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sociedade
O ridículo assalto a banco que inspirou estudo científico sobre ignorância e confiança
Um dia, em janeiro de 1995, um homem chamado McArthur Wheeler, junto com um comparsa, assaltou dois bancos em Pittsburgh, na Pensilvânia, Estados Unidos. Apesar de, como esperado, existirem inúmeras câmeras de segurança e de ele não ser novato em assaltos à mão armada, ele não parecia ter feito qualquer esforço para disfarçar ou esconder a sua identidade. Porém, quando, após a detenção dele, avisaram que ele tinha sido identificado graças a imagens captadas por câmeras de segurança, o homem ficou atordoado. "Mas eu derramei suco de limão em mim mesmo! Eu derramei suco de limão em mim mesmo!", disse ele aos investigadores ainda mais perplexos. A perplexidade logo se transformou em espanto quando Wheeler explicou ao que ele se referia. Fim do Matérias recomendadas Disseram a ele que, se passasse suco de limão no rosto, ficaria invisível diante das câmeras. Quem quer que tenha sido a "brilhante" fonte de informação provavelmente interpretou mal o antigo uso do limão como tinta invisível em mensagens secretas. O fato é que, como um bom cientista, Wheeler colocou essa hipótese à prova. Ele banhou o rosto com o suco cítrico e, apesar de queimar sua pele e fazer seus olhos arderem tanto que ele mal conseguia abri-los, ele ficou encantado ao ver que era verdade. Como? Tirando uma foto com uma máquina Polaroid, na qual ele não apareceu. Os investigadores, contendo o riso ao falar com a imprensa na época, disseram que isso provavelmente aconteceu porque ele não enxergava bem, não apontou a câmera corretamente ou que o filme poderia estar com defeito. A história despertou o interesse de David Dunning, professor de psicologia social na Universidade de Cornell, que ficou intrigado com a confiança de Wheeler em suas habilidades, apesar de sua estupidez. Outras pessoas poderiam ter pontos cegos semelhantes sobre sua incompetência? Será verdade que, como observou Charles Darwin em 1871, "a ignorância gera confiança com mais frequência do que o conhecimento"? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com seu colega Justin Kruger, Dunning testou se aqueles que não possuem certas habilidades em uma determinada área têm maior probabilidade de não notar essa falta do que aqueles que são mais qualificados nessa mesma área. Em um dos experimentos, eles pediram a comediantes profissionais que avaliassem as piadas de acordo com seu humor. Como o humor é sempre marcado por uma dose significativa de subjetividade, os pesquisadores também fizeram experimentos de lógica e gramática, cujas respostas eram pré-definidas. Todos os participantes também foram questionados sobre como achavam que tinha sido seu desempenho. Em todos os casos, repetiu-se um padrão: aqueles cujo desempenho se situava entre os 25% inferiores do total superestimaram dramaticamente as suas próprias capacidades e classificaram-se acima da média. Num teste final, fundamental para testar a teoria, os cientistas treinaram um grupo de participantes de baixo desempenho para o teste de raciocínio e lógica. Ecoando frases como "só sei que nada sei", sobre como quanto mais você aprende, mais consciente você fica do quanto você não sabe, descobriu-se que a capacidade de autoavaliação melhorou entre esses participantes. Dunning e Kruger concluíram que, quando as pessoas são incompetentes, elas sofrem uma dupla carga. "Elas não apenas tiram conclusões erradas e tomam decisões infelizes, mas a incompetência as priva da capacidade de se dar conta disso. "Assim como Wheeler, elas ficam com a impressão errada de que estão fazendo a coisa certa." É um ciclo vicioso. O problema é que o conhecimento ou as habilidades necessárias para fazer algo bem são muitas vezes os mesmos necessários para avaliar se está certo. "As habilidades que permitem construir uma frase gramaticalmente correta são as mesmas necessárias para (...) determinar se foi cometido um erro gramatical", explicaram em Inexperiente e Inconsciente (1999). O artigo sobre a pesquisa original tornou-se um clássico na psicologia social e o fenômeno foi apelidado de "efeito Dunning-Kruger". Nos anos seguintes, o efeito foi observado em todos os tipos de campos, incluindo xadrez, medicina, inteligência emocional e até mesmo conscientização sobre a segurança de armas de fogo entre os caçadores. Em qualquer grupo com um espectro de capacidades, aqueles que se encontram entre os 25% com pior desempenho eram os menos capazes de avaliar seus próprios talentos. Mas isso não significava que eles fossem pouco inteligentes ou mesmo ignorantes. "Talvez na mais cruel ironia, o que as pessoas tendem a ignorar é a extensão da sua própria ignorância: onde começa, onde termina e todo o espaço que ocupa no meio", escreveu Dunning num artigo posterior. E todos nós somos essas pessoas, por mais difícil que seja aceitar isso. Constantemente adquirimos conhecimento, mas nossa ignorância é oceânica. Tendemos a estar conscientes de muitas das nossas próprias inadequações, mas há inúmeras coisas que não sabemos que não sabemos. São vazios de conhecimento invisíveis porque não é que não saibamos as respostas, mas sim que não tenhamos as perguntas. "As pessoas estão destinadas a não ter consciência de onde termina a base sólida do seu conhecimento e começa a margem escorregadia da sua ignorância", acrescentou Dunning. Ele chama essa aflição de "anosognosia da vida cotidiana", tomando emprestado um termo da literatura médica. A anosognosia é uma condição neurológica em que o paciente tem uma deficiência, mas não tem consciência dela. Não porque se recuse a reconhecê-la, mas porque a desconhece. Tudo indica então que caminhamos pela vida acompanhados daquele problema oculto. Por isso vale lembrar que existe aquela estranha relação entre confiança e conhecimento que nos leva a superestimar nossas capacidades. Portanto, da próxima vez que você se surpreender pensando que sabe tudo, perceba que, por mais improvável que pareça, você pode estar caindo na armadilha de ignorar sua própria ignorância.
2023-09-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyrjpvz7y6no
sociedade
O suicídio de professora vítima de 'bullying de pais' na Coreia do Sul
Em 5 de junho deste ano, a professora sul-coreana Lee Min-so*, de 23 anos, descreveu em seu diário o medo que tomava conta de seu corpo quando entrava em sala de aula. "Meu peito está muito apertado. Sinto que vou cair em algum lugar. Nem sequer sei onde estou." Em 3 de julho, Lee escreveu que estava tão sobrecarregada com as demandas do trabalho que "queria abandonar tudo". Duas semanas depois, ela foi encontrada morta no armário da sala de aula por seus colegas. Lee havia tirado a própria vida. O episódio desencadeou uma onda de protestos por parte dos professores do Ensino Fundamental em toda a Coreia do Sul. Fim do Matérias recomendadas Dezenas de milhares deles entraram em greve nesta segunda-feira (4/9) para exigir melhor proteção no trabalho. Os professores alegam ser frequentemente vítimas de assédio por pais autoritários, que ligam para eles a qualquer hora do dia e nos finais de semana, com queixas injustas e incessantes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O primo de Lee, Park Du-yong, luta contra as lágrimas enquanto arruma o pequeno apartamento vazio dela, que agora abriga apenas seu peixinho dourado. A cama está desfeita e ao lado dela há uma pilha de desenhos de seus alunos da primeira série, dizendo o quanto eles a amavam. E, logo abaixo, outra pilha, esta de livros da biblioteca, sobre como lidar com a depressão. Park diz que sua prima lecionava há pouco mais de um ano, realizando seu sonho de infância ao seguir a profissão de sua mãe. Ela adorava as crianças, diz ele. Por isso, nos dias seguintes à morte de Lee, que a polícia rapidamente atribuiu ao término recente de um relacionamento, Park assumiu o papel de detetive. Ele leu centenas de anotações de diário de sua prima, assim como relatórios de trabalho e mensagens de texto. Esse conteúdo revelou que nos meses que antecederam seu suicídio, Lee foi bombardeada por reclamações dos pais. Mais recentemente, um de seus alunos havia ferido a cabeça de outra criança com um lápis, e ela estava envolvida em discussões acaloradas com pais, que ligavam ou mandavam mensagens para ela tarde da noite. Nas últimas seis semanas, dezenas de milhares de professores realizaram protestos na capital Seul, alegando que estão agora com tanto medo de serem acusados de maus-tratos contra crianças que são incapazes de impor autoridade em sala de aula ou intervir quando elas brigam entre si. Eles acusam os pais de se aproveitarem de uma lei de bem-estar infantil, aprovada em 2014, que determina que docentes acusados de abuso infantil sejam automaticamente suspensos. Por essa legislação, os professores podem ser indiciados por abuso infantil ao tentarem conter uma criança violenta, enquanto uma repreensão é frequentemente rotulada como abuso emocional. Tais acusações podem fazer com que os professores sejam imediatamente afastados dos seus empregos. Um professor recebeu uma queixa formal após negar o pedido de um pai para acordar o filho com um telefonema todas as manhãs. Outro foi denunciado por abuso emocional depois repreender um menino que havia ferido seu colega de classe com uma tesoura. Em um dos protestos acompanhados pela reportagem da BBC, a professora Kim Jin-seo, de 28 anos, disse que tinha tido pensamentos suicidas e precisou tirar três meses de licença após duas queixas particularmente agressivas de pais. Ela conta que certa vez pediu a um aluno indisciplinado que dedicasse cinco minutos para se acalmar no banheiro, enquanto no outro denunciou uma criança aos pais por brigar. Em ambos os casos, a escola a forçou a pedir desculpas. Kim diz que chegou a um ponto em que sentiu que não poderia dar aulas com segurança. "Nós, professores, nos sentimos extremamente impotentes. Aqueles que experimentaram isso em primeira mão mudaram fundamentalmente, e aqueles que não o fizeram, viram isso acontecer com outros, então de qualquer forma é debilitante", diz. Para especialistas, essa cultura de reclamação está sendo alimentada pela sociedade hipercompetitiva da Coreia do Sul, na qual quase tudo depende do sucesso acadêmico. Os estudantes competem