhando num plano de ação” que será apresentado à prefeitura até o fim da semana. O Departamento de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas determinou, entre as estratégias do plano de ação, que a fazenda deverá “construir caminhos para as pessoas percorrerem o local". O local é conhecido na região de Campinas por sediar shows de artistas conhecidos nacional e internacionalmente, como Seu Jorge, Ivete Sangalo e Gusttavo Lima, que tem show previsto na fazenda para o dia 21 de julho. A fazenda também foi notificada sobre a necessidade de instalar placas para informar aos frequentadores sobre o risco de infecção da febre maculosa. Segundo a prefeitura, “o local está com alvará para eventos e auto de vistoria do Corpo de Bombeiros (AVCB) regular e estava autorizado a realizar o evento”. A Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo alertou que todas as pessoas que estiveram na Fazenda Santa Margarida do dia 27 de maio a 11 de junho e sentirem febre, dores de cabeça ou no corpo, ou manchas avermelhadas na pele, devem procurar atendimento médico imediatamente e informar que estiveram no local. O governo destacou que é importante estar atento a esses sinais, pois o período de incubação da febre maculosa é de dois a 14 dias. Dos 12 casos confirmados da doença em 2023, três foram de pessoas que estiveram nos eventos realizados na fazenda. O tratamento precoce evita o agravamento da doença, segundo as autoridades de saúde. O tratamento contra a febre maculosa é feito por meio de antibióticos, como a doxiciclina, que age combatendo as bactérias no organismo. A febre maculosa, também conhecida como doença do carrapato, é uma infecção febril de gravidade variável, com elevada taxa de letalidade. Ela é causada por uma bactéria do gênero Rickettsia e transmitida pela picada do carrapato. A infestação ambiental por ninfas (estágio juvenil) de carrapato-estrela é alta entre junho e novembro, segundo as autoridades de saúde. E as cidades com maior frequência de casos são Campinas, Piracicaba, Assis e Sorocaba — todas no interior de São Paulo. A diretoria do Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado de São Paulo afirmou que as pessoas devem estar cientes dos riscos que correm ao visitar algumas regiões durante o período de reprodução do carrapato-estrela. “Ao se aventurar em regiões de mata e cachoeira, é importante estar ciente que estamos no período de reprodução do carrapato-estrela, ocorrendo o risco de transmissão da febre maculosa através de sua picada.” Entre as maneiras de evitar a doença, estão verificar com frequência se há algum carrapato preso ao corpo, usar roupas claras com manga longa, calça comprida e calçado fechado. O levantamento mais recente do Ministério da Saúde mostra que, de 2007 a 2021, foram notificados 36.497 casos de febre maculosa no Brasil, dos quais 7% foram confirmados, em uma média de 170 por ano nesse período. Dos 2.545 casos confirmados, 2.538 relataram situações referentes à exposição de risco e, destes, 68,5% haviam frequentado ambientes de mata. O lago do Café, que fica em Campinas, ficou fechado de 2008 a 2013 após três funcionários do local morrerem de febre maculosa. Na reabertura ao público foram instaladas placas orientando os frequentadores a permanecerem apenas nas áreas asfaltadas.
2023-06-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0xe9eq0x4qo
sociedade
A síndrome de Alice no País das Maravilhas e outras 4 condições psiquiátricas raras
A maioria das pessoas conhece distúrbios psiquiátricos como a esquizofrenia e o transtorno bipolar. Mas existem algumas condições tão incomuns que muitos psiquiatras não encontrarão um único caso em toda a sua vida profissional. Aqui, apresento cinco das síndromes mais raras — e estranhas — conhecidas pela psiquiatria. O nome do distúrbio vem do ator de teatro italiano Leopoldo Fregoli (1867-1936), que ficou conhecido pela sua notável capacidade de mudar de aparência rapidamente no palco. Fim do Matérias recomendadas Não existe cura conhecida para a síndrome de Fregoli, mas o tratamento com drogas antipsicóticas pode reduzir os sintomas. O nome da síndrome vem do neurologista francês Jules Cotard (1840-1889), que descreveu a condição pela primeira vez em 1882. Acredita-se que a síndrome seja originada da desconexão entre as regiões do cérebro que reconhecem os rostos e as regiões que associam o conteúdo emocional a esse reconhecimento facial. Esta condição rara normalmente é tratada com antidepressivos, antipsicóticos e estabilizadores do humor, além de terapia eletroconvulsiva. A síndrome da mão alienígena é um dos distúrbios neurológicos mais estranhos que existem. Esta síndrome foi identificada pela primeira vez em 1908, mas só foi definida claramente no início dos anos 1970. A expressão “síndrome da mão alienígena” foi cunhada pelo neurofisiologista norte-americano Joseph Bogen (1926-2005), para descrever um comportamento voluntarioso incomum, observado ocasionalmente durante a recuperação de certos tipos de cirurgia cerebral. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pesquisas indicam que as pessoas com a síndrome frequentemente personificam a mão alienígena e podem acreditar que ela está possuída por algum outro espírito ou forma de vida extraterrestre. A síndrome é muito rara. Uma análise de 2013 encontrou apenas 150 casos nas publicações médicas. Embora não haja cura conhecida para a síndrome da mão alienígena, os sintomas podem ser gerenciados e minimizados, até certo ponto, mantendo a mão afetada ocupada e envolvida em uma tarefa — dando um objeto para que ela segure, por exemplo. A síndrome de Ekbom é uma alucinação tátil que faz com que as pessoas acreditem que estão infestadas por parasitas. Muitas vezes, elas sentem insetos rastejando sob a sua pele. A síndrome recebeu o nome do neurologista sueco Karl Ekbom (1907-1977), que descreveu a condição pela primeira vez no final dos anos 1930. A síndrome de Ekbom é associada a diversas condições, incluindo esquizofrenia paranoide, doença cerebral orgânica, neurose e transtorno de personalidade paranoide. Ela também foi relatada em pessoas com abstinência de álcool, abuso de cocaína, AVC, demência e lesões em uma parte do cérebro chamada tálamo. Os pacientes que sofrem da síndrome de Ekbom, muitas vezes, não querem receber tratamento psicológico porque estão convencidos de que o problema exige tratamento médico. Na síndrome de Alice no País das Maravilhas, também conhecida como síndrome de Todd, a sensação de imagem do corpo, visão, audição, tato e espaço/tempo da pessoa estão distorcidos. Pessoas com a condição tipicamente observam objetos como se fossem menores do que a realidade e as pessoas parecem maiores do que são. Ou o contrário: os objetos são percebidos como maiores do que são e as pessoas parecem menores. Estas experiências podem ser acompanhadas por sensações de paranoia. As pessoas com a condição podem ficar assustadas e entrar em pânico. Por isso, o tratamento bem sucedido, muitas vezes, inclui repouso e relaxamento. *Mark Griffiths é diretor da Unidade Internacional de Pesquisa em Jogos e professor de Dependência Comportamental da Universidade Trent de Nottingham, no Reino Unido.
2023-06-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c873l515n5lo
sociedade
Quem é o filho de George Soros que vai assumir império de US$ 25 bilhões
O bilionário George Soros, de 92 anos, passou o comando de seu império financeiro e instituições de filantropia para um de seus cinco filhos. Alex, de 37 anos, é o segundo mais novo da família e vai assumir o controle de uma fortuna avaliada em US$ 25 bilhões (R$ 122 bilhões). Nascido na Hungria, Soros ficou bilionário no mercado financeiro, mas tem direcionado a fortuna da família desde os anos 1990 para apoiar o fortalecimento da democracia em dezenas de países. Ele também é um dos maiores doadores do partido Democrata nos Estados Unidos. No entanto, nos últimos anos, o ex-gestor de fundos tem sido alvo de teorias da conspiração antissemitas. Soros disse que passou o bastão para seu filho em uma entrevista no Wall Street Journal (WSJ) e um porta-voz confirmou a informação à BBC. O bilionário disse que seu filho “fez por merecer” para assumir o controle do fundo de investimento. Fim do Matérias recomendadas Alex é formado em história e será o único membro da família no conselho de administração do Soros Fund Management, o fundo que administra os 25 bilhões da família. Ele já havia assumido o cargo de presidente do conselho da Fundação Open Society em dezembro de 2022 e também já comandava um mecanismo de financiamento para partidos políticos nos EUA. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora Alex tenha em geral as mesmas inclinações políticas de seu pai, ele disse ao WSJ que é “mais político” que seu pai - por exemplo, teria feito campanha contra a tentativa de Donald Trump de concorrer à reeleição (que Trump acabou perdendo). “Eu gostaria muito que a política não dependesse tanto de dinheiro, mas enquanto o outro lado estiver usando (muitos recursos), nós teremos que usar também”, disse Alex Soros. Alex disse que a Fundação Open Society vai continuar com os mesmos objetivos que tinha sob seu pai, incluindo a promoção da liberdade de imprensa, de reforma dos sistemas de Justiça penal, direitos das minorias, dos refugiados e apoio a políticos progressistas. Mas Alex também quer incluir pautas como direito ao voto, direitos reprodutivos e igualdade de gênero - além de ter um programa mais focado nos EUA. Alex Soros é fã de hip-hop e do time de futebol americano New York Jets. Também é conhecido por ter uma vida social muito ativa, frequentando festas de celebridades em Cannes, na França, e nos Hamptons, nos EUA. Ele também viajou para partes remotas da Amazônia e se juntou ao conselho do grupo de campanha de direitos humanos Global Witness. "Nosso lado tem que ser melhor em ser mais patriótico e inclusivo", disse ele ao WSJ. "Só porque alguém vota em Trump não significa que esteja perdido ou seja racista." Soros nasceu na Hungria, onde viveu sob o terror da ocupação nazista em 1944 e 1945. Sua família precisou esconder que era judaica para sobreviver. Depois da guerra, Soros imigrou para Londres e depois para Nova York, onde acabou ficando bilionário com sua atuação no mercado financeiro. Ele ganhou bastante notoriedade no Reino Unido quando ganhou cerca de US$ 1 bilhão apostando que a libra iria desvalorizar em 1992. Quando o muro de Berlim caiu, abrindo caminho para o estabelecimento de governos democráticos no antigo bloco soviético, Soros criou a Fundação Open Society (OSF) para apoiar o processo. A OSF agora gasta cerca de US$ 1,5 bilhão por ano apoiando causas progressistas, organizações educacionais e direitos humanos em mais de 120 países. Algumas de suas causas irritaram a direita, incluindo o combate ao preconceito racial no sistema de justiça dos EUA. A OSF mudou seu escritório de operações internacionais de Budapeste para Berlim em 2018, depois que o governo húngaro liderado por Viktor Orbán fez campanha explicitamente contra Soros pessoalmente e contra o trabalho da fundação.
2023-06-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5gqz4nyzgo
sociedade
Por que o Dia dos Namorados é em junho no Brasil e em fevereiro no resto do mundo?
Qual é a origem do Dia dos Namorados no Brasil? Enquanto os Estados Unidos e a Europa comemoram o chamado Valentine's Day (ou Dia de São Valentim) em 14 de fevereiro, por aqui, a data é do romance celebrada em 12 de junho desde 1948. E o motivo é exclusivamente comercial. A ideia de estabelecer a comemoração veio do publicitário João Doria, pai do empresário, jornalista e ex-governador de São Paulo, João Doria Jr. Dono da agência Standart Propaganda, ele foi contratado pela loja Exposição Clipper com o objetivo de melhorar o resultado das vendas em junho, que eram sempre muito fracas. Fim do Matérias recomendadas Inspirado pelo sucesso do Dia das Mães, Doria instituiu outra data para trocar presentes no ano: o Dia dos Namorados. Junho foi escolhido porque era justamente o mês de desaquecimento das vendas. O dia 12, por sua vez, está na véspera da celebração de Santo Antônio, que é famoso no Brasil por ser o santo casamenteiro. Unindo, então, o útil ao agradável, Doria criou a primeira propaganda que instituiria a data no país. "Não é só com beijos que se prova o amor!", dizia um slogan do primeiro Dia dos Namorados brasileiro. "Não se esqueçam: amor com amor se paga", afirmava outro. A propaganda foi julgada a melhor do ano pela Associação Paulista de Propaganda à época. A data começou a "pegar" no Brasil no ano seguinte, quando mais regiões começaram a aderir — posteriormente, a comemoração tornou-se nacional. Atualmente, o Dia dos Namorados já é a terceira melhor data para o comércio no país — atrás apenas do Natal e do Dia das Mães. Em 2023, espera-se que a celebração movimente R$ 23 bilhões entre presentes e celebrações, segundo pesquisa da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil). A origem do Valentine's Day (Dia de São Valentim), celebrado nos Estados Unidos e na Europa, é muito anterior ao Dia dos Namorados no Brasil. A data começou a ser celebrada no século 5. Há algumas explicações para a história, mas a mais famosa é a de que São Valentim era um padre de Roma que foi condenado à pena de morte no século 3. Segundo esse relato, o imperador Claudio 2º baniu os casamentos naquele século por acreditar que homens casados se tornavam soldados piores — a ideia dele era de que solteiros, sem qualquer responsabilidade familiar, poderiam render melhor no exército. Valentim, porém, defendeu que o casamento era parte do plano de Deus e dava sentido ao mundo. Por isso, ele quebrou a lei e passou a organizar cerimônias em segredo. Quando o imperador descobriu, o padre foi preso e sentenciado à morte no ano 270 d.C. Mas, durante o período em que ficou preso, Valentim se apaixonou pela filha de um carcereiro. No dia do cumprimento da sentença, ele enviou uma carta de amor à moça assinando "do seu Valentim" — o que originou a prática moderna de enviar cartões para a pessoa amada no dia 14 de fevereiro. Foi apenas dois séculos depois que a data passou a ser efetivamente comemorada, quando o papa Gelásio instituiu o Dia de São Valentim, classificando-o como um símbolo dos namorados. A comemoração foi criada quando a Igreja transformou em festa cristã uma antiga tradição pagã — um festival romano de três dias chamado Lupercalia. O evento, ocorrido no meio de fevereiro, celebrava a fertilidade. O objetivo era marcar o início oficial da primavera. Mas há ao menos outras duas figuras históricas que disputaram o título de São Valentim associado a essa data. Uma delas é um bispo de uma cidade próxima a Roma — na região da atual Terni — e a outra, um mártir do norte da África. Como não se sabe muito sobre essas duas outras figuras, o padre de Roma acabou se tornando o mais conhecido entre os padroeiros dos namorados.
2023-06-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9x9pz7zk82o
sociedade
Rádio Mulher: o veículo que enfrentou o machismo nos anos 1970 e acabou perdendo
A Sociedade Esportiva Palmeiras e a Associação Portuguesa de Desportos se preparavam para um amistoso na noite de 15 de junho de 1971. Enquanto os jogadores se trocavam no vestiário e conferiam os últimos detalhes antes de entrar em campo, narradores e comentaristas se organizavam para a transmissão de rádio nas cabines do antigo Estádio Palestra Itália. A data é significativa porque marca uma revolução: a introdução das mulheres no mundo da narração esportiva por meio da Rádio Mulher. Naquele dia, a voz de Zuleide Ranieri (1945-2016), responsável pela narração da partida, ecoou no estádio. Ela foi a voz da Rádio Mulher que atraiu homens e mulheres para acompanhar os grandes clássicos do futebol brasileiro. E, ao longo de sua trajetória na rádio, foi responsável por bordões icônicos, como "Uma mulher a mais no estádio, um palavrão a menos". A história de pioneirismo, porém, começou um pouco antes. Comprada em 1969 com o nome de Santo Amaro AM pelo empresário Roberto Montoro, a rádio passou por uma profunda reformulação. Fim do Matérias recomendadas O executivo não perdeu tempo e, no ano seguinte, transformou a estação na Rádio Mulher, após conversar com seu irmão e sócio, Antonio Montoro, e a então diretora-administrativa da empresa, Aurora Portela. Em 1970, apenas profissionais do sexo feminino tinham espaço na equipe da 930 AM. A programação era elaborada por mulheres (para mulheres) — uma verdadeira revolução no meio da comunicação no país. A grande inovação, no entanto, aconteceu no ano seguinte, quando a programação abriu espaço para o futebol, e foram contratadas jornalistas para cuidar do departamento esportivo. O jogo entre Palmeiras e Portuguesa terminou dois a zero para a equipe alviverde — e o trabalho feito pela Rádio Mulher chamou a atenção. Em pouco tempo, a estação se tornou referência, e o público foi crescendo partida após partida. Ao longo daquele ano, a equipe transmitiu a Copa Roca e a primeira edição do Campeonato Brasileiro. Dali surgiram nomes importantes do jornalismo brasileiro, como Germana Garilli, repórter de campo, Jurema Yara e Leilah Silveira, comentaristas, e Claudete Troiano, também repórter de campo e segunda narradora, revezando com Zuleide. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Não existia clima ruim de trabalho. Não sei se era porque a gente estava tão focada. Já era tão difícil entrar em um campo totalmente ocupado por homens em todos sentidos — por críticos, jogadores, torcedores —, então entre nós foi sempre tudo muito bem", diz Claudete sobre a união da equipe durante os trabalhos esportivos da Rádio Mulher. A Rádio Mulher também apresentou outra inovação na transmissão de partidas de futebol no Brasil: a introdução de uma comentarista de arbitragem, Léa Campos. A ideia de colocar uma ex-árbitra para analisar os lances polêmicos acabou sendo vista como revolucionária. A TV Globo, por exemplo, só tomou uma iniciativa semelhante em 1989, com Arnaldo Cezar Coelho. Claudete, que ficou famosa por apresentar programas na TV aberta, como o "Note e Anote", da Record TV, destaca que a Rádio Mulher foi pioneira não apenas para o jornalismo esportivo, mas também para o esporte em geral. "O espaço das mulheres vem crescendo e muito. Se você levar em conta que a mulher tinha que se vestir de palhaço para se disfarçar para poder jogar futebol, que quando a gente começou, lá na década de 1970, clubes de futebol feminino, como o Radar de Pernambuco, estavam dando os primeiros passos, olha só como isso cresceu", avalia. "Hoje temos jogos de futebol feminino recebendo grandes plateias, com o torcedor apoiando. E a mulher tem ocupado todos os espaços no rádio, na TV e em todas as mídias com muita sabedoria." As mulheres da estação 930 AM conquistaram o público. A audiência foi crescendo, sobretudo entre o público masculino. Isso gerou incômodo por parte de jornalistas homens — muitos deles resistiam à ideia de mulheres trabalhando com futebol. Parte dessa visão era herança do Decreto-Lei 3199, sancionado em 1941 pelo então presidente Getúlio Vargas. O texto proibia a "prática de esportes incompatíveis com a natureza feminina", incluindo o futebol. O documento só foi revogado em 1979. "Havia machismo naquela época. Eu narrei futebol, mas comecei como repórter de campo. A narradora principal era a Zuleide, e eu fiquei um tempinho fazendo reportagem de campo, porque fui contratada pela Rádio Mulher por causa das minhas reportagens em outras emissoras de rádio. Na reportagem, eu sentia o machismo", relembra Claudete. "Na época, os repórteres eram o Faustão, Cândido Garcia, só gente fera no campo. Eles ficavam meio desconfiados, soltavam algumas informações que não eram corretas só para ver se você caía, passava essa informação para a torcida. Também tinha o espanto da torcida, porque não estava acostumada com mulher dentro de campo até chegar a nossa equipe, que era muito jovem. Só tinha uma fotógrafa que já tinha uma idade avançada e trabalhava no Estadão", conta a apresentadora. Era uma época em que apenas 18% das mulheres trabalhavam fora de casa, de acordo com a Fundação Carlos Chagas. E a crença de que "futebol é coisa de homem" era bastante difundida. O preconceito em relação às mulheres estava refletido nas restrições que a equipe da rádio sofria. Proibidas de entrar nos vestiários — enquanto jornalistas homens tinham acesso ao local para entrevistar atletas e dirigentes —, as repórteres da 930 AM encontraram outra solução para informar os ouvintes. "A gente fazia amizade com mãe, namorada e esposa de jogador. Então a gente tinha informações da vida dos jogadores, porque os outros repórteres não se preocupavam com isso. A gente se virava como podia", recorda Claudete. "Existia machismo naquela época. Até hoje existe. Durante muito tempo, depois do nosso trabalho que durou cerca de cinco anos, a mulher ainda era utilizada apenas como decoração nos programas esportivos de televisão, imagina naquele tempo", acrescenta. Não há informações detalhadas sobre o fim da Rádio Mulher, mas um dos motivos alegados para o fechamento da estação foi a falta de patrocínio. Muitas empresas não acreditaram nos projetos da emissora, inclusive do departamento de esporte, que era sucesso de audiência. Embora a programação fosse feita por mulheres, a audiência da estação era, em sua maioria, masculina — e diante da pressão do mercado publicitário, Roberto Montoro decidiu convidar jornalistas homens para fazer parte da equipe. A ideia era manter a audiência e, ao mesmo tempo, atrair patrocinadores. Não deu resultado. Pelé, considerado por muitos como o maior jogador de futebol de todos os tempos, chegou a cogitar levar o projeto à Rádio Clube de Santos, da qual era proprietário. Só que o plano não deu certo, porque ele deixou o futebol brasileiro e foi morar nos Estados Unidos para jogar no New York Cosmos. Em 1976, já sem boa parte da equipe que iniciou o projeto, a Rádio Mulher chegou ao fim. Mas Claudete tem convicção de que o trabalho da rádio permitiu que outras mulheres conquistassem seu espaço no mundo do futebol. "Acho que a gente, da Rádio Mulher, colaborou para tudo isso. Sempre tem que ter alguém para abrir uma porta, jogar uma luz e colocar uma ideia na cabeça para as coisas acontecerem. Acho que ali foi uma sementinha importante que a Rádio Mulher plantou, e eu tive o prazer de participar. Tenho muito orgulho disso", diz ela. Hoje, a situação é bem diferente. As jornalistas Renata Fan e Glenda Kozlowski, por exemplo, são referências por estarem há décadas comandando programas de futebol na TV aberta. Mas as mulheres seguem conquistando seu espaço no jornalismo esportivo. Em 2022, Ana Thaís Matos se tornou a primeira jornalista mulher a comentar jogos da Copa do Mundo de Futebol Masculino na Globo, e Renata Silveira, a primeira narradora mulher da emissora. "Não tínhamos noção que estávamos abrindo um campo de trabalho tão importante", afirma Claudete Troiano. "Lamento que a rádio tenha chegado ao fim, porque a família Montoro é maravilhosa. Agradeço ao seu Montoro e a sua família pelo que fizeram pela gente. Foi muito importante para as mulheres."
2023-06-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx8pj2x039no
sociedade
Por que viajar de avião está tão caro no Brasil
O preço médio das passagens aéreas em viagens nacionais entre janeiro e março deste ano foi o maior em um primeiro trimestre em mais de uma década: R$ 592,95. O dado é o mais atualizado do levantamento feito pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). Esse valor, segundo a Anac, é o maior desde o primeiro trimestre de 2010, quando a média foi de R$ 629,16, já corrigida pela inflação. Na comparação anual, 2022 já havia entrado para a série histórica da agência como o ano em que os bilhetes custaram mais caro em muito tempo. O preço médio foi R$ 649,14 — o maior valor desde 2009, quando o bilhete custou em média R$ 742,89. Fim do Matérias recomendadas “Ao menos desde 2019, as companhias aéreas têm subido os valores das passagens acima da inflação. Isso indica que as companhias estão elevando os preços mais do que a capacidade de renda da população, que tem enfrentado mais dificuldade para comprar passagens”, diz o economista Alexandre Jorge Chaia, do Insper Mas por que viajar de avião no Brasil está tão caro? Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que o preço das passagens subiu por uma combinação de fatores, como a pandemia de covid-19, a alta do dólar nos últimos anos e o aumento do preço do combustível das aeronaves. O setor afirma ainda que atravessa uma crise e tenta se reestruturar. Enquanto isso, o governo federal estuda lançar um programa para vender passagens a preços populares, além de outras medidas para tentar reduzir o valor dos bilhetes. Ao mesmo tempo, além do valor das passagens, viajar de avião ficou mais caro porque muitos consumidores têm agora que arcar com cobranças extras, como a tarifa para despachar bagagens, em vigor desde 2017, que se tornou parte importante da receita das empresas aéreas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Até o início dos anos 2000, o valor das passagens aéreas era regulado pelo governo federal. O controle de preços gerava ineficiências, reduzindo o investimento das empresas e a oferta de voos, o que mantinha o valor das passagens elevado. Desde 2001, as empresas aéreas passaram a ter liberdade para determinar as tarifas cobradas nas rotas domésticas. A concorrência ganhou força a partir de 2005, com a criação da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), estimulando investimentos e a expansão do setor, com crescimento da malha aérea, aumento da oferta de trechos e da quantidade de voos. Essa expansão fez o valor das passagens cair bastante, segundo analistas, o que levou muito mais brasileiros a viajar de avião. O efeito dessa mudança pode ser medido pelo chamado RPK (Revenue Passenger‐Kilometers, em inglês, ou Passageiros‐Quilômetros Pagos transportados). Essa medida, usada pelo setor para apontar a demanda por voos, é calculada ao se multiplicar o número de passageiros pagantes por quilômetros voados. Em 2000, o índice foi de 25,2 bilhões de quilômetros. Uma década depois, quando o avião se tornou oficialmente o meio de transporte mais usado por brasileiros para viagens longas em vez do ônibus, já eram 69,8 bilhões. O RPK continuou a crescer na década seguinte, até sofrer uma queda vertiginosa na pandemia de covid-19 por causa das restrições de circulação. Em 2019, ano imediatamente anterior à pandemia, eram 96,4 bilhões de quilômetros. No ano seguinte, caiu para quase a metade: 49,5 bilhões. A aviação comercial doméstica começou a se recuperar desde então. Em 2022, o RPK subiu para 89,3 bilhões de quilômetros. Segundo a Associação Brasileira das Empresas Aéreas (Abear), que representa companhias do setor, o índice do ano passado foi correspondente a 86,5% do registrado em 2019. Essa recuperação foi melhor do que as de viagens internacionais, de acordo com a Abear, que estão hoje em 64,7% do registrado no ano anterior à pandemia. Apesar da recente recuperação, a Abear avalia que as empresas aéreas brasileiras ainda enfrentam uma situação difícil. A associação estima que as companhias tiveram prejuízo de R$ 46,39 bilhões, acumulados de 2016 até o terceiro trimestre do ano passado. Diante desse cenário, um dos reflexos para o consumidor foram passagens cada vez mais caras. O valor de uma passagem leva em consideração fatores como a oscilação de preço internacional do barril de petróleo (a partir do qual é produzido o combustível para as aeronaves), a taxa de câmbio, as estratégias de concorrência entre as empresas, a distância que será percorrida e a demanda por um determinado trecho. Há outros fatores também, segundo a Anac, como a antecedência da compra da passagem, o dia da semana em que isso é feito, se é um trecho com escalas e conexões, se serão oferecidas refeições a bordo, a posição do assento na aeronave e o meio pelo qual a passagem é vendida. Há casos inclusive em que bilhetes nacionais custam mais do que viagens para outros países, principalmente aqueles que são vizinhos do Brasil. Isso ocorre, segundo especialistas, por causa da dimensão continental do Brasil, o que torna algumas viagens bem longas, e também em razão do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), tributo cobrado pelos Estados sobre vários setores econômicos, como o de combustível – o que encarece os custos em alguns pontos do país. Além disso, o preço de uma passagem aérea é dinâmico, ou seja, ele varia de acordo com esses fatores a qualquer momento. Isso significa que, em um mesmo voo, passageiros podem pagar diferentes valores por assentos semelhantes. Em fevereiro deste ano, por exemplo, segundo a Anac, 30% dos bilhetes de viagens no Brasil foram vendidos abaixo de R$ 300. Já a média geral do valor da passagem nacional nesse período foi bem maior, de R$ 576,19 – o maior desde fevereiro de 2014, quando ficou em R$ 598,53. “Muitos outros serviços também têm preços dinâmicos, como atrações culturais, transportes e hotelaria”, argumenta Jurema Monteiro, presidente da Abear. Monteiro reconhece que as passagens ficaram mais caras nos últimos anos no Brasil, mas ela diz que isso que ocorreu com outros serviços e setores no pós-pandemia, com inflação em alta e um aumento de custos em geral. Ela acrescenta que o valor do dólar mais que dobrou nos últimos dez anos e que isso impactou diretamente os preços das passagens no Brasil. “O preço [das passagens] já foi menor, mas em condições nas quais os custos eram diferentes. O dólar era mais baixo e o preço do combustível era mais competitivo. 60% dos custos estão atrelados ao dólar, como o combustível, o arrendamento de aeronave, a manutenção… tudo isso é dolarizado”, diz. Ex-diretor da Anac, o advogado Ricardo Fenelon Júnior, especialista em Direito Aeronáutico, afirma que as companhias aéreas continuam tendo dificuldades mesmo com o aumento do preço das passagens aplicado para compensar os prejuízos dos últimos anos e a alta dos custos de produção. “Os custos das empresas aéreas no Brasil subiram de forma exponencial. As companhias só não sobem mais os preços porque não conseguem, porque há liberdade tarifária no Brasil e precisa aumentar o preço e regular a oferta conforme concorrência e demanda”, diz. “Essas empresas ainda continuam tendo prejuízo porque não podem cobrar o máximo que poderiam, porque o consumidor é sensível a preço. Esses prejuízos dos últimos anos, como as dívidas criadas na pandemia, continuam gerando aumento de custos hoje. Mesmo com o preço das passagens mais alto, essas companhias não conseguem cobrir os prejuízos dos últimos anos”, acrescenta. Outro problema que prejudica o segmento, avalia Fenelon, é relacionado ao alto número de processos contra empresas aéreas no Brasil. “Isso faz parte dos custos estruturais de uma empresa. O Brasil é o país com o maior número de passageiros contra companhias aéreas”, diz o advogado. Nem mesmo as novas cobranças como pelo despacho de bagagens, marcação de assentos e serviço de bordo, que hoje representam cerca de 20% da receita das companhias com as tarifas cobradas, amenizou a crise do setor, diz Marcus Quintella, diretor do centro de estudos da área de Transporte da Fundação Getúlio Vargas (FGV). "No mundo, essa cobrança já é uma prática de muitos anos e no Brasil acontece desde 2017. Hoje é uma receita acessória muito importante, e tudo isso faz parte dessa estratégia das empresas”, afirma Quintella. O especialista diz que essas novas cobranças não foram suficientes para reverter os prejuízos do setor nos últimos anos. E avalia que, se esses valores voltassem a ser incluídos no preço da passagem, os bilhetes ficariam ainda mais caros. "Muita gente começaria a levar bagagem desnecessariamente e isso interfere no custo do voo, no peso da aeronave, no combustível e na ocupação”, acrescenta Quintella, que frisa que essas novas cobranças são permitidas pela Anac. Uma das principais dificuldades alegadas pelas empresas aéreas é o preço do querosene de aviação (QAV), o maior custo de operação das aeronaves. O valor do produto é tabelado pela Petrobras, que define sua política de preços. Segundo a Abear, o preço do QAV começou a pressionar os custos das passagens aéreas no país por volta de 2018, e a situação piorou em meio à pandemia. De acordo com a estimativa da associação, o preço do produto aumentou 129% de 2020 a 2022, ajustado pela inflação. “O QAV oscilou muito para cima em 20 anos, especialmente nos últimos quatro anos", diz Jurema, da Abear. "Isso faz com que o preço da passagem também oscile como um todo. Mas a tarifa média do bilhete aéreo oscilou muito menos do que o aumento de custos no último período: enquanto o bilhete aéreo aumentou 26% de 2019 a 2023, o QAV aumentou mais de 120% [valores ajustados pela inflação].” O conflito causado pela invasão da Ucrânia pela Rússia, segundo os especialistas, também elevou o valor do querosene de aviação. Nos primeiros meses deste ano, segundo o governo federal, o preço do QAV teve uma redução de 35%. O setor, porém, cobra uma redução ainda maior, em razão dos aumentos consecutivos nos últimos anos. Para a Abear, uma das medidas mais urgentes para reduzir os custos dos bilhetes aéreos é reavaliar a forma que o QAV é cobrado no Brasil. “Hoje, mesmo que 90% da produção do combustível seja nacional, o item é cobrado como se viesse do exterior. Além disso, o Brasil é o único país que tributa o QAV (com ICMS, por exemplo), tornando o preço efetivo pago nas refinarias brasileiras um terço superior ao valor cobrado das aéreas nos Estados Unidos”, aponta a associação em um comunicado enviado à BBC News Brasil. O Ministério de Portos e Aeroportos (MPor) diz em nota à BBC News Brasil que reduzir ainda mais o preço do combustível é um dos principais caminhos para diminuir os custos das passagens. Em razão disso, afirma que mantém diálogo frequente sobre o tema com os órgãos competentes para “encontrar soluções para a redução dos preços”. O MPor afirma ainda que há outras alterações estruturais na aviação civil que também são importantes para baratear as passagens, como “a diminuição do excesso de judicialização das relações de consumo; a redução da tributação incidente sobre a aviação civil e a atração de mais empresas aéreas para aumento da concorrência”. O setor aéreo pede mais apoio do poder público. A Abear aponta que enquanto outros países deram suporte ao segmento no auge da pandemia, o governo brasileiro não concedeu nenhum tipo de ajuda financeira no período. “Mesmo com uma parada quase total dos voos, o setor brasileiro se manteve de pé sem nenhum subsídio público, diferentemente do que aconteceu em países como Estados Unidos (US$ 50 bi), França (US$ 16,4 bi), Alemanha (US$ 9,8 bi) e Holanda (US$ 3,8 bi)”, diz comunicado da Abear. “Isso faz com o que o custo financeiro dessa recuperação seja mais intenso e duradouro do que em outros setores e países. Fora este cenário atípico, impactos do Custo Brasil, de R$ 1,7 tri para todos os setores brasileiros em 2022, mostram o quanto o modal aéreo é impactado pela alta carga tributária. Somente o setor aéreo pagou R$ 20,5 bi em tributos em 2021”, acrescenta a associação. Já o governo federal afirma que foram tomadas medidas para auxiliar o segmento durante o auge da pandemia. O Ministério do Turismo diz, em nota, que apoiou uma série de ações para fortalecer o setor aéreo no período. Entre as medidas, a pasta cita medida provisória que flexibilizou a jornada e permitiu suspensão dos contratos de trabalho; regulamentação da remarcação e do cancelamento de voos em função da pandemia; introdução do combustível JET-A; e diminuição do imposto sobre arrendamento de aeronaves. A pasta afirma ainda que foram feitas reuniões com as empresas aéreas e associações do setor para discutir ações que possam ajudar a reduzir custos operacionais e “dar oportunidade de mais brasileiros voarem". Uma das medidas mais recentes do governo federal em relação ao barateamento de passagens foi o anúncio do programa “Voa Brasil”. A iniciativa promete abaixar os custos das passagens aéreas nacionais para alguns públicos específicos para cerca de R$ 200 por trecho voado. De acordo com o que foi divulgado até agora pelo governo, servidores públicos com salário de até R$ 6,8 mil, aposentados, pensionistas e estudantes do Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) podem estar entre os beneficiados. Segundo as informações iniciais, cada pessoa deve ter direito a duas passagens por ano, além de um acompanhante por trecho. Essas passagens devem ser vendidas em períodos fora da alta temporada. Azul, Gol e Latam, as três principais empresas do setor, anunciaram que aceitam participar do projeto. A previsão é de que o programa comece no segundo semestre deste ano. No fim de maio, o presidente Lula sancionou uma Lei que concede isenção de tributos às empresas aéreas. O texto zera as alíquotas do PIS e da Cofins (impostos federais) sobre a receitas obtidas pelas empress de transporte aéreo pelo período de 1º de janeiro deste ano a 31 de dezembro de 2026. O governo federal estima que essa medida deve reduzir em cerca de R$ 500 milhões nos custos operacionais da aviação civil brasileira nos próximos anos. Apesar de representar alívio, o setor aéreo tem argumentado que dificilmente a medida irá impactar de modo imediato em uma possível redução nos preços das passagens, em razão dos prejuízos enfrentados nos últimos anos. No mês passado, houve queda de 17,73% nos preços das passagens aéreas, segundo a inflação calculada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mas no acumulado dos últimos 12 meses, conforme o IBGE, os preços das passagens subiram 4,31% - em comparação, a inflação no mesmo período foi de 3,94%. “Isso indica que em maio talvez houvesse mais oferta de passagens e também o preço do combustível de aviação caiu no período recente. Talvez a tendência seja estabilizar nesse preço (atual) das passagens, mas uma redução muito grande neste momento acho difícil”, avalia Alexandre Jorge Chaia, do Insper. “As empresas ainda estão desequilibradas financeiramente e acabam tendo que repor esse prejuízo. Então as passagens devem continuar caras, ao menos até que as empresas equilibrem as contas”, acrescenta. Os especialistas afirmam que não há, ao menos por ora, como prever de modo geral quando as passagens aéreas terão queda de preço considerável no país. “É um cenário muito complexo. A aviação depende da macroeconomia. Se analisarmos, desde 2014, a gente anda de lado porque não tem crescimento significativo no país. Infelizmente, os últimos dez anos não foram fáceis para o Brasil", aponta Fenelon, ex-diretor da Anac. "O cenário deve continuar complexo enquanto o dólar estiver em alta e o combustível nesse valor”, acrescenta. Segundo especialistas, a melhor forma de comprar passagens aéreas mais baratas no atual momento é se planejar. “Essa é a grande diferença, porque as empresas concorrem muito entre si. Não existe outra dica além da antecedência”, afirma Jurema Monteiro, da Abear. Mas quanto tempo seria o suficiente? “Até três meses de antecedência é um bom período”, diz Marcus Quintella.
2023-06-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9xnx5k49lpo
sociedade
Como Japão quer mudar definição de estupro
Aviso: este artigo contém detalhes que podem ser perturbadores para alguns leitores. Dias após ser vítima de um estupro, Megumi Okano diz que já sabia que o agressor sairia impune. Megumi, que adota o pronome de gênero neutro da língua inglesa "they", conhecia o homem que cometeu o abuso e sabia onde encontrá-lo. Mas também sabia que não haveria punição porque as autoridades japonesas provavelmente não considerariam o que aconteceu como estupro. Por isso, decidiu não denunciar o incidente à polícia. "Como eu não poderia buscar [a Justiça] dessa forma, ele viveu uma vida livre e fácil. Isso é doloroso para mim", afirma Megumi. Fim do Matérias recomendadas Mas a mudança pode estar próxima. O Parlamento japonês está debatendo um projeto de lei histórico para reformular as leis de agressão sexual do país. Esta é a segunda revisão do tipo em um século. O projeto de lei abrange uma série de mudanças, mas a maior e mais significativa será ver os legisladores redefinirem o significado de estupro, passando de "relação sexual forçada" para "relação sexual não consensual", abrindo efetivamente um espaço legal para o consentimento em uma sociedade na qual esse conceito ainda é pouco entendido. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A legislação japonesa atual define o estupro como uma relação sexual ou atos indecentes cometidos "à força" e "por meio de agressão ou intimidação", ou se aproveitando do "estado inconsciente ou da incapacidade de resistir" de uma pessoa. Esse conceito contrasta com o de muitos outros países que definem o estupro de forma mais ampla, como qualquer relação ou ato sexual não consensual — em que "não" significa "não". Ativistas argumentam que a definição limitada do Japão levou a interpretações ainda mais restritas da lei por promotores e juízes, estabelecendo um padrão impossivelmente alto para a justiça e fomentando uma cultura de ceticismo que impede as vítimas de denunciar os ataques. Em um caso de 2014 em Tóquio, por exemplo, um homem colocou uma garota de 15 anos contra a parede e fez sexo com ela enquanto ela resistia. Ele foi absolvido de estupro porque o tribunal decidiu que as ações dele não tornavam "extremamente difícil" para ela resistir. A adolescente foi tratada como adulta porque a idade de consentimento no Japão é de apenas 13 anos —a menor entre as democracias mais ricas do mundo. "Os atuais processos e decisões judiciais variam —alguns réus não foram condenados, mesmo que seus atos fossem provados como não consensuais, pois não atenderam ao caso de 'agressão ou intimidação'", afirma Yuu Tadokoro, porta-voz da Spring, um grupo de sobreviventes de agressão sexual. É por isso que Megumi diz que não foi à polícia após o ataque de um colega da universidade. Os dois estavam assistindo à televisão juntos quando ele começou a fazer investidas sexuais contra Megumi, que disse "não". Ele partiu então para o ataque. Os dois "lutaram" por um tempo até que Megumi, segundo seu próprio relato, congelou e desistiu de resistir. Essa resposta documentada a um ataque às vezes não é coberta pela lei atual, de acordo com ativistas. Nos dias que se seguiram, Megumi — que é estudante de direito — analisou o código penal e os precedentes do caso e percebeu que o que havia acontecido não atenderia aos padrões do tribunal de "agressão e intimidação". Também havia ouvido falar de sobreviventes que foram alvo de culpabilização da vítima e de um "segundo estupro" — quando as vítimas são traumatizadas novamente ao se deparar com a insensibilidade da polícia ou da equipe do hospital — em investigações japonesas. "Não queria passar por aquele processo [de investigação] pela minha escassa esperança de conseguir justiça. Por isso, não fui à polícia. Nem tinha certeza se minha denúncia seria aceita", afirma. Em vez disso, Megumi conta que foi ao centro de aconselhamento de assédio da universidade, que iniciou uma investigação e determinou que o agressor havia cometido estupro. Procurado pela BBC, o centro se recusou a comentar o caso, alegando confidencialidade. Quando a investigação foi concluída, o agressor já havia se formado — então sofreu poucas consequências, além de receber uma advertência, diz Megumi. "Fiquei com um sentimento de desapontamento por não ter conseguido fazer com que essa pessoa se arrependesse adequadamente do seu ato por meio de um processo criminal." Megumi não é a única pessoa que passou por isso. No Japão, apenas um terço dos casos reconhecidos como estupro resultam em processos, um pouco abaixo da taxa geral de processos criminais. Mas tem havido um crescente clamor público por mudanças. Em 2019, a sociedade japonesa ficou indignada quando uma série de quatro casos de agressão sexual, cada um resultando na absolvição do suposto agressor, vieram à tona em um mês. Em um caso, em Fukuoka, um homem fez sexo com uma mulher que havia desmaiado bêbada — o que poderia ser considerado agressão sexual em outros lugares. O tribunal tomou conhecimento que a mulher participou pela primeira vez de um encontro com bebidas em um restaurante. Segundo relatos, o homem disse que achava que "os homens poderiam facilmente ter comportamento sexual" no evento, que era conhecido por sua permissividade sexual, e outras pessoas que testemunharam o incidente não o impediram. Ele também supôs que a mulher deu consentimento porque em um momento durante a relação sexual ela abriu os olhos e "proferiu ruídos". Em outro caso, em Nagoya, onde um pai fez sexo com a filha adolescente repetidamente por muitos anos, o tribunal duvidou que ele tivesse "dominado completamente" a filha porque ela foi contra a vontade dos pais ao escolher uma escola para frequentar, embora um psiquiatra tenha testemunhado que ela era, em geral, psicologicamente incapaz de resistir ao pai. Após o clamor público, a maioria desses casos foi julgado novamente, e os agressores foram considerados culpados. Uma campanha nacional, conhecida como Flower Demo, foi lançada por ativistas para prestar solidariedade às vítimas de agressão sexual. Ativistas dizem que isso, aliado ao crescente movimento #MeToo e à histórica vitória judicial da jornalista japonesa Shiori Ito envolvendo uma denúncia de estupro, ajudou a promover o debate nacional sobre agressão sexual e deu início ao processo de reforma na legislação. Como parte da redefinição de estupro, a nova lei estabelece explicitamente oito cenários em que é difícil para a vítima "formar, expressar ou cumprir com a intenção de não consentir". Incluem situações em que a vítima está embriagada com álcool ou drogas; ou sujeita a violência ou ameaças; ou está "assustada ou atônita". Outro cenário parece descrever um abuso de poder, em que a vítima fica "preocupada" por enfrentar algum tipo de desvantagem se não obedecer. A idade de consentimento também vai aumentar para 16 anos, e o prazo de prescrição vai ser estendido. Alguns grupos de direitos humanos pediram mais clareza sobre os cenários, argumentando que foram redigidos de forma muito ambígua. Eles também temem que tornem mais difícil para os promotores provar as acusações. Outros disseram que prazo de prescrição deveria ser ampliado ainda mais — e que deveria haver mais proteção para vítimas menores de idade. No entanto, se aprovadas, as reformas marcariam uma vitória para aqueles que há muito tempo fazem lobby por mudanças. "Pelo próprio fato de que eles estão mudando até mesmo o título desta lei, esperamos que as pessoas comecem esta conversa no Japão com: O que é consentimento? O que significa não consentimento?", diz Kazuko Ito, vice-presidente da ONG Human Rights Now, com sede em Tóquio. Mas o tempo está se esgotando. O Parlamento do Japão precisa aprovar a nova lei até 21 de junho, mas está atualmente envolvido em um debate sobre imigração. Perder esse prazo colocaria as reformas relacionadas à agressão sexual num caminho incerto. Na semana passada, ativistas denunciaram o atraso como "inaceitável" e pediram aos legisladores que agissem imediatamente. Mas as reformas abordam apenas uma parte do problema, dizem os ativistas, cujo pedido de mudança vai muito além do tribunal. Parte do problema, diz Kazuko Ito, é que gerações de japoneses cresceram com "uma ideia distorcida de sexo e consentimento sexual". Por um lado, a educação sexual costuma ser ensinada de forma velada e modesta, e o consentimento quase não é abordado. Em contrapartida, diz Ito, as crianças japonesas têm acesso fácil à pornografia, na qual um enredo muito comum é o de uma mulher gostando de fazer sexo contra sua vontade. O Japão deveria oferecer mais apoio financeiro e psicológico às vítimas de agressões sexuais, diz a advogada e defensora de direitos humanos Sakura Kamitani. Mas os agressores também devem receber ajuda, segundo ela. "Os crimes sexuais têm uma taxa de reincidência muito alta, devemos focar na prevenção, caso contrário pode haver cada vez mais vítimas." Mas a tarefa mais importante agora, dizem os ativistas, é garantir que as reformas sejam aprovadas e promulgadas, incentivando as vítimas a denunciar os casos. "Se isso se tornar uma mudança superficial e não salvar as vítimas, será devastador para as pessoas", diz Ito. Megumi diz que consideraria denunciar o ataque à polícia se a lei mudar — mas não imediatamente. "Eu meio que já consegui resolver meus sentimentos. Acho muito difícil me colocar nessa posição séria de 'primeiro pinguim'", afirma, usando um termo japonês para a primeira pessoa a mergulhar em algo novo. Em vez disso, Megumi, que se identifica como uma pessoa fluida em termos de gênero, está se concentrando em fazer campanha para vítimas de agressão sexual e pelos direitos das minorias sexuais, e espera abrir um escritório de advocacia para ajudar esses grupos. "Sinto alívio por agora ver alguma esperança. Muitos estão começando a perceber que a situação atual em que estamos é distorcida e errada." "Acredito que as coisas vão mudar mais rápido e de forma mais significativa do que pensávamos, se todos se juntarem e trabalharem juntos. Minha mensagem [para todos] é: 'Se você acha que algo está errado, vamos mudar juntos'."
2023-06-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl4d3xvk173o
sociedade
As proibições que estão tornando Flórida reduto ultraconservador nos EUA
Às vezes republicana, às vezes democrata, a Flórida sempre foi o estado indeciso mais importante nas eleições americanas. Mas não mais. Donald Trump primeiro, e agora o atual governador, Ron DeSantis, transformaram este importante estado em um reduto republicano e conservador. DeSantis, apoiado por ampla maioria e com seu poder executivo e do Legislativo local, aprovou nos últimos meses uma série de leis que restringem direitos e liberdades e que fizeram da Flórida o maior sucesso e exemplo de governança para a mais ultra-conservadora ala do Partido Republicano. Tanto que sua gestão é o principal trunfo e carta de apresentação para disputar com Trump a candidatura republicana à presidência nas eleições de 2024. "O governador está convencido de que sua agenda de sucesso na Flórida pode se transformar em uma agenda presidencial de sucesso. Essa é a aposta dele", disse Eduardo Gamarra, professor de Política e Relações Internacionais da Florida International University, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). Fim do Matérias recomendadas Para fazer seu primeiro discurso como candidato à presidência dos Estados Unidos, DeSantis escolheu uma reunião de pais que decidiram educar os filhos em casa em vez de mandá-los para escolas públicas. Muitos desses pais têm uma posição ideológica fortemente conservadora. Lá, duas crianças seguravam uma bandeira azul e vermelha com as letras brancas: "Make America Florida" (Faça da América a Flórida). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A educação das crianças, a proibição do que ele chama de “doutrinação” é uma das grandes armas de DeSantis, que se alimenta da crescente desconfiança – alimentada pela pandemia e pelo uso de máscaras nas aulas – dos conservadores em relação às escolas. É uma das muitas "guerras culturais" com as quais o governador transformou a Flórida - o terceiro estado com mais votos eleitorais nas eleições presidenciais - em um laboratório de política conservadora no ano passado. DeSantis, que conquistou o governo por uma margem estreita em 2018, reconfirmou-o em 2022 com uma maioria esmagadora graças principalmente à sua gestão da pandemia, na qual privilegiou a economia sobre a saúde e apresentou o estado como o "farol da liberdade". O governador ainda venceu no condado de Miami Dade, o grande reduto democrata e progressista. Validado, consolidou uma virada conservadora em um estado em que Barack Obama venceu as eleições presidenciais, mas em 2016 e 2020 venceu Trump, que reside e tem parte de seus negócios na Flórida. E o fez com leis e, sobretudo, proibições que fazem de seu governo um exemplo para conquistar o apoio da maioria republicana no resto do país, embora no momento seja Trump quem lidera as pesquisas. Da proibição do aborto após a sexta semana de gravidez à restrição do conteúdo ensinado em escolas e universidades, a longa lista de novas regulamentações promulgadas nos últimos meses por DeSantis confirma a velocidade da virada política na Flórida. "A candidatura de DeSantis simboliza que a Flórida se tornou o estado de aplicação da lei mais reacionário do país", diz o crítico William Smith, professor emérito de ciência política da Universidade de Miami. "A Flórida está passando por uma mudança sem precedentes na história política moderna", orgulha-se DeSantis em seu último livro The Courage To Be Free (A Coragem de Ser Livre, em tradução livre). E essa transformação se baseia em algumas das proibições que contamos a seguir. Milo Evan Dorbert nasceu em 3 de março. Ele morreu naquele mesmo dia. Na 16ª semana de gravidez, Deborah Dorbert soube que Milo não viveria. A síndrome de Potter não permitia que ele expandisse seus pulmões ou vivesse fora do útero. Enquanto a lei da Flórida permite que mulheres grávidas abortem por anomalias fetais fatais, o medo de prisão por realizar um aborto se instalou entre os médicos locais. Como o coração de Milo Evan ainda batia, nenhum médico ousou interromper a gravidez, disse Deborah ao The Washington Post. No ano passado, DeSantis passou da proibição de abortos após 24 semanas para 15, e depois de 15 semanas para apenas 6. Assim, a Flórida tornou-se um dos estados mais restritivos do país em relação ao acesso à interrupção voluntária da gravidez. O aborto, já nas mãos dos Estados depois que a Suprema Corte decidiu há um ano que não é um direito no país, é uma das grandes questões que dividem republicanos e democratas. DeSantis também assinou o Heartbeat Protection Act, que proíbe abortos se o feto tiver um batimento cardíaco detectável. O objetivo é evitar o que o governo da Flórida chama de "infanticídio". "Promulgamos a Lei de Proteção aos Batimentos Cardíacos para promover a vida", disse DeSantis. Após a morte do filho, Débora não voltou ao trabalho. Ele está lutando contra a ansiedade e a depressão causadas pela morte tragicamente esperada de seu filho menos de duas horas após seu nascimento. 75% dos residentes do estado se opõem à proibição de seis semanas, incluindo 61% dos republicanos, segundo dados da Universidade do Norte da Flórida. "Mate todos os gays." A mensagem homofóbica apareceu em um sinal de trânsito nas primeiras horas da manhã em Lake Nona, uma cidade baixa em Orlando. Quase ao mesmo tempo, ativistas gays de Saint Cloud, em Orlando, a uma hora de Lake Nona, anunciaram que cancelariam os eventos marcados para o Dia do Orgulho, em 10 de junho. "Esta decisão não foi tomada de ânimo leve. Estamos trabalhando duro para planejar este evento há meses. No entanto, ultimamente identificamos uma série de fatores que tornam inseguro realizar o evento neste momento", escreveu ele. redes um de seus organizadores. O que aconteceu em Orlando, onde em 2016 houve um tiroteio em massa na boate gay Pulse, no qual morreram 49 pessoas, reflete o medo dessa comunidade. A ponta de lança da política do governador nessa questão é a HB 1557, chamada de "Não diga gay" (Don't Say Gay) por seus críticos, que restringe a educação sexual nas escolas, o uso de linguagem inclusiva e limita o uso de banheiros para meninos e meninas com sexo com os quais nasceram biologicamente. “Não pode haver instrução em sala de aula por funcionários da escola ou terceiros sobre orientação sexual ou identidade de gênero”, diz a regra, que capacita os pais a determinar como falar sobre diversidade sexual com seus filhos e proíbe os professores de lidar com essas questões. DeSantis defende isso como forma de evitar a "doutrinação" e deixar esse tipo de questão nas mãos dos pais e não das escolas. “Os direitos dos pais estão sob crescente ataque em todo o país, mas na Flórida defendemos os direitos dos pais e o papel vital que eles desempenham na educação de seus filhos”, disse DeSantis. O Departamento de Educação da Flórida estendeu em dezembro passado a aplicação dessa regra às bibliotecas que os professores têm em suas salas de aula, o que acabou retirando alguns livros das escolas. Há algumas semanas, o governador também sancionou uma nova lei que dificulta a assistência médica especial para pessoas trans e impede que entidades públicas gastem recursos do estado em programas de redesignação de gênero. DeSantis também escolheu rivalizar com os setores "progressistas" que ele acredita terem dominado até então as escolas e universidades estaduais da Flórida. Para DeSantis, "o perigoso ativismo político e social" é promovido nas universidades. Por isso, o governador assinou uma legislação que, segundo seus críticos, impõe uma mordaça ao ensino de certas disciplinas da história americana, obrigando-o a ser feito em moldes conservadores. "Há medo. Há um sentimento profundo de que a liberdade de expressão acadêmica está em risco, principalmente para aqueles que ensinam questões sociais ou políticas", disse o professor Gamarra, da Florida International University, à BBC Mundo. “Toda disciplina tem sido vista sob a lupa do novo dogma do secretário de educação e do governador. Ao mesmo tempo, já temos vários casos de professores que foram para outros estados ou que manifestaram a intenção de fazê-lo", diz Gamarra. DeSantis também se apresenta como um defensor da luta contra a imigração ilegal, apesar de seus adversários afirmarem que colocar mais obstáculos aos indocumentados afeta a economia da Flórida, cujo mercado de trabalho emprega centenas de milhares deles. Há alguns meses, DeSantis foi o protagonista de uma grande polêmica nacional quando seu governo decidiu transferir dezenas de migrantes indocumentados da fronteira do Texas para a ilha de Martha's Vineyard, destino de democratas ricos no nordeste do país. A intenção, disse ele, era forçar os esquerdistas a conviver com as consequências de não controlar adequadamente as fronteiras do país, algo do que ele acusa o governo federal do presidente democrata Joe Biden. E agora ele também aprovou uma nova lei estrita que torna a Flórida um território especialmente hostil para os indocumentados. "Eu não entro na Flórida. Nem o meu caminhão. Não vamos levar cargas para a Flórida, vamos ver como é, em apoio ao imigrante. O que eles estão fazendo na Flórida não é certo", disse Manuel Sánchez, motorista de transporte de cargas de grande porte. Nas últimas semanas, dezenas de motoristas de caminhão protestaram contra a nova lei de imigração que DeSantis assinou em maio, que entrará em vigor em 1º de julho de 2023. Essa legislação impõe, entre outras coisas, penalidades para quem empregar estrangeiros sem documentos, além de exigir que os hospitais perguntem aos pacientes sobre sua situação imigratória antes de prestar assistência médica. Para o governo da Flórida, esta nova cadeia de regulamentos serve “para combater os efeitos perigosos da imigração ilegal causados ​​pelas políticas de fronteira imprudentes do governo federal”. Dessa forma, DeSantis busca imitar a postura imigratória caracteristicamente dura de Trump e se colocar à frente do governo do presidente Biden, que buscará a reeleição e que DeSantis quer enfrentar em 2024 com a intenção de fazer os Estados Unidos parecerem como a Flórida.
2023-06-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c10rpy55g0eo
sociedade
'Odeio a palavra inclusão. Já estou aqui, não quero que me incluam em lugar nenhum'
Julia Risso fala com clareza e pausadamente. Sua voz demonstra seus anos de treinamento antes de se tornar locutora. Ela diz que sempre se desvia do assunto durante as conversas e escolhe com cuidado cada uma de suas frases. E está convencida de que odeia a palavra "inclusão" – ela prefere "socializar". Risso tem 28 anos de idade. Ela nasceu com uma má formação genética na coluna que a transformou em uma "pessoa baixinha", como ela diz, com ternura. Ela mora em San Miguel del Monte, a cerca de 110 km da capital argentina, Buenos Aires. Lá, trabalha como professora de teatro. A jovem se autodefine como "ativista disca" (de "discapacitada", ou "deficiente" em espanhol). Ela apresenta o podcast Les otres, está prestes a publicar um livro de ficção autobiográfico e, no mês de abril, apresentou uma palestra na 47ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires sobre como romper as barreiras sociais que aprofundam a desigualdade. Fim do Matérias recomendadas Ela contou sobre sua vida e seu trabalho à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Leia abaixo a entrevista. BBC News Mundo - Uma pessoa é deficiente ou tem deficiência? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Julia Risso - Antes, eu acreditava que era algo que se tinha, mas hoje acredito que se é. Hoje, sou uma pessoa deficiente. Embora haja algo de politicamente correto muito forte de que devemos falar "pessoa com deficiência". Acho que sou uma pessoa incapacitada pela sociedade. Não sou eu que tenho deficiência. Estão me incapacitando quando instalam um banheiro e eu não entro ou o vaso sanitário é alto para mim. Ou quando vou ao supermercado, a gôndola mede 1,80 metro e a erva-mate que eu gosto está em cima de tudo. E a sociedade não está incapacitando somente a mim, mas também a uma pessoa mais alta que não consegue levantar seus braços ou outra que carrega uma criança e não pode alcançar alguma coisa. BBC News Mundo - E qual você diria que é a diferença entre ter deficiência e ser deficiente? Risso - A identidade. Quando alguém decide que é deficiente e percebe que isso irá acompanhá-lo por toda a vida, aquilo se torna uma característica, como tantas outras. Sou uma mulher, sou branca e também sou deficiente. De qualquer forma, acredito que o mais difícil é que a sociedade entenda que o problema, na verdade, são os outros, não somos nós. Para falar de forma mais teórica, o modelo social da deficiência entende que a deficiência é uma construção social, não é um tema individual, não é um problema que exige que se cure uma pessoa. O entorno é que precisa se adaptar para que essa pessoa possa viver com a maior autonomia possível. Mesmo assim, acho que este conceito não encerra a discussão sobre a ideologia da normalidade. BBC News Mundo - A deficiência gera medo na sociedade? Risso - Gera perigo e medo. Acho que a primeira coisa que as pessoas pensam é que não sabem o que fazer. Uma mulher de 42 anos me escreveu no Instagram para contar que estava tentando ter um filho ou uma filha e seu médico indicou que, se decidisse ter um bebê, ele poderia ter risco de nascer com deficiência. Ela se assustou muito. E eu disse: "Que forma de assustar uma pessoa que decide ter um filho, que o medo seja que ele tenha deficiência!" Depois achei que o médico talvez tivesse razão... mas logo lembrei que minha mãe me teve com 32 anos, não tinha mais de 40. Quem tem risco de ter deficiência? Até certo ponto, todos nós temos risco. Talvez todos nós cheguemos a ser velhos e, quando isso acontecer, o corpo se deteriore. Existem pessoas que, do nada, têm uma doença incapacitante e acabam usando cadeira de rodas. A vida tem uma porção de circunstâncias que fazem você ficar deficiente em algum momento. Quem tem medo de ser deficiente não deve nascer, pois a condição humana é frágil. Existe um medo de que discriminem esse filho ou filha. Penso no meu pai, que tinha pavor de que me tratassem mal, que me enganassem. Antes me aborrecia, mas agora entendo o que ele sentia. Minha mãe precisou educar não só a mim, mas também ao meu pai e a todos os demais para que percebessem que estavam criando uma menina autônoma. BBC News Mundo - Existem normas dentro da deficiência? Risso - Sim, uma porção delas. Não sair de noite, não beber álcool. Muitas pessoas me olhavam espantadas. E me perguntavam: "Você não toma remédios?" Em 2018, eu estava dançando com minhas amigas e nos divertíamos em uma festa gay friendly, que normalmente é algo mais aberto, quando veio um menino que me abraçou e me deu parabéns porque eu fui dançar naquele lugar. Fiquei estupefata, petrificada. Ali, eu entendi que a mensagem era: "Parabenizo você porque, teoricamente, você não teria que estar aqui. Não há motivo para comemorar." Existe muito policiamento sobre as comemorações. BBC News Mundo - O que acontece com o desejo da pessoa deficiente? Também existem normas? Risso - Eu acho que, nos lugares de diversão, de entretenimento, onde você vai passar momentos agradáveis, sempre parece que estamos pedindo permissão. A acessibilidade nos lugares de diversão não existe. Beber uma cerveja em um bar que tem aquelas banquetas muito altas... eu preciso de uma escada. Imagine uma pessoa que usa cadeira de rodas, ela usa a mesa de teto. Não é só a acessibilidade física, mas também a de atitudes. E, com relação ao desejo sexual, a norma é ser heterossexual. BBC News Mundo - Uma pessoa deficiente pode exercer sua sexualidade? Risso - Eu gosto de falar de desejo e sexualidade separadamente, porque a sexualidade não é entendida apenas como pessoas que querem fazer sexo com outras ou com elas próprias, mas como um conceito multidimensional. Ela tem muitos aspectos, como a forma como nos exibimos, como nos vestimos e como decidimos nos mostrar. Geralmente, surgem comentários de que não se espera que a pessoa tenha esse poder de escolher, de autonomia. E, como não temos tanta representação, não existem pessoas com deficiências como modelos de roupas, nós não nos vemos refletidos. Eu não tenho problemas em dizer que a estética me interessa. Gosto de ir ao cabeleireiro, maquiar-me todos os dias, estar arrumada. E muitas pessoas interpretam que eu quero dissimular a deficiência. É como um mandamento. Existem também pessoas com quem você decide ter um vínculo sexual e afetivo e que acreditam que estão fazendo um favor, como uma ideia de que estão fazendo boas ações por terem relações sexuais conosco. Ou existe uma visão de que somos muito frágeis. Acho que é preciso expor um pouco essas pessoas ao ridículo. No exercício da sexualidade, existem também coisas talvez mais banais, mas que surgem na nossa vida cotidiana. Como o que repete Florencia Santillán, outra ativista "disca": "Alguma vez você viu um motel com rampa?" Isso também demarca onde as pessoas devem estar. BBC News Mundo - O que é o "pornográfico inspiracional" que você menciona no seu podcast? Risso - É um belo conceito que assusta muito as pessoas. Quem o mencionou pela primeira vez foi Stella Young [1982-2014], uma ativista australiana que deu uma palestra TED chamada "Não sou sua fonte de inspiração, muito obrigada". Ela diz que as pessoas "coisificam" as que têm deficiência sem o consentimento delas, para que fiquem motivadas. Basicamente, para acreditar que a sua vida é menos infeliz [em comparação com a da pessoa com deficiência]. É como quando dizem: "Parabéns por seguir adiante, apesar de tudo". Ou naquelas imagens que mostram uma pessoa sem as pernas e se lê, embaixo: "E você se queixa porque tem sono de manhã". Você acha que essa pessoa se queixa o dia inteiro porque não tem pernas? Sim, eu reclamo às vezes porque não chego a lugar nenhum com a minha altura, mas não estou todo o tempo me queixando disso porque me aborrece. Quero reclamar de outra coisa. Mas as pessoas precisam olhar para casos de deficiência para não se sentirem tão mal. E isso vem da necessidade de acreditar que estamos todo o tempo sofrendo e renegando nossa deficiência. Como na representação dos deficientes nas séries de TV ou nos filmes, onde geralmente existem dois opostos. Um é o renegado que odeia tudo, mal humorado, como o menino em cadeira de rodas da série Sex Education. Acho muito engraçado porque, nesta série, todos fazem sexo como se fossem selvagens e, na cena do menino na cadeira de rodas, os dois ficam oito horas chupando a orelha. Por que não mostram o menino da cadeira de rodas fazendo sexo selvagem? Isso seria visibilidade. No outro extremo, está o personagem do anjo que não tem desejo sexual. A sociedade gosta muito de romantizar a deficiência porque não quer combater a desigualdade. E romantizar também é uma forma de excluir. BBC News Mundo - Nós vivemos em uma sociedade inclusiva? Risso - Odeio a palavra inclusão. Não gosto porque está na moda. O que faz esta palavra, na verdade, é perpetuar que fiquemos fora do sistema. Se eu preciso incluir é porque alguém está de fora. E quem governa o sistema? Os que incluem, que são as pessoas capacitadas, brancas, heterossexuais, de classe alta e ocidentais. São eles que incluem os negros, homossexuais, travestis, pobres e deficientes. Então, quem decide quem incluir? Os que estão sempre dentro e são sempre os mesmos. E não se discute a normalidade, o fato de que existe um padrão e que tudo o mais está de fora. Eu já estou aqui, não quero que me incluam em lugar nenhum. Eu quero que tudo mude. BBC News Mundo - O que você quer que mude? Risso - As classificações, a hierarquização das pessoas, o que as pessoas valem pelo que podem fazer, em todos os sentidos. O mundo atual coloca a nós todos em algum lugar. Os deficientes são colocados como mão de obra barata, como assistência, como um corpo medicalizado e como um corpo público, porque todos opinam sobre ele, o que pode fazer bem ou mal. Há pouco tempo, alguém me escreveu pelo Tinder e perguntou: "Você é uma pessoa baixinha?" Aquilo me deu ternura. E respondi: "Sim, baixinha para a mesa de cabeceira". Eu caminho pela rua e me abençoam pela minha deficiência. E sempre faço a mesma brincadeira: com tantas bênçãos, já ganhei o céu, vou direto e sem escalas. BBC News Mundo - Você acredita que existem mudanças? Risso - Sim. Existem muito mais grupos onde somos compreendidos. Fala-se mais sobre capacitismo, que é a hierarquização de corpos e mentes sobre o que eles podem fazer, produzir, sentir ou controlar. É preciso tomar medidas anticapacitistas, porque estamos submetidos a um sistema arraigado com base na divisão entre os que podem e os que não podem, os que têm e os que não têm. Continuará havendo mudanças enquanto nós formos os protagonistas e não houver pessoas que queiram ser protagonistas ao nosso redor. Não é preciso tomar o lugar dos outros, como alguns fazem com a palavra "inclusão". E também acredito que é preciso repensar os nossos privilégios. Eu também preciso repensá-los, porque tenho uma deficiência motora e posso tranquilamente oprimir uma pessoa cega, surda ou neurodivergente. Mas os privilégios não são abandonados nem renegados, são compartilhados. Se uma pessoa que não tem deficiência se aproxima de um grupo de pessoas com deficiência e oferece: "Em que posso servir de apoio? Posso fazer isto ou aquilo." Isto é socializar. Socializar. Desta palavra, sim, eu gosto.
2023-06-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz4nved839eo
sociedade
O peso sobre a 'geração sanduíche', que cuida ao mesmo tempo de pais idosos, filhos e netos
Faz dez anos que a paranaense Lady Daiane de Vargas Flores cuida em tempo integral da mãe, que sofre de demência. Dona Maria Joana tem 68 anos e já não fala, não anda nem se alimenta sozinha. “Ela virou um bebê total”, explica Daiane, 39 anos, à BBC News Brasil. A pior fase da doença de dona Maria Joana ocorreu justamente quando Daiane estava, ela própria, prestes a virar mãe — grávida de um menino que hoje tem 7 anos. “Quando você vai ganhar um bebê, quer que a sua mãe esteja ao seu lado. Mas, comigo, o que aconteceu é que virei órfã de mãe e passei a ter uma filha a mais.” Daiane não está sozinha no desafio de cuidar simultaneamente de duas gerações: mudanças demográficas e sociais em curso no mundo inteiro tornam cada vez mais comum que famílias, em especial mulheres, sejam “prensadas”, ao mesmo tempo, pelas demandas tanto de pais idosos que necessitam de cuidado quanto de filhos — ou mesmo netos — que também requerem atenção constante e sustento financeiro. Fim do Matérias recomendadas O nome dado a isso, internacionalmente, é o de “geração sanduíche” — que ganha contornos ainda mais complexos no Brasil (veja mais detalhes abaixo na reportagem). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A faixa etária mais propensa a ser “ensanduichada” é a dos 40 anos: mais da metade (54%) dos americanos nessa idade tem pais e filhos que possivelmente demandam cuidados ou ajuda financeira. Há uma combinação de motivos por trás desse fenômeno global: como as pessoas estão tendo filhos mais tarde, e seus pais estão vivendo mais, muitas se veem lidando com os cuidados das duas gerações. Ao mesmo tempo, as famílias ficaram menores — e há menos pessoas com as quais dividir essas tarefas. Outro fator importante, segundo as pesquisadoras brasileiras, é que uma parcela significativa dos jovens têm demorado mais para obter sua independência financeira, adiando a saída da casa dos pais. “Acredita-se que eles tenham passado cada vez mais tempo na condição de dependentes, principalmente quando comparados à geração de seus próprios pais”, apontam Wajnman e Jesus. “O cenário gerado por essas mudanças é de uma parcela cada vez maior de adultos comprimidos simultaneamente por demandas de seus filhos e de seus pais, (...) sendo que as mulheres são as mais propensas a ocupar esse papel.” As estatísticas comprovam essa propensão: segundo o IBGE, as mulheres dedicam, em média, 10,4 horas por semana a mais do que os homens às tarefas domésticas e aos cuidados não remunerados com pessoas. É o caso de Daiane, que desde a morte do pai cuida sozinha de dona Maria Joana. Nem o marido, nem os irmãos dela participam da rotina de cuidados, diz ela. “Aprendi a dar banho nela e faço tudo o que está ao meu alcance. Quando ela ainda falava, até me chamava de mãe. (...) Eu acho que Deus me deu isso para eu aprender o que é o amor verdadeiro por alguém — porque é uma experiência de amor.” Mas o acúmulo de funções com o filho, com a mãe e com os afazeres domésticos tem cobrado um preço alto da saúde mental de Daiane. Ela conta que já enfrentou períodos de depressão profunda. “Dedico minha vida toda à minha mãe — não viajo, não saio. (...) E as pessoas me cobram que eu seja mais presente para o meu filho. Não tenho tempo para mim, mas tenho que ter tempo para a casa, para as roupas, para eles.” Mas se histórias como a de Daiane são exemplos clássicos da geração sanduíche no mundo, elas provavelmente ainda não representam um exemplo tipicamente brasileiro, diz Simone Wajnman, que é professora da UFMG. No país, assim como no restante da América Latina, o fenômeno tem uma camada adicional de complexidade: segundo os dados levantados pela pesquisadora, a maior parte das mulheres “ensanduichadas” atualmente no Brasil não são apenas mães, mas também avós. A razão principal por trás disso é que, embora cada vez mais brasileiras estejam esperando mais para ter filhos, a idade média em que elas se tornam mães — 27,8 anos — ainda é uma das menores do mundo. Analisando os dados do Censo de 2010, Wajnman identificou que, quando essa mulher chega aos 55 anos, ela terá em média dois netos, nascidos de filhos que têm por volta de 20 a 30 anos. “E ela também tem alta probabilidade de ter mãe e pai vivos e em idade demandante”, explica Wajnman à BBC News Brasil. Na prática, portanto, muitas dessas avós acabam comprimidas pelas demandas de três gerações diferentes de dependentes — e muitas vezes participam intensamente da vida e dos cuidados de todas elas. “É com certeza algo que afeta muito mais as mulheres”, prossegue Wajnman. “Estou falando de avós que têm muito trabalho com seus netos e ao mesmo tempo têm uma mãe ou pai demandante.” E conciliam isso também com o sustento da família. A paulista Raquel Soares Alexandre, 58 anos, diz que está há três anos sem “vida própria” — desde que seu pai teve um AVC (acidente vascular cerebral) e perdeu os movimentos do lado direito do corpo. “Ele não anda e não fala, então depende de mim para tomar remédio, ir nas consultas médicas, tudo”, diz ela à reportagem. Raquel também cria as duas netas adolescentes (de 13 e 17 anos) e trabalha em tempo integral como agente de apoio na Fundação Casa, na cidade de São Paulo. “Meu pai fica com uma das minhas netas pela manhã e com a outra à tarde. Quando eu chego do trabalho, ainda tenho que cuidar da alimentação. Vou dormir às 23h. E no meus dias de folga, tenho que cuidar da casa, lavar as roupas”, ela desabafa. “Então 'puxado' é pouco. Eu choro muito, me desespero, mas daí você olha para o lado e vê pessoas em situação ainda pior e segue em frente. (...) Antes de o meu pai ficar doente, eu conseguia tirar férias na praia. Hoje, se saio por poucos dias já é um transtorno, porque preciso pagar alguém para cuidar dele e não consigo me desligar.” É importante destacar que a convivência multigeracional também pode trazer ganhos, desde aproximar a família e até permitir que mães consigam se manter no mercado enquanto as avós ajudam com as crianças. Mas a pressão emocional e econômica sobre esse grupo demográfico é grande, e tende a continuar crescendo. Também chamou a atenção o alto índice (44%) de dificuldades emocionais entre os ensanduichados. “Formuladores de políticas públicas e empregadores deverão prestar atenção especial aos indivíduos nesse ‘trilema’ de cuidar de duas gerações e, ao mesmo tempo, continuar sendo parte da força de trabalho”, escreveu Donovan Maust, um dos autores do estudo. A Associação Americana de Psicologia (APA) afirma que “ser cuidador multigeracional tem demonstrado impacto negativo na saúde e no comportamento, ao reduzir os níveis de exercício (dos cuidadores), aumentar sua frequência de consumo de cigarros e elevar seu risco de depressão”. “Cuidar dos netos é um trabalho extra para avós que muitas vezes também são cuidadoras dos seus maridos. Estamos falando de mulheres que muitas vezes não puderam escolher”, diz à BBC News Brasil a assistente social Marilia Berzins, do Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (Olhe) no Brasil. Berzins diz que chegou a promover cursos e rodas de conversa para ajudar as cuidadoras multigeracionais, mas elas simplesmente não tinham tempo livre para comparecer. Sem apoio, acabam aprendendo a cuidar de idosos na prática, por conta própria. “É um trabalho precarizado e pesado. Hoje, a principal provedora de cuidados é a própria família”, prossegue Berzins. Ela defende que políticas públicas, como centros de cuidados diurnos ou noturnos para idosos e a formalização da profissão de cuidador, poderiam ajudar a aliviar a carga emocional, social e financeira sobre esses grupos. “A pergunta é: quem cuida de quem cuida? Por isso, precisamos que o cuidado passe a ser uma política do Estado, e não só da família.”
2023-06-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g7ppnwn0zo
sociedade
Vídeo, Japoneses fazem curso de sorriso após uso de máscaras deixar de ser obrigatórioDuration, 1,13
Cursos de sorriso têm ganhado popularidade no Japão desde março, quando o uso de máscaras contra covid-19 deixou de ser obrigatório no país. A instrutora Ieiko Kawano cobra US$ 55 por hora (o equivalente a R$ 270) para ajudar seus alunos a se acostumarem a sorrir novamente. Ela diz que suas técnicas ajudam a fortalecer os músculos zigomáticos, que ficam ao redor da boca, lábios e bochecas, e os músculos abaixo dos olhos. Entre os alunos estão profissionais que esperam que o sorriso os ajude a conquistar empregos. Confira no vídeo.
2023-06-08
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-65847010
sociedade
Marcha para Jesus: o crescimento de evento que acontece há três décadas no Brasil
Chegada ao Brasil em 1993, a Marcha para Jesus, um evento que congrega diferentes igrejas cristãs, acontece nesta quinta-feira (8/6), em São Paulo, pelo 31º ano consecutivo. Há três décadas, a primeira edição acontecia na mesma cidade. Um grupo de 350 mil pessoas partiu da Avenida Paulista, passando pela Avenida Brigadeiro Luís Antônio e chegando ao Vale do Anhangabaú para adoração de Jesus Cristo e comunhão por meio de músicas. Já em 2022, a estimativa dos organizadores mostra que o público cresceu exponencialmente: dois milhões de pessoas participaram do ato na mesma cidade, um aumento de 471%. “A avaliação do crescimento é simples: o crescimento desse grupo tem continuado ao longo dos anos, o Brasil já tem 70 milhões de evangélicos”, diz o historiador e antropólogo Juliano Spyer, autor de O Povo de Deus: Quem são os evangélicos e por que eles importam (Geração Editorial, 2020). Fim do Matérias recomendadas O evento surgiu em 1987 na cidade de Londres, no Reino Unido. A Marcha foi criada por um grupo de líderes religiosos, incluindo o pastor Roger Forster, da Ichthus Christian Fellowship, o cantor e compositor Graham Kendrick, e Gerald Coates e Lynn Green, participantes de movimentos cristãos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 1990, a Marcha já tinha alcançado 49 cidades em todo o Reino Unido, além de Belfast, capital da Irlanda do Norte, onde 6 mil católicos e protestantes se reuniram. A estimativa era de que cerca de 200 mil religiosos participassem do evento. A Marcha rapidamente se expandiu para outros continentes. De acordo com o apóstolo Estevam Hernandes, presidente do evento no Brasil, a Marcha representa a união das pessoas, a comunhão de todos que acreditam em Jesus Cristo. “Ele é o nosso resgatador, pois deu sua vida por nós na cruz. Saímos às ruas para marcar e honrar essa entrega, expressando nossa fé”, explica. Ele defende que a Marcha "se transformou no evento cristão mais importante do Brasil e até da América Latina e tem abençoado a vida de pessoas de várias gerações ao longo dos anos". "A Marcha cresceu muito e se consolidou, não só pela quantidade de pessoas, mas pela constância. Nos últimos 30 anos, realizamos o mesmo evento com o mesmo empenho e propósito. Hoje temos cerca de 2 milhões de pessoas participando do evento, com um número grande de denominações e também de cristãos em geral.” Para a edição de 2023, além da abertura da Marcha Para Jesus em São Paulo, no dia 8 de junho, outros oito municípios devem receber o evento até o mês de outubro. Embora o evento tenha como público principal os cristãos evangélicos, Spyer aponta que o grupo é descentralizado. “Às vezes falamos como um tema só, mas não são exatamente como os católicos, que têm uma igreja, um papa. Dentro das milhões de igrejas evangélicas, há diferentes práticas, tradições e regras. Vão desde igrejas mais conservadoras do ponto de vista de costumes até as ultraliberais, que abraçam, por exemplo, a comunidade LGBT.” Em resposta à BBC News Brasil, Hernandes afirma que um aumento na diversidade e participação de denominações cristãs foi notado, além de um "reconhecimento internacional, como referência em termos de manifestação de fé." Spyer aponta que o tamanho da Marcha Para Jesus hoje no Brasil é apenas uma das representações de força dos brasileiros evangélicos, que, para ele, representam o fenômeno social mais importante do país atualmente. O antropólogo diz que os evangélicos são ignorados por determinados grupos da sociedade — menciona “surpreendente falta de interesse e desconhecimento da elite brasileira e econômica e cultural sobre o tema”. Apesar disso, diz que eles conhecem sua força — em especial, influência política — no país. "Converso com evangélicos de vários lugares do Brasil e o que percebo é que ganharam consciência [como comunidade]. Eles dizem: ‘A política é um mal necessário e, se não escolhermos, alguém vai escolher por nós’.” Spyer lembra que, em 2022, Jair Bolsonaro (PL), derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no segundo turno, conquistou mais que o dobro dos votos de evangélicos em relação ao adversário — mas avalia que o cenário não deve se repetir. “Lula é o último presidente a ser aceito sem o apoio majoritário desta população, porque ela é crescente e deve representar uma parcela ainda mais decisiva na próxima eleição. No âmbito do legislativo, isso já aconteceu há muito tempo. A bancada dos evangélicos é o exemplo, e a comunidade religiosa tem consciência disso.” Ao longo dos anos, políticos da direita e da esquerda têm participado do evento. Em 2022, Bolsonaro, então presidente, discursou em Curitiba, no Paraná. Neste ano, Lula recusou o convite, avaliado por ele como “honroso”, e afirmando que será representado pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ) e pelo ministro-chefe da Advocacia-Geral da União, Jorge Messias. "Sempre admirei e respeitei a Marcha para Jesus, que considero uma das mais extraordinárias expressões da fé de nosso povo", disse em carta ao apóstolo Estevam Hernandes. Hernandes disse que a organização do evento convida as autoridades constituídas, como prefeito, governador e presidente da República. “O intuito é incluir e abençoar pessoas que trabalham diretamente com o destino do município, do estado e do país”, afirma Hernandes.
2023-06-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx9pgjz4e4no
sociedade
A falta crônica de cadáveres que prejudica formação de médicos no Brasil
"Você prefere ser operado por um médico que dissecou um cadáver ou por aquele que apenas estudou em peças sintéticas?" O questionamento feito por Erivan Façanha, professor de Anatomia na Universidade Federal do Ceará (UFC), tem por trás uma realidade compartilhada por muitas instituições com cursos de Medicina do Brasil: a escassez de cadáveres para ensino e pesquisa. Esse é um problema crônico que prejudica o aprendizado dos alunos em boa parte das melhores universidades do país, como mostra um levantamento feito pela BBC News Brasil. Foram procuradas as 30 universidades mais bem avaliadas no ranking Universitário da Folha (RUF) 2019 - a edição mais recente. Todas são públicas. Esse ranking foi escolhido em vez da avaliação dos cursos feita pelo Ministério da Educação (MEC), que avalia as instituições com base no desempenho dos alunos por meio de uma prova) porque algumas universidades, como é o caso da Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, optam por não fazer o exame. Fim do Matérias recomendadas Além disso, o RUF avalia as universidades de forma mais ampla, com base em cinco aspectos: pesquisa, ensino, mercado, internacionalização e inovação. No total, 26 responderam à consulta sobre se cadáveres são usados nas aulas e de qual forma, e também se o número de exemplares disponíveis é suficiente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mais da metade delas, 17 ao todo, afirmaram que enfrentam uma falta de corpos para estudo e pesquisa, e apenas duas disseram que a quantidade de cadáveres que têm à disposição é satisfatória. Outras sete relataram que não têm esse problema porque ainda estão montando um programa de anatomia ou porque a própria instituição não teria condições de mantê-los em boas condições para uso. O ensino de anatomia na prática, cortando camadas, identificando estruturas e órgãos em um cadáver, é uma experiência considerada insubstituível por professores e médicos experientes. Mas é algo difícil de ser feito nas universidades de Medicina brasileiras. A maioria das instituições consultadas relata que faltam corpos suficientes para dissecação há anos e que o problema é difícil de solucionar, porque faltam recursos para preservar os cadáveres e, principalmente, doações pela sociedade civil - uma prática que ainda é pouco difundida no Brasil. "Alguns alunos optam, inclusive, por cursos fora do país buscando essa opção. Estados Unidos e Canadá são alguns dos destinos mais procurados", diz Kennedy Martinez de Oliveira, professor de anatomia humana da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Quando não há cadáveres suficientes para a dissecção, professores buscam as opções mais próximas para oferecer uma experiência mais fiel nas aulas de anatomia. "A prática de dissecação, que é primordial para a anatomia topográfica, fica deficitária em nossas aulas. Temos alguns modelos sintéticos e usamos peças cadavéricas", diz Célia Regina de Godoy Gomes, professora de Anatomia Humana do Departamento de Ciências Morfológicas da Universidade Estadual de Maringá (UEM). Cadáveres não reclamados por famílias de uma pessoa morta em até 30 dias depois do óbito eram no passado a forma mais comum de doação para uso de corpos no ensino e pesquisa. Isso supria as necessidades de boa parte das instituições. Hoje, já não é mais tão comum ter corpos não reclamados, explica Daniel Martinez Saez, professor do departamento de Medicina da Universidade Federal de Lavras (UFLA), uma das universidades que relatam ter poucos cadáveres à disposição dos alunos. Sae diz que isso ocorre porque novas tecnologias ajudam atualmente na identificação dos corpos por familiares. Na cidade de São Paulo, por exemplo, o Serviço Funerário do Município e o Instituto Médico Legal (IML) enviam uma lista de corpos não identificados ao Diário Oficial municipal, que pode ser consultado pela internet. Há também uma página online do Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID), banco nacional que sistematiza dados da polícia, do IML e de boletins de ocorrência, contribuindo para localização e identificação de pessoas. A imprensa e as redes sociais também acabam ampliando o alcance dessas publicações e ajudando para que cheguem a familiares dos mortos. Outro ponto, segundo Saez, que levou a um uso menos frequente destes cadáveres é que os trâmites burocráticos para sua liberação para as instituições de ensino são demorados, e o tempo é um fator importante para que os corpos possam ser devidamente preparados e conservados. "Por fim, existe uma tendência mundial de não recebimento de corpos por essa via, sendo já proibido em alguns países, por uma questão ética", afirma Saez. No Brasil, a lei 8.501, de 1992, prevê que, seguindo uma série de trâmites legais, estes corpos podem ser destinados para universidades públicas. Algumas instituições, seguindo a legislação, têm parcerias com a polícia e instituições como o IML, que existe em diferentes Estados e municípios do Brasil e é responsável por realizar exames e perícias médico-legais. A lei não permite a doação do corpo em casos de suicídio ou quando a causa da morte é violenta, porque levar o corpo para o laboratório poderia destruir provas de um crime. "Essa lei ainda está em vigor, mas a questão ética tem se sobressaído", avalia o professor da UFLA. Na Universidade Federal de Sergipe (UFS), por exemplo, a última doação de cadáver por meio do IML foi feita há pelo menos cinco anos, diz José Aderval Aragão, coordenador do programa de doação voluntária da instituição. Isso fica muito aquém do necessário. A UFS, explica Aragão, conseguiu nos últimos anos algumas doações de fetos por meio de maternidades (e com a autorização dos pais), mas ele diz que o ensino da anatomia em corpo humano adulto ainda está prejudicada. "O número ideal por ano aqui, em virtude do número de alunos que nós temos na área de Saúde, seria ao menos dez cadáveres por ano. Já supriria as nossas necessidades." A isso se soma o grande aumento do número de faculdades de Medicina no Brasil, o que tornou ainda mais difícil suprir a demanda por cadáveres para ensino e pesquisa. Nos últimos dez anos, o MEC autorizou a criação de mais de 180 cursos nesta área, que hoje estão disponíveis em 388 universidades e faculdades. Uma alternativa para atender essa necessidade seria a doação voluntária de corpos para a ciência. Quem deseja fazer isso pode se registrar ainda em vida em programas do tipo mantidos por universidades ou informar parentes sobre seu desejo de participar para que eles façam a doação. O levantamento mais recente feito pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) aponta que existem hoje 39 destes programas no Brasil. "Ainda é pouco para a quantidade de instituições com cursos da área de Saúde, mas, se observarmos que a maioria surgiu nos últimos anos, considero que é um dado positivo", diz Andrea Oxley, professora de Medicina da UFCSPA. Esses programas são considerados hoje a melhor forma de suprir a escassez de cadáveres, mas professores de Medicina ouvidos pela BBC News Brasil dizem que o número de doações ainda é baixo. O programa da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) existe desde 2019, por exemplo. Desde então, a instituição recebeu apenas seis cadáveres. "Além disso, temos cadastrados cerca de 50 futuros doadores. Esse número é ainda muito tímido, mas estamos extremamente gratos pelo que conseguimos", diz o professor Ricardo Eustáquio da Silva, coordenador do projeto de doação de corpos da Ufes. Isso ocorre não porque o assunto seja um tabu, diz Oxley, mas porque essa possibilidade ainda não é tão conhecida na sociedade. "Faltam doações. Mas não precisamos convencer ninguém. Muitas pessoas se mostram dispostas a doar quando conhecem a possibilidade", diz Oxley, que é secretária da Sociedade Brasileira de Anatomia. "Não precisamos que todas as pessoas doem, só aquelas que têm vontade. Isso já seria o suficiente para todas as universidades." Esse problema se agrava nas universidades que ficam fora dos grandes centros urbanos brasileiros. As universidades em regiões metropolitanas, como é o caso de Porto Alegre e Belo Horizonte, onde funcionam dois dos maiores programas de doação voluntária do país, da UFCSPA e UFMG, acabam se beneficiando, em comparação às instituições em cidades pequenas, pela visibilidade destas iniciativas e maior número de doadores em potencial. "Belo Horizonte tem cerca de 6 milhões de habitantes, é uma cidade grande. Entrevistas, campanhas de informação e o 'boca a boca' fizeram com que o projeto ficasse bem conhecido na região", diz Kennedy Martinez, da UFMG, complementando que os mais de 20 anos do programa Vida Após a Vida foi importante na sua consolidação. A falta de recursos das universidades públicas é outro fator que agrava esta situação, já que o custo de manter um corpo na universidade é alto. "Os laboratórios são úmidos e precisam ser mantidos sempre em condições térmicas específicas. Os tanques de aço inoxidável para armazenar os cadáveres são caros e exigem reparos frequentes. O líquido utilizado, como o formol, precisa ser trocado regularmente e é tóxico, exigindo a limpeza do cadáver e das vias aéreas de maneira cuidadosa. Além disso, é necessário bastante energia para otimizar o processo", diz Ricardo Eustáquio da Silva. "As universidades federais tiveram um enorme corte de verbas nos dois últimos governos. Passamos por períodos muito complicados, onde muitas vezes não havia verba suficiente nem para a limpeza dos laboratórios." Há também, explica o professor, questões de descarte, exigindo câmaras de coleta e empresas especializadas. "Devido a esses altos custos e logística complexa, muitas universidades e faculdades optam por soluções sintéticas para o ensino, apesar de saberem do prejuízo que isso acarreta no aprendizado do aluno." O MEC não respondeu ao contato da reportagem para comentar sobre os cortes e falta de recursos. Os professores ouvidos pela BBC News Brasil ressaltam que doar um corpo não impede que os familiares façam as devidas homenagens, como realizar um velório, por exemplo. Após estas cerimônias, o transporte do corpo fica a cargo da instituição de ensino que vai recebê-lo, e não há nenhum custo para a família. A doação do corpo para a ciência também não impossibilita que os órgãos sejam doados para quem precisa deles. Mesmo que isso ocorra, o corpo doado sem os órgãos pode ser valioso para o ensino da Medicina, porque outras estruturas biológicas, como artérias, vasos e músculos, ainda podem ser estudadas. A viabilidade da doação, no entanto, é avaliada em cada caso. Como forma de agradecimento, algumas universidades promovem homenagens às famílias que decidiram contribuir desta forma. Na UFCSPA, alunos do primeiro ano, que são os que mais utilizam os corpos para estudo, organizam, todos os anos, uma cerimônia não religiosa como forma de homenagem, conta Oxley. "Fazemos em um auditório para 200 pessoas que sempre fica lotado. É um momento emocionante de troca, e acredito que deixa as famílias mais tranquilas em relação à doação", diz a professora. Mas por que um cadáver é considerado insubstituível no ensino da Medicina? Os principais pontos que a dissecação no corpo humano pode ensinar, de acordo com os especialistas, são: "No Ocidente, é comum falarem que o cadáver é o primeiro paciente. Gosto de usar a filosofia oriental, que trata o cadáver como o primeiro professor", diz Saez. Marcelo Silva, chefe da disciplina de Anatomia Descritiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) afirma que o aluno pode deixar de ganhar habilidades importantes sem isso. "Sem o cadáver, o aluno perde habilidades de reconhecimento de variações anatômicas. Temos pessoas de diferentes estaturas, etnias, e em casos de enfermidades - tudo isso pode apresentar diferenças estruturais. Se você usa um modelo padrão, como um boneco ou peça sintética, perde essas características singulares", aponta Silva. O aluno que estuda por meio de um corpo humano real, complementa Erivan Façanha, da UFC, tem uma oportunidade de aprendizado mais fidedigna ao que vai encontrar na profissão. "Não há erro quando o aluno disseca e encontra uma artéria, um nervo, um músculo… Diferente das peças sintéticas, que eventualmente podem apresentar erros na sua elaboração", diz Façanha. Outro ponto importante é que isso já é um treinamento para as habilidades motoras que a profissão vai exigir no futuro. "O estudante que disseca um cadáver ganha destreza. É o que queremos para um futuro cirurgião, que vai operar um de nós ou nossos familiares. Além disso, essa experiência pode despertar no estudante a vocação para a habilidade cirúrgica em diferentes áreas", diz Façanha. Andrea Oxley, da UFCSPA, aponta ainda que a experiência de trabalhar com um cadáver também é uma oportunidade de passar valores como ética e profissionalismo aos alunos. "Em algum nível, é como trabalhar com o paciente que está em coma, em um estado de vulnerabilidade. Ensinamos o respeito com o corpo do outro - é uma questão de formação que você consegue trabalhar desde o início", diz a professora. "A empatia, fundamental para quem trabalha na área da saúde, é exercitada quando o aluno se coloca no lugar daquela pessoa que doou, imaginar o tamanho do gesto e da família de, na hora do falecimento, respeitar a vontade do falecido em doar seu corpo." Façanha acrescenta que a dissecação de um cadáver em grupo também possibilita um senso de parceria necessária na prática médica. "Cada um faz uma determinada tarefa. Um retira a pele, outro retira gordura, outro disseca uma região específica como o tórax, o abdômen, o membro superior… Um depende do outro naquele momento." Várias das universidades consultadas pela BBC News Brasil afirmaram que, sem ter corpos à disposição para a dissecação, recorrem a exemplares de partes do corpo humano - as chamadas peças cadavéricas - que são preservadas para serem usadas em demonstrações em sala de aula. São órgãos como coração e cérebro, por exemplo, que foram posteriormente dissecados por professores e ficam disponíveis para que os alunos possam observar e identificar diferentes estruturas. Mas tanto as peças quanto os cadáveres inteiros precisam ser substituídos com o tempo. "Os nossos não estão em bom estado para o desenvolvimento das atividades práticas de ensino e pesquisa", explicou a gerência de laboratórios da Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, à reportagem. Procurada pela BBC News Brasil, a secretaria de Educação da Bahia disse apenas que as universidades têm "autonomia". Diante da falta de cadáveres para dissecação, o uso de peças sintéticas que simulam partes do corpo humano é uma alternativa para que o aprendizado de alunos dos cursos de Medicina e outras áreas da saúde, como Odontologia, Fisioterapia e Biomedicina, não saia ainda mais prejudicado, diz Andrea Oxley. "Não é a minha opinião, mas sim o que os trabalhos mostram: o aprendizado é melhor quando a gente utiliza corpos. Mas a maior parte das universidades não tem cadáveres suficientes para dissecação, então as peças demonstrativas entram como uma alternativa para tornar as aulas mais qualificadas", diz a professora. Algumas universidades também fazem uso de sistemas virtuais, como é o caso da UFLA, onde os alunos têm à disposição uma mesa multimídia interativa em que diferentes órgãos do corpo humano podem ser visualizados em três dimensões. "Mas esses recursos tecnológicos também custam caro, porque geralmente são importados", diz o professor Daniel Martinez Saez. Ainda assim, o uso destas alternativas não se equipara à dissecação tradicional, avalia Oxley. "As pesquisas mostram que todos os outros meios, como softwares e diferentes modelos anatômicos, vêm para colaborar, mas não para substituir." Outra opção, que ainda é uma saída distante para as universidades brasileiras, é a técnica chamada "fresh frozen". Cada vez mais comum na Europa e nos Estados Unidos, ela envolve o congelamento de corpos logo após a morte para serem dissecados depois. Ela é uma alternativa melhor, em comparação com a técnica tradicionalmente usada para conservar os corpos com formol, porque permite preservar mais as características do corpo humano. Quando o corpo é mantido em substâncias químicas como o formol, parte das estruturas passam por degradação, diminuindo a semelhança com uma pessoa viva. Os cadáveres preservados com fresh frozen ficam por sua vez praticamente intactos. Ao serem descongelados, é como se ainda estivessem vivos, até mesmo sangrando. Esse método já está disponível em alguns locais do Brasil. A UFMG é a única universidade pública do país que possui câmaras adequadas para manter os corpos preservados com a técnica fresh frozen. "A consistência dos órgãos, pele, sistemas e tecidos do cadáver congelado permite a aplicação de diversas técnicas, inclusive a simulação de cirurgias", diz Kennedy Martinez de Oliveira, professor da UFMG. A técnica também é empregada em cursos privados, como os oferecidos no Instituto de Treinamento em Cadáveres (ITC) em seis cidades brasileiras. Diferentemente do que acontece nas universidades, que congela os cadáveres que chegam de doações ou por não terem sido reclamados, o ITC importa cadáveres congelados dos Estados Unidos e países da Europa. "Eles vêm armazenados em recipientes próprios para conservação térmica. No aeroporto realizamos toda a desburocratização para liberação para o transporte de acordo com as normas da vigilância sanitária. Chegando em nossa unidade, já ficam acondicionados em nossos freezers", explica Jorge Aires, ortopedista e sócio do ITC. Na maioria das instituições públicas de ensino, no entanto, o fresh frozen não deve chegar tão cedo. "Temos dificuldades até em comprar os conservantes para a manutenção dos nossos cadáveres", diz Célia Regina de Godoy Gomes, da UEM, no Paraná. A secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Paraná afirmou à BBC News Brasil que criou o Conselho Estadual de Distribuição de Cadáveres (CEDC) em 2009 para regular as doações de corpos para as Instituições de Ensino Superior (IES) no estado. "O CEDC recebe cadáveres doados ou não reclamados e os distribui para as IES habilitadas. Há um cadastro de instituições aptas a receber as doações, incluindo sete universidades estaduais e 47 faculdades e universidades no Paraná. O Conselho organiza as doações e disponibiliza uma lista pública das instituições e a ordem de recebimento." A Secretaria também afirma que a Universidade Estadual de Maringá (UEM) recebeu um aumento no valor total repassado para Ensino e Hospital Universitário, sem especificar áreas nas quais os recursos foram alocados. José Aderval Aragão, coordenador do Programa de Doação Voluntária de Corpos da UFS, concorda que essa técnica ainda é algo distante da realidade da maioria das universidades por falta de recursos. "Se temos dificuldade de fazer um programa voluntário de doação e montar uma estrutura básica de rede para receber os corpos e outras tarefas que são bem mais baratas, imagine a importação de corpos congelados." Ricardo Eustáquio da Silva, da Ufes, diz que, na instituição, a possibilidade de importar corpos congelados com este método nunca sequer chegou a ser cogitada. "É uma alternativa muito cara. No passado, países como os Estados Unidos, a Espanha e o Canadá, também passaram por essa mesma dificuldade, mas isso foi resolvido com a conscientização da população sobre a importância da utilização de material humano para o ensino dos futuros profissionais da área da saúde."
2023-06-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cll02nvqg5zo
sociedade
Inteligência artificial pode superar a humana? 8 perguntas sobre a tecnologia
Em 2022, ouvimos pela primeira vez que um sistema de inteligência artificial se tornou senciente, ou seja, dotado de sensações ou impressões próprias, de acordo com um engenheiro do Google. Mais recentemente, imagens do software DALL-E se tornaram virais, assim como o ChatGPT. Depois vieram os alertas, os medos, os pedidos de regulamentação. E as dúvidas. Por isso, a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, compilou as principais perguntas sobre inteligência artificial (IA) feitas por seus leitores e consultou uma especialista que trabalha na área há mais de 30 anos para tentar respondê-las. A especialista é Amparo Alonso Betanzos, professora de Ciência da Computação e Inteligência Artificial na Universidade de Coruña, na Espanha, e assistente do reitor para questões de IA. Ela também foi presidente da Associação Espanhola de Inteligência Artificial (AEPIA). Fim do Matérias recomendadas Confira, a seguir, as respostas dela. Como funciona a inteligência artificial? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É difícil dizer porque existem muitas subáreas, mas há basicamente duas maneiras de abordar a inteligência artificial. Uma é a simbólica, a velha IA, sobre a qual adquirimos conhecimento de especialistas da área e que é muito mais transparente, mas menos quantificável. A outra, a IA que temos hoje, é baseada em dados. Para derivar o conhecimento, o que se faz é alimentar o sistema com dados de um determinado campo, o sistema aprende com esses dados e extrai os padrões. É capaz de generalizar, prever e etc. em muitas áreas, desde linguagem natural, visão computacional ou aprendizado de máquina. Existem modelos em que o processo é feito por raciocínio baseado em aprendizagem profunda com redes neurais com muitas camadas que acabam aprendendo aquele dado. Mas existem outros modelos, como raciocínio de reforço ou outros tipos, que podem ser usados ​​para aprender e derivar conhecimento para a IA. A IA "se alimenta" de dados. De onde vêm essas informações? Depende muito do sistema. Se for um sistema especialista para padrões médicos, ele é extraído dos grandes bancos de dados clínicos que são referenciados por certos tipos de doenças ou certos tipos de pacientes. Se forem dados de trânsito, serão utilizadas as câmeras ou sensores de trânsito disponíveis. Hoje, o processo de digitalização em que estamos inseridos é tão imenso que existem sensores que podem extrair dados de praticamente qualquer processo natural ou industrial que possamos imaginar. Praticamente todas as experiências que você pode imaginar são digitais: suas viagens, seus registros médicos, suas preferências… Por exemplo, quando você se senta em frente à televisão e ela recomenda o que assistir, é baseado no que você já fez antes naquela plataforma. Às vezes, tudo isso é o alimento dos algoritmos de IA. Como é a IA? Muitos imaginam algo como um computador enorme ou uma máquina estilo T100 do Terminator. Não. Não é assim... A menos que você tenha seus programas de IA embutidos em algum robô de aparência antropomórfica. Pode ser como um aspirador automático que anda pela casa ou tem forma humanoide, mas também é simplesmente ligar o computador e ter um software que te escuta, ou um programa no celular que detecta sua impressão digital. É impossível dizer um número, quantos são. Os sistemas são muitos e servem para coisas muito diferentes, desde a televisão que recomenda o que ver a uma app para prever se vinhedos vão desenvolver alguma praga. É algo muito transversal. Pode ser aplicado a praticamente qualquer área que se possa imaginar. E qual é o impacto da IA ​​no nosso dia a dia, nos empregos...? Muitas vezes estamos usando inteligência artificial e nem temos consciência disso. No futuro, tendemos a ter mais IA porque está sendo implementada em mais e mais áreas. Em relação ao emprego, antes da pandemia vimos como o panorama mudou. Existem muito mais empregos afetados pela automação, não apenas pela IA. Vemos isso nos supermercados, com cada vez mais máquinas em vez de caixas, por exemplo. Isso mudará as formas de trabalhar, principalmente em tarefas automatizadas, e teremos que conviver com o fato de que parte de nossas tarefas rotineiras será feita por máquinas. Dou como exemplo os médicos, que há 50 anos trabalhavam com quase nenhum instrumento e hoje têm muito mais máquinas à sua disposição. É claro que afetará os empregos e a economia, e é algo com o qual os governos devem lidar. Devemos ficar atentos porque, caso contrário, pode gerar grandes desníveis. E sim, alguns empregos serão destruídos, mas outros serão criados. Ultimamente lemos muito, ou assim percebo, que a IA será catastrófico. Se está criando certo clima de pânico que penso que deve ser tratado com cuidado. Muitas vezes focamos apenas no lado mais trágico, mas a IA é uma ferramenta que tem muitas coisas boas a oferecer se for bem manuseada. Por exemplo, nos últimos anos, vimos a capacidade da IA em avançar a medicina preventiva. Ela pode nos ajudar no aprendizagem, podemos ser muito mais seletivos com os nossos alunos e adaptar o seu ensino, poder prever doenças do gado, combater as alterações climáticas, fazer coisas mais sustentáveis ​​ou gerir melhor os estoques de uma loja. Existem muitos aspectos positivos que devemos aprender a aproveitar e nos proteger daqueles que podem nos prejudicar. Que perigos a IA pode representar? Um dos riscos é, por exemplo, que o sistema se comporte de maneira inadequada e a pessoa no controle não seja capaz de detectar, caso a supervisão não seja tão rigorosa. Mas esse é um erro humano do qual não estamos livres, mesmo com a IA. É também uma profissão ainda muito marcada pelo gênero masculino e é importante termos consciência de que parte do futuro vai ser desenhado com a tecnologia. Como chegaremos lá, como queremos que seja o futuro é importante, por isso o desenho dessas ferramentas exige que estejamos atentos aos vieses e exige a participação de todos. Mas acho que está ajudando as pessoas, capacitando-as na tomada de decisões. Imagine que você é médico e está analisando um caso em que há muitos sintomas e dúvidas. Você pergunta a um colega, no caso, uma IA, e isso reduz suas chances de errar na decisão. É uma ajuda, mas a decisão final cabe a você. Assim como o algoritmo em uma plataforma pode dizer a você o que assistir, mas no final é você quem decide, não a máquina. É certo que estamos progredindo muito com a IA e que a regulamentação é importante. A IA pode ser regulada ou é como enxugar gelo? Já vimos o que aconteceu com a internet e a 'deep web', por exemplo. Há muito que a União Europeia se preocupa com isto. Estamos indo devagar, mas há uma proposta na mesa. As conversas sobre esse tópico começaram em 2018, quando foi criado um grupo de especialistas em inteligência artificial de alto nível que produziu diretrizes para uma inteligência artificial confiável. Naquele momento já se falava de uma supervisão humana da IA ​​e aspectos como sustentabilidade, ausência de viés ou segurança foram analisados. Por exemplo, a supervisão humana é um dos pontos básicos contemplados nas regulamentações europeias. Isso significa que qualquer sistema de inteligência artificial sempre deverá ter um supervisor humano durante todo o processo de iniciação da operação, coleta dos dados e nos setores por trás de sua aplicação. Fomos pioneiros na UE e agora vemos empresas de fora do bloco, dos Estados Unidos especialmente, insistindo na necessidade dessa regulamentação. É algo que deve ser feito mundialmente e estamos trabalhando nisso. O importante é dar o primeiro passo. Tudo pode ser regulado? A resposta é complexa porque a IA é complexa e é claro que não existe risco zero aqui ou em qualquer lugar. Por exemplo, nós regulamos e fazemos leis de trânsito, mas isso não evita acidentes. A regulamentação global seria desejável, mas é algo difícil de alcançar. É só olharmos o protocolo de Kyoto, por exemplo... Nem todos os países assinam e não há como forçá-los a fazê-lo. Para além da União Europeia não é fácil convencer os outros grandes centros de IA do mundo, como China e Estados Unidos, de que a regulamentação é necessária. Acho que, para além do barulho feito pela imprensa, todos deveríamos nos preocupa, porque é importante regular essa tecnologia e o monitoramento constante de sistemas inteligentes deve ser arbitrado. Ultimamente vimos muitas manchetes e especialistas dizendo que a IA pode levar à extinção da humanidade... É isso mesmo? É difícil dizer até onde vai a inteligência artificial, mas é preciso ter sempre um jeito de interromper ou desligar as máquinas. Elas estão sendo projetadas por pessoas... Assim como as pessoas estão trabalhando com energia nuclear. Então acho importante detectar se há algum problema e definir padrões de segurança e aplicação. Mas na minha opinião, o que está acontecendo com a IA aconteceu também com os carros quando eles apareceram. A princípio pensava-se que seriam extremamente perigosos, que poderiam matar pessoas e que a velocidade que alcançavam poderia desnaturar as proteínas do nosso corpo. Hoje sabemos que não é assim e temos a tecnologia sob nosso controle, temos regulamentações e etc. A IA pode superar a inteligência humana e se tornar consciente? Quase todos os sistemas de IA excedem nossa inteligência, mas isso acontece apenas em um determinado campo. A maioria das IAs que temos são de nicho estreito: capazes de ter um nível muito alto de inteligência em um campo muito específico. Por exemplo, a máquina AlphaGo (que aprendeu a jogar Go, um jogo de tabuleiro) pode vencer o campeão mundial de Go, mas precisa ser ensinada a jogar outros jogos, como o xadrez, para poder vencer uma partida. Elas podem ser ótimas para diagnosticar um tipo de câncer, mas não funcionam como clínicos gerais, porque o conhecimento necessário é mais amplo. E sobre a consciência... É possível, entre aspas, modelá-la. Existem robôs que podem modelar sentimentos e podem parecer ter consciência real, mas sequer sabemos como certos processos de consciência acontecem nos humanos, então é algo muito complexo e vasto. Embora existam ferramentas como os chats, que parecem mais transversais por serem baseadas na linguagem, na realidade o que essas máquinas fazem é prever a próxima palavra de um texto. São buscadores muito sofisticado, mas que não são capazes de raciocinar profundamente porque não têm consciência. É como um papagaio treinado e muito inteligente.
2023-06-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czvp8ypwqz9o
sociedade
'Menos juridiquês': o projeto que defende linguagem simples para Justiça ser mais democrática
Inane. Cônjuge supérstite. Inobstante. Hialinamente. São palavras incomuns, desconhecidas, complicadas e que podem ser substituídas por sinônimos bem mais simples: "cônjuge supérstite" é o mesmo que viúvo, "hialinamente" quer dizer "claramente". Apesar de tudo isso, não é raro encontrá-las em documentos de processos judiciais - em textos de advogados, promotores e decisões de magistrados. É o famoso "juridiquês" - uma linguagem desnecessariamente complicada usada com frequência em documentos judiciais. O Direito, como toda área de conhecimento, tem termos técnicos conhecidos por quem é da área e não pelos leigos. O problema não uso desses termos técnicos, mas a forma excessivamente rebuscada de escrever - nenhuma dessas palavras citadas no início do texto, por exemplo, é um termo técnico-jurídico necessário. Fim do Matérias recomendadas Pensando em aproximar o Judiciário da sociedade, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) está promovendo uma iniciativa bem sucedida do Tribunal de Justiça da Bahia para ampliar o uso de uma linguagem mais simples na Justiça e criar formas de traduzir as decisões para o público em geral. "Existe uma necessidade do Judiciário se aproximar mais da sociedade", diz o conselheiro do CNJ Mário Maia. "E existem muitas formas de tornar a Justiça mais acessível - a linguagem é uma delas." "Como primeira forma de contato, eu entendo que linguagem pode aproximar ou afastar. Da forma como ela normalmente se apresenta, é muito difícil de compreender." Segundo ele, a ideia da iniciativa não é acabar com o o uso dos termos técnicos, que são necessários, mas incentivar o uso de uma linguagem mais direta e também criar formas de "traduzir" o processo para quem não é da área. "Isso não desmerece o vernáculo jurídico, que vai continuar existindo, mas explicar as decisões para as pessoas não tiveram a oportunidade de aprendê-lo", diz Maia. "Não é que ele tenha que ser combatido. Ele deve ser preservado no ambiente jurídico, na academia. Existem tradições conservadas que carregam um valor histórico." Mas manter uma tradição não significa rejeitar o novo, diz ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O principal ponto da iniciativa é incentivar que os tribunais de Justiça disponibilizem uma explicação em linguagem simples de certas decisões, sentenças ou portarias a depender do perfil de pessoas que elas afetem. "Uma decisão que afeta empresas, que têm equipes jurídicas especializadas, não precisa disso. Mas uma decisão sobre aposentadoria, por exemplo, ou que afete o regime de trabalho do trabalhador rural, precisa ser acessível", defende Maia. Essa "tradução" seria produzida pelas próprias varas tanto em forma de texto como em forma de áudio - acessível por QR Code, por exemplo - pensando tanto em pessoas com deficiência visual quanto em pessoas que não sabem ler. "Para muitas pessoas é constrangedor ter que dizer que é analfabeto e pedir para alguém ler", diz Maia. "Disponibilizar uma explicação em áudio é uma forma de inclusão. O acesso à Justiça gera a noção de pertencimento, a pessoa começa a se sentir cidadã, detentora de direitos, de proteção." A iniciativa beneficia inclusive pessoas com alta escolaridade de outras áreas do conhecimento, segundo o conselheiro. Afinal, a dificuldade de entender decisões pode acontecer mesmo que as peças do processo estejam escritas de forma bastante objetiva, com sentenças na ordem direta e linguagem clara, já que o uso de certos termos técnicos é inevitável. "Se eu ler um comunicado de uma associação médica eu também não vou entender", diz Maia. "Então, essa iniciativa é algo que beneficia todo mundo." A iniciativa, no entanto, depende de cada tribunal - é uma recomendação do CNJ, não uma resolução, que tornaria seus termos obrigatórios. "É algo que pode ser iniciativa do tribunal, do magistrado ou mesmo da secretaria da vara, de acordo com o perfil de pessoas. Há locais onde seria importante, por exemplo, disponibilizar o conteúdo em linguagens de povos indígenas. Muitas vezes a gente esquece que o português não é a única língua falada no Brasil", diz Maia. A experiência do Tribunal de Justiça da Bahia, afirma, mostra que a iniciativa não gera gastos extras. "Sempre tem alguma resistência das pessoas, mas o debate é bom, ajuda a conscientizar e é uma forma da gente escutar os questionamentos", diz.
2023-06-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c7294ezjrnro
sociedade
O homem que vive em casa no meio de condomínio de luxo porque se recusou a vendê-la
Morar cercado de luxo pode ser o sonho de muitos, mas para Orlando Capote tem sido uma dor de cabeça. Em 1989, ele se mudou com os pais para uma casa em uma rua tranquila e ensolarada no sudoeste de Miami, sem imaginar que quase 25 anos depois ele e a propriedade entrariam em disputa com um grande consórcio imobiliário. "Quando chegamos no país em 1969, o aluguel era de US$ 150 (R$ 744) ou US$ 200 (R$ 992) por mês, mas subia constantemente. E meu pai sempre quis ter uma casa. É o sonho americano e você trabalha para realizar esse sonho" , diz Capote à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, com nostalgia. "Nós três compramos, minha mãe, meu pai e eu", explica ele sobre a modesta casa térrea na Coconut Grove, a poucos quarteirões do centro de Coral Gables, cidade no Condado de Miami-Dade que tem casas avaliadas em milhões de dólares. Hoje, Capote não tem mais nenhum vizinho conhecido. Ele agora vive cercado pelos luxuosos edifícios do The Plaza, um empreendimento imobiliário avaliado em US$ 600 milhões (cerca de R$ 3 bilhões), que inclui um hotel de 242 quartos, restaurantes e lojas exclusivas, além de escritórios e apartamentos residenciais de alto padrão. Fim do Matérias recomendadas A propriedade do homem fica ao lado de prédios de até 10 andares que bloquearam a luz do sol e a brisa. Até a vista da frente de sua casa é obstruída por alguns grandes canteiros do empreendimento imobiliário que Capote chama de "os caixões". "Somos imigrantes. Meus pais deixaram tudo em Cuba para me trazer para cá. E trabalharam muito. E aqui tiraram o sonho americano e deram para o incorporador", lamenta o engenheiro de 64 anos. E é que, para ele, o governo de Coral Gables deu todas as facilidades a uma imobiliária em detrimento de seus direitos e de seu acesso aos serviços públicos que todo morador da cidade tem. Depois de quase duas décadas de brigas e pressões, ele diz que está mais determinado do que nunca a não sair. Quem mora em Coral Gables viu nos últimos 20 anos a rápida construção de torres residenciais e comerciais na área financeira chamada de "City Beautiful". Os blocos de concreto cuidadosamente ajardinados contrastam com as ruas densamente arborizadas, ladeadas por casas térreas, nos arredores do setor comercial. Orlando e Lucía Capote, com o filho Orlando, se instalaram em uma dessas áreas residenciais em 1989. Até o início dos anos 2000, eles estavam cercados de vizinhos, que aos poucos começaram a ir embora. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Primeiro, veio um conhecido investidor de Coral Gables, o cubano-americano Rafael "Ralph" Sánchez. Como outras incorporadoras, na época ele aproveitava o boom imobiliário de Miami para construir condomínios e projetos comerciais. Em 2004, começaram as compras de terrenos no quarteirão onde moravam os Capotes. Conforme consta nos registros públicos do condado, as demolições começaram um ano depois e, em 2007, havia apenas um edifício para ser demolido no quarteirão, um antigo prédio da cidade listado por seu valor histórico e a casa da família de imigrantes cubanos. Naquele ano, Sánchez apresentou seu projeto que incluía 42 vilas em edifícios de três andares, ao preço de US$ 1,9 milhão (cerca de R$ R$ 9,4 milhões) cada, e com o estilo mediterrâneo que o fundador de Coral Gables, George Merrick, deu a toda a cidade. "Merrick acreditava que todos mereciam viver em um belo ambiente que se encaixasse no ambiente natural", disse Sánchez ao South Florida Business Journal em 2008. "Seus planos para criar esse ambiente em Coral Gables incluíam paisagismo exuberante, entradas e praças artísticas e antigas ruas de paralelepípedos espanholas, planos que revivemos." Mas a família Capote recusou qualquer oferta de compra, pois tinha suas razões. Capote, como engenheiro profissional, orgulha-se de não ser ingênuo em relação ao mercado imobiliário de Miami. Na verdade, ele diz que seu lema é "prefiro fazer um acordo com o diabo do que com um incorporador imobiliário, porque o diabo vai honrar seu contrato e sobre o incorporador nunca se sabe”. Ele diz que não ficou impressionado com as aquisições e vendas de seu entorno. "Em 2004, metade das pessoas que moravam aqui alugavam. Os proprietários eram investidores. Quando viram a bolha de 2006, era a chance de vender." "A outra metade tinha seus motivos", como heranças ou uma oportunidade de fazer uma venda. "Era do interesse deles fazer isso", reconhece Capote. Mas naquela época sua situação familiar era delicada. Seu pai, ele explica, estava doente e frequentemente precisava ser internado no hospital. A família entrava e saía de clínicas. "Numa dessas noites, um corretor de imóveis bateu na nossa porta e quis comprar a casa. Minha mãe explicou que o seu marido estava no hospital, mas parecia que nada importava para ele. Essa experiência é parte do motivo pelo qual não acredito em ninguém", lembra. A imobiliária da época fez uma oferta de mais de US$ 900.000 (cerca de R$ 4,4 milhões) pela propriedade, mas foi rejeitada de imediato. "Na época, com meu pai e a situação dele no hospital, e eu ouvindo e perguntando quanto valiam as casas, não tinha como fazer isso. Cuidar do meu pai, procurar casa, mudar... Afinal, demoramos 20 anos para encontrar aquela casa", lembra. As demolições na área ao redor continuaram a preparar o terreno para o grande complexo que agora existe no local. Mas estourou a crise financeira de 2008, causada justamente por uma bolha imobiliária nos Estados Unidos. Se tivessem vendido a casa, diz Capote, citando um velho ditado cubano, "ficaríamos como o galo de Morón: sem penas e sem cacarejar". O pai de Orlando Capote morreu antes de ver a demolição das casas ao seu redor. Por cerca de 10 anos, a casa solitária ficou no meio de um terreno de 2,8 hectares onde não acontecia muita coisa. O projeto Sánchez foi retomado, com modificações, pela incorporadora Agave Holdings, empresa de capital de risco que adquiriu o terreno do quarteirão e outro adjacente de quase um hectare. "Em 2013 foi quando três mulheres chegaram em casa e queriam que eu assinasse que íamos vender para elas. Eu disse que não. Eu era mais jovem, tinha mais testosterona, mais adrenalina e explodi. Mas minha mãe disse 'Não, não feche as portas, fale com elas'", lembra Capote. "Eu disse a elas 'não vou assinar isso ou qualquer outra coisas que vocês trouxerem'." Algum tempo depois, propuseram a ele uma oferta de troca que incluía outra casa próxima e um veículo. Capote desconfiou que tudo isso fosse um plano para os esforços de mudança de uso do solo e modificação das ruas e do ambiente para o novo projeto. Mas ter um morador com uma casa criou problemas para essas mudanças. "A proposta era legalmente insuficiente. Entreguei a vários advogados que disseram que isso não era legalmente obrigatório. E não era tanto uma oferta, mas uma armadilha para que a prefeitura visse que estávamos negociando", diz o engenheiro. Em 2019, enquanto Capote lutava perante os comitês governantes de Coral Gables para defender as calçadas de sua rua, uma construção intensa eclodiu no The Plaza Coral Gables e em outros empreendimentos da Agave Holdings que se encheram de maquinário pesado, barulho e poeira. Infelizmente para o morador, naquele momento ocorreu uma desgraça que ele tentou evitar. "18 de novembro de 2019: minha mãe caiu na cozinha", lembra Capote, lutando contra as lágrimas. "Não consegui levantá-la. Foi quando chamei o resgate e eles vieram por trás da casa. Naturalmente não poderiam levá-la por trás, tinham que vir pela frente. Por que não puderam vir pela frente? Porque havia uma grande equipe de construção à frente das portas que deviam dar acesso à casa”, continua. "Não puderam. Eles tiveram que estacionar a mais de 200 pés da casa [60 metros], tiveram que colocar a minha mãe em uma maca e carregá-la até a esquina." Lucía Capote foi internada em um hospital e posteriormente transferida para a reabilitação. Ela nunca voltou para casa. "Ela não podia voltar", diz o filho, arrependido de ter passado por tal experiência. Ele denuncia que seu direito de acesso aos serviços de emergência foi violado porque sua rua foi bloqueada. Também que houve modificações indevidas no beco traseiro de serviço que impediram o resgate de sua mãe. Ele alerta que os regulamentos de incêndio foram violados. Seus argumentos nas audiências públicas do governo de Coral Gables, nas quais a incorporadora também participou, foram rejeitados sem justificativa, diz ele. Quando questionado pela BBC News Mundo sobre o caso, o governo da cidade disse que "as questões levantadas foram amplamente revisadas e investigadas" e que o desenvolvedor obteve as licenças necessárias do Condado de Miami-Dade. "Pela ironia da vida", lembra ele, em seu escritório foi designado um projeto para abrir uma via de acesso para os bombeiros às instalações de uma estação da Miami Metrorail University. "Quando fui ao hospital, para a unidade de terapia intensiva onde minha mãe estava, na entrada, ao meu lado, estava o chefe do Corpo de Bombeiros de Coral Gables. O mesmo a quem enviei tantas cartas por causa do fechamento da rua antes de minha mãe cair", lembra ela. "Eu disse 'Olhe, adivinhe quem fez a papelada para você chegar à entrada de incêndio. Adivinhe quem fez isso?' Não acho que o corpo de bombeiros de Coral Gables seja o responsável. Mas essa foi uma das ironias e coincidências da vida." Essas adversidades fortaleceram a determinação de Capote em defender a sua casa. "Me perguntam se me tornei cínico. Eles não têm ideia de como me tornei cínico. Mas, de certa forma, nunca perdi a fé. Afinal, este é um país de leis. E você tem que segui-las. Se não você destrói a cidade, o condado, o país...", diz. Os incômodos da construção acabaram. Mas outras complicações permaneceram, como os desvios que precisa fazer para entrar no beco permitido pela promoção imobiliária para dar acesso à parte traseira de sua casa. Hoje o sol só entra na sua residência ao meio-dia, enquanto no resto do dia há apenas as sombras dos grandes prédios que a cercam. A mangueira do seu jardim parou de dar frutos neste ano. Além disso, ele também teve problemas para coletar seu lixo, um direito de todo morador de Coral Gables. E a centímetros do limite de sua propriedade, está prestes a abrir um bar que, segundo a lei, pode ficar aberto até as 2h. "Se o governo tira algo de você, tem que fazer através do devido processo e com uma indenização justa. As auditorias não seguiram o procedimento correto. Tiraram nosso direito em um processo que não foi legal. Nossos direitos à luz, ao ar , à visibilidade, foram tirados de nós”, diz. Apesar de tudo, Capote diz que ficará em sua casa, pois enquanto continuar pagando seus impostos e cumprindo as leis de Coral Gables, a propriedade continuará sendo sua e ninguém poderá tirá-la dele. Sua residência, assegura, nunca estará à venda. "Me deixem na minha casa, com as minhas lembranças e com a mangueira que não dá mais manga."
2023-06-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n97ewgz3po
sociedade
A investigação genética que levou a perdão de mulher condenada por matar 4 filhos
Uma mulher que já foi chamada de "a pior assassina em série da Austrália" foi perdoada depois que novas provas indicaram que ela pode não ter matado seus quatro filhos pequenos. Kathleen Folbigg passou 20 anos na prisão depois que um júri concluiu que ela matou os filhos Caleb e Patrick e as filhas Sarah e Laura ao longo de uma década. Mas em um inquérito recente, cientistas disseram acreditar que eles possam ter morrido naturalmente. O caso envolvendo a mulher de 55 anos foi descrito como um dos maiores erros da Justiça da Austrália. Folbigg sempre defendeu sua inocência. Ela foi condenada a 25 anos de prisão em 2003 pelos homicídios dolosos de três das crianças e pelo homicídio culposo de seu primeiro filho, Caleb. Fim do Matérias recomendadas As crianças morreram entre os anos de 1989 e 1999, com idades que variavam entre 19 dias e 19 meses nos momentos das mortes. Durante o julgamento de Folbigg, promotores alegaram que elas foram sufocadas pela mãe. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Recursos anteriores e um inquérito separado de 2019 sobre as mortes não concluíram haver dúvidas razoáveis para o caso ser julgado novamente, dando maior peso às evidências circunstanciais apresentadas durante o julgamento. Mas neste novo inquérito, comandado pelo juiz aposentado Tom Bathurst, os promotores aceitaram que a pesquisa sobre mutações genéticas mudou a compreensão sobre a morte das crianças. Na segunda-feira (5/6), o procurador-geral do Estado de Nova Gales do Sul, Michael Daley, disse que Bathurst havia concluído haver dúvidas razoáveis sobre a culpa de Folbigg. Como resultado, o governador de Nova Gales do Sul assinou um perdão total e ordenou a libertação imediata de Folbigg da prisão. "Tem sido uma provação de 20 anos para ela. Desejo-lhe paz", disse Daley, acrescentando que seus pensamentos também estão com o pai das crianças, Craig Folbigg. No último inquérito, os advogados de Folbigg apontaram para a "implausibilidade fundamental" de quatro crianças de uma família terem morrido de causas naturais com menos de dois anos. O perdão incondicional não anula as condenações de Folbigg, disse Daley. Essa seria uma decisão para o Tribunal de Apelações Criminais, se Bathurst decidir encaminhar o caso à corte — um processo que pode levar até um ano. Se suas condenações forem anuladas, ela poderá processar o governo australiano e reivindicar uma indenização multimilionária. Seu caso foi comparado ao de Lindy Chamberlain, que em 1982 foi considerada culpada pelo assassinato de sua filha de nove semanas, apesar de sua alegação de que um cão selvagem havia levado o bebê. Ela recebeu 1,3 milhões de dólares australianos (R$ 4,24 milhões segundo a cotação atual) em 1992 por sua condenação injusta. O caso inspirou o filme Um Grito no Escuro, de 1988, com Meryl Streep. Mas advogados dizem que a injustiça cometida contra Folbigg teve consequências bem mais graves que o de Chamberlain. "É impossível dimensionar o dano infligido a Kathleen Folbigg — a dor de perder seus filhos [e] quase duas décadas trancadas em prisões de segurança máxima", disse sua advogada, Rhanee Rego. O julgamento de Folbigg em 2003 focou evidências circunstanciais, principalmente os diários que expressavam sua dificuldade com a maternidade. Esses diários foram entregues à polícia em 1999 por seu então marido, Craig Folbigg, que com o tempo se convenceu de que sua esposa era culpada. O casal se divorciou em 2000. As anotações do diário — nas quais ela relata o sofrimento pela morte de seus filhos e descreve como "a culpa por todos eles me assombra" — formariam a base da acusação feita pela promotoria. Mas não havia nenhuma evidência física de sufocamento ou ferimentos nas crianças. Uma campanha liderada por amigos de Folbigg levou a uma petição para revisar suas condenações com base em descobertas de patologia forense. No inquérito recente, uma equipe de imunologistas descobriu que as filhas de Folbigg compartilhavam uma mutação genética — chamada CALM2 G114R — que pode causar morte súbita por parada cardíaca. Também foram descobertas evidências de que seus bebês meninos possuíam outra mutação genética, que tinha sido ligada a ataques de epilepsia em camundongos. A professora Carola Vinuesa, da Universidade Nacional Australiana, que comandou a equipe de pesquisa, disse que uma sequência genética incomum ficou imediatamente óbvia no DNA de Folbigg. "Fizemos o primeiro teste e encontramos uma variante [do gene] que parecia muito suspeita. Mesmo em novembro de 2018, pensávamos que havia uma probabilidade muito alta de que essa mutação fosse a culpada, se encontrada nas crianças”, disse ela à BBC. Segundo Vinuesa, havia apenas 134 casos conhecidos em todo o mundo de uma síndrome de arritmia cardíaca, conhecida como calmodulinopatia, potencialmente mortal ligada à mutação genética. Ela descreveu a decisão de perdoar Folbigg como um "momento bonito" que pode oferecer esperança a outras mulheres em situações semelhantes. "Fomos abordados sobre mulheres que perderam filhos, ou que foram acusadas de infligir danos a eles, e os casos parecem ser também de crianças com condições genéticas graves", disse ela. A Academia Australiana de Ciências diz que o caso mostra a necessidade de uma reforma que torne o sistema jurídico mais "sensível à ciência", um apelo repetido pelo advogado de Folbigg.
2023-06-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crglv7mxg0no
sociedade
A mãe britânica que luta por pedido de desculpas para filho assassino e sua vítima
Quando o filho de Sharon Lees, David, deixou a unidade psiquiátrica, ela disse que alertou a equipe de que ele não estava bem para voltar para casa. Dez dias depois, ele matou a facadas um homem que estava passeando com o cachorro por causa das "vozes na sua cabeça". Sharon está exigindo agora um pedido público de desculpas do conselho de saúde de Hywel Dda, no País de Gales, para o filho e para a família do homem que ele matou, Lewis Stone. Ela argumenta que isso "poderia [e] deveria ter sido evitado". O Hywel Dda disse, por sua vez, que informações confidenciais impedem a organização de divulgar o relatório sobre o caso de David. Sharon criou o filho, David Fleet, na cidade costeira de Borth, em Ceredigion, no País de Gales. Fim do Matérias recomendadas "David adorava ficar na praia", ela conta. "Crescer em Borth foi muito bom para ele. Ele era muito quieto, ele se perderia facilmente na multidão." Enquanto o filho crescia, "pequenas obsessões" a fizeram suspeitar que ele era autista, diz. Ele foi diagnosticado aos 15 anos, mas quando completou 17, outras coisas começaram a preocupar Sharon. "Ele parecia achar que tínhamos colocado algo na cabeça dele para apagar sua memória. Era como se ele estivesse vendo coisas que não existiam", diz Sharon. David começou a fumar maconha para "meio que administrar esses sintomas", lembra Sharon, acrescentando que ele tinha dificuldade para dormir. Um dia, ela entrou no quarto dele e encontrou "muito sangue por toda parte... ele havia se automutilado gravemente". Ela levou o filho às pressas para o pronto-socorro — e ele foi tratado com medicamentos antipsicóticos. Quando ele estava bem o suficiente, saiu de casa para concluir um curso universitário, mas acabou tendo uma recaída e teve que voltar para casa. "Ficou claro que ele estava psicótico. Ele começou a fazer perguntas bizarras sobre alguém nos observando", afirma Sharon. David também começou a levar facas para a cama com ele e a tentar acender pequenas fogueiras no quarto. "Por fim, ele me disse que achava que poderia ter que matar alguém porque 'as pessoas estão nos observando, há câmeras escondidas em todos os lugares e nenhum lugar é seguro' —, foi quando eu disse que ele tinha que ir comigo para o hospital", conta Sharon . "Tivemos que arrancar a faca dele para colocá-lo no carro e levá-lo ao hospital." Em outubro de 2018, David foi internado sob a Lei de Saúde Mental, mas quando foi autorizado a sair para visitar sua casa, Sharon disse que alertou a equipe do hospital que ele ainda estava comprando maconha e procurando facas. Após quatro meses internado, a equipe decidiu que ele deveria ser tratado em casa. "Eu chorei porque simplesmente não sabia como lidar com isso... ele tem mais de 1,80m de altura, não consigo impedi-lo de sair", diz Sharon. Na manhã de 28 de fevereiro de 2019, 10 dias após ser mandado para casa, David saiu de casa com uma faca. "Estou tentando ligar para ele, tentando enviar uma mensagem para ele... Olhei pela janela dos fundos e pude ver a ambulância aérea. Me lembro de ter uma sensação muito ruim. Como se eu soubesse", relata. David nunca havia visto sua vítima até aquele dia. Lewis Stone, de Staffordshire, na Inglaterra, estava passeando com o cachorro, Jock, às margens do Rio Leri, enquanto passava uma temporada em sua casa de veraneio, onde ele e a esposa planejavam se aposentar. David disse depois aos psiquiatras que se ele não tivesse esfaqueado Stone, as vozes na sua cabeça "iriam matá-lo". A família de Stone — que morreu no hospital três meses após o ataque — afirmou que suas vidas mudaram da maneira "mais horrível e dolorosa". Segundo eles, o "cavalheiro à moda antiga", que era "adorado" pela mulher, filhos e netos, teria ficado "indefeso". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O programa BBC Wales Investigates teve acesso a uma cópia do relatório interno do conselho de saúde sobre o tratamento de David antes do ataque. O documento revela que, três semanas antes do incidente, um médico havia avisado que ele não estava pronto para deixar o hospital por causa da "piora do seu estado mental" e dos riscos que representava com facas. Poucos dias depois, ele foi mandado para casa sem que ninguém atualizasse sua avaliação de risco — e a equipe deveria entrar em contato com ele um dia antes do ataque, mas não entrou devido ao volume de trabalho. Ele também não recebeu uma dose de sua medicação antipsicótica. David se declarou culpado do homicídio culposo de Stone devido à responsabilidade penal diminuída — e foi internado indefinidamente em uma unidade psiquiátrica de segurança em 16 de setembro de 2019. A família de Stone disse que "não há desculpa ou perdão" para David e "nada pode ser dito ou feito para ajudá-los a entender ou seguir em frente depois do que aconteceu". Eles concordaram que houve "enormes falhas no setor de saúde mental" para ter "tamanho monstro solto e andando pelas ruas, capaz de causar tanto dano" — e querem que David Fleet permaneça preso. Estudos da Universidade de Manchester, no Reino Unido, indicam que entre 2010 e 2020 houve 5.876 criminosos que cometeram homicídio no Reino Unido, dos quais 610 (11%) estavam sob os cuidados de serviços de saúde mental. Embora tenha havido uma queda na taxa geral de homicídios na Inglaterra e no País de Gales desde 2008, a porcentagem de homicídios cometidos por pessoas com esquizofrenia, ao contrário, aumentou. Pesquisadores observam que o uso indevido de drogas e álcool é conhecido por elevar o risco. O governo do País de Gales tem o poder de encomendar análises independentes de homicídios relacionados à saúde mental e compartilhar as lições da forma mais ampla possível, mas o programa BBC Wales Investigates descobriu que, desde 2016, parou de solicitá-las. Isso significa que as lições deste e de três outros assassinatos envolvendo pessoas com transtornos mentais no País de Gales naquela época não foram compartilhadas. Lord Alex Carlile, ex-parlamentar e advogado com décadas de experiência em casos de homicídio, critica a "falha" em compartilhar informações no caso de David. "É absolutamente terrível. É essencial que, nos casos em que haja um grande problema de proteção, as informações sejam compartilhadas por todas as organizações relevantes dos setores público e privado", diz ele. Ele também acredita que o governo do País de Gales deveria ter solicitado análises independentes sobre outros homicídios relacionados à saúde mental nesta época, classificando o ocorrido como um "escândalo de sete anos". A decisão do governo do País de Gales significa que, quatro anos depois do assassinato, a família de Stone não conseguiu ver informações sobre as oportunidades perdidas de monitorar David. O conselho de saúde de Hywel Dda informou que compartilhou o relatório interno sobre o tratamento de David com alguns de seus próprios funcionários e com o governo do País de Gales, mas não pôde publicá-lo porque continha informações médicas confidenciais. Em uma carta pessoal, Sharon foi informada de que eles posteriormente haviam feito mudanças em seus serviços, mas ela acredita que, se os detalhes e as lições tivessem sido compartilhados com outros conselhos de saúde, poderia ter evitado outros assassinatos. O governo do País de Gales disse que estava "satisfeito" por não ter precisado solicitar análises independentes de homicídios relacionados à saúde mental desde 2016 porque os conselhos de saúde haviam sido "minuciosos" ao investigar seus próprios casos. Mas admitiu que o sistema de revisão mais amplo precisava mudar para garantir uma melhor "comunicação e coordenação", por isso estava introduzindo uma "Revisão Unificada de Salvaguarda Única". "Esta nova abordagem elimina a necessidade de as famílias participarem de várias revisões, muitas vezes onerosas e traumáticas, e vai identificar mais rápido o aprendizado, gerar uma compreensão maior do que aconteceu durante um incidente e por quê, além de fornecer um claro plano de ação para melhorar os serviços", acrescentou um porta-voz. Sharon acredita que o filho foi deixado na mão pelos serviços de saúde mental, o que resultou em duas famílias "devastadas". "Os sentimentos de culpa e remorso que David está sentindo são inconcebíveis", completou. Ela agora quer que o conselho de saúde peça desculpas ao filho e à família de Stone. "É realmente importante não apenas para nós, mas para a família de Stone receber um pedido público de desculpas por causa da doença dele e da falta de atendimento que ele recebeu... parece justo que ele também receba um pedido de desculpas porque o conselho de saúde falhou com ele, que por sua vez falhou com a família da vítima dele."