arduamente pelas melhores notas desde muito jovens, para um dia entrar nas melhores universidades. Fora da escola, os pais enviam os filhos para estudar em escolas extracurriculares caras, conhecidas como hagwons, que funcionam das 5h às 22h. Enquanto as famílias na Coreia costumavam ter cinco ou seis filhos, agora a maioria tem apenas um, o que, para muitas, significa que têm uma única oportunidade de sucesso. O professor Kim Bong-je, que forma futuros professores na Universidade Nacional de Educação de Seul, também culpa o aumento da desigualdade. Tradicionalmente, a Coreia do Sul tinha uma cultura muito forte de respeito pelos professores, explica ele, mas devido ao rápido crescimento econômico do país, muitos pais são agora altamente qualificados. "Isso significa que muitas vezes menosprezam os professores", diz ele. "Eles pensam que, por 'bancar' o salário dos professores com seus impostos, podem fazer o que quiserem. Ou seja, sentem-se superiores." Outro professor, Kwon, diz à BBC que nos 10 anos em que trabalha como docente, tirou dois períodos de licença médica para lidar com depressão e ataques de pânico, ambos desencadeados pelo estresse causado por pais e alunos. Até quatro anos atrás, um professor podia expulsar um aluno de sala de aula, conta, mas então os pais começaram a processar docentes por abuso infantil. Kwon se mudou recentemente para uma escola numa comunidade mais pobre e confirmou que o comportamento dos pais em áreas ricas era muito pior. "A mentalidade deles é 'só meu filho importa', e quando tudo que você consegue pensar é mandar seu próprio filho para uma boa faculdade, você se torna muito egoísta", diz. Ele não tem dúvidas de que essa pressão atinge as crianças, afetando também o seu comportamento. "Os alunos não sabem como aliviar essa pressão, então agem agredindo uns aos outros." O bullying e a violência entre alunos são problemas bastante conhecidos nas escolas sul-coreanas. A popular série The Glory, por exemplo, gira em torno de uma mulher em busca de vingança contra ex-colegas que faziam bullying contra ela. Baseada em fatos reais, a série retrata alguns episódios chocantes de violência. Em uma reviravolta na história, o próprio diretor da série foi acusado de ter cometido bullying quando era aluno de escola e se viu forçado a se desculpar. Em fevereiro, o governo, sob pressão para resolver a questão, anunciou que os registros de bullying dos alunos seriam incluídos nas suas candidaturas a universidades. Introduzida para tentar coibir o bullying e a intimidação de alunos, a medida, entretanto, acabou alimentando ainda mais a ansiedade dos pais, levado muitos a pressionar professores para que apagassem os erros dos seus filhos. Shin Min-hyang, que dirige a organização Solidariedade para a Proteção dos Direitos Humanos de Estudantes e Pais, diz que esse comportamento é inaceitável, mas argumenta que casos assim são atípicos. "A grande maioria dos pais se comporta bem e estamos preocupados de que os canais que utilizamos para comunicar as nossas preocupações sejam agora cortados. Os pais estão sendo considerados culpados e isso não está certo", diz ela. Shin admite que já fez queixa contra professores no passado e que gostaria de ter obtido mais informações sobre a educação de seu filho e como ele foi disciplinado. Um dos pais, que não quis ser identificado, diz temer que as reclamações tenham saído do controle. Ele mostrou à BBC o conteúdo de um bate-papo entre pais num aplicativo de mensagem, no qual eles encorajavam uns aos outros a assediar uma professora por causa de uma decisão que ela havia tomado. "Se o seu número for bloqueado, use os telefones de sua família e amigos para ligar", instruiu um dos pais no bate-papo. "Se os professores não tiverem o poder de intervir com alunos problemáticos, outros serão afetados negativamente", diz o pai que não quis se identificar. Segundo uma sondagem recente, menos de um quarto dos professores (24%) estava satisfeito com o seu trabalho, abaixo dos 68% em 2006, quando o levantamento começou a ser feito. A grande maioria diz ter pensado em deixar a profissão no ano passado. O governo admite o problema e, por isso, emitiu novas diretrizes para professores. Pelas novas normas, eles poderão expulsar alunos desordeiros da sala de aula e discipliná-los, se necessário. As regras determinam que as datas e horários de encontros de pais com professores devem ser combinados com antecedência, e os docentes podem se recusar a realizá-las depois do trabalho. O ministro da Educação da Coreia do Sul, Lee Ju-ho, disse esperar que tais medidas "façam as escolas voltar a ser como antes". Mas há muitos aqui que argumentam que o problema é muito mais abrangente e defendem que todo o sistema educacional da Coreia do Sul precisa ser reformado. E isso tem que acontecer com uma mudança em como a sociedade do país encara o sucesso acadêmico. *Alteramos o nome da professora a pedido de sua família. Colaboraram Hosu Lee e Lee Hyun Choi
2023-09-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0gq50glr0o
sociedade
Por que as pessoas não conseguem deixar empregos que odeiam
As taxas de demissão voluntária estão diminuindo. Nos EUA, normalizaram-se para níveis pré-pandêmicos – aparentemente pondo fim a um momento em que diversos trabalhadores estavam deixando seus empregos. As contratações também esfriaram. No Reino Unido, o número de vagas de emprego caiu trimestralmente no ano passado. Especialistas dizem que alguns trabalhadores estão felizes em permanecer em seus empregos: muitos encontraram novos cargos após repensarem suas carreiras. Mas nem todos os trabalhadores ficam nas vagas em que estão por vontade própria. Alguns ainda querem pedir demissão, mas com desaceleração nas contratações e incertezas sobre a economia, eles podem ficar presos em empregos dos quais não gostam num futuro próximo. Quando o mercado está aquecido, os trabalhadores insatisfeitos podem mais facilmente mudar de emprego ou mudar de setor para encontrar funções das quais gostem mais. “Quando as pessoas sentem que não estão num emprego inspirador e vêem oportunidades em outros lugares, é provável que procurem satisfazer as suas necessidades profissionais em outra empresa”, afirma Jim Harter, pesquisador de gestão e bem-estar no local de trabalho da consultoria americana Gallup. Fim do Matérias recomendadas Sem perspectiva de serem contratadas em outros locais, no entanto, as pessoas na maioria das vezes não tem condições de pedir demissão – então, em vez disso, “demitem-se silenciosamente”, ou seja, começam a fazer o mínimo possível. De acordo com dados da Gallup de junho de 2023, 59% dos 122.416 trabalhadores globais entrevistados dizem que não estão engajados no trabalho. Existem muitas razões para os trabalhadores estarem desmotivados neste momento, dizem os especialistas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por um lado, o custo de vida e a estagnação do crescimento salarial significaram que mais funcionários estão insatisfeitos com os seus salários. “O salário costuma ser o principal motivo para alguém se sentir insatisfeito com seu trabalho atual – você está trabalhando duro, mas seu salário não está aumentando”, explica Nela Richardson, economista chefe da empresa de RH ADP, em Nova York, nos EUA. Uma grande parte dos trabalhadores também está presa em empregos com os quais não se importam. O fato de quererem uma nova função, mas não conseguirem, faz com que se sintam frustrados, presos e sem agência. Assim, sem mobilidade no mercado de trabalho, "[eles] ficam no emprego simplesmente por falta de escolha, e não porque se sentem realizados e motivados pelo seu papel", afirma Ngaire Moyes, gerente do LinkedIn no Reino Unido. É aqui que entra a demissão silenciosa. “A maioria das pessoas ‘se demite’ silenciosamente devido à natureza de seu trabalho”, diz Harter. “Fazem o mínimo porque não se sentem inspiradas e não sentem que têm a oportunidade de fazer o que fazem melhor.” Para o funcionário, ficar preso a um trabalho do qual não gosta é, na melhor das hipóteses, desagradável e, na pior, prejudicial. E desistir silenciosamente não ajuda. “É um comportamento que pode levar a níveis mais baixos de bem-estar ao longo do tempo”, diz Harter. “Na prática, entrar em um casulo e fazer o mínimo durante a maior parte do tempo pode ter um impacto negativo na saúde mental. E não é uma forma de construir uma carreira de sucesso.” A postura de muitas empresas também agrava o problema. Harter diz que a falta de investimento de uma empresa nos seus trabalhadores muitas vezes leva à "demissão silenciosa". “Alguns empregadores podem agora pensar que têm maior controle quando os trabalhadores têm menos oportunidades em outros locais. E por isso os empregadores não se esforçam tanto para inspirar as suas equipes”, diz ele. No entanto, a questão é um grande problema para as empresas, uma vez que a desmotivação dos trabalhadores gera perda de produtividade. Os especialistas dizem que as próprias companhias deveriam ter interesse em engajar seus trabalhadores. Se elas não melhorarem as condições para os funcionários, um número crescente dos seus empregados vai começar a fazer o mínimo necessário até que consigam mudar de empresa. Uma peça desse quebra-cabeça, diz Richardson, é garantir que os trabalhadores se sintam apoiados e priorizados, que haja atenção para sua saúde mental e qualidade de vida. “Quando há falta de mão de obra, muitos empregadores fazem mais para manter os seus trabalhadores, oferecendo maior flexibilidade. Mas, à medida que a falta de mão de obra diminui, algumas organizações podem recuar nessas ofertas e benefícios",diz ela. Em tempos de tensão econômica, como quando há inflação e aumento do custo de vida, os empregadores também têm o dever de reconhecer as circunstâncias dos trabalhadores, diz Harter. Ele cita números da Gallup que indicam que o engajamento também é afetado por crises fora do local de trabalho. “Em tempos difíceis, construir a cultura organizacional certa é ainda mais crucial para ampliar o esforço dos funcionários”, acrescenta. A realidade para a maioria dos trabalhadores é que eles poderão ter de permanecer nas suas funções atuais, gostem ou não. E, a menos que as empresas façam mais para engajar os funcionários insatisfeitos, muitas pessoas vão optar pela “demissão silenciosa” e fazer o mínimo possível.