2023-06-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckrm9d50rn2o
sociedade
Por que a Rússia tem cada vez menos russos?
Quando o presidente russo Vladimir Putin discursa em público, um dos temas que ele mais menciona é: como fazer a Rússia aumentar sua população? "O futuro e a perspectiva histórica da Rússia dependem de quanto de nós houver", disse Putin em seu pronunciamento do Estado da União, em janeiro de 2020. "Gostaria de começar o ponto principal do meu discurso com a demografia — de quantas crianças nascem em famílias russas daqui a um, cinco ou dez anos. Há hoje quase 147 milhões de nós. Mas entramos em um período demográfico muito difícil." Nos três anos que se passaram desde esse discurso de Putin, um conjunto de fatores fez o país perder entre 1 e 2 milhões de pessoas, a depender das estimativas. E o número de nascimentos de russos é menor do que o número de mortes, o que significa que não tem havido crescimento natural da população. A agência populacional da ONU projeta que, com a baixa natalidade, em 2050 a Rússia pode ter, num cenário conservador, 10 milhões de pessoas a menos do que tem hoje. Problemas demográficos históricos têm sido agravados por fenômenos globais, mas também pela pandemia e pela guerra com a Ucrânia. A seguir, entenda como, por trás disso, estão tanto desafios de natalidade comuns a vários países do mundo, quanto problemas bem específicos da Rússia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Começando pela história recente, repleta de eventos que tiveram impacto direto sobre a natalidade. Na Segunda Guerra Mundial, nenhum país do mundo perdeu tantas vidas quanto a antiga União Soviética, que incluía a Rússia: foram entre 24 milhões e 27 milhões de mortes de civis e militares soviéticos. Foi também um período em que poucas crianças nasceram no país. Segundo dados citados pelo próprio Putin, a taxa de natalidade em 1943 era de apenas 1,3 filhos por mulher. O período do pós-guerra trouxe um aumento nas taxas de natalidade, assim como no resto do mundo. Mas essas taxas não se sustentaram por muito tempo: estagnaram nos anos 60 e despencaram no final da década de 1990, depois do colapso do regime soviético e da grave crise econômica que afetou a Rússia. Esses eventos acabaram tendo impacto nas gerações seguintes, segundo explicou o demógrafo Alexei Raksha ao serviço russo da BBC. Um exemplo: entre as mulheres em idade fértil, se não tivesse ocorrido a queda drástica na natalidade no fim dos anos 90, estima-se que o país teria, até 2030, 40% a mais dessas mulheres. E, além de haver atualmente menos pessoas em idade reprodutiva, essas pessoas estão tendo menos filhos. O resultado é que a última vez em que a taxa de natalidade teve um crescimento sustentado de vários anos foi no início dos anos 2000. Desde 2015, ela tem caído sem parar. Desde que foi eleito, na década de 2000, Vladimir Putin implementa medidas econômicas para estimular os russos a terem mais filhos. A mais importante delas foi batizada de matkapital, que prevê subsídios para famílias com duas ou mais crianças. O demógrafo Alexei Raksha diz que, no início, a medida teve o efeito desejado: mais crianças nasceram. Isso, junto com um boom na imigração de ex-repúblicas soviéticas, fez a população aumentar. No entanto, com o passar do tempo, a iniciativa foi perdendo eficácia, mesmo tendo sido estendida também a pais que tiveram um primeiro filho ou adotaram crianças. Mais recentemente, Putin anunciou transferências de renda mensais para famílias de baixa renda com filhos até 17 anos. E, em janeiro deste ano, ele encomendou mais propostas focadas no aumento das taxas de natalidade. Mas ele constantemente ressalta sua visão de que a população não tem crescido o bastante para criar o que considera uma Rússia forte. "As medidas que adotamos em meados dos anos 2000 tiveram um efeito positivo na demografia. Chegamos a um estágio de aumento natural, e por isso agora temos mais crianças nas escolas. No entanto, novas famílias estão sendo criadas por gerações pequenas, dos anos 1990. E a taxa de natalidade está caindo novamente", disse ele no mesmo discurso de Estado da União de 2020. "Esse é o problema principal do atual período demográfico da Rússia. A taxa de natalidade agregada, que é o indicador-chave mostrando o número de filhos por mulher, foi de apenas 1,5 em 2019, segundo estimativas. Isso é pouco ou muito? Não é suficiente para o nosso país. É parecido ao índice de muitos países europeus. Mas não é suficiente para a Rússia", declarou Putin na ocasião. De fato, a queda da natalidade, uma consequência típica do desenvolvimento, traz dilemas a vários países do mundo. Em 2021, cada mulher dava à luz em média 2,3 bebês, em comparação com cinco bebês em 1950. É um cenário que tem despertado debates globais a respeito de como os sistemas de saúde e Previdência Social vão sustentar um número crescente de idosos, com uma população em idade produtiva que não para de encolher. Mas a Rússia tem tido desafios adicionais. Os demógrafos ainda estudam se — e como — a guerra com a Ucrânia vai afetar a natalidade russa. Por enquanto, o conflito, com seus desdobramentos sociais e econômicos, tem tido pouco impacto direto na taxa de natalidade russa. Mas existe, sim, a preocupação de que a guerra agrave a crise demográfica, ao menos no curto prazo. E não só porque a estagnação econômica causada pelo conflito pode desestimular russos a terem filhos, mas porque as mortes nas frentes de batalha diminuem a quantidade de homens em idade reprodutiva. A Rússia não divulga quantos soldados perdeu na guerra. O serviço russo da BBC já identificou 22 mil e 600 homens que foram mortos em combate. Além disso, a guerra provocou o maior êxodo de russos na história recente do país: algumas estimativas apontam que mais de 1 milhão de pessoas deixaram a Rússia. São principalmente homens jovens, que foram embora do país para não serem convocados ao combate. Em contrapartida, a guerra fez a Rússia receber um influxo de quase 3 milhões de refugiados vindos da própria Ucrânia. Eles talvez acabem sendo incorporados à população e tenham filhos, mas até o momento só algumas centenas de milhares deles viraram cidadãos russos. Outro acontecimento recente que agravou a crise demográfica é a pandemia. Oficialmente, foram 388 mil mortes por covid na Rússia, mas muitos especialistas e estatísticos acham que o número real deve ser muitas vezes maior, já que a Rússia foi um dos países mais duramente afetados pela doença. E por quê? Especialistas apontam uma combinação de problemas, principalmente dois: uma condução errática de políticas públicas e uma vacinação lenta, já que muitos russos viam com ceticismo a vacina local, a Sputnik. A The Economist estima que o excesso de mortes na Rússia entre 2020 e 2023 (ou seja, mortes que não teriam acontecido se não fosse a pandemia) chegou a 1,6 milhão de pessoas. É um número comparável ao dos Estados Unidos, que têm uma população mais de duas vezes maior do que a russa. Juntando isso com as mortes da guerra e o êxodo recente de russos, chegamos à cifra mencionada no início da reportagem: a Rússia pode ter ficado, nos últimos anos, com até 2 milhões de pessoas a menos. Todo esse quadro criou o que a Economist chama de “pesadelo populacional”, que tende a continuar a assombrar Vladimir Putin nos próximos anos.
2023-06-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyjxdnnr3l1o
sociedade
Al Pacino e Robert de Niro são pais depois dos 75 anos: a paternidade tardia traz riscos?
Esta semana, representantes do ator americano Al Pacino, de 83 anos, confirmaram que ele terá um filho com sua namorada, Noor Alfallah, de 29 anos. Ele se juntará ao clube da paternidade tardia com seu ocasional colega de elenco Robert De Niro, que em maio confirmou que se tornou pai de seu sétimo filho, aos 79 anos de idade. Os dois certamente não são os primeiros pais idosos: vários outros atores, músicos e até presidentes dos Estados Unidos tiveram filhos tarde na vida. Fim do Matérias recomendadas Mas até quando homens podem ter filhos? E será que a paternidade tardia representa algum tipo de risco à saúde da criança? Homens que decidem virar pais depois dos 35 anos correm um risco maior de ter filhos prematuros ou com autismo, revelam as pesquisas. Além disso, a cada ano que passa, os espermatozoides sofrem baixas significativas na quantidade e na qualidade — o que pode dificultar as tentativas de gerar um descendente. Essas informações são particularmente importantes num cenário em que os planos de ter um bebê são postergados para cada vez mais tarde, por causa dos projetos profissionais e educacionais. E isso ocorre num contexto em que apenas os riscos da maternidade tardia são bem mais conhecidos entre a população. De forma geral, as mulheres sabem da dificuldade aumentada da gestação após os 35 ou os 40 anos. Do lado paterno (e pouco conhecido) dessa história, a boa notícia é que existem recomendações, exames e tratamentos que permitem acompanhar cada caso e diminuem os riscos ao bebê, como você confere a seguir. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A médica Karla Giusti Zacharias, que é especialista em reprodução humana e integra o corpo clínico da Rede D'Or - Hospital São Luiz Itaim, em São Paulo, relata que recebe com frequência no consultório homens mais velhos que desejam ter um filho. "Vejo pacientes de 50 ou 60 anos que estão num segundo casamento com uma esposa mais jovem, que deseja engravidar", observa. A dúvida que eles trazem aos profissionais da saúde envolve justamente os riscos de ser pai mais velho. Em linhas gerais, o aparelho reprodutor masculino funciona numa lógica completamente diferente do feminino. A partir da puberdade, que acontece lá pelos 10 aos 14 anos, os homens começam a fabricar os espermatozoides — produção essa que continua a acontecer durante toda a vida. Já as mulheres nascem com todos os óvulos prontos. Eles são liberados também a partir da puberdade, a cada novo ciclo menstrual. Só que a quantidade de gametas nelas é limitada — as meninas têm entre 300 mil e 500 mil óvulos no momento da primeira menstruação — e costuma quase acabar quando elas chegam aos 45 a 55 anos, quando ocorre a menopausa. Ou seja: enquanto novos espermatozoides são produzidos constantemente nos testículos, os óvulos são guardados numa espécie de "poupança", e liberados aos poucos ao longo da adolescência e da vida adulta. Mas daí vem a questão importante: embora a fabricação dos gametas masculinos seja constante, a qualidade desse processo não é a mesma após uma certa idade. Com o passar dos anos, é natural que essas células sejam feitas em menor quantidade e apresentem mais defeitos. Essas falhas, por sua vez, podem impedir a fecundação (quando um espermatozoide entra no óvulo), o que leva à dificuldade para ter um filho. Porém, algumas pesquisas indicam que, mesmo quando as tentativas de gerar um descendente são bem sucedidas, existe o risco de que o bebê apresente com mais frequência algumas condições de saúde, como nascimento prematuro, complicações após o parto e até autismo. Homens que têm filhos após os 35 anos correm um risco relativamente mais alto de que o bebê nasça com baixo peso, tenha convulsões ou precise de ventilação mecânica para respirar logo após o parto. Indivíduos com mais de 45 anos apresentam uma probabilidade 14% maior de que a criança seja prematura (quando ela vem ao mundo antes de 37 semanas de gestação). Naqueles que já passaram dos 50, há um risco 28% mais elevado de o recém nascido precisar ficar um tempo numa Unidade de Terapia Intensiva (UTI) neonatal. "Há uma tendência de olharmos para os fatores maternos na hora de avaliar os riscos associados ao nascimento. Mas nosso estudo mostra que ter um bebê saudável é um trabalho de equipe, e a idade do pai também contribui para isso", declarou. Como conclusão, o trabalho aponta que, a cada aumento de 10 anos na idade do pai, há uma probabilidade 21% maior de o filho ter esse transtorno no desenvolvimento neurológico, que está relacionado a dificuldades na comunicação, na interação social e no comportamento. A ciência ainda não sabe responder com certeza o que uma coisa tem a ver com a outra. O médico Alfredo Canalini, da Sociedade Brasileira de Urologia, aponta que existem evidências de uma relação entre paternidade tardia e maior probabilidade de doenças como esquizofrenia, mas os estudos sobre o tema não são suficientemente sólidos. O especialista ainda aponta que, mesmo com a queda na qualidade e na quantidade de espermatozoides com o passar dos anos, a tendência é que os gametas mais aptos sejam bem sucedidos e um deles faça a fecundação — o que diminui os riscos à saúde da criança que será gerada. "O caminho até o óvulo pode ser comparado a uma ultramaratona, e geralmente apenas os espermatozoides capacitados e saudáveis conseguem chegar perto da linha de chegada", compara. Mas será que, diante de todos esses perigos, existem meios de minimizar os problemas e garantir uma gestação saudável? Canalini ressalta que não existe uma receita de bolo para driblar os possíveis perigos da paternidade tardia. "A biologia do aparelho reprodutor masculino é muito individualizada e cada homem precisa passar por um atendimento para a gente entender o que está acontecendo e o que pode ser feito", diz. Uma consulta dessas envolve o clínico geral ou o urologista, médico especialista nas vias urinárias e nos órgãos sexuais e reprodutivos do homem. Essa avaliação pode ser feita de rotina, a cada ano, quando há o desejo de ter um filho ou se alguns sintomas aparecem, como irritação excessiva, falta de libido, dificuldade para ter ou manter a ereção, além das tentativas frustradas de engravidar. "E, claro, existem aquelas recomendações clássicas que valem para a saúde do corpo inteiro, como ter uma alimentação saudável, evitar o sedentarismo, fazer atividade física regular, não fumar, manter o peso adequado…", lista o médico. Zacharias lembra que, quando as mudanças de estilo de vida não surtiram resultado, é possível partir para exames e tratamentos específicos. "Se existe um perfil muito ruim dos espermatozoides, podemos propor algumas terapias para melhorar a qualidade ou a quantidade deles", resume. Por fim, a especialista destaca um último risco que afeta diretamente os pais mais velhos: a carga de trabalho envolvida com a criação de um filho. "Não podemos nos esquecer que muitos homens mais velhos estão numa fase da vida em que eles já trabalharam bastante e estão mais cansados", aponta. "É preciso colocar na balança e pensar na importância de acompanhar o desenvolvimento da criança, levantar de madrugada para trocar fralda, brincar…" "Os casais devem conversar sobre isso para que sempre tomem a melhor decisão para eles e para a família", conclui.
2023-06-04
https://www.bbc.com/portuguese/geral-62478442
sociedade
Por que especialistas dizem que inteligência artificial pode levar à extinção da humanidade
A inteligência artificial (IA) pode levar a humanidade à extinção, alertaram especialistas — incluindo os chefes da OpenAI e do Google Deepmind. Dezenas apoiaram uma declaração publicada na página do Center for AI Safety (ou Centro de Segurança de Inteligência Artificial, em tradução livre), ong de pesquisa e desenvolvimento com sede em São Francisco, nos Estados Unidos. "Mitigar o risco de extinção pela IA deve ser uma prioridade global, juntamente com outros riscos em escala social, como pandemias e guerra nuclear", aponta a carta aberta. Mas outros dizem que os medos são exagerados. Sam Altman, executivo-chefe da OpenAI, fabricante do ChatGPT, Demis Hassabis, executivo-chefe do Google DeepMind e Dario Amodei, da Anthropic, apoiaram a declaração. Fim do Matérias recomendadas O texto do Center for AI Safety sugere uma série de possíveis cenários de desastre: Geoffrey Hinton, que emitiu um alerta anterior sobre os riscos da IA superinteligente, também apoiou a carta do Center for AI Safety. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Yoshua Bengio, professor de Ciências da Computação na Universidade de Montreal, no Canadá, também assinou o manifesto. Hinton, Bengio e o professor da Universidade de Nova York (NYU), Yann LeCunn, são frequentemente descritos como os "padrinhos da IA" pelo trabalho inovador que fizeram neste campo — e pelo qual ganharam juntos o Prêmio Turing de 2018, que reconhece contribuições excepcionais na ciência da computação. Mas o professor LeCunn, que também trabalha na Meta, empresa dona do Facebook, disse que esses avisos apocalípticos são "exagerados" e que "a reação mais comum dos pesquisadores de IA a essas profecias de destruição é embaraçosa". Muitos outros especialistas também acreditam que o medo de a IA acabar com a humanidade é irreal e uma distração de questões como preconceito em relação aos sistemas, que já são um problema. Arvind Narayanan, um cientista da computação da Universidade de Princeton, nos EUA, disse à BBC que os cenários de desastre de ficção científica não são realistas. "A IA atual não é nem de longe suficientemente capaz para que esses riscos se materializem. Como resultado, isso desvia a atenção dos danos de curto prazo da IA", avalia ele. Elizabeth Renieris, pesquisadora sênior do Instituto de Ética em IA da Universidade Oxford, no Reino Unido, disse à BBC News que se preocupa com os riscos mais próximos. "Os avanços na IA ampliarão a escala da tomada de decisão automatizada que é tendenciosa, discriminatória, excludente ou injusta. Ao mesmo tempo em que é inescrutável e incontestável", acredita ela. Estes avanços "podem impulsionar um aumento exponencial no volume e na disseminação de desinformação, fraturando assim a realidade e corroendo a confiança do público, além de gerar mais desigualdade, principalmente para aqueles que permanecem do lado errado da divisão digital". Muitas ferramentas de IA essencialmente "pegam carona" em "toda a experiência humana até o momento", destaca Renieris. Várias dessas tecnologias são treinadas em conteúdo, texto, arte e música criados por humanos — e seus criadores "transferiram efetivamente uma tremenda riqueza e poder da esfera pública para um pequeno punhado de entidades privadas". A cobertura da imprensa sobre a suposta ameaça "existencial" da IA aumentou desde março de 2023, quando especialistas, incluindo o dono da Tesla, Elon Musk, assinaram uma carta aberta pedindo a suspensão do desenvolvimento da próxima geração de tecnologia de IA. Essa carta perguntava se deveríamos "desenvolver mentes não-humanas que eventualmente superassem em número, fossem mais espertas, nos tornassem obsoletos e nos substituíssem". Em contraste, a nova carta divulgada por especialistas tem uma declaração muito curta, destinada a "abrir a discussão". A declaração compara o risco ao representado pela guerra nuclear. Em uma postagem no blog, a OpenAI sugeriu recentemente que a superinteligência pode ser regulada de maneira semelhante à energia nuclear. "É provável que eventualmente precisemos de algo como uma AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) para os esforços de superinteligência", escreveu a empresa. Sam Altman e o executivo-chefe do Google, Sundar Pichai, estão entre os líderes de tecnologia que discutiram recentemente a regulamentação da IA com o primeiro-ministro inglês, Rishi Sunak. Ao falar com repórteres sobre o último alerta sobre o risco de IA, Sunak enfatizou os benefícios da tecnologia para a economia e a sociedade. "Você viu que recentemente a IA ajudou pessoas paralisadas a andar e descobriu novos antibióticos, mas precisamos garantir que isso seja feito de maneira segura e protegida", disse ele. "É por isso que me encontrei na semana passada com CEOs de grandes empresas de IA para discutir quais são as barreiras que precisamos implementar e qual é o tipo de regulamentação que deve ser criada para nos manter seguros." "As pessoas ficarão preocupadas com os relatos de que a IA representa riscos existenciais, como as pandemias ou as guerras nucleares. Mas quero que elas tenham certeza de que o governo está analisando isso com muito cuidado", concluiu. Sunak disse que havia discutido a questão recentemente com outros líderes na cúpula do G7 no Japão e iria levá-lo novamente a representantes dos EUA em breve. A cúpula de países mais ricos, inclusive, criou recentemente um grupo de trabalho sobre a IA.
2023-06-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51q3jvlyj8o
sociedade
Os 5 principais traços de personalidade que influenciam nossas vidas
Em uma escala de 1 a 5 (em que 1 significa "discordo totalmente" e 5, "concordo totalmente"), como você avaliaria cada uma das afirmações a seguir? Estas afirmações costumam ser incluídas no teste dos cinco grandes traços de personalidade — uma ferramenta comumente adotada para determinar que tipo de pessoa você é. Os filósofos passaram séculos se perguntando sobre o que faz com que cada pessoa seja única. Afinal, se os objetos possuem três dimensões básicas — comprimento, largura e altura —, quais seriam as dimensões que medem a personalidade? Nas últimas décadas, os psicólogos chegaram a cinco traços de personalidade que podem ser utilizados para caracterizar todos os indivíduos: Alguns psicólogos usam nomes ligeiramente diferentes para definir esses traços de personalidade. E é importante levar em conta que nenhuma personalidade pode ser descrita exclusivamente por nenhuma dessas características. A maioria das pessoas tem uma combinação de cada traço, em diferentes níveis. Fim do Matérias recomendadas O modelo dos traços de personalidade merece respeito, mas é preciso questionar como se definiu o que somos nessas cinco características. E o caminho foi cansativo e curioso. Em 1884, o polímata britânico Francis Galton concebeu um enfoque inovador de pesquisa e desenvolvimento de uma taxonomia integral dos traços de personalidade, analisando o idioma inglês por meio da chamada hipótese léxica. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele defendia que as características fundamentais da personalidade humana foram codificadas na linguagem ao longo do tempo. Ou seja, elas foram identificadas e até discriminadas. Só era preciso encontrá-las. Em 1936, os psicólogos americanos Gordon Allport e Henry Odbert dedicaram-se a esta tarefa. Eles coletaram mais de 4,5 mil adjetivos do Novo Dicionário Internacional de Inglês Webster (edição de 1925), acreditando que aquelas palavras descreviam traços relativamente estáveis que podiam ser observados. Uma década depois, na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, o psicólogo britânico-americano Raymond Cattell eliminou os sinônimos, reduzindo a lista inicial a 171 termos. Mas a quantidade de palavras ainda era muito grande. Por isso, Cattell pediu a 100 "conhecidos bem informados" que avaliassem quantas daquelas características eram seus traços pessoais de personalidade. Com isso, restaram 16 palavras. Diversos outros pesquisadores colaboraram, até que, em 1990, o psicólogo americano Lewis Goldberg reduziu os 16 termos de Cattell aos cinco fatores primordiais. Paul Costa e Robert McCrae, renomados pesquisadores da personalidade, confirmaram a validade do modelo, que foi chamado de "Os Cinco Grandes" (Big Five, em inglês). Eles realizaram milhares de pesquisas com base no modelo, em diversos continentes e culturas, com uma ampla variedade de populações. É claro que simplesmente selecionar adjetivos em inglês não era suficiente. Análises fatoriais de inúmeros conjuntos de dados compostos por termos descritivos de diversos outros idiomas confirmaram a validade do modelo em populações urbanas alfabetizadas. Mas não são apenas as palavras. Diversas pesquisas mostram que a maioria das diferenças individuais sobre a personalidade descritas na literatura pode ser representada em termos de pontuação para cada uma das dimensões básicas. Além disso, estudos com irmãos gêmeos ou pessoas adotadas (Jang et al, 1996 e 1998) revelaram que o componente genético dos "cinco grandes" traços de personalidade é de 40-60%. E pesquisas de longo prazo (Soto & John, 2012) demonstraram que os padrões de pensamento, sentimento e comportamento detectados nos testes são relativamente duradouros ao longo da vida do indivíduo. Há estudiosos contrários a este método, e a quantidade de fatores que devem ser levados em conta é objeto de discussão. Mas os "Cinco Grandes" são considerados o conceito de personalidade mais pesquisado, aceito e utilizado do mundo até hoje. Avaliando uma série de enunciados — como os que mencionamos no início desta reportagem —, os pesquisadores podem verificar a pontuação de uma pessoa em cada um dos cinco traços de personalidade. Os especialistas afirmam que estudos da vida real mostram que as pontuações realmente preveem certos tipos de comportamento. Os cinco fatores não são, necessariamente, traços isolados — mas, sim, fatores que incluem várias características relacionadas. O fator amabilidade, por exemplo, engloba desde a generosidade e a cordialidade até agressividade e temperamento forte. Já a abertura se refere à disposição das pessoas de tentar coisas novas, sua vulnerabilidade e o alcance da sua imaginação. Por isso, se tiver uma pontuação alta neste fator, provavelmente você é uma pessoa que gosta de aprender, aprecia a arte, se dedica a uma carreira ou passatempo criativo e adora conhecer gente nova. Mas, se a pontuação for baixa, você tem pouca abertura para novas experiências. Por isso, prefere a rotina à variedade, é apegado ao que já é conhecido e prefere a arte menos abstrata. A escrupulosidade é um traço da personalidade que pode ser descrito como a tendência a controlar os impulsos e agir de forma socialmente aceitável. Pessoas com alto nível de escrupulosidade tendem a ser bons alunos e ter sucesso profissional. Elas se destacam em posições de liderança e perseguem obstinadamente seus objetivos. A extroversão inclui dois extremos conhecidos no seu espectro: a extroversão, a "alma da festa", e a introversão, a pessoa reflexiva, de poucas palavras. Já o neuroticismo se refere à confiança e ao sentimento de conforto consigo mesmo. Engloba a estabilidade emocional e o temperamento em geral. Teoricamente, o conjunto destes fatores forma um espectro com milhares de pontuações combinadas, que definem personalidades únicas. O método dos "Cinco Grandes" é empregado em uma ampla série de estudos sociopsicológicos. Mesmo que você ainda não tenha tido a oportunidade de participar desses testes, é provável que os encontre no ambiente de trabalho, já que são uma ferramenta bastante popular. Eles são usados para prever a eficácia no trabalho, formar equipes e até para a seleção de candidatos a emprego. Seus defensores afirmam que uma das vantagens é que o teste reduz a possibilidade de viés. E que ajuda tanto a organização quanto o candidato a determinar se um certo cargo é apropriado para ele. Pessoas com baixa pontuação em neuroticismo, por exemplo, são ideais para ambientes em que os níveis de estresse são altos. Já em uma empresa com cultura amistosa, funcionários com alta pontuação em amabilidade podem se adaptar bem. Mas estas mesmas pessoas podem ter dificuldade em ambientes mais competitivos. Os "Cinco Grandes" não parecem ser tão dramáticos quanto os quatro tipos de temperamento de Hipócrates — sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico —, nem tão poéticos quanto os de Platão — artístico, sensível, intuitivo e racional. Mas eles são, no momento, os pontos cardeais que norteiam os profissionais que querem traçar seu mapa da personalidade.
2023-06-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crg3e0dd9pvo
sociedade
Os mitos sobre a origem do patriarcado
Em 1930, o Zoológico de Londres anunciou que iria fechar o recinto dos babuínos. O fechamento chegou às manchetes dos jornais da época. Por anos, o “Morro dos Macacos”, como era conhecido, foi o palco de cenas sangrentas de violência e mortes frequentes. A revista norte-americana Time noticiou o incidente que foi a gota d’água para o fechamento: “George, um jovem membro da comunidade de babuínos, roubou uma fêmea pertencente ao ‘rei’, o babuíno maior e mais velho do Morro dos Macacos”. E, depois de um cerco cheio de tensão, George acabou matando a fêmea. O Morro dos Macacos teve grande influência sobre como os especialistas em animais imaginavam a dominação dos machos. Os primatas assassinos reforçaram o mito popular da época, de que os seres humanos seriam uma espécie naturalmente patriarcal. Para os visitantes do zoológico, parecia que eles poderiam estar reproduzindo o nosso passado evolutivo, no qual os machos naturalmente violentos sempre vitimizaram as fêmeas mais fracas. Fim do Matérias recomendadas Mas, na verdade, o Morro dos Macacos não era normal. Seu ambiente social corrompido era o produto da quantidade excessiva de macacos machos tragicamente abrigados com muito poucas fêmeas. Somente com a descoberta, décadas depois, de que um dos nossos parentes genéticos mais próximos, os bonobos, são matriarcais (embora os machos desta espécie de primata sejam maiores), os biólogos finalmente aceitaram que o patriarcado na nossa espécie provavelmente não pode ser explicado apenas pela natureza. Nos últimos anos, viajei pelo mundo para compreender as origens do patriarcado humano, para o meu livro The Patriarchs (“Os patriarcas”, em tradução livre). O que aprendi foi que, embora haja muitos mitos e conceitos errôneos sobre como os homens chegaram a ganhar tanto poder, a história verdadeira também indica formas que podem nos permitir, finalmente, atingir a igualdade de gênero. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para começar, as formas humanas de organização, na verdade, não têm muitos paralelos no reino animal. A palavra “patriarcado” significa “domínio do pai” e reflete como se acreditou, por muito tempo, que o poder masculino começa na família, com os homens chefiando suas casas e transmitindo o poder de pai para filho. Mas, no mundo dos primatas, isso é cada vez mais raro. A antropóloga Melissa Emery Thompson, da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos, observou que as relações familiares entre as gerações de primatas são consistentemente organizadas pelas mães, não pelos pais. E, entre os seres humanos, o patriarcado também não é universal. Antropólogos identificaram pelo menos 160 sociedades de linhagem matriarcal nas Américas, África e Ásia. Nelas, as pessoas são consideradas pertencentes à família da mãe por gerações e as heranças são transmitidas de mãe para filha. Algumas dessas comunidades adoram deusas e as pessoas permanecem nas suas casas maternas por toda a vida. Os homens do povo mosuo, do sudoeste da China, por exemplo, podem ajudar a criar os filhos das suas irmãs e não os deles próprios. Nas comunidades de linhagem matriarcal, muitas vezes, o poder e a influência são compartilhados entre as mulheres e os homens. Um exemplo são as comunidades de linhagem matriarcal asantes, em Gana. Nelas, a liderança é dividida entre a rainha-mãe e um chefe homem, que ela mesma ajuda a escolher. Em 1900, a governante asante Nana Yaa Asantewaa liderou seu exército em uma rebelião contra o domínio colonial britânico. Quanto mais mergulhamos na pré-história, mais variadas são as formas de organização social humana que encontramos. O sítio arqueológico de Çatalhöyük, no sul da Anatólia (hoje, parte da Turquia asiática), tem nove mil anos de idade e já foi descrito como a cidade mais antiga do mundo, pelo seu tamanho e sua complexidade. Nele, todos os dados arqueológicos indicam um assentamento no qual o gênero fazia pouca diferença sobre o modo de vida das pessoas. “Na maioria dos sítios escavados pelos arqueólogos, você percebe que homens e mulheres, por terem vidas diferentes, têm alimentos diferentes e acabam tendo dietas diferentes”, segundo o arqueólogo Ian Hodder, da Universidade Stanford, nos Estados Unidos. Hodder liderou o Projeto de Pesquisa de Çatalhöyük até 2018. “Mas, em Çatalhöyük, você não observa isso”, afirma ele. Análises dos restos humanos indicam que homens e mulheres tinham a mesma alimentação, passavam aproximadamente o mesmo tempo dentro e fora de casa e faziam trabalhos similares. Até a diferença de altura entre os sexos era pequena. E as mulheres também não eram invisíveis. Escavações deste e de outros sítios que datam aproximadamente da mesma época revelaram inúmeras estatuetas femininas, que hoje lotam os armários dos museus arqueológicos locais. A mais famosa é a Mulher Sentada de Çatalhöyük, que hoje é exibida sob proteção de vidro no Museu de Civilizações Anatolianas na capital turca, Ancara. Ela ilustra uma mulher sentada, com as costas eretas. Seu corpo é profundamente marcado pela idade e pela notável quantidade de gordura corporal. Seus braços estão em repouso e, abaixo deles, estão dois grandes animais com aparência de felinos, possivelmente leopardos, olhando para frente como se fossem domesticados. Mas a relativa igualdade de gênero de Çatalhöyük não durou para sempre, como sabemos. Ao longo de milhares de anos, as hierarquias sociais gradualmente invadiram a região, incluindo a Europa, a Ásia e o Oriente Médio. Foi assim que, milhares de anos depois, em cidades antigas como Atenas, na Grécia, culturas inteiras se desenvolveram em torno de mitos misóginos de que as mulheres são fracas, não merecem confiança e que é melhor confiná-las em casa. A grande questão é: por quê? Antropólogos e filósofos vêm se perguntando se a agricultura pode ter feito a diferença no equilíbrio de poder entre homens e mulheres. Afinal, a agricultura exige muita força física – e o surgimento da agricultura se deu quando os seres humanos também começaram a manter propriedades, como o gado. Segundo esta teoria, as elites sociais surgiram quando algumas pessoas começaram a acumular mais propriedades do que outras, levando os homens a garantir que suas riquezas passassem para os seus filhos legítimos. Para isso, começaram a restringir a liberdade sexual das mulheres. O problema com isso é que as mulheres sempre fizeram trabalhos agrícolas. Na literatura da Grécia e da Roma Antiga, por exemplo, existem ilustrações de mulheres trabalhando na colheita e histórias de jovens mulheres pastoras. Dados das Nações Unidas demonstram que, até hoje, as mulheres representam quase a metade da mão de obra agrícola do mundo e quase a metade dos criadores de animais em pequena escala em países de baixa renda. E as mulheres da classe trabalhadora e escravizadas em todo o mundo sempre se dedicaram a pesados trabalhos manuais. O mais importante para a história do patriarcado é que houve domesticação de animais e plantas muito antes que os registros históricos exibissem evidências óbvias da opressão baseada no gênero. “A ideia antiga de que, quando você tem a agricultura, você tem propriedade e, portanto, você controla as mulheres como propriedade está errada, claramente errada”, diz Hodder – porque a linha do tempo não confere. Os primeiros sinais claros de mulheres sendo tratadas de forma categoricamente diferente dos homens apareceram muito mais tarde, nos primeiros estados da antiga Mesopotâmia, a região histórica entre os rios Tigre e Eufrates, no território que hoje pertence ao Iraque, à Síria e à Turquia. Cerca de 5 mil anos atrás, tábuas administrativas da cidade suméria de Uruk, no sul da Mesopotâmia (hoje, Iraque), demonstram que os encarregados dedicavam grandes esforços à elaboração de listas detalhadas de população e recursos. “O poder sobre as pessoas é a chave para o poder em geral”, explica o antropólogo e cientista político James Scott, da Universidade Yale, nos Estados Unidos. As pesquisas de Scott concentraram-se no início da agricultura humana. As elites dessas primeiras sociedades precisavam de pessoas disponíveis para produzir mais recursos para elas e para defender o estado – até para dar suas próprias vidas, se necessário, em tempos de guerra. Por isso, a manutenção dos níveis populacionais inevitavelmente gerava pressão sobre as famílias. Ao longo do tempo, esperava-se que as mulheres jovens se dedicassem a ter cada vez mais bebês, especialmente meninos que pudessem crescer para lutar. O mais importante para o estado era que todos fizessem a parte esperada de cada um, homens e mulheres. Os talentos, necessidades e desejos individuais não tinham importância. Homens jovens que não quisessem ir para a guerra eram ridicularizados como fracassados; e as mulheres jovens que não quisessem ou não conseguissem ter filhos podiam ser condenadas como antinaturais. A historiadora norte-americana Gerda Lerner (1920-2013) documentou que existem registros escritos daquela época que mostram que as mulheres desapareceram gradualmente do mundo público do trabalho e da liderança e foram empurradas para a sombra doméstica, concentrando-se na maternidade e no trabalho da casa. Combinada com o casamento patrilocal – em que a filha deve deixar a casa da sua infância para viver com a família do marido –, esta prática marginalizou as mulheres e fez com que elas ficassem vulneráveis à exploração e abusos dentro das suas próprias casas. Ao longo do tempo, o casamento passou a ser uma instituição legal rígida, que tratava as mulheres como propriedade dos seus maridos, como as crianças e os escravos. Por isso, em vez de começar na família, a história indica que o patriarcado começou com os poderosos nos primeiros estados. As exigências vindas de cima se infiltravam na família, forçando rupturas dos relacionamentos humanos mais básicos e até entre pais e filhos. O sistema semeou a desconfiança entre aqueles que as pessoas costumavam procurar em busca de amor e apoio. As pessoas não viviam mais para si próprias e para os mais próximos. Agora, elas viviam no interesse do estado patriarcal. A preferência pelos filhos homens é uma característica dos países tradicionalmente patriarcais até hoje, incluindo a China e a Índia, onde essa preferência gerou índices tão altos de morte provocada de meninas que a proporção entre os sexos ficou gravemente distorcida. O censo indiano de 2011, por exemplo, indicou que havia 111 meninos para cada 100 meninas, mas os dados sugerem que estes números estão melhorando, com a mudança das normas sociais em favor das filhas mulheres. A exploração das mulheres em casamentos patriarcais continua até hoje. Sua versão mais grave – o casamento forçado – foi considerada uma forma de escravidão dos tempos modernos nas estatísticas da Organização Internacional do Trabalho, pela primeira vez, em 2017. A estimativa mais recente é de 2021 e indica que 22 milhões de pessoas, em todo o mundo, vivem em casamentos forçados. O estado patriarcal causou danos psicológicos duradouros. Ele fez com que a sua ordem baseada em gênero parecesse normal e até natural, da mesma forma que a opressão de classes e racial, historicamente, foi considerada natural pelos poderosos. Estas normas sociais transformaram-se nos estereótipos de gênero de hoje em dia, incluindo a ideia de que todas as mulheres são cuidadoras e acolhedoras e que os homens são naturalmente violentos e voltados para a guerra. Ao confinar deliberadamente as pessoas em papéis restritos de gênero, o patriarcado prejudicou não só as mulheres, mas também muitos homens. Sua intenção sempre foi apenas de servir aos extremamente poderosos – as elites sociais. Como o Morro dos Macacos do Zoológico de Londres nos anos 1920, este é um sistema corrompido, que fomentou desconfiança e abusos. Os movimentos pela igualdade de gênero em todo o mundo são sintomas das tensões sociais vividas pelos seres humanos nas sociedades patriarcais há séculos. Como escreveu a teórica política britânica Anne Phillips, “qualquer pessoa, com uma pequena chance, irá preferir a igualdade e a justiça à desigualdade e à injustiça”. Por mais assustadora que às vezes possa parecer a luta contra o patriarcado, é preciso lembrar que não há nada na nossa natureza que diga que não podemos ter uma vida diferente. A sociedade criada pelos humanos também pode ser reformulada pelos próprios humanos. *Angela Saini é jornalista especializada em ciências e autora de quatro livros. Esta reportagem é baseada na sua obra mais recente, “The Patriarchs: How Men Came to Rule” (Os patriarcas: como os homens assumiram o poder, em tradução livre), recentemente indicado para o Prêmio Orwell, no Reino Unido.
2023-06-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c97n175v0yzo
sociedade
Em que momento da história os humanos começaram a se beijar nos lábios
Beijar na boca é um ato tão natural e comum em várias sociedades atuais que é facilmente banalizado. Mas, na verdade, não está claro se as pessoas sempre se beijaram ou se isso só começou a acontecer em um passado relativamente recente. O fato é que a história e os motivos do beijo são mais complexos do que se poderia imaginar. Em artigo publicado na revista científica Science, analisamos quantidades significativas de evidências negligenciadas que desafiam as crenças atuais de que o primeiro registro de beijo romântico-sexual aconteceu na Índia, por volta de 1500 a.C.. Em vez disso, o beijo na boca foi documentado na antiga Mesopotâmia — atual Iraque e Síria — desde pelo menos 2500 a.C.. Fim do Matérias recomendadas Isso significa basicamente que a história registrada do beijo romântico-sexual é pelo menos 1.000 anos mais antiga do que a data mais antiga conhecida anteriormente. Antropólogos evolucionistas sugeriram que o beijo na boca evoluiu para avaliar a adequação de um parceiro em potencial, por meio de sinais químicos transmitidos na saliva ou na respiração. Outros propósitos sugeridos para o beijo incluem provocar sentimentos de apego e facilitar a excitação sexual. O beijo na boca também é observado entre nossos parentes vivos mais próximos, os chimpanzés e bonobos. Isso sugere que o comportamento pode ser muito mais antigo do que as primeiras evidências atuais em humanos. A população na antiga Mesopotâmia pode ter inventado a escrita, embora sua invenção no antigo Egito também tenha sido mais ou menos contemporânea. A escritura mesopotâmica mais antiga é de cerca de 3.200 a.C., da cidade de Uruk, agora no sul do Iraque. Essa escrita, chamada cuneiforme, era inscrita em tabuletas de argila úmida com o auxílio de estiletes de bambu em forma de cunha. Originalmente, a escrita era usada para fazer anotações em sumério, uma língua sem relação conhecida com nenhuma outra. Mais tarde, foi adaptada para escrever em acádio, uma antiga língua semítica. Embora os primeiros textos que encontramos estejam principalmente ligados a práticas administrativas e reflitam amplamente a mecânica da burocracia, as pessoas desenvolveram esse modo de escrita nos séculos subsequentes para incluir outros gêneros de textos. Na primeira metade do terceiro milênio antes de Cristo, mitos e feitiços se materializam nesses textos e, mais tarde, em documentos privados sobre pessoas comuns. Algumas das fontes mais antigas que mencionam o beijo na boca podem ser encontradas em textos mitológicos sobre atos dos deuses que datam de aproximadamente 2.500 a.C.. Em um dos exemplos mais antigos, descrito no chamado Cilindro de Barton, um artefato de argila da Mesopotâmia com inscrições cuneiformes, diz-se que duas divindades tiveram relações sexuais e se beijaram: "... com a deusa Ninhursag, ele teve relações sexuais. Ele a beijou. E preencheu seu ventre com o sêmen de sete gêmeos". Fontes posteriores, como provérbios, um diálogo erótico entre um homem e uma mulher e um texto jurídico, dão a impressão geral de que beijar no contexto do sexo, da família e da amizade era provavelmente uma parte comum da vida cotidiana em áreas centrais do antigo Oriente Médio, do final do terceiro milênio antes de Cristo em diante. Ainda assim, parece que o beijo romântico-sexual na rua pode ter sido malvisto, e é possível que fosse praticado preferencialmente entre casais casados. A sociedade provavelmente tinha uma série de normas sociais do tipo em relação ao comportamento ideal. Mas o fato de tais normas existirem aponta para uma prática generalizada. Evidências sugerem que o beijo na boca era praticado pelo menos no antigo Oriente Médio e na Índia. Isso se contrapõe a observações prévias sobre a história mais antiga de beijo da humanidade. Um manuscrito da Índia datado de cerca de 1.500 a.C., por exemplo, foi usado anteriormente para sugerir que o beijo foi trazido para o ocidente como uma prática cultural de lá. As evidências mais antigas da Mesopotâmia indicam que podemos descartar esse cenário. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Considerando a ampla distribuição geográfica do beijo romântico-sexual na Antiguidade, acreditamos que o beijo teve múltiplas origens. E mesmo que alguém procurasse um único ponto de origem do beijo, teria que buscá-lo milênios atrás, em tempos pré-históricos. Um estudo antropológico recente mostrou que o beijo romântico-sexual não é universal. No entanto, existe documentação escrita antiga sugerindo uma tendência para sua prática em sociedades com hierarquias sociais complexas. Isso levanta uma questão sobre o quão amplamente usado era o beijo sexual no mundo antigo, especialmente em sociedades que não podem ser rastreadas porque não usavam a escrita. Embora algumas sociedades possam não ter praticado o beijo romântico-sexual, argumentamos que ele devia ser conhecido na maioria das culturas antigas, devido a contatos culturais, por exemplo. Mas se pesquisas futuras mostrarem que o beijo na boca não pode ser considerado quase universal no mundo antigo, será interessante considerar as razões pelas quais essa não era uma prática comum. Surpreendentemente, a história e a cultura do beijo são complexas, com muitos aspectos ainda a serem revelados. * Sophie Lund Rasmussen é pesquisadora de pós-doutorado na Universidade de Oxford, no Reino Unido. Troels Pank Arbøll é professor assistente de assiriologia na Universidade de Copenhage, na Dinamarca.
2023-05-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ceqx124qywwo
sociedade
'Como lidei com sintomas de demência do meu pai'
A demência é uma destruidora de mundos. Ela apaga, altera e rouba as lembranças. Ela causa falta de concentração, confusão e mudanças de humor. Faz com que rostos familiares e ações do dia a dia que antes eram simples se tornem quebra-cabeças incompreensíveis. As pessoas que presenciam o declínio mental de um ente querido também são afetadas. Suas experiências variaram de isolamento social, estresse e maiores riscos à saúde até problemas financeiros. E, se o ente querido for seu pai ou sua mãe, a demência também refaz e reverte uma das conexões mais importantes das nossas vidas. Minha nova relação entre pai e filha começou no dia de Natal de 2019. Uma árvore de Natal artificial superlotada de enfeites ficava no canto da sala. Meu marido usava um casaco berrante. Nosso filho, em idade escolar, jogava cartas e disfarçava um bocejo. O avô dele – meu pai – servia-se do tradicional peru da ceia. Até ali, tudo muito natalino. A única diferença, desta vez, era o local: o Hospital Lister em Stevenage, uma cidade ao norte de Londres. Meu velho pai tinha então 87 anos de idade. Ele havia sido internado 24 horas antes, doente, confuso e vomitando o que pareciam ser grãos de café pretos. Como ele brincou mais tarde com as enfermeiras, o mal-estar não foi causado pela minha comida. Na verdade, os exames revelaram uma causa que nos assombrou a todos: overdose de analgésicos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Fiquei ainda mais surpresa com a pergunta feita pelo médico: "Há quanto tempo o seu pai sofre de demência?" "Até onde sei", respondi, "ele não tem demência". "A demência é um termo guarda-chuva para uma série de condições progressivas que afetam o cérebro", segundo Caroline Scates, vice-diretora de desenvolvimento de enfermeiras especializadas da organização Dementia UK. Essas mudanças no cérebro são causadas por diversas doenças. "Existem mais de 200 tipos diferentes de demência", afirma Scates. "As mais comuns são mal de Alzheimer, demência vascular, demência com corpos de Lewy, demência frontotemporal e demência mista – e todas elas podem estar presentes de formas variadas." A demência com corpos de Lewy, por exemplo, é causada por depósitos de proteínas no interior das células do cérebro, os chamados corpos de Lewy. Seus sintomas incluem alucinações, sonolência e desmaios. Mas o primeiro sintoma de demência normalmente observado pelas pessoas e pelos seus entes queridos é a perda de memória. Ela é causada pelos danos cerebrais. Quando as células do cérebro param de funcionar adequadamente, elas afetam os nossos pensamentos, a memória e a capacidade de comunicação. "Quando alguém sofre de demência, os médicos não têm nada a fazer para evitar a progressão da doença", explica Rosa Sancho, chefe de pesquisa da organização Alzheimer’s Research UK. "As pessoas podem tomar remédios, mas eles só irão aliviar os sintomas temporariamente." Como as doenças que causam a demência são atualmente incuráveis, as únicas soluções no momento são gerenciar os sintomas, fornecer um ambiente que suporte e estimule as funções cerebrais remanescentes e tomar medidas para reduzir o risco de desenvolver a demência antes que ela apareça. "A demência não é diagnosticada apenas para uma pessoa", segundo Scates. "O diagnóstico é fornecido para o cônjuge, parceiro, filho, família estendida e amigos, de forma que o impacto atinge toda a família. Cada diagnóstico que é feito muda a vida de diversas pessoas." Para quem cuida de pessoas com demência, a perda de memória pode transformar a vida diária em uma série infindável de mistérios esperando solução. No caso do meu pai, havia o mistério do motivo que o levou a ingerir uma overdose de analgésicos. Até que eu lembrei que, alguns dias antes, ele estava mancando quando fui buscá-lo na estação do trem. O que aconteceu é que ele havia quebrado o pé quando escorregou do meio-fio várias semanas antes. "Eles não engessaram?", perguntei. "Sim, mas estava me dando nos nervos", respondeu ele. "Estou bem." O médico do hospital imaginou que meu pai pudesse ter tomado algum remédio para a dor, mas que acabou tomando demais por acidente, por não se lembrar de já ter tomado a medicação. E a pasta do meu pai confirmou a teoria. Encontrei dentro dela mais de 10 embalagens de analgésicos – a maioria, vazias. É fácil deixar passar sinais de demência como sendo "momentos de velhice". Meu pai havia sempre sido esquecido e distraído – características que eu mesma herdei – de forma que eu relevava mentalmente seus lapsos de memória, convencida de que perder sempre o celular era normal para alguém na casa dos 80 anos. E, em outras áreas, ele estava indo muito bem para sua idade. Ele lia o jornal The Times todos os dias e assistia com frequência ao noticiário da televisão. Ele adorava discutir política, viajava para todos os lugares de ônibus ou trem, andava quase 10 km todos os dias e ia ao estádio assistir a todos os jogos, sempre que o seu time de futebol jogava em casa, o Everton – embora eu tenha minhas dúvidas sobre os benefícios desta atividade para sua saúde mental. É verdade que a família vinha ouvindo cada vez mais as mesmas histórias se repetirem. Houve uma vez em que ele saiu para as lojas da região e se perdeu, voltando para casa três horas depois. Mas não aconteceu nada e ele simplesmente riu da situação. Para muitos adultos que lidam com um pai ou parceiro esquecido, a aceitação pode parecer algo sensível e respeitoso. Mas ignorar os primeiros sinais tornou-se um grande problema de saúde em todo o mundo. A demência é subdiagnosticada. "Ou seja, apenas 38% dos casos em todo o mundo estão sendo diagnosticados." Ford atribui a inexistência de cura ou tratamento que altere a condição como uma das principais razões que levam as pessoas a não buscar um parecer médico, além do fato de ser um diagnóstico "sombrio e altamente estigmatizado". "Metade dos adultos britânicos afirma que esta é a condição que eles mais receiam", segundo ela, "e os médicos tendem a esperar o máximo possível antes de encaminhar [os pacientes] para o diagnóstico. Eles pisam com cuidado para ter certeza que o paciente está pronto para a longa bateria de testes e para ouvir o resultado, pois nem todo paciente quer ouvir se tem demência." E os índices de diagnóstico são ainda mais baixos nos países mais pobres. A desigualdade de acesso à assistência médica é uma das grandes responsáveis. Mas, mesmo em locais onde a demência pode ser diagnosticada com mais facilidade, as pessoas podem enfrentar negação ou achar que não há sentido no processo. Eles tentam justificar o comportamento cada vez mais irregular do seu ente querido, levados pelo medo de confrontar a realidade, que pode causar dor ou abalar a pessoa, sem falar na infelicidade com a inevitável perda da independência. Mas as evidências indicam que o diagnóstico precoce pode acabar sendo reconfortante e encorajador para os adultos com demência e suas famílias. E podem melhorar a qualidade de vida, permitindo que eles planejem a assistência e encontrem apoio para sua saúde mental e emocional. No caso da minha família, os sinais de alerta deveriam ter começado a soar quando meu pai insistiu, erroneamente, que um parente havia retirado todo o dinheiro da sua conta bancária. Não importava quantas vezes eu mostrasse para ele os extratos ou o acompanhasse pessoalmente ao banco para que ele tivesse certeza. A raiva e a agitação sempre voltavam – às vezes, antes mesmo de voltarmos para casa. "Desculpe perturbar você, Sue, mas acho que alguém está roubando meu dinheiro." Depois veio o ferro de passar que ficou ligado e queimou uma parte da tábua de passar. E o gás que ele não fechou completamente. Graças a Deus, ele não fumava. Em vez de dar atenção aos sinais, eu me tranquilizava ao saber que também eu havia cometido aqueles erros. Fui insensata, olhando pela lente do amor, sem aceitar o óbvio. Até que, no verão de 2019, um dos seus netos o colocou no trem pela manhã em Chester, perto da sua casa, para vir para Londres, perto de onde eu moro. E, infelizmente, aquele foi um dia caótico no transporte, com trens quebrados e centenas de pessoas abarrotando as estações, com trens atrasados ou cancelados. Eu o esperei na estação do trem em Londres, mas, 12 horas depois, ele ainda não tinha chegado. Liguei para a polícia e eles acabaram encontrando meu pai voltando para a casa dele às três horas da manhã. Quando consegui falar com ele ao telefone, meu pai me agradeceu alegremente pelo agradável fim de semana, mesmo sem nunca ter chegado à minha casa. Naquele dia, as placas tectônicas do nosso relacionamento se moveram, mas permaneci em negação. Meu pai sempre me deu seu amor incondicional e infinito apoio. Por isso, voltei inicialmente para minha posição normal – o modo filha mais velha. Depois de crescer com cinco irmãos mais novos, acabei formando, eu acho, uma mentalidade útil para ajudar meu pai, agora dependente. Eu organizava, supervisionava e verificava tudo, enviando lembretes frequentes de coisas a fazer. "É por isso que chamam você de mandona", bufava ele, provocando. Especialistas acreditam que conhecer o jogo complexo de sentimentos, como culpa, negação, luto, rivalidade e medo, nas famílias atingidas pela demência pode ajudar pacientes e seus parentes. "Observar mudanças de comportamento em alguém que você conhece há muito tempo pode ser estressante", afirma Scates. "Mas começar a aprender o que está por trás do comportamento pode ajudar a compreender o que aquela pessoa precisa ou o que ela está tentando comunicar." Depois da overdose acidental, marquei uma consulta com a médica do meu pai. E, com o consentimento dele, ela revelou que ele havia sido diagnosticado com Alzheimer em 2017. Meu pai havia mantido o diagnóstico em segredo de todos nós. Mas o quadro caótico que ele se esforçou tanto para esconder revelou-se no seu apartamento, em total desordem, repleto de contas que não foram pagas e avisos em vermelho das companhias fornecedoras. A geladeira foi a maior surpresa, abarrotada de comida estragada que ele havia comprado, mas se esquecido de cozinhar. Felizmente, meu pai já havia me confiado a capacidade de administrar seus assuntos em seu nome por procuração. Agora, eu precisava tomar decisões nos seus melhores interesses, o que significava redefinir a relação entre pai e filha. Eu tinha, de fato, a guarda dele. Ele era meu dependente. Eu me tornei mãe do meu pai. Mas uma barreira pessoal ainda permanecia. Meu pai sempre me disse: "Prometa, Sue, que nunca vai me colocar em uma casa de repouso". Escrever este parágrafo já me traz lágrimas e a dor física de não ter conseguido manter minha promessa. Primeiro, meu pai entrou em uma pequena casa de repouso para avaliar todas as suas necessidades. Foi em março de 2020. Dois dias depois, o Reino Unido anunciou seu primeiro lockdown. E, em vez de duas semanas, ele ficou lá por seis meses. Limpar seu apartamento foi deprimente. Era como retirar os pertences de alguém depois de ter morrido – mas ele estava vivo. Apenas não era a pessoa que um dia eu conheci. Era o Pai de Schrödinger. Minha culpa disparou quando a covid-19 se espalhou pelas casas de repouso no Reino Unido e em todo o mundo. Meu pai contraiu a doença e, surpreendentemente, livrou-se dela em questão de dias. Mas fiquei preocupada com sua saúde mental – um homem social que não podia mais ver a família ou os amigos pessoalmente durante o lockdown ou quando havia surtos de covid ou restrições na casa. Quando as visitas retornaram, viajei mais de 300 km para vê-lo por 30 minutos atrás de uma janela de vidro. Não pudemos nem segurar as mãos. "Sabemos desde antes da pandemia que o isolamento social é um fator de risco para a demência", afirma Sancho. "Quando as pessoas são socialmente ativas e conectadas com a comunidade, é bom para sua saúde mental, comunicação e habilidades sociais. O isolamento social não é bom para a saúde mental das pessoas." Mas também surgiam vislumbres de esperança – se não para nós, para as famílias que vierem a enfrentar a demência no futuro. Eu descobri que a Holanda desenvolveu a experiência pioneira da "cidade da demência" em 2009, formada por duas enfermeiras que queriam uma experiência diferente para seus próprios pais idosos. Mais de 150 pessoas com demência vivem agora em Hogeweyk, uma comunidade fechada que recria artificialmente o ambiente de uma pequena vila, com supermercado e restaurante cujos funcionários são cuidadores. No ano passado, uma empresa privada chamada Richmond Villages adotou o modelo holandês para construir a primeira "cidade da demência" no Reino Unido, ainda que em escala muito menor – seis apartamentos com cuidadores disponíveis para ajudar no que for necessário. "Tentamos fazer com que eles preparem sua própria comida no apartamento e lavem suas roupas, como se faz quando se mora em casa", segundo a diretora-gerente Philippa Fieldhouse. Esta independência trouxe benefícios surpreendentes, segundo Fieldhouse. "Eles ficam muito mais tranquilos e existe muito mais interação", ela conta. "Tivemos famílias que vieram e encontraram seus parentes cozinhando novamente e cuidando do jardim. Estamos descobrindo que podemos cuidar melhor deles quando estão contentes e mais bem instalados." Se você conhece alguém com demência, certamente ele fez você reavaliar o seu próprio estilo de vida e suas perspectivas para quando ficar mais idoso. Pode ser difícil aceitar que o seu pai ou mãe, que antes era ativo, saudável e sociável – como o meu – seja afetado. Por mais que eu agora lamente não ter sido mais mandona quando ele sempre se recusava a cuidar dos seus problemas de audição, um pensamento reconfortante é saber que, talvez, o seu estilo de vida tenha ajudado a manter o cérebro dele em boa saúde por mais tempo, mesmo que não tenha eliminado a ameaça. Até agora, meu pai continua a me reconhecer, ainda que as palavras surjam lentamente, como bolhas de sabão que sobem e se dissipam rapidamente no ar, enquanto ele enfrenta dificuldades para manter sua linha de pensamento. Mas estou ciente de que, um dia, meu rosto irá se tornar o de uma estranha. E seus gentis cuidadores já são sua família alternativa. Em uma visita recente, eu o encontrei em uma área comum ouvindo educadamente uma cantoria nostálgica, provavelmente destinada a despertar antigas lembranças. Uma das músicas era uma canção britânica popular do tempo da guerra, talvez desgastada, chamada "We’ll Meet Again" ("Nós nos encontraremos de novo"). Quando me viu, meu pai imediatamente se levantou, radiante. Andando em direção ao seu quarto, sugeri que tocássemos um dos seus CDs de ópera ou de música clássica. "Qualquer coisa", respondeu ele com um sorriso maroto, "desde que não seja 'We’ll Meet Again'." Foi então que, por um breve e maravilhoso momento, o pai que eu conheci havia voltado e eu, rapidamente, era sua filha mais uma vez. Seus sintomas podem variar e incluem alterações do humor, mudanças de personalidade, confusão, falta de concentração e perda de memória. Não existem exames para a demência. O que existe é a avaliação cognitiva, normalmente por assistentes de saúde, da memória de longo e de curto prazo, capacidade de comunicação, concentração, capacidade de atenção e consciência de tempo e lugar. A avaliação é especialmente importante – mesmo que, atualmente, não haja cura, o diagnóstico precoce traz diversos benefícios. Ele permite que as pessoas criem um ambiente seguro de apoio, planejem os cuidados necessários e gerenciem certos sintomas.
2023-05-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cm5lgrlz79go
sociedade
Por que Brasil tem maior número de advogados por habitantes do mundo
Quando Brenda Moura escolheu cursar Direito, não imaginava que estava prestes a ingressar em uma carreira tão procurada pelos brasileiros. Recém-aprovada no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ela diz que somente se deu conta quando passou a exercer a advocacia. “Confesso que deu um frio na barriga, porque de fato tem muito aluno de Direito e advogado no Brasil. Mas acredito que, quando você mostra seu diferencial, você consegue seu espaço. Inclusive, hoje a internet ajuda muito na divulgação do nosso trabalho.” Assim como Brenda, cerca de 120 mil brasileiros fazem todos os anos a prova para poder exercer a advocacia. Não é à toa que o Brasil tem a maior proporção de advogados por habitantes do mundo. No país, existe um profissional da advocacia para cada 164 brasileiros, enquanto, nos Estados Unidos, por exemplo, há um advogado para cada 253 habitantes. Fim do Matérias recomendadas Um estudo da OAB, com base em dados da International Bar Association (IBA), aponta que, em números absolutos de advogados, só a Índia fica à frente do Brasil, com pouco mais de 2 milhões de advogados. Entretanto, como a população do país asiático é muito maior do que a brasileira (1,4 bilhão de indianos frente a 212,7 milhões de brasileiros), a Índia tem uma proporção menor de advogados em relação ao número de habitantes: um advogado para cada 700 habitantes. O grande número de profissionais da advocacia no Brasil fica claro em mais comparações com outros países, a começar pela vizinha Argentina. Em uma população de 46,1 milhões de pessoas, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU), existem 126 mil advogados — número informado pela Federación Argentina de Colegios de Abogados (FACA). Logo, uma proporção bem mais tímida do que a brasileira: 1 advogado para 365 pessoas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em Portugal, entre os 10 milhões de habitantes, 16 mil são profissionais da advocacia: 1 advogado para cada 625. O Reino Unido tem, por sua vez, 146 mil advogados em uma população de 68,8 milhões de pessoas — 1 advogado para 471 habitantes. No Brasil, segundo a OAB, 1,3 milhão de brasileiros exercem regulamente a advocacia como profissão. Em 2008, o Brasil tinha um advogado para cada 322 habitantes. Eram 571,3 profissionais da advocacia entre 183,9 milhões de brasileiros. Na época, o país ocupava a terceira posição no ranking mundial entre os países com o maior número de advogados em relação ao número de habitantes, atrás da Índia e dos Estados Unidos. O número de advogados, hoje em dia, somente não é maior porque, em média, 45% dos 120 mil alunos que prestam o Exame da Ordem todos os anos, escolhem outras profissões ou ingressam em concursos públicos, de acordo com estudo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES). O apelido "terra dos advogados" foi conquistado, na última década, após o Brasil alcançar primeira posição no ranking de países com maior número de advogados em relação ao número de habitantes, principalmente, pelo crescimento do número de cursos de Direito. Para ter uma ideia, em 1995, o Brasil tinha 235 cursos na área. Em 2023, são 1.896 — um aumento de 706%. Só nos últimos cinco anos, foram criados 697 cursos. Segundo a OAB, o Brasil é o país com o maior número de cursos de Direito no mundo. Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam diversas razões para o sucesso desta formação profissional entre os brasileiros. O primeiro é relacionado à tradição histórica. Isso porque a graduação na área jurídica foi uma das primeiras oferecidas no país. “As profissões ligadas ao conhecimento jurídico sempre tiveram um apelo social importante. Ao lado de Medicina e Engenharia, Direito permitia àquelas e àqueles que se bacharelavam o exercício de profissões social e financeiramente mais valorizadas como advocacia”, aponta Antonella Galindo, vice-diretora da Faculdade de Direito do Recife. “Além disso, o que parece ter ocorrido de 1988 para cá, com a promulgação da Constituição, foi um prestígio ainda maior desse tipo de conhecimento. Com menos autoritarismo e arbítrio (comum em ditaduras) e maior necessidade de construção de argumentos e teses sólidas e convincentes na perspectiva de um Estado democrático de direito, profissionais jurídicos tiveram maior valorização”, diz a professora. Claudinor Roberto Barbiero, presidente da comissão especial de ensino jurídico da OAB de São Paulo, também aponta a procura cada vez maior de brasileiros por concursos públicos. “Em um país de muitas incertezas políticas e econômicas, é cada vez maior o número de brasileiros que buscam nos concursos públicos a tão sonhada estabilidade e, normalmente, os concursos públicos com melhor remuneração são da área jurídica.” Diferente de outros cursos de graduação, em que apenas a formação superior permite que o graduado exerça a profissão, no Direito, o estudante formado é apenas um bacharel que precisa ser aprovado em um concurso público ou no Exame da OAB para exercer as profissões jurídicas mais conhecidas. “Quem cursa Direito, por exemplo, pode ser advogado, mas seguir outras funções ligadas à aplicação da lei, como de juiz, promotor do ministério público e alguns cargos da segurança pública, como o de delegado de polícia”, explica Barbiero. Também é apontada por especialistas, entre os motivos, a forte midiatização do Poder Judiciário, principalmente, após a Operação Lava Jato, que despertou o interesse dos brasileiros pelas profissões da área. “Agora, o que temos visto muito nas instituições de ensino é um número crescente de brasileiros procurando o Direito como uma segunda formação superior. Hoje, por exemplo, temos muitos presidentes de grandes empresas que são formados na área jurídica”, afirma Bruno Coimbra, assessor da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES). Com o aumento exponencial de cursos de Direito no país, a OAB criou um levantamento próprio para aferir sua qualidade. O último, realizado em 2022, mostra que dos 1.896 cursos aptos a funcionar no território brasileiro, apenas 11% foram considerados como de boa qualidade. “Infelizmente, é um número preocupante. Não tenho dúvida que, se outros ramos do conhecimento fizessem o mesmo levantamento sobre os cursos do Brasil, teríamos um diagnóstico parecido”, diz Marco Aurélio de Lima Choy, presidente da Comissão Nacional do Exame de Ordem. Para fazer a avaliação, a OAB leva em conta os resultados de aprovação dos alunos matriculados da instituição de ensino nos últimos Exames da Ordem e na prova do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade). Cruzando esses dados, é gerado um indicador de qualidade que varia de 0 a 10. Se a nota for de 7 para cima, o curso recebe o Selo OAB. Apesar de a OAB fazer sua própria aferição, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão ligado ao Ministério da Educação (MEC), é o responsável no Brasil pela avaliação da qualidade dos cursos de graduação e pós-graduação. No entanto, gestores educacionais argumentam que o modelo está ultrapassado e necessita de uma reformulação, com o objetivo de melhor aferir a qualidade dos cursos oferecidos no país. “Esse é um problema antigo que atinge todo o ensino superior, público e privado. Existe um sistema de avaliação executado pelo Inep, mas que é ultrapassado. Hoje, ele pouco avalia e poucas informações oferecem sobre a qualidade dos cursos”, ressalta Rodrigo Capelato, diretor executivo da Semesp, que representa instituições de ensino superior do Brasil. Choy aponta que o Brasil pode ganhar ainda mais cursos de Direito nos próximos anos, porque está em discussão no Ministério da Educação a autorização para que instituições de ensino superior do país também ofereçam a formação na modalidade à distância, conhecida pela sigla EAD. A OAB é contrária à autorização de novos cursos de Direito na modalidade à distância. “Nossa preocupação não é quantitativa, mas qualitativa", diz Choy. "Se no Brasil, em média, apenas 20% dos candidatos passam na primeira fase da OAB, que é um exame sem concorrência e que o candidato necessita acertar no mínimo mais da metade da prova para ser aprovado, significa que primeiro precisamos melhorar os cursos presenciais que já oferecemos do que oferecer mais vagas". Atualmente, o curso, que somente pode ser oferecido na modalidade presencial, concentra 750 mil matrículas. “Diferente da Medicina, o Direito é um curso mais fácil e de menor custo de ser implantado pelas instituições de ensino superior. Isso também ajuda a explicar esse aumento do número de cursos nos últimos anos”, diz Capelato. Por outro lado, entidades que representam instituições de ensino superior defendem a abertura de cursos de direito na modalidade à distância, desde que os métodos de avaliação de todos os cursos oferecidos no país sejam revistos. “Por vezes, quando se crítica o EAD, esse julgamento normalmente se restringe à modalidade. Mas, na prática, o que precisamos discutir é a importância da fiscalização da qualidade dos cursos de graduação do país”, afirma Coimbra. Para Antonio Freitas, pró-reitor da Faculdade Getúlio Vargas (FGV), a qualidade do ensino jurídico independe do curso ser na modalidade presencial ou com mediação tecnológica. “Existem cursos bons e ruins, independente da modalidade. A mediação tecnológica, no Direito, ajudará os profissionais competentes e penalizará os profissionais medíocres. Ou seja, a tecnologia bem usada alavancará os cursos e os egressos”, defende Freitas. O Ministério da Educação disse, por meio de not, que a oferta de cursos de educação superior, bem como o aumento de vagas para os já existentes, depende de autorização do órgão e seguem fluxos estabelecidos pelo Decreto nº 9.235, de 15 de dezembro de 2017. “Os cursos de Direito dependem de manifestação do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil para serem ofertados. Uma vez autorizados, os cursos continuam a ser monitorados periodicamente pelas autoridades educacionais, em especial com base em avaliações produzidas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira”, informou. Segundo o MEC, caso o curso seja considerado como de desempenho insatisfatório, poderá ser celebrado um protocolo de compromisso para a superação das fragilidades detectadas e, caso haja denúncias de irregularidades e de não atendimento do protocolo de compromisso, é iniciado um processo de supervisão. Sobre a oferta de cursos de Direito na modalidade à distância, a pasta ressaltou que instituiu iniciativas de diálogo com a sociedade civil sobre o tema. “A Portaria MEC número 398, de 8 de março de 2023, instituiu Grupo de Trabalho para coletar subsídios para instruir a regulamentação da oferta dos cursos de direito, odontologia, enfermagem e psicologia, na modalidade de (EAD). Os encontros do GT estão na última rodada (ocorreram quatro encontros em cada área) e têm contado com a participação de representantes de outros órgãos públicos e de uma ampla gama de entidades representativas dessas formações de nível superior e de associações dos setores público e privado de ensino superior.”
2023-05-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl52ql8y1jgo
sociedade
As 3 etapas da inteligência artificial e por que a 3ª pode ser fatal
Desde o seu lançamento no final de novembro de 2022, o ChatGPT, o chatbot que usa inteligência artificial (também chamada de IA) para responder perguntas ou gerar textos sob demanda dos usuários, tornou-se o aplicativo de internet que mais cresce na história. Em apenas dois meses atingiu 100 milhões de usuários ativos. O popular aplicativo TikTok levou nove meses para atingir esse marco. E para o Instagram dois anos e meio, segundo dados da empresa de monitoramento de tecnologia Sensor Town. "Nos 20 anos que acompanhamos a internet, não conseguimos lembrar de um crescimento mais rápido de um aplicativo de internet para o consumidor", disseram analistas do banco suíço UBS, que relataram o recorde em fevereiro. A enorme popularidade do ChatGPT, desenvolvido pela empresa OpenAI, com o apoio financeiro da Microsoft, gerou todo tipo de discussões e especulações sobre o impacto que a inteligência artificial generativa já está tendo e terá em nosso futuro próximo. É o ramo da IA ​​que se dedica a gerar conteúdo original a partir de dados existentes (geralmente retirados da internet) em resposta a instruções de um usuário. Fim do Matérias recomendadas Os textos (de ensaios, poesia e piadas a códigos de computador) e imagens (diagramas, fotos, obras de arte de qualquer estilo e muito mais) produzidos por IAs geradoras como ChatGPT, DALL-E, Bard e AlphaCode - para citar apenas alguns dos mais conhecidos - são, em alguns casos, tão indistinguíveis do trabalho humano, que já foram utilizadas por milhares de pessoas para substituir o seu trabalho habitual. Este texto poderia ter sido digitado por uma máquina e você provavelmente não saberia. O fenômeno levou a uma revolução nos recursos humanos, com empresas como a gigante da tecnologia IBM anunciando que deixará de contratar pessoas para preencher cerca de 8.000 vagas que podem ser gerenciadas pela IA. Um relatório do banco de investimentos Goldman Sachs estimou no final de março que a IA poderia substituir um quarto de todos os empregos humanos hoje, embora também crie mais produtividade e novos empregos. Se todas essas mudanças representam uma sobrecarga para você, prepare-se para um fato que pode ser ainda mais desconcertante. E é que, com todos os seus impactos, o que estamos vivenciando agora é apenas a primeira etapa do desenvolvimento da IA. Segundo os especialistas, o que pode vir em breve - a segunda etapa - será muito mais revolucionário. E a terceira e última, que pode ocorrer logo depois disso, é tão avançada que alterará completamente o mundo, mesmo à custa da existência humana. As tecnologias de IA são classificadas por sua capacidade de imitar características humanas. 1. Inteligência Artificial Estreita (ANI) A categoria mais básica de AI é mais conhecida por sua sigla: ANI, para Artificial Narrow Intelligence É assim chamado porque se concentra estritamente em uma única tarefa, realizando trabalhos repetitivos dentro de um intervalo predefinido por seus criadores. Os sistemas ANI geralmente são treinados usando um grande conjunto de dados (por exemplo, da Internet) e podem tomar decisões ou realizar ações com base nesse treinamento. Um ANI pode igualar ou exceder a inteligência e a eficiência humanas, mas apenas naquela área específica em que opera. Um exemplo são os programas de xadrez que usam IA. Eles são capazes de vencer o campeão mundial dessa disciplina, mas não podem realizar outras tarefas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É por isso que também é conhecido como "IA fraca" . Todos os programas e ferramentas que usam IA hoje, mesmo os mais avançados e complexos, são formas de ANI. E esses sistemas estão por toda parte. Os smartphones estão repletos de aplicativos que usam essa tecnologia, desde mapas GPS que permitem localizar qualquer lugar do mundo ou saber o tempo, até programas de música e vídeo que conhecem seus gostos e fazem recomendações. Também assistentes virtuais como Siri e Alexa são formas de ANI. Como o buscador Google e o robô que limpa sua casa. O mundo dos negócios também usa muito essa tecnologia. É usado nos computadores internos dos carros, na fabricação de milhares de produtos, no mundo financeiro e até nos hospitais, para fazer diagnósticos. Sistemas ainda mais sofisticados, como carros sem motorista (ou veículos autônomos) e o popular ChatGPT, são formas de ANI, pois não podem operar fora do intervalo predefinido por seus programadores e, portanto, não podem tomar decisões por conta própria . Eles também não têm autoconsciência, outro traço da inteligência humana. No entanto, alguns especialistas acreditam que sistemas programados para aprender automaticamente ( aprendizado de máquina ), como ChatGPT ou AutoGPT (um "agente autônomo" ou "agente inteligente" que usa informações do ChatGPT para executar determinadas subtarefas de forma autônoma) podem passar para o próximo estágio de desenvolvimento. 2. Inteligência Artificial Geral (AGI) Esta categoria – Inteligência Artificial Geral – é alcançada quando uma máquina adquire habilidades cognitivas no nível humano. Ou seja, quando você consegue realizar qualquer tarefa intelectual que uma pessoa faz. O AGI também é conhecido como "IA forte" . Tal é a crença de que estamos prestes a atingir esse nível de desenvolvimento, que em março passado mais de 1.000 especialistas em tecnologia pediram às empresas de IA que parassem de treinar, por pelo menos seis meses, os programas mais poderosos do que o GPT-4, a versão mais recente do ChatGPT. "Sistemas de IA com inteligência que competem com os humanos podem representar riscos profundos para a sociedade e a humanidade", alertaram em carta aberta o cofundador da Apple, Steve Wozniak, e o proprietário da Tesla, SpaceX Neuralink, entre outros. os co-fundadores da Open AI antes de renunciar ao conselho devido a desentendimentos com a liderança da empresa). A carta em que mais de 1.000 especialistas pedem para parar a inteligência artificial por ser uma "ameaça à humanidade". Na carta, publicada pela organização sem fins lucrativos Future of Life Institute, os especialistas afirmam que, se as empresas não concordarem rapidamente em interromper seus projetos, "os governos devem intervir e instituir uma moratória" para que medidas de segurança possam ser projetadas e implementadas. Embora isso seja algo que - por enquanto - não aconteceu, o governo dos Estados Unidos convocou os proprietários das principais empresas de IA - Alphabet, Anthropic, Microsoft e OpenAI - para acordar "novas ações para promover a inovação responsável da IA". "A IA é uma das tecnologias mais poderosas do nosso tempo, mas para aproveitar as oportunidades que ela apresenta, devemos primeiro mitigar seus riscos", disse a Casa Branca em comunicado em 4 de maio. O Congresso dos EUA, por sua vez, convocou o CEO da OpenAI, Sam Altman , na terça-feira para responder a perguntas sobre o ChatGPT. Durante a audiência no Senado, Altman disse que é "crucial" que sua indústria seja regulamentada pelo governo, pois a IA se torna "cada vez mais poderosa". Carlos Ignacio Gutiérrez, pesquisador de políticas públicas do Future of Life Institute, explicou à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, que um dos grandes desafios que a IA apresenta é que "não existe um colegiado de especialistas que decida como regulá-la, como acontece, por exemplo , com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC)". Na carta dos especialistas, eles definiram quais eram suas principais preocupações. "Devemos desenvolver mentes não humanas que possam eventualmente nos superar em número, ser mais espertos que nós, nos tornar obsoletos e nos substituir?", eles perguntaram. "Devemos arriscar perder o controle de nossa civilização?" O que nos leva ao terceiro e último estágio da IA. 3. Superinteligência Artificial (ASI) A preocupação desses cientistas da computação tem a ver com uma teoria bem estabelecida de que, quando chegarmos à AGI, logo depois chegaremos ao último estágio do desenvolvimento dessa tecnologia: a Superinteligência Artificial, que ocorre quando a inteligência sintética supera a humana. O filósofo da Universidade de Oxford e especialista em IA, Nick Bostrom, define superinteligência como "um intelecto muito mais inteligente do que os melhores cérebros humanos em praticamente todos os campos, incluindo criatividade científica, sabedoria geral e habilidades sociais". A teoria é que, quando uma máquina atinge inteligência equivalente à dos humanos, sua capacidade de multiplicar essa inteligência exponencialmente por meio de seu próprio aprendizado autônomo fará com que ela nos ultrapasse amplamente em pouco tempo, atingindo o ASI. “O ser humano para ser engenheiro, enfermeiro ou advogado tem que estudar muito. O problema do AGI é que ele é imediatamente escalável”, diz Gutiérrez. Isso se deve a um processo chamado autoaperfeiçoamento recursivo que permite que um aplicativo de IA "se aprimore continuamente". Embora haja muito debate sobre se uma máquina pode realmente adquirir o tipo de inteligência ampla que um ser humano possui - especialmente quando se trata de inteligência emocional - é uma das coisas que mais preocupa aqueles que acreditam que estamos perto de alcançar o AGI. Recentemente, o chamado "padrinho da inteligência artificial" Geoffrey Hinton, pioneiro na investigação de redes neurais e aprendizado profundo que permitem que as máquinas aprendam com a experiência, assim como os humanos, alertou em entrevista à BBC que poderíamos estar próximos desse marco. "Atualmente (as máquinas) não são mais inteligentes do que nós, até onde vejo. Mas acho que em breve poderão ser ", disse o homem de 75 anos, que acabou de se aposentar do Google. Extinção ou imortalidade Existem, em geral, dois campos de pensamento em relação à ASI: há os que acreditam que essa superinteligência será benéfica para a humanidade e os que acreditam no contrário. Entre eles estava o famoso físico britânico Stephen Hawking, que acreditava que as máquinas superinteligentes representavam uma ameaça à nossa existência. “O desenvolvimento da inteligência artificial completa pode significar o fim dos humanos”, disse ele à BBC em 2014, quatro anos antes de morrer. Uma máquina com esse nível de inteligência "descolaria por conta própria e se redesenharia em um ritmo crescente", disse ele. "Os humanos, que são limitados pela lenta evolução biológica, não seriam capazes de competir e seriam superados", previu. No entanto, do lado oposto, há previsões mais positivas. Um dos maiores entusiastas da ASI é o autor e inventor futurista americano Ray Kurzweil , pesquisador de IA do Google e cofundador da Singularity University do Vale do Silício ("singularidade" é outro nome para a era em que as máquinas se tornam superinteligentes). Kurzweil acredita que os humanos serão capazes de usar IA superinteligente para superar nossas barreiras biológicas, melhorando nossas vidas e nosso mundo. Em 2015 chegou a prever que até o ano de 2030 os humanos conseguirão alcançar a imortalidade graças aos nanobots (robôs extremamente pequenos) que atuarão dentro de nossos corpos, reparando e curando qualquer dano ou doença, inclusive as causadas pela passagem do tempo. Em sua declaração ao Congresso na terça-feira, Sam Altman, da OpenAI, também estava otimista sobre o potencial da IA, observando que ela poderia resolver "os maiores desafios da humanidade , como a mudança climática e a cura do câncer". No meio estão pessoas, como Hinton, que acreditam que a IA tem um enorme potencial para a humanidade, mas acham o atual ritmo de desenvolvimento, sem regras e limites claros, "preocupante". Em um comunicado enviado ao The New York Times anunciando sua saída do Google, Hinton disse que agora se arrependia do trabalho que havia feito porque temia que "maus agentes" usassem IA para fazer "coisas ruins". Questionado pela BBC, ele deu este exemplo de um "pesadelo". "Imagine, por exemplo, que algum mau ator como [o presidente russo Vladimir] Putin decidiu dar aos robôs a capacidade de criar seus próprios sub-objetivos." As máquinas poderiam eventualmente "criar subobjetivos como: 'Preciso obter mais energia', o que representaria um risco existencial", observou ele. Ao mesmo tempo, o especialista britânico-canadense disse que, a curto prazo, a IA trará muito mais benefícios do que riscos, por isso “não devemos parar de desenvolvê-la”. "A questão é: agora que descobrimos que funciona melhor do que esperávamos alguns anos atrás, o que fazemos para mitigar os riscos de longo prazo de coisas mais inteligentes do que assumirmos o controle?" Guitérrez concorda que a chave é criar um sistema de governança de IA antes de desenvolver uma inteligência que possa tomar suas próprias decisões. "Se essas entidades são criadas com motivação própria, o que significa quando não estamos mais no controle dessas motivações?", questiona. O especialista aponta que o perigo não é apenas que uma AGI ou ASI, seja por motivação própria ou controlada por pessoas com "maus objetivos", inicie uma guerra ou manipule o sistema financeiro, produtivo, infraestrutura energética, transporte ou qualquer outro sistema que agora é informatizado. Uma superinteligência poderia nos dominar de uma forma muito mais sutil, adverte. "Imagine um futuro onde uma entidade tenha tanta informação sobre cada pessoa no planeta e seus hábitos (graças às nossas buscas na internet) que poderia nos controlar de maneiras que não perceberíamos", diz ele. "O pior cenário não é que existam guerras entre humanos e robôs. O pior é não percebermos que estamos sendo manipulados porque compartilhamos o planeta com uma entidade muito mais inteligente do que nós."
2023-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw5kyywz074o
sociedade
Por que Coreia do Sul paga jovens reclusos para saírem de casa
Em 2019, Yoo Seung-gyu deixou seu pequeno apartamento pela primeira vez em cinco anos. O homem de 30 anos primeiro fez uma faxina em seu "apartamento bagunçado", com ajuda de seu irmão. E saiu em direção ao mar para uma viagem de pesca, com outros reclusos que conheceu por meio de uma organização sem fins lucrativos. "Foi uma sensação estranha estar no mar, mas ao mesmo tempo muito revigorante após a reclusão. Parecia surreal, mas com certeza eu estava lá. Eu estava existindo", disse Yoo. Um número cada vez maior de jovens sul-coreanos está optando por se isolar, se retirando totalmente de uma sociedade que não trata bem aqueles que não correspondem a suas expectativas. Essas pessoas reclusas são conhecidas como hikikomori, um termo cunhado pela primeira vez no Japão na década de 1990 para descrever a reclusão radical praticada por adolescentes e jovens adultos. Fim do Matérias recomendadas Na Coreia do Sul, que enfrenta a taxa de fertilidade mais baixa do mundo e um declínio da produtividade, isso se tornou uma preocupação séria. Tanto que as autoridades estão oferecendo aos jovens reclusos um dinheiro mensal extra para convencê-los a sair de casa. Pessoas de nove a 24 anos de famílias de baixa renda podem receber até 650 mil won (cerca de R$ 2,4 mil) como ajuda de custo mensal. Eles também podem solicitar subsídios para uma série de serviços, incluindo saúde, educação, aconselhamento, serviços jurídicos, atividades culturais e até "correção de aparência e cicatrizes". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esses incentivos visam "permitir que jovens reclusos recuperem suas vidas diárias e se reintegrem à sociedade", segundo o Ministério da Igualdade de Gênero e Família da Coreia do Sul. O governo define esses jovens reclusos como "adolescentes que vivem em um espaço confinado por um longo período de tempo, isolados do mundo exterior e têm dificuldade significativa em levar uma vida normal". No entanto, gastar dinheiro com esse problema não faz com que ele desapareça, dizem jovens que se isolaram. Yoo agora dirige uma empresa que apoia jovens reclusos chamada Not Scary — e leva uma vida bem diferente dos dias em que não saía de seu quarto nem mesmo para usar o banheiro. No entanto, sua jornada para abandonar os anos de reclusão foi cheia de altos e baixos. Ele se retirou do mundo exterior pela primeira vez quando tinha 19 anos, saiu da reclusão por dois anos para prestar o serviço militar obrigatório e depois se isolou novamente por dois anos. Park Tae-hong, outro ex-recluso, disse que o autoisolamento pode ser "reconfortante" para algumas pessoas. "Quando você tenta coisas novas, é emocionante, apesar da ansiedade. Mas quando você está apenas no seu quarto, não precisa sentir isso. No entanto, não é bom no longo prazo", diz Park, de 34 anos. Cerca de 340 mil pessoas de 19 a 39 anos no país — ou 3% das pessoas nessa faixa etária — são consideradas solitárias ou isoladas, segundo o Instituto Coreano de Saúde e Assuntos Sociais. A pesquisa também mostrou uma proporção crescente de famílias de uma pessoa só na Coreia do Sul, representando cerca de um terço de unidades familiares inteiras em 2022. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que tiveram "mortes solitárias" no país aumentou. O dinheiro, ou a falta dele, não é o que leva os jovens à reclusão. "Eles vêm de origens financeiras variadas", disse Park. "Eu me pergunto por que o governo conecta reclusão com situação financeira. Nem todo jovem recluso está tendo dificuldades financeiras." "Indivíduos que precisam desesperadamente de dinheiro podem ser forçados a se adaptar à sociedade. Existem muitos casos diferentes." Tanto ele quanto Yoo, por exemplo, eram sustentados financeiramente pelos pais quando estavam em reclusão. O que é comum entre os jovens reclusos é a crença de que eles não corresponderam aos padrões de sucesso da sociedade — ou de suas famílias. Alguns se sentem desajustados porque não estão seguindo carreiras convencionais, enquanto outros podem ter sido criticados por notas acadêmicas baixas. Yoo disse que entrou na universidade porque era o desejo de seu pai, mas desistiu depois de um mês. "Ir para a universidade me deixava com vergonha. Por que não pude ter a liberdade de escolher [meu curso de estudo]? Eu me sentia muito infeliz", disse ele. Ele também diz que nunca sentiu que poderia falar com seus pais sobre isso. "A 'cultura' da vergonha na Coreia torna mais difícil para os reclusos falarem sobre seus problemas", disse Yoo. "Um dia, cheguei à conclusão que minha vida está errada e comecei a me isolar." No seu isolamento, ele não ia nem ao banheiro porque não queria ver a família. Para Park, a pressão social foi agravada por um relacionamento tenso com sua família. "Minha mãe e meu pai brigavam com frequência desde que eu era criança. Isso também afetou minha vida na escola — a escola na Coreia às vezes pode ser muito difícil. Eu não conseguia cuidar de mim mesmo", disse Park. Ele começou a fazer terapia em 2018, quando tinha 28 anos, e agora está retomando a vida social aos poucos. Os jovens na Coreia do Sul se sentem oprimidos porque a sociedade espera que as pessoas sejam de uma certa maneira em uma certa idade, diz Kim Soo Jin, gerente sênior da Seed:s, agência especializada em programas para hikikomori. "Quando eles não conseguem corresponder a essas expectativas, eles pensam 'eu fracassei, 'cheguei tarde demais para isso' — esse tipo de atmosfera social deprime sua autoestima e pode eventualmente isolá-los da sociedade", afirma ela. A Seed:s administra um espaço físico onde os reclusos podem descansar, ter momentos de silêncio e buscar aconselhamento. Seus programas são abertos a todos, independentemente de seu nível de renda. Para Kim, uma sociedade que oferece mais variedade de empregos e oportunidades de educação aos jovens seria mais acolhedora para indivíduos reclusos, diz Kim. "Jovens reclusos querem um local de trabalho onde possam pensar 'Ah, eu posso fazer isso, não é tão difícil. Acho que posso aprender mais aqui e depois entrar no mundo real'", disse ela. Park também espera que um dia a sociedade coreana possa ser mais receptiva aos jovens com interesses que estão fora do usual. "No momento, apenas os obrigamos a estudar. Precisamos dar aos jovens a liberdade de encontrar coisas de que gostem e nas quais sejam bons", diz ele. Os subsídios podem ser um "primeiro passo" para resolver o problema, mas alguns acreditam que o dinheiro pode ser melhor empregado. E que o financiamento de organizações e programas voltados para jovens reclusos, oferecendo-lhes aconselhamento ou treinamento profissional, teria um impacto mais amplo. "O próximo passo deve ser preparar programas nacionais gratuitos e de alta qualidade para jovens reclusos. No momento, há um número muito limitado de programas e centros onde jovens reclusos podem participar e sentir que pertencem à sociedade", diz Kim Hye Won, diretora-chefe do PIE for Youth, organização que oferece programas para jovens reclusos e seus cuidadores. Ainda assim, ela elogia o fato de o governo sul-coreano estar tentando resolver o problema na adolescência. "É bom ver que [as novas medidas] focam nos adolescentes. A adolescência é o momento de ouro para evitar a reclusão, porque a maioria dos adolescentes faz parte de uma comunidade, como a escola. Depois disso, fica muito difícil encontrar essas pessoas. " Yoo disse que emergiu do isolamento gradualmente. O que o ajudou, ele conta, foi conhecer ex-reclusos por meio de um grupo de reabilitação agora extinto chamado K2 International. "Depois que recebi ajuda de outras pessoas, comecei a perceber que este não é apenas um problema meu, mas um problema da sociedade", disse. "E finalmente consegui sair da reclusão lentamente."
2023-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4njg42zw7po
sociedade
O escândalo sexual que derrubou apresentador de TV e chocou Reino Unido
Um escândalo sexual derrubou um dos principais apresentadores de TV britânico, considerado o "rei das manhãs", e chocou o Reino Unido. A revelação de que Phillip Schofield, de 61 anos, apresentador do matutino This Morning, da emissora ITV, teve um affair com um funcionário mais jovem e mentiu para encobri-lo vem dominando as manchetes do país nos últimos dias, e gerando críticas sobre o ambiente de trabalho no programa. Por meio de um comunicado, Schofield anunciou que deixou a ITV "com efeito imediato" na semana passada. Segundo ele, o relacionamento com o colega mais novo foi “imprudente, mas não ilegal”. Em declaração ao tabloide Daily Mail, Schofield disse: "Ao contrário do que se especula, embora eu tenha conhecido o homem quando ele era adolescente e tenha sido chamado a ajudá-lo a entrar na televisão, foi só depois que ele começou a trabalhar no programa que se tornou mais do que apenas uma amizade." Ele se desculpou por mentir para colegas, empregadores, mídia e público. Fim do Matérias recomendadas Advogados que representam Schofield confirmaram à BBC que os dois se conheceram quando a outra pessoa tinha 15 anos, mas enfatizaram que não houve relação sexual até que ele começasse a trabalhar no This Morning. Ele tinha 18 anos quando entrou no programa. Um porta-voz da ITV disse estar "profundamente desapontado com as confissões" feitas por Schofield e confirmou que a emissora cortou todos os laços com o apresentador. Schofield havia deixado o posto de apresentador no This Morning há duas semanas após relatos de uma briga com a co-apresentadora Holly Willoughby. Ele, no entanto, seguiu contratado da emissora até seu pedido de demissão após a confissão do affair com o funcionário mais jovem. Apesar disso, Schofield alegou que sua saída do programa não tem relação com o caso com o colega. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O apresentador de TV ainda era casado com sua esposa Stephanie Lowe na época do relacionamento. Eles se separaram em 2020, depois que Schofield anunciou que era gay. Schofield disse que estava "muito, muito arrependido" por ter sido infiel à esposa e por mentir para seus colegas, agentes, empregadores, amigos, a mídia e o público. O apresentador de TV disse que iria refletir sobre seu "muito mau julgamento tanto em participar do relacionamento quanto em mentir sobre isso". Um porta-voz da ITV disse: "As relações que temos com aqueles com quem trabalhamos são baseadas na confiança. Phillip nos deu garantias que ele agora reconhece serem falsas e nos sentimos muito decepcionados." A confissão do apresentador ocorre em meio a uma grande especulação nas redes sociais ao longo de vários meses sobre seus relacionamentos pessoais. A agência de talentos YMU também cortou relações com Schofield após seu anúncio sobre o caso. Em uma declaração à BBC, o apresentador de TV disse: "É com o mais profundo pesar que, após 35 anos sendo agenciado pela YMU, concordei em deixar de ser representado por eles com efeito imediato". Outras personalidades da TV britânica sugeriram que a ITV tem perguntas a responder sobre quanto sabia sobre o relacionamento e quais medidas tomou. Em entrevista à BBC no domingo, a ex-secretária de cultura Nadine Dorries disse: "Como aquele jovem conseguiu um emprego na ITV — quais foram os processos envolvidos e quais foram os processos de salvaguarda que estavam em vigor para alguém que era tão jovem?" Por vários anos, rumores circulavam sobre a natureza do relacionamento de Schofield com o funcionário mais jovem. O apresentador se assumiu gay ao vivo em fevereiro de 2020. A essa altura, o jovem já havia deixado o This Morning e estava trabalhando em outro programa da ITV. A ITV diz que o caso foi "categoricamente negado" por ambas as partes durante uma investigação de 2020, e nenhuma evidência além de "boatos" foi encontrada. No início deste ano, o irmão de Schofield, Timothy, foi condenado a 12 anos de prisão depois de ser considerado culpado de abusar sexualmente de um menino. Schofield apresentava o This Morning desde 2002, com Willoughby se juntando a ele como co-apresentadora em 2009. Willoughby está de férias, mas deve retornar ao programa na próxima segunda-feira, 5 de junho. Em uma declaração nas redes sociais, ela se distanciou de seu ex-colega de elenco e amigo, comentando que foi "muito doloroso" descobrir que Schofield mentiu sobre o relacionamento. O principal patrocinador do This Morning, uma empresa de venda de carros usados, anunciou que não vai renovar o contrato multimilionário. Outras empresas também estariam temerosas de associar suas marcas com o programa. Segundo o tabloide Daily Mail, personalidades também estariam recusando convites para participar do programa. Em meio às dúvidas sobre se o This Morning vai sobreviver à crise, a ITV negou, por enquanto, quaisquer planos de retirar o programa do ar.
2023-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72j4gmr0geo
sociedade
A história da ilha com maior renda per capita dos EUA
Fisher Island, uma pequena ilha ao sul de Miami Beach, tem 90 hectares e é um dos lugares mais exclusivos dos Estados Unidos. O acesso só pode ser feito por meio de balsa ou helicóptero, mas uma vez lá dentro não é preciso sair: tem supermercado, escola até a 8ª série, campo de golfe de 9 buracos, piscinas e tudo o que uma família rica pode buscar. As 561 pessoas que — de acordo com o Censo dos EUA de 2020 — chamam Fisher Island de lar têm renda per capita mais alta do que em qualquer CEP dos EUA: US$ 2,2 milhões por ano, o equivalente a R$ 11 milhões. Para viver na ilha, tem que ser milionário. Os preços dos imóveis variam de US$ 3,5 milhões (R$ 17,5 milhões) a US$ 40 milhões (R$ 200 milhões), e um projeto em desenvolvimento espera cobrar US$ 90 milhões (R$ 450 milhões) por uma cobertura. A área é tão exclusiva que celebridades como a apresentadora de televisão Oprah Winfrey e a atriz Julia Roberts já tiveram casas lá. Fim do Matérias recomendadas No entanto, como acontece muitas vezes, essa ilha de luxo nem sempre foi o centro de exclusividade que é hoje. "A Fisher Island fazia parte de Miami Beach, mas foi separada no início dos anos 1900, quando o governo dragou um canal de águas profundas — conhecido como Government Cut — no Canal Biscayne", disse Paul George, historiador residente do Museu de História de Miami, à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). O canal abriu caminho para o porto da cidade de Miami, hoje conhecida como "capital mundial dos cruzeiros", e deixou um pequeno acúmulo de areia sobre o qual se desenvolveu a ilha. "Era muito menor do que é hoje", acrescenta George, "com cerca de 16 hectares. Agora acrescentaram muito, estão chegando a cerca de 90". Um de seus primeiros proprietários notáveis ​​foi Dana A. Dorsey, o primeiro milionário negro da Flórida, que fez fortuna construindo moradias populares para afro-americanos no bairro então conhecido como Colored Town, agora Overtown, no noroeste de Miami. "O sonho dele era desenvolvê-lo como um resort negro para visitantes negros", explica George. "Miami era muito segregada e o que ele queria era que os negros tivessem suas próprias praias e infraestrutura, e evitar todos os tipos de problemas com as autoridades de Miami". Mas o projeto nunca sairia do papel. Não pelas regras da época. Em entrevista à emissora pública norte-americana NPR, Timothy Barber, diretor executivo da Black Archives (ONG dedicada à preservação da memória histórica afro-americana), explicou que, para Dorsey, era impossível mover os recursos necessários, incluindo materiais e funcionários, para a ilha. “Sabe-se que ele teve problemas porque a ilha ficava no lado leste dos trilhos da ferrovia [que marcam a separação entre leste e oeste em Miami] e Henry Flagler [considerado o fundador de Miami] havia designado o lado leste para os brancos e o oeste para os negros", disse Barber. No fim das contas, Dorsey teve que vender Fisher Island para o construtor que lhe daria seu nome atual, Carl Fisher. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Fisher tornou-se milionário graças à sua obsessão pela velocidade. Nascido na pobreza, começou a fazer fortuna ajudando seus irmãos a vender motos competindo com elas: foi campeão de corridas e, com seus ganhos, foi um dos primeiros a comprar um carro na capital do automobilismo americano, Indianápolis. O gosto dele pelos motores era tão grande que conseguiu vislumbrar o papel que o automóvel teria no desenvolvimento dos Estados Unidos durante o século 20. Esteve envolvido na construção de obras titânicas como a Lincoln Highway — a primeira rodovia intercontinental nos Estados Unidos, que ligava Nova York e San Francisco —, a Dixie Highway — que ligaria Miami Beach, no sul dos Estados Unidos, a Chicago — e o autódromo de Indianápolis, considerado o templo do automobilismo nas Américas. Fisher comprou a ilha de Dorsey em 1919 com intenção de construir um porto marítimo para atender navios de cruzeiro. Mas os planos dele mudaram quando, por amor aos motores, conheceu William K. Vanderbilt II, membro da família que foi a mais rica dos Estados Unidos na segunda metade do século 19. Em um acordo assinado em 1927, Fisher entregou 2,8 dos 8,5 hectares da ilha que pertenciam a Vanderbilt, em troca de um iate de 265 pés conhecido como "Eagle". Os livros de história dizem que Fisher propôs o negócio a Vanderbilt com a frase: "Minha ilha por seu barco". Os Vanderbilts construíram sua mansão na ilha até o final da Segunda Guerra Mundial, quando a venderam para outro milionário excêntrico aficionado pela velocidade, "O rei das lanchas rápidas", Garfield Wood, que a usou para trabalhar em projetos de carros elétricos e barcos militares até 1963. Daquele momento em diante, até a década de 1980, Fisher Island serviu como centro de quarentena, sede da Escola de Biologia Marinha da Universidade de Miami e local de armazenamento de uma companhia petrolífera. "Em meados da década de 1980, a ilha estava a caminho de se tornar uma das comunidades mais luxuosas dos Estados Unidos", explica o historiador George à BBC Mundo. Um consórcio comprou o terreno e, refletindo o interesse pelo luxo e exclusividade que caracterizou a era do presidente Ronald Reagan, abriu o Fisher Island Club em 1987. "É quase o primeiro anúncio de que Miami se tornaria um lugar de luxo, e era óbvio que começaria a atrair ricos e famosos", diz George. O desenvolvimento que Fisher Island viu desde então a tornou um dos dez CEPs mais exclusivos do país (o código postal é 33109): segundo dados da Bloomberg, em 2015, a renda média dos residentes na ilha era de US$ 2,5 milhões (R$ 12,5 milhões) por ano. A ilha possui mercado próprio, escola até a oitava série, centro médico, posto de bombeiros e resgate, campo de golfe de 9 buracos, sete restaurantes, marina para receber iates com mais de 76 metros de comprimento, agentes de segurança próprios e uma frota de quatro balsas que transportam passageiros e carros 24 horas por dia. “A idade média dos moradores da ilha diminuiu após a pandemia de covid, com o grande fluxo de pessoas que vieram de Nova York”, disse à BBC Mundo um vendedor profissional de imóveis na ilha, que preferiu não se identificar para manter a privacidade. "São pessoas bem conectadas, gerações mais jovens, famílias com crianças. Eles adoram a segurança, que tem tudo o que precisam e o que desejam." "Você não precisa sair da ilha para nada", diz ele. “Do jeito que as coisas estão hoje, você pode pedir o Instacart [serviço de entrega de mercado a domicílio] e eles entregam na balsa”, acrescenta, garantindo que, com o aumento de pessoas trabalhando remotamente, é mais fácil viver em uma ilha, especialmente se você estiver a uma balsa de um dos centros urbanos de crescimento mais rápido nos EUA. Embora projetos tenham sido considerados no passado para integrar Fisher Island com a cidade por meio de uma ponte, a passagem de enormes cargueiros e navios de cruzeiro saindo do porto tornou a tarefa difícil. É uma tarefa que, neste momento, parece não ser necessária. "A ilha teve tantos guardiões por mais de um século e todos eles tiveram sua própria visão maravilhosa de imóveis", conclui o corretor. "Isso só a melhorou e a tornou cada vez mais bonita para as pessoas que gostam desse estilo de vida."
2023-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw010y860x5o
sociedade
O homem que quis eliminar as palavras para nos comunicarmos melhor
Você consegue ler o que está escrito aqui em cima? Bem, sem instruções, fica difícil. Mesmo assim, em 1971, uma professora de crianças com paralisia cerebral descobriu que esta era uma linguagem muito mais fácil para seus alunos do que qualquer outro método de comunicação. (Confira no pé desta reportagem a resposta.) Um engenheiro químico havia desenvolvido essa linguagem várias décadas antes. Seu sonho era diminuir o ódio existente no mundo e conseguir nada menos do que a paz mundial usando seus códigos. Sua experiência de vida havia demonstrado que as palavras podem ser manipuladas para que sejam convertidas em ferramentas letais. Por isso, ele pensou que seria melhor substituí-las por símbolos tão simples que qualquer pessoa, de qualquer lugar ou idade, pudesse compreender seu verdadeiro significado. O engenheiro químico em questão chamava-se Karl Kasiel Blitz. “Nasci em 5 de setembro de 1897, em uma Babel da antiga Áustria, onde 20 nacionalidades diferentes se odiavam porque pensavam e falavam em diferentes idiomas”, afirmou ele em discurso na Biblioteca Nacional da Austrália, em 1971. “Desde cedo, na minha infância, quis inventar algo que pudesse ajudar a humanidade”, prosseguiu ele. “Em 1938, Hitler invadiu a Áustria e eles me levaram para os campos de concentração da Alemanha. Mais do que nunca, percebi que a nossa humanidade precisava de uma nova ideia para superar os desastres causados pela linguagem.” Para ilustrar como as palavras podem ser perigosas, ele citava o primeiro verso de um poema escrito em alemão no ano de 1841, que se tornou slogan da Alemanha em 1922: “Deutschland über alles” (“Alemanha acima de tudo”). Blitz se lembrava de ter ouvido a frase para expressar uma visão de paz e unidade. No século 19, era um chamado para que todos os principados alemães separados se reunissem em um só país. “Alemanha acima de tudo” significava que a nação estava acima dos Estados – que o país, como um todo, era mais importante do que cada uma das suas frações. Mas, no século 20, o mundo viu como os nazistas transformaram a frase em um slogan sobre a superioridade e dominação racial: a Alemanha acima de todos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os nazistas marcaram Blitz para toda a vida. “Quando o visitei na Austrália, em 1980, ele me disse que ainda acordava no meio da noite encharcado de suor e gritando porque continuava em Dachau e Buchenwald [campos de concentração nazistas]”, contou seu amigo e admirador Brian Stride no documentário The Symbols of Bliss (“Os símbolos de Bliss”), da BBC Rádio 4. “Na parede do seu quarto, havia um bracelete real da SS [o braço paramilitar do partido nazista alemão] em uma moldura”, prossegue Stride. “Ao lado, havia uma foto de uma longa fila de prisioneiros de campos de concentração com pás, marchando para algum local de trabalho distante.” “Ele me viu olhando e disse: ‘sim. Tenho ali para me lembrar que não importa o quanto a vida seja difícil, nunca será tão difícil como naquele momento.’ E tudo o que ele fez veio dessa experiência.” Mas, antes dos seus feitos, Blitz precisou sair de Buchenwald – o que ele só conseguiu, em parte, porque era exímio tocador de bandolim. Um guarda que gostava de música ficou tão impressionado que permitiu a ele, secretamente, consultar um advogado, que trabalhou com Claire – que viria a ser sua esposa – e conseguiu tirá-lo dali. Em 1939, Blitz voou para Londres e passou sua primeira noite de liberdade no Exército da Salvação. “Um rei não poderia ter uma cama mais luxuosa”, escreveu ele. Quando acordou, ele se dedicou a salvar Claire que, embora não fosse judia como ele, também enfrentava dificuldades. Mas, antes, ele precisou superar um curioso obstáculo. O engenheiro havia acabado de chegar a Londres junto com as blitze, como eram chamados os bombardeios da Alemanha nazista sobre cidades importantes da Inglaterra. “Os britânicos me disseram que eu não poderia sair por aí com um nome como Blitz, de forma que mudei o bélico Blitz pelo pacífico Bliss”, afirmou ele. E, dali em diante, Blitz passaria a chamar-se Charles Bliss – sobrenome que, em inglês, significa “felicidade”. Os nazistas impediram Claire de viajar para encontrá-lo em Londres. Bliss passou meses visitando diversas embaixadas, tentando encontrar um país que os recebesse, mas foi rejeitado por todas elas. Até que, finalmente, ele encontrou uma solução: a cidade chinesa de Xangai – uma espécie de arca de Noé dos tempos modernos. Enquanto a maioria dos países do mundo restringia a entrada dos judeus que tentavam fugir dos nazistas, a China foi um dos poucos lugares que aceitaram recebê-los sem necessidade de visto. “E ali, na China, em 1942, encontrei meu propósito de vida”, contaria Bliss posteriormente. Bliss ficou encantado com a escrita chinesa. “Conheci a maior nação do mundo, constituída por uma mistura de inúmeras tribos e raças que falavam idiomas diferentes”, contou ele. “Seu vínculo comum era a escrita única.” Alguns dos ideogramas da escrita chinesa têm características pictográficas. E foi o símbolo que significa “homem” – 人, rén – que fez com que Bliss tivesse uma revelação. Ele percebeu que o ideograma parecia uma pessoa e, mesmo sem saber como se diz “homem” em chinês, ele entendia o conceito. Bliss estava eliminando a palavra e avançando diretamente para o seu significado. O engenheiro havia encontrado uma forma de criar um meio de comunicação à prova de demagogos, que distorcessem as palavras para obscurecer a verdade. Ele poderia fazer com que o extermínio nunca mais fosse chamado de “solução” para convencer as pessoas a aceitar genocídios, como fizeram os nazistas. Assim nascia o que ele chamou de semantografia – ou os símbolos de Bliss, como ficaria conhecido o sistema. Por ser eminentemente visual, o sistema atualmente é comparado com os emojis. Mas, para o especialista em linguística Vyv Evans, o sistema de Bliss vai mais além. “Os emojis são totalmente pictográficos”, explica ele. “Qualquer novo emoji deve se parecer, mais ou menos, com o que ele representa.” “Existe muito menos relação visual tangível entre um símbolo de Bliss e o que ele representa, por uma boa razão: você pode representar um sorriso com um smiley, mas como representar ideias mais abstratas, como ‘utopia’, com um emoji? Muito difícil”, prossegue Evans. “Para desenvolver uma capacidade similar à da linguagem, é preciso ter ideogramas – e é aí que realmente brilha a simbologia de Bliss”, conclui o especialista. Nada melhor do que um exemplo para entender melhor. O “V” invertido nos símbolos indica teto e, para Bliss, significa proteção. Assim, colocando-o sobre o símbolo de homem ou mulher, você indica “pai” ou “mãe”. “Os conceitos são transferidos de um símbolo para outro e isso permite ter essa riqueza de comunicação”, explicou à BBC Janice Murray, especialista em Comunicação Aumentativa e Alternativa da Universidade Metropolitana de Manchester, no Reino Unido. “Depois de aprender os símbolos fundamentais, você pode combiná-los como quiser para representar uma ideia diferente.” “Bliss não inventou apenas o sistema de representação visual”, acrescenta Evans. “Uma inovação ainda maior talvez tenha sido a nova espécie de conceitualização trazida pelo sistema, em termos de como dividimos o mundo em nossas mentes com fins de comunicação.” “O que ele fez foi interpretar que a natureza é dividida em três: matéria ou coisas materiais, energia ou ações e valores humanos ou avaliações mentais”, segundo Evans. “Estas distinções são marcadas, respectivamente, por um pequeno símbolo quadrado, um pequeno símbolo de cone e um pequeno ‘V’ ou cone invertido.” “E acredito que aqui é onde mora a beleza: esses símbolos podem ser colocados em cima de qualquer outro símbolo, transformando-o em uma coisa, ação ou opinião. Foi assim que Bliss inventou um sistema de gramática visual.” É fácil imaginar que inventar algo deste tipo exige um imenso esforço do seu idealizador. Bliss empregou-se em um trabalho manual em Xangai para não se esgotar intelectualmente. E trabalhou incansavelmente à noite por sete anos para conseguir publicar seu livro Semantography (“Semantografia”), em 1949. Entre 1937 e 1945, o Japão havia ocupado a China. Durante a ocupação, Bliss foi internado em um gueto e, posteriormente, ele emigrou para a Austrália. Claire e ele enviaram mais de seis mil cartas para bibliotecários, políticos e acadêmicos de todo o mundo, apresentando o sistema. Mas, apesar dos elogios de algumas pessoas, como o matemático e filósofo britânico Bertrand Russell, a maioria os ignorou. O casal sofreu décadas de rejeição e penúria. Claire – o amor da vida de Bliss, de quem ele cuidava pessoalmente enquanto trabalhava e escrevia – morreu em 1961. Quatro anos depois, ele publicou a segunda edição da sua Semantografia. E nada aconteceu. Apesar de todos os seus esforços e da beleza do sistema, a nova linguagem não se popularizou. Até que, um dia, a história sofreu uma reviravolta inesperada. Em 1971, Bliss recebeu uma carta da professora canadense Shirley McNaughton. Ela lecionava para crianças com paralisia cerebral, que afeta as cordas vocais e a fala, mas não a inteligência. A professora trabalhava no então chamado Centro de Crianças Deficientes de Ontário (hoje, o Hospital de Reabilitação Infantil Holland Bloorview, em Toronto). Procurando uma forma de comunicação para as crianças, McNaughton encontrou o único exemplar do livro de Bliss existente no Canadá. “Seus símbolos são tão claros e simples que foram um sucesso imediato [com as crianças]. Elas aprendiam assim que os viam”, declarou ela à BBC. “Foi a coisa mais emocionante do mundo!”, prossegue a professora. “Uma das mães contou que o momento mais feliz que ela teve com seu filho foi quando ele chegou em casa e disse ‘eu te amo’.” “Terry era muito criativo e, para o Halloween, começou a dizer com símbolos de Bliss que fantasia queria usar”, ela conta. “Ele apontou para os símbolos de ‘criatura’, ‘noite’, ‘bebe’ e ‘sangue’... ele havia encontrado a forma de se expressar: queria ser Drácula.” Até então, as crianças só tinham imagens de banheiro, comida, bebida e de uma cama para indicar o que eles precisavam. Mas, com o sistema de Bliss, vieram os pronomes, verbos e adjetivos... até uma forma de expressar opiniões e fazer brincadeiras. Era a primeira vez que aquelas crianças conseguiam realmente se comunicar com o mundo. “Uma mãe chegou às lágrimas quando me disse que sua filha havia caído da cama à noite e contou, com Bliss, que havia sonhado que conseguia caminhar e, por isso, estava tentando sair da cama”, contou a professora. Foi por isso que McNaughton e seus colegas quiseram entrar em contato com Bliss. E, quando conseguiram, o criador dos símbolos foi visitá-los. Ele chegou com seu bandolim, cantou e todos festejaram. Foi um momento alegre, mas que, infelizmente, não durou muito tempo. A dor, a solidão e as dificuldades econômicas cobravam sua conta. Bliss já não era o mesmo personagem excêntrico, alegre e sonhador. Em comparação com suas ambições, a semantografia era um fracasso. Ela nunca foi adotada como forma de evitar conflitos internacionais. Charles Bliss morreu frustrado em 1985. Mas sua criação ajudou pacientes de todo o mundo com incapacidade de fala, incluindo pessoas autistas, afásicas e vítimas de acidentes cerebrovasculares. Um desses pacientes, Peter Zein, tem paralisia cerebral e se comunica por meio do sistema de Bliss. Ele contou à BBC que, quando usou o sistema pela primeira vez, sentiu “que não era mais incapacitado, já que conseguia usar o inglês normal”. “Se não tivesse essa linguagem, eu possivelmente estaria em um centro de assistência. Ele me proporcionou uma bela vida”, conta Zein. Ah! Quase íamos esquecendo! A frase que aparece na imagem no alto desta reportagem significa: “penso, logo existo”.
2023-05-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gvn2d6g3eo
sociedade
Discriminação nos aluguéis, redes sociais e futebol: o problema do racismo na Espanha escancarado por agressões a Vini Jr.
"Sinto muito pelos espanhóis que discordam, mas hoje, no Brasil, a Espanha é conhecida como um país de racistas." As palavras são do jogador de futebol brasileiro do Real Madrid Vinícius Júnior após o jogo de domingo (21/5) contra o Valência, onde o jogador de 22 anos tentou chamar a atenção do árbitro para os insultos racistas que recebeu dos torcedores locais. Mais tarde, Vinícius publicou em suas redes sociais imagens de outros ataques racistas que recebeu em diferentes estádios espanhóis nos últimos dois anos. A primeira reação do presidente da liga espanhola de futebol, Javier Tebas, foi crítica ao jogador em uma publicação no Twitter: "Já que os que deveriam não te explicam o que a @LaLiga pode fazer em casos de racismo, tentamos explicar para vocês, mas você não apareceu em nenhuma das duas datas combinadas que solicitou. Antes de criticar e insultar a @LaLiga, você precisa se informar adequadamente". Mas depois disse que não pretendia atacar Vinícius e pediu desculpas se sua intenção não foi compreendida, "principalmente no Brasil". Fim do Matérias recomendadas O debate foi além do futebol e chegou até a reunião do G7 em Hiroshima, no Japão, onde o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, disse que "fascismo e racismo" não podem dominar os estádios de futebol. Com base nessa polêmica, muitas pessoas denunciaram sua experiência como migrantes ou não brancos na Espanha nas redes sociais ou na imprensa, uma série de pequenas e grandes discriminações e ataques, muitas vezes cotidianas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os insultos de um torcedor de futebol refletem o clima predominante em um país? É possível determinar se um país é racista? Essas perguntas não têm uma resposta simples, principalmente se não houver informações precisas sobre esse fenômeno social. Ao contrário de países como o Reino Unido, onde o Estado coleta informações detalhadas sobre a origem étnica ou racial de seus habitantes por razões estatísticas e para promover a diversidade, na Espanha isso não acontece. Há muito poucos dados confiáveis ​​sobre a diversidade racial do país, mas poucas pesquisas atualizadas que captam globalmente as atitudes ou pensamentos de seu povo. Registra denúncias de crimes de ódio e, entre elas, as relacionadas a racismo e xenofobia. Em 2021, por exemplo, o Ministério do Interior contabilizou 638 atos de racismo, 24% a mais do que em 2019, antes da pandemia. No entanto, apenas 12,8% das pessoas que viveram uma situação discriminatória por motivos raciais ou étnicos apresentaram queixa, denúncia ou reclamação, de acordo com o estudo "Percepção da discriminação com base na origem racial ou étnica pelas suas potenciais vítimas em 2020" elaborado pelo Conselho para a Eliminação da Discriminação Racial ou Étnica (Cedre), subordinado ao Ministério da Igualdade. As vítimas não denunciam porque acreditam que o caso permanecerá impune, porque desconhecem seus direitos ou por medo de que isso possa causar problemas para elas. Um em cada quatro, segundo o estudo, também não o faz porque minimiza ou mesmo justifica esta situação de discriminação. "Dizem que o racismo na Espanha não está mais normalizado como antes porque há pessoas, governos, instituições conscientes que o denunciam. Mas mesmo nós que sofremos com isso o normalizamos. Nós nos endurecemos para que da próxima vez não doa tanto, mas sempre há uma próxima vez que dói", escreveu nesta semana, em uma coluna de opinião no jornal Jornal Público, a escritora peruana Gabriela Wiener, que mora na Espanha há anos e descreveu uma agressão racial que sofreu recentemente em uma reunião social. Sukaina Fares, que trabalha em uma imobiliária, conta à BBC News Mundo que, por exemplo, um em cada três apartamentos alugados vem com um "filtro racista". Muitos dos proprietários não querem imigrantes ou não-brancos. Recentemente, um proprietário desistiu no dia da assinatura do contrato porque, embora tivesse previamente combinado por telefone com a potencial inquilina, uma médica e mãe solteira, "na hora de assinar, ele viu que ela era negra e não quis." "E não é só o aluguel. Há muito racismo nos bancos com as hipotecas. Os imigrantes têm muito mais dificuldade", denuncia Fares. O racismo sofrido por Vinícius, por Wiener, ou o que Fares conta não é novidade. O jogador de futebol camaronês Pierre Weibó, que passou por Osasuna, Mallorca e Leganés, relembrou esta semana em entrevista ao jornal esportivo Relevo como foi difícil, por exemplo, a pergunta que seu filho lhe fez no início dos anos 2000: "Papai, por que as pessoas fazem esses barulhos quando você toca na bola?" A questão vai além do futebol, explica David Moscoso Sánchez, professor de Sociologia da Universidade de Córdoba, à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. "Em geral, há uma difusão ocorrendo na Espanha e uma normalização de certos valores racistas que pareciam ter desaparecido e que estão encontrando um lugar de conforto no espaço do futebol", disse por telefone. Os estádios de futebol, na opinião dele, "parecem blindados da aplicação de regras, não apenas da cortesia social, convenção social e convivência, mas também de regras legais. No estádio de futebol, as pessoas podem fazer o que quiserem: elas insultam o árbitro, os jogadores... e nunca acontece absolutamente nada. É um espaço de livre expressão desses valores". O problema, acrescenta Moscoso, não vem do esporte, mas "de um viveiro ideológico alimentado pela extrema-direita nos últimos anos, que se traduz num ódio intolerável aos estrangeiros, imigrantes ou aos que têm uma cor de pele diferente". Quando os líderes políticos de determinados grupos transmitem valores racistas, adverte a investigadora, "abrem as portas a um certo reconhecimento ou aceitação social desses discursos". Atualmente, "estamos vivendo um retrocesso", como reconheceu Antumi Toasijé, presidente do Cedre, à BBC News Brasil. "O racismo tem uma longa tradição na Espanha", diz Toasijé, e "à medida que a extrema direita ganha terreno, todos os elementos são criados para o crescimento exponencial do racismo em nossa sociedade, e a qualquer momento pode haver uma explosão". Como em muitos outros países, esse terreno fértil se multiplicou com o surgimento das redes sociais. A Espanha não é um país racista, explica a jornalista e consultora de comunicação Carmela Ríos à BBC News Mundo, "mas é um país onde começamos a ver uma grande parte do discurso de ódio que se espalha pelas redes sociais há pelo menos cinco anos, e com crescente impunidade". Embora grandes empresas de tecnologia como Meta ou Google afirmem fazer um esforço para moderar esse conteúdo odioso e de desinformação - "menos Twitter, onde não há mais moderação e onde o ódio corre como espuma", diz Ríos - não é suficiente. "Nem todos os espanhóis são racistas, mas há um agenciamento social e tecnológico suficientemente poderoso e pouco monitorado para que isso aconteça", acrescenta. Ríos, que há anos analisa as redes sociais, destaca a idade dos detentos no caso dos insultos racistas a Vinícius: "são todos muito jovens, é impressionante. E essa é uma das demonstrações de como o discurso de ódio dentro de certos grupos é uma tendência socialmente aceitável, que também é realimentada nos canais de comunicação de algumas comunidades, como os grupos ultras de futebol". Precisamente, um estudo de novembro de 2022 sobre percepções de jovens e racismo do Centro Reina Sofía sobre Adolescência e Juventude (que entrevistou 1.200 jovens entre 15 e 29 anos) concluiu que, embora a maioria das pessoas tivesse opiniões muito distantes a partir de estereótipos e preconceitos racistas, um em cada quatro jovens entrevistados concordava com declarações racistas. A imprensa também contribui para essa percepção. Uma das áreas mais estudadas é a do anticiganismo, profundamente enraizada na Espanha. Segundo sucessivos estudos realizados pelo Instituto Romano de Estudos Sociais e Culturais, os meios de comunicação contribuíram consciente e inconscientemente para divulgá-la, perpetuando estereótipos ou insistindo em determinada linguagem ("clã", "patriarca", "briguentos"... ) para descrever as comunidades ciganas. Embora não haja muitas estatísticas sobre o racismo, as percepções sobre a imigração têm sido mais estudadas e, embora dêem apenas uma visão parcial da discriminação racial na Espanha, servem para orientar uma tendência. Segundo a pesquisa "Explicando atitudes calmas em relação aos imigrantes na Espanha", elaborada pelo Instituto de Estudos Sociais Avançados do CSIC no outono de 2020, um quinto dos espanhóis sentia antipatia em relação aos imigrantes como um todo. Essa proporção subiu para um em cada três no caso dos norte-africanos, enquanto os latino-americanos tiveram um nível de simpatia muito maior. O estudo entrevistou 2.344 pessoas de nacionalidade espanhola. A Espanha, explica Sebastian Rinken, pesquisador principal do estudo CSIC à BBC News Mundo, vivenciou um boom migratório muito importante nos últimos anos e, apesar disso, "a digestão coletiva dessa mudança demográfica foi muito tranquila. Em geral, há uma boa convivência nos bairros e as crianças dividem centros educativos sem nenhum problema, por exemplo". “Na sociedade espanhola, se olharmos para a mudança que ocorreu desde os anos 1990 até aqui, especialmente durante o grande boom, não houve conflito social em torno da questão da diversidade, praticamente nenhum”, diz Rinken. Essa também é a experiência de Zoubida Boughaba, que trabalha com grupos de mulheres e chegou à Espanha há mais de 30 anos. "Existem pessoas racistas, é claro, é algo universal, mas não sinto racismo no meu dia a dia. Costumo pensar que é classismo, ignorância ou medo do outro", explicou à BBC. A legislação espanhola reconhece o direito à igualdade perante a lei e à não discriminação, protegidos tanto pela Constituição de 1978 como por diversas regulamentações específicas nacionais e regionais sobre esportes, educação, trabalho ou liberdade religiosa, assim como disposições específicas do Código Penal por crimes de ódio. Em 2022, porém, foi aprovada uma lei específica para combater esse tipo de discriminação, a "Lei 15/2022, de 12 de julho, prevê a igualdade de tratamento e a não discriminação", também conhecida na Espanha como "Lei Zerolo", em homenagem do deputado e militante pelos direitos LGTBQIA+ Pedro Zerolo, que foi a principal figura a promovê-la desde a apresentação dela em 2008. A lei, que prevê multas que vão dos 300 (R$ 1.620) aos 500 mil euros (R$ 2,7 milhões), estabelece que ninguém pode ser discriminado em razão do nascimento, origem racial ou étnica, sexo ou religião, convicção ou opinião, idade, deficiência, orientação ou identidade sexual, expressão de gênero, doença, estado de saúde, situação socioeconômica ou qualquer outra condição ou circunstância pessoal ou social. O Conselho para a Eliminação da Discriminação Racial (Cedre) disponibiliza um telefone gratuito para atender pessoas que sofreram racismo ou têm conhecimento de situações de discriminação racial. As consultas também podem ser feitas por WhatsApp, e-mail ou pessoalmente em um dos 23 escritórios existentes em diferentes pontos da Espanha. O serviço presta assessoria jurídica gratuita, informação às vítimas sobre os recursos públicos existentes ou, por exemplo, resolução de conflitos, se as partes assim desejarem, com mediação. No entanto, o Ministério da Igualdade acredita que a legislação atual não é suficiente, por isso querem aprovar a Lei contra o Racismo o mais rápido possível, explica a pasta à BBC. Essa proposta, da qual existe apenas um anteprojeto, mas que ainda não se tornou projeto de lei nem chegou ao Conselho de Ministros, visa, entre outras coisas, combater o discurso de ódio nos meios de comunicação e redes sociais. Pretende ainda estabelecer protocolos contra o assédio racista em centros educativos e que empresas com mais de 250 trabalhadores devem elaborar planos contra o racismo. No âmbito do esporte, existe uma lei específica de 2007 contra a violência, o racismo, a xenofobia e a intolerância. Também há um órgão estatal: a "Comissão Estatal contra a Violência, o Racismo, a Xenofobia e a Intolerância no Esporte". No entanto, como explica David Moscoso, "uma coisa é o aparelho legislativo existir e outra coisa é ele ser aplicado de maneira efetiva". No caso de Vinícius Júnior, por exemplo, "foram 10 denúncias em dois anos, mas não deram em nada, como em outras situações semelhantes. E a tendência em alguns casos é culpar o jogador, dizendo que ele provoca muito. É como se uma mulher fosse estuprada e a culpassem. Há um problema mais grave aqui", acrescenta o sociólogo da Universidade de Córdoba.
2023-05-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gplkzxg33o
sociedade
As habilidades profissionais que inteligência artificial ainda não consegue replicar
Desde o início da Revolução Industrial, surgem ameaças de que novas máquinas — de teares mecanizados a microchips — podem se apropriar dos empregos humanos. Na maior parte das vezes, os humanos levaram a melhor. Mas, agora, já podemos ver a inteligência artificial onipresente no horizonte. E especialistas afirmam que esta ameaça está se tornando realidade: os robôs realmente estão chegando para assumir parte dos empregos humanos. As consequências podem ser desastrosas, de acordo com Martin Ford, autor do livro Rule of the Robots: How Artificial Intelligence Will Transform Everything ("A regra dos robôs: como a inteligência artificial irá transformar tudo", em tradução livre). "Não é algo que pode acontecer apenas individualmente, pode ser bastante sistêmico", diz ele. Fim do Matérias recomendadas "Pode acontecer com muita gente, talvez subitamente, talvez com todos ao mesmo tempo. E isso traz consequências não só para aqueles indivíduos, mas para toda a economia." Felizmente, nem tudo são más notícias. Os especialistas fazem uma ressalva: ainda existem coisas que a inteligência artificial não consegue fazer — tarefas que envolvem qualidades claramente humanas, como a inteligência emocional e o pensamento criativo. Por isso, mudar para funções centralizadas nestas habilidades pode ajudar a reduzir as chances de ser substituído pela inteligência artificial. "Acho que existem três categorias gerais que vão estar relativamente protegidas no futuro próximo", afirma Ford. "Primeiro, os empregos genuinamente criativos. Você não está fazendo um trabalho previsível, nem simplesmente reorganizando as coisas. Você está genuinamente criando novas ideias e construindo algo novo." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Isso não significa, necessariamente, que todos os empregos considerados "criativos" estejam seguros. Na verdade, atividades como o design gráfico e relacionadas às artes visuais podem estar entre as primeiras a desaparecer. Algoritmos básicos podem orientar um robô a analisar milhões de imagens, permitindo que a inteligência artificial domine instantaneamente a estética. Mas existe alguma segurança em outros tipos de criatividade, segundo Ford: "Na ciência, na medicina e no direito... pessoas cujos empregos geram novas estratégias legais ou comerciais. Acho que, ali, continuará a haver um lugar para seres humanos." A segunda categoria protegida, de acordo com Ford, é a dos empregos que exigem relações interpessoais sofisticadas. Ele destaca enfermeiros, consultores comerciais e jornalistas investigativos. Para ele, estes são empregos "nos quais você precisa de compreensão muito profunda das pessoas. Acho que vai levar muito tempo até que a inteligência artificial tenha a capacidade de interagir da forma que realmente estabelece relacionamentos." A terceira zona segura, na opinião de Ford, é a dos "empregos que realmente exigem muita mobilidade, agilidade e capacidade de solução de problemas em ambientes imprevisíveis". Muitos empregos no setor de serviços — eletricistas, encanadores, soldadores etc. — se encaixam nesta classificação. "São tipos de trabalho em que você lida com uma nova situação o tempo todo", ele acrescenta ele. "Provavelmente, são os de mais difícil automação. Para automatizar trabalhos como estes, você precisaria de um robô de ficção científica. Você precisaria do C-3PO de Star Wars." Embora os empregos que se enquadram nestas categorias provavelmente vão continuar sendo ocupados por seres humanos, isso não significa que essas profissões estejam totalmente protegidas contra a ascensão da inteligência artificial. Na verdade, segundo a professora de economia trabalhista Joanne Song McLaughlin, da Universidade de Buffalo, nos Estados Unidos, a maioria dos empregos, independentemente do setor, tem aspectos que provavelmente serão automatizados pela tecnologia. Para ela, "em muitos casos, não existe ameaça imediata aos empregos, mas as tarefas vão mudar". Os empregos humanos vão ficar mais concentrados nas habilidades interpessoais, segundo McLaughlin. "É fácil imaginar, por exemplo, que a inteligência artificial vai detectar câncer muito melhor do que os seres humanos", ela explica. "No futuro, imagino que os médicos vão usar essa nova tecnologia. Mas não acho que todo o papel do médico será substituído." McLaughlin afirma que, embora um robô possa ostensivamente fazer um trabalho melhor de diagnóstico do câncer, a maioria das pessoas ainda vai querer um médico — uma pessoa de verdade — para informá-las. Ela acrescenta que isso é válido para quase todos os empregos e, por isso, desenvolver habilidades distintamente humanas poderá ajudar as pessoas a aprender a fazer seus trabalhos em parceria com a inteligência artificial. "Acho que é inteligente pensar: 'Que tipo de tarefas no meu trabalho serão substituídas ou feitas com melhor qualidade pelo computador ou pela inteligência artificial? E quais são minhas habilidades complementares?'" McLaughlin menciona o exemplo dos caixas bancários, que, antigamente, precisavam contar dinheiro com muita precisão. Agora, esta tarefa foi automatizada, mas ainda existe lugar no banco para os caixas. "A tarefa de contar dinheiro ficou obsoleta devido à máquina", ela explica. "Mas, agora, os caixas se concentram mais em criar um relacionamento com os clientes e apresentar novos produtos. As habilidades sociais ficaram mais importantes." É preciso observar, segundo Ford, que um nível de escolaridade avançado ou um cargo com alto salário não são defesas contra a chegada da inteligência artificial. "Podemos pensar que as pessoas em cargos administrativos estão em posição superior na cadeia alimentar em relação a alguém que dirige um carro para viver", ele afirma. "Mas o futuro do funcionário de escritório está mais ameaçado do que o do motorista de Uber, pois ainda não temos carros autônomos, enquanto a inteligência artificial pode certamente escrever relatórios." "Em muitos casos, os profissionais formados serão mais ameaçados do que aqueles com menos formação. Pense na pessoa que trabalha limpando quartos de hotel — é muito difícil automatizar esse serviço." Em resumo, procurar trabalho em ambientes dinâmicos e versáteis, que incluem tarefas imprevisíveis, é uma boa forma de evitar perder o emprego para a inteligência artificial. Pelo menos, por enquanto.