2023-09-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c03jk29425go
sociedade
'Reservei voo de última hora e comprei um castelo'
“Tudo parecia que iria desmoronar”, diz Samantha Kane sobre sua primeira visão do Castelo Carbisdale, no topo de um penhasco. Houve um problema com a infiltração de água em partes da casa de campo e alguns quartos estavam em grave estado de conservação. Quando a advogada nascida em Londres fez sua visita em 2022, a propriedade nas Highlands, as Terras Altas da Escócia, havia sido colocada à venda pela terceira vez em seis anos. Custos significativos de manutenção, ou talvez histórias de que o castelo era assombrado por uma senhora branca fantasmagórica, pareciam ter assustado alguns potenciais compradores. Mas a advogada, hoje conhecida como Lady Samantha Kane, do Castelo de Carbisdale, ficou intrigada. Fim do Matérias recomendadas Ela diz: “Ouvi dizer que tinha sido vendido, mas depois a venda fracassou e ele voltou ao mercado. “Achei que deveria pelo menos ir visitar. Então peguei um voo de última hora para Inverness e fiz minha primeira viagem para aquele extremo norte, nas Highlands." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela acrescentou: “Cheguei ao Castelo Carbisdale e foi muito atmosférico. É uma construção magnífica.” “Quando eles abriram a porta e eu entrei, havia quartos grandiosos, mas infelizmente todos estavam em ruínas. Houve muita entrada de água. "Mas pensei que alguém deveria salvar aquele edifício icônico e marco para as gerações futuras. Imediatamente fiz uma oferta incondicional e disse: 'Preciso comprar este castelo'." A oferta dela foi aceita. O interesse de Lady Carbisdale pela propriedade perto de Ardgay, em Sutherland, começou quando ela soube de sua história. Durante 60 anos, a partir de 1945, o castelo foi um hostel para jovens, mas durante a Segunda Guerra Mundial serviu como santuário para membros da família real norueguesa após a invasão da Noruega pela Alemanha nazista. No final da guerra, Carbisdale reconheceu a assinatura de um acordo que exigia que as tropas russas, que tinham dominado aldeias norueguesas enquanto lutavam contra soldados alemães, se retirassem pacificamente da Noruega. E havia a moradora original do castelo, Mary Caroline Blair. Lady Carbisdale ficou fascinada pela história dela. Na Londres vitoriana, Mary Caroline era, na época, esposa do capitão do Exército. Nascida em Oxford, ela viu-se no centro de um escândalo na alta sociedade. Ela estava tendo um caso com George Sutherland-Leveson-Gower, um homem casado e terceiro duque de Sutherland. A família do duque possuía terras enormes nas Highlands e desempenhou um papel nas notórias limpezas de Sutherland, que viram famílias serem transferidas, muitas vezes à força, de suas terras para abrir caminho para a agricultura em larga escala. Uma amarga rivalidade familiar ocorreu quando Mary Caroline se tornou a segunda esposa do duque, poucos meses após a morte da primeira. Na época, o primeiro marido de Mary Caroline já havia morrido por um tiro acidental. Os sogros da nova duquesa ficaram descontentes com a rapidez com que o casamento aconteceu. A rainha Vitória, amiga íntima da primeira esposa do duque, estava entre os que apelaram ao duque para que ele esperasse mais, antes de se casar novamente. Embora seu título formal fosse Duquesa de Sutherland, Mary Caroline foi apelidada depreciativamente de Duquesa de Blair. As tensões aumentaram quando o próprio duque morreu e a herança da duquesa foi contestada pelo seu enteado. Mais tarde, ela foi presa por seis semanas na prisão de Holloway, em Londres, após ser acusada de destruir documentos relacionados ao testamento. A disputa acabou sendo resolvida, com a família do duque de Sutherland concordando em construir uma nova casa para a duquesa - desde que fosse em um local fora dos limites da propriedade da família em Sutherland. A duquesa escolheu um terreno numa encosta próxima - e visível - da propriedade. A torre do relógio foi construída com apenas três faces, com o lado voltado para Sutherland Estate em branco porque a duquesa não queria dar atenção aos seus ex-sogros. Os detalhes arquitetônicos fariam com que Carbisdale ficasse conhecido como o Castelo do Despeito. Lady Carbisdale diz: “Ela foi uma mulher que construiu um castelo na era vitoriana, uma época em que as mulheres não tinham muitos direitos. “Isso me tocou porque em minha vida enfrentei discriminação e isso me levou a dar o meu melhor para ter sucesso – para provar ao mundo que ninguém pode me derrubar.” No ano desde a sua compra, grandes reformas começaram no castelo e Lady Carbisdale tem planos adicionais. A propriedade é a residência privada dela, mas propõe abrir partes como um museu que conte a história do castelo e da região. Ela ainda espera utilizar outras áreas para “turismo de qualidade”. Lady Carbisdale também planeja construir uma destilaria e 12 hospedagens de ecoturismo alimentadas por sistemas de energia renovável. Os projetos apoiariam empregos locais. Outras ideias de Lady Carbisdale incluem convidar a família real da Noruega para ver onde os antepassados deles foram mantidos em segurança em tempos de guerra. E o fantasma do castelo? “Pessoalmente, acho que é a Duquesa Blair”, diz Lady Carbisdale, sugerindo que sons inexplicáveis em partes não urbanizadas da propriedade podem ser causados pelo morador fantasma.
2023-09-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84k0lk2398o
sociedade
As situações em que trabalho em equipe não é melhor estratégia
Ao longo do século 21, o trabalho em equipe definiu o ambiente de trabalho moderno. Com avanços na tecnologia de comunicação, trabalhar em colaboração se tornou, como dizem os especialistas em gestão, uma forma de aproveitar a “inteligência coletiva”. A inteligência coletiva é muitas vezes vista como maior do que a soma das suas partes: superior à inteligência individual cumulativa dos membros do grupo. Diz-se que capitalizar isso melhora a precisão das tarefas (encontrar respostas melhores e mais corretas) e aumenta a eficiência das tarefas (encontrar boas respostas mais rapidamente). Isso, por sua vez, leva a uma conclusão mais rápida e de maior qualidade. Em outras palavras, quando trabalhamos juntos, nosso desempenho melhora. Este tem sido um dos principais fatores que moldam as nossas sociedades modernas. Ao mesmo tempo, porém, tanto as pesquisas como a linguagem popular sublinham os limites inerentes ao conceito. Se o provérbio “duas cabeças pensam melhor que uma” sugere os benefícios da colaboração, o provérbio americano “muitos cozinheiros estragam o caldo” (too many cooks spoil the broth, em inglês) sugere o contrário. Liderei um estudo recente para verificar se o treinamento e a composição da equipe podem afetar a eficiência das pessoas quando trabalham juntas. Descobrimos que os benefícios da inteligência coletiva podem ser negativamente compensados pelo custo da coordenação entre os membros da equipe. Concebemos um estudo experimental utilizando um projeto já existente de ciência cidadã na internet, Wildcam Gorongosa. Os participantes analisam fotos de webcam tiradas no Parque Nacional da Gorongosa, em Moçambique, para encontrar e identificar espécies e comportamentos animais. Fim do Matérias recomendadas Convidamos 195 membros do público para participarem em nosso laboratório em Oxford. O experimento compreendeu duas etapas: treinamento e depois teste, que eles fizeram primeiro sozinhos e depois em equipes de dois. Eles tinham cinco subtarefas a cumprir: detectar a presença de animais; contar quantos eram; identificar o que estavam fazendo (em pé, descansando, movimentando-se, comendo ou interagindo); especificar se algum jovem estava presente; e identificar os animais entre 52 espécies possíveis. Dividimos os participantes em dois grupos. Um recebeu treinamento direcionado com imagens semelhantes ao conjunto que seria usado no experimento. O outro recebeu treinamento geral com diversas imagens. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Descobrimos que o tipo de treinamento realmente afetou o desempenho. Para aqueles com formação geral – os “generalistas” – a eficiência melhorou inicialmente, mas depois diminuiu, uma vez testados no conjunto específico de imagens de teste. Em contraste, aqueles com formação específica – os “especialistas” – mantiveram ou melhoraram consistentemente o seu desempenho. Para investigar o impacto que a dinâmica da equipe teria, formamos três tipos de grupos: alguns com dois especialistas, alguns com dois generalistas e alguns com uma dupla mista. Surpreendentemente, descobrimos que nem dois generalistas nem um grupo misto tiveram melhor desempenho do que um único generalista trabalhando sozinho. Mesmo dois especialistas trabalhando juntos não se saíram melhor do que um único especialista. Descobrimos também que, embora ter um especialista num grupo melhorasse a precisão nas tarefas mais complexas, não melhorava a eficiência do grupo. Em outras palavras, a equipe obteve mais respostas corretas, mas demorou consideravelmente mais para fazê-lo. E para tarefas simples, não houve melhoria na precisão por ter um especialista. Em última análise, o tempo que os membros da equipe perderam na coordenação uns com os outros superou o benefício de adicionar um especialista ao grupo. Pesquisas já feitas mostram que o mau desempenho em um grupo se deve muitas vezes ao que os psicólogos chamam de “perdas de processo”. A inteligência coletiva de uma equipe pode, por exemplo, ser afetada negativamente por preconceitos sociais e pelo que os cientistas cognitivos chamam de comportamento de “manada”, que pode levar que as decisões coletivas sejam desproporcionalmente influenciadas por alguns membros do grupo que são menos competentes, mas mais confiantes. Além disso, os psicólogos falam em “folga social” para descrever uma pessoa com mau desempenho porque faz parte de um grupo – quando a pessoa tem a impressão de que outros farão o trabalho sem que ela precise contribuir. Quando um grande número de membros da equipe segue essa estratégia, os esforços combinados da equipe podem ser ainda menores do que a soma dos esforços individuais. Pesquisas também mostram a importância da aprendizagem social no contexto do trabalho colaborativo eficaz - o que o nosso estudo destaca. O método experimental que implementamos envolveu sessões de formação individuais seguidas imediatamente de testes de trabalho em equipe – isto impediu oportunidades para as pessoas aprenderem através da observação do desempenho dos seus colegas de trabalho e, portanto, foi eliminada uma das vantagens de fazer parte do grupo durante o processo de aprendizagem. O contexto em que o trabalho em equipe e a colaboração ocorrem é importante, assim como as ferramentas disponíveis para coordenação entre os membros da equipe. Dado que as tecnologias de comunicação pela internet são utilizadas não só para esforços colaborativos voluntários em grande escala, como projetos de ciência cidadã, mas também para trabalho remoto, é importante reconhecer os efeitos potenciais de diferentes abordagens de formação e dinâmicas de equipe. Quando os membros da equipe não têm a oportunidade de observar outros trabalhadores e colher as vantagens da aprendizagem social, e quando a comunicação é menos eficiente do que as interações presenciais, os custos e benefícios na equação do trabalho em equipe podem mudar. Nossa pesquisa mostra que isso é ainda mais pronunciado quando se lida com tarefas mais simples que não exigem uma solução criativa e extensa de problemas. Optar por trabalhar individualmente poderia de fato ser uma abordagem mais vantajosa. A dinâmica do trabalho em equipe – seja no local de trabalho ou no contexto da colaboração voluntária – é complexa. Embora a colaboração ofereça benefícios em contextos específicos, é essencial considerar as vantagens e desvantagens em termos de tempo, precisão e eficiência. A coordenação tem um custo.