2023-05-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51pddezq0go
sociedade
Os cientistas que se espantaram com a própria descoberta
Em 2020, Sean Ekins – diretor-executivo da empresa Collaborations Pharmaceuticals, com sede em Raleigh, na Carolina do Norte (Estados Unidos) – recebeu um convite para participar da Conferência da Convergência de Spiez, na Suíça. "Nunca havia ouvido falar dela", declarou Ekins à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. "Na verdade, o que me entusiasmou, mais do que qualquer outra coisa, foi a localização, porque era na Suíça, em um lugar bonito." Mas a pandemia de covid-19 fez com que a conferência fosse cancelada. Ekins e sua equipe continuaram se dedicando às suas atividades diárias – buscar medicamentos para doenças raras e não atendidas pelas grandes farmacêuticas, por não serem consideradas lucrativas. Suas pesquisas englobam desde 'uma doença que reduz o tempo de vida das crianças e afeta cerca de 100 pessoas em todo o mundo" até infecções como a malária, já que, "embora, para alguns casos, existam medicamentos, eles perdem a eficácia com o tempo". Fim do Matérias recomendadas "Não iremos ficar ricos, mas, pelo menos, acredito que estejamos contribuindo para a sociedade como um todo", destaca Ekins. Um ano se passou e ele recebeu outro convite para a conferência. Mas, agora, não havia o atrativo da viagem, já que ela seria realizada pelo aplicativo Zoom. Ekins precisou prestar mais atenção desta vez. Era um encontro para avaliar as novas tendências das pesquisas químicas e biológicas que pudessem representar ameaças de segurança. "Eles estavam interessados pelo mau uso da tecnologia, das ferramentas científicas e da ciência em geral", ele conta. Os organizadores pediram a Ekins que fizesse uma apresentação, o que parecia "muito estranho. [Aquilo] me obrigou a pensar como poderíamos fazer mau uso do nosso trabalho". Para descobrir remédios contra doenças raras, a Collaborations Pharmaceuticals havia criado a plataforma de inteligência artificial (IA) MegaSyn. A plataforma é algo que não pode ser comprado, mas sim montado, "como se fosse Lego", explica Ekins. Segundo ele, "todos os pequenos tijolos" necessários para construí-la foram obtidos em "bancos de dados de software de código aberto". "Depois, consultamos bancos de dados de informações, para criar modelos de aprendizado automático que conectamos à MegaSyn", explica ele. "Isso permite projetar moléculas com propriedades específicas." Em outras palavras, os pesquisadores treinaram a IA para fazer o trabalho de um químico humano, mas em velocidade descomunal. Os medicamentos são basicamente compostos de moléculas. A MegaSyn procura não só as moléculas já existentes, para ver se alguma serve para combater doenças, mas pode também criar outras moléculas, até agora inexistentes. Às vésperas da conferência, Ekins e o diretor associado Fabio Urbina dedicaram-se à tarefa de verificar o que aconteceria se a MegaSyn caísse nas mãos erradas. Assim nasceu o experimento que recebeu o nome de "Projeto Dr. Malvado". Era um projeto simples. Para gerar um novo produto farmacêutico, é fundamental garantir que ele não seja tóxico. E se esse filtro fosse alterado? "Nós apenas mudamos a direção de um interruptor no modelo. Em vez de 'não tóxico', dissemos 'tóxico'", explica Ekins. "Literalmente, foi questão de trocar um 1 e um 0 no programa. Simples assim." Eles pressionaram "enter" e deixaram a MegaSyn fazer o trabalho. No dia seguinte, eles encontraram uma lista de dezenas de milhares de moléculas e fizeram uma busca para ver se havia alguma conhecida. E ficaram espantados com o resultado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Esta mudança simples no programa teve um efeito dramático", conta Ekins. Com o simples pressionar de uma tecla, a MegaSyn havia projetado o assustador agente nervoso VX, classificado como arma de destruição em massa e proibido pela ONU. Trata-se de uma das substâncias mais letais já produzidas. Menos de uma gota em contato com a pele é suficiente para matar uma pessoa. Eles também confirmaram que a MegaSyn "conseguiu encontrar moléculas precursoras até então desconhecidas – pontos de partida para o desenvolvimento de armas químicas em massa mais potentes". O mais preocupante foi saber que, embora o Dr. Malvado fosse um experimento teórico, outras pessoas, com outras intenções, "poderiam fazer o mesmo, se é que ainda não fizeram". "Você não precisa de doutorado, apenas de algum conhecimento de codificação, um computador portátil básico... todo o resto está disponível online de forma gratuita", afirmou ele. "Se algum químico tivesse isso nas mãos e quisesse converter essas moléculas em armas, como ninguém sabe que elas existem, seria impossível rastreá-las e detectá-las." Alertar os bem-intencionados sobre o perigo também significa informar aos mal-intencionados sobre as possibilidades. Ekins e Urbina decidiram não fornecer muitos detalhes sobre os resultados do Projeto Dr. Malvado na sua palestra em Spiez. Eles apresentaram uma descrição genérica do seu trabalho, oferecendo apenas as informações suficientes para prevenir os especialistas. Mas, por mais camuflado que fosse, o potencial de uso negativo da sua tecnologia foi o que causou maior impacto. Pouco depois, um artigo resumindo a palestra, publicado na revista científica Nature Machine Intelligence, chamou a atenção de jornais e revistas, como The Washington Post e The Economist. Surgiram discussões entre especialistas em armas químicas, inteligência artificial, a indústria farmacêutica e até entre filósofos. Ekins e sua equipe chegaram a ser convocados a uma reunião com o Escritório de Política Científica e Tecnológica e o Conselho de Segurança Nacional, na Casa Branca. "Foi surreal", relembra ele. Apesar dos temores iniciais de que falar sobre o assunto poderia servir mais para inspirar do que para prevenir, Ekins precisou assumir o risco de conscientizar as pessoas, não só pelo interesse despertado, mas porque "já não conseguia dormir em paz". Mas ele nunca se dispôs a compartilhar a lista de dezenas de milhares de possíveis moléculas tóxicas gerada pela MegaSyn – nem mesmo com a Casa Branca. Mesmo com todos os riscos, ninguém consegue deter o progresso. Plataformas como a MegaSyn são imensamente benéficas e Ekins sabe disso melhor do que a maioria das pessoas. Uma estratégia para prevenir seu mau uso é "educar as pessoas sobre os problemas". "Agora que o governo está ciente, fomos convidados a falar sobre o tema em nome das agências governamentais", ele conta. "Em maio, por exemplo, iremos a uma conferência no Brasil, falar em nome do Departamento de Estado dos Estados Unidos com acadêmicos e profissionais da indústria sobre os possíveis problemas referentes à IA generativa." E estas atividades terão ajudado Ekins a dormir mais tranquilo? Bem, não muito. "Desde que fizemos o Projeto Dr. Malvado, a IA generativa ficou muito mais pública, com coisas como o ChatGPT e DALL-E", comenta ele. "Até se demonstrou que os aplicativos de chat podem projetar moléculas." "As barreiras de entrada, hoje em dia, são muito menores do que eram um ano e meio atrás. É fundamental educar os cientistas que não tiveram a mesma experiência que nós", insiste Ekins. Mas especialistas consultados pela imprensa afirmam que não existe motivo para despertar tantos alarmes. Eles ressaltam que a identificação de novas moléculas é apenas o primeiro passo de um longo caminho para a produção de um novo medicamento... ou de uma nova arma. E que a maioria desses caminhos leva ao fracasso. Dos dois lados do debate, surge com frequência a mesma analogia. Para alguns especialistas – aqueles para quem nada tira o sono – o que a MegaSyn forneceu foi uma lista de ingredientes. E seria preciso ter chefs com todas as estrelas Michelin e uma cozinha repleta de cozinheiros para poder preparar o bolo perfeito. "Um ano atrás, eu teria ficado tranquilo com isso", afirma Ekins. "Sempre houve pessoas que fabricam drogas e armas ilegalmente e, é claro, este é um nicho de mercado." "Mas nós aumentamos o número potencial de confeiteiros", segundo ele. Para Ekins, tecnologias como a MegaSyn não produzem meros ingredientes, mas sim receitas. E, se as receitas não funcionarem, elas ajudam a aperfeiçoá-las. "Uma vez fornecida a receita, qualquer pessoa pode assar esse bolo", afirma ele. "Alguns farão melhor do que outros, mas o risco sempre existe." Mas ele destaca que existe algo que talvez nos ajude a dormir melhor. Diversas entidades em países como a Suíça estão muito comprometidas com este tema. Existem discussões para verificar como organismos como a Organização para a Proibição das Armas Químicas (Opaq), que regulamenta as moléculas, podem incluir a IA no seu marco legal. "Podemos usar essas tecnologias para nos defendermos. [Podemos] nos valer das mesmas ferramentas para verificar quais são os produtos químicos que poderiam ser utilizados para preparar novas moléculas tóxicas e, assim, controlá-los", conclui Sean Ekins.
2023-05-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51ppklppyko
sociedade
5 negócios do Google e de outros gigantes que prometiam muito e fracassaram
No mundo dos negócios, como em tantos outros, tudo começa com uma ideia. Essa ideia recebe investimentos em tempo e dinheiro, até ficar pronta para ser lançada e observada para ver se faz ou não sucesso. Algumas dessas ideias progridem muito, como o Facebook e a Amazon. Mas muitas outras fracassam, por uma série de razões. Os entusiastas da tecnologia costumam citar frequentemente o caso do sistema de vídeo Betamax, da Sony. Ele recebeu enormes elogios por sua qualidade superior à do sistema VHS, mas acabou perdendo para o concorrente por falta de habilidade na sua campanha de marketing. Da mesma forma, outras empresas de sucesso também foram responsáveis por alguns dos maiores fracassos da história. Por quê? Fim do Matérias recomendadas Indicado pela revista Times como uma das melhores invenções de 2012, o Google Glass foi um projeto que contou com o apoio apaixonado de Sergey Brin, um dos fundadores do mecanismo de busca. O que não era de se estranhar. O Google Glass parecia ter saído de um filme de ficção científica — óculos de alta tecnologia com uma tela de visualização frontal, que mostrava informações que se deslocavam pela linha de visão do usuário, tudo ativado por gestos ou comandos de voz. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com eles, você poderia encontrar seu caminho orientado por um mapa sobreposto à sua realidade; suas mensagens apareceriam diante dos seus olhos; um único gesto seria suficiente para você tirar fotos ou gravar vídeos; e um comando de voz faria você se comunicar com quem desejasse. O produto foi criado em meio ao clamor permanente pela informática portátil. Mas, embora a utilidade e a imagem do Google Glass fossem atraentes, as preocupações com privacidade acabaram agindo contra ele, já que oferecia ao seu usuário a possibilidade de filmar e fotografar outras pessoas sem ser observado. A ideia de que alguém pudesse ser gravado sem saber acabou sendo incômoda demais para as pessoas. E, para os estabelecimentos comerciais, como restaurantes e salas de cinema, a possibilidade de que seus clientes usassem óculos com câmeras também não foi bem recebida. Três anos depois do lançamento, o Google Glass foi descartado. O projeto foi ressuscitado em 2017, com o Glass at Work, orientado não ao público em geral, mas para as empresas. Eles eram úteis, por exemplo, para oferecer notificações em tempo real no ambiente médico ou para ler QR code. Mas as tentativas de fazer reviver a ideia não foram suficientes para mantê-la por muito mais tempo. Em março de 2023, o Google colocou ponto final aos seus óculos futuristas. Descoberto por cientistas da empresa norte-americana Procter & Gamble na década de 1960, Olestra era um substituto da gordura que não era absorvido pelo corpo. Olestra foi testado em bolos, rosquinhas e sorvetes, reduzindo seu teor de calorias em até 50%. Ele prometia ser a panaceia para a dieta das pessoas, que poderiam desfrutar dos alimentos sem sofrer as consequências negativas. E era uma ótima solução para a multinacional, que ganharia muito dinheiro com a venda do produto. Mas os comentários sobre os testes com Olestra foram desastrosos e repugnantes. “Todos tinham a mesma reclamação”, explica o cientista de alimentos Peter Berry Ottaway, “vazamentos anais que saem do reto sem nenhum controle”. A Procter & Gamble reformulou o produto, concentrando-se na produção de salgadinhos. E, em 1990, pediu a aprovação da Administração de Alimentos e Drogas dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês). A aprovação chegou seis anos depois, mas os produtos que usavam Olestra precisariam declarar que podem causar cólicas abdominais e fezes moles. Inicialmente, os consumidores não desaminaram. Paralelamente, começaram a surgir resultados médicos melhores sobre os efeitos secundários do produto. Mas surgiu uma campanha feroz e contínua contra o uso de Olestra pelo Centro para a Ciência no Interesse Público (CSPI, na sigla em inglês). E, como se não bastasse, o produto se tornou alvo de piadas dos comediantes da televisão norte-americana. Tudo isso levou ao fim do Olestra. "Realmente, foi uma guerra de relações públicas", segundo o milionário empreendedor Sam White. Ele declarou que, se fosse a Procter & Gamble, "teria continuado lutando". Lançado em 1985 em Dallas, no Estado americano do Texas, o videoclube Blockbuster ("sucesso de bilheteria", em inglês) fez jus ao seu nome por quase 30 anos. No seu auge, em 2004, a empresa gigante do aluguel de filmes chegou a ter 9 mil lojas em todo o mundo, 84 mil funcionários e receita de quase US$ 5,9 bilhões (cerca de R$ 29,5 bilhões). Mas, naquela altura, a empresa já havia cometido um erro grave: no ano 2000, deixou passar a oportunidade de comprar a Netflix. A plataforma de streaming norte-americana havia sido fundada em 1997, oferecendo um serviço de aluguel de DVDs pelo correio. A Netflix ofereceu à Blockbuster a possibilidade de acrescentar uma plataforma online à sua operação de aluguel de fitas e DVDs. Em troca, a Blockbuster dedicaria um espaço à Netflix nas suas lojas. A Blockbuster recusou esta e outras oportunidades, segundo a Netflix, que acabou se tornando sua principal ameaça. Foi o momento decisivo para a sua queda. "É muito fácil para as pessoas intoxicar-se com o sucesso e começar a acreditar que nada irá se interpor no seu caminho, o que não acontece, pela minha experiência", observa White. A Blockbuster havia se interessado em oferecer seus próprios serviços de transmissão. Este enfoque mudou depois de 2005, quando a gigante da comunicação Viacom vendeu a companhia, deixando-a repleta de dívidas. E uma compra posterior por "investidores ativistas" impediu a inovação da empresa. Em 2010, a Blockbuster declarou falência. Lançado pela engenheira da computação Julie Pankhurst e seu marido Steve em julho de 2000, o site Friends Reunited (“Amigos reunidos”, em inglês) ajudava as pessoas a encontrar seus velhos amigos da escola. Precursor das redes sociais, o site teve crescimento inicial extremamente modesto. Mas, depois que foi mencionado em um programa de rádio da BBC, o Friends Reunited ganhou força. No final de 2002, já havia atraído 8 milhões de usuários. A transição do acesso gratuito para a assinatura paga foi inevitável, mas não reduziu o entusiasmo, nem a má publicidade, alimentada por histórias de velhos amigos de escola tendo casos e professores caluniados. O Friends Reunited conseguiu se manter até ser vendido para o canal de TV britânico ITV em 2005, por 175 milhões de libras (cerca de R$ 1,08 bilhão). Mas a aquisição foi um fracasso e, em 2009, a ITV se desfez do site por apenas 25 milhões de libras (cerca de R$ 154,5 milhões). O canal de televisão pagou demais por uma peça central da sua estratégia digital, mas que era “um negócio que, culturalmente, não estava no lugar certo”, segundo White. E, mesmo com o seu drástico destino, o empresário acredita que o Friends Reunited “poderia ter enfrentado os Facebooks da vida”. O triciclo elétrico C5 (com pedalagem assistida) foi um veículo individual lançado com grande alarde no dia 10 de janeiro de 1985. Ele foi anunciado como o futuro do transporte — uma máquina não poluente, capaz de levar seu motorista aonde precisar, substituindo os automóveis superdimensionados e pouco eficientes. Idealizado pelo célebre inventor britânico Clive Sinclair (1940-2021), o Sinclair C5 prometia ser mais uma de suas criações bem sucedidas, ao lado da primeira calculadora eletrônica de bolso e do seu popular microcomputador doméstico ZX Spectrum. Mas, junto com o DeLorean (o carro que ganhou fama nos filmes da série De Volta para o Futuro), o C5 acabou sendo um dos fracassos de transporte mais espetaculares da década de 1980. E, neste caso, o baque veio logo no princípio. O veículo havia passado da mesa de desenho direto para o protótipo, sem nenhuma pesquisa de mercado, e teve um problema de imagem quase instantâneo. A imprensa e o público não observaram o Sinclair C5 como um novo modo de transporte, mas como um brinquedo de alto custo. E ele recebeu críticas por questões de segurança, já que era extremamente baixo, o que o tornava praticamente invisível para os outros veículos. Além disso, a aparente vantagem de poder ser dirigido por qualquer pessoa com mais de 14 anos, sem habilitação nem capacete, acabou se tornando motivo de preocupação. Com a má recepção do público, a quantidade de pedidos foi mínima e a produção foi encerrada depois de cerca de oito meses. Mas, mesmo tendo sido ridicularizado de quase todos os lados, o C5 ainda tem seus admiradores. Com os avanços da tecnologia de baterias e dos sistemas de controle eletrônico de segurança e estabilidade, além da busca de alternativas aos automóveis com motor a gasolina, especialistas se perguntam se o Sinclair C5 não teria sido lançado 30 anos antes do seu tempo.
2023-05-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgmg5r9d8ro
sociedade
'Sou barriga solidária pela segunda vez em dois anos'
Duas gestações solidárias para duas amigas. Primeiro, a maquiadora Luciene Alves de Melo, de 38 anos, se ofereceu para ser barriga solidária para uma amiga que teve câncer e não poderia passar por uma gestação. A moradora de Goiânia diz que não pensou duas vezes. Filha adotiva, doadora de sangue, de medula óssea e também de óvulos, a maquiadora afirma que desde muito pequena se dedica a ajudar outras pessoas. “Já tinha ouvido falar, por cima, sobre barriga solidária. Essa minha amiga já tinha um filho gerado dessa maneira e sonhava em completar a família tendo um segundo filho. Ela tinha um último embrião e precisava de alguém para gestar para ela”, conta. A criança, de quem Luciene é madrinha, nasceu em 2022 e completou um ano em abril. Fim do Matérias recomendadas O procedimento de gestação de substituição, popularmente conhecido como barriga solidária, é diferente da chamada barriga de aluguel, quando existe um interesse financeiro por trás da gestação e não autorizada no Brasil. A gestação de substituição não tem fins lucrativos e é prevista em resolução do Conselho Federal de Medicina, que busca garantir mais segurança nos procedimentos quanto para as pessoas envolvidas. (Veja mais detalhes abaixo) Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “A cessão temporária do útero não pode ter caráter lucrativo ou comercial e a clínica de reprodução não pode intermediar a escolha da cedente”, diz trecho da resolução. Ainda conforme a norma, a gestação de substituição pode ser realizada por familiares de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até 4º grau (mãe ou filha, vó, irmã, tia, sobrinha e prima). Caso contrário, como na situação de Luciene, é preciso uma autorização do Conselho Regional de Medicina (CRM). Para obter essa autorização, é necessário um laudo psiquiátrico e exames médicos que comprovem a boa saúde da mulher que vai gestar a criança. A autorização demora em torno de dois meses para ser emitida pelo órgão, prazo que pode variar conforme o estado em que foi solicitada. “É importante fazer avaliações para saber se a mulher está apta a passar pelo processo de gestar e depois lidar com o esvaziamento uterino, sabendo que o filho não é dela. É algo possível, mas que precisa ser trabalhado para preservar a saúde dessa mulher no futuro”, explica Carolina Hanna, psiquiatra do Hospital Sírio-Libanês. “Esse acompanhamento pode ser mais ou menos intensivo, dependendo do suporte social e familiar que essa mulher tiver. Caso aconteça, até pela questão hormonal, uma situação pós-parto delicada, ela pode contar com um amparo.” Um ano após o nascimento do afilhado, Luciene está gestando mais um menino, para outra amiga que não pode engravidar por ter nascido com problemas no útero. “Sempre sonhei em poder ajudar duas mães através da barriga solidária, mas não esperava que fosse tão próxima uma gestação da outra. Quando recebi o convite dessa outra amiga para gestar o filho que ela tanto sonha, fiquei surpresa e muito feliz”, comenta. Todo o procedimento teve que ser realizado mais uma vez junto ao CRM. Luciene passou por avaliação psiquiátrica e médica, que atestaram boas condições para uma nova gravidez. O procedimento foi feito em janeiro, e a maquiadora está no quarto mês de gestação. “Para mim, estar grávida nunca foi difícil. Na minha cabeça, sei que aquele bebê não é meu. A maior dificuldade é no puerpério, porque os hormônios colocam em cheque a nossa razão e nossos sentimentos. Por isso é importante fazer todo o acompanhamento psicológico correto até um ano após o nascimento do bebê”, diz a maquiadora. Luciene é mãe de um rapaz de 18 anos e diz que não pretende gerar mais crianças através do procedimento de gestação de substituição. O procedimento é realizado por meio de fertilização in vitro (FIV), técnica de reprodução assistida feita em laboratórios e clínicas autorizadas. Nesse processo, é feita a união do espermatozoide do pai com o óvulo da mãe, em laboratório, para formação do embrião que depois é introduzido no útero de substituição. O material genético da mulher que vai gestar o bebê não é utilizado no procedimento. A idade máxima das candidatas à gestação por técnicas de reprodução assistida é de 50 anos. “As exceções a esse limite são aceitas com base em critérios técnicos e científicos, fundamentados pelo médico responsável, sobre a ausência de comorbidades não relacionadas à infertilidade da mulher e após esclarecimento ao (s) candidato (s) sobre os riscos envolvidos para a paciente e para os descendentes eventualmente gerados a partir da intervenção, respeitando a autonomia da paciente e do médico”, detalha a resolução. No Brasil, as regras para a gestação de substituição, ou barriga solidária, estão descritas na resolução 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina. Ela detalha que: A cedente temporária do útero deve: - Ter ao menos um filho vivo; - Pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau: pais e filhos; segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos); - Caso não seja familiar até o quarto grau, deverá ser solicitada autorização do Conselho Regional de Medicina (CRM). Nas clínicas de reprodução assistida, os seguintes documentos e observações devem constar no prontuário da paciente, segundo o CFM: - Termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos pacientes e pela cedente temporária do útero, contemplando aspectos biopsicossociais e riscos envolvidos no ciclo gravídico-puerperal, bem como aspectos legais da filiação; - Relatório médico atestando a adequação da saúde física e mental de todos os envolvidos; - Termo de Compromisso entre o(s) paciente(s) e a cedente temporária do útero que receberá o embrião em seu útero, estabelecendo claramente a questão da filiação da criança; - Compromisso, por parte do(s) paciente(s) contratante(s) de serviços de reprodução assistida, públicos ou privados, com tratamento e acompanhamento médico, inclusive por equipes multidisciplinares, se necessário, à mulher que ceder temporariamente o útero, até o puerpério; - Compromisso do registro civil da criança pelos pacientes, devendo essa documentação ser providenciada durante a gravidez; - Aprovação do(a) cônjuge ou companheiro(a), apresentada por escrito, se a cedente temporária do útero for casada ou viver em união estável.
2023-05-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxelr40m1jxo
sociedade
Homem paraplégico volta a andar após receber implantes no cérebro em técnica pioneira
Um homem paraplégico conseguiu andar simplesmente pensando nisso graças a implantes cerebrais eletrônicos, uma tecnologia da medicina que, segundo ele, mudou sua vida. Gert-Jan Oskam, um holandês de 40 anos, perdeu o movimento das pernas em um acidente de bicicleta há 12 anos. Os implantes eletrônicos transmitem sem fio seus pensamentos para suas pernas e pés por meio de um segundo implante em sua coluna. O sistema ainda está em estágio experimental, mas foi considerado "muito promissor". "Eu me sinto como uma criança aprendendo a andar de novo", disse Oskam à BBC. Fim do Matérias recomendadas Ele também pode agora ficar em pé e subir escadas. "Foi uma longa jornada, mas agora posso me levantar e tomar uma cerveja com meu amigo. É um prazer de que muitas pessoas não têm ideia." A tecnologia, publicada na revista científica Nature, foi desenvolvida por pesquisadores suíços. A neurocirurgiã Jocelyn Bloch, professora da Universidade de Lausanne (Suíça) que realizou a delicada cirurgia de inserção dos implantes, destaca que o sistema continua em estágio de pesquisa básica e faltam muitos anos para estar disponível para pacientes com paralisia. Ela diz à BBC News, no entanto, que o objetivo da equipe era tirá-lo do laboratório e colocá-lo em operação o mais rápido possível. "O importante para nós não é apenas realizar um experimento científico, mas eventualmente dar mais acesso a mais pessoas com lesões na medula espinhal que estão acostumadas a ouvir dos médicos que precisam se acostumar com o fato de que nunca mais terão movimentos." Harvey Sihota é executivo-chefe da ONG britânica Spinal Research, que não participou da pesquisa. Segundo ele, embora haja um longo caminho a percorrer antes que a tecnologia esteja disponível, ela é "muito promissora". "Embora ainda haja muito a melhorar com essas tecnologias, este é outro passo promissor no campo da neurotecnologia e seu papel na restauração da função e independência de nossa comunidade de lesões na medula espinhal". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A cirurgia para restaurar o movimento de Gert-Jan foi realizada em julho de 2021. Bloch fez dois orifícios circulares em cada lado do crânio dele, com 5 cm de diâmetro, acima das regiões do cérebro envolvidas no controle do movimento. Em seguida, inseriu dois implantes em forma de disco que transmitem sinais cerebrais sem fio — os desejos de Gert-Jan — para dois sensores presos a um capacete em sua cabeça. A equipe suíça desenvolveu um algoritmo que traduz esses sinais em instruções para mover os músculos das pernas e pés por meio de um segundo implante inserido ao redor da medula espinhal de Gert-Jan — que Bloch ligou às terminações nervosas relacionadas ao ato de andar. Os pesquisadores descobriram que, após algumas semanas de treinamento, o paciente conseguia ficar de pé e andar com o auxílio de um andador. Seu movimento é lento, mas suave, segundo o professor Grégoire Courtine, da École Polytechnique Fédérale de Lausanne (EPFL), que comandou o projeto. "Vê-lo andar tão naturalmente é muito comovente", disse. "É uma mudança de paradigma em relação ao que existia antes". Os implantes cerebrais se baseiam no trabalho anterior de Courtine, quando apenas o implante espinhal era usado para restaurar o movimento. O implante espinhal amplificou sinais fracos do cérebro para a parte danificada da coluna vertebral e foi impulsionado ainda mais por sinais pré-programados de um computador. E no ano passado Michel Roccati se tornou a primeira pessoa com uma medula espinhal completamente lesionada a andar como resultado da tecnologia. Ambos se beneficiaram muito, mas o movimento de caminhada é pré-programado e parece robótico. Eles também têm que manter seus movimentos pretendidos em sintonia com o computador, além de parar e redefini-los se ficarem fora de sincronia. Gert-Jan tinha apenas o implante espinhal antes de ter os implantes cerebrais. Ele diz que agora tem um controle muito maior. "Antes eu sentia que o sistema estava me controlando, mas agora eu o estou controlando". Nem os sistemas anteriores, nem os novos podem ser usados constantemente. São volumosos e ainda em fase experimental. Em vez disso, os pacientes os usam por cerca de uma hora, algumas vezes por semana, como parte de sua recuperação. O ato de caminhar treina seus músculos e restaura um certo grau de movimento quando o sistema é desligado, indicando que os nervos danificados podem estar crescendo novamente. O objetivo final é miniaturizar a tecnologia. A Onward Medical, empresa do professor Courtine, está fazendo melhorias para comercializar a tecnologia para que ela possa ser usada no dia-a-dia das pessoas. "Está chegando", diz Courtine. "Gert-Jan recebeu o implante 10 anos após o acidente. Imagine quando aplicarmos nossa interface cérebro-espinha algumas semanas após a lesão. O potencial de recuperação é tremendo", conclui ele.
2023-05-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c720p0z8xyno
sociedade
A 'fórmula do sucesso' usada por recrutadores do Google
Se você quer trabalhar no Google, saiba que não está sozinho. Todos os anos, a empresa americana de tecnologia recebe milhões de pedidos de emprego. Os processos de seleção da empresa têm a fama de serem muito exaustivos, mas ela também é conhecida pela forma como trata seus trabalhadores e os benefícios que oferece aos seus funcionários. Em um mercado de trabalho tão competitivo, é importante mostrar algum tipo de habilidade que nos destaque dos demais para conseguir um cargo em empresas como o Google. Mas, antes de chegar à fase das entrevistas, primeiro o currículo tem que chamar a atenção da equipe de RH. Os recrutadores do Google afirmam que usar a fórmula X-Y-Z aumentará as chances de ser contratado pela empresa. Fim do Matérias recomendadas Essa fórmula de redação de currículo é uma maneira de ressaltar os pontos nos quais você se destacou ao longo da sua carreira e fazer com que o seu texto seja mais impactante. E, somada a outras recomendações -como deixar o texto mais fácil de ler ou com no máximo duas páginas-, revelará de imediato como você fez a diferença nas empresas por onde passou. A recomendação dos especialistas é que a cronologia ordene suas experiências profissionais, da mais recente até a mais antiga. Dessa maneira, você mostrará uma clara progressão ao longo do tempo. "Seja específico sobre os projetos para os quais você trabalhou ou gerenciou. Em caso de dúvida, atenha-se ao padrão x-y-z", diz o Google em seu blog. O método funciona assim: Esta fórmula é eficaz porque se concentra nos resultados. Mostre o que você conquistou, como mediu seu sucesso e quais medidas você implementou para que isso acontecesse. Essa informação é valiosa para os profissionais envolvidos na contratação porque ajudam a compreender suas habilidades e experiências. Provavelmente é mais fácil explicar isso usando alguns exemplos dos próprios vídeos disponíveis no YouTube feitos pelos próprios recrutadores do Google. Por exemplo, imagine um candidato que queira explicar que participa de um evento para desenvolvedores. Esta é uma forma boa, a maneira correta e a mais precisa para descrevê-la em um currículo, segundo o Google: Estes são os conselhos do Google para usar a fórmula x-y-z no currículo: Seja específico. Você não deve se limitar dizendo que "o tráfego do site aumentou". Em vez disso, diga quanto tráfego aumentou e como você mediu. Use números e métricas. Quantificar suas conquistas as torna mais impressionantes. Seja claro e conciso. Use verbos de ação fortes e evite jargões. Use palavras-chave. Sempre que possível, use palavras-chave relevantes para o cargo ao qual você está se candidatando. A gigante da tecnologia recomenda que você faça a si mesmo algumas perguntas antes de iniciar uma candidatura para uma de suas vagas e reflita sobre elas. Os especialistas acreditam que esse convite para refletir sobre si mesmo ajudará a criar uma imagem para onde você deseja levar sua carreira. Ao preparar suas respostas, faça uma narrativa: liste exemplos concretos de onde, quando e como você demonstrou as habilidades que os empregadores procuram na descrição do trabalho. Essas breves histórias sobre suas conquistas e experiências anteriores devem ilustrar o valor que você teve em seus empregos anteriores e o que oferecerá em sua nova função, caso seja contratado. "Por que esse exercício de visualização? Suas habilidades, interesses e metas são o resultado da sua vida, suas experiências, seus triunfos e seus fracassos", diz o Google. "Se te contratamos com base em suas habilidades, vamos contratar um funcionário qualificado. Se te contratamos com base em suas habilidades, suas paixões duradouras e suas diversas experiências e perspectivas, encontraremos um Googler. E é isso que queremos", acrescentou.
2023-05-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n7q7e7r3ro
sociedade
‘Minha mãe fingiu sua morte': a inesperada descoberta de escritora ao investigar seu passado
Donna Freed tinha apenas seis anos de idade quando sua irmã revelou um segredo de família: que ela e seus dois irmãos haviam sido adotados. A família tinha uma vida tranquila e agradável de classe média da comunidade judaica no subúrbio de White Plains, em Nova York (Estados Unidos). Mas a notícia fez o mundo de Donna Freed desmoronar. "Minha família... era como Deus para mim", ela conta. "Eram as pessoas mais próximas, os maiores, os melhores. Todo o meu mundo girava em torno da minha casa e da minha família." A revelação da sua irmã, naquela época, fez com que seu mundo "acabasse". "Fui retirada das paredes seguras que me rodeavam", relembra ela. Freed suspeitava que houvesse algo de vergonhoso na sua história. Mas ela decidiu manter-se fiel à sua mãe adotiva e nunca se atreveu a insistir muito com perguntas sobre a sua origem. Fim do Matérias recomendadas Por isso, esta questão nunca foi discutida abertamente no seio da família adotiva, que ofereceu muito poucos detalhes sobre as circunstâncias da sua adoção e a identidade dos seus pais biológicos. Apenas após a morte da mãe adotiva, Ruth, em 2009, e motivada em parte por seu filho, Donna Freed começou a pesquisar o seu passado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela enfrentou meses de uma série de trâmites complicados para obter informações e inscreveu-se em um registro de reunificação familiar, até que uma assistente social assumiu o caso e prometeu apresentar um relatório dali a cerca de três meses. Primeiramente, ela recebeu uma carta com os três primeiros dados obtidos sobre sua mãe biológica, que se chamava Mira Lindenmaier. "Minha mãe tinha 27 anos quando nasci, não teve outros filhos antes de mim e era... suíça", contou ela ao programa de rádio Outlook, do Serviço Mundial da BBC. O relatório completo chegaria alguns meses depois. A assistente social a advertiu ao telefone que seu conteúdo era muito mais dramático que o que se poderia esperar com as primeiras informações. Freed preparou-se para a típica e trágica história de problemas com dependência, violência familiar e até abuso sexual. Mas o relato superou em muito suas expectativas. O relatório "descrevia minha mãe. Ela tinha cabelos loiros, era muito alta, inteligente, trabalhava em uma agência de publicidade e sabia nadar muito bem". "Ela conheceu meu pai, que era 13 anos mais velho do que ela – ele era casado e tinha quatro filhos", prossegue Freed. "E eles haviam concebido um plano para lesar a companhia de seguros." O relatório prosseguia dizendo que "ela aceitou o plano de manter o relacionamento, fugir para a Espanha e me criar ali". O pai de Freed chamava-se Alvin Brodie. Ele era operário da construção, barman e músico de jazz. Brodie tinha um longo histórico de fraudes e sua data de nascimento era obscura. Seu plano era simular a morte acidental de Lindenmaier, receber a indenização da seguradora e fugir para a Espanha. Freed tomou conhecimento dos detalhes posteriormente. Seus pais e um cúmplice, amigo do casal, alugaram um navio em City Island, no Bronx (Nova York). Eles fingiram que houve um acidente e que Lindenmaier havia se afogado. Enquanto isso, Mira Lindenmaier – grávida de Freed – viajou para White Plains. Lá, ela se refugiou com um nome falso em um hotel e começou a ganhar a vida, trabalhando como garçonete em uma cafeteria, justamente ao lado da delegacia local. "No início, quando (a polícia) percebeu que minha mãe estava desaparecida e que ela havia alterado a apólice de seguro 39 dias antes de se afogar, beneficiando o namorado, eles pensaram que meu pai a houvesse assassinado", conta Freed. As pessoas que descreveram Lindenmaier afirmaram, entre outras coisas, que ela era ótima nadadora. Por isso, a teoria de que ela teria se afogado era muito pouco convincente. Com estas suspeitas, a polícia grampeou o telefone de Brodie. E, poucos meses depois – no Dia de Ação de Graças, em novembro de 1996 – a voz de Mira Lindenmaier apareceu em uma das gravações, surpreendendo a todos. Depois de segui-la por algumas semanas, a polícia prendeu Lindenmaier, que imediatamente confessou o golpe. O plano frustrado terminou com Alvin Brodie preso e Mira Lindenmaier libertada sob custódia. O caso teve grande destaque em toda a imprensa, na época. "Todos haviam pensado, incluindo seus pais, que ela estivesse morta", afirma Freed. Lindenmaier voltou a morar com os pais, ficando com eles por anos. Ela nunca voltou a se casar, nem teve outros filhos. Brodie retomou seu casamento depois de sair da prisão e teve um quinto filho com sua esposa. Mas o detalhe que mais emocionou Freed, dentre todas as informações que recebeu de uma só vez, foi que sua mãe "estava contente por me conceber", disse ela com a voz embargada à BBC. A assistente social afirmou que sua mãe "estava emocionada por me ter nos seus braços e que teve dificuldade para decidir me entregar [para adoção]". Depois de ouvir o relato, a assistente social perguntou a Freed se ela queria se reencontrar com sua mãe. O pai já havia morrido. "Claro! Você está brincando?", respondeu ela. "É claro que existe uma história de criminalidade por trás, mas obviamente ela agiu assim porque estava apaixonada." "Era uma pessoa muito tímida e reservada", segundo Freed. "Quando Alvin dedicou toda sua atenção a ela, seus encantos e seu amor, ela não teve outra opção. Mas não acredito que ela tenha inventado este plano [de simular sua morte e fugir para a Espanha], nem em um milhão de anos." Encontrá-la não foi fácil. Foram meses de trabalho de detetive, revisando arquivos e registros da biblioteca pública de Nova York. Até que seu paradeiro foi encontrado em um centro de reabilitação na Flórida. Ela conseguiu seu telefone e ligou para ela. "Nós duas começamos a chorar e ela gritava: 'É você! É você! É um milagre!'", conta Freed. "Esperei toda a vida para reencontrar você. Não tive outros filhos." O encontro pessoal ocorreu seis meses após a ligação, na Flórida. Freed comprou um vestido azul com bolinhas brancas para a ocasião. E ela se lembra de que, antes de vê-la, "tremia literalmente como uma folha de papel". Assim que Freed foi levada para o quarto e viu sua mãe biológica, com óculos grossos e cabelos brancos, as duas se desmancharam em lágrimas. "Foi um momento indescritível." Donna Freed finalmente conseguiu encontrar a resposta para todas as perguntas que assombravam sua cabeça, não apenas sobre o escândalo da falsa morte da sua mãe, mas sobre a sua vida pregressa e as circunstâncias que a levaram a envolver-se naquela situação. Mira Lindenmaier morreu em agosto de 2020. Mas Freed conseguiu encontrar três dos seus cinco meios-irmãos (quatro nascidos antes que seu pai fosse preso e um, depois de ter saído da prisão) enquanto recolhia informações sobre sua família biológica – e segue em contato com eles até hoje. Donna Freed reuniu os fascinantes detalhes desta história na sua autobiografia Duplicity: My Mothers’ Secrets ("Duplicidade: os segredos das minhas mães", em tradução livre).
2023-05-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxel1dx4dglo
sociedade
'Perguntavam se era queimadura': a rara doença que faz pele crescer rápido
Aos 26 anos, a jovem Rhiannon Morgan está acostumada a receber olhares de estranhos. Ele é uma das poucas pessoas no Reino Unido que vive com uma rara condição genética da pele chamada ictiose epidermolítica. Sua pele cresce muito rápido, tornando-a propensa a bolhas e causando problemas significativos de mobilidade. Rhiannon espera que aumentar a conscientização sobre esses tipos de deficiências visíveis sirva para promover uma representação mais precisa e inclusiva delas na sociedade. A vida de Rhiannon foi marcada por comentários sobre sua condição. No supermercado, as pessoas perguntavam se o que ela tinha era contagioso. Fim do Matérias recomendadas "Quando nasci, parecia que eu tinha luvas nas mãos e meias nos pés", diz Rhiannon. "Embora sorria e encare isso com leveza, viver com uma diferença visível é cansativo e pode ser incrivelmente solitário", acrescenta. Ela lembra que “estranhos e colegas achavam normal me perguntarem se eu havia me queimado em um incêndio doméstico”. A pele dela cresce muito rápido devido a uma anormalidade genética, que também a torna propensa a infecções, bolhas e hipersensibilidade. Isso causa problemas significativos de mobilidade, especialmente nas articulações e nas mãos, e muitas vezes ela precisa se locomover em sua cadeira de rodas motorizada. "Passo cerca de cinco horas por dia cuidando da minha pele", explica Rhiannon, que mora em Bridgend, no sudoeste do Reino Unido. Ela foi diagnosticada com essa condição rara ao nascer, quando as parteiras notaram que sua pele se desprendia com facilidade. "Quando nasci, parecia ter luvas nas mãos e meias nos pés, o que era um sinal revelador de onde isso mais me afetaria", diz."Tive muita sorte de ser diagnosticada no nascimento, pois pude receber o tratamento médico de que precisava desde o início." Desde então, no entanto, Rhiannon afirma ter vivenciado as barreiras sociais de conviver com uma diferença perceptível. "Alguns colegas até se recusaram a sentar perto de mim", alega. Isso afetou muito a maneira como ela se via durante a escola e, na adolescência, evitar espelhos tornou-se uma atitude comum. "Eu era uma anomalia médica, então quando eu olhava, no meu reflexo via alguém que não era normal", acrescenta. Sempre que tinha uma consulta médica, Rhiannon era observada por outros médicos e estudantes de medicina. Ela teve que aguentar anos sendo observada com uma lupa e por estranhos. Segundo Rhiannon, isso "prejudicou" sua saúde mental e suas percepções de sua própria aparência. Quando tinha 13 anos, foi a uma conferência médica onde, segundo ela, foi forçada a se sentar em uma cama de calcinha e sutiã e um jaleco. Lá ela teve que falar repetidamente com "cerca de 100 médicos" que queriam aprender tudo sobre sua pele. "Alguns eram legais, alguns não tinham boas maneiras, um até veio e me inspecionou com um abaixador de língua de madeira", lembra. Mas ela explica que sua condição não lhe trouxe apenas experiências negativas. "Também me deu muitas habilidades. Me fez exercitar a empatia, ver a beleza onde os outros não podem e experimentar o mundo de uma maneira única", destaca. "Não trocaria por nada." A história de Rhiannon é uma das que estrela uma campanha organizada pela ONG Changing Faces para aumentar a conscientização no Reino Unido sobre doenças visíveis e encorajar representações mais positivas na sociedade. Segundo uma sondagem realizada pelo instituto de pesquisa Focaldata, 33% dos britânicos lembram de ter visto alguém com uma diferença visível na televisão.
2023-05-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nw0e51rwyo
sociedade
Como a Índia conseguiu acabar com o costume antigo de queimar viúvas vivas na fogueira
Em dezembro de 1829, o primeiro governador-geral da Índia sob o domínio britânico, Lorde William Bentinck, proibiu o sati — a antiga prática hindu que levava as viúvas a se imolar na pira funerária do marido. Bentinck, que na época era governador de Bengala, no norte da Índia, buscou a opinião de 49 oficiais superiores do Exército e de cinco juízes, e se convenceu de que havia chegado a hora de "limpar uma mancha horrível sob o regime britânico". Seu decreto afirmava que o sati era "revoltante para os sentimentos da natureza humana" e chocava muitos hindus, além de ser "ilegal e perverso". Dizia ainda que as pessoas condenadas por "auxiliar e incentivar" que uma viúva hindu fosse queimada viva, "fosse o sacrifício voluntário da parte dela ou não", seriam acusadas de homicídio culposo. O decreto dava aos tribunais o poder de impor a pena de morte às pessoas condenadas pelo uso da força ou por ajudarem a queimar viva uma viúva "que tivesse sido inebriada e não pudesse exercer sua livre vontade". Fim do Matérias recomendadas A lei de Bentinck era ainda mais rigorosa do que uma forma mais gradual de erradicar a prática sugerida pelos principais reformistas indianos que faziam campanha contra o sati. Após a legislação, 300 eminentes hindus, liderados pelo rajá Rammohun Roy, agradeceram a Bentinck por "nos resgatar para sempre do estigma atribuído até então à nossa personalidade como assassinos deliberados de mulheres". Já os hindus ortodoxos recuaram e apresentaram uma petição a Bentinck. Citando acadêmicos e escrituras, eles questionaram a decisão, afirmando que o sati não era um "ato obrigatório com base na religião". Mas Bentinck não cedeu. Os signatários da petição foram ao Conselho Privado, que era o tribunal de última instância nas colônias britânicas. E, em 1832, o Conselho manteve a regulamentação, afirmando que o sati era uma "flagrante ofensa contra a sociedade". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "A combatividade declarada da regulamentação de 1829 talvez tenha sido o único caso, ao longo de 190 anos de regime colonial britânico, em que uma legislação social foi outorgada sem oferecer nenhuma concessão aos sentimentos ortodoxos", afirma Manoj Mitta, autor do livro Caste Pride ("Orgulho da casta", em tradução livre), no qual analisa a história legal das castas na Índia. Mitta também escreve que "muito antes de Gandhi notoriamente impor uma pressão moral ao império britânico, Bentinck exerceu a mesma força contra os preconceitos de casta e gênero intrínsecos ao sati". "Ao criminalizar este costume nativo que tanto havia corroído o colonizado, o colonizador ganhou um ponto moral", afirma o autor. Mas a lei de Bentinck seria atenuada em 1837 por outro britânico, Thomas Macaulay, autor do Código Penal Indiano. No texto de Macaulay, se alguém pudesse provar de ter acendido a pira por instigação da viúva, poderia ser absolvido. Em uma anotação, ele afirmou que as mulheres que se queimam vivas poderiam ser motivadas por "forte senso de dever religioso, às vezes por um forte senso de honra". Mitta descobriu que a "posição compreensiva" de Macaulay sobre o sati ecoava o pensamento dos governantes britânicos décadas depois da proibição. Ele escreve que a anotação dele reapareceu após a revolta de 1857, quando soldados hindus e muçulmanos que serviam na Companhia Britânica das Índias Ocidentais — também conhecidos como sipais — se rebelaram contra a companhia. Eles temiam que os cartuchos das armas pudessem ter sido engraxados com gordura animal proibida por suas religiões. A regulamentação mais branda que entrou para o código "se encaixava na estratégia colonial de apaziguar os hindus de altas castas que haviam desempenhado um papel importante" na rebelião. A regulamentação de 1862 revogou as disposições penais que declaravam o sati passível de condenação por homicídio culposo e impunham a pena de morte no caso de agravantes. Ela também permitiu que os acusados alegassem que a vítima havia consentido acabar com sua vida no funeral do marido, para que o caso fosse considerado suicídio, e não assassinato. Mitta relata que a atenuação da regra do sati foi uma "resposta às reclamações latentes contra a legislação social". Essa legislação incluía a proibição do sati, uma lei de 1850 que concedia aos párias e aos hindus que abandonassem sua religião o direito de herdar propriedades da família, e uma lei de 1856 que permitia que todas as viúvas se casassem novamente. Mas o motivo imediato que levou à atenuação da lei foi a "indignação entre os soldados hindus das castas mais altas", que ficaram furiosos com os relatos de que os cartuchos haviam sido engraxados com gordura de vaca. Com isso, o sati — que era considerado assassinato desde 1829 — passou a ser considerado suicídio em 1862. "Embora fosse menos comum desde 1829, o sati continuava a ser valorizado e reverenciado em certas partes da Índia, especialmente entre as castas mais altas", afirma Mitta. Um caso curioso ocorreu em 1913, quando o advogado e político Motilal Nehru — que havia entrado para o Congresso Nacional Indiano e viria a ter um papel importante na campanha pela independência da Índia — compareceu a um tribunal em Uttar Pradesh, no norte da Índia, para defender seis homens de castas superiores em um caso de sati. Os homens alegavam que a pira havia "acendido milagrosamente devido à absoluta devoção da viúva". Mas os juízes rejeitaram a teoria de intervenção divina. Eles censuraram a dissimulação e declararam os homens culpados de incitação ao suicídio. Dois deles foram condenados à prisão por quatro anos. A reviravolta final na história do sati só aconteceu mais de 70 anos depois. Em 1987, o governo liderado por Rajiv Gandhi — bisneto de Motilal Nehru — promulgou uma lei criminalizando pela primeira vez a "glorificação da prática". As pessoas que apoiassem, justificassem ou propagassem o sati poderiam ser punidas com sete anos de prisão. A lei também elevou a prática a homicídio e reintroduziu a pena de morte para quem a incentivasse. Essa mudança foi adotada após a indignação geral com o último caso relatado de sati na Índia, envolvendo uma noiva adolescente chamada Roop Kanwar, em uma pequena aldeia no Estado do Rajastão, no norte do país. Segundo Mitta, foi o 41º caso de sati registrado oficialmente após a independência da Índia, em 1947. O preâmbulo da lei de Rajiv Gandhi foi emprestado do decreto de Bentinck. Para Mitta, "foi uma homenagem prestada, ainda que involuntariamente, por um país descolonizado ao seu antigo colonizador".
2023-05-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cl52w2j549jo
sociedade
Aliança inteligente e votos escritos por robô: como são as cerimônias de casamento high-tech
Em vez das tradicionais alianças de ouro, o casal Jiri e Ondrej Vedral, da República Tcheca, decidiu trocar alianças inteligentes no dia do seu casamento. As alianças inteligentes são aparelhos eletrônicos que funcionam de forma similar aos smartwatches (relógios inteligentes). Tipicamente, elas permitem que o usuário monitore seus batimentos cardíacos e faça pagamentos sem contato. Esse é um setor da tecnologia em rápido crescimento. Em um ano, suas vendas globais aumentaram em 21%. Mas as alianças inteligentes do casal tcheco são projetadas de forma mais romântica que a maioria. Elas permitem ver e sentir os batimentos cardíacos do parceiro. Cada aliança é conectada por Bluetooth a um aplicativo no smartphone do usuário. E, pelo aplicativo, as duas alianças podem ser conectadas entre si. Fim do Matérias recomendadas Com isso, sempre que Jiri pressiona sua aliança, ela pulsa fisicamente com os batimentos cardíacos de Ondrej e os exibe como uma linha vermelha em movimento. O mesmo acontece com o anel de Ondrej. Enquanto os seus telefones celulares estiverem conectados à internet, cada um recebe o batimento cardíaco do parceiro em tempo real. E, se um deles for desconectado, eles recebem o mais recente batimento registrado. “Nunca fomos de ouro e diamantes”, afirma Jiri. “Queríamos algo diferente e gostamos dessa nova ideia. Nós nos sentimos pioneiros.” A aliança recarregável é chamada de Anel HB. Ela é fabricada pela empresa tcheca The Touch. As vendas da primeira versão da aliança, em 2016, foram apenas limitadas. Mas o fabricante agora observa um aumento do interesse global, graças ao desenvolvimento geral do setor de anéis inteligentes. A empresa também lançou neste ano um novo produto paralelo – o medalhão Touch. Ele deve ser usado em um colar e tem a mesma tecnologia dos anéis. Seu público-alvo inclui casais comprometidos que talvez gostem da ideia de poder sentir o batimento cardíaco do parceiro, mas não querem abandonar as alianças de casamento tradicionais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Jiri e Ondrej formam um dos muitos casais que estão usando cada vez mais a tecnologia nas cerimônias de casamento. De drones para fotografar a cerimônia até ferramentas digitais para ajudar nas tarefas de planejamento, como organizar o orçamento e a disposição dos lugares, a tecnologia infiltrou-se em muitos aspectos importantes que fazem parte do dia dos noivos. A tendência tecnológica das cerimônias de casamento vem crescendo desde que as pessoas começaram a organizar boa parte das suas vidas nos seus smartphones, diz Zoe Burke, editora-chefe do website britânico de planejamento de casamentos hitched.co.uk. "Acho que as pessoas simplesmente não se espantam mais por poderem planejar seu casamento pelo celular. Provavelmente, você conheceu seu parceiro pelo celular", afirma ela. Um terço dos casais britânicos afirma que usa o WhatsApp para convidar as pessoas para o seu casamento, enquanto 60% deles anunciam seu compromisso nas redes sociais. Algumas pessoas já estão até usando software de inteligência artificial (IA) para escrever seus votos ou discursos de casamento. O website americano de planejamento de casamentos Joy lançou recentemente uma ferramenta de IA com essa finalidade. Chamada de Assistente a Escritores de Casamento com Bloqueio Criativo, a ferramenta é baseada no ChatGPT, o chatbot criado pela empresa de tecnologia de San Francisco, nos Estados Unidos, OpenAI. Vishal Joshi é um dos fundadores e o principal executivo da Joy. Ele afirma que o objetivo da ferramenta de IA não é eliminar a parte romântica de escrever votos ou discursos, mas sim de facilitar a vida das pessoas que têm dificuldade de expressar seus sentimentos em palavras. "Fizemos uma pesquisa e descobrimos que 89% dos participantes acham assustador começar a escrever seus textos para o casamento", ele conta. "A ferramenta de IA não pretende substituir as emoções humanas, mas é útil para muitas pessoas." A pandemia de covid-19 ajudou a fortalecer os casamentos tecnológicos. Casais que não queriam postergar suas núpcias começaram a se casar pelo Zoom ou transmitir a cerimônia ao vivo para os convidados em casa. Mas os casamentos virtuais agora estão sofrendo as consequências da sua associação às restrições da pandemia, segundo Burke. "As pessoas abandonaram os casamentos com transmissão ao vivo", ela conta. "Elas não querem se lembrar daquela época." Para os casais que enfrentam os custos crescentes causados pelo aumento da inflação, o uso da tecnologia pode trazer economias, como o envio de convites eletrônicos em substituição aos de papel. E há também um benefício ambiental. Em Londres, a planejadora de casamentos Rohita Pabla afirma que "é questão de economia de custos e de consciência ecológica. Cada vez mais casais estão pensando no meio ambiente." Também não surpreende o desejo de muitas pessoas de causar impacto nas redes sociais durante o grande dia. Muitos casais e convidados se esforçam para postar vídeos no TikTok ou no Instagram durante o casamento e na recepção após a cerimônia. Esta tendência fez aumentar a procura por "cabines de gif" para a recepção. São cabines fotográficas alugadas, que usam pequenos conjuntos de fotos para criar gifs ou imagens em movimento. O usuário simplesmente digita seu número de celular e o gif é enviado imediatamente para o seu telefone. "Alguns [casais] querem usar e compartilhar as fotos em várias plataformas diferentes", afirma Pabla. "Eles querem ser o casal do Instagram." Mas os casais também precisam atender os convidados com menos habilidades tecnológicas, ou os que preferem receber seus convites da forma tradicional. Pabla é especializada em planejar casamentos de pessoas do sul da Ásia. Ela conta que trabalha com muitos casais que se preocupam em observar certas tradições, ao lado das soluções tecnológicas. Nos casamentos tradicionais indianos, por exemplo, é costume que os noivos entreguem pessoalmente aos familiares e convidados mais idosos um convite de casamento físico. "Por isso, o casal faz algumas cópias de convites para seus pais e avós", afirma Pabla. "Mas, para seus amigos da mesma idade, eles enviam apenas um convite digital." Joshi destaca que a tecnologia do casamento pode ser usada para "tornar tudo mais fácil e muito mais interessante". Mas ele recomenda, ao mesmo tempo, tomar cuidado para não "perder o charme e o romance em torno dos casamentos do mundo real, que consiste essencialmente em reunir os amigos e a família".
2023-05-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx04777yq20o
sociedade
A mulher que fugiu pela floresta para salvar filhos de seita que levou mais de 200 à morte
Salema Masha fala com suavidade, mas o seu corpo esguio guarda uma força interior que salvou a vida dos seus cinco filhos. Entre as histórias horríveis que estão surgindo da seita cristã apocalíptica no país da África Oriental, a de Salema se destaca. Mais de 200 corpos foram recuperados até agora de covas coletivas na vasta floresta de Shakahola, na costa sul do Quênia, e outros estão sendo desenterrados todos os dias. Sobreviventes ainda estão sendo encontrados escondidos sob árvores e arbustos no território de 320 hectares. O autoproclamado pastor Paul Mackenzie abriu a Igreja Internacional das Boas Notícias em 2003. Ele atraiu a atenção da polícia repetidamente com suas alegações de que as crianças não deveriam ir à escola e que os tratamentos médicos deveriam ser recusados. Fim do Matérias recomendadas Em 2019, ele fechou a igreja e convidou seus seguidores a se mudarem com ele para Shakahola, lugar que chamou de nova "Terra Santa". O marido de Salema foi um dos que atenderam ao chamado. Enquanto ela conta sua história, amamenta Esther, de um ano, que nasceu na floresta. Seu filho mais velho, um menino chamado Amani, tem oito anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O suicídio coletivo começou em janeiro. Salema afirma que seguiu instruções para começar a jejuar para poder "chegar ao céu". Mackenzie vinha dizendo havia algum tempo a seus seguidores que o mundo estava chegando ao fim. Inicialmente, ele ofereceu a floresta como um santuário para o apocalipse que se aproximava. Mas em uma reviravolta macabra, se tornou a última parada para chegar ao céu antes do "Fim dos Dias". Após sete dias de jejum, Salema diz ter ouvido a voz de Deus dizendo a ela que aquilo não era sua vontade e que ela ainda tinha trabalho a fazer no mundo, então ela parou. As pessoas ao seu redor estavam morrendo — em um dado momento, ela participou do funeral de oito crianças, que chamavam de "adormecer". Mas eles disseram: "Se meus filhos não vão morrer, eu deveria parar de ir aos funerais de outras pessoas", ela lembra. Os sobreviventes revelaram que as crianças deveriam ser as primeiras a partir, de acordo com uma ordem macabra elaborada por Mackenzie. Em seguida, os solteiros, as mulheres, os homens e, por último, os líderes da igreja. "Quando a criança chorava ou pedia comida ou água, éramos orientados a pegar uma bengala e bater nelas para que pudessem ir comer no céu", explica Salema. "Então eu pensei a respeito e decidi que não poderia continuar naquela situação, não podia comer enquanto meu filho estava morrendo de fome. Eu disse a mim mesma: Se me sinto tão mal quando jejuo, imagina meu filho." Uma análise feita pela BBC dos sermões de Mackenzie em vídeo não mostram ele ordenando diretamente as pessoas a pararem de comer. No entanto, segundo Salema, ele era explícito durante as reuniões semanais aos sábados. "Inicialmente, o pastor cavou... poços de água [na floresta] e nos disse para esperar por Jesus, e nós esperamos. Mas então, de repente, ele nos disse que deveríamos jejuar e ir para o céu", afirma. Quando questionavam a ordem, como Salema fez, eram informados que, se adiassem sua morte, o céu estaria cheio: "O portão estaria fechado". Grande parte da pregação de Mackenzie girava em torno da nova carteira de identidade nacional no Quênia que incluirá dados pessoais codificados em um chip eletrônico — o "sinal da besta", como ele chamava, a ser evitado a todo custo. O custo era muito alto, e Salema descobriu que seu marido, um dos assistentes de Mackenzie, estava envolvido na parte operacional. Um amigo contou a ela que quando ele saía para trabalhar, na verdade estava indo enterrar os mortos. Um dia, em março, ele bateu o pé, obrigando a família a jejuar. Quatro dias depois, saiu para trabalhar — e Salema viu que era sua chance. Ela agarrou as crianças e partiu. "Meus filhos jejuaram por quatro dias sem comida e água, e eles estavam chorando", relembra. "Então, quando vi que eles estavam tão fracos, dei água a eles e disse a mim mesma que não podia permitir que meus filhos morressem." As crianças foram guiadas pela força de vontade inabalável da mãe e protegidas por seu status de esposa de um assistente de Mackenzie. Salema diz que foi desafiada por outros membros da seita, mas não parou, e quando chegou à estrada principal depois de caminhar vários quilômetros, pegou carona com "um bom samaritano" até um local seguro. Mas outros fugitivos foram detidos. Um grupo de "seguranças" do sexo masculino munido com facões os perseguiu, espancou e arrastou de volta para a floresta, segundo relatos de sobreviventes e ex-membros do culto. Mackenzie se rendeu às autoridades em 15 de abril. Ele nega ter ordenado seus seguidores a passar fome. Mas a operação de busca e resgate encontrou muitas crianças mortas enterradas em seu complexo. A polícia disse à imprensa local que soube por assistentes dele que haviam sido detidos que essa era uma forma de Mackenzie reconhecer o mandamento de Jesus de "deixai vir a mim os pequeninos", afirma a jornalista Marion Kithi. A polícia também informou que, antes de Mackenzie sair, ele ordenou que seus assistentes continuassem fazendo cumprir a inanição em massa e enterrando os mortos, de acordo com Kithi. As crianças sobreviventes forneceram muita informação sobre o que aconteceu, diz Victor Kaudo, ativista de direitos humanos da Haki Africa, que avisou a polícia que meninos estavam morrendo em Shakahola. Alguns dos adultos recusam tratamento mesmo depois de terem sido resgatados. E há suspeitas de que os membros da seita continuem a exercer influência além da floresta, silenciosamente dizendo aos sobreviventes para recusar comida e remédio. Kaudo conta que duas pessoas que seu grupo resgatou e considerou como vítimas eram, na verdade, "parte dessa milícia que o Mackenzie tinha" e precisaram ser separadas dos demais. Titus Katana, ex-membro da seita, conta que conhece a maioria dos assistentes de Mackenzie — e a maioria foi presa. Mas nesta semana um corpo foi descoberto caído na floresta, e não enterrado no solo. Isso o faz suspeitar que alguns dos "segurança" ainda estão "supervisionando o processo de jejum das pessoas". Salema conta que os assistentes de Mackenzie vieram à procura dela uma semana depois de ela ter ido embora — eles a aconselharam a voltar, mas não a ameaçaram. Ela sabe, no entanto, que outros não foram tratados com gentileza. Uma mulher foi até ela pedindo ajuda para escapar da seita com os filhos e arrumar dinheiro para pagar o transporte de volta para sua aldeia natal. Salema prometeu que a ajudaria. A mulher voltou para a floresta para buscar os filhos — e nunca mais se ouviu falar dela.
2023-05-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxwp1wkzw70o
sociedade
Israel está se debatendo sobre que país quer ser, diz escritor
"Israel é como uma pizza de pepperoni com abacaxi, uma mistura que não é normal, mas quando funciona, há algo muito bonito e rico nela." Descrever Israel, cuja proclamação como Estado moderno completa 75 anos, não é fácil, como bem sabe o escritor Etgar Keret, autor da metáfora acima. Vários mundos paralelos coexistem dentro de Israel em um equilíbrio instável, o que confere ao país uma enorme riqueza cultural, mas também faz dele uma bomba-relógio. O paradoxo israelense pode ser observado em uma noite de sexta-feira, quando na moderna Tel Aviv muitos jovens se preparam para cair na balada nas boates do Boulevard Rothschild, enquanto em Bnei Brak, a cerca de 4 quilômetros de distância, os ultraortodoxos se certificam de acender as velas antes do sabbat começar, já que, segundo a tradição judaica, após o anoitecer deste dia de descanso, o fogo (ou sua variante moderna, a eletricidade) não pode ser aceso. Eles tampouco podem, por exemplo, tomar banho quente ou usar pasta de dente, embora possam usar fio dental (mas não cortá-lo). Fim do Matérias recomendadas Um país que se encontra, segundo o escritor, num ponto de inflexão e cuja sociedade trava uma batalha interna entre as suas duas essências, a liberal e a religiosa, algo que existe desde o seu nascimento, mas que se agravou desde a chegada ao governo de uma coalizão de extrema direita e ultraortodoxos. Como tantos outros intelectuais, Etgar Keret, autor de obras como De repente, uma batida na porta ou Sete anos bons, participou das grandes manifestações ocorridas nos últimos meses nas principais cidades israelenses em defesa de uma democracia que consideram estar em perigo. Uma crise política que se transformou em uma batalha pela identidade do país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Keret, um artista versátil conhecido principalmente por suas antologias de contos salpicados de ironia fina, mas que também é autor de histórias em quadrinhos, livros infantis e roteiros para cinema e televisão, conversou com a BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, de sua casa em Tel Aviv. BBC News Mundo - Como você definiria a sociedade israelense hoje, se é possível defini-la? Etgar Keret - Vou tentar dar alguns exemplos de como Israel é especial. Quando vou para o exterior, digo às pessoas que muitas vezes, quando alguém escreve um bom livro de ficção científica, na sequência se faz o filme. Mas, no caso de Israel, havia um livro de ficção científica ruim, e eles criaram um país a partir dele. A ideia do estado judeu surgiu de um livro de ficção especulativa de Theodor Herzl chamado Altneuland: A Nova Terra Velha. Supostamente, Israel é um estado judeu liberal. Mas isso é um paradoxo, um oxímoro, que, por um lado, faz com que tenha muitas qualidades únicas, mas, por outro, é um pouco como se você estivesse andando o tempo todo sobre um abismo, na corda bamba de um circo. Para que você entenda a natureza intrínseca deste país: Israel é um país onde, quando tivemos que enviar alguém para nos representar no Eurovision, enviamos uma mulher transgênero, Dana International, e ela ganhou. Mas, ao mesmo tempo, somos um país tão religioso que não permitimos o transporte público no sabbat (o dia de descanso no judaísmo). No entanto, acredito que agora em Israel essa brecha realmente se transformou em uma loucura, uma batalha interna na sociedade israelense para decidir se o país deveria ser liberal primeiro e depois judeu, ou judeu primeiro e depois liberal. Qual é a hierarquia? Claro que para as pessoas que estão do lado mais religioso e tradicional, o liberalismo não é tão importante, pois tudo o que elas precisam já está escrito na Bíblia, é o manual delas. Mas nós que fomos às ruas protestar, a parte liberal, acreditamos que, antes de tudo, todos são seres humanos, somos todos iguais, todos queremos a mesma liberdade e, depois disso, somos judeus. Esta é a ordem em que vemos. BBC News Mundo - Como você acha que o país mudou desde que você era criança? Keret - Bem, em primeiro lugar, quando eu era criança, cresci em um estado socialista. Agora vivo em um megacapitalista. Então, quando penso na minha juventude comparada à do meu filho... A primeira pessoa sem-teto que vi foi quando eu tinha, se não me engano, 17 anos, e foi na França. Agora tenho que pular sobre os sem-teto a caminho do supermercado. Existe um ditado hebraico que diz que todos, no povo de Israel, estamos comprometidos uns com os outros. Então, na minha infância, se chegava um imigrante novo ou uma pessoa nova no bairro, nos primeiros dias a gente cumprimentava, convidava para beber, comer... Hoje em dia, o mais provável é que você encontre um bilhete dizendo que "se você estacionar seu carro aqui, iremos processá-lo". Essa ideia de comunidade comprometida sob a ideia de que este é um refúgio seguro para judeus de todo o mundo realmente não funciona mais. Meu sogro, Yehonatan Geffen, que foi um dos mais importantes poetas israelenses das últimas décadas, faleceu recentemente, e quando escrevi sua elegia (lamento de morte), os extremistas me disseram: "Esperamos que você se junte a ele logo e morra também". É puro ódio sem rosto, esse é o tipo de diálogo que o governo incentiva hoje. BBC News Mundo - E que ideia une os israelenses hoje? Keret - A primeira coisa que me vem à mente é um interesse mútuo em sobreviver em uma vizinhança que é muito hostil. Nenhum de nós quer ser conquistado e morrer. Não queremos ser bombardeados pelos iranianos. Mas assim que você se afasta um pouco mais dali, tudo é visto a partir de narrativas bem diferentes. E o absurdo disso tudo é que o governo que temos agora é muito de direita, muito agressivo, quer enfrentar todo mundo. Mas a maioria dos que votam neles são ortodoxos e ultraortodoxos que não servem o Exército (a lei permite que eles não prestem o serviço militar obrigatório). Eles são agressivos, mas querem que eu e meu filho lutemos por eles. Um estudo econômico recente dividiu o país em dois grupos, os que querem que Israel se torne menos democrático e os que protestam contra isso. E esse segundo grupo acaba sendo responsável basicamente por 90% do dinheiro que se ganha em Israel, enquanto a outra metade, por apenas 10%. Então você tem metade do país que trabalha, luta e protege, e a outra metade que diz que somos terroristas anarquistas cretinos e é uma pena que os nazistas não nos mataram. BBC News Mundo - Visto de fora, Israel parece ser formado por mundos diferentes que mal se tocam, com aspirações muito distintas para o presente e para o futuro. O ex-presidente Reuven Rivlin os chamou de "quatro tribos de Israel": os seculares, os ultraortodoxos ou haredi, os nacionalistas religiosos e os árabes israelenses. Keret - Meus pais, que já morreram, eram ambos sobreviventes do Holocausto e ambos eram de direita. Meu pai nunca votou em Benjamin Netanyahu (o atual primeiro-ministro e presidente do partido Likud) porque não confiava nele, mas ambos eram membros da (organização paramilitar sionista) Irgun, o grupo clandestino que lutou contra os britânicos. Então meu pai era basicamente uma pessoa do Likud, e minha mãe o apoiava. Meu irmão é antissionista de extrema esquerda. Minha irmã é ultraortodoxa. Ela tem onze filhos e mais de 50 netos. E seus netos nem sequer falam hebraico, só falam iídiche. Eles moram em Mea Shearim, um bairro de Jerusalém muito, muito rígido, no estilo dos Amish. E todos nós vivemos juntos sem problemas. Meu pai sempre dizia que opinião nada mais é do que um plano, e que temos planos diferentes, mas o mesmo propósito: queremos que a vida seja melhor, não queremos que ninguém inocente sofra. Podemos discutir sobre estratégia ou tática, mas temos o mesmo objetivo. Então, acho que o problema não é que as pessoas tenham ideias diferentes — mas, sim, que vivemos em uma era de facções, e quando essa falta de tolerância diante de qualquer ambiguidade encontra a complexidade deste país, acho que termina em destruição. BBC News Mundo - Essa mistura, no entanto, faz com que a sociedade israelense seja dinâmica, o que se reflete na literatura, no cinema ou no sucesso de séries como Fauda, na Netflix, ou de autores como Yuval Noah Harari. Keret - Quando você mora em um lugar que está em constante conflito, acho que sua vida assume um aspecto um tanto existencial. Uma vez, Diego Luna fez uma leitura dos meus contos para a Feira do Livro de Guadalajara. Quando nos conhecemos, eu disse a ele que não entendia por que, fora de Israel, o país do mundo no qual eu talvez tenha feito mais sucesso é o México. E ele me disse que nunca tinha estado em Israel mas, lendo meu livro, a ideia que ele tinha era de um lugar onde as pessoas são muito felizes, e insistem em ser felizes mesmo que tenham uma vida ferrada, e para quem, se você oferecer a eles um pouco de otimismo, vão ser seus amigos para sempre, mas se você os forçar a encarar suas vidas, eles vão ficar tão frustrados que vão te matar. E ele me disse: "Isso é muito parecido com o México. Pessoas otimistas que vivem uma vida difícil, mas não querem que os outros as lembrem de que sua vida é ruim". Então eu acho que há algo nesse tipo de tensão entre a dureza da vida, a busca por significado, de se sentir privilegiado e desafiado, que gera muitas histórias, e isso faz dele um terreno muito interessante (para a arte), que lida com conflitos, confrontos e tensões. BBC News Mundo - Há alguns anos, você disse que seu filho nunca havia conhecido um palestino, enquanto, quando você era pequeno, esse relacionamento era cotidiano. Como mudou a relação com os palestinos? Keret - Ironicamente, o que realmente fez com que palestinos e israelenses deixassem de se reunir foram, de uma maneira estranha, os acordos de Oslo. Porque no momento em que houve uma separação entre os territórios, a movimentação entre eles ficou menos informal. Quando eu era criança, os palestinos trabalhavam aqui o tempo todo porque não havia separação, então vivíamos todos juntos. Meu pai poderia andar na rua e ver dois palestinos trabalhando em um jardim e perguntar a eles: "Vocês são bons com madeira? Eu quero construir algo, posso pagar tanto, vocês estão interessados?" Era tudo muito natural. Agora não é assim, é muito separado, até os palestinos que vêm aqui para trabalhar, já que está tudo regulamentado, vão para o local de trabalho e depois voltam, não é como antigamente. Agora, na era do Facebook, acho que o israelense comum tem muito mais medo dos palestinos, e eu diria que o palestino comum sente muito mais ódio. BBC News Mundo - Isso torna essa geração mais jovem mais propensa à propaganda extremista? Keret - Completamente. Acho que vivemos numa época, e sinto isso como artista e como escritor, em que as pessoas não sabem lidar com a ambiguidade e a opacidade. Tudo é como no Facebook, precisam se posicionar em "curto" isso e "não curto" isso, não conseguem dizer "vou pensar sobre isso depois" ou "isso é confuso". O milagre deste país é que ele foi capaz de operar dentro de um oxímoro, mas isso está sendo desafiado por essa forma de pensar reducionista, e esse embate pode acabar explodindo na nossa cara. BBC News Mundo - Em uma de suas histórias, um taxista diz a você que sente saudade dos velhos tempos, em que havia guerras "de verdade", não como os conflitos que Israel vive hoje. Claro. Cresci em um país cercado por países inimigos, que eram Egito, Síria, Jordânia, Líbano... eles nos atacavam ou ameaçavam de todas as direções. Agora temos um acordo de paz com o Egito, temos um acordo de paz com a Jordânia, que maltratamos terrivelmente, Líbano e Síria tiveram guerras civis que os afundaram, e nossa grande ameaça vem do Irã, que nem sequer é um país árabe, e não é um país vizinho. Então éramos um pequeno estado frágil cercado por esses gigantes. Israel é agora, de qualquer ângulo que você olhe, a maior e mais forte potência do Oriente Médio, somos o país mais tecnológico, com a melhor Força Aérea, mas enfrentamos, na maioria das vezes, palestinos que vêm com facas e pistolas improvisadas. Antes, éramos Davi — e agora somos uma espécie de Golias. Quando você luta contra muitos para manter seu país de pé, é diferente de quando você para uma mulher grávida em um posto de controle e não a deixa ir ao hospital porque ela não tem autorização. É muito mais difícil romantizar isso. Então é claro que vivemos neste ciclo constante de violência e ódio, que não será resolvido, acredito eu, até que os palestinos tenham um país. Não tenho certeza se vai resolver, mas posso dizer com certeza que nunca tentamos. BBC News Mundo - Em outra de suas histórias, você conta como, nos parques de Tel Aviv, pais jovens não só falam sobre fraldas e noites mal dormidas, como também sobre se vão para o Exército quando completarem 18 anos, o que se torna uma das questões existenciais da vida. Keret - A ideia de ter um serviço militar obrigatório aqui é uma espécie de necessidade. É como se você vivesse em um deserto e tivesse que se revezar para tirar água do poço. Claro que é um problema, mas faz parte do nosso sistema, da mesma forma que, sei lá, colocar o cinto de segurança quando você está no carro ou o capacete quando está de bicicleta. Mas quem comanda esse exército? O exército israelense é chamado de Forças de Defesa de Israel e, tradicionalmente, a ideia era que, se alguém nos atacasse, nos defenderíamos. Mas com esse governo de direita, em que o Ministro da Economia faz um discurso com um mapa de Israel no qual toma uma parte da Jordânia porque, segundo a Bíblia, a Jordânia também fazia parte de Israel, você diz para si mesmo: eu quero ir para o exército para proteger o meu povo, não quero ir para o exército para manter uma espécie de fantasia racista, fascista, fundamentalista de pessoas em quem nunca votei. BBC News Mundo - Israel é um dos países do mundo com mais empresas start-up per capita, e alguns autores atribuem isso justamente ao que a passagem obrigatória pelo exército contribui para o caráter israelense... Keret - Bem, acho que essa ideia pertence mais ao âmbito dos livros de autoajuda. Normalmente, as pessoas vão para o ensino médio e depois para a universidade. Aqui as pessoas fazem o ensino médio e depois passam três anos no exército, onde vivem experiências que talvez um europeu ou um latino-americano jamais teria. E, às vezes, até praticam com equipamentos muito sofisticados que, em qualquer outro país, um jovem de 18 anos jamais teria acesso. E então, quando fazem 21 anos, vão estudar na universidade. Para algumas pessoas, é incrível, outras sofrem, mas é um modelo único. Mas acho que esse poderio tecnológico tem pouco a ver com o exército, e muito mais com o ethos individualista deste país. Se eu tivesse que fazer uma comparação reducionista entre judaísmo e cristianismo, diria que o cristianismo é uma religião de submissão, ouça a Deus. O judaísmo é uma religião de controvérsia e debate, você discute com Deus. Abraão, Jó, Moisés... todos discutiam com Deus, e a forma como estudam, tradicionalmente, é em duplas, debatendo sobre um texto. E isso realmente faz com que as pessoas deem mais importância às suas ideias e ao seu individualismo, e acho que é isso que fez com que se tornasse um berçário de start-ups. BBC News Mundo - Você acha que o futuro de Israel se parece mais com Tel Aviv ou Bnei Brak? Keret - Não sei qual será o futuro de Israel, e meu maior medo é que agora existem dois lados, e se um deles derrotar o outro, será uma tragédia. Porque isso significaria que metade do povo seria oprimido. Não importa em que combinação. Em Jerusalém (onde os religiosos vêm ocupando partes cada vez maiores da cidade), havia um bom equilíbrio entre religiosos, ultraortodoxos e seculares. Mas o sistema tem dificultado muito a vida das pessoas laicas, por isso muitos seculares estão deixando Jerusalém e se mudando para outras cidades. Jerusalém pode ser o mau exemplo do que pode acontecer com o país e, nesse caso, não haverá outra cidade para onde se mudar, as pessoas terão que sair do país.
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cekdm0pex5yo
sociedade
Por que conservadores estão em guerra contra Disney e cervejaria nos EUA
Nos Estados Unidos, enquanto conservadores se mobilizam em torno de questões sociais, o Partido Republicano está batendo de frente com o mundo corporativo. Mas será que os embates vão abalar sua aliança de longa data com as grandes empresas? Na casa de Sarah Fields, uma ativista conservadora do estado do Texas que é mãe de três filhos, algumas das maiores marcas americanas não são mais bem-vindas. Ela cortou primeiro a Disney, por causa de programas infantis com casais gays. Os boicotes aos cosméticos da Olay e às cervejas da Anheuser-Busch, fabricante da Bud Light, começaram mais recentemente, depois que ela soube que as empresas haviam trabalhado com a influenciadora de rede social transgênero Dylan Mulvaney. "Meu objetivo é proteger as crianças, e a primeira vez que vi corporações promovendo qualquer tipo de ideologia LGBTQ ou qualquer tipo de ideologia trans em relação às crianças foi quando realmente comecei a prestar mais atenção", diz ela. "Há tantas diferentes [agora], mal consigo acompanhar." Sarah, de 36 anos, se tornou politicamente ativa durante a pandemia de covid-19, protestando contra medidas de lockdown. Agora delegada do Partido Republicano em seu estado, ela é uma das pessoas que pressiona o partido a se mobilizar em torno de questões sociais, como identidade de gênero, e enfrentar empresas "woke". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As empresas já se viram em meio ao fogo cruzado das guerras culturais dos Estados Unidos antes. E, à medida que o país se torna mais polarizado, as companhias enfrentam pressão por parte de funcionários, clientes e acionistas de esquerda e direita a escolher um lado. Mas medidas legislativas que têm como alvo as empresas marcam uma nova fronteira para os republicanos, que tradicionalmente se aliaram às grandes corporações em questões como redução de impostos e regulamentação leve. Na Geórgia, legisladores ameaçaram retirar um incentivo fiscal da Delta Airlines, depois que seu presidente-executivo chamou mudanças em leis de votação de "inaceitáveis". Enquanto isso, dezenas de estados estão considerando propostas destinadas a impedir o governo de fazer negócios com empresas financeiras que levem em consideração fatores ambientais, sociais e de governança ao fazer investimentos — o que custou à BlackRock, um dos principais alvos da campanha, mais de US$ 4 bilhões em fundos de clientes desde janeiro. As medidas foram consideradas controversas, inclusive entre os republicanos — alguns deles dizem que as propostas vão longe demais interferindo em negócios privados. Os proponentes não demonstram remorso. "Meu trabalho é proteger os contribuintes e meus eleitores de abusos, independentemente de onde venha", diz Blaise Ignoglia, um dos senadores do estado da Flórida que apoiou a legislação relacionada à Disney — um embate que agora evoluiu para uma batalha legal pela liberdade de expressão. "Eles viraram as costas para pais e filhos quando decidiram apoiar a sexualização de nossos jovens mais vulneráveis." Ignoglia afirma que não está preocupado em enfrentar a Disney, que o apoiou no passado e tem um grande peso econômico e político na Flórida. Pelo contrário, ele diz: "Eu moro no segundo distrito mais vermelho (cor associada aos republicanos) do estado. Meus eleitores têm a mesma mentalidade". As grandes empresas perderam o controle sobre o Partido Republicano, à medida que o partido se inclina mais para a direita e ganha apoio de eleitores sem diploma universitário, enquanto perde terreno entre os universitários, avalia o sociólogo Mark Mizruchi, professor da Universidade de Michigan, nos EUA. Em 2022, a parcela de republicanos que diziam que as grandes corporações têm um impacto positivo foi de 26% — em pé de igualdade com os democratas e menos da metade do percentual de três anos antes, segundo o instituto Pew. Mas Mizruchi afirma que os ataques dos políticos às empresas por serem "woke" são "sobretudo uma cortina de fumaça", observando que em questões como sindicalismo, impostos e regulamentação, os líderes corporativos americanos e republicanos permanecem fortemente alinhados. No ciclo eleitoral de 2022, a maioria das doações políticas corporativas oficiais foi destinada aos republicanos, assim como aconteceu por quase três décadas, de acordo com dados do OpenSecrets. "Os republicanos têm que jogar esse jogo muito cuidadoso de apoiar os ricos e as grandes empresas nos bastidores, mas fazendo parecer para o público que estão do lado das pessoas físicas", diz o professor. "É por isso que ir atrás do 'wokeísmo' é uma boa maneira de fazer isso — porque não é uma questão fundamental [para as corporações]." O impacto financeiro da reação conservadora parece ser relativamente limitado até agora. Na BlackRock, os fundos perdidos correspondem a menos de 2% de sua carteira. A queda nas vendas da Bud Light nas primeiras três semanas de abril refletiu apenas 1% do volume geral da Anheuser-Busch. Mas o clamor mudou o clima, diz Martin Whittaker, executivo-chefe da Just Capital, organização sem fins lucrativos que classifica as empresas com base em questões como remuneração dos trabalhadores e impacto ambiental. Embora muitas empresas ainda estejam seguindo em frente com iniciativas internas, ele afirma que as discussões públicas ficaram mais silenciosas. "Você não está vendo CEOs arriscando o pescoço." A Disney, que se pronunciou sobre o projeto de lei da Flórida sob pressão de seus funcionários, entrou com um processo judicial contra o estado. Mas outras empresas parecem ter recuado. Na carta anual da BlackRock deste ano, os riscos climáticos mal foram mencionados, embora a companhia reconhecesse os desafios devido a opiniões "divergentes entre as regiões". Empresas de cartão de crédito informaram que adiariam as mudanças que os ativistas esperavam que poderiam ajudar a rastrear compras de armas, citando a incerteza jurídica. E algumas grandes empresas financeiras, incluindo a Vanguard, desistiram de iniciativas voltadas para as mudanças climáticas, indicando "confusão" sobre seus pontos de vista. Will Hild é o diretor executivo da Consumers' Research, um grupo que desde 2021 lidera campanhas publicitárias multimilionárias voltadas para empresas como Nike, American Airlines, Major League Baseball e Levi's por colocar "políticas 'woke' acima dos interesses do consumidor". "As pessoas esquecem que na primavera de 2021 você tinha empresas se envolvendo em discussões de integridade eleitoral a nível estadual na Geórgia e no Texas”, diz ele. "Você não viu isso nos anos seguintes e, para nós, isso é uma indicação de que nossas campanhas foram bem-sucedidas." No mês passado, após semanas de ataques de analistas e políticos conservadores à Anheuser-Busch por sua parceria com Dylan Mulvaney, a empresa colocou dois executivos de licença e divulgou uma série de anúncios da Bud Light repletos de imagens de bandeiras americanas e cavalos galopando em um campo aberto. A companhia, que não respondeu ao pedido de comentário da BBC, disse que não pretendia fazer "parte de uma conversa que divide as pessoas". Criticada por alguns da esquerda, a reviravolta foi vista por Sarah como uma vitória. "O que aconteceu com a Bud Light é um ótimo começo e deveria ser assim com todas as empresas", afirma. "Precisamos ter menos medo e precisamos começar a usar mais nossa voz."
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxxy631g0dyo
sociedade
As dicas de negociadores de paz para reconciliar Brasil polarizado
Nas últimas décadas, a mediação de conflitos virou uma espécie de ciência. Hoje há vários cursos universitários e pesquisadores dedicados ao tema, e técnicas desenvolvidas por eles já ajudaram a encerrar guerras em vários países. Esses métodos também vêm ganhando espaço em sistemas judiciais, onde são empregados como alternativas ao encarceramento e em conciliações entre vítimas e ofensores. Será que essas práticas poderiam ser úteis para uma sociedade brasileira tão polarizada? Mediadores experientes teriam dicas a compartilhar com brasileiros que brigaram com parentes ou amigos por causa da política? Apresentado pelo repórter João Fellet, o podcast trata de conflitos que dividem a sociedade brasileira. Os episódios vão ao ar às sexta-feiras. Ouça um trecho: Fim do Matérias recomendadas Afonso Celso Prazeres de Oliveira, de 83 anos, é um expert em mediação de conflitos, ainda que nunca tenha estudado o tema. Ele é síndico desde 1993 de um dos maiores edifícios do Brasil, o Copan, no centro de São Paulo. O Copan tem 1.160 apartamentos e cerca de 5 mil moradores — ou seja, é mais populoso do que muitas cidades brasileiras. Ele diz que o período mais difícil que enfrentou como síndico foram os anos 1990. Na época, o Copan era um grande ponto de tráfico de drogas e de prostituição. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Afonso diz que o combate às atividades lhe rendeu ameaças, e ele teve até que passar um tempo usando colete à prova de balas. Hoje, os problemas parecem ter sido superados, e o Copan se tornou um dos edifícios mais valorizados da região. Mas há outra explicação para o sucesso do síndico, segundo moradores ouvidos pelo podcast Brasil Partido: a forma como ele lida com brigas entre condôminos. “Aprendi ao longo do tempo a ouvir as pessoas. Quando é necessário o silêncio, ele permanece. Salvo o contrário, (faço) uma ou outra observação, nunca desfavorável”, afirma o síndico. “Tento sempre conversar com os dois lados, porque só ouvir uma parte você não vai fazer juízo do problema.” Ele diz que já viveu outros dois momentos de polarização intensa no Brasil: o segundo mandato de Getúlio Vargas (1951-1954) e a ditadura militar (1964–1985). Para ele, o conflito político atual “é uma repetição da história com personagens novos”. Segundo Afonso, Lula e Bolsonaro são reflexos “de um passado recente que não mudou e talvez tão cedo não vai mudar”. Mesmo sem jamais ter estudado mediação de conflitos, Afonso segue alguns preceitos dos especialistas nesse campo, como o de buscar ouvir, não fazer julgamentos sobre os interlocutores e jamais tomar partido numa disputa. Esses preceitos são alguns dos pilares de uma filosofia hoje usada para mediar conflitos em diferentes ambientes: a comunicação não violenta. Juliana Calderón é consultora em comunicação não violenta do Instituto Tiê, que dá treinamentos sobre esse tema em empresas. Ela diz que chegou a esse campo depois de ajudar a mediar a separação de seus pais. “Ali eu percebi essa minha aptidão para tentar conciliar”, conta. Mas foi só após se formar na faculdade de Comunicação que ela conheceu a obra do psicólogo americano Marshall Rosenberg, o principal teórico da comunicação não violenta. Morto em 2015, Rosenberg dizia que por trás de todo comportamento humano existe alguma necessidade: ser ouvido, respeitado, se sentir seguro, reconhecido, amado etc. Para ele, uma pessoa agride outra quando sente que alguma necessidade dela não foi atendida. Nesse caso, o que uma pessoa que usa a comunicação não violenta faz é buscar as razões que levaram o outro a ser agressivo, em vez de retribuir a agressão. Juliana conta que o emprego da comunicação não violenta numa discussão exige trocar julgamentos por fatos. Por exemplo: se uma pessoa está chateada com um amigo que não atendeu seus telefonemas quando ela precisava de ajuda, a pessoa deve evitar falas como “você não se importa comigo”, ou “você não tem consideração pelas pessoas”. Em vez disso, diz Juliana, a pessoa deve citar fatos: “Tentei te ligar X vezes, precisava muito da sua ajuda, mas você levou tantas horas para me atender”. Segundo Juliana, quando a conversa segue esses parâmetros, é mais fácil descobrir por que o amigo não atendeu os telefonemas e buscar uma conciliação que considere as necessidades das duas partes. Para ela, muitas brigas sobre política poderiam ser evitadas se as pessoas seguissem os princípios da comunicação não violenta. Juliana diz, inclusive, que a polarização política no Brasil é também um problema de comunicação. “A forma como a gente vê o mundo dessa maneira binária, dualista, está impregnada na nossa comunicação. Tem um conflito de ideias entre duas pessoas e a gente já está assim: ‘Quem é o certo, quem é o errado?’”, afirma. “Então a gente fica cada um na sua bolha, xingando a outra bolha e vivendo em realidades paralelas que não se afetam mutuamente.” A comunicação não violenta também tem sido usada para lidar com conflitos graves que chegam à Justiça. Joana Blaney e a Mariana Pasqual Marques trabalham no Centro de Direitos Humanos e Educação Popular (CDHEP), uma ONG que funciona há décadas num casarão azul no Capão Redondo, na zona sul de São Paulo. A organização foi fundada em 1989 a partir de uma Comissão Pastoral da Arquidiocese de São Paulo. Joana e Mariana não são apenas mediadoras de conflitos: os métodos que elas empregam também buscam reparar os danos causados pela violência e reconciliar as pessoas envolvidas no caso. Depois de fazer Mestrado em Educação e de trabalhar como professora e diretora de escolas em Washington e na Filadélfia, Joana chegou ao Brasil no fim dos anos 90 como voluntária da Maryknoll, um dos principais órgãos missionários da Igreja Católica nos Estados Unidos. No início, ela trabalhou em favelas de São Paulo, ajudando comunidades a se organizarem. Alguns anos depois, Joana conheceu um projeto criado pelo padre colombiano Leonel Narvaez, as Escolas de Perdão e Reconciliação. Nessas escolas, vítimas da guerra civil na Colômbia — inclusive ex-combatentes — aprendiam a ler e escrever ao mesmo tempo em que eram estimuladas a falar sobre emoções. Muitos deles já eram adultos, mas nunca tinham se alfabetizado. As pessoas traziam para os encontros palavras que eram significativas para elas, como raiva, luta, medo e ódio. Então elas dialogavam sobre suas vidas e sobre os sentimentos que essas palavras despertavam. Depois, conforme aprendiam a escrever, as palavras podiam ser desconstruídas: as letras eram reposicionadas para formar outras palavras que remetessem a sentimentos menos dolorosos e mais pacíficos. As Escolas de Perdão e Reconciliação deram tão certo na Colômbia que se espalharam por vários outros países com altos índices de violência, incluindo o Brasil. “Fomos treinados para ser facilitadores e vimos como este curso ajudou muito as pessoas a se recompor dentro e ir para frente com sua vida, depois lidando com as dores e os traumas de uma maneira bem saudável”, diz Joana. A experiência com as Escolas de Perdão e Reconciliação aproximou a Joana de um campo em que ela se tornaria uma referência no Brasil: a Justiça Restaurativa. Trata-se de uma filosofia de resolução de conflitos não punitivista e em grande parte inspirada em práticas de diferentes povos indígenas e comunidades tradicionais. É o caso, por exemplo, dos Círculos de Construção de Paz, uma prática inspirada em tradições de povos indígenas canadenses. Nesses círculos, a pessoa que causou algum dano se reúne com as pessoas prejudicadas e outros membros da comunidade para debater sua ação e formas de remediá-la. Nesse modelo, o ofensor não é punido nem apartado da sociedade. O foco desse sistema é a reparação do dano, e o ofensor inclusive participa da construção de um acordo com esse objetivo. A reparação pode incluir trabalhos comunitários e uma indenização financeira às vítimas, além de demonstrações de remorso e arrependimento por parte do ofensor. “Tem bem menos reincidência, porque, comparado com mandar todo mundo para o presídio, a pessoa entende melhor o impacto (de seu ato) e já vai reparar o dano fazendo esse acordo com a própria vítima ou a família da vítima”, diz Joana. Segundo ela, como o ofensor não é preso, “tem condições de alugar um lugar para morar, de ter um emprego. Então, isso para mim é reabilitação”, afirma. Vários países têm incorporado práticas desse tipo em seus sistemas de Justiça, normalmente para lidar com crimes de menor gravidade — e desde que todas as partes do processo concordem. No Brasil, hoje pelo menos dez Estados têm tribunais com núcleos de Justiça Restaurativa onde atuam facilitadores formados pelo CDHEP. “Nossa ideia realmente é parar o encarceramento em massa que estamos vendo aqui no Brasil”, diz Joana. Para Mariana, no sistema de Justiça atual, que enfoca a punição, muitos infratores jamais têm de lidar com o impacto de suas ações nas vítimas. Ela conta que, ao trabalhar com Justiça Restaurativa em presídios de São Paulo, conheceu muitos detentos que nunca tinham refletido sobre as consequências de seus atos. “Claro, porque é um sistema de tanta reprodução da violência, que ele mesmo entra no lugar de vítima. Primeiro ele precisa ser reconhecido como vítima para depois ele entrar nesse processo de ‘olha, eu cometi um erro que não é aceitável e eu preciso reparar ele’. E aí alguns desses homens pediam para conversar com as suas vítimas”. É possível aplicar as técnicas que Joana e Mariana usam na Justiça Restaurativa para falar sobre política e reconciliar parentes que brigaram por causa desse tema? “É possível”, diz Joana. “O que me ajuda muito é lembrar que cada pessoa tem sua história, suas experiências e o direito de pensar e acreditar o que ela acredita, desde que não faça mal para a outra pessoa”. “Por que eu preciso convencer o outro que eu estou certa? Por que eu não posso tentar dialogar com o outro fazendo perguntas?”, questiona. Para Mariana, para que as pessoas saibam travar conversas difíceis, elas precisam aprender a nomear sentimentos. Segundo ela, porém, nas escolas, “a gente não tem nenhum tipo de letramento mais sentimental, de lidar com as coisas, de identificar — muito pelo contrário”. Mariana defende a construção de uma cultura de diálogo, o que envolve transformar instituições públicas como hospitais e escolas em espaços de diálogo. “Vai na unidade básica de saúde ser atendido para ver se é um espaço democrático. Você não vai falar nada”, critica. O Brasil não vive uma guerra civil, mas a história mostra que esse é um caminho possível quando uma sociedade se fragmenta. Foi o que aconteceu na Colômbia, onde décadas de conflitos entre guerrilhas e forças do governo provocaram cerca de 800 mil mortes, segundo a Comissão da Verdade da Colômbia. O conflito ficou mais próximo de um desfecho em 2016, quando a principal guerrilha colombiana, as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), assinou um acordo de paz com o governo do país. Negociado ao longo de quatro anos, o pacto mostrou que inimigos eram capazes de se sentar à mesa e chegar a um entendimento, mesmo depois de tantas mortes e tanta dor. O Brasil teria algo a aprender com esse processo? Sergio Jaramillo foi o chefe da delegação do governo colombiano que negociou o acordo de paz com as Farc. Ele cita ao podcast Brasil Partido três elementos que foram essenciais para o sucesso das negociações. O primeiro foi definir regras para as tratativas de paz que atendessem todos os lados, algo que ajudou a aproximar as partes. O segundo ponto foi estimular as partes, incluindo os militares colombianos, a reconhecer os impactos de suas ações e a lidar com as vítimas desses atos. Jaramillo diz que essa diretriz não é válida só para crimes de guerra: quando alguém reconhece seus erros, quem foi prejudicado por esse erro também se sente reconhecido. Por outro lado, quando uma parte se recusa a reconhecer as dores e necessidades da outra, o distanciamento entre elas tende a crescer até ficar intransponível. O último ponto foi criar espaços de encontro entre grupos que normalmente não conversam uns com os outros. Nas áreas da Colômbia mais afetadas pela guerra civil, sentavam-se à mesma mesa fazendeiros, sindicalistas e líderes religiosos — grupos com posições políticas diversas e muitas vezes antagônicas —, para debater formas de lidar com o conflito. Os encontros foram batizados de Diálogos Improváveis. A premissa era: não dava para encerrar o conflito por uma decisão de governo. As autoridades podiam ser facilitadoras, mas os diferentes segmentos da sociedade colombiana é que tinham de se entender. Apesar das dificuldades, Jaramillo diz que lentamente a paz vai criando raízes na Colômbia. Não por mérito das autoridades, mas porque “as pessoas nos territórios resolveram abrir espaços de diálogo, não se render às adversidades e tocar a paz adiante”.
2023-05-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clk4jygg21po
sociedade
Decisão 'arbitrária' ou 'irretocável'? Juristas divergem sobre cassação de Deltan Dallagnol
Apesar da decisão unânime do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pela cassação do deputado Deltan Dallagnol (Podemos-PR), juristas divergem sobre se houve correta aplicação da lei da Ficha Limpa. Na visão do ex-juiz eleitoral Márlon Reis, considerado o "pai" dessa lei, a decisão do TSE foi "irretocável". Já Marco Aurélio de Mello, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF), disse à reportagem estar "perplexo" com a pena imposta, enquanto o jurista Miguel Reale Júnior chamou a decisão de "arbitrária". Segundo a lei da Ficha Limpa, membros do Ministério Público que tenham sido demitidos ou aposentados compulsoriamente em um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) ficam inelegíveis por oito anos. Além disso, para evitar que promotores e procuradores pedissem demissão antes da conclusão de um PAD para se livrar da inelegibilidade, a lei também estabelece que essas autoridades não podem disputar eleição caso peçam exoneração com um processo em andamento. Fim do Matérias recomendadas No caso de Dallagnol, não havia PAD aberto quando ele pediu seu desligamento do Ministério Público, em novembro de 2021, visando disputar a eleição de 2022. O que havia eram dois processos já finalizados, que resultaram em pena de censura e advertência, e outros 15 procedimentos preliminares contra ele que, em tese, poderiam resultar na abertura de novos PADs. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os sete ministros do TSE votaram pela cassação por que entenderam que Dallagnol pediu exoneração antes do prazo limite para poder disputar a eleição, justamente para evitar a abertura de outros processos administrativos disciplinares que poderiam lhe deixar inelegíveis. Na visão da Corte Eleitoral, essa conduta do ex-chefe da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba foi uma fraude contra a aplicação da lei da Ficha Limpa. "Dallagnol antecipou sua exoneração em fraude à lei. Ele se utilizou de subterfúgios para se esquivar de PADs ou outros casos envolvendo suposta improbidade administrativa e lesão aos cofres públicos. Tudo isso porque a gravidade dos fatos poderia levá-lo à demissão", decidiu o ministro Benedito Gonçalves, relator da ação, em voto acompanhado pelos demais. Dallagnol ainda pode recorrer ao STF, mas é incomum que o Supremo derrube decisões do TSE. A Corte Eleitoral é formada por sete ministros, sendo três deles integrantes do STF – no momento, Alexandre de Moraes, Cármen Lúcia e Nunes Marques. Em um pronunciamento no Salão Verde da Câmara na quarta-feira (17/5), Deltan Dallagnol disse aos jornalistas que os ministros dos TSE usaram uma “inelegibilidade imaginária” para cassar o mandato dele. O argumento foi o de que não existem processos administrativos disciplinares abertos contra ele. Para ele, o motivo do afastamento foi uma vingança. "Eu fui cassado por vingança, porque eu ousei enfrentar o sistema de corrupção", afirmou. "Hoje o sistema da corrupção está em festa", disse. E seguiu dizendo os nomes de quem estaria comemorando o revés dele. "Gilmar Mendes está em festa, Aécio Neves, Eduardo Cunha, Beto Richa estão em festa". E acrescentou: "Perdi o meu mandato porque combati a corrupção. Hoje, é um dia de festa para os corruptos e um dia de festa para Lula". Ele ainda insinuou que há uma influência do STF na decisão. "Eles conseguiram que sete ministros superassem decisões e pareceres unânimes anteriores e que me cassaram. Liderados por um ministro, que já disse o ministro Alexandre de Moraes na cerimônia de diplomação de Lula: 'missão dada, missão cumprida’. Liderados por um ministro que, ao encontrar Lula certa vez, disse: 'está tudo em casa'". Ministro aposentado do STF, Marco Aurélio de Mello criticou a decisão. "Particularmente, fiquei perplexo com a situação jurídica. Eu tenho sérias dúvidas quanto à constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, que sinaliza no sentido de que o simples processo administrativo gera a inelegibilidade", disse à BBC News Brasil. "E, pelo que eu li hoje no noticiário, sequer haveria um processo administrativo, e o Tribunal Superior Eleitoral acabou simplesmente imaginando a existência e pré-julgando até o que seria o processo administrativo e declarando a inteligibilidade", disse ainda. Embora seja crítico da autuação de Dallagnol como procurador, o jurista Reale Júnior também considerou errada a cassação do mandato. "O TSE, a meu ver, errou. Sempre fui muito crítico ao Dallagnol e sua posição messiânica, que rompeu com regras obrigatórias do processo. Não gosto do trabalho do Deltan, mas gosto menos do arbítrio. A Lei da Ficha Limpa é bastante precisa ao dizer que quem pede exoneração tendo processos administrativos disciplinares pode ser declarado inelegível. Não era o caso do Deltan, que tinha apurações em andamento", disse em entrevista ao portal Uol o ex-ministro da Justiça (no governo de Fernando Henrique Cardoso) e autor do pedido de impeachment que cassou Dilma Rousseff. "Houve uma decisão unânime e acho muito difícil reverter. O Deltan tem outros críticos no Supremo Tribunal Federal com posições políticas fortes. O país caminha totalmente para um campo de abuso de direito. É um absurdo. Isso não vai ajudar de forma alguma que o país encontre um pouco de harmonia e respeito pela autoridade e pelas instituições. Na base do calor, da paixão, o país não prospera", acrescentou Rele Júnior Já Márlon Reis disse à BBC News Brasil que a decisão é "irretocável". O ex-juiz participou da elaboração da Lei da Ficha Limpa e da mobilização para aprová-la no Congresso, o que ocorreu em 2010. Ainda que não houvesse PAD aberto contra o então procurador no momento de sua exoneração, para ele a decisão do TSE está bem fundamentada em mostrar que o pedido de demissão teve intenção de evitar a abertura de um processo que poderia provocar sua inelegibilidade. Nesse sentido, os ministros da Corte avaliaram a gravidade dos procedimentos preliminares que tramitavam contra Dallagnol e o fato de ele ter se exonerado em novembro de 2021, cinco meses antes do prazo previsto na legislação eleitoral – integrante do Ministério Público é obrigado a se demitir do cargo apenas seis meses antes da eleição. Outro elemento considerado é que o pedido de exoneração ocorreu dezesseis dias após outro procurador da Lava Jato ser demitido em um processo administrativo disciplinar, por ter pago a instalação de um outdoor em homenagem à força-tarefa. Para Reis, a decisão do TSE seguiu o "espírito da lei", que busca evitar que autoridades driblem as hipóteses de inelegibilidade. Ele lembra que, no caso de parlamentares, a Lei da Ficha Limpa deixa inelegível aquele que renunciar ao mandato quando há uma representação para abertura de processo de cassação – ou seja, mesmo antes da abertura do processo, quando ele ainda está em análise. "O que foi muito bem abordado no voto do relator (ministro Benedito Gonçalves) foi a verificação de que o PAD seria aberto porque as matérias eram muito graves. E com o volume de conhecimento do deputado sobre o tema, ter antecipado o pedido de exoneração para evitar a abertura do PAD poderia ser reconhecido como abuso de direito, fraude à lei ou desvio de finalidade", ressalta. Não sua visão, isso "autoriza a decisão do tribunal, porque (se isso não gerasse inelegibilidade) daria o poder imenso para pessoas investigadas, de decidir a hora de sair ou não, justamente para não se tornar inelegível". Letícia Kreuz, professora Substituta de Teoria do Estado da UFMG, também vê elementos suficientes para o TSE considerar que houve fraude à lei por parte do deputado. Ela considera que alguns trechos da Lei da Ficha Limpa ferem a presunção da inocência, por exemplo ao impedir que pessoa condenada em segunda instância (ou seja, que ainda podem recorrer da sentença) fiquem impedidas de disputar eleição. No entanto, a professora defende as regras mais duras para inelegibilidade no caso de condutas indevidas de juízes e de membros do Ministério Público, justamente para evitar que autoridades que trabalham com a aplicação das leis atuem de forma política, mirando uma possível eleição. Na sua visão, seria importante, inclusive, que o Congresso aprovasse uma quarentena mais longa que forçasse essas autoridades a se afastarem dos seus cargos com uma antecedência maior que o limite atual de seis meses. "São pessoas que estão em cargos com poderes e funções muito importantes, muito específicos dentro dessa estrutura constitucional e, sendo assim, a elas recaem também alguns deveres que diferem dos deveres que outros servidores públicos terão, inclusive alguns ônus quanto a inelegibilidade", explica. O objetivo, nota a professora, é impedir que essas pessoas possam "instrumentalizar o cargo" politicamente. "Vamos dizer que essas autoridades tivessem uma atuação política ao longo do cargo e que isso importasse em processos administrativos. E aí elas, simplesmente, após vários atos que contrariam aquilo que se espera do dever funcional, deixam o cargo e concorrem a um cargo eletivo. Nesses casos, elas se beneficiariam justamente do mau comportamento na condição de magistrados e membros do Ministério Público que ensejou", avalia a professora.
2023-05-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjqkp3ve12jo
sociedade
PM que fuzilou dois colegas era conhecido pela gentileza e falou com a BBC um mês antes do crime
Um homem calmo, educado, respeitoso e, principalmente, gentil. Assim é descrito o sargento Claudio Henrique Frare Gouveia, de 53 anos, por conhecidos, colegas de farda, comerciantes próximos ao batalhão onde ele trabalhava, nas redes sociais e por alunos de uma associação onde ele ensinava patinação. Mas, na segunda-feira (15/5), ele teria usado um fuzil para matar dois colegas de farda, o sargento Roberto da Silva e o capitão Josias Justi, comandante da PM na cidade de Salto, no interior de São Paulo. Em seguida, Gouveia se entregou a outro policial. A motivação do crime ainda não foi esclarecida oficialmente, mas a reportagem apurou que o duplo homicídio pode ter sido provocado por frequentes desentendimentos entre os policiais, principalmente por conta das escalas de trabalho. Casado, o capitão Justi deixa dois filhos, de 3 e 5 anos. Já o sargento Silva, também casado, deixa três filhos, de 15, 18 e 29 anos. Ambos foram enterrados no cemitério Pax, em Sorocaba. Fim do Matérias recomendadas Procuradas, a Secretaria da Segurança Pública e a Polícia Militar não deram detalhes sobre o caso e se resumiram a dizer, por meio de uma nota, que "todas as providências de Polícia Judiciária Militar estão em andamento neste momento e a Corregedoria da Instituição acompanha as apurações". Há um mês, a reportagem da BBC News Brasil entrevistou o sargento Claudio Gouveia. Durante uma conversa de quase uma hora, a reportagem buscou entender por que ele era considerado nas redes sociais, especialmente no YouTube, um dos policiais "mais gentis do Brasil" e o que ele pensava disso. Durante a entrevista, o sargento Gouveia agradeceu os elogios recebidos nas redes sociais e afirmou que apenas fazia o trabalho dele, seguindo o manual da Polícia Militar. "A polícia foi aprendendo [ao longo dos anos] com as situações adversas que ela foi encontrando e foi melhorando. Não tive nenhuma ocorrência grave na minha vida, na minha carreira. Hoje, eu estou com 32 anos de polícia. Passei por diversos batalhões por consequência do meu trabalho", afirmou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na terça-feira (16/5), a BBC foi até Salto, onde conversou com dezenas de pessoas, entre testemunhas do crime, comerciantes da região e também com a mulher de Gouveia. A intenção foi saber mais sobre o que motivou a atitude do sargento contra seus colegas. A reportagem teve acesso ao boletim de ocorrência feito pela Polícia Militar, que contém o depoimento de 12 policiais militares que estavam no batalhão no momento do duplo homicídio. De acordo com as testemunhas, por volta das 9h, Gouveia disse para os militares que haveria um treinamento, que seria feito com fuzis na parte externa do batalhão, e pediu para que todos saíssem do prédio e fossem até o local. Quando todos saíram, dizem as testemunhas, ele trancou a porta e foi para a sala onde estavam as vítimas. Um policial disse à reportagem que, no caminho, ele passou pelo setor administrativo e fez um alerta. "Ele disse para as pessoas não se preocuparem porque não aconteceria nada com elas. Que poderiam ouvir barulhos, mas que ficaria tudo bem com as outras pessoas da equipe", afirmou à reportagem um policial que pediu para não ser identificado. Armado de um fuzil, ele fez diversos disparos contra Roberto da Silva e Josias Justi, contam as testemunhas. As vítimas chegaram a ser socorridas pelo helicóptero Águia da PM, mas não resistiram aos ferimentos. Logo após os tiros, Gouveia algemou a si mesmo e se entregou, segundo sua defesa. A previsão era de que ele passasse por uma audiência de custódia na terça-feira (16/5) para decidir se ele seria solto ou mantido preso no presídio Romão Gomes, dedicado a policiais militares, na zona norte da capital paulista. No entanto, ele passou mal e a audiência foi remarcada para esta quarta (17/5). Com bandeiras a meio mastro, o batalhão funcionou normalmente no dia seguinte, mas com um profundo clima de tristeza. Os policiais dizem que a tropa está psicologicamente abalada. "Está todo mundo arrasado. Ninguém tem condições de trabalhar aqui hoje. O enterro estava lotado e a nossa equipe foi ao velório. Ninguém consegue acreditar no que aconteceu", relatou um dos PMs à reportagem. Uma comerciante da região, que pediu para não ser identificada, disse que o sargento era visto frequentemente ajudando pessoas, como vizinhos e moradores de rua. "Foi por causa dessa bondade dele que as pessoas ficaram chocadas quando descobriram que foi ele [o autor do crime]. É inacreditável", exclamou. Outro, disse que faria um almoço para os soldados nesta semana e que já tinha inclusive comprado as carnes, a pedido do capitão Josias Justi. "Eu não tenho do que reclamar de nenhum deles. Conheço os policiais desse batalhão e não tem como acreditar no que aconteceu, principalmente o Gouveia. Eu não julgo porque não sei o que passou na cabeça dele, mas foi algo completamente imprevisível", afirmou à reportagem. Questionado sobre quais seriam as possíveis motivações, o policial se resumiu a dizer: "Muita pressão". Na terça, a BBC também conversou por telefone com a mulher do sargento Gouveia. Ela disse que, ao menos por enquanto, não vai comentar o caso. Mas mandou algumas fotos do policial durante as aulas de patinação e afirmou que ela está extremamente abalada. Procurada, a Polícia Militar não informou se Gouveia e a mulher dele, também PM, recebiam acompanhamento psicológico nem mesmo qual seria a motivação do crime. A reportagem não conseguiu contato com as famílias das vítimas do crime. Nascido no Paraná e criado em Araçatuba, no interior de São Paulo, o sargento Gouveia já atuou também na capital paulista, em batalhões da zona sul e central. Em Salto há dez anos, ele contou para a BBC que entrou na polícia por influência do pai. "Ele foi agricultor por muito tempo, analfabeto. Era o sonho dele entrar no Exército ou virar policial. E parte dos brinquedos que ele dava para a gente eram viaturas e distintivos. Nisso, servi o Exército e surgiu a oportunidade de prestar concurso. Prestei, passei e estou até hoje, incentivado pelo meu pai", contou ele. Ele disse ter iniciado a carreira na polícia em 1991 e que se orgulhava de não ter se envolvido até então em nenhuma ocorrência grave. Durante toda a entrevista, ele manteve um tom elogioso à corporação e citou uma evolução na conduta da tropa como um todo. Em um vídeo de pouco mais de um minuto, registrado por uma câmera acoplada ao capacete de um motociclista abordado na região de Salto, o sargento Gouveia conversa com o homem de maneira cordial e respeitosa. Com uma postura receptiva e sem armas em punho, ele pergunta o nome e o que o piloto está carregando no baú. "Marmita e bolo", responde o motociclista na sequência. "Senhor [nome do motociclista], está sendo desencadeada a Operação Rodovia Mais Segura em todo o Estado de São Paulo, simultaneamente. Desce um pouquinho (da moto), põe no pezinho e apresente o documento do senhor", disse com calma o experiente sargento Gouveia. "Esse policial tem meu completo e absoluto respeito. Policial digno e exemplar. Que pena que nem todos são assim tão simpáticos", diz o mais curtido deles. Entre as dezenas de comentários que rasgam elogios ao sargento, um deles também destaca o comportamento do oficial sem a farda. "Ele é meu treinador de hóquei. Ele é um dos melhores policiais que já conheci. Conheço ele de farda e na casa dele. Um exemplo de cidadão e de policial. Ele tem um projeto social onde ensina patinação aqui no meu bairro. Ele é muito respeitado na comunidade local", afirmou. Durante a entrevista à BBC News Brasil, os momentos que mais empolgaram o sargento Gouveia foram quando ele foi perguntado sobre as aulas de patinação que oferecia no bairro onde morava em Salto. "A minha atuação na comunidade lá se destaca. A gente consegue atingir mais de 300 pessoas, entre os que já saíram, que se formaram, e os que ficaram e hoje são voluntários. Nós hoje temos psicólogos, professores de história, profissionais liberais. Todo tipo de pessoa. Alunos, adolescentes que se tornam instrutores, ficam lá dentro do Instituto e continuam dando aula de patinação. Tudo de graça", contou. São 30 voluntários que participam das aulas gratuitas. Até mesmo o equipamento é oferecido pelo sargento. As pessoas que se destacam são chamadas para participar do time de hóquei da cidade, apelidado de Jump City, uma brincadeira com o nome da cidade em inglês. "O nosso foco aqui é só cuidar da criançada, da população", afirmou. Na entrevista, o sargento Gouveia criticou quem usa casos de violência policial para generalizar o comportamento da corporação. "Ocorre uma ocorrência lá no Amazonas e a pessoa não diz que foi lá no Amazonas, que foi aquele policial. Uma ocorrência foi lá no Pará. Você teria que falar: 'Foi um policial militar lá do Pará que cometeu aquela ocorrência e está sendo submetido a todo tipo de situação administrativa, respondendo por um fato que se tornou crime'. [Mas] não, a pessoa fala 'a Polícia Militar'. Hoje, com a globalização e a disseminação da notícia, é muito fácil. As pessoas acabam colocando no mesmo tonel", afirmou. Na ocasião, o sargento ressaltou as qualidades que um policial deve ter para lidar com o público e não se exaltar durante uma abordagem, por exemplo. "Para lidar com ocorrência, com o público, o policial militar precisa estar preparado emocionalmente, estar preparado espiritualmente, sabendo que ele corre o risco de ser ofendido e não levar para o lado pessoal, apenas profissionalmente. Então, se houver necessidade do emprego da força, será feito um escalonamento conforme está no manual. Mas o que eu posso adiantar é que isso é difícil de acontecer, uma vez que, se você vai trabalhar, você já está no controle de desviar de toda aquela energia negativa", explicou. No fim da conversa, a reportagem da BBC pediu que o sargento Garcia mandasse um recado para as pessoas que criticam e têm medo do trabalho da PM, e também aos policiais que agem de maneira truculenta. "Eu posso dizer para tu, tanto para os policiais militares, quanto para a população amiga num contexto geral. A Polícia Militar está aqui para servir e proteger. E posso dizer que todos nós policiais militares estamos atuando sobre a proteção de Deus, que é o ser mais divino que tem. Sob a proteção dele, a gente atua na defesa da vida, da dignidade da pessoa humana, de todos os direitos, integridade física, de tudo o que tem que ser preservado. Essa é a atuação da Polícia Militar", afirmou. E encerrou com um convite. "Eu quero agradecer a oportunidade. Muito obrigado. Você é um excelente profissional. E fica aberto um convite para você tomar café conosco e conhecer o nosso coronel. Esse pensamento que eu tenho é o mesmo do nosso coronel, o [Emerson] Drague. Ele atua com o batalhão dessa forma. É assim que ele comanda os policiais, assim ele quer que os policiais trabalhem. Ele é um excelente comandante. Então, fica aberto o convite para o senhor vir para cá conhecer a turma, conhecer Itu, uma das cidades mais antigas do país. Eu espero que essa notícia brilhe a Polícia Militar". *Reportagem com a colaboração de Felipe Corazza
2023-05-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c8vr5vylgr0o
sociedade
O relato de vítimas de golpe e extorsão após lei antigay na Nigéria
Quando a Nigéria aprovou uma das leis mais rígidas anti-homossexualidade da África, a internet se tornou um espaço para a comunidade LGBT se conectar com mais segurança — até que as gangues criminosas também se tornaram digitais. O programa Africa Eye, da BBC, investigou como chantagistas se passam por usuários de aplicativos de encontro populares, apenas para extorquir, espancar e até sequestrar pessoas. Aviso: Este artigo contém referência a suicídio. Levar uma vida secreta como homem gay na Nigéria era arriscado para Mohammed. Ele sempre tomava cuidado quando combinava de sair com alguém — mas um encontro abalou sua vida para sempre. Fim do Matérias recomendadas Pai de três filhos, ele conheceu Jamal online. Os dois estavam conversando há algum tempo quando ele finalmente decidiu encontrá-lo pessoalmente. Ele disse que tinha começado a gostar, e a confiar, nele — então uma tarde ele encontrou com Jamal no centro e foi para a casa dele. Mas era uma armadilha. Mohammed estava prestes a entrar no chuveiro, mas assim que tirou a roupa, surgiu um grupo de homens que começou a espancá-lo e exigir dinheiro. Jamal e sua gangue fizeram um vídeo dele, nu, implorando para que parassem. "Eu não podia acreditar que alguém em quem eu confiava pudesse chegar ao ponto de fazer isso comigo." Quando o vídeo foi publicado online, Mohammed conta que sua vida desmoronou. Ele era reservado em relação à sua sexualidade — para o mundo exterior, era um homem casado criando uma família. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Falando com um capuz branco sobre a cabeça e uma máscara para esconder sua identidade, ele concordou em conversar com a BBC sob condição de anonimato. "Eu estava chorando. Queria me matar." Mas um telefonema para o filho o salvou de acabar com tudo. "Liguei para meus filhos, tenho três. Meu filho me disse que ama o pai dele. Mesmo que o pai dele seja queer, ele não tem problema com isso." "Ele me deu uma razão pela qual eu não deveria [me matar]." Mohammed desabou neste momento, arrancou o capuz branco, se levantou, escondeu o rosto e começou a chorar. Reviver o que havia acontecido com ele era simplesmente doloroso demais. De acordo com um grupo de ativistas que trabalham com a comunidade LGBT na Nigéria, cerca de 15 a 20 pessoas entram em contato com eles toda semana com histórias semelhantes à de Mohammed. Esse tipo de chantagem, na qual uma pessoa LGBT é vítima de uma armadilha, é conhecida na comunidade gay da Nigéria como "kito" — a origem exata do termo não é clara. O programa Africa Eye, da BBC, entrevistou 21 pessoas que haviam caído no golpe. Emmanuel (nome fictício) contou como começou a conversar com um amigo online, mas não percebeu que a conta do amigo havia sido invadida. Quando ele marcou um encontro com ele, foi emboscado por uma gangue de cerca de cinco homens. "Eles fizeram um vídeo meu e ficavam fazendo perguntas estranhas. Diziam: 'Qual é o nome da escola que você frequenta? De onde você é? Qual é o nome dos seus pais?' Eu sabia que eles iriam usar aquele vídeo para me chantagear. Então eu dei a eles informações erradas." A gangue não postou o vídeo online, mas o obrigou a sacar 500.000 nairas (cerca de R$ 5.350) do banco e o torturaram com um ferro. Ele levanta a mão para mostrar a cicatriz que ficou na base do polegar em decorrência do ataque. Depois de dividir o dinheiro entre si, os membros da gangue o soltaram. "Aquilo me feriu mentalmente. Não confio em ninguém. Simplesmente não me sinto seguro." Em 2014, foi a aprovada uma lei que proíbe o casamento entre pessoas do mesmo sexo na Nigéria, introduzindo uma pena de 14 anos de prisão. Demonstrações públicas de afeto entre casais do mesmo sexo também foram criminalizadas, com uma pena de 10 anos de prisão para quem "direta ou indiretamente fizer [uma] demonstração pública de [uma] relação amorosa entre pessoas do mesmo sexo". As boates gays também foram proibidas, com uma pena de 10 anos de prisão para quem se registrar, operar ou participar de boates, sociedades e organizações gays, incluindo apoiadores desses grupos. A aprovação da legislação teve amplo apoio, de acordo com pesquisas, e fez com que a Nigéria tivesse uma das leis mais rígidas contra homossexualidade na África. Em 12 estados no norte do país, é possível sentenciar pessoas à morte sob a Sharia (lei islâmica) por envolvimento em atos homossexuais. A nova lei, de acordo com um relatório da organização Human Rights Watch, "autorizou oficialmente os abusos contra pessoas LGBT, piorando efetivamente uma situação ruim". Em 2014, era comum ver na imprensa reportagens sobre violência, linchamento e extorsão contra pessoas LGBT — e ativistas afirmam que houve uma explosão de casos de kito desde então. A cineasta Uyaiedu Ikpe-Etim, que vive abertamente como uma mulher gay na Nigéria, diz que a chantagem contra pessoas LGBT é "desenfreada". "Todos os dias há uma história na internet. Às vezes, tem histórias em que a pessoa é linchada até a morte." "E tem as reações dos outros nigerianos. É praticamente uma comemoração. 'Ótimo, que bom que mataram. Eles não deveriam ser autorizados a se assumir.' E simplesmente não há justiça." Etim afirma que o que torna ainda mais difícil é que as vítimas sentem que não podem ir à polícia por medo de serem presas ou até mesmo atacadas. "É triste, sabe." Ela diz que a comunidade gay, que é forçada a viver online, também precisa tomar cuidado lá. "Não temos o privilégio heterossexual de chegar até uma pessoa na rua ou em um restaurante e dizer: 'Posso pegar seu telefone?'" No entanto, alguns policiais estão trabalhando com ativistas para deter os chantagistas. O programa Africa Eye, da BBC, conversou com um oficial do Corpo de Segurança e Defesa Civil da Nigéria (NSCDC, na sigla em inglês). Ele trabalha em parceria com uma equipe de ativistas que se passam por pessoas LGBT online em busca de um parceiro em potencial. O objetivo é enganar os chantagistas. "Para mim, não há ninguém que esteja acima da lei no país. A chantagem é um crime muito grave. É um crime muito grande", diz ele, que conversou com a BBC sob condição de anonimato. "Se chegar à minha mesa qualquer caso relacionado à chantagem de uma pessoa gay, eu vou atrás. Definitivamente." As vítimas entram em contato com a equipe de ativistas com os nomes e fotos dos chantagistas. Eles, por sua vez, enviam as informações ao NSCDC, que inicia o processo de captura dos criminosos. "Onde quer que estejam, quero dizer a eles que não há esconderijo para chantagistas na Nigéria." O problema que eles enfrentam é convencer as vítimas a testemunhar no tribunal. Em um país onde ser gay pode mandar você para a prisão, poucas pessoas testemunhariam e seriam honestas sobre sua sexualidade. Isso significa que os chantagistas raramente são processados. E há pouco consolo para as vítimas. Muitas das pessoas entrevistadas pelo programa da BBC perderam seus empregos desde que os vídeos de chantagem foram publicados online. Alguns foram despejados de suas casas, outros afastados de suas famílias. Todos eles estavam enfrentando problemas de saúde mental. Para Mohammed, que chegou a cogitar tirar a própria vida, ainda resta um sentimento de vergonha porque a gravação dele permaneceu online. "Eu sei que ainda estão assistindo ao vídeo", diz ele.
2023-05-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51p668yejdo
sociedade
A polêmica sobre regulação dos apps que retocam fotos
Se você tem redes sociais, muito possivelmente já usou filtros para retocar suas fotos. Mas com a tecnologia agora se estendendo cada vez mais aos vídeos, as autoridades devem intervir? A americana Krystle Berger insiste que não está "mudando drasticamente a aparência" quando publica fotos e vídeos no Instagram, TikTok e Facebook. "Na verdade, estou apenas digitalmente me dando a maquiagem e a iluminação perfeitas", diz ela. Berger, que vive no Estado americano de Indiana, paga para assinar um aplicativo chamado FaceTune, que foi baixado mais de 200 milhões de vezes em todo o mundo. Fim do Matérias recomendadas O aplicativo permite que os usuários façam desde alterações sutis em sua aparência facial, como suavizar rugas, até transformar completamente sua aparência. Por exemplo, pode-se estreitar o rosto, mudar a forma e o tamanho dos olhos ou fazer uma "plástica digital" no nariz. Inicialmente, o FaceTune só permitia alterar fotos, mas há dois anos o app lançou uma versão para vídeos curtos de selfie que vem ganhando popularidade. A FaceTune foi uma das primeiras empresas do setor a lançar um app para alteração de imagem em vídeos. Enquanto isso, outro aplicativo que permite aos usuários alterar suas fotos — o Perfect365 — deve lançar sua versão para vídeos ainda este ano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O FaceTune é de propriedade da startup israelense Lightricks e, há dois anos, a empresa foi avaliada em US$ 1,8 bilhão (R$ 8,9 bilhões). O fundador da Lightricks, Zeev Farbman, defende praticidade. Segundo ele, o objetivo é fazer o app funcionar da forma mais fácil possível. "Você quer dar às pessoas 80% do poder, com 20% da complexidade do software profissional. Esse é o jogo que estamos tentando jogar." Mas há muito se argumenta que tais ferramentas não são saudáveis, pois promovem uma visão irreal da beleza que pode ser perigosa, principalmente para crianças e jovens adultos. Por exemplo, 80% das adolescentes disseram que mudaram sua aparência em uma foto online aos 13 anos, segundo uma pesquisa de 2021 da marca de produtos de higiene pessoal Dove. Embora ninguém defenda que a tecnologia seja banida, têm havido movimentos crescentes para forçar os anunciantes e influenciadores — pessoas que muitas vezes são pagas para promover produtos de maneira mais informal — a admitir quando alteraram sua imagem física. A Noruega introduziu uma lei em 2021 que exige que tanto anunciantes quanto influenciadores digam se uma fotografia foi retocada. A França vai agora mais longe e está em vias de exigir o mesmo requisito, para fotos e vídeos. Enquanto isso, no Reino Unido, um projeto de lei semelhante, a Lei de Segurança Online, proposta pelo governo conservador, vem sendo debatida Parlamento. No entanto, resta saber se a lei focará apenas anúncios nas redes sociais ou influenciadores também. Um porta-voz do novo Departamento de Ciência, Inovação e Tecnologia disse: "O governo reconhece a ameaça que o conteúdo manipulado digitalmente pode representar e leva o assunto muito a sério". O parlamentar conservador Luke Evans há muito faz campanha para que anunciantes e influenciadores admitam quando alteraram uma imagem nas redes sociais. Ele quer ver a nova lei "conter regulamentação à prova de futuro", então também exige a mesma admissão para vídeos alterados e quaisquer outros desenvolvimentos tecnológicos. "É imperativo que tenhamos uma consciência mais ampla e maior transparência em relação a essas novas tecnologias", diz ele. "Para mim, isso é tudo sobre honestidade." Na visão de Farbman, embora "essa conversa sempre existisse... com o tempo, a aceitação dessas ferramentas só aumenta". Ele acrescenta que é uma questão de liberdade de expressão. "É sempre meio estranho para mim que uma empresa decida limitar a liberdade de expressão de seus usuários devido a sensibilidades estéticas ou éticas." Sean Mao, executivo-chefe da Perfect365, com sede em San Francisco, pede que as pessoas usem seu aplicativo "de maneira segura e ética". E acrescenta: "Incentivamos as pessoas a usar o aplicativo para expressar sua criatividade e não usá-lo com intenção maliciosa para enganar outras pessoas ou se apresentar de forma falsa". O psicólogo Stuart Duff, sócio da empresa britânica Pearn Kandola, diz que alguns influenciadores de mídia social sempre serão tentados a usar truques para melhorar sua aparência online — porque ser bonito vende. "A atração física tem uma influência muito forte, mas muitas vezes inconsciente, em nossas decisões quando se trata de comprar produtos e serviços de outras pessoas", diz ele. "Quando perguntados sobre o que é mais importante, nós conscientemente minimizamos a importância da aparência física e falamos sobre qualidades como inteligência, valores e personalidade, mas pesquisas psicológicas consistentemente revelam uma forte relação positiva entre a atratividade de uma pessoa e sua capacidade de vender para nós." Um influenciador de mídia social que atende pelo nome de Brandon B tem 5,6 milhões de assinantes no YouTube. Ele considera que os aplicativos de manipulação de fotos e vídeos devem ser vistos de forma positiva. "Fico feliz que esses aplicativos existam, porque acho que muitas pessoas não são confiantes o suficiente para apresentar o corpo nas redes sociais, então podem se sentir excluídas", diz ele. "Essas ferramentas as ajudam a entrar nas redes sociais." No entanto, Shira Brown, médica de emergência do Hospital South Niagara, em Ontário, no Canadá, diz que "percepções distorcidas da imagem corporal" parecem estar sendo "exacerbadas por práticas comuns de redes sociais ". Ela acrescenta: "Vemos as consequências urgentes para a saúde mental das redes sociais em nossos departamentos diariamente, como ansiedade, pensamentos suicidas e depressão".
2023-05-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyd891jgmm5o
sociedade
A única praia brasileira considerada 'Reserva Mundial de Surfe'
Há inúmeras praias próprias para o surfe no mundo, mas apenas 12 foram consideradas "Reservas Mundiais de Surfe" — programa da ONG Save The Waves Coalition, dedicado a preservar e proteger áreas de surfe em todo o mundo. Entre elas, há cinco na América Latina, sendo uma no Brasil: Guarda do Embaú, em Santa Catarina. A praia de número 12 foi escolhida recentemente: um litoral de cerca de 30 quilômetros ao redor de Braunton Burrows, na costa norte de Devon, no sudoeste da Inglaterra. "Estamos muito satisfeitos que esta costa extraordinária seja reconhecida pela qualidade do seu surfe e pelo seu valioso ecossistema", disse Kevin Cook, surfista e admirador de uma zona que também faz parte da Rede Mundial de Reservas da Biosfera por suas paisagens espetaculares, vida selvagem e patrimônio cultural. "Agora podemos trabalhar juntos para proteger esta área para as próximas gerações", acrescentou. Fim do Matérias recomendadas A escolha dos locais é feita por meio de um processo em que são considerados cinco critérios: a qualidade e consistência das ondas, as características ambientais únicas do local, o seu papel na cultura e história do surfe, o apoio e participação da comunidade e se é uma área de proteção prioritária para conservação. A primeira praia do mundo a ganhar o título de "Reserva Mundial de Surfe" foi Malibu, na Califórnia — local onde surfistas de todo o mundo se reúnem há um século para buscar a onda "perfeita". Na ocasião, Malibu destacou-se "pelo papel fundamental que desempenhou no nascimento da cultura do surfe moderno", bem como pela riqueza do ecossistema que a envolve. Depois de Malibu, Ericeira, em Portugal, e Manly, na Austrália, foram escolhidas Reservas Mundiais de Surfe. A Austrália também possui outras praias que receberam a distinção: Gold Coast e Noosa. O único outro país onde há mais de uma 'Reserva Mundial de Surfe' são os Estados Unidos — Santa Cruz, localizada na Califórnia, assim como Malibu. Com cinco praias, a América Latina é a região melhor representada na lista de 'Reservas Mundiais de Surfe', sendo Huanchaco, no Peru, a primeira a receber a distinção, em 2013. Esta vila de pescadores de origem pré-colombiana é famosa "por suas ondas constantes e limpas", mas também por seus barcos tradicionais conhecidos como Caballitos de Totora. "Huanchaco tem uma tradição de surfar ondas que remonta a milhares de anos. Parabenizo todos os peruanos por se empenharem em preservar e proteger esta praia única e histórica", disse Felipe Pomar, campeão mundial de surfe em 1965. Considerada o berço do surfe no México, esta área da costa do Pacífico mexicano oferece todo tipo de desafios para iniciantes e mais experientes devido à alta qualidade de suas ondas. Com ondas de um a 10 metros, Punta de Lobos, no Chile, tem ondas que se conectam e produzem "tubos" de mais de 800 metros. Mas a praia também é conhecida por sua biodiversidade, com uma grande variedade de espécies marinhas e plantas endêmicas. Localizada a 46 km ao sul de Florianópolis, essa praia, que oferece ondas de qualidade que quebram o ano todo, está localizada ao lado do Parque Estadual da Serra do Tabuleiro, a maior unidade de conservação do estado de Santa Catarina. Ali se forma um ambiente natural que inclui o rio Madre, um estuário intacto e dunas. Praia Hermosa, na Costa Rica, recebeu o título de "Reserva Mundial de Surfe" graças à "incrível biodiversidade da área, ao forte apoio da comunidade, a uma visão de conservação claramente articulada, bem como às suas ondas de classe mundial". Lá, grande parte dos negócios locais centrados em torno do surfe.