2023-09-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0z966zyqeo
sociedade
A americana que bateu recorde de mullet mais longo do mundo
Uma americana de 58 anos do Estado do Tennessee conquistou o título do maior mullet do mundo entre as mulheres. Tami Manis, da cidade de Knoxville, exibe uma cabeleira esvoaçante que mede 172,72 cm - a altura de uma pessoa adulta. Manis, enfermeira de saúde pública, usa o cabelo no estilo mullet desde os anos 1980, inspirada em um videoclipe da banda de rock americana 'Til Tuesday, e não corta parte do cabelo há 33 anos. Seu penteado será destaque no livro de recordes do Guinness World Records de 2024. Ela disse que sua jornada com o mullet começou quando assistiu ao videoclipe da música "Voices Carry", da banda 'Til Tuesday, há cerca de quatro décadas. Fim do Matérias recomendadas "A garota tinha uma trança e eu realmente queria uma igual", ela disse ao Guinness World Records. Ela então cortou seu mullet em novembro de 1989 e imediatamente se arrependeu, então começou a deixá-lo crescer em fevereiro do ano seguinte e não o corta desde então. Um mullet é um corte curto na frente, no topo e nas laterais, e comprido atrás. Foi o estilo da moda nos anos 1980 e início dos anos 1990, popularizado por astros como Billy Ray Cyrus, Mario Lopez e Patrick Swayze. Manis disse que a maioria das pessoas fica surpresa quando não percebe o quão longo é seu cabelo - até ela se virar. Quanto à maneira como conseguiu deixá-lo tão comprido, Manis credita aos bons genes. "Eu também uso um condicionador com óleo de Argan", ela disse. Mas exibir um mullet tão comprido nem sempre é fácil. Para começar, o cabelo de Manis é maior que a própria altura dela, o que significa que costuma mantê-lo trançado para facilitar o manejo. Antes de seu título no Guinness World Records, Manis competiu no Campeonato Americano de Mullets de 2022, no qual ficou em segundo lugar.
2023-09-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g3jkkwr5wo
sociedade
Menstruação: as origens de um estigma que dura até hoje
Não, eu não sabia. Sou historiadora, tenho interesse nas relações entre corpo e tecnologia, e sou também uma pessoa que menstrua, então a conversa me fez refletir sobre como nunca parei para pensar sobre a história dos produtos para a menstruação. Deve ser porque o fluxo menstrual está, desde sempre, ligado a um sentimento de vergonha, desestimulando o diálogo sobre o tema. Não deveria ser assim, pensei. Então, junto com uma equipe de colegas da Universidade de Leeds, no Reino Unido, embarquei em um projeto de pesquisa sobre a história do estigma menstrual. O que descobrimos, até agora, são diversos exemplos de como o fluxo menstrual é estigmatizado — começando há muitos milhares de anos e chegando até os dias de hoje. Fim do Matérias recomendadas Ao longo da história, os intelectuais homens têm constantemente associado a menstruação a alguma forma de impureza (e não apenas a pessoa menstruada, mas também tudo relacionado a ela). Plínio, o Velho, por exemplo, escreveu por volta do ano 70 d.C. que a menstruação "produz os efeitos mais monstruosos". As colheitas "murcharão e morrerão", e as abelhas "abandonarão suas colmeias se forem tocadas por uma mulher menstruada", diz ele. Já no século 7 d.C., Santo Isidoro de Sevilha levou ainda mais longe as acusações de Plínio, alegando que, “se forem tocadas pelo sangue da menstruação, as colheitas deixam de brotar, o vinho não fermentado azeda, as plantas murcham e as árvores perdem seus frutos”. Livros de obstetrícia escritos em 1694 também comparam as mulheres menstruadas à cocatriz (uma besta mítica com hálito venenoso), já que, supostamente, elas também teriam o poder de espalhar veneno por via aérea. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Infelizmente, as discussões sobre a menstruação continuaram a reforçar a vergonha em torno do tema ao longo dos séculos 20 e 21, pintando o fluxo como algo constrangedor, que é preciso esconder. Em 1950, na então popular revista feminina Good Housekeeping saiu um anúncio da nova embalagem dos absorventes higiênicos Modess. Dizia: "tomamos tanto cuidado para que a embalagem não pareça uma caixa de absorventes que nem mesmo os olhos mais atentos vão adivinhar o que tem dentro dela". Apesar do tom alegre e descontraído, o anúncio segue reforçando a ideia de que é preciso ocultar os produtos menstruais. Uns 70 anos depois, em 2020, a Tampax foi criticada por fazer uma propaganda de absorventes internos que "você pode abrir de forma totalmente discreta, sem fazer barulho". Outra prova desse estigma é a longa lista de eufemismos usados para falar de menstruação, em qualquer época. Um estudo, publicado em 1948, encontrou uma grande quantidade de termos pejorativos para ela, incluindo "a maldição", "a sujeira vermelha", ou dizer que a mulher menstruada está "no cio". Outro estudo, de 1975, aborda 128 eufemismos, muitos dos quais ainda são usados hoje em inglês (como Aunt Flo, tia Flo, e on the rag, usando panos). Alguns desses eufemismos são engraçados (meu favorito é riding the cotton pony, ou algo como "montar o pônei de algodão"), mas eles surgiram para silenciar a conversa sobre menstruação e assim alimentar a ideia de que ela é constrangedora. O estigma segue permeando a sociedade contemporânea, prejudicando até hoje as pessoas que menstruam. Em 2021, um grupo de pesquisadores concluiu que ele anda paralelamente à ideia de que a menstruação deve ser mantida em segredo. Na prática, isso se manifesta de várias formas, por exemplo, quando a pessoa não quer que os colegas de escola ou trabalho vejam seus absorventes, ou quando disfarça os sintomas menstruais. Todo esse sigilo também dificulta identificar eventuais anomalias no ciclo menstrual e, como consequência, as pessoas deixam de procurar ajuda médica. Por exemplo, uma pesquisa de 2018 descobriu que 79% das meninas e mulheres jovens tinham algum sintoma preocupante ligado à menstruação, mas não haviam comunicado a nenhum profissional da saúde. A ONG Endometriosis UK também apurou que 62% das mulheres com idades entre 16 e 54 anos, com sintomas de endometriose, não iriam ao médico por acreditar que a questão não é grave o suficiente para incomodar um profissional, ou porque teriam vergonha, ou medo de não serem levadas a sério, ou por acharem que esses sintomas, incluindo a dor, são normais. O estigma em torno da menstruação está profundamente enraizado na sociedade. Mas cada um de nós pode tomar inúmeras pequenas atitudes, que no conjunto fazem diferença. Para começar, podemos todos (independentemente da idade, gênero ou sexualidade) conversar mais abertamente a respeito. Podemos deixar de lado os eufemismos, pois seu uso constante acaba perpetuando a noção de que a menstruação não é simplesmente uma função natural do corpo e sim uma vergonha que deve se esconder. Também podemos nos expressar coletivamente, como, por exemplo, interagindo com marcas nas redes sociais, exigindo que representem o fluxo de forma mais verdadeira (a Kotex, por exemplo, finalmente parou com o absurdo de usar um líquido azul na hora de demonstrar o produto). É claro que o tema também precisa ser abordado em maior escala. É urgente combater a pobreza menstrual, garantir amplo acesso à água potável e a banheiros com privacidade, além de incentivar as empresas a terem políticas trabalhistas que levem em consideração as questões menstruais. Mas tudo pode começar com uma simples conversa. Se conseguirmos romper todo esse silêncio e sigilo, no futuro isso vai fortalecer a todas as pessoas que menstruam. Rachael Gillibrand é professora de história pré-moderna na Universidade de Leeds
2023-09-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g37l16941o
sociedade
Os 'pais de pets' que tratam seus cães como filhos
Há 15 anos, quando se conheceram, a empresária Patrícia Camargo, de 38 anos, e o marido, o dentista Mateus Santana, também de 38 anos, pensavam em formar uma família considerada tradicional – casar e ter filhos. Entretanto, os dois casaram e o plano de ter crianças em casa começou a ser adiado. Com o passar dos anos, o casal conta que percebeu que incluir filhos no relacionamento se tratava muito mais de uma cobrança da sociedade do que de uma vontade real deles. As responsabilidades de criar e educar uma criança foram alguns dos fatores levados em consideração na hora de tomar a decisão. “A gente se sentia desconfortável com esse tipo de cobrança, mas não tínhamos parado para analisar se realmente queríamos filhos. Foi quando percebi que eu não tinha essa vontade dentro de mim e comecei a conversar com o Mateus sobre isso. E, com o tempo, fomos amadurecendo essa questão de não termos filhos até que tomamos essa decisão”, recorda a empresária. Na época da decisão, há pouco mais de 7 anos, Patrícia tinha uma loja voltada para gestantes e lactantes e convivia diariamente com a rotina de mães e futuras mamães. A escolha de não querer ter um bebê veio acompanhada de alguns julgamentos. “Nossas famílias e amigos entenderam a nossa vontade e pararam de nos cobrar um filho. Mas já ouvi que estou sendo egoísta, e tudo bem, isso é uma opinião da pessoa, mas não minha”, acrescenta. Fim do Matérias recomendadas Apaixonados por animais desde pequenos, Patrícia e Mateus decidiram, então, que teriam um animalzinho para deixar a casa mais alegre. Foi quando Armandinho chegou na vida do casal, há 9 anos. Dois anos depois, foi a vez de Nina entrar para a família. “Não é uma substituição, são escolhas. E eu trato eles como meus filhos, eu cuido, zelo e tenho responsabilidade por eles até o fim da vida”, diz Patrícia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Armandinho e Nina estão com o casal em todos os momentos. Viagens, idas a restaurantes e até mesmo em compras do dia a dia. Para isso, o casal sempre opta por frequentar lugares e estabelecimentos pet friendly - expressão em inglês adotada no Brasil para informar que um estabelecimento é “amigo dos animais domésticos”, ou seja, que cachorros e gatos são bem-vindos. “Sempre gostamos muito de viajar e, quando os cachorrinhos chegaram nas nossas vidas, eles entraram na nossa rotina. A gente só viaja para lugares que aceitam eles, não me lembro quando foi a última vez que viajamos sozinhos. Não conseguimos deixá-los e eles sempre estão com a gente, viajamos em família completa”, relata. Além das viagens com a família, os animais também são bastante mimados em casa. A dupla de quatro patas fica solta pela residência e pode dormir na cama com o casal ou escolher ficar na própria caminha. Além disso, roupinhas não faltam no guarda-roupa deles, que possuem dezenas de looks para o frio e calor. Todos os anos, Armandinho e Nina ganham festa de aniversário, e, claro, presentes em datas comemorativas como Natal. Os