2023-05-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1g49lj9zno
sociedade
Como STF pode regular plataformas digitais após impasse no PL das Fake News
O Supremo Tribunal Federal (STF) pode julgar nesta semana quatro ações com impacto sobre plataformas digitais, como redes sociais e aplicativos de troca de mensagens. O tema ganhou urgência devido à percepção de parte da sociedade de que é preciso adotar regras mais rígidas sobre esse setor para evitar a circulação de conteúdo criminoso nas redes, como mensagens que incentivem assassinatos em escolas ou ataques contra o sistema democrático. Mas a questão divide a opinião pública — também há temor de que novas regras adotadas pelo Congresso ou pelo Supremo acabem limitando a liberdade de expressão. Grandes plataformas como Google (dona do YouTube), Meta (dona de Facebook, Instagram e WhatsApp), Telegram e Twitter usam esse argumento para se opor às mudanças, que podem aumentar seus custos operacionais e o risco de punições, como multas elevadas caso não cumpram novas regras. Fim do Matérias recomendadas Algumas empresas têm, inclusive, usado suas plataformas para divulgar mensagens contra o PL das Fake News, o que levou o ministro do STF Alexandre de Moraes a determinar na sexta-feira (12/5) a abertura de um inquérito para investigar diretores do Google e do Telegram por suposta campanha abusiva contra o projeto de lei. Duas ações abordam a possibilidade de aumentar a responsabilidade das empresas sobre moderação de conteúdo, o que pode significar mais remoção de postagens e contas, caso tenham teor criminoso. As outras duas tratam da possibilidade de suspensão de aplicativos de mensagens como WhatsApp e Telegram em todo o país devido ao não cumprimento de decisão judicial. Embora a análise das quatro esteja prevista para esta quarta-feira, existe a possibilidade de adiamento caso outro processo se alongue. No mesmo dia, o STF retoma uma ação penal que pode resultar na condenação e prisão do ex-presidente Fernando Collor de Mello. O julgamento começou na semana passada e foi suspenso ainda em seu início. Entenda a seguir em quatro pontos o que está em jogo para as plataformas digitais no STF. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As quatro ações questionam a constitucionalidade de trechos do Marco Civil da Internet — ou seja, se trechos dessa lei estariam em desacordo com princípios da Constituição e, por isso, devem ter sua aplicação alterada pelo STF. Duas delas discutem a validade do artigo 19, que estabelece que as plataformas digitais não podem ser responsabilizadas por conteúdos compartilhados pelos usuários, com exceção dos casos de "pornografia de vingança" (divulgação de imagens de nudez sem autorização da pessoa fotografada/filmada). Ou seja, o artigo 19 significa que as empresas, na maioria dos casos, só são obrigadas a apagar postagens após ordem judicial. As duas ações em julgamento tratam de casos concretos, mas a decisão terá repercussão geral, ou seja, fixará parâmetros gerais para o funcionamento das plataformas. Num dos casos julgados, uma professora processou o Google porque a empresa se recusou a apagar uma comunidade contra ela criada por alunos no Orkut, rede social que já não existe mais. A professora chegou a notificar extrajudicialmente a plataforma solicitando a exclusão da página antes de ingressar na Justiça, mas não foi atendida. No outro caso em análise, uma mulher processou o Facebook (rede social do grupo Meta) por se recusar a apagar um perfil falso criado com seu nome para divulgar conteúdo ofensivo. As duas empresas argumentaram que não poderiam apagar conteúdos sem decisão judicial, sob risco de ferir a liberdade de expressão. "Ser obrigação dos provedores de aplicações na internet as tarefas de analisar e excluir conteúdo gerado por terceiros, sem prévia análise pela autoridade judiciária competente, acaba por impor que empresas privadas — como o Facebook Brasil e tantas outras — passem a controlar, censurar e restringir a comunicação de milhares de pessoas, em flagrante contrariedade àquilo estabelecido pela Constituição Federal e pelo Marco Civil da Internet", argumentou o Facebook na ação. Em argumentação semelhante, a Google sustenta que não tem obrigação de indenizar a professora por não ter removido a comunidade no Orkut antes de uma determinação judicial: "Não sendo a Google possuidora do poder jurisdicional do Estado e não havendo qualquer conteúdo manifestamente ilícito no perfil objeto da lide, não se poderia esperar outra atitude sua do que aguardar o posicionamento do Poder Judiciário", disse a empresa. A professora que processou a rede social, por sua vez, argumentou ao STF que "admitir as razões da Recorrente (Google) seria correr o risco de se fazer da internet uma terra sem lei, onde anonimamente, invocando a liberdade de expressão e o direito de comunicação, praticar-se-á todo tipo de ato e crime sem vigilância, consequência ou punição alguma". Alguns ministros do STF já defenderam publicamente a necessidade de maior regulação do meio digital, como Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes. Juristas especialistas em direito digital ouvidos pela reportagem acreditam que o STF vai ampliar a possibilidade de responsabilização das empresas em caso de conteúdos criminosos compartilhados em suas plataformas. Se isso ocorrer, a expectativa é que a Corte estabeleça uma nova interpretação do artigo 19 do Marco Civil da Internet "conforme a Constituição" — ou seja, uma nova aplicação da lei que estaria mais adequada à conciliação de preceitos constitucionais como a inviolabilidade da honra e da imagem dos indivíduos e os direitos à liberdade de expressão e de livre comunicação. Embora concordem que esse parece o caminho mais provável, os juristas ouvidos discordam se ele seria o mais correto. Para o advogado Francisco Cruz, diretor do InternetLab, o tema deveria ser decidido no Congresso Nacional, com amplo debate e participação da sociedade. Na sua visão, o atraso da votação do PL das Fake News e os apelos de parte da sociedade por uma regulação urgente das plataformas não deveria justificar uma atuação do STF. "Quem deve se mover por clamor social é o Congresso. Quanto mais a gente transfere para o Supremo, essa responsabilidade, mais a gente vai estar colocando água no moinho da fragilização do Supremo e da sua legitimidade", acredita. Cruz nota que o Marco Civil da Internet determina que as empresas armazenem informações sobre os perfis que atuam em suas plataformas, permitindo que autores de discursos criminosos sejam identificados e punidos após investigações. Por isso, na sua visão, a atual aplicação do artigo 19 é compatível com os direitos à imagem e à honra e não deveria ser considerado inconstitucional. Já a advogada Patrícia Peck, membro titular do Conselho Nacional de Proteção de Dados (CNPD), não considera que o STF estaria usurpando uma competência do Congresso, caso mude a aplicação atual do artigo 19. Como o meio digital mudou muito desde que o Marco Civil foi aprovado, em 2014, ela diz que é necessária uma atualização rápida da lei. Nesse sentido, Peck argumenta que a decisão do Supremo é um caminho válido enquanto não é aprovada uma nova legislação no Parlamento. "É claro que a atualização de lei acontece de forma legislativa. No entanto, enquanto a gente não muda a lei, nós também temos previsão de que o Judiciário deve preencher as lacunas (da legislação). A tecnologia e a relação da sociedade com o uso da tecnologia avançou muito rápido. Já está muito diferente do que era dez anos atrás", argumentou Outra discussão é até onde o STF poderia ir na "regulamentação" do setor. Para Francisco Cruz, do InternetLab, o Supremo vai criar uma "zona cinzenta" caso estabeleça novas regras para o setor, já que a Corte não tem poder para criar um órgão de fiscalização. Já Ricardo Campos, professor na Universidade Goethe, em Frankfurt, e diretor do LGPD (Legal Grounds for Privacy Design), instituto voltado à proteção de dados, defende que o STF estabeleça novas regras de funcionamento para as plataformas. Ele considera que o artigo 19 do Marco Civil da Internet cria uma espécie de "blindagem" das plataformas sociais, já que acionar à Justiça não é um procedimento simples para a maioria da população. Segundo Campos, a Corte pode "introduzir o que se chama no direito constitucional de obrigações de organização e procedimento", determinando, por exemplo, a criação de canais para receber as solicitações dos usuários. "O Supremo introduziria a necessidade dos serviços digitais receberem denúncias diretamente do usuário e estabelecerem procedimentos dentro da organização para que a própria plataforma responda em tempo hábil a essas queixas privadas, não mais (o usuário) precisando ir, então, ao Judiciário", exemplificou. "E, além disso, (a Corte pode) criar uma obrigação, por exemplo, de relatórios de transparência (sobre as denúncias recebidas e as providências tomadas)", acrescentou. Campos reconhece que o STF não poderia criar um órgão para fiscalizar a aplicação dessas novas regras, mas acredita que uma decisão da Corte nesse tema daria novo impulso ao Congresso para aprovar a medida. Enquanto isso, avalia, o descumprimento de eventual decisão do Supremo para as plataformas criarem novos procedimentos poderia levar a processos de responsabilização civil contra as empresas no Judiciário, com aplicação de multas, por exemplo. As outras duas ações foram movidas por partidos políticos (Cidadania e Republicanos) após juízes determinarem em 2015 e 2016 a suspensão do funcionamento do WhatsApp em todo o país porque a empresa não cumpriu decisão judicial para quebra de sigilo de conversas de usuários investigados criminalmente. Os partidos que apresentaram as ações pedem que o STF proíba esse tipo de decisão, sob o argumento de que a suspensão desses aplicativos é desproporcional e viola o direito de livre comunicação de todos os cidadãos, previsto no artigo 5º da Constituição Federal. O WhatsApp sustenta que é tecnicamente impossível disponibilizar acesso às mensagens trocadas no aplicativo porque as conversas são protegidas por criptografia de ponta-a-ponta. Isso significa que, em conversas privadas, as mensagens são transmitidas codificadas e apenas o emissor e o receptor da mensagem têm chaves próprias, geradas pelo aplicativo nos seus celulares, capazes de decodificar esse conteúdo. Nesse sistema, o WhatsApp alega que a própria empresa é incapaz de acessar o conteúdo. E argumentou ainda ao STF que criar algum mecanismo que permita à empresa quebrar a criptografia em casos específicos traria risco para a segurança da comunicação de todos os usuários. "Na segurança digital, os dados ou são seguros de todo mundo ou seguros de ninguém. Qualquer ferramenta que nos permitisse ter acesso às mensagens das pessoas poderia ser voltada contra os nossos usuários por partes hostis, como criminosos e hackers", disse um dos fundadores do WhatsApp, Brian Acton, ao participar de uma audiência pública sobre o tema no Supremo, em 2017. "A privacidade e a segurança são partes essenciais do serviço oferecido pelo WhatsApp. Os médicos usam o WhatsApp para compartilhar informação de saúde confidencial com seus pacientes, os tribunais se comunicam com juízes, as empresas usam o aplicativo para falar com seus clientes e compartilhar informações sensíveis e os cidadãos usam para relatar crimes", disse ainda Acton, ao defender a importância da criptografia. A Polícia Federal e o Ministério Público Federal, por sua vez, ressaltaram que aplicativos de mensagens são usados não só para comunicações legítimas entre cidadãos, mas para crimes diversos como "tráfico de drogas, de armas e de pessoas, troca de pornografia infantil, preparação de sequestro, de homicídios e de atentados terroristas, dentre outros". Embora os órgãos de investigação consigam acessar mensagens trocadas em aplicativos como o WhatsApp quando há apreensão de aparelho celular de investigados ou acesso a mensagens armazenadas em sistema de nuvem (iCloud ou Google Drive, por exemplo), os investigadores gostariam de poder acessar essas mensagens mesmo sem a apreensão do aparelho ou realizar um monitoramento em tempo real, como é feito em caso de interceptação telefônica autorizada judicialmente. Os órgãos de investigação também argumentaram que deve ser obrigação da empresa viabilizar tecnicamente o acesso a essas mensagens e defenderam a legitimidade da suspensão do serviço em algumas situações. Segundo a PF, a suspensão do serviço não fere o direito à livre comunicação "pois nenhum direito individual é absoluto, devendo sempre ser interpretado dentro do princípio da razoabilidade, de forma a garantir o reconhecimento da supremacia do interesse público sobre o particular, dotando as autoridades encarregadas da persecução criminal de meios necessários para dar cabal cumprimento aos seus deveres no interesse da sociedade". As duas ações começaram a ser julgadas em maio de 2020, mas a análise foi interrompida por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. Por enquanto, votaram apenas os ministros Rosa Weber e Edson Fachin, relatores das ações. Ambos decidiram que serviços de mensagens como o WhatsApp não podem ser suspensos por descumprimento de decisão judicial. A única hipótese que poderia levar à suspensão, ressaltaram os ministros, seria por descumprimento das regras de proteção de dados dos usuários, conforme está previsto no artigo 12 do Marco Civil da Internet. Fachin destacou ainda que cabe à Autoridade Nacional de Proteção de Dados decidir sobre eventual interrupção do serviço. "Em síntese, é inconstitucional proibir as pessoas de utilizarem a criptografia ponta-a-ponta, pois uma ordem como essa impacta desproporcionalmente as pessoas mais vulneráveis", disse Fachin em seu voto, ao defender a criptografia como forma legítima de proteção da privacidade dos indivíduos. O ministro ressaltou, porém, “que o reconhecimento de um direito constitucional à criptografia forte não diminui nem isenta as empresas que produzem os aplicativos de se conformarem com a legislação brasileira, nem a descumprirem as ordens judiciais que, na medida da estrita proporcionalidade, exijam a entrega de dados que não dependam da quebra de criptografia”. "Nada do que aqui se assentou exime as empresas de adotarem medidas que visem reduzir a prática de ilícitos, especialmente os que ocorrem por meio de seus canais de comunicação. A criptografia não autoriza o desvirtuamento deliberado de campanhas eleitorais, a disseminação de discurso de ódio e o envio indiscriminado de materiais ofensivos", acrescentou. As ações em julgamento discutem o não cumprimento de decisões judiciais para acesso do conteúdo criptografado. No entanto, caso a maioria dos ministros acompanhe a posição de Weber e Fachin, a decisão da Corte tem potencial de impedir a suspensão de serviços de mensagens também no caso de outras decisões da Justiça, avalia o advogado Christian Perrone, chefe das áreas de Direito & Tecnologia e GovTech no Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio). Isso poderia impactar, por exemplo, decisões semelhantes à tomada por Alexandre de Moraes na semana passada contra o Telegram. O ministro determinou que o serviço seria suspenso se a empresa não apagasse uma mensagem "distorcida" contra o PL das Fake News enviada a seus usuários. O Telegram apagou a mensagem e enviou outra, de retratação, cumprindo determinação de Moraes. "A conduta do Telegram configura, em tese, não só abuso de poder econômico às vésperas da votação do Projeto de Lei, por tentar impactar de maneira ilegal e imoral a opinião pública e o voto dos parlamentares — mas também flagrante induzimento e instigação à manutenção de diversas condutas criminosas praticadas pelas milícias digitais investigadas no INQ 4.874, com agravamento dos riscos à segurança dos parlamentares, dos membros do Supremo Tribunal Federal e do próprio Estado Democrático de Direito, cuja proteção é a causa da instauração do INQ. 4.781", justificou Moraes na decisão. Para Christian Perrone, há outras formas de forçar uma empresa a cumprir decisões judiciais, como a imposição de multa. "Imagina se, na hipótese de uma empresa se recusar a entregar seu livro caixa para uma investigação, a Justiça diz que vai fechar a empresa, não deixar que ela possa mais vender. Com essa analogia você consegue entender o quanto é uma medida extrema, de fato, você determinar a suspensão do Telegram ou do WhatsApp", defende Perrone.
2023-05-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nw53753pno
sociedade
Expectativa x realidade: por que não devemos romantizar a maternidade?
Moradora de Belford Roxo, na Baixada Fluminense (RJ), Juliana Reis, de 25 anos, estava amamentando Vicente, de pouco mais de um mês, quando viu a notificação pelo celular. Era segunda-feira, dia 16 de fevereiro de 2016. No Facebook, Juliana tinha sido "desafiada" por um grupo de amigas a compartilhar momentos felizes com seu filho. "Nem foto eu quero tirar…" comentou para si mesma. "Imagina, então, foto feliz!". Juliana se recusou a entrar na brincadeira. Mais do que isso. Desafinou o coro dos contentes ao mostrar a maternidade como ela é, com direito a noites em claro, dores nos seios e trocas de fraldas. "Quero deixar bem claro que amo meu filho, mas estou detestando ser mãe", desabafou em um post. Não satisfeita, Juliana lançou outro desafio, o da maternidade real. Sugeriu que as usuárias da rede social relatassem seus maiores medos ou compartilhassem suas piores experiências. Deu treta. Fim do Matérias recomendadas Seu desabafo viralizou. E dividiu opiniões. De um lado, mensagens de apoio de quem também questiona a romantização da maternidade. "Parabéns pela sua coragem!", jogaram flores. De outro, comentários hostis de quem acha que Juliana sofre de depressão pós-parto. "Parabéns por estragar meu dia!", atiraram pedras. Sua postagem teve 2,7 mil comentários, 21,7 mil compartilhamentos e 119 mil curtidas. Isso, até ser denunciado. Juliana teve seu perfil bloqueado por 12 horas. "Recebi muita ofensa: 'Se não aguenta, por que fez?' ou 'Na hora de fazer, foi bom, não foi?'. Parei de ler. Não ia me levar a lugar nenhum. Você não pode criticar a dor do outro", relatou Juliana ao perfil Moms of the World. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Juliana talvez não saiba, mas o desafio da maternidade real inspirou até dissertação de mestrado em psicologia: Reabrindo a Caixa Preta da Maternidade — As Controvérsias do Feminino no Facebook, da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), em Minas Gerais. Sua autora, a psicóloga Janaína Silva, de 35 anos, também passou por perrengues: a hora da amamentação, só para citar um deles, não lembrava em nada as campanhas de aleitamento materno que ela via na TV. Expectativa: troca de olhares amorosos entre mãe e filho. Realidade: Janaína tinha que morder um pano para suportar tanta dor. Em 2020, a dissertação virou livro: Pode Uma Mãe NÃO GOSTAR de Ser Mãe? — As Controvérsias Acerca do Feminino (Editora Appris). A que conclusão a autora chegou? "Não me restam dúvidas de que sim", responde a mãe do Pedro, de 10 anos. "Ninguém nasce mãe. Nos tornamos mães. E se tornar mãe pode ser longo e doloroso. Então, pergunto: 'Alguém gosta de sentir dor?'. Me atrevo a dizer que não. Ninguém gosta de passar por isso. Mas as mulheres passam por amor à criança. Ser mãe vai muito além de sorrisos, abraços e beijos", afirma Janaína. O conceito de maternidade real se opõe a outro: o da maternidade ideal, heroica e romantizada. "Muitas famílias, quando têm filhos, se deparam com uma realidade completamente diferente daquela que esperavam", explica a psicóloga Maria Fernanda Nogueira Ceccato, pós-graduada em psicanálise, parentalidade e perinatalidade pelo Instituto Gerar, em São Paulo (SP). "A maternidade real busca trazer à tona o que realmente acontece quando chega um filho em nossas vidas. O objetivo é que as famílias não se sintam sozinhas ou deslocadas, como se algo errado estivesse acontecendo", acrescenta. Por questões históricas, a figura da mãe, mais do que um ser humano como outro qualquer, ainda é associada à imagem de uma santa, um ser sagrado, que ama a maternidade 24 horas por dia e, nela, se realiza plenamente. Até o amor materno, prossegue Maria Fernanda, é romantizado. Vende-se a ideia de que é algo inato, "de fábrica", por assim dizer, quando, na verdade, precisa ser construído no dia a dia. "É por isso que não gosto da expressão: 'Nasce um filho, nasce uma mãe'. A mãe pode demorar um tempinho para 'nascer', para se reconhecer como mãe", pondera a psicóloga. "Isso pode também nunca acontecer." O lado B da maternidade continua a ser debatido em sites, blogs e fóruns virtuais. Mas, aos poucos, começa a ganhar espaço também nas telas de cinema, nas peças de teatro, nas tirinhas de humor, nos comerciais de TV... O filme Mar de Dentro, escrito e dirigido por Dainara Toffoli, não chega a ser autobiográfico, mas surgiu da experiência da cineasta com a maternidade. Ela e a irmã, Tatiana, cresceram ouvindo da mãe: "Não se casem, nem engravidem antes dos 30. Aproveitem a vida". Quando seus pais morreram, Dainara sentiu vontade de ter filhos. Mas, tinha medo da vulnerabilidade profissional que a maternidade poderia trazer. Afinal, cansou de ver mulheres mudarem de carreira ou perderem seus empregos após engravidarem. "Na época, eu dirigia comerciais para TV. Sempre filmei muito, mas, assim que a barriga começou a aparecer, fiquei sem trabalho. Foi uma sensação horrível. Comecei a me sentir inútil e deprimida", relata Dainara, que só voltou a filmar depois que o filho, Bernardo, hoje com 16 anos, completou cinco meses. No longa-metragem, Mônica Iozzi interpreta a publicitária Manuela, uma mãe solo que, depois de uma gravidez não planejada com um colega de trabalho, tem que lidar, entre outros apuros, com as dores do pós-parto. Na vida real, Dainara conta que entrou na maternidade com um bico de silicone escondido na mala. Quando a enfermeira saía do quarto, ela colocava o bico e amamentava o filho. Dica da irmã, que já tinha a Lara quando Dainara engravidou. "Tive muitos problemas, mas não cheguei a sangrar. Depois de 30 dias, tirei o bico e deu tudo certo. Amamentei até os nove meses", recorda a cineasta. Indagada sobre a pior parte da maternidade, Dainara não pensa duas vezes: “Achar que todas as responsabilidades são nossas e que, não importam as circunstâncias, temos que dar conta de tudo”. Hoje, além de Bernardo, Dainara tem mais dois filhos: os enteados Carl e Luca, de 25 e 27 anos. A atriz Rita Elmôr, de 49 anos, foi convidada por Samara Felippo para auxiliar na direção de Mulheres que Nascem com os Filhos, espetáculo teatral que Samara idealizou e escreveu com Carolinie Figueiredo. Além de dirigir as atrizes, Rita aprofundou o debate e, a seis mãos, reescreveram o texto. Quando engravidou de seu primeiro filho, Lucca, hoje com 31 anos, Rita tinha apenas 17 e só conseguiu amamentá-lo até os seis meses. Depois, ingressou na faculdade e passou a sentir culpa por praticamente tudo: por ter sido mãe adolescente, por precisar da ajuda da família para sustentar o filho, por querer sair com as amigas para se divertir... Quando Nina nasceu, 28 anos depois do irmão, a culpa mudou. Dessa vez, por nunca ter valorizado o trabalho doméstico da mãe. "Tudo é feito para que a mulher se torne escrava de sua culpa", lamenta a atriz e diretora. “Somos consumidas pela culpa de não sermos boas mães quando ousamos pensar nas nossas necessidades. Muitas desistem de lutar pelos seus sonhos e correm o risco de desenvolver uma grande amargura”. A peça, que estreou em 2019, já passou por seis cidades, sempre com lotação esgotada. A próxima temporada será no Teatro do Shopping Morumbi (SP), entre os dias 1º e 4 de junho. A plateia, garante a diretora, gargalha e chora ao mesmo tempo, o tempo todo. "A maternidade real está aqui para dizer: 'Tudo bem'. Não se sinta culpada por estar sofrendo, nem por achar um saco trocar fraldas, nem por ficar feliz quando está longe de seu bebê... É assim mesmo. Mas, a maternidade real está aqui também para retirar o homem do lugar de enfeite. Ele passou a ocupar o centro do debate. Como dizemos na peça: ‘Pai não ajuda. Pai cria junto'". O resultado do teste de gravidez demorou apenas alguns segundos. Mas, acreditem, foram os segundos mais longos da vida da designer Thaiz Leão, de 33 anos. Quando finalmente apareceram os dois tracinhos, o céu desabou no banheiro da faculdade. "Uma série de palavrões e muitas exclamações", recorda, foram as primeiras coisas que lhe passaram pela cabeça ao se descobrir grávida, aos 23 anos e no penúltimo período do curso. Mãe solo, Thaiz logo transformou suas desventuras em ilustrações. Algumas delas estão em Chora Lombar — Maternidade na Real (Garabato, 2016) e O Exército de Uma Mulher Só (Belas Letras, 2019). Com bom humor, Thaiz lista desde comentários para lá de sem-noção, como "Você não devia ficar com ele no colo, vai acostumar mal…", "Você é forte, vai dar conta sozinha…" e "Um filho é uma benção, minha filha…", até os vários tipos de pais existentes, como o pai "cansada do quê?" ("Se você passa o dia inteiro em casa só cuidando deles…"), o pai “arroz de festa” ("Esse é o meu filhão que eu amo, amo, amo…") e o pai "minha ex é louca" ("Se eu não vejo meus filhos é por culpa dela! Não é?"). Nas redes sociais, Thaiz Leão, a Mãe Solo, já tem 144 mil seguidores, 92 mil deles só no Facebook. Além de ilustrações, também compartilha reflexões como "Chega de chamar cansaço de preguiça", "A vida é curta demais pra gente perder tempo tentando ser uma mãe que não existe!" e "Gestar é lindo, parir é intenso, criar é treta!". "Rede de apoio é fundamental, sim. Mas é da criança e não da mãe. Uma criança precisa de muito apoio. Parte dele é possível que a mãe dê. Todo, não dá. Para dar tudo o que uma criança precisa, merece e tem direito, é preciso uma sociedade inteira", afirma a mãe do Vicente, de nove anos. Toda família precisa de uma rede de apoio. Física ou virtual, não importa. O importante é ter e acioná-la, quando preciso. E mais: não precisa ser necessariamente familiar. Podem ser amigos, vizinhos, profissionais da saúde... "Quem cuida também precisa de cuidado. Afinal, a mulher não deixa de ser humana só porque deu à luz. Ninguém sobrevive sozinho. Precisamos uns dos outros. Não ter uma rede de apoio pode ser fator de risco para depressão" alerta a psicóloga Solange Frid, diretora do Instituto Maternelle, no Rio de Janeiro (RJ). O Brasil tem hoje 11,6 milhões de mães solos. Elas chefiam 37,3% das famílias brasileiras. Já o total de crianças brasileiras que não têm o nome do pai na certidão de nascimento já chega a 5,5 milhões. Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Foi pensando nas futuras gerações, de pais mais responsáveis e mães menos sobrecarregadas, que Vana Campos e Vanessa Bárbara escreveram, respectivamente, Segredo (Cachecol, 2017) e Mamãe Está Cansada (Companhia das Letrinhas, 2023). Os dois livros, como se diz nos filmes, foram baseados em histórias reais. O primeiro deles, Segredo, fala da vida nada cor de rosa das mães. A inspiração veio no dia em que a escritora e ilustradora Vana Campos, após pedir repetidas vezes para o filho Benjamin, então com quatro anos, entrar no banho, soltou um grito. "Tá doida, mãe?", perguntou o menino, entre indignado e curioso. "Por que você está gritando?". "Pois é, as mães erram…", admitiu Vana, encabulada. "Impossível!", rebateu o pequeno Benja. "As mães não erram…". Com ilustrações de Raquel Matsushita, Segredo revela que, sim, as mães também erram. E aponta, inclusive, alguns desses pequenos deslizes, como ter medo do escuro, chorar por bobagem e abusar dos doces. "Essa ideia de que a maternidade é um dom da mulher e que seu lugar é naturalmente em casa com os filhos é uma construção social que vem do patriarcado", afirma Vana, de 46 anos. "A maternidade não pode ser uma imposição, ao contrário, é uma escolha. Muitas mulheres sentem que a maternidade é seu dever e sofrem conflitos muito dolorosos. A maternidade vira um fardo pesado", lamenta ela que, além de Benjamin, hoje com 12 anos, é mãe também de Amora, de nove anos. "Desesperadora". É assim, numa única palavra, que a jornalista e escritora Vanessa Barbara, de 40 anos, define a experiência de criar uma filha pequena, Mabel, de apenas quatro anos, no meio de uma pandemia. Com a suspensão das aulas da creche, entre outras medidas de isolamento social, Vanessa, seu parceiro e Mabel, então com um ano e meio, tiveram que passar meses confinados em um apartamento pequeno, cuidando da casa, do trabalho e da filha. Sem ter com quem brincar, Mabel improvisava jogos e brincadeiras. Às vezes, se divertia com a própria sombra projetada na parede. Outras, retirava os livros da estante e construía uma barricada na sala. Outras, ainda, tocava tambor na barriga da mãe, exausta e resfriada, estirada no tapete. "Cuidar de criança pequena exige o pique de um macaquinho que bate prato operando em modo contínuo", admite Vanessa. "Acho quase impossível encarar a maternidade sem intervalos, dias a fio, com pouca ou nenhuma ajuda — o esgotamento físico e mental é enorme". Para a autora de Mamãe Está Cansada, que conta com ilustrações de Laura Trochmann, a rede de apoio de mães e filhos não se limita a avós, tios, vizinhos e amigos. Ou, pelo menos, não deveria se limitar. Ela cobra investimento das autoridades em creches e escolas, e em parques e jardins. "Circular no transporte público com crianças é um ato diário de resistência. Nossas cidades são absolutamente hostis a seus pequenos cidadãos", protesta Vanessa. A escritora fluminense Elisa Fleming, de 49 anos, tinha apenas sete quando ganhou o boneco de um bebê em tamanho real. Cuidava dele como se fosse de verdade. Mas, Elisa não queria ter filhos. Nunca quis. Sua mãe vivia falando dos sonhos que deixara de realizar para cuidar dos seus filhos. E Elisa não queria essa vida para ela. Aos 34 anos, Elisa teve Miguel. À época, achava que sabia tudo sobre criar um filho. Estava enganada. "Me senti como se tivesse sido jogada de um avião sem paraquedas", compara. "Aliás, ainda me sinto assim". Aos 46, publicou Coisas Que Não Me Contaram Antes de Ser Mãe — O Que Ninguém Mostra no Cotidiano da Maternidade (Clube dos Autores, 2020). O livro começou a ser escrito, ainda em blog, tão logo foi demitida do emprego, uma operadora de plano de saúde, com um bebê de colo. Aliás, se tivessem contado, teria engravidado? "Se tivesse, na época em que decidimos engravidar, metade do conhecimento que tenho hoje, não", responde. Antes de o bebê nascer, explica Elisa, grávidas são vistas como "propriedade alheia". Qualquer estranho na rua se acha no direito de encostar a mão na barriga delas. Pior: de enchê-las de dicas, palpites e conselhos que elas nunca pediram. "Já ouvi que deveria deixar meu filho chorar um tempo sozinho para ele aprender desde cedo que a vida é dura e não achar que pode tudo", relata Elisa. Detalhe: Miguel tinha nascido havia apenas cinco dias. Depois que o bebê nasce, mães e filhos passam a ser tratados como "aberrações" que não podem circular em determinados lugares, nem fazer barulho em outros. Elisa já passou por apertos tanto em consultório quanto em restaurante — "o garçom perguntou se eu não queria trocar de mesa porque o Miguel chorava no meu colo enquanto eu comia". Por essas e outras, evitou ir ao cinema ou pegar avião com o filho pequeno. "Como toda menina, fui educada, desde pequena, a acreditar que toda mulher nasce para ser mãe. E que a maternidade é o auge da vida de toda mulher", afirma. "Ser mãe não é só propaganda linda de banco ou de perfume. Vai muito além. Tão além que ninguém fala. A gente só descobre na prática. E não precisava ser assim". Uma mãe cochila numa poltrona. Em instantes, é acordada pelo choro de um bebê. Dali a pouco, se vê numa ilha deserta. Como um náufrago, escreve a palavra SOS na areia da praia. "Esse lugar me faz muito feliz. Mas, eu preciso dizer: ele é um pouquinho assustador", diz o texto do novo comercial do Boticário. "Eu me sinto cansada, esgotada, exausta…". Esgotamento materno é o tema da campanha de Dia das Mães, intitulada Quem Ama Também Precisa de Amor, criada pela agência AlmapBBDO. "Falar sobre esgotamento materno não anula a experiência maravilhosa do maternar, mas desperta consciência sobre como apoiar e tornar esse caminho mais leve para todos", analisa Marcela de Masi, diretora-executiva de Comunicação do Grupo Boticário. "A maternidade precisa ser mais colaborativa. O caminho efetivo para o combate da exaustão física e mental das mulheres, que ainda são vistas como as principais responsáveis pela criação dos filhos, se dá a partir da construção de uma rede de acolhimento e apoio". Uma pesquisa do Portal Mommys, divulgada em agosto de 2022, revela que 62,7% das mães brasileiras se sentem cansadas e sobrecarregadas — um ano antes, era de 39,1%. Ainda segundo a comunidade do Facebook com 9,8 mil seguidores, 66% contam com ajuda de alguém e 34% não têm com quem dividir as tarefas de casa. Quanto à situação profissional, 31,8% das mães trabalham com carteira assinada, 28% têm registro de PJ e 22,3% atuam na informalidade. Outro dado interessante: 35,6% praticam atividade física e 30,6% têm algum hobby. "As mulheres são criadas para dar conta de tudo sozinhas. Não podem ser as únicas responsáveis pelos cuidados de um bebê. Esse esgotamento pode levar ao adoecimento psíquico da mãe e trazer consequências para a criança", adverte a psicóloga Luisa Ruzzarin Pesce, autora da dissertação de mestrado O Lado B da Maternidade — Um Estudo Qualitativo a Partir de Blogs, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Para Elisa Fleming, a tão sonhada aldeia do provérbio africano — "É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança" — ainda não passa de utopia. "Imagina como seria o mundo se estivéssemos todos juntos nessa…", propõe.
2023-05-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2v5z773lldo
sociedade
'Não presta como mulher': a superação de estigma após retirada do útero
Quando a enfermeira Ana Regina do Espírito Santo tinha 29 anos, sentiu sintomas estranhos na barriga. "Parecia que tinha algo pulando dentro de mim, dentro do meu útero, mas eu não estava grávida", relembra ela, hoje aposentada, à BBC News Brasil. Ao consultar médicos, recebeu o diagnóstico de miomas no útero. Outras mulheres de sua família, incluindo tias e a mãe, já tinham sofrido com miomas, câncer e precisaram fazer cirurgia para retirada do órgão. Dessa forma, evitaram o surgimento de outras doenças ou agravamento do quadro de saúde. "Tenho histórico familiar. Minhas tias já tiveram miomas e minha avó teve câncer no útero. Então, pensei na minha saúde em primeiro lugar", diz. Depois de alguns exames, a médica confirmou que seria necessário fazer um procedimento cirúrgico, que também é conhecido como histerectomia — remoção total ou parcial do útero, normalmente associada à retirada das trompas. Ana acabou realizando a cirurgia, mas o problema no órgão estava mais avançado do que os médicos imaginavam. Fim do Matérias recomendadas Enfermeira de formação, ela conta que, na época, só pediu para que a cirurgiã fizesse um corte perto da pélvis para que pudesse usar biquíni. "Morava em Santos (litoral de São Paulo) e a minha única preocupação era essa", diz. Segundo Ana, durante a cirurgia, o útero "arrebentou" e não havia como preservar o órgão. Os médicos disseram que ele já estava pesando um quilo. "No meu caso, não tinha como manter o útero. O mioma teve um crescimento muito rápido e era como se eu estivesse em uma gestação de seis meses. Dava essa impressão de tanto que estava pesado." Além do útero, os médicos tiveram que retirar o ovário e as trompas. "Quando os médicos viram os outros órgãos, eles estavam em péssimas condições", relembra. Embora fosse uma cirurgia delicada, Ana afirma que teve uma recuperação tranquila, embora tenha percebido uma perda de peso excessiva depois do procedimento cirúrgico. "Perdi muito peso e fiquei com 45 kg. As roupas dançavam no meu corpo. Fiquei dois meses de licença. Fiz a cirurgia em janeiro, voltei a trabalhar em março e tive outro problema de saúde." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na época do pós-operatório, ela conta que uma vizinha sugeriu que Ana e sua mãe visitassem sua casa, pois um curandeiro estaria lá e podia fazer uma oração por ela. Ao fim do encontro, tiveram uma surpresa desagradável. Sabendo o que ela havia passado, o homem disse: "Mulher assim não presta mais". "Ninguém tinha pedido a opinião dele. A gente não esperava que ele fizesse aquilo e minha mãe ficou muito brava. Uma frase infeliz dessa reverberou por muito tempo na minha vida. Ele foi muito infeliz nisso e aquilo ficava na minha mente, subconsciente e começava a me achar um lixo", conta, indignada. Ana considera que a sociedade na época era muito mais machista do que agora. "É como se nós só prestássemos para ter filho", diz. O preconceito também perdurou na vida dela, principalmente em relacionamentos. Sempre que saía com um homem e contava que não podia ser mãe, eles sumiam, diz Ana. "Não sei o que é namorar, não tinha relações e ninguém queria nada comigo. Os homens, independentemente da etnia, davam desculpa e saíam de fininho. Eu também comecei a pesquisar e ver a solidão da mulher negra. Na década de 90, era outra coisa", afirma. Sem poder engravidar, Ana conta que pensou em adotar uma criança. O plano era apoiado pela mãe na época, mas foi sendo deixado de lado aos poucos. “Já estava me consolidando na carreira, adquirindo independência financeira e foi algo que não foi para frente. Então foi passando, passando e passou. Se eu quisesse, realmente teria adotado, mas foi uma escolha e hoje nós temos condição de escolha”, conta. Ela também encara como um avanço poder ter autonomia sobre suas decisões e o entendimento de que nem toda mulher precisa ser mãe. Ana ressalta que sempre recebeu muito apoio familiar e de amigas próximas. "Teve uma empatia muito grande. Tinha amigas que falavam que não tinham filhos e eram felizes. Outras diziam que, se pudessem, não teriam tido filhos." Mesmo tendo superado a retirada do útero, a frase preconceituosa ouvida muitos anos atrás ainda ecoava em sua cabeça. "Aquilo ficou guardadinho e algum dia despertou em mim, tanto que fiquei doente." Os traumas apareciam no trabalho e impactavam a autoestima de Ana, que chegou a ter 'síndrome de burnout' e conta que não percebia que estava com o problema. "Isso foi um gatilho, estava adormecido e apareceu dessa forma." Ela afirma que demorou anos para cuidar da saúde mental, e foi somente em 2013 que resolveu falar disso abertamente em sessões de terapia. Em conjunto, fez um acompanhamento psiquiátrico e tomou medicação por um ano. Depois disso, diz ela, começou a lidar melhor com tudo que aconteceu no passado. Hoje, Ana conta que evoluiu muito e enxerga que não precisa estar num relacionamento para sentir-se validada. "Você começa a ver que não precisa ter um relacionamento para ser feliz. Apesar de tudo, estou bem. Faço aula de inglês, tenho meu apartamento, moro na praia e tenho aula de dança aos sábados. Hoje estou com a vida que sempre quis e estou bem", conclui. A cirurgia consiste na remoção do útero e pode ser realizada por via vaginal ou abdominal. Pode ser uma histerectomia parcial, quando se faz a remoção do corpo uterino e se preserva o colo. Os ovários e tubas podem ou não ser removidos, dependendo de cada caso. Outra opção é a histerectomia total, sendo caracterizada pela remoção de todo útero, incluindo o colo, podendo haver remoção das tubas e dos ovários. Por último, existe ainda a histerectomia radical, procedimento que leva a remoção de todo útero, incluindo colo uterino, além do tecido de ambos os lados do colo do órgão reprodutor. O tempo de internação e recuperação varia, dependendo do tipo de histerectomia realizada e das condições de saúde da paciente. Em uma histerectomia minimamente invasiva, geralmente, a paciente fica menos de 24 horas internada, segundo especialistas. Existem diversas indicações para realizar a cirurgia e, assim como ocorreu com Ana, miomas são os principais causadores do problema. "Miomas são tumores benignos que crescem nos tecidos uterinos. Podem ocasionar grandes perdas sanguíneas, com quadros de anemia", explica Luana Ariadne Ferreira, ginecologista do hospital Edmundo Vasconcelos, em São Paulo. Segundo Fernanda Schier de Fraga, ginecologista, obstetra e professora do curso de Medicina da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR), é importante observar sintomas como fluxo intenso, menstruação por muitos dias seguidos e fortes cólicas. O procedimento cirúrgico pode ser feito como prevenção para o surgimento de outras doenças, segundo especialistas. Além disso, o histórico familiar também pode ser indicativo para a histerectomia. "O histórico familiar de doenças no útero — como miomas, cânceres, endometriose — pode aumentar o risco do desenvolvimento dessas patologias na mulher. Portanto, é importante que mulheres com histórico familiar de doenças uterinas informem seus médicos e façam exames de rotina com maior frequência para detectar precocemente qualquer problema", alerta Giovana Brandalize, ginecologista oncológica do Hospital São Marcelino Champagnat, em Curitiba (PR). A especialista alerta que a predisposição genética é um dos fatores de desenvolvimento das doenças, mas é importante lembrar que outros, como idade e estilo de vida, também podem influenciar no desenvolvimento dessas enfermidades. A especialista da PUC-PR destaca, ainda, que "se a gente está falando de uma mulher cis, o ideal é mostrar que a vida sexual vai continuar. O acompanhamento psicológico é para isso". E, mesmo tendo o útero parcialmente ou totalmente retirado, as especialistas ressaltam que as mulheres que desejarem ainda podem buscar a maternidade. E dizem que é imprescindível uma rede de apoio e ajuda com profissionais especializados durante o processo. Atualmente, se a mulher não puder engravidar, existem alternativas como adoção, congelamento de óvulos e já se estuda o transplante de útero. "Nas pacientes que têm desejo de gestar e apresentam alguma doença no útero, sempre é considerada uma cirurgia conservadora, retirada somente dos miomas. Mesmo em casos iniciais de câncer no útero e no colo do útero, é possível preservar o útero e manter a fertilidade. Se não for possível preservar o útero, indica-se o congelamento de óvulos, para posteriormente avaliar uma gestação por barriga solidária", explica Brandalize.
2023-05-12
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sociedade
Como Marília Mendonça continua a ser fenômeno após sua morte
As músicas da cantora Marília Mendonça, um dos maiores nomes do sertanejo nos últimos anos, continuam entre as mais tocadas no Brasil, após sua morte em novembro de 2021, no auge da sua carreira. A artista esteve no topo das paradas em 2022 e no início deste ano e segue sendo bastante ouvida nas rádios do país e plataformas de música. Por trás deste sucesso póstumo da cantora, também estão o trabalho e a estratégia traçados por sua gravadora, por seus familiares e pelo escritório que representa a artista. O principal projeto é uma série em quatro partes — a última deve ser lançada no fim de maio — com músicas retiradas de uma live feita por ela em maio de 2021. A canção Leão, que encabeça a série Decretos Reais, já foi ouvida 340 milhões de vezes nas plataformas de música e no YouTube, segundo a Som Livre. Fim do Matérias recomendadas A faixa foi a mais popular no Brasil no Spotify no último verão, e Marília Mendonça foi a artista mais ouvida em todo o país no mesmo período. Os números alcançados por Marília após a morte surpreenderam, avalia o jornalista André Piunti, especializado em música sertaneja. “Ninguém esperava que um lançamento póstumo fizesse tanto sucesso assim. Isso nunca aconteceu no sertanejo, não sei se em outro tipo de música no Brasil, mas acredito que não”, pontua Piunti. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um dos principais nomes do subgênero “feminejo” — música feita por e para mulheres —, Marília Mendonça é dona de inúmeras músicas de sucesso. A artista chegou à gravadora Som Livre em 2015, ainda como compositora. A carreira como cantora começou um pouco depois. Conhecida como a “rainha da sofrência” por cantar sobre o desamor, a artista chegou ao topo com Infiel, seu primeiro hit. A música tem hoje mais de meio bilhão de visualizações no YouTube, onde o canal de Marília tem quase 26 milhões de inscritos. Depois, vieram sucessos como Todo mundo vai sofrer, Vai lá em casa hoje, Troca de calçada e vários outros. “Ela mostrou, logo no início, que tinha muito potencial vocal, que a composição dela falava com todas as características das mulheres e que ela estava representando esse público. Foi uma quebra de estigma do segmento do sertanejo”, diz Júlia Braga, da Som Livre. Ao longo da carreira, Marília acumulou recordes. No auge da pandemia, em maio de 2020, sua live tornou-se a mais vista na história do YouTube, com 3,3 milhões de acessos simultâneos. A cantora foi a artista mais ouvida no Brasil no Spotify em 2019 e em 2020. Ela estava em um avião que caiu na cidade de Piedade de Caratinga, em Minas Gerais, em 5 de novembro de 2021. Além da cantora, também morreram o tio dela, Abicelí Silveira Dias Filho, o produtor Henrique Ribeiro, o piloto Geraldo Medeiros Júnior e o copiloto Tarciso Pessoa Viana. A tragédia causou comoção em todo o país e foi notícia pelo mundo. O velório dela, em Goiânia, reuniu milhares de fãs. Os representantes da cantora tinham um desafio após sua morte: como conduzir a obra deixada por uma das maiores artistas do Brasil? Isso significava, em parte, administrar os trabalhos que Marília havia deixado prontos antes do acidente. Marília tinha acabado de lançar Patroas, por exemplo, uma parceria com a dupla Maiara e Maraísa, suas amigas de longa data. As músicas do projeto alcançaram o topo das paradas nos meses seguintes. Ao mesmo tempo, a equipe decidiu revisitar todo o material já produzido pela cantora, pensando em produzir novos projetos. “A gente teve muito cuidado em fazer reflexão do que ela faria. É óbvio que nunca saberemos e queríamos que ela estivesse aqui. Mas não estando, tivemos o cuidado de tentar fazer com a cara dela”, explica Júlia Braga, diretora de comercial e marketing da gravadora Som Livre. Na live Serenata, feita no YouTube em maio de 2021, Marília cantou sucessos da sua carreira — alguns em nova versão — e de outros artistas. A apresentação tem mais de 10 milhões de visualizações atualmente. A transmissão foi remasterizada para melhorar a qualidade do som de algumas músicas, e a primeira parte foi lançada em julho passado. Os três volumes de Decretos reais que saíram até agora somam 780 milhões de reproduções em plataformas de áudio e no YouTube, de acordo com a Som Livre. “Acho que todo mundo entendeu que esse projeto de regravações — não é de inéditas — é muito potente”, diz Júlia Braga. “O que explica o sucesso atual dela é, sem dúvidas, a própria Marília. Nós estamos aqui apenas para ajudar.” Nos meses seguintes à morte da cantora, também foram lançadas gravações de Marília com outros artistas. Os lançamentos dessas canções seguiram o cronograma de cada parceiro, como os cantores Ludmilla, Naiara Azevedo e Zezé di Camargo, após aval dos representantes de Marília. A música Mal feito, com a dupla Hugo & Guilherme, foi umas das parcerias de maior sucesso. A canção, lançada em janeiro de 2022, foi a mais ouvida no ano passado nas plataformas de música do país, com 255 milhões de reproduções. “Falta a peça principal, que é a Marília e suas ideias geniais, mas fica o florescer das sementes que ela plantou”, diz o escritório Work Show, que cuidava da carreira da artista, em um comunicado à BBC News Brasil. O sucesso de Marília mesmo após a sua morte vai além do fato de ela ter sido um fenômeno em vida, avalia o jornalista André Piunti. Ele destaca que um ponto fundamental é que a artista deixou muito material produzido com qualidade. “Ela deixou coisas realmente prontas”, diz. “Não precisaram revirar arquivos, essas coisas, que sempre são complicadas. Por exemplo, o Cristiano Araújo (cantor sertanejo), que faleceu em 2015, teve o primeiro projeto póstumo lançado só no final do ano passado, porque tiveram que mexer em arquivos. Aí perde um pouco daquele apelo. O dela (Marília) foi lançado menos de um ano depois“, acrescenta. Somente no Spotify, Marília acumula atualmente pouco mais de 13,2 milhões de ouvintes mensais. É a quinta artista brasileira mais ouvida na plataforma nos últimos dias. Ela soma atualmente, segundo a Som Livre, mais de 27 bilhões de reproduções em plataformas de áudio e no YouTube. Os valores movimentados pelos lançamentos póstumos não foram divulgados. Outro ponto, diz André Piunti, é que a equipe dela adotou estratégia de lançamento dos projetos semelhante à que era feita enquanto Marília estava viva. “Reuniram fãs, imprensa, a gravadora e fizeram um lançamento como se a artista estivesse aqui”, comenta. A faixa Leão, uma parceria com o rapper Xamã, tornou-se um dos maiores sucessos póstumos de Marília Mendonça. A canção foi lançada originalmente em 2020 e foi reeditada pela cantora em uma nova versão solo na live de maio de 2021. Piunti diz que a música alcançou números expressivos principalmente por ser considerada quase inédita para muitos que acompanhavam a carreira de Marília. “A música tinha sido gravada com o Xamã, no estilo dele. Então, por mais que ele tenha feito um barulho com ela, ficou mais para o público do Xamã do que para o da Marília”, diz. “Muita gente que gostava da Marília sequer conheceu a versão com o Xamã. E aí ela fez uma versão totalmente nova na live, uma versão que a gente chama de brega, meio ‘sertanejão’ e misturando com alguns ritmos do Nordeste. Enfim, uma bagunça que ela gostava de fazer”, comenta Piunti. “Se fosse só uma regravação de uma música sertaneja bem conhecida, como tantas outras que ela fez (na live), a música teria força, mas não tanta assim”, avalia o especialista. Nos próximos meses (ou anos), devem ocorrer mais lançamentos póstumos de Marília. É uma estratégia que continua sendo traçada pela equipe dela, com o apoio da mãe da artista, Ruth Moreira. “É tudo costurado a muitas mãos. Lembro perfeitamente da primeira reunião, todos estavam muito emocionados. Até hoje, muita gente ainda tem a sensação de que ela vai aparecer, é uma coisa tão vívida que a gente sabe que ocorreu, mas não entende que ela não está mais aqui para discutir os planos e as ideias”, diz Júlia Braga. Parcerias musicais que não foram lançadas até o momento, uma biografia e um documentário estão nos planos. Além disso, uma equipe está catalogando músicas inéditas escritas pela cantora. Há “inúmeras canções e projetos criativos sendo desenvolvidos que em breve aparecerão”, diz o Work Show à reportagem. Segundo o escritório, os lançamentos ocorrerão conforme a vontade de Marília, “a curto, médio e longo prazo", como ela indicou para pessoas de confiança. “Ela assumiu um compromisso de ser além de uma cantora, um movimento, uma forma de ser e estar, uma ideia, e as ideias não morrem”, diz o escritório. Diversos trabalhos deixados pela cantora ainda devem ser avaliados por quem cuida de sua obra. “Não tive acesso a inéditas ou rascunhos, mas já me falaram que há muita coisa dela. Ela era uma mulher hiperativa, no auge e andava com um caderninho o dia inteiro. Ela sempre gravava áudios e mandava pros produtores”, diz Júlia Braga. “É uma infinidade de material que precisa ser ouvido e analisado para ver o que está à altura dela para o público. Sempre que tiver um projeto da Marília, vai ser grandioso", acrescenta.
2023-05-12
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sociedade
A campanha por jovem com doença rara que enganou celebridades e teve desfecho trágico
Em 2020, uma renomada instituição beneficente dedicada a crianças foi fechada. Dois anos antes, sua jovem fundadora havia morrido em circunstâncias misteriosas, deixando todos os envolvidos desesperados por respostas. Só agora a verdade veio à tona — uma história de dissimulação médica e obsessão por celebridades, descoberta por um grupo de pais determinados a proteger a comunidade de pacientes com câncer de impostores. Em 10 de agosto de 2015, uma multidão de fãs aplaudiu e acenou quando dois membros da banda pop One Direction posaram para fotos do lado de fora de um baile de arrecadação de fundos no Museu de História Natural de Londres. Mas lá dentro, as verdadeiras estrelas eram um grupo de crianças muito doentes — todas de vestido longo ou terno, algumas acompanhadas por seus cuidadores, outras em meio ao tratamento de quimioterapia. Para Megan e sua mãe, Jean, este "Baile de Cinderela" era outra oportunidade de arrecadar fundos para sua instituição beneficente em rápida expansão, a Believe in Magic. Nos últimos dois anos, eles haviam realizado centenas de sonhos de crianças gravemente doentes, incluindo festas e viagens à Disney. Os convidados também sabiam que Megan — que tinha apenas 20 anos na época — havia organizado o baile enquanto lutava publicamente contra um tumor no cérebro. É um "privilégio incrível" trabalhar com a Believe in Magic, disse o músico Louis Tomlinson, do One Direction, aos participantes. Mas por trás dos vestidos de baile e máscaras temáticas havia um segredo envolvendo uma das síndromes mais misteriosas da medicina. Fim do Matérias recomendadas A Believe in Magic foi inspirada na luta da própria Megan contra a doença. Depois que seus pais se separaram quando ela era muito jovem, Megan passou a morar com a mãe, Jean, levando uma vida bastante normal nos subúrbios. Mas aos 13 anos, Megan foi diagnosticada com hipertensão intracraniana idiopática — um acúmulo de pressão no cérebro. Alguns anos depois, Jean disse a amigos que Megan também havia sido diagnosticada com um tumor no cérebro. A experiência inspirou Megan, então com 16 anos, a começar a Believe in Magic, para levar um pouco de alegria a crianças extremamente doentes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar das postagens online regulares de Jean sobre o coquetel diário de medicamentos que Megan tomava e as frequentes visitas ao hospital, a dupla trabalhava incansavelmente para sua instituição de caridade. Megan, Jean e sua instituição ficaram famosas pelas festas glamourosas e o apoio da banda One Direction. "Era fora de série", diz Lucy Petagine, cuja filha Luna participou de vários eventos. "Cada criança sentia que era muito importante, e que não estava mal." Em 2015, Megan recebeu um prêmio do então primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, que elogiou sua "coragem extraordinária". No auge do sucesso da Believe in Magic, no entanto, Jean anunciou que o tumor de Megan havia piorado, e ela precisaria arrecadar £ 120 mil para um tratamento de emergência vital nos Estados Unidos. Os apoiadores de Megan correram para ajudar e atingiram a meta em menos de 48 horas. Mas um grupo de pais na comunidade de câncer infantil não achava que Megan estava tão doente quanto afirmava. Quando Jo Ashcroft viu pela primeira vez no Facebook o pedido de doações para Megan na plataforma digital JustGiving no início de 2015, vieram à tona memórias dolorosas. Depois que seu filho foi diagnosticado com neuroblastoma — um câncer do sistema nervoso —, Jo arrecadou £ 250 mil para um tratamento de ponta bem-sucedido nos Estados Unidos. Mas algo no pedido de Megan acendeu um alerta em Jo. Ela não havia mencionado nenhum médico ou hospital específico. "Eu fiquei um pouco desconfiada", relembra. "Só queria ter certeza de que o dinheiro estava indo para o lugar certo." Quando Jo falou com três amigos cujos filhos também haviam sido diagnosticados com neuroblastoma, eles concordaram que era incomum. Mas recomendaram cautela — acusar injustamente alguém de mentir sobre um tumor cerebral era impensável. Perguntas feitas amistosamente para Jean e outros apoiadores ficaram sem resposta, então Jo voltou a administrar os negócios da família e a cuidar dos três filhos. Até que, um ano depois, Jo viu que Megan e Jean estavam arrecadando fundos novamente — Jean disse que Megan estava gravemente doente em um hospital nos EUA e precisava de mais dinheiro. Jo e os outros pais juraram que desta vez descobririam a verdade. "Virou uma ideia fixa", diz ela. "Não quero que as pessoas sejam enganadas, especialmente não na comunidade de pacientes com câncer." Ela adotou um pseudônimo e até fingiu ser uma jornalista escrevendo uma reportagem sobre Megan — embora novamente não tenha chegado a lugar nenhum. Mas um membro do grupo usou seus conhecimentos de informática para descobrir onde Jean e Megan estavam abrindo seus e-mails. Não era um hospital. Era um hotel de luxo na Disney World em Orlando, na Flórida. Algumas semanas depois, Megan e sua mãe Jean desembarcaram no transatlântico Queen Mary II no porto de Southampton, no Reino Unido. De acordo com Jean, elas tiveram sorte de estar de volta. Ao longo do verão, ela pediu aos apoiadores que a ajudassem a arrecadar dinheiro — explicando que Megan tinha "16 fontes de infecção" e sepse grave. A certa altura, ela disse, os médicos deram a Megan 10% de chance de sobreviver os próximos sete dias. Graças ao trabalho árduo deles, no entanto, ela disse que a condição de Megan havia se estabilizado, e os especialistas na Flórida haviam permitido que ela voltasse para casa, munida com cinco caixas de kit médico e um "enorme concentrador de oxigênio". Mas, quando elas chegaram, um detetive particular estava à espera delas no terminal de cruzeiros. Jo estava tão determinada a descobrir a verdade que pagou o equivalente a cerca de R$ 6 mil para ele tirar fotos das duas. As fotos mostram Megan e Jean saindo do navio como duas turistas felizes. Não havia tanques de oxigênio. Segundo o detetive, elas estavam rindo e conversando enquanto passavam pelos carregadores, empurrando carrinhos de bagagem cheios de malas. Perguntamos a Jean por e-mail por que ela e Megan estavam hospedadas em um resort da Disney no momento em que alegavam que Megan estava gravemente doente em um hospital dos EUA. Ela não respondeu, embora tenha dito: "É muito fácil ser arrastado para dentro das mentiras da rede social". Munidos com essa nova evidência, os pais desconfiados entraram em contato com todas as autoridades nas quais conseguiram pensar, mas parecia que ninguém iria intervir. Eles decidiram então criar um grupo no Facebook chamado "A verdade sobre Meg e Jean", no qual compartilharam suas descobertas. Mas a maioria dos apoiadores de Meg e Jean se recusou a acreditar. Muitos haviam visto a saúde precária de Megan de perto — os tubos intravenosos em seu braço e a medicação. Jo foi bombardeada com mensagens de ódio, mas ela estava confiante de que havia feito a coisa certa. Até que, no início de 2018, o telefone de Jo tocou. Megan tinha morrido. Megan morreu em 28 de março de 2018 no Hospital Nacional de Neurologia e Neurocirurgia em Londres. "Tudo o que eu dizia era: 'Querida, se você quiser ir, por favor, vá e seja feliz'", escreveu a mãe dela no Facebook. Jo ficou atordoada. "Não era para terminar assim", diz ela. Para os apoiadores de Megan, havia pouca dúvida de quem era o culpado. "Ela foi perseguida até a morte", escreveu um deles no Facebook. Mas Jo continuou convencida de que Megan não tinha um tumor no cérebro. Quando a causa da morte de alguém não é clara, um legista investiga o que aconteceu. No fim de 2018, foi aberto um inquérito sobre a morte de Megan. No início de 2022, recebemos permissão para comparecer ao tribunal e ouvir uma gravação do que havia sido dito no inquérito quatro anos antes. Durante duas horas, escutamos os médicos explicarem o que tinham visto. Megan certamente não estava bem — ao longo dos anos ela havia sofrido de várias condições, mas todas em teoria administráveis. O inquérito significou, no entanto, um revés chocante nas alegações que Megan e Jean haviam feito ao longo dos anos. Jo estava certa — não havia menção a um tumor. De acordo com o patologista forense, seu cérebro era "morfologicamente normal". Vários médicos listaram outros detalhes preocupantes. Um deles tinha dúvidas sobre a validade do histórico médico de Megan. Outro observou o comportamento de "busca de opiáceos" de Megan. Houve uma tentativa de obter morfina usando uma receita médica falsificada. Megan faltou repetidamente a consultas médicas e pulou de médico em médico. Não foi um tumor que matou Megan, mas uma anormalidade do ritmo cardíaco — arritmia cardíaca aguda — devido à gordura no fígado, provavelmente relacionada ao alto índice de massa corporal de Megan. Jean não quis ser entrevistada, mas nos disse por e-mail que Megan tinha um microadenoma pituitário — um tipo de tumor cerebral não cancerígeno que, embora não seja tipicamente fatal, pode ser prejudicial. Megan tinha quatro meio-irmãos mais velhos, filhos de Jean de um casamento anterior. "Eu tinha 12 anos quando Meg nasceu", diz a meia-irmã de Megan, Kate, cujo nome mudamos para esta reportagem. "Eu simplesmente a adorava." De acordo com Kate, Megan e Jean tinham uma relação estranha com doença. Se alguém que elas conheciam não estivesse bem, mais cedo ou mais tarde eles ouviriam que Megan tinha a mesma coisa. Kate se lembra de jantares em família cercados de perigo. Jean empilhava latas precariamente em cima de armários de comida vazios, que caíam e batiam na mesa de jantar logo abaixo — com tanta frequência que ficavam cobertas de mossas e cavidades. "Jean queria que um de nós sofresse um acidente", acredita Kate. "Toda a emoção que isso envolve. A atenção." Para a outra meia-irmã de Megan, Rachel — cujo nome também mudamos para esta reportagem — a questão é ainda mais pessoal. Aos nove anos, teve uma erupção cutânea que causou problemas renais. Com o passar dos anos, sua condição piorou e ela precisou de um transplante. Depois que Megan morreu, Rachel se lembrou claramente de ser alimentada com xícaras e xícaras de Bovril (marca de extrato de carne salgado) quando criança — embora o alto teor de sal seja algo que você deve evitar se tem problemas renais. Ela agora se pergunta: "Só eu comia Bovril. Será que foi uma coisa proposital?" Em 1951, um médico chamado Richard Asher publicou um artigo inovador na revista científica The Lancet. Enquanto administrava uma unidade de observação psiquiátrica, ele notou um número pequeno, mas consistente, de pacientes que se queixavam de vários sintomas, mas, em um exame mais detalhado, eram perfeitamente saudáveis. Ele chamou essa condição de "síndrome de Munchausen". É diferente da hipocondria. Os hipocondríacos exageram e entram em pânico, mas realmente pensam que estão doentes. Os pacientes com síndrome de Munchausen sabem que não estão, mas procuram tratamento mesmo assim. Feldman nunca conheceu Megan ou Jean, tampouco viu o prontuário de Megan. Mas com base no relato detalhado do que descobrimos, ele diz que o caso de Megan "brada" síndrome de Munchausen por procuração. Megan tinha 23 anos quando morreu, então legalmente era uma adulta. Mas ela ainda era uma criança quando a instituição de caridade foi aberta. Nunca saberemos ao certo quem estava conduzindo esse comportamento, ou o que Megan realmente pensava disso tudo. Feldman explica que a linha divisória entre uma criança e um adulto que consente pode ser clara em termos legais — mas nem sempre na prática: "Se você aprender durante a sua vida toda que há certas coisas que você está autorizado a dizer e pensar... você se torna cooperativo". As pessoas simulam doenças — em si mesmas ou nos outros — por vários motivos. Algumas fazem isso por dinheiro. Às vezes, é uma vontade de ser ouvido ou cuidado. Para os pais, pode ser um desejo de ser o cuidador heroico. Muitas vezes, é uma mistura. Para Megan e Jean, um motivo pode ter sido administrar uma instituição de caridade muito amada — apresentar Megan com um tumor no cérebro com risco de morte pode ter ajudado a Believe in Magic a alcançar mais crianças. Em um evento da Believe in Magic na Torre de Londres, um ex-amigo lembra que Jean observou: "Quanto mais doente Meg está, mais atenção recebemos, mais dinheiro ganhamos." Mais recentemente, Feldman identificou uma nova tendência — pessoas fingindo certas condições para conhecer celebridades. Uma condição grave, diz ele, "permite que alguém se destaque em meio a um grupo de pessoas apaixonadas por essa celebridade". Kate, meia-irmã de Megan, acredita que o tumor no cérebro e a Believe in Magic foram parcialmente motivados pelo desejo de conviver com celebridades. Depois de tuitar repetidamente para os integrantes do One Direction, a banda se tornou apoiadora da instituição de caridade, permitindo que Megan e Jean conhecessem os astros. Em 2017 — um ano antes da morte de Megan —, a Comissão de Caridade do Reino Unido abriu uma investigação sobre a Believe in Magic, após várias denúncias de Jo. Eles descobriram que mais de R$ 600 mil não estavam contabilizados, e que o dinheiro da caridade havia sido transferido para a conta bancária pessoal de Jean. Em 2020, a instituição foi dissolvida, e Jean concordou em não ser administradora ou ter um cargo de gestão sênior em nenhuma instituição beneficente por cinco anos. Apenas alguns meses após o fechamento da Believe in Magic, Jean desapareceu da vida pública. Ela se mudou para a França por um tempo, antes de voltar ao Reino Unido no ano passado. Mas esse não foi o fim da história. Em novembro de 2022, o Conselho de Kingston — onde Megan morava — publicou uma "Revisão da Salvaguarda de Adultos" sobre o que havia acontecido. São investigações raras de casos em que as pessoas podem ter sido deixadas na mão pelas autoridades. Como é de praxe, os nomes foram todos trocados, mas dado todo o conhecimento que temos sobre o caso, não temos dúvidas de que se trata de Megan. Eles concluíram que: "Apesar de não haver diagnóstico formal de doença fabricada ou induzida pelo cuidador neste caso, a apresentação e a conclusão do legista levaram todos os envolvidos a pensar que provavelmente foi um caso de doença fabricada ou induzida pelo cuidador." Esta revisão não sugere que a doença fabricada ou induzida pelo cuidador tenha causado a morte de Megan. O documento cita a causa da morte apontada no inquérito do legista: arritmia cardíaca, devido à gordura no fígado. Mas, mesmo assim, destaca como a doença fabricada ou induzida pelo cuidador no caso de Megan poderia ter escapado. A doença fabricada ou induzida pelo cuidador é reconhecida como algo que pode acontecer com as crianças, porque os pais comparecem às consultas médicas, sendo eles os responsáveis por dar o consentimento para os tratamentos. Há muito menos conhecimento sobre como isso pode acontecer com adultos vulneráveis também. Como Megan era adulta durante grande parte dessa história, médicos e assistentes sociais não tinham treinamento e ferramentas para identificar sua situação como um caso de doença fabricada ou induzida pelo cuidador enquanto ela ainda estava viva. Pedimos a Jean que respondesse às conclusões da revisão de Kingston. Ela não abordou diretamente o que foi constatado, mas disse: "Eu amei e cuidei da minha filha. Sugerir que eu poderia tê-la prejudicado de alguma forma é absolutamente doentio". É tarde demais para Megan, mas, de acordo com a especialista em doença fabricada ou induzida pelo cuidador, Danya Glaser, esta revisão pode mudar a forma como casos semelhantes são entendidos e gerenciados. "A revisão de Kingston é extremamente significativa", diz ela. "Chama a atenção das pessoas para o fato de que a doença fabricada ou induzida pelo cuidador pode continuar na idade adulta." Alguns dias após a publicação da revisão, visitamos Kate e Rachel para contar a conclusão do relatório — nem mesmo as irmãs de Megan faziam ideia de que isso havia acontecido. Nenhuma delas fala com a mãe há anos. Quando elas fizeram perguntas difíceis sobre Megan e a Believe in Magic, Jean cortou as duas da sua vida, segundo elas. "É uma coisa boa de se ter. Está tudo lá, preto no branco", diz Rachel, lendo o relatório. "Pensávamos que tudo aquilo tinha sido esquecido." Ela se lembra do seu transplante de rim e se pergunta o que esse relatório também significa para ela. Ambas esperam que ajude a evitar que algo semelhante aconteça novamente. "Megan foi uma vítima", diz Kate. "Ela foi aliciada para isso."
2023-05-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2vvdw5q0vo
sociedade
'Vou ser aprisionada': corte de verba pode levar 12 pessoas a morar no Hospital das Clínicas em SP
Marília de Mello Serafim, de 38 anos, ama passar o tempo livre com as filhas. Osmar Luis Maciel de Elias, de 39, é aficionado por carros e, aos fins de semana, viaja para apreciar as montanhas do Vale do Paraíba, como Campos do Jordão, no interior paulista. Já Weverton Fagner, de 25 anos, é fã de futebol e toca violão. Eles têm algo em comum: até o fim do mês correm o risco de serem internados permanentemente em um quarto do Hospital das Clínicas e perderem a liberdade de fazerem o que gostam em casa, ao lado da família e amigos. Eles fazem parte de um grupo de 12 pessoas que participam do Programa de Nutrição Parenteral Domiciliar, uma pesquisa do Hospital das Clínicas de São Paulo em parceria com o governo federal que proporciona que eles recebam, por motivos diferentes, uma alimentação aplicada diretamente na veia, em casa. Essa pesquisa, que ocorre no maior hospital da América Latina, está ameaçada de encerramento por falta de um repasse feito pelo governo federal e já dá sinais de perda de arrecadação. Os pacientes já não recebem mais a alimentação em casa nem são visitados por enfermeiros. Ao contrário, eles passam até duas horas no transporte público para buscar o medicamento no hospital. Fim do Matérias recomendadas A única saída para que esses pacientes não interrompam o tratamento e morram em casa sem alimentação é serem internados. O motivo é que, sem a pesquisa, o Sistema Único de Saúde (SUS) só fornece alimentação parenteral para pessoas que estão em unidades hospitalares. A reportagem da BBC News Brasil ouviu alguns pacientes, de diversas partes do país, para entender o que eles pretendem fazer caso percam a liberdade de trabalhar e ter o conforto de continuar o tratamento em casa, próximos dos familiares e amigos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Marília, que agora tem só o intestino grosso, diz que a possível internação permanente determinará o completo fim da vida social dela, que tem dois filhos. Ela compara a nova realidade a um presídio. “Querem nos privar do direito à vida. Querem tirar o nosso direito constitucional de ir e vir. Eu só quero que garantam que a gente tenha uma vida minimamente normal. No hospital, eu não vou poder ir onde eu quero, fazer o que eu quero. Eu vou ser aprisionada”, diz Marília, que é técnica de enfermagem e socorrista do Samu. Ela conta que precisou fazer cirurgias depois de sentir fortes dores no estômago após passar por uma cirurgia bariátrica. Em 2016, ela precisou fazer um procedimento para retirar o intestino delgado quando o órgão necrosou. Hoje, ela tem a síndrome do intestino curto e se alimenta, durante oito horas por dia, por meio de uma sonda instalada em um aparelho que fica na casa dela no Tucuruvi, na zona norte de São Paulo. A cada 15 dias, ela vai até o Hospital das Clínicas buscar dezenas de embalagens com a alimentação fornecida de graça pelo governo. Antes, ela e os outros pacientes do programa passaram por um treinamento, que durou meses, para aprender com médicos e enfermeiros como tornar a própria casa um ambiente seguro e estéril para aplicar a medicação. O grupo também aprendeu a lidar com imprevistos e urgências que poderiam ocorrer durante essa manipulação. No entanto, hoje dizem viver "um pesadelo" ao pensar que podem passar o resto da vida vivendo no hospital. Procurado, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP informou que "os 12 pacientes beneficiados pelo Programa de Nutrição Parenteral Domiciliar, custeado por meio de convênio com o Ministério da Saúde (MS), seguem em acompanhamento ambulatorial normalmente, inclusive com o recebimento da alimentação a cada 15 dias. O HCFMUSP informa ainda que está em tratativas avançadas com o MS para prorrogação do Programa por mais 6 meses, além de elaborar uma proposta para renovação do convênio ao final dela". Procurado, o Ministério da Saúde se resumiu a dizer que o programa "segue vigente". Assim como a administração do maior hospital da América Latina, a pasta não informou qual o custo do tratamento de cada um desses pacientes, nem mesmo se o programa está ameaçado e qual o impacto que a ocupação desses 12 leitos poderia causar na estrutura do hospital onde se tratam pessoas de todo o país. Um projeto do deputado federal Julio Cesar Ribeiro (Republicanos-DF) prevê a inclusão de todas as inflamações intestinais graves, como a doença de Crohn, a síndrome do intestino curto e a retocolite, no rol de doenças graves e raras do SUS. Caso o texto seja aprovado, os pacientes que comprovarem ter essas doenças terão direito a receber a nutrição parenteral ou enteral (por meio de uma sonda) em um centro de reabilitação intestinal ou conforme recomendação médica. Esse projeto, na teoria, beneficiaria diretamente os pacientes atendidos no Hospital das Clínicas e permitiria que eles continuassem atendidos pelo grupo de pesquisa. O texto está sendo analisado pelas comissões permanentes da Câmara dos Deputados, antes de seguir para votação e sanção. Os entrevistados pela reportagem pedem que o projeto seja votado com urgência. “A gente tem pressa porque o nosso estado de saúde só vai piorar nessa situação. Estudos feitos com a gente indicam que pacientes em casa vivem mais porque não pegam infecção e têm menos complicações no fígado. Fora do hospital, a gente contribui com a sociedade, trabalha e estuda. Mas lá dentro só geramos custos”, afirma Marília. Weverton Fagner, de Vitória de Santo Antão, em Pernambuco, fez uma cirurgia para remoção do apêndice, em 2015. Mas, por conta de intercorrências durante o procedimento, os médicos retiraram praticamente todo o intestino dele. Em 2016, ele conseguiu na Justiça que o governo custeasse uma cirurgia de transplante de intestino nos Estados Unidos. Ele fez o procedimento, mas teve rejeição aguda depois que voltou ao Brasil e precisou retirar o órgão. Ele chegou a entrar novamente na lista do transplante, mas foi retirado depois que o corpo dele começou a produzir anticorpos que inviabilizariam o procedimento. Hoje, ele vive em São Paulo e também depende do tratamento domiciliar com alimentação parenteral. A produção conta a história de uma adolescente diagnosticada com câncer que se mantém viva graças a um remédio em fase de testes. Ela conhece um rapaz que também tem câncer em um grupo de apoio e eles se apaixonam. Semelhanças inegáveis, já que Mônica e Osmar se conheceram no Hospital das Clínicas, uma vez que os dois precisavam de alimentação parenteral por motivos diferentes. Eles se apaixonaram durante as idas e vindas buscando a alimentação e voltando juntos para bairros do extremos leste da capital paulista: ele morava em Guaianases e ela no Itaim Paulista. Mônica morreu meses após a publicação da reportagem por conta de um problema pulmonar. Osmar é o paciente mais antigo que faz parte do grupo de pesquisa de alimentação parenteral do Hospital das Clínicas e, seis anos depois, relata o medo que sente de ficar sem remédios. "Todos os pacientes que serão internados não têm previsão de saída. E a gente não vai durar muito por conta desses cateteres. É muita gente entrando e saindo do quarto, mexendo, examinando. É muito difícil a gente não ser infectado por alguma bactéria", diz Osmar. Ele relata que o estado de saúde dele evoluiu significativamente desde o início do tratamento. Antes, ele passava 140 horas por semana se alimentando de forma parenteral. Hoje, são 72, praticamente a metade do tempo. "Eu quero continuar o tratamento porque ele está dando certo e é muito mais barato do que ser internado. Eu não estou pedindo um remédio novo que custa milhões, não. Eu só quero ficar em casa e continuar vivendo. Eu quero poupar o dinheiro público", afirma ele. Osmar conta que hoje vive uma vida praticamente normal. No início da noite, ele liga o aparelho para receber a medicação, enquanto resolve as burocracias da empresa que ele tem com o irmão. Eles fornecem equipamentos para a fabricação de pães em larga escala, como formas, carrinhos e máquinas. Há 17 anos convivendo com a rotina hospitalar, Osmar faz um apelo para não ser internado e faz um relato do impacto que a internação de longo prazo exerce sobre os pacientes. "A sua vida social morre ali. A sua vida mental morre em poucos dias e a sua vida física também. Você vai se acabando aos poucos. Você não vê paciente de longo prazo internado corado, feliz. Você é picado toda hora, eles mantêm a luz acesa e tem gente com você o tempo todo, além do barulho 24 horas. Você não consegue dormir, não tem uma diversão, lazer, nada".
2023-05-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c721q5zx2dyo
sociedade
4 características de pais e mães 'tóxicos', segundo psicólogos
Há alguns anos, a psicóloga argentina Camila Saraco percebeu que muitos dos pacientes que a procuravam tinham algo em comum: tiveram uma "criação tóxica". Isso não significa que apenas um pai abusivo seja tóxico. "Existem tantas outras maneiras pelas quais os pais machucam, às vezes inconscientemente", diz. Ela decidiu, então, criar um curso: "Pais Tóxicos", para ajudar a compreender quais comportamentos dos pais não são saudáveis, quais as consequências para os filhos e o que podem fazer aqueles que têm esses pais ou mães. Saraco ressalta que um genitor ruim não é necessariamente uma pessoa má. “Tem muita mãe ou pai que é extremamente bom e que, por amor, sem querer, também é tóxico”, explica. Fim do Matérias recomendadas O psicólogo mexicano Joseluis Canales, autor de vários livros, entre eles Pais Tóxicos: Legado Disfuncional de uma Infância, publicado em 2014, concorda com isso. Canales aponta que, às vezes, um pai é tão bondoso que não tem autoridade, algo que também é prejudicial para os filhos. Ainda assim, diz ele, "é importante entender que todos os pais cometem erros e isso não os torna tóxicos". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O que então torna uma criação pouco saudável? O autor destaca que os pais têm duas funções principais: “Dar amor aos filhos e formá-los para a vida”. Alguns pais geram prejuízos porque deixam de fazer o primeiro. Outros porque falham no segundo. Curiosamente, parece haver uma diferença de geração entre esses dois grupos. Os pais dos chamados Baby Boomers e Geração X costumavam ter mais problemas na hora de dar carinho e apoio emocional aos filhos. Saraco conta que vários de seus pacientes, com mais de 40 anos, apresentam problemas de baixa autoestima e sensação de insuficiência que geram conflitos no relacionamento, algo que ela atribui a uma educação deficiente do ponto de vista afetivo. Por outro lado, nas últimas décadas, o dano muitas vezes é causado por pais amorosos que não sabem impor limites e superprotegem seus filhos, criando "filhos tiranos" que não sabem administrar suas emoções e sofrem porque ficam frustrados ao menor obstáculo. É importante esclarecer que tanto homens quanto mulheres podem ser pais tóxicos. E que, quando os dois são responsáveis pela criação, os danos são causados por ambos. “Se um dos membros do casal é tóxico, o outro é um abusador passivo”, diz Canales. A seguir, mostramos algumas das características dos pais tóxicos, segundo especialistas. Sem dúvida, os pais que abusam sexualmente e são violentos com os filhos são os que afetam mais profundamente. Mas não é necessário que um pai abuse fisicamente de uma criança para causar danos muito difíceis de curar, alertam os especialistas. Agressões verbais e emocionais também são prejudiciais, apontam. Elas vão desde desqualificar uma criança ("não vai dar certo para você", "deixa para lá, é melhor que eu faça isso") a "insultá-la com palavras que ferem sua integridade, como chamá-la de 'idiota', dizendo que ninguém vai amá-la ou que se arrepende de tê-la tido." Canales diz que “O risco é que tudo isso se torne uma voz interna”. E Saraco considera que, às vezes, "é mais fácil curar uma infância com agressões do que uma com abusos psicológicos". "Há pais que se tornam violentos quando bebem. Nesses casos, a vítima pode entender que o pai bate nela quando ele se descontrola e que ele tem o problema. Por outro lado, se ele crescer ouvindo humilhação, ela a assimila como algo próprio". Outra característica de um pai ou mãe tóxico é a manipulação, que Canales chama de "abuso emocional". “O eixo dessa forma de abuso tem a ver com a culpa. O adulto se faz de vítima na frente da criança para chantageá-la e conseguir o que quer”, descreve. Saraco observa que esse recurso é mais visto em mães tóxicas. “Acontece principalmente com filhas que moram com a mãe. A mãe não quer que formem casal para não saírem de casa, então ela começa com comentários e observações negativas sobre o casal, ou interferências que buscam separá-los", diz. "Isso faz com que a filha viva a relação com culpa." Esta é uma característica compartilhada por pais tóxicos de diferentes gerações. Mas quando antes os pais faziam restrições a seus filhos para conseguir sua submissão, hoje o fazem com a intenção de protegê-los. “Antes, pais tóxicos se impunham, com limites muito agressivos, em vez de acompanhar a autonomia dos filhos”, diz Saraco. Exemplos típicos são os pais que forçaram seus filhos a seguir determinadas carreiras ou seguir certas tradições familiares. “O efeito no filho é que ele não consegue tomar decisões. Isso é muito visto em meninos que começaram a carreira, porque a desobediência aos pais lhes causava muita angústia, e depois de alguns anos eles abandonavam”, diz a psicóloga. Hoje, a toxicidade envolve superproteger os filhos, querendo evitar qualquer sofrimento ou frustração, segundo os especialistas. “A superproteção também é um abuso, porque a criança superprotegida aprende que não pode enfrentar a vida sozinha”, explica Canales. "Parte do aprendizado de todo mundo é por meio do erro. E o erro gera frustração. Você tem que ensinar a tolerar a frustração, senão seu filho não vai conseguir se desenvolver na vida cotidiana", diz. Outra característica dos pais tóxicos modernos é que "são muito permissivos e têm medo de impor limites aos filhos", o que os torna negligentes, segundo Canales, pois "negligenciam as necessidades físicas, emocionais, sociais e acadêmicas dos filhos". Se o pai negligente de antigamente era o ausente, ou aquele que não dava atenção ao filho, hoje é quem "deixa ele comer o que quiser, faltar à escola, não fazer o dever de casa e desrespeitar os outros", exemplifica. "Ao serem negligentes, eles dão às crianças um poder com o qual uma criança não consegue lidar de forma saudável. Os pequenos se tornam os adultos no sistema familiar", alerta. Nesse tipo de educação, todo mundo sofre, acrescenta o psicólogo. “A criança cresce sem conseguir se encaixar em uma escola, em uma universidade, em um mundo de trabalho, em uma sociedade em que não pode fazer o que quiser”, diz. Os pais se sentem “aprisionados” pelas birras do filho. E até a sociedade sofre, pois “está se formando uma geração de tiranos, que não respeitam a autoridade, não têm capacidade de se frustrar e, sendo crianças muito egocêntricas, têm pouquíssima empatia e capacidade de ceder ao problema dos outros e ver o bem comum", diz o psicólogo. Se você cresceu com pais permissivos e superprotetores, o que você precisa fazer é “tomar a decisão de sair dessa superproteção”, diz Saraco. No entanto, ela esclarece que isso é algo que só pode ser feito quando se é adulto. “Não se pode pedir a uma criança que saia do vínculo tóxico protetor”, adverte. Nesse caso, há várias dicas práticas para lidar com pais abusivos, controladores e manipuladores. "Primeiro, é importante que você perca a ilusão de que vai conseguir mudá-los." "Também não tente argumentar com eles, nem entender como eles pensam, porque eles têm outra forma de ver as coisas, e você deve evitar entrar em discussões que não levam a lugar nenhum", diz. "Você tem que tentar sair desse lugar de tentar agradá-los e gostar deles o tempo todo, que é o que eles querem ou fazem a criança sentir." "E é fundamental que você aprenda a estabelecer limites emocionais e, se necessário, até físicos", completa. No entanto, o principal trabalho é consigo mesmo, afirmam os dois especialistas. "Devemos tentar fortalecer nossa autoestima e segurança para não ceder às manipulações e não hesitar naqueles momentos em que as frases desses pais podem nos intimidar ou desestabilizar", diz Saraco. Já Canales afirma que "o mais importante é desaprender o que te ensinaram a ser amor e reaprender o que é o verdadeiro amor, para estabelecer relações saudáveis".
2023-05-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqq9zw3y4kro
sociedade
Australiana sobrevive 5 dias perdida na floresta só com doces e vinho
Uma mulher de 48 anos sobreviveu cinco dias perdida na floresta na Austrália comendo doces e bebendo uma única garrafa de vinho. Lilian Ip iria fazer uma viagem curta na qual precisava passar pela floresta no Estado de Victoria. Mas ela acabou fazendo uma curva errada e seu carro ficou preso na lama. Lilian não bebe, mas tinha uma garrafa de vinho no carro porque pretendia dar de presente. Depois de cinco noites na floresta, ela foi descoberta pelos serviços de emergência na sexta-feira, quando sobrevoavam o local como parte de uma busca. "A primeira coisa que me veio à mente foi que precisava de água e de um cigarro”, disse Lilian ao canal 9News Australia. "Graças a Deus a policial tinha um cigarro." Fim do Matérias recomendadas "Achei que ia morrer ali. Todo o meu corpo parou na sexta-feira", disse ela, acrescentando que "estava prestes a desistir". Como ela perdeu a esperança de ser encontrada com vida, ela escreveu uma carta para sua família dizendo que os amava. Lilian foi encontrada a cerca de 60 km de distância da cidade mais próxima. Mas devido a problemas de saúde, ela não conseguia andar muito, então ficou no carro, disse a polícia de Victoria. Ela só tinha alguns salgadinhos e doces para comer, e nenhuma água. "O único líquido que Lillian tinha com ela era uma garrafa de vinho que ela comprou de presente para sua mãe", disse o sargento Martin Torpey, da delegacia de polícia de Wodonga. "Ela teve muito bom senso ao ficar no carro e não vagar pelo mato, o que ajudou a polícia a encontrá-la." Lilian foi levada ao hospital para tratamento de desidratação e depois voltou para sua casa em Melbourne.
2023-05-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgr1env5jjdo
sociedade
EUA tiveram 1,6 ataque a tiros por dia em 2023
A violência armada é uma constante nos Estados Unidos — tema que coloca defensores do controle de armas contra pessoas que protegem ferozmente seu direito de portá-las. A seguir, confira alguns dos números por trás das armas de fogo nos EUA. Houve 201 tiroteios em massa nos EUA até agora em 2023, segundo a plataforma Gun Violence Archive, que define um tiroteio em massa como um incidente no qual quatro ou mais pessoas são feridas ou mortas. Os dados incluem ataques a tiros que acontecem em residências e em locais públicos. Isso significa uma média de 1,6 ataque a tiros por dia em 2023. Houve dois no Texas na semana passada — com cinco mortos em uma casa em Cleveland, ao norte de Houston, e oito mortos em um shopping em Allen, perto de Dallas. Em cada um dos últimos três anos, houve mais de 600 tiroteios em massa, quase dois por dia em média. Fim do Matérias recomendadas O ataque mais mortal desse tipo, em Las Vegas em 2017, matou mais de 50 pessoas e deixou 500 feridos. A grande maioria dos tiroteios em massa, no entanto, deixa menos de 10 pessoas mortas. Segundo os dados mais recentes dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA, órgão vinculado ao Ministério de Saúde daquele país, 48.830 pessoas morreram devido a ferimentos relacionados a armas de fogo nos EUA em 2021. Isso representa um aumento de quase 8% em relação a 2020, que foi um ano recorde para mortes por armas de fogo. Embora tiroteios em massa e assassinatos com armas de fogo (homicídios) geralmente atraiam muita atenção da mídia, mais da metade do total em 2021 foram suicídios. Naquele ano, mais de 20 mil casos foram homicídios, segundo o CDC. Os dados mostram que mais de 50 pessoas são mortas a cada dia por uma arma de fogo nos EUA. Essa é uma proporção significativamente maior de homicídios do que no caso do Canadá, Austrália, Inglaterra e País de Gales e muitos outros países. Mas não do que no Brasil, onde no ano passado foram registradas 40,8 mil mortes violentas, ou 112 óbitos por dia, mais do que o dobro dos EUA. A comparação chama ainda mais atenção considerando que os EUA têm uma população maior do que a do Brasil — 332 milhões contra 214 milhões. Embora seja difícil calcular o número de armas em mãos privadas em todo o mundo, os números mais recentes do Small Arms Survey — um projeto de pesquisa com sede na Suíça — calculam que havia 390 milhões de armas em circulação nos EUA em 2018. A proporção dos EUA de 120,5 armas de fogo por 100 residentes, acima dos 88 por 100 em 2011, supera em muito a de outros países ao redor do mundo. Dados mais recentes dos EUA sugerem que a posse de armas cresceu significativamente nos últimos anos. Um estudo publicado pelo Annals of Internal Medicine em fevereiro apontou que 7,5 milhões de adultos americanos se tornaram novos proprietários de armas entre janeiro de 2019 e abril de 2021. Isso, por sua vez, expôs 11 milhões de pessoas a armas de fogo em suas casas, incluindo 5 milhões de crianças. Cerca de metade dos novos proprietários de armas naquele período eram mulheres, enquanto 40% eram negros ou hispânicos. A maioria dos americanos é a favor do controle de armas. Segundo uma sondagem do instituto de pesquisa Gallup: A questão é extremamente divisiva, recaindo amplamente nas linhas partidárias. "Os democratas são quase unânimes em seu apoio a leis de armas mais rígidas", observou outro levantamento da Gallup, com quase 91% desse eleitorado a favor de leis de armas mais rígidas. Apenas 24% dos republicanos, por outro lado, concordaram com a mesma afirmação, junto com 45% dos eleitores independentes. Alguns estados tomaram medidas para proibir ou regulamentar estritamente a posse de armas de assalto. As leis variam conforme o estado, mas a Califórnia, por exemplo, proibiu a posse de armas de assalto com raras exceções. Algumas restrições são amplamente apoiadas por pessoas de todos os espectros políticos — como as que regem a venda de armas para pessoas com problemas mentais ou em listas de "observação". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Entre 2008 e 2022, grupos a favor das armas, como a NRA, gastaram consistentemente mais que o dobro dos que são contrários a elas. Os gastos alcançaram um pico em 2013 em pouco menos de US$ 20 milhões — naquele ano, as organizações que advogam pelo controle de armas gastaram pouco menos de US$ 3 milhões. Já em 2002, grupos pró-armas gastaram US$ 13 milhões contra US$ 2,3 milhões das organizações anti-armas. Vários estados também chegaram ao ponto de eliminar amplamente as restrições sobre quem pode portar uma arma. Em junho de 2021, por exemplo, o governador do Texas, Greg Abbott, sancionou uma "lei de porte sem permissão" que permite aos residentes do estado portar armas sem licença ou treinamento. Da mesma forma, em abril do ano passado, a Geórgia tornou-se o 25º estado a eliminar a necessidade de permissão para ocultar ou portar abertamente uma arma de fogo. A lei significa que qualquer cidadão desse estado tem o direito de portar uma arma de fogo sem licença ou permissão. A lei foi apoiada pela NRA.
2023-05-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1kye5y7y0o
sociedade
A família boêmia que chocou a Grã-Bretanha vitoriana
Conheça os Rossettis: Christina, seu irmão Dante Gabriel e sua esposa Elizabeth. Sua arte e poesia chocaram a Grã-Bretanha vitoriana. Mas o legado principal da família estaria na sua produção artística ou no seu espírito boêmio? Os Rossettis é o nome de uma nova exposição na galeria de arte Tate Britain, em Londres, que fica em cartaz até setembro. Ela nos convida a visitar o mundo de uma família extremamente atípica da era vitoriana – um mundo onde a moda de vanguarda se encontra com a liberação feminina, o uso de drogas, o radicalismo político, além de vombates, pequenos marsupiais originários da Austrália. "Os Rossettis adoravam tudo o que fosse estranho e extremo", afirma a curadora da exibição, Carol Jacobi. "Eles eram muito impacientes com as normas convencionais da arte e da literatura. Estavam procurando heróis alternativos e formaram o primeiro movimento de arte de vanguarda da Grã-Bretanha." Para algumas pessoas, os quadros de Dante Gabriel Rossetti (e da Irmandade Pré-Rafaelita, movimento do qual ele foi um dos fundadores) são detalhados demais e afetadamente moralizadores – especialmente em comparação com os experimentos formais mais arrojados e a ilustração mais honesta da vida moderna dos movimentos de arte franceses da mesma época, como os impressionistas e os pós-impressionistas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas esta visão desconsidera o aspecto mais importante da geração Rossetti no Reino Unido. Sua principal contribuição foi uma postura nova e radical para os artistas e mulheres criativas do país: a boemia. Originalmente, o termo indicava, de forma depreciativa, os visitantes romanos na França. Desde então, ele passou a definir indivíduos com comportamento não convencional, que usavam roupas inovadoras – pessoas que desafiavam as regras da sociedade e saíam em busca de aventuras e liberdade de expressão. Esse espírito boêmio da moda extravagante e comportamento excessivo é fundamental para a música, o design, as roupas e as artes até hoje em dia. Sua ostentação contracultural é parte integrante da postura desenfreada de artistas como a poetisa americana Patti Smith e a cantora Matty Healy, vocalista do grupo The 1975, assim como as roupas extravagantes de David Bowie e Lady Gaga e o hedonismo de Keith Richards e Kate Moss. Fundamentalmente, a boemia é um ataque a qualquer valor considerado de classe média. Isso envolve os papéis convencionais de gênero, comportamentos conservadores em relação ao amor, os valores tradicionais da família, a conformidade ao vestir e a repressão do prazer sensual. Mas como os Rossettis lançaram essa forma de vida influente entre os artistas na Grã-Bretanha vitoriana? E onde entram os vombates nessa história? Tudo começou com seu ambiente familiar não convencional. Os Rossettis eram londrinos de primeira geração. Seu pai era poeta e combatente da liberdade italiano e sua mãe era acadêmica, também de família italiana. Os jovens Rossettis foram criados em um ambiente único, que valorizava a política progressista e a criatividade artística. Christina Rossetti (1830-1894) começou a brilhar cedo. Seus poemas foram publicados pela primeira vez quando ela tinha apenas 16 anos de idade. Seu poema mais popular, provavelmente, é Goblin Market ("O Mercado dos Goblins", Ed. Companhia das Letrinhas, 2015). Escrito em 1859, trata-se de uma alegoria surpreendentemente original da sexualidade corrompida em um mundo materialista. Estes temas seriam refletidos mais tarde nas pinturas de Gabriel e Elizabeth. Christina Rossetti era uma radical discreta, que levava uma vida não convencional para uma mulher naquela época. Ela formou uma carreira de grande sucesso e bem remunerada, sem a dependência burguesa de um marido como guardião financeiro. Se você ainda não entendeu onde entram os vombates, fique sabendo que esses animais eram importantes para o irmão de Christina, Dante Gabriel Rossetti (1828-1882). Ele era igualmente precoce e foi um dos fundadores de um novo e revolucionário movimento artístico, a Irmandade Pré-Rafaelita, com 20 anos de idade. A Irmandade dedicava-se a desafiar a autoridade da Academia Real de Artes britânica. Ela acreditava em uma arte que oferecesse a verdade com base na precisão perceptiva e na coragem moral. E Gabriel acreditava que esses conceitos não existiam na arte acadêmica privilegiada pela classe média. Gabriel Rossetti liderou os artistas de sua época com seu carisma, inspiração e visão revolucionária. Seus conceitos podiam ser sedutoramente bizarros e, muitas vezes, beiravam o escândalo. "Gabriel abandonou a faculdade de artes – é difícil ser mais boêmio do que isso", explica Carol Jacobi. "Ele usava roupas noturnas durante o dia e foi o primeiro a andar vestido de preto para ficar atraente." Em relação ao seu comportamento amoroso, Gabriel provavelmente se considerava um libertino forçando seus limites. Mas seus relacionamentos também não se preocupavam com as emoções de ninguém, exceto as dele próprio. Embora tivesse um relacionamento longo com Elizabeth Siddal, que durou 10 anos até o pedido de casamento, Gabriel teve um romance com a popular modelo pré-rafaelita Fanny Cornforth. E, posteriormente, manteve outro romance com Jane Morris, esposa do seu amigo William Morris. Após a morte de Siddal, em 1862, Gabriel mudou-se para uma casa no distrito de Chelsea, em Londres. A casa foi palco dos seus excessos boêmios e, particularmente, da sua obsessão por animais de estimação exóticos. Os vombates eram uma compulsão particular, mas ele também tinha um tatu, pavões, cangurus, uma toupeira e um lulu-da-pomerânia chamado Punch. E seu tucano de estimação aprendeu a andar pela casa em uma lhama. Esses animais costumavam andar livremente pela casa ou até escapavam, aterrorizando os respeitáveis vizinhos de Gabriel Rossetti. Segundo o pintor americano Whistler, certa vez, tarde da noite, Gabriel mandou trazer seu vombate para a mesa com café e cigarros, para que ele pudesse ouvir as leituras de outro convidado, o escandaloso poeta Algernon Charles Swinburne. Estas histórias trazem à tona aspectos fundamentais do caráter boêmio, como o desprezo pelas normas burguesas, a propensão à automistificação e, talvez o principal, a ideia de que a arte não precisa ser exposta em uma galeria ou museu. Para Gabriel Rossetti, a própria vida era uma forma de arte. Seus excessos atingiram um novo patamar em 1869, quando ele exumou o corpo de Siddal do seu túmulo no cemitério de Highgate, em Londres, para recuperar um manuscrito de poemas que ele havia colocado embaixo do cabelo da esposa. As páginas precisaram ficar mergulhadas em desinfetante por duas semanas antes que Gabriel pudesse transcrevê-las para publicação. Como aconteceu com Siddal, Gabriel morreria relativamente jovem em 1882, devido à sua dependência de álcool e hidrato de cloral, um sedativo de uso medicinal. A amante de Gabriel que acabou sendo sua esposa, Elizabeth Siddal (1829-1862), foi uma mulher pioneira no século 19. Ela se estabeleceu como artista independente e desenhava suas próprias roupas, que eram não convencionais e feitas por ela mesma. "Ela redefiniu totalmente as roupas femininas", afirma Jacobi. "Ela simplesmente não conseguia usar armações, espartilhos e tudo o mais, de forma que ela redesenhou as roupas de trabalho." "Ela saía com roupas adaptadas e seu cabelo para baixo. Esta liberdade de vestimenta era muito inspiradora", explica Jacobi. "Tornou-se um padrão. Se você queria ser considerada uma mulher jovem e progressista, era assim que você se vestia." Siddal era uma mulher da classe trabalhadora. Ela foi funcionária de uma loja de chapéus até se associar aos artistas pré-rafaelitas em 1849. Siddal então serviu de modelo para suas pinturas, até se tornar uma artista independente. Gabriel e Elizabeth colaboraram e influenciaram-se mutuamente. Seu caso de amor e eventual casamento foi tumultuado e problemático, tornando-se mito desde então. Mas existem aspectos do caráter boêmio de Siddal que fazem parte importante da sua história. "Ela certamente não levava sua vida de acordo com as normas", segundo Jacobi. "Ela passou anos com Rossetti antes que eles se casassem e, recentemente, sugeriu-se que não foi porque ela estivesse esperando que Gabriel se casasse com ela, mas sim porque ela estava deliberadamente mantendo sua independência", explica ela. Siddal era essencialmente autodidata. Ela desafiava a nomenclatura social e a liberação era sua bandeira. Estas características eram inovadoras na Londres vitoriana, mas se tornaram a própria definição da boemia no século seguinte e além. Tragicamente, Siddal foi vítima da dependência, como Gabriel. Ela morreu de overdose de láudano, um opioide que era usado como anestésico no século 19. A história dos Rossettis é repleta de triunfos e tragédias. Mas seu maior legado para a história da arte (dividido em três histórias de vida muito diferentes) foi a invenção da primeira subcultura artística britânica, que entrou em conflito direto com os padrões vitorianos. Christina Rossetti subverteu os estereótipos de gênero sobre a criatividade feminina, o amor e a vida familiar. Gabriel Rossetti ignorou as normas burguesas de todo tipo e fez da vida diária um evento artístico; e Elizabeth Siddal estabeleceu uma independência criativa e de vestuário única. Em vez de viver os estilos de vida determinados pela sociedade, eles escolheram seus próprios caminhos – e tornaram-se os primeiros boêmios da arte britânica.
2023-05-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjqk08z5ew4o
sociedade
6 invenções de indígenas americanos que fazem parte do nosso dia a dia
Acredita-se que os primeiros habitantes da América tenham chegado ao continente há cerca de 14 mil anos. Com a migração, tem início também um processo de desenvolvimento tecnológico a partir dos recursos disponíveis e da realidade local. Desde o Ártico, onde os esquimós começaram a habitar as regiões mais geladas, até os poderosos impérios inca e asteca, avanços importantes no campo da engenharia, da arquitetura e da arte surgiram. Muitas das invenções desenvolvidas ao longo dos séculos foram substituídas pela tecnologia importada após a chegada de Cristóvão Colombo, no final do século 15. Algumas, contudo, foram mantidas e, em pleno século 21, continuam sendo parte da vida diária não só no continente americano. Fim do Matérias recomendadas Estas são algumas das principais invenções dos indígenas americanos que continuamos usando até hoje. Além das baixas temperaturas e da escassez de terras férteis para cultivo, a neve foi um dos grandes problemas enfrentados pelos povos inuits, que habitam a região do Ártico. Entre os artefatos que eles criaram para se adaptar melhor ao ambiente gelado está uma espécie de óculos de proteção contra o reflexo do sol sobre a superfície branca da neve. Os óculos eram feitos de madeira ou ossos de antílopes que viviam na região. Eles tinham uma abertura estreita para permitir a visão, mas sua estrutura reduzia o impacto da luz refletida sobre os olhos. Com o passar do tempo, foram desenvolvidas invenções similares em outras regiões do planeta. Mas o princípio dos óculos escuros para reduzir o impacto dos raios solares sobre os olhos – ou seja, os raios ultravioleta – surgiu apenas no início do século 20, o que levou à popularização dos óculos de sol. Conseguir alimentos no ambiente hostil do extremo norte do continente também era um desafio para os inuits. A água foi a solução encontrada. Além da imensidão do oceano, os habitantes dessa região inóspita também tinham acesso a lagos e rios. Usando pele de foca e ossos de baleia, eles desenvolveram uma embarcação individual impulsionada por remos que os permitiu que saíssem para pescar. Criada há cerca de 4 mil anos, a embarcação recebeu o nome de qayaq – caiaque, em português. Com desenho e construção inovadores, alguns chegaram a durar até quatro séculos. O caiaque é usado até hoje pelas comunidades inuits que sobrevivem no Ártico, além de ter se tornado um esporte popular, disputado inclusive nos Jogos Olímpicos. Uma das criações do império inca que chegaram aos nossos tempos foram as estradas ligadas pelas chamadas pontes pênseis, ou pontes suspensas por cordas. Calcula-se a existência de cerca de 200 dessas pontes na rede de estradas do Tahuantinsuyo, que chegou a cobrir cerca de 23 mil quilômetros através do Peru. Sua construção baseia-se no mesmo princípio da rede de dormir: um tecido sustentado por dois pontos. Existem vestígios do desenvolvimento desta tecnologia em outras partes do mundo, mas o trabalho dos incas certamente ocorreu antes da chegada dos europeus ao continente americano. Esta tecnologia ainda é usada em muitas estradas turísticas pelo mundo e serviu de inspiração para o desenvolvimento das pontes pênseis construídas em grandes cidades do planeta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os nativos da América do Norte desenvolveram a cultura da medicina baseada na natureza. E suas descobertas deram origem a muitos tratamentos atuais. Um desses tratamentos é o uso de uma planta conhecida como estramônio. Ela tem propriedades anestésicas quando aplicada sobre as feridas e serve para controlar a dor. Muitos anos depois, o estramônio passou a ser usado para produzir a escopolamina, uma droga empregada, por exemplo, para fazer com que uma pessoa fique inconsciente. Uma outra planta usada pelos indígenas norte-americanos acabou sendo fundamental para a criação das pastilhas contra a dor que conhecemos atualmente: o salgueiro-negro, uma árvore que só cresce no continente americano. Da casca desta árvore, os indígenas conseguiram extrair traços de ácido salicílico, que possui efeitos curativos e era administrado a pessoas que sofriam de alguma dor óssea ou muscular. O ácido salicílico é a base da aspirina, um dos medicamentos mais usados em todo o mundo para aliviar a dor. Os indígenas americanos, principalmente na América Central, já conheciam há séculos uma substância conhecida como látex, que era extraída de um tipo especial de árvore que só crescia no continente americano – a seringueira. Os indígenas do Amazonas chamavam essa substância de cautchouc, que significa "árvore que chora". A substância era usada como revestimento para impermeabilizar vasilhas de barro e para produzir bolas, que eram usadas em jogos e esportes praticados em diferentes culturas. Chegou a ser produzido um tipo de calçado com esse material. No Brasil, a extração do látex teve seu auge entre o final do século 19 e o início do século 20. A produção e o comércio da borracha nesse período levaram ao desenvolvimento de diversas cidades da região amazônica, principalmente Manaus e Belém. Com o passar do tempo, a seringueira passou a ser cultivada em outros continentes e surgiu o processo de síntese da borracha, que possibilitou sua produção artificial. Os indígenas americanos foram os primeiros a usar este material como fazemos atualmente. Sabe-se que o fumo e seu consumo foram desenvolvidos pelos indígenas americanos, especialmente do Caribe e do norte do continente. Eles projetaram um instrumento para fumar a erva, principalmente de forma cerimonial ou para socialização entre as diversas tribos. Inicialmente, o cachimbo era conhecido como calumet, que significa cana, e era empregado para fumar tabaco em ritos cerimoniais. Com o tempo, ele evoluiu para tornar-se o utensílio que conhecemos hoje e que foi muito popular entre os séculos 19 e 20.
2023-05-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gpv212n11o
sociedade
Por que brasileiros não são considerados latinos nos EUA
Em 2020, ao menos 416 mil brasileiros vivendo nos Estados Unidos se identificaram como "hispânicos ou latinos" na ACS (American Community Survey), maior pesquisa domiciliar americana. O número chamou a atenção porque, em 2019, apenas 14 mil brasileiros haviam sido classificados dessa forma. Em 2021, foram 16 mil. O salto registrado em 2020 foi fruto de um erro no processamento da ACS pelo Departamento do Censo dos Estados Unidos. O equívoco trouxe à luz uma desconexão entre a classificação oficial americana e a identidade dos brasileiros. Oficialmente, brasileiros não são considerados "hispânicos ou latinos" nos Estados Unidos. Fim do Matérias recomendadas A origem disso está numa lei aprovada em 1976 pelo Congresso Americano, que determinou a coleta de dados no país sobre um grupo étnico específico: "americanos de origem ou descendência espanhola". Essa legislação classificava esse grupo da seguinte maneira: “Americanos que se identificam como sendo de língua espanhola e traçam sua origem ou descendência no México, Porto Rico, Cuba, América Central e do Sul e outros países de língua espanhola.” Dessa forma, estavam incluídos na classificação 20 países falantes de espanhol na América Latina, mas não o Brasil, falante de português, ou outros países latinos, mas não hispânicos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em 1977, o Escritório de Administração e Orçamento dos EUA publicou então os padrões para a coleta de dados étnicos e raciais no país com cinco classificações: indígena americano ou nativo do Alasca; asiático ou ilhéu do Pacífico; negro; hispânico; ou branco. Pela definição de 1977, "hispânico" era considerado uma etnia, não uma raça — a raça dizia respeito a características físicas, herdadas entre gerações; enquanto a etnia dizia mais respeito à identidade cultural e linguística, nessa classificação. Assim, na coleta de dados americana, os hispânicos podem ser de qualquer raça. Vinte anos depois, no entanto, essa classificação foi revisada. E, em 1997, a categoria "hispânico" mudou para "hispânico ou latino". À época, o Escritório de Administração e Orçamento dos EUA justificou a mudança dizendo que o uso dos termos tinha variações regionais, com "hispânico" sendo mais usado no Leste do país e "latino" mais no Oeste. "Essa mudança pode contribuir para melhores taxas de resposta", argumentava o departamento americano. Aí criou-se a confusão para a classificação dos brasileiros. Porque, embora para o governo americano, a classificação "hispânico ou latino" diga respeito somente às pessoas de "cultura ou origem espanhola", para nós, o termo "latino" remete ao fato de sermos latino-americanos e falarmos uma língua latina, o português. Nos censos de 1980 e 1990 nos EUA, valia a autodeclaração. Então, em 1980, 18% dos brasileiros vivendo nos EUA foram contabilizados como hispânicos. Em 1990, foram 33%. Mas, a partir de 2000, o Departamento do Censo dos EUA passou a fazer uma recategorização posterior. Assim, quem dizia ser "hispânico ou latino", mas, ao mesmo tempo, informava ser brasileiro, era então reclassificado como "não hispânico ou latino". O mesmo acontecia com pessoas de outros países não falantes de espanhol, que porventura se declarassem latinos, como filipinos, portugueses e nativos de outros países centro-americanos e caribenhos não-hispânicos, como Belize, Haiti, Jamaica, Guiana, entre outros. Desde 2006, além do Censo decenal, os EUA passaram a contar também com a American Community Survey (ACS), uma contagem populacional anual. Com esse esquema de reclassificação em vigor, a parcela de brasileiros quantificados como "hispânicos ou latinos" caiu para 4% ou menos em quase todas as edições da ACS. Esse percentual residual de brasileiros contados como "hispânicos ou latinos", mesmo nos anos em que a reclassificação funcionou adequadamente, se explica porque, quando a pessoa responde ser hispânica "de outra origem", mas não preenche essa origem, o Departamento do Censo não faz a reclassificação. O Pew Reserach Center consegue identificar que são brasileiros olhando para dados de país de nascimento e ancestralidade, em outra parte do formulário da ACS, o que não é considerado pela autoridade censitária americana no processo de reclassificação. Mas por que dizemos que o percentual de brasileiros classificados como "hispânicos ou latinos" caiu para 4% ou menos em "quase" todas as edições da ACS? Porque, em 2020, foi diferente. Durante o processo de edição dos dados da ACS de 2020, o Departamento do Censo dos EUA cometeu um erro e deixou brasileiros e outros grupos sem esse processo de reclassificação. Com isso, o número de brasileiros que se identificaram como "hispânicos ou latinos" saltou de 14 mil em 2019, para 416 mil em 2020. Entre os filipinos, o número passou de 44 mil para 67 mil; entre belizenhos, de 4 mil para 19 mil; e entre pessoas de países caribenhos não-hispânicos, de 36 mil para 71 mil. Mesmo o fenômeno afetando outros grupos, o caso dos brasileiros se destaca, pois 70% da comunidade brasileira nos EUA contabilizada na ACS se declarou "hispânica ou latina", revelou o erro de pesquisa, comparado a 41% dos belizenhos, 3% dos filipinos e 3% dos caribenhos não-hispânicos. "O grande número de brasileiros que se identificam como hispânicos ou latinos destaca como a visão deles de sua própria identidade não necessariamente se alinha com as definições oficiais do governo", observam Jeffrey S. Passel e Jens Manuel Krogstad, autores do estudo publicado pelo Pew Research Center. "Também ressalta que ser hispânico ou latino significa coisas diferentes para pessoas diferentes", acrescentam os pesquisadores. Para o brasileiro Raphael Nishimura, diretor de amostragem do Survey Research Center na Universidade de Michigan, o caso serve para refletir sobre como pesquisas são feitas. "Metodologicamente, isso [o erro na ACS de 2020] é bastante interessante para ilustrar um dos aspectos do erro de mensuração em pesquisas: o impacto do entendimento da pergunta por parte do respondente no que se pretende mensurar", escreveu Nishimura, sobre o estudo do Pew Research Center. "Nesse caso, me parece que o U.S. Census Bureau [Departamento do Censo dos EUA] deveria deixar mais claro nessa questão o que é e o que não é considerado como latino, hispânico ou origem espanhola", defendeu o estatístico. Segundo Nishimura, apesar da desconexão entre classificação oficial e identidade dos brasileiros revelada pelo erro de pesquisa em 2020, parece improvável que o governo americano reveja essa classificação em algum momento próximo. Em junho de 2022, o governo anunciou uma revisão na coleta de dados sobre raça e etnia nos EUA, que poderá valer já para o Censo de 2030. Mas essa reavaliação parece estar mais focada nas comunidades do Oriente Médio e Norte da África, que podem ganhar uma classificação própria nas pesquisas demográficas americanas, separada da categoria "branco", observa o estatístico, que mora nos EUA há 13 anos. Se os brasileiros fossem oficialmente considerados "hispânicos ou latinos", seríamos o 14º maior grupo latino dos EUA, acima da Nicarágua (395 mil) e abaixo da Venezuela (619 mil). Ainda assim, a população hispânica é tão grande nos EUA (61,1 milhões), que a comunidade brasileira contabilizada (569 mil na ACS de 2021) não chegaria a 1% do total de latinos. "Aparentemente, apesar de sermos algo como a 14ª maior população latina nos EUA, mal contaríamos como uma casa decimal nessa população como um todo. Então não deve nem haver um incentivo para isso [mudar a classificação de 'hispânico ou latino' para incluir os brasileiros]. Mas quem sabe agora que temos um brasileiro no Congresso", brinca Nishimura, fazendo referência ao congressista republicano George Santos, filho de brasileiros, envolvido em diversas polêmicas nos últimos meses. A comunidade brasileira contabilizada na ACS pode, no entanto, estar subestimada. O Ministério das Relações Exteriores do Brasil calcula o número de brasileiros vivendo nos EUA em 1,9 milhão — trata-se da maior comunidade brasileira no exterior, segundo relatório de agosto de 2022 sobre o tema.
2023-05-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx9nel14ekwo
sociedade
A história de como um carteiro transformou acidentalmente o abacate no mundo
Rudolph Hass estava prestes a extrair da terra um pequeno abacateiro que havia plantado em sua horta - e que não estava dando certo - quando foi convencido a não fazê-lo. Era final da década de 1920. Ele havia chegado a Pasadena, nos arredores de Los Angeles, em setembro de 1923 com a esposa Elizabeth e a filha de 18 meses, Betty. Parte da família, que já havia se estabelecido na área, os incentivou a se mudar para a região. Eles haviam percorrido 3,3 mil quilômetros partindo de sua terra natal, Milwaukee, no norte dos Estados Unidos, em uma viagem complicada a bordo de um velho Ford T que Rudolph comprou de um colega de trabalho em 1920 por US$ 75 e que chegou ao sudoeste do país sem o para-choque traseiro e com um pneu furado. Na Califórnia, Rudie, como era chamado, primeiro conseguiu um emprego em uma barraca de frutas e verduras, depois foi vendedor de um fabricante de meias, roupas íntimas e acessórios. Ele também vendeu máquinas de lavar e aspiradores de pó, até ser contratado como carteiro pelo correio de Pasadena. Isso aconteceu, segundo as anotações de sua esposa, em 1926. Mas o texto com essa data foi escrito décadas depois e outros dados nele incluídos não coincidem exatamente com a documentação que comprova o vínculo empregatício. Fim do Matérias recomendadas Um dia, enquanto entregava correspondências, Rudie viu um anúncio em uma revista de terrenos com abacateiros que tinham notas de dólares penduradas em seus galhos, segundo a versão de Elizabeth. GinaRose Kimball, historiadora do abacate hass, acredita que aquele anúncio provavelmente mostrava uma sacola com o símbolo de dólares e uma dessas frutas ao lado, em vez de uma árvore de dinheiro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Califórnia, que não teve plantações de abacate enquanto era território mexicano, começou timidamente a cultivá-los quando, na década de 1870, três mudas trazidas do México foram plantadas em Santa Bárbara; meio século depois, o cultivo de abacates passou a ser promovido como um promissor negócio no Estado. Rudie ficou entusiasmado e, quando conseguiu vender uma propriedade que tinha perto de Milwaukee, pegou o dinheiro, pediu outra parte emprestada a uma irmã e foi ao escritório do empresário de Los Angeles que havia feito o anúncio. Era Edwin Hart, que conheceu o abacate no México no final do século 19 e em 1919 comprou a fazenda La Habra, de cerca de 1.500 hectares nos arredores de Los Angeles e não muito longe de Pasadena, para plantar essa fruta e depois vender lotes. Rudie comprou um terreno de 7,8 mil m² que já tinha alguns abacateiros naquela área rural, rebatizada de La Habra Heights. Ele concordou em pagar US$ 3.800 em parcelas trimestrais. O depósito inicial foi de US$ 760. "Quando ele comprou, queria cultivar uma variedade diferente, possivelmente lyon", diz Kimball. É uma variedade guatemalteca – de tamanho grande e casca dura – que um homem chamado Lyon plantou em Hollywood no início dos anos 1900 e que em seus primeiros anos parecia a mais promissora. Na Califórnia era comum, naquela época, que os donos das plantações de abacate batizassem novas variedades da fruta com seus sobrenomes. Na época em que Rudie iniciou o negócio, a variedade mais comum era a fuerte, chamada assim por ter sobrevivido a uma forte geada ocorrida na Califórnia em 1913. Esse abacate é do tipo mexicano e se caracteriza por ter uma casca macia e lisa, fácil de descascar. O horticultor Albert Rideout tinha então um viveiro de mudas de abacate perto da La Habra Heights. Qualquer semente de abacate que encontrava, onde quer que fosse, ele plantava em busca de novas variedades. Rudie foi àquele viveiro e comprou um saco do que pensava ser abacate guatemalteco, que, ao contrário do mexicano, tem a casca dura. De volta à sua horta, Rudie pegou caixas de maçãs que encheu de serragem e plantou as sementes dentro. Ele as regou e regou até brotarem, e quando as hastes estavam com a espessura de um lápis, pouco mais de meia polegada, ele as levou para o solo e as protegeu com papelão. Logo, com a ajuda de um especialista chamado Caulkins, usou essas novas plantas para enxertar brotos retirados dos abacateiros fuerte e lyon. Essa técnica é utilizada para reproduzir plantas, mas não implica criar um híbrido do novo com o antigo; as misturas genéticas são formadas através da polinização. Em vez disso, esse método procura cultivar novas árvores da variedade da semente. No caso de Rudolph Hass, ele queria novas árvores de fort e lyon. Mas uma das novas plantas se negava a receber esses enxertos. Tentaram uma vez, não conseguiram. Uma segunda vez, nada. Para cada nova tentativa, eles tinham que esperar a época do ano em que isso deveria ser feito. Na terceira tentativa fracassada, Rudie se cansou e quis remover a nova árvore de sua horta. Caulkins sugeriu que ele não a matasse, que a deixasse lá. Em 1931 essa planta deu seus primeiros seis abacates. Para o ano seguinte foram 125. Eram escuros por fora, uma mistura de preto e roxo, com casca rugosa, e davam uma impressão desagradável, como se estivessem podres. Nada a ver com a casca verde brilhante dos abacates que comiam na Califórnia. Mas seus filhos experimentaram e gostaram muito. Por dentro eram cremosos, com alto teor de óleo e de boa consistência – não eram fibrosos. Ali Rudie notou a veia comercial do alimento. "Rudolph, além de trabalhar em tempo integral, era vendedor. Mandava os filhos para a esquina, West Road com Hacienda Road, com caixas de madeira para vender os abacates. Vendia onde podia: para os amigos, para seus colegas de trabalho no correio", diz Kimball. No começo foi difícil para ele pela aparência da fruta, mas aos poucos convenceu mais pessoas. "O senhor Carter, da empresa de abacates, veio e encorajou Rudie a fazer um teste. Ele enviou uma caixa para Chicago, ida e volta (...) e na volta eles ainda estavam sólidos", escreveu sua esposa no caderno de memórias da família. Isso o entusiasmou, pois até então o carregamento de abacates enviados para o nordeste do país chegava em mau estado, maduros demais ou com "machucados" que aceleravam a sua putrefação. Em 1935, Rudie decidiu patentear seu abacate como uma nova variedade e lhe deu seu sobrenome. Ele então fez parceria com Brokaw, tio de Rideout que tinha grandes plantações na área, para expandir a produção do abacate hass. Não foi um grande negócio. Em agosto de 1952, quando os direitos da patente expiraram, Rudie havia ganhado apenas cerca de US$ 4.800. "O nome pegou, mas o dinheiro nunca chegou", diz Jeff Hass, um de seus netos. Em junho de 1952, ele se aposentou de seu emprego no correio e seu chefes no correio de Pasadena anunciaram que lhe dariam um certificado de agradecimento pelo tempo trabalhado. O certificado chegou em novembro daquele ano, mas Rudie havia morrido um mês antes, vítima de um ataque cardíaco. Hoje, a variedade representa 95% dos abacates produzidos no mundo, segundo Peter Shore, vice-presidente de gerenciamento de produtos da Calavo, empresa fundada por produtores de abacate da Califórnia. E é uma indústria multibilionária. "Há milhões e milhões de abacateiros hass, e todos eles vieram daquela árvore original", afirma Shore. Rudie acreditava que seu abacate hass era do tipo guatemalteco, mas um estudo publicado em 2019 sobre seu genoma confirmou que a origem dessa fruta é 61% mexicana e 39% guatemalteca. "Os genes mexicanos permitem que o hass atinja a maturidade mais cedo do que os cultivos guatemaltecos puros e dão à árvore e à fruta mais tolerância ao frio, embora não tanto quanto o cultivo mexicano puro. Os genes guatemaltecos dão casca mais grossa à fruta, mas fina o suficiente para descascar facilmente", observa o livro Avocado Production in California. A Cultural Handbook for Growers, um manual para produtores que foi publicado pela Universidade da Califórnia e pela Sociedade de Produtores de Abacates da Califórnia. A árvore-mãe acabou adoecendo e em 2002 precisou ser derrubada.
2023-05-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51451pgzkxo
sociedade
Como jovem de 13 anos pôde se armar para matar 8 colegas e segurança em escola da Sérvia
Um ataque a tiros sem precedentes em uma escola de ensino fundamental em Belgrado, capital da Sérvia — no qual um menino de 13 anos matou oito colegas de turma e um segurança do colégio —, chamou a atenção para o número de armas de fogo nas mãos de cidadãos comuns no ainda volátil país dos Bálcãs. O aluno suspeito dos disparos foi levado pela polícia após o ataque na escola Vladislav Ribnikar, no centro de Belgrado, na manhã de quarta-feira (03/05). Os colegas contaram que ele entrou na sala durante uma aula de história, atirou primeiro na professora e depois apontou a arma para os alunos. É o primeiro ataque a tiros desse tipo na Sérvia, segundo o ministro da Educação. O país ficou profundamente chocado com o incidente, com muita gente questionando como o ataque poderia ter acontecido. Foi anunciado um luto nacional de três dias a partir desta sexta-feira. Fim do Matérias recomendadas De acordo com a polícia, o suspeito pegou as armas do pai de dentro de um cofre na casa da família. As armas estavam registradas, e o pai tinha licenças válidas para as mesmas. Na Sérvia, armas portáteis, de caça e munições podem ser adquiridas por indivíduos com mais de 18 anos, desde que as autoridades emitam as respectivas licenças. De acordo com a legislação em vigor, é necessário apresentar um motivo válido para possuir uma arma, assim como um relatório médico. Se a licença for emitida, um médico precisa acompanhar a saúde do proprietário da arma e reportar alterações relevantes. Em 2022, a Sérvia introduziu mudanças na legislação em uma tentativa de levar mais pessoas a registrar armas, mas não existem dados oficiais sobre o efeito disso. Predrag Petrovic, do Belgrade Centre for Security Police, um think-tank independente, disse ao serviço de notícias sérvio da BBC em 2022 que ainda havia algumas brechas e falta de cooperação entre as autoridades de saúde e a polícia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Milhões de armas portáteis e munições continuam desaparecidas desde a dissolução da ex-Iugoslávia, o colapso de seu exército e uma década de guerras nos anos 1990. Estima-se que os cidadãos da região tenham nove vezes mais armas portáteis e outros armamentos do que militares e policiais, de acordo com o levantamento Global Small Arms Survey de 2018. Na Sérvia, seriam 40 armas de fogo para cada 100 cidadãos. Outro relatório mais recente sugere que a posse de armas na Sérvia e em Montenegro, país vizinho, é a mais alta da Europa. No entanto, nem todos concordam que as armas em si são um problema. "Eu não diria que a posse de armas é o problema aqui", disse Bojan Elek, vice-diretor do think-tank Belgrade Centre for Security Police à BBC News. "O governo tem feito muita coisa para acabar com todas essas armas ilegais. Há campanhas regulares de anistia e muita assistência internacional", acrescentou. No entanto, não há como negar a prevalência de armas de fogo na Sérvia. Palco de muitos conflitos ao longo dos séculos, os Bálcãs foram uma fonte de armas por décadas. Muitas residências têm uma arma de fogo como parte da herança familiar. "A instabilidade política e socioeconômica nos Bálcãs nos últimos 30 anos e as frequentes ameaças verbais [de políticos] em relação a novos conflitos e guerras levaram muitos a relutar em abrir mão de suas armas — eles preferem mantê-las 'por via das dúvidas'", afirmou Predrag Petrovic, do Belgrade Centre for Security Police, ao serviço de notícias sérvio da BBC em 2022. As estimativas do número de armas ilegais na Sérvia variam de 200 mil a mais de um milhão. "São armas remanescentes não apenas das guerras da década de 1990, mas de vários conflitos na região ao longo do século 20", explicou Petrovic. Apesar das inúmeras campanhas para que cidadãos comuns entreguem suas armas, Petrovic disse que dados de várias pesquisas mostram que "um grande número de cidadãos não quer abrir mão das armas". "Além da instabilidade política, uma cultura machista contribui para isso, porque o armamento é considerado um símbolo de status”, afirmou. Armas portáteis nos Bálcãs: Sérvia - 40 para cada 100 cidadãos; Montenegro - 40 para cada 100 cidadãos; Bósnia e Herzegovina - 31 para cada 100 cidadãos; Macedônia do Norte - 30 para cada 100 cidadãos; Kosovo - 24 para cada 100 cidadãos; Croácia - 2 para cada 100 cidadãos; Albânia - 1,5 para cada 100 cidadãos. Fonte: Global Small Arms Survey, World Population Review
2023-05-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c721n6621wdo
sociedade
A controversa operação dos EUA para retirar bebês do Vietnã durante a guerra
Quando a coronel Regina Aune, da Força Aérea dos Estados Unidos, ouviu o barulho de uma explosão a bordo do gigantesco avião de carga C-5, ela sabia que tinha apenas alguns segundos para levar centenas de bebês para um local seguro. "O que não sabíamos era onde (havia ocorrido a explosão), porque um C-5 (por ser um avião de carga) não tem muitas janelas. Tudo o que sabíamos era o que podíamos ver dos danos ao avião”, diz Aune à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC "Sabíamos que estávamos caindo", conta. Aune conseguiu salvar várias crianças, mesmo tendo sofrido uma fratura na coluna. Ela se tornou a primeira mulher a receber o prêmio Cheney, que homenageia membros da Força Aérea por "atos heróicos e altruístas". O voo acidental do Lockheed C-5A Galaxy da Força Aérea dos Estados Unidos – no qual viajava a coronel Aune em 4 de abril de 1975 – é considerado o primeiro da chamada Operação Babylift, um esforço intenso das forças armadas dos Estados Unidos durante o fim da Guerra do Vietnã em que mais de 3.300 bebês e crianças foram retirados do país asiático. Fim do Matérias recomendadas Outros países como Austrália, Alemanha Ocidental, França e Canadá também participaram da operação. "Ordenei que US$ 2 milhões sejam alocados para um fundo internacional de assistência às crianças para levar 2.000 órfãos do Vietnã do Sul para os Estados Unidos o mais rápido possível", anunciou o então presidente Gerald Ford em 3 de abril de 1975 em San Francisco. No entanto, o acidente do C-5 não seria o único contratempo da Operação Babylift que afetou a vida de muitas pessoas. "Houve um lado negativo na operação: nem todas essas crianças eram órfãs", diz Christian Appy, professor de História da Universidade de Massachusetts, à BBC News Mundo. “Muitos críticos argumentaram que enviar essas crianças para os Estados Unidos sem o consentimento de seus pais era equivalente a sequestrá-las”. O C-5 atingiu 22.000 pés antes do barulho da explosão. A coronel Aune diz que era um som muito particular, que qualquer pessoa com treinamento poderia reconhecer facilmente. "Quando você vai para a escola de aviação, de qualquer tipo, você tem que passar pela câmara de altitude e experimentar esse tipo de descompressão rápida", explica. "Sabíamos muito bem que o que havia acabado de acontecer era uma descompressão rápida." "Então tivemos a explosão que se segue à rápida descompressão, e eu olhei para baixo e vi o Mar da China Meridional, que obviamente não deveria ser capaz de ver, e a porta da rampa havia desaparecido e pude ver como todo o fluido hidráulico estava vazando." O avião sofreu dois impactos: primeiro, de lado, no rio Saigon, lançando a aeronave alguns metros no ar antes de terminar em um segundo acidente violento que matou 138 pessoas, muitas delas crianças. Aryn Lockhart conta à BBC News Mundo que acredita que estava naquele voo, quando tinha apenas 1 ano de idade. "Me adotaram quando tinha mais ou menos 1 ano e meus pais sempre acreditaram que eu estava naquele voo inaugural", diz Aryn. "Não tenho informações sobre minha família natural, nem sei minha data de nascimento. A freira que me escolheu para meus pais morreu no acidente de avião e com ela, todas as informações que possam existir sobre meus antepassados foram perdidas”, conta. No início de 1975, a escalada de violência da Guerra do Vietnã parecia indicar que um fim caótico se aproximava: tropas do governo comunista do norte se apoderavam cada vez mais de territórios em áreas controladas pelo governo do sul, que contava com apoio militar dos Estados Unidos. Quando a Coronel Aune recebeu ordens para a primeira missão da Operação Babylift, ela estava na Força Aérea havia apenas alguns anos. Ela acabara de se casar e ostentava o posto de primeiro-tenente da Aeronáutica. "Acho que naquele momento todos sabiam que o país (Vietnã) iria cair (para as forças comunistas)", diz ela. "Na manhã de 4 de abril, nos disseram que teríamos que tirar cerca de 300 pessoas de Saigon (uma das cidades mais importantes para o governo do sul), e que a maioria seriam crianças, muitas com menos de 2 anos.” Com a aproximação da chegada dos vietcongues, percebeu-se no Sul que qualquer um que simpatizasse com os americanos, ou com o governo sulista, corria risco. Ainda mais os filhos que os soldados americanos tiveram com mulheres locais. A cineasta Saran Bynum, que vive na cidade de Nova Orleans, Louisiana, também foi uma dessas crianças que foram do Vietnã para os EUA na Operação Babylift. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Saran diz que foi difícil crescer como uma mulher de ascendência asiática e negra – também sabendo que havia sido abandonada pela mãe – em uma cidade como Nova Orleans. Principalmente quando ele pensou na história de como seus pais a teriam conhecido. "Sabe, às vezes, quando você está lidando com um trauma, especialmente se for uma criança, você o expressa. Às vezes, você nem sabe o porquê, mas você o expressa." "Eu tinha muita raiva dentro de mim, não confiava nas figuras masculinas ou nos homens em geral, porque ouvia muita gente dizer que a guerra foi horrível e que as mulheres eram prostitutas e que tinham casos de uma noite , e isso é bastante deprimente", diz ela. Mas ela diz que uma frase do ator Denzel Washington no filme "Antoine Fisher" a fez ver além. "[O filme] é baseado na história real de Antoine, que foi abandonado e ingressou na Marinha. E há uma cena em que Antoine fica bravo e o personagem de Denzel pergunta por que ele está tão bravo. E Antoine diz: 'Minha mãe me abandonou, meu pai não me ama, por que eu deveria me importar?'” "Nesse momento, Denzel o olha nos olhos e diz a ele que, para ver o seu passado, você precisa entendê-lo, aprender a perdoar e seguir em frente. Esse foi um momento chave para mim”, conta. Essa frase a levou a encontrar o orfanato onde nasceu no Vietnã e a descobrir que muitos bebês como ela nasceram de histórias de amor entre soldados e mulheres locais, algo que ela conseguiu confirmar por meio de um teste de DNA. Um dos serviços pagos de DNA ajudou Saran a entrar em contato com cinco de seus primos paternos e finalmente encontrar seu pai, que havia morrido de câncer em 2015. Hoje, Saran conseguiu estabelecer um relacionamento com a família de sangue de seu pai. "Fui visitar meus tios no Dia de Ação de Graças", lembra Saran. "Todos eles me disseram separadamente que meu pai sabia que eu existia. Embora ele não soubesse se era uma menina ou um menino, ele sabia que havia tido um bebê no Vietnã." E mais além, finalmente conseguiu encontrar provas do amor que a havia engendrado: "(Meus tios me contaram que meu pai) teve uma namorada e que ele havia mostrado a foto para eles e que eles acreditavam que ele tinha um relacionamento enquanto estava lá". “Isso me dá esperanças de que minha mãe biológica possa estar viva e que ela esteja pensando em mim toda vez que faço aniversário, todo Dia das Mães…”. Para outros como Aryn, o peso do passado é menos sobre sua identidade e mais um assunto de imensa curiosidade. "De certa forma, eu apenas aceitei as coisas como são", diz à BBC News Mundo. Aryn diz que aprendeu sobre a Operação Babylift como alguém poderia aprender sobre histórias de seus tios e avós. "Sempre soube da operação. Acho que meus pais sempre fizeram um esforço para que eu soubesse de onde vim, dos grandes sacrifícios – se é que se pode chamá-los assim – que foram feitos para que eu pudesse estar aqui." Isso não quer dizer que a sua origem não tenha despertado sua curiosidade. Aliás, tal foi a curiosidade que a Operação Babylift lhe despertou, que conseguiu contactar várias das pessoas nela envolvidas, entre as quais a Coronel Aune. "Com o tempo, nos tornamos muito próximas. Na verdade, fomos juntas ao Vietnã e decidimos escrever um livro", diz Aryn, explicando que a operação é um tema que surge repetidamente em sua vida. "É uma história complexa e bonita com a qual as pessoas tendem a se conectar [...] O fato de haver pessoas envolvidas, como os voluntários ou como nós", continua Aryn, referindo-se às crianças que foram evacuadas na operação, "nos faz ver o contexto geral e reconhecer que nossas experiências, naquele momento tão específico, são únicas". O historiador Christian Appy disse à BBC Mundo que, historicamente, a Operação Babylift é o começo do fim de um conflito que poderia ter sido evitado. “Os EUA foram o principal agressor”, explica. "Se os EUA não tivessem intervindo para apoiar a reconquista francesa da Indochina após a Segunda Guerra Mundial, o Vietnã teria sido reunificado conforme estabelecido nos acordos de Genebra de 1954, sob um único governo democraticamente eleito, evitando a guerra que matou três milhões de pessoas." E embora compreenda a realidade da guerra, diz ter dificuldade em entender a posição de alguns membros do governo dos Estados Unidos na época. Principalmente porque conseguiu gerar confusão sobre o que realmente estava acontecendo no campo de batalha e evitou tomar decisões que, talvez, pudessem salvar vidas. "O embaixador Graham Martin teve a ideia maluca de que os EUA ainda poderiam manter o controle do Vietnã do Sul, apesar de receber relatórios da CIA e de membros da embaixada dizendo a ele que eles deveriam começar a evacuar", diz o estudioso. O segundo golpe do C-5, lançou a coronel Aune voando ao corredor, causando fraturas graves, incluindo uma em uma vértebra na coluna. "A lesão que mais me afetou foram os ossos quebrados do meu pé", explica Aune. "E é o tipo de bobagem que você pensa, porque perdi o sapato do pé esquerdo (os ossos quebrados foram no direito) e pensei que ficaria com o pé quebrado, justamente o que eu tinha o sapato.” Em sua ação durante o voo, não havia momento para dúvida. É algo que, ela conta, seus companheiros que sobreviveram no voo enfatizaram para a coronel. “Esta é uma frase que não me lembro de ter dito, mas que outros tripulantes afirmam ter me ouvido dizer”, diz modestamente. "Eles dizem que fui até o major Wallace e pedi a ele que me dispensasse do serviço porque meus ferimentos me impediriam de continuar, e então desmaiei." Ao conversar com a coronel, parece que ela não dá mais crédito às suas ações do que às de seus companheiros de tripulação naquele fatídico C-5 que deu início à Operação Babylift. "Sempre senti, e disse ao General Jones naquele dia em que ele me deu o prêmio Cheney, que toda a tripulação deveria tê-lo recebido, não apenas eu..."
2023-05-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq53r58x4ngo
sociedade
Por que cientistas temem futuro catastrófico causado pela inteligência artificial
A inteligência artificial tem o incrível poder de mudar a forma como vivemos, para o bem e para o mal — e os especialistas têm pouca confiança de que os que estão no poder estejam preparados para o que está por vir. Em 2019, o grupo de pesquisa sem fins lucrativos OpenAI criou um software que era capaz de gerar parágrafos de texto coerente e fazer análise e compreensão rudimentar de textos sem instruções específicas. Inicialmente, a OpenAI decidiu não tornar sua criação — chamada de GPT-2 — totalmente disponível para o público. O receio era de que pessoas mal intencionadas pudessem usá-la para gerar grandes quantidades de desinformação e propaganda. Em comunicado à imprensa anunciando a decisão, o grupo chamou o programa de "perigoso demais" na época. Desde então, três anos se passaram, e a capacidade da inteligência artificial aumentou exponencialmente. Fim do Matérias recomendadas Em contraste com a distribuição limitada do GPT-2, a nova versão, o GPT-3, foi disponibilizada prontamente em novembro de 2022. A interface ChatGPT derivada dessa programação gerou milhares de artigos de notícias e postagens de rede social, enquanto repórteres e especialistas testavam seus recursos — muitas vezes, com resultados impressionantes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outros modelos de inteligência artificial, como o Dall-E, produziram imagens tão convincentes que geraram polêmica sobre sua inclusão em sites de arte. Pelo menos a olho nu, as máquinas aprenderam a ser criativas. Em 14 de março, a OpenAI apresentou a última versão do seu programa, o GPT-4. O grupo afirma que ele apresenta proteções mais sólidos contra usos abusivos. Os primeiros clientes incluem a Microsoft, o banco Merrill Lynch e o governo da Islândia. E o tema mais quente na conferência interativa South by Southwest — uma reunião global de formuladores de políticas, investidores e executivos da área de tecnologia, realizada em Austin, no Estado americano do Texas — foi o potencial e o poder dos programas de inteligência artificial. Arati Prabhakar, diretora do Escritório de Política de Ciências e Tecnologia da Casa Branca, afirmou estar entusiasmada com as possibilidades da inteligência artificial, mas também fez um alerta. "O que todos nós estamos vendo é o surgimento dessa tecnologia extremamente poderosa. É um ponto de inflexão", declarou ela na conferência. "Toda a história demonstra que esse tipo de tecnologia, nova e potente, pode e será usada para o bem e para o mal." Já Austin Carson, fundador da SeedAI, um grupo de consultoria sobre políticas de inteligência artificial, que participou do mesmo painel, foi um pouco mais direto. "Se, em seis meses, vocês não tiverem perdido completamente a cabeça [e soltou um palavrão], pago um jantar", disse ele ao público presente. "Perder a cabeça" é uma forma de descrever o que pode vir a acontecer no futuro. Amy Webb, chefe do instituto Future Today e professora de negócios da Universidade de Nova York, nos EUA, tentou prever as possíveis consequências. Segundo ela, a inteligência artificial pode seguir uma dentre duas direções nos próximos 10 anos. Em um cenário otimista, o desenvolvimento da inteligência artificial vai se concentrar no bem comum, com um design de sistema transparente, e os indivíduos vão ter a capacidade de decidir se suas informações disponíveis ao público na internet serão incluídas na base de dados de conhecimento da inteligência artificial. Nesta visão, a tecnologia serve como uma ferramenta que facilita a vida, tornando-a mais integrada, à medida que a inteligência artificial passa a estar disponível em produtos de consumo que podem antecipar as necessidades do usuário e ajudar a desempenhar virtualmente qualquer tarefa. O outro cenário previsto por Webb é catastrófico. Envolve menos privacidade de dados, poder mais centralizado em poucas companhias, e uma inteligência artificial que antecipa necessidades do usuário, mas as entende errado ou restringe escolhas possíveis. Ela acredita que o cenário otimista tem apenas 20% de chance de acontecer. Webb afirmou à BBC que o rumo que a tecnologia vai tomar depende, em grande parte, do grau de responsabilidade das empresas que vão desenvolvê-la. Será que elas vão fazer isso de forma transparente, revelando e fiscalizando as fontes das quais os chatbots — chamados pelos cientistas de Grandes Modelos de Linguagem (LLM, na sigla em inglês) — extraem suas informações? O outro fator, segundo ela, é se o governo — incluindo os órgãos federais de regulamentação e o Congresso — pode agir rapidamente para estabelecer proteções legais para orientar os desenvolvimentos tecnológicos e evitar seu uso indevido. Nesse sentido, a experiência dos governos com as empresas de redes sociais — Facebook, Twitter, Google e outras — é um indicativo. E não é uma experiência encorajadora. "O que ouvi em muitas conversas foram preocupações de que não existe nenhuma barreira de proteção", afirmou Melanie Subin, diretora-gerente do instituto Future Today, na conferência South by Southwest. "Existe a sensação de que algo precisa ser feito." "E acho que as redes sociais, como uma preocupação, é o que fica na mente das pessoas quando observam a rapidez do desenvolvimento da inteligência artificial como geradora de conteúdo", acrescentou. Nos Estados Unidos, a supervisão federal das empresas de redes sociais é baseada, em grande parte, na Lei de Decência nas Comunicações, aprovada pelo Congresso americano em 1996, além de uma cláusula curta, mas poderosa, contida no artigo 230 da lei. O texto protege as empresas da internet de serem responsabilizadas pelo conteúdo gerado por usuários em seus sites. A lei é creditada permitir um ambiente legal bastante favorável às empresas de redes sociais. E, mais recentemente, também foi acusada de permitir que essas mesmas empresas ganhem muito poder e influência. Políticos de direita reclamam que a lei permitiu que os Googles e Facebooks da vida censurassem ou reduzissem a visibilidade das opiniões conservadoras. Já os de esquerda acusam as empresas de não fazerem o suficiente para evitar a disseminação de discursos de ódio e ameaças violentas. "Temos a oportunidade e a responsabilidade de reconhecer que o discurso de ódio gera ações de ódio", afirmou Jocelyn Benson, secretária de Estado de Michigan, nos EUA. Em dezembro de 2020, a casa de Benson foi alvo de protestos por parte de apoiadores armados de Donald Trump, organizados no Facebook, que contestavam os resultados da eleição presidencial de 2020. Ela apoiou leis contra práticas enganosas no seu Estado, que responsabilizaria empresas de rede social por espalhar informações prejudiciais conscientemente. Propostas similares têm sido apresentadas a nível federal e em outros Estados americanos, além de legislação que exige que os sites de redes sociais forneçam uma proteção maior a usuários menores de idade, sejam mais abertos sobre suas políticas de moderação de conteúdo e tomem ações mais efetivas para diminuir o assédio online. Mas as chances de sucesso dessas reformas dividem opiniões. As grandes empresas de tecnologia mantêm equipes inteiras de lobistas na capital americana, Washington, e nas capitais dos Estados. Elas também contam com cofres abarrotados para influenciar políticos com doações de campanha. "Apesar das imensas evidências de problemas no Facebook e em outros sites de redes sociais, já se passaram 25 anos", afirma a jornalista de tecnologia Kara Swisher. "Ficamos esperando uma legislação do Congresso para proteger os consumidores, e eles abriram mão da sua responsabilidade." Swisher afirma que o perigo reside no fato de que muitas das empresas que são grandes players nas redes sociais — Facebook, Google, Amazon, Apple e Microsoft — agora são líderes na área de inteligência artificial. Se o Congresso não conseguir regulamentar com sucesso as redes sociais, será um desafio agir rapidamente para lidar com as preocupações sobre o que Swisher chama de "corrida armamentista" da inteligência artificial. As comparações entre as regulamentações de inteligência artificial e as redes sociais também não são apenas acadêmicas. A nova tecnologia de IA pode navegar pelas águas já turbulentas de plataformas como Facebook, YouTube e Twitter e transformá-las em um mar revolto de desinformação, à medida que se torna cada vez mais difícil distinguir postagens de seres humanos reais de contas falsas — mas totalmente convincentes — geradas por IA. Mesmo se o governo for bem-sucedido na aprovação de novas regulamentações para as redes sociais, elas podem acabar sendo inúteis se houver um imenso fluxo de conteúdo pernicioso gerado por inteligência artificial. Entre as incontáveis sessões da conferência South by Southwest, houve uma intitulada "Como o Congresso [americano] está construindo a política de IA a partir do zero". Depois de cerca de 15 minutos de espera, os organizadores informaram ao público que o painel havia sido cancelado porque os palestrantes haviam se deslocado para o lugar errado. Para quem estava na conferência e esperava mostras de competência entre os humanos no governo, o episódio não foi nada encorajador.
2023-04-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn07ljg5yrzo