bichinhos também têm presença garantida nos ensaios fotográficos da família. “A gente trata com muito respeito, amor e carinho, afinal fomos nós que optamos por cuidar da vida deles, por isso buscamos fazer isso da melhor forma possível. A gente comemora o aniversário deles, para lembrar do privilégio que é estar mais um ano com eles. São membros da família de fato. Para a gente, é muito natural”, acrescenta Patrícia. Situação semelhante é vivida pela empreendedora Carolina de Arruda Botelho Mattar, de 37 anos. Casada há 9 anos, ela e o marido, Eduardo, decidiram não ter filhos humanos. A decisão foi tomada no início do relacionamento. “Desde o início do namoro, o Eduardo sempre disse que não queria ter filhos. Eu queria, mas com o tempo fui trabalhando a minha mente e entendi que não precisa ter filhos para ser feliz, que isso é muito mais uma imposição da sociedade”, diz Carol. A empreendedora conta que desde criança sonhou em ter cachorro, mas que seus pais nunca permitiram porque moravam em apartamento. O cenário mudou há pouco mais de seis anos com a chegada da Cacau e Dindin, dois Fox Paulistinha. “O fato de não ter filhos biológicos surpreende algumas pessoas porque ainda é uma questão cultural do Brasil, uma expectativa de família. Mas como sempre deixamos muito claro que nossa vontade era de ter filhos pets, nossos familiares e amigos nunca nos julgaram, mas algumas pessoas ficaram surpresas”, conta Carolina. Chamados de filhos pelo casal, os irmãos paulistinhas domem na cama da família, comemoram o aniversário com festinha e são bastante mimados. Eles possuem um adestrador que todos os dias os levam na praça para passear e brincar com outros cachorros. “Também tomamos cuidado de mantê-los em contato com o mundo biológico deles, por enriquecimento ambiental, como com comedouros interativos. Quando vamos para a fazenda, eles sempre vão junto, gostam de brincar na piscina e se divertem bastante correndo por tudo. Como são irmãos, costumamos fazer uma comemoração em família para que a gente possa celebrar a vida deles”, acrescenta a empreendedora. Essa população é de 85,2 milhões e registrou crescimento de 4,5% em relação a 2020. O país fica atrás apenas de Estados Unidos, com cerca de 150 milhões de animais de estimação e da China, com 141 milhões. O levantamento aponta ainda que entre os lares com cachorros como únicos animais de estimação, 21% são de casais sem filhos, 9% de pessoas morando sozinhas e 65% de casas com filhos. Outros 5% apresentam outras configurações. Das residências com gatos como únicos animais de estimação, 25% são de casais sem filhos, 17% de casas com pessoas morando sozinhas e 55% de casas com filhos. Outros 3% apresentam outras configurações. Para o sociólogo e psicanalista Wlaumir Souza, o fenômeno conhecido como pet parenting (ou parentalidade de animais) está se tornando cada vez mais comum devido à dedicação das mulheres à carreira profissional e à transformação no modelo familiar que a sociedade vem passando. “A mudança de filhos por pets está em consonância com o momento atual em que vivemos. Um filho demanda muito tempo e esforço, o que pode acarretar certas dificuldades no avanço profissional da mulher, haja vista que muitas delas saem do mercado de trabalho para cuidar dos filhos e depois esse retorno ainda é repleto de desafios. Muitas vezes elas não conseguem voltar a ele”, diz. Outros fatores que, para o sociólogo, têm feito muitos casais optarem por filhos pets ao invés de humanos está relacionado à questão econômica e insegurança de se criar um filho no mundo atual. “O Brasil vive uma crise econômica nos últimos oito anos de forma continuada e apesar de crises não serem novidade no país, a intensidade dela vem causando um certo receio nas famílias. A insegurança econômica acarreta um medo de trazer um ser ao mundo”, acrescenta. Já do ponto de vista psicológico, Souza diz que os animais não questionam e são fiéis aos seus donos e, consequentemente, são mais fáceis de conviver. O que também explicaria a preferência de muitas pessoas, segundo ele. “Um pet é submisso e atende às regras, mesmo no caso dos gatos, que são mais individualistas. Assim não há o que se preocupar com o destino e liberdade deles. A fidelidade canina, por exemplo, mostra porque o Brasil prefere o cão, totalmente submisso, uma regra clara do país desde a época da escravatura”, finaliza.
2023-08-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2l8g5egwzjo
sociedade
Idalia: furacão 'devastador' chega à Flórida
O furacão Idalia chegou à Flórida nesta quarta-feira (30/8), com ventos de até 201 km/h e condições potencialmente fatais. O governador do Estado, Ron DeSantis, disse que tempestades são esperadas em algumas áreas, à medida que ventos fortes empurram a água do mar para a região costeira. Algumas áreas já estão sofrendo com inundações. Nesses locais, a água na altura dos joelhos cobriu estradas e inundou cidades. Mais de 30 mil funcionários estão de prontidão para ajudar a restaurar a energia após a tempestade. DeSantis também pediu que as pessoas tenham cuidado com fios de eletricidade rompidos. Cerca de 169 mil pessoas estão sem luz no Estado. Dos 67 condados da Flórida, 28 estão sob algum tipo de ordem de evacuação, principalmente ao longo da parte superior da costa do Golfo. Fim do Matérias recomendadas Mais cedo, o furacão chegou a subir para a categoria 4, com ventos de até 209 km/h. Pouco depois, ele caiu para a categoria 3. As diretrizes do Centro Nacional de Furacões (NHC) dos EUA dizem que as tempestades de categoria 3 provavelmente causarão danos “devastadores”, incluindo problemas estruturais em casas, árvores arrancadas e estradas bloqueadas. Chuvas fortes e ventos fortes também são esperados na Carolina do Norte, na Carolina do Sul e na Geórgia. O Serviço Meteorológico Nacional em Tallahassee chamou Idalia de “um evento sem precedentes”, porque nenhum grande furacão jamais passou por essa área. “Embora Idalia deva enfraquecer após a chegada ao continente, é provável ela que ainda seja um furacão enquanto se move pelo sul da Geórgia e da Carolina do Sul na noite de hoje”, complementou o NHC. O furacão deve sair da costa sudeste dos EUA na manhã de quinta-feira (31/8) e mover-se para leste no final da semana, previu o órgão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A temporada deste ano de furacões no Atlântico deve ser mais ativa do que a média, mesmo duas semanas antes do pico desses eventos. O principal fator determinante é que os oceanos estão muito mais quentes do que a média — e a temperatura elevada alimenta o desenvolvimento de furacões. Idalia representa de longe a maior ameaça de todas as tempestades até agora nesta temporada, segundo especialistas. Uma das principais preocupações é que as temperaturas da água no Golfo do México estão acima do normal, especialmente perto da costa dos EUA, onde as medições apontam entre 2 e 3 °C a mais do que a média histórica. Isto levará à rápida intensificação de Idalia perto da Flórida, com a previsão de ventos de mais de 200 km/h. Por conta das previsões, dezenas de aeroportos na Flórida foram fechados. O Aeroporto Internacional de Tampa parou de funcionar na terça-feira (29/8) e permanecerá paralisado até que seja possível avaliar qualquer dano no final da semana. O segundo maior aeroporto da Flórida, em Orlando, divulgou que não prevê nenhum “impacto significativo” nas operações. Em comunicado, os responsáveis pelo aeroporto acrescentaram que atrasos e cancelamentos de voos são prováveis por causa das chuvas e ventos fortes. A Flórida recrutou mais de 5,5 mil guardas nacionais e até 40 mil eletricistas estão de prontidão para enfrentar os cortes de energia. Em 2022, o furacão Ian atingiu o sudoeste do Estado, causando mais de 100 bilhões de dólares em danos e matando mais de 100 pessoas. “Haverá destruição de casas, lares e estruturas”, disse David DeCarlo, diretor do Gerenciamento de Emergências do Condado de Hernando. “Esta será uma tempestade com impacto na vida.” Na segunda-feira (28/8), o Idalia atingiu a costa ocidental de Cuba, onde dezenas de milhares de pessoas deixaram suas casas devido a inundações e ventos fortes. Os moradores fecharam os imóveis e protegeram os barcos de pesca, enquanto as enchentes marrons inundaram a pequena vila de pescadores de Guanimar, ao sul de Havana, no meio da tarde. "Já tivemos dois dias de chuva", disse Yadira Alvarez, de 34 anos, à Reuters na segunda-feira. Ela disse que a água da chuva já havia chegado à altura dos joelhos dentro da casa dela. Muito a leste de Idalia, Franklin, o primeiro grande furacão da temporada, poderá causar tempestades à costa leste dos EUA e às Bermudas. Na tarde de terça-feira (29/8), no horário local, o olho do Franklin estava a oeste das Bermudas, movendo-se para nordeste a uma velocidade máxima de 209 km/h. O caminho atual dele desvia de qualquer grande massa terrestre, com a tempestade se movendo para o leste da América do Norte. O impacto das mudanças climáticas na frequência das tempestades tropicais ainda não é claro, mas o aumento da temperatura da superfície do mar aquece o ar e disponibiliza mais energia para impulsionar os furacões. Como resultado, é provável que eles sejam mais intensos, com chuvas mais extremas. De acordo com o jornalista Carl Nasman, da BBC, não houve um aumento no número de furacões que atingiram a costa dos Estados Unidos nos últimos anos, mas o aquecimento dos oceanos levou à formação de tempestades mais poderosas sobre o Atlântico. Segundo Carl Nasman, o número de furacões de categorias 3, 4 e 5, considerados os mais devastadores, estão aumentando. "Em 2015, o Furacão Katrina, que atingiu o Estado americano de Luisiana em 2005 como um furacão de categoria 3, deixou 1.200 pessoas mortas. Ele deixou centenas de milhares de pessoas desabrigadas e causou um prejuízo de mais de 125 bilhões de dólares", afirmou. Segundo o jornalista, na época o furacão foi considerado como um evento que acontece uma vez no século. No entanto, entre 2016 e 2018, os Estados Unidos foram atingidos por outros seis furacões ainda maiores. "O que deu mais força ao Katrina e outros furacões foi o aquecimento das águas dos oceanos. Conforme os oceanos esquentam, os furacões ganham mais energia e se tornam mais devastadores", diz Nasman. Na Casa Branca, o presidente Joe Biden disse que garantiu ao governador da Flórida, Ron DeSantis, num telefonema na segunda à noite, que seu Estado obterá toda a ajuda necessária. “Estamos preocupados com a onda oceânica”, disse Biden aos repórteres antes de uma reunião bilateral com o presidente da Costa Rica. Ele disse que a equipe dele monitora o trajeto do Idália “hora a hora”. “Estaremos lá o tempo que for necessário e garantiremos que eles tenham tudo o que precisam”, acrescentou.
2023-08-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51r674yzppo
sociedade
Ucrânia: o enorme aumento de mortos ucranianos na guerra com a Rússia
Houve um aumento dramático no número de mortos na Ucrânia, de acordo com novas estimativas de autoridades americanas. Quentin Sommerville, da BBC, tem estado na linha da frente no Leste, onde a difícil tarefa de contar os mortos se tornou uma realidade diária. Os soldados não identificados estão num pequeno necrotério de tijolos, não muito longe da linha de frente em Donetsk, onde Margo, de 26 anos, diz "falar com os mortos". "Pode parecer estranho... mas é uma forma de pedir desculpas por suas mortes. Quero agradecê-los de alguma forma. É como se eles pudessem ouvir, mas não pudessem responder." Ela está sentada em sua mesa bagunçada do lado de fora da pesada porta do necrotério, com uma caneta na mão. É trabalho dela registrar os detalhes dos mortos. Fim do Matérias recomendadas A Ucrânia não revela a quantidade de mortos na guerra - as Forças Armadas ucranianas reiteraram que o seu número de vítimas de guerra é um segredo de Estado - mas Margo sabe que as perdas são enormes. Os números permanecem confidenciais. Mas as autoridades americanas, citadas pelo jornal The New York Times, estimaram recentemente o número em 70 mil mortos e cerca de 120 mil feridos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É um número impressionante diante de um contingente total estimado em cerca de meio milhão. A ONU registrou 9.177 mortes de civis até agora. Na parte interna do braço direito de Margo há uma pequena tatuagem de mãe e filho, com a data de nascimento de seu filho registrada. Suas unhas bem cuidadas são pintadas com cores ucranianas. Ela veste uma camiseta preta com as palavras "SOU UCRÂNIA" na frente. "O mais difícil é quando você vê um jovem morto que ainda não completou 20, 22 anos", diz ela. "Eles foram mortos. Eles foram mortos por causa de suas próprias terras. Isso é o mais doloroso. Você não consegue se acostumar com isso. Agora está chegando ao ponto em que se trata apenas de [ajudar] os meninos a voltar para casa." O dia mais difícil de sua vida, diz ela, foi quando o marido dela foi levado ao necrotério no dia em que morreu. Andrii, de 23 anos, foi morto em batalha no dia 29 de dezembro de 2022. "Ele morreu enquanto defendia sua pátria", diz ela. "Mas então, pela enésima vez, me convenci de que deveria estar aqui, deveria ajudar os mortos." O trabalho a tornou "dura como aço", diz ela. E por mais doloroso que seja ver os corpos sendo levados para o necrotério, ela diz que nunca chora em público. "Guardo tudo isso dentro de mim até a noite, quando volto para casa. Ninguém me vê chorar." Ainda em abril, estimativas vazadas do Pentágono calculavam as mortes ucranianas num número muito inferior, de 17.500. O salto para mais de 70 mil pode ser parcialmente explicado pela contra-ofensiva no sul. Nos seus primeiros dias, foi especialmente difícil para a infantaria ucraniana - "Pior que Bakhmut", disse à BBC um comandante de brigada que luta na região. A cidade de Donetsk foi parar nas mãos da Rússia em maio, numa das batalhas mais sangrentas da guerra até agora. A Ucrânia mudou agora de tática, mas o início da pressão para romper as defesas de ocupação da Rússia em junho foi dispendioso, em particular para os jovens soldados recém-treinados. Eles morriam "às dezenas" todos os dias, disse à BBC em junho um sargento sênior que lutava na vila de Velyka Novosilka, em Donetsk. No necrotério, um dos vários na linha de frente, eles trabalham para dar nomes aos soldados desconhecidos, que vêm direto do campo de batalha. Sacos com cadáveres são levados para fora, um de cada vez, e a busca por pistas começa. Dentro do primeiro saco para cadáveres está o corpo de um jovem, com os olhos ainda abertos, as mãos cuidadosamente cruzadas sobre o colo. Seu rosto está cortado e há um corte na lateral da perna. Outro corpo é trazido para fora. Faltam os dedos da mão direita, enquanto sangue e lama do campo de batalha mancham seu uniforme. Seus bolsos são abertos pelos funcionários do necrotério, ainda cheios de artefatos da vida cotidiana – chaves, um celular, uma carteira com fotografias de família. Na morte, esses itens são agora pistas que podem reunir os não identificados a suas famílias. Escrita com marcador preto em outro saco para cadáveres, a palavra "Não identificado" é riscada e substituída pelo nome de um homem, com detalhes da companhia militar da qual fazia parte. Surgem mais sacos com cadáveres. Um grupo de soldados - comandantes de vários escalões - chega em uma caminhonete do Exército e anda do lado de fora do necrotério, fumando cigarros. Eles inspecionam um corpo para ver se o soldado é do seu pelotão, companhia ou batalhão. Parece que ele foi morto em um ataque de artilharia - falta parte de sua cabeça e os ferimentos em seu corpo são graves, e se mostram ainda piores quando ele é virado. "Isso é difícil. Desagradável. Mas é necessário, faz parte do nosso trabalho. Temos que dar aos meninos uma despedida adequada", diz um subcomandante de batalhão que atende pelo nome de guerra "Avocat". Mais homens de sua unidade serão trazidos para ajudar na identificação do corpo, afirma. A realidade da escala das vítimas é exposta nos cemitérios da Ucrânia. No sol do fim da tarde, em torno do cemitério de Krasnopilske, os cabeças dos girassóis formam uma "guarda de honra" para os túmulos recém-cavados que se espalham cada vez mais. Ao lado de um desses túmulos, Oksana, de 31 anos, chora sozinha. Fotos de seu falecido marido, Pavlo, estão diante dela. O sargento barbudo e musculoso era campeão de levantamento de peso e personal trainer. Ele foi morto durante a contra-ofensiva anterior da Ucrânia, perto da cidade de Izium, em novembro, quando um míssil de um helicóptero russo atingiu seu comboio. "Ele foi voluntariamente defender nosso país", diz Oksana. "Ele era um guerreiro de coração - amante da liberdade. Ele era a personificação do nosso espírito ucraniano." Houve demora para identificar o corpo de Pavlo - ele, junto com outras pessoas no carro, estava queimado. Ele foi reconhecido por uma tatuagem. O amarelo e o azul das bandeiras ucranianas tremulam acima de cada sepultura sob a brisa suave - há centenas delas. Cada uma delas é um marco na grande maré de perdas que varre diariamente os campos de batalha do leste e do sul, enchendo cemitérios em cidades e aldeias por toda a extensão da Ucrânia. Depois de um ano e meio de guerra, poucas famílias aqui permaneceram intocadas pela dor. Mesmo assim, parece não haver queda na vontade de lutar. Na verdade, as derrotas, por enquanto, fortaleceram a determinação. Oksana e Pavlo fizeram um pacto durante a guerra de que, se ele morresse, ela se alistaria. Nos últimos dois meses, ela serviu como parte de uma unidade de vigilância aérea com drones, nos arredores de Bakhmut. Uma semana depois de nos encontrarmos no cemitério, Oksana está com um uniforme completo e se dirigindo para uma posição avançada em busca de uma unidade antitanque russa que tem como alvo as forças ucranianas. Quando chegamos lá, o som da artilharia disparando é ensurdecedor. Eu pergunto a ela por que ela se colocou em perigo? É seu dever moral, diz ela, enquanto brinca com a aliança de prata na mão direita. "Eu só preciso continuar o que ele começou. Então, todos os seus esforços não foram em vão. Voluntariado e doações são bons, mas quero fazer parte disso, parte da nossa vitória no futuro", diz ela. A vice-ministra da Defesa ucraniana, Hanna Maliar, divulgou uma declaração alertando que aqueles que divulgassem o número de vítimas estariam sujeitos a processo criminal. "Por que esses dados são secretos?", ela perguntou retoricamente. "Porque durante a fase ativa da guerra, o inimigo utiliza o número de mortos e feridos para calcular as nossas prováveis ações futuras. Se o inimigo tiver esta informação, começará a compreender alguns dos nossos próximos passos." O preço da guerra pesa sobre os homens da 68ª Brigada Jaeger, que lutam para impedir os avanços russos no front oriental, perto da cidade de Kupiansk. Com temperaturas superiores a 35ºC, procuramos algum abrigo sob redes de camuflagem, longe do calor do meio-dia e do perigo sempre presente dos drones russos. Um subcomandante de batalhão que atende pelo nome de guerra "Lermontov" estava com um humor sombrio. Tomando café, ele previu uma longa guerra. "Os russos não vão parar", disse ele, "não se pode negociar com eles". "O Ocidente não entende isso. Os jovens soldados que esperavam estar em casa dentro de um ano percebem agora que ficarão fora por mais tempo." Ele é um veterano da luta no Donbass, tem lutado contra a Rússia e os seus representantes desde 2014. Quanto tempo então ele espera que esta guerra dure? "Mais 10 anos", respondeu ele. Seu humor sombrio era compreensível. No dia 1º de agosto, o sargento-mor da brigada e dois outros sargentos foram mortos em um único ataque de morteiro russo. "Ele era uma lenda", disse Lermontov. O carro do oficial morto estava estacionado onde ele o havia deixado, a poucos metros de distância. Seus pertences pessoais ainda estão lá dentro. Enquanto conversávamos, o telefone de Lermontov tocou. Era a mãe de um soldado morto na semana anterior. Ela queria saber por que jovens armados estavam sendo enviados para atacar as trincheiras russas se a Ucrânia tinha recebido tanto armamento ocidental moderno. Mas nesta linha de frente de 1.000 km muitas brigadas carecem dos mais recentes veículos blindados ou armas de longo alcance. A realidade é que em muitas trincheiras os soldados ucranianos têm de se virar. "Não tenho uma resposta para ela, ela não entende… não temos tudo", ele me disse. Numa cerimônia de entrega de medalhas, no jardim de uma casa que funciona como base da companhia, encontro o comandante da brigada, coronel Oleksii. Ele acabara de voltar do funeral de um sargento. "Tivemos dois grandes [ataques russos]. Acho que tivemos muito sucesso, encontramos cerca de 35 corpos. Então acho que basicamente demolimos uma companhia", disse ele. No geral, as baixas da Rússia são muito maiores, cerca de 120 mil mortos, de acordo com a última estimativa dos EUA. Mas o seu exército e a sua população são muito maiores. Soldados ucranianos na linha de frente dizem que a capacidade da Rússia de absorver as mortes parece ilimitada. Pergunto ao coronel Oleksii o que ele diz às famílias dos mortos. "Só peço perdão por não ter fornecido segurança suficiente. Talvez eu tenha sido um mau líder, um péssimo estrategista. E agradeço a eles pelo que deram nesta luta."
2023-08-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn461pj8djmo
sociedade
O mistério sobre dono de avião com R$ 25 milhões e barras de ouro falsas
Um avião privado encontrado com mais de 5 milhões de dólares (aproximadamente R$ 25 milhões) em dinheiro, além de ouro falso, armas e munições está no centro de uma misteriosa investigação na capital da Zâmbia, Lusaka. Sabe-se que o avião partiu do Cairo, capital do Egito, e que aterrisou há duas semanas na Zâmbia. Até agora, no entanto, ninguém — nem Egito, nem na Zâmbia — admitiu ter fretado o avião ou ser proprietário de sua carga. Com tantas perguntas sem resposta, rumores não demoraram a surgir. Poderiam os envolvidos ser figuras políticas ou militares de alto nível do Egito ou da Zâmbia? Teria este sido um voo único ou o primeiro de centenas que finalmente foi interceptado? Cinco egípcios que estavam a bordo do avião e seis zambianos compareceram na segunda-feira (28/8) a um tribunal em Lusaka. Fim do Matérias recomendadas Tanto os egípcios como os zambianos foram acusados de contrabando e corrupção. Os zambianos também enfrentam acusações de espionagem. Entre os zambianos que compareceram ao tribunal, estava um funcionário da State House, a residência oficial e gabinete do presidente. A história poderia ter passado em branco, não fosse o trabalho de um jornalista cujo site de verificação de fatos, Matsda2sh, acusou autoridades no Egito de envolvimento no incidente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pouco depois da publicação, forças de segurança egípcias à paisana invadiram a casa de Karim Asaad, no Cairo, na calada da noite e o prenderam. Inicialmente, ele simplesmente havia desaparecido. Ninguém sabia para onde ou por que razão Asaad tinha sido levado. Mais tarde, jornalistas egípcios independentes publicaram documentos em redes sociais, supostamente retirados da investigação policial da Zâmbia sobre o avião carregado de dinheiro. Os documentos mostram a suposta nomeação entre os detidos de três militares egípcios e um oficial superior da polícia, corroborando as alegações de Asaad. Após uma enxurrada de protestos aparecer nas redes sociais, muitos vindo de outros jornalistas, Asaad foi libertado dois dias depois. O motivo exato pelo qual ele foi preso permanece outro mistério. Autoridades egípcias disseram apenas que o avião mencionado no website de Asaad era privado e estava passando pelo Cairo. Em outras palavras, o país e suas autoridades nada tinham a ver com o caso, segundo essa explicação. Pouco depois, os holofotes se voltaram para a Zâmbia, depois que o avião pousou no aeroporto Kenneth Kaunda, em Lusaka. Segundo informações locais, um homem zambiano carregando sacos com o que parecia ser ouro teria sido autorizado a passar pela segurança e encontrar os egípcios recém-chegados no avião. Ninguém parece saber quem o autorizou, mas, de acordo com relatos dos meios de comunicação zambianos, alguns pagamentos em dinheiro teriam ajudado a facilitar o seu caminho. Depois de entrar a bordo, o homem supostamente vendeu uma parte do suposto ouro que carregava para os homens no avião. Eles então teriam pedido mais. Não está claro se eles conseguiram descobrir que o suposto ouro que ele estava vendendo era, na verdade, falsificado antes que a equipe de segurança chegasse para revistar a aeronave. A prisão, ao que parece, foi turbulenta. Vários dos agentes que entraram no avião estão agora sendo investigados por supostamente terem recebido, cada um, até 200 mil dólares (quase R$ 1 milhão) dos cidadãos egípcios a bordo do avião. Alega-se que esta teria sido a recompensa para permitirem que o avião decolasse sem que ninguém fosse preso. Quando vazou a informação de que o dinheiro do avião estava supostamente mudando de mãos, outro grupo de seguranças invadiu a aeronave e prendeu todos os que estavam lá dentro. Os suspeitos tiveram dificuldade para explicar o que faziam com milhões de dólares em dinheiro, várias pistolas, 126 cartuchos de munições e o que parecia ser mais de 100 kg de barras de ouro. As barras de ouro eram particularmente intrigantes. Descobriu-se que, assim como o ouro, elas eram feitas de uma mistura de cobre, níquel, estanho e zinco. Mas nem tudo que reluz é ouro e, ao que parece, os egípcios a bordo do avião podem ter sido salvos de um péssimo negócio. Makebi Zulu, advogado zambiano que representa um dos 10 homens detidos, disse à BBC que inicialmente a polícia disse ter encontrado US$ 11 milhões (R$ 55 mi) em dinheiro. Esse valor, segundo ele, foi posteriormente reduzido para cerca de US$ 7 milhões (R$ 35 mi), até finalmente cair para US$ 5,7 milhões (R$ 28,5 mi). Segundo uma das possíveis explicações, quase metade do dinheiro já havia sido retirado do avião antes da chegada das forças de segurança. Se for verdade, isso significaria que os envolvidos circularam pelo aeroporto com mais de US$ 5 milhões (R$ 20 mi) – algo difícil de se fazer discretamente. Zulu também se disse perplexo com o tratamento desigual dispensado aos presos desde sua detenção. Ele diz que enquanto seu cliente zambiano e outros três estrangeiros foram levados para uma prisão para aguardar o julgamento, os seis egípcios foram alojados numa hospedagem. Já o homem que supostamente carregou os sacos de ouro falso até o avião se teria se tornado delator e estaria ajudando a polícia da Zâmbia a descobrir tudo isso. Nos últimos dias, vários outros cidadãos zambianos foram detidos em uma fábrica improvisada de processamento de ouro falso e mais detenções são esperadas. À medida que o interesse pelo caso em todo o mundo cresce, cresce também a especulação. Um think tank chamado Egypt Technocrats, composto por profissionais egípcios independentes que vivem em diferentes países, aponta que existiriam mais de 300 empresas secretas dentro do Egito envolvidas em operações de lavagem de dinheiro. Alguns dizem que grandes quantias em dinheiro teriam sido contrabandeadas para fora do país desde que o presidente Abdel Fattah al-Sisi chegou ao poder, há nove anos. Se for verdade, seria este voo apenas um entre centenas que fizeram viagens semelhantes? A teoria em alguns círculos é de que altos funcionários militares e empresários no Egito, com medo de que o regime do presidente Sisi possa entrar em colapso, têm tentado desesperadamente tirar seu dinheiro do país. Como em todos os pontos relacionados a este caso misterioso, no entanto, ninguém pode ter certeza do quanto disso tudo é verdade. Espera-se que, quando o julgamento finalmente ocorrer, muitas das questões levantadas sejam respondidas. O perigo, no entanto, é que isso possa ser só o ponto de partida para ainda mais perguntas.
2023-08-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgl8q4r726o
sociedade
Por que as leguminosas podem ser a solução para muitos dos problemas do mundo
A humanidade enfrenta uma infinidade de ameaças existenciais, desde mudanças climáticas até desnutrição e o aumento do custo de vida. Seriam as leguminosas uma resposta para os problemas do mundo? Elas são um elemento básico em quase todas as culturas ao redor do mundo, e não é à toa. Com cerca de 40 mil variedades, são altamente versáteis, nutritivas, baratas e boas para o meio ambiente. As leguminosas são vegetais encontrados em diversos formatos e tamanhos, desde feijões frescos e ervilhas até sementes secas como lentilhas e grão de bico. Fim do Matérias recomendadas Também são plurais em termos nutricionais. A ervilha e a vagem, por exemplo, são vegetais ricos em amido. Já o feijão e o grão-de-bico se diferenciam por seu alto teor de proteínas. Em um mundo onde 2,5 bilhões de pessoas têm excesso de peso, são obesas ou subnutridas, as leguminosas não apenas são um substituto barato para produtos de origem animal, como também têm baixo teor de gordura, são ricos em nutrientes, além de proteínas, ferro, zinco e fibras. Além disso, contêm carboidratos indigeríveis que alimentam as bactérias do intestino grosso, o que os torna ótimos aliados para nosso intestino. Todas as leguminosas têm uma mistura de aminoácidos essenciais, e, entre eles, a soja se destaca por ter as melhores proporções para a nossa saúde. Outros não têm o mesmo equilíbrio, mas, ao redor do mundo, são tradicionalmente combinados com outros alimentos, formando pratos nutricionalmente completos. Pense no brasileiríssimo arroz e feijão. Mas vai além: burritos de feijão, arroz com lentilha, grão-de-bico com cuscuz, dhal (lentilhas indianas) com chapatis (tipo de pão indiano) e muito mais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora os feijões sejam conhecidos por sua influência, para dizer o mínimo, na liberação de gases, eles também podem fazer o oposto. As leguminosas desempenham um papel único e importante em ecossistemas cruciais como florestas, pastagens e áreas alagadas. Bactérias que vivem em suas raízes retiram nitrogênio da atmosfera e o armazenam no solo. Este processo, conhecido como fixação de nitrogênio, não só fornece nutrientes às árvores e outras plantas, como também atua como fertilizante natural na agricultura, reduzindo a necessidade de produtos sintéticos e diminuindo a poluição química. Em um mundo em que as temperaturas são cada vez mais altas, as leguminosas são resistentes, capazes de crescer sob uma ampla variedade de climas. E mais: em média, requerem menos água para serem produzidos do que o arroz, o trigo ou produtos de origem animal. Visto que a procura global por água pode aumentar mais de 40% até 2030, isso é uma grande vantagem. Às vezes, algumas leguminosas, principalmente a soja, são alvo de preocupação. Pesquisadores suspeitavam que as isoflavonas encontradas na soja poderiam causar problemas de saúde ao imitar o hormônio estrogênio. Felizmente, estudos mais recentes não encontraram evidências disso. Na verdade, pesquisas modernas indicam que a soja pode até reduzir o risco de câncer e ajudar a manter o coração saudável. Outra preocupação é que o cultivo da soja leve ao desmatamento em lugares como a Amazônia. Aqueles que a defendem, porém, passam a responsabilidade para outros. Eles ressaltam que quase 80% da soja produzida na região é utilizada para a alimentação do gado. Assim, dizem eles, se comêssemos menos carne, menos terra teria de ser usada na produção do grão, o que significaria menos pressão para converter florestas e vegetações naturais em terras agrícolas. Como quase tudo na vida, as leguminosas não são perfeitas. Às vezes elas causam desconforto, não só ambiental, mas também individual. Aqueles que não as consomem frequentemente podem precisar introduzi-las lentamente na dieta para se acostumarem com seu volume e alto teor de fibras. Quem sofre de doenças como a síndrome do intestino irritável pode ter sua condição agravada por algumas leguminosas, embora deixá-las de molho e cozinhá-las bem possa ajudar. Os feijões vermelhos e o feijão cannellini (branco) têm altos níveis de lectina, uma proteína que os torna tóxicos, por isso definitivamente precisam ser cozidos adequadamente para evitar intoxicação alimentar se comprados secos ou crus. No geral, porém, embora não se possa esperar que as leguminosas resolvam todos os males do mundo, elas podem ajudar, dada a sua incrível abundância, valor nutricional, benefícios ambientais e as inúmeras formas deliciosas como podem ser consumidas.
2023-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpdm1gx2jx8o
sociedade
Por que tiktokers são tão bons em convencer pessoas a comprarem
O TikTok pode não ser o primeiro lugar que vem à mente na busca por produtos de limpeza. No entanto, a hashtag #cleantok vai muito bem, obrigada – assim como #dogtok, #beautytok e outras. Cada vez mais, os consumidores estão recorrendo às redes sociais para descobrir produtos e gastar seu dinheiro com base nas recomendações de influenciadores famosos e outros. Na hashtag #booktok, por exemplo, criadores de conteúdo compartilham resenhas e recomendações de livros. Dados mostram que usuários que promoveram determinados livros usando a hashtag conseguiram impulsionar as vendas dos títulos que apresentaram. A popularidade do #booktok também inspirou exibições dedicadas em grandes varejistas multinacionais de livros, além de ter mudado a forma como designers de capas e profissionais de marketing estão abordando novos títulos. Neste verão no hemisfério norte, até mesmo estimulou a criação de uma nova editora da ByteDance, empresa controladora do TikTok. No entanto, não é só o endosso de um influencer que impulsiona o instinto de compra, dizem os especialistas. Uma relação psicológica delicada com o rosto na tela, assim como mecanismos subjacentes do TikTok, ajudam a levar usuários a comprar algo que veem em seus feeds. “Plataformas baseadas em vídeo, como TikTok e Instagram, mudaram tremendamente a maneira como nós, consumidores, tomamos nossas decisões de compra”, diz Valeria Penttinen, professora assistente de marketing na Northen Illinois University, nos Estados Unidos. Crucialmente, essas plataformas oferecem aos usuários uma exposição sem precedentes a produtos e serviços, enquanto consomem grandes volumes de conteúdo em períodos curtos de tempo. Fim do Matérias recomendadas Existem alguns elementos que induzem usuários a encampar o endosso de criadores de conteúdo. No centro disso, dizem os especialistas, está a “credibilidade da fonte”. As pessoas provavelmente serão induzidas a comprar os produtos que aparecem na tela se elas perceberem o criador como competente e confiável. Usuários tentam ver se um criador “combina com um produto ou serviço” e veem isso como um símbolo de autenticidade, diz Angeline Scheinbaum, professora associada de marketing na Clemson University’s Wilbur O. and Ann Powers College of Business, na Carolina do Sul, nos EUA. Kate Lindsay, jornalista que cobre a cultura da internet, dá o exemplo de uma mãe dona de casa usando um produto de limpeza. “Eles vão como seguidores pessoas que pensam da mesma forma. Quando aquela pessoa que se parece com você diz que é mãe, está cansada e essa solução de limpeza a ajuda a resolver o dia... há um nível de conexão e confiança em que você pensa: 'você se parece comigo e isso é útil para você, então será útil para mim'.” A credibilidade da fonte de um criador de conteúdo dispara quando sua recomendação é orgânica – um endosso não pago. “Influenciadores orgânicos são muito mais autênticos… sua motivação é compartilhar genuinamente um bem ou serviço que trouxe alegria ou conveniência a suas vidas”, diz Scheinbaum. “Eles desejam sinceramente compartilhar isso com os outros.” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Essa autenticidade pode ser especialmente poderosa para impulsionar compras em categorias de nicho, já que os criadores geralmente são pessoas com entusiasmo que projetam conhecimentos específicos em áreas que poucos reivindicam. “Com esses microinfluenciadores, o consumidor consegue se sentir mais confiante de que está comprando de alguém [que] usa aquele produto… eles têm um relacionamento um pouco mais emocional”, diz Scheinbaum. As postagens em vídeo também tendem a aumentar a credibilidade com os espectadores, mais do que imagens estáticas ou textos. Penttinen diz que o vídeo cria um ambiente específico de “divulgação pessoal” que atrai os usuários: mesmo pequenos elementos, como poder ver o rosto e as mãos de um criador ou ouvir a maneira como eles falam podem fazer com que o usuário os veja como mais confiáveis. De fato, a pesquisa mostrou que influenciadores do YouTube impregnam suas avaliações com informações pessoais para parecer mais um amigo próximo ou membro da família – e quanto mais um espectador sente que “conhece” o criador, mais ele confia nele. Scheinbaum acrescenta que postagens com dicas verbais e de ação – especialmente demonstrações em vídeos do TikTok, que quase servem como micro-infomerciais de 30 a 60 segundos – podem inspirar uma “persuasão particularmente eficaz”. Um dos elementos que mais motivam os consumidores a comprar é a conexão emocional com esses criadores. Esse fenômeno, chamado de relacionamento parassocial, leva o público a acreditar que tem uma associação próxima ou até mesmo uma amizade com uma personalidade, quando na verdade o relacionamento é unilateral, pois muitas vezes o criador do conteúdo pode nem saber que o espectador existe. Esses relacionamentos não recíprocos se manifestam frequentemente nas redes sociais, principalmente com influenciadores e celebridades, quando muitos usuários são expostos ao seu conteúdo. O fenômeno também desempenha um papel no comportamento do consumidor. “As relações parassociais são tão fortes que as pessoas são levadas a comprar”, diz Scheinbaum, tanto em termos de influenciadores promovendo produtos patrocinados quanto de criadores orgânicos compartilhando seus itens pessoais favoritos. Penttinen explica que, à medida que os consumidores começam a conhecer as preferências e os valores de um criador e a vê-los divulgar informações pessoais, eles começam a tratar suas recomendações da mesma forma que tratariam as de seus próprios amigos da vida real. Ela acrescenta que esses relacionamentos parassociais geralmente levam usuários a fazer compras repetidas, especialmente no TikTok. O algoritmo da plataforma alimenta os usuários com conteúdo das mesmas contas com frequência, e a exposição repetida pode contribuir para o relacionamento unilateral. Ela acrescenta que os relacionamentos parassociais no TikTok também podem gerar medo de "estar perdendo alguma coisa", o que estimula o comportamento de compra: “Quando você se aproxima cada vez mais dessas pessoas, isso alimenta o medo de não capitalizar sobre esse relacionamento, ou de mostrar sua devoção a esse relacionamento”, diz Valeria Penttinen. Lindsay diz que o TikTok tem uma espécie de "espírito" associado a seu conteúdo centrado no produto que usuários podem achar especialmente atraente. “O TikTok tem esse jeito de fazer compras como um jogo, de certo modo, porque tudo acaba quase sendo empacotado como parte de uma estética”, diz ela. “Você não está apenas comprando um produto, está comprando algo em busca desse estilo de vida mais amplo.” Pode levar o usuário a querer fazer parte dessas tendências ou do discurso de ação, que pode incluir experimentar um produto. Ela acrescenta que determinados gêneros de conteúdo do TikTok podem ser altamente persuasivos. Lindsay aponta exemplos como “coisas que você não sabia que precisava”, “o santo graal” ou “coisas que salvaram meu…”. “Há um pouco de surpresa e alegria quando você está apenas rolando o celular e vê algo que não sabia que precisava ou que não sabia que existia”, diz Lindsay. Crucialmente, diz ela, a natureza íntima de formato curto dos vídeos do TikTok faz com que as recomendações pareçam mais naturais e abre um caminho para usuários confiarem nos criadores. Em contraste com os influenciadores do Instagram, quanto menos polido o conteúdo, mais ela acredita que os consumidores sentem que estão tomando suas próprias decisões de compra a partir de recomendações – “desempacotando em seu próprio cérebro”. No entanto, os consumidores podem frequentemente se envolver nessas compras emocionais em seu detrimento, diz Scheinbaum, que também é autor de The Dark Side of Social Media: A Consumer Psychology Perspective (O lado negro das redes sociais: uma perspectiva da psicologia do consumidor, em tradução livre). Em alguns casos, o efeito parassocial e a subsequente intimidade que as redes evocam podem ser tão fortes que os usuários não param para “detectar” se o endosso é patrocinado ou não, diz ela. Particularmente, usuários mais jovens ou consumidores menos experientes podem não saber a diferença entre um anúncio e uma recomendação orgânica. Até mesmo usuários mais assíduos com pressa podem ser vulneráveis, diz ela. A natureza dos clipes rápidos e ágeis do TikTok também pode tornar os anúncios pagos mais difíceis de detectar, acredita Linsday. Além disso, esses apegos emocionais que impulsionam as compras podem tornar as pessoas propensas a gastar demais, diz Penttinen. No TikTok, muitos dos produtos sobre os quais os usuários falam não são caros, o que pode fazer com que a compra pareça menos arriscada. Isso pode ser um problema, acrescenta ela, porque o que um criador pode achar bom para ele não é necessariamente bom para o usuário — no fim, você pode não gostar daquele romance que comprou porque estava sendo bombado no #booktok. Os consumidores não devem sentir que precisam examinar cada compra que fazem no TikTok, mas especialistas dizem que é importante saber por que a plataforma pode inspirar os usuários a gastar dinheiro – especialmente antes de concluir o pedido.
2023-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgezw7ld9pyo
sociedade
A luta de família para desvendar segredos de assassinato racista cometido há 64 anos
A família de um homem negro assassinado no Reino Unido em 1959 está reivindicando acesso aos documentos do arquivo da polícia ligados ao caso - que nunca foi esclarecido. Kelso Cochrane foi esfaqueado até a morte em uma rua do oeste de Londres, no que se acredita ter sido um ataque racista. Ninguém jamais foi acusado do crime. A Polícia Metropolitana de Londres, a Scotland Yard, diz que o arquivo não está disponível ao público porque o caso ainda está aberto. O advogado da família diz que esse sigilo não se justifica, e a família se diz disposta a tomar as medidas legais necessárias. O assassinato é um dos eventos mais significativos da Black British History, a história dos cidadãos britânicos que se mudaram para o Reino Unido, no século passado, de ex-colônias do Caribe e da África. Fim do Matérias recomendadas Na época em que foi morto, o homem de 32 anos morava em Londres, trabalhava como carpinteiro e planejava estudar direito. Kelso Cochrane nasceu em Antígua e chegou à Inglaterra cinco anos antes de sua morte, após uma passagem pelos Estados Unidos. Ele havia se casado lá, mas o relacionamento havia acabado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele também havia deixado duas filhas pequenas nos Estados Unidos, para quem ainda enviava brinquedos — bonecas, jogos de chá e cordas de pular. Uma delas, Josephine, diz que essas "pequenas coisas" lhe davam "a impressão de que ele era um pai amoroso e que se importava". Como muitos outros membros da geração Windrush (como eram chamados os migrantes que vieram, após a Segunda Guerra, do Caribe), Cochrane morava na área de Notting Hill, no oeste de Londres. Era uma das poucas partes da cidade onde os novos imigrantes do Caribe podiam encontrar moradia, embora muitas vezes fosse cara, superlotada e em más condições. A área também abrigava uma população da classe trabalhadora branca bem estabelecida. Na noite de 16 de maio de 1959, Cochrane fez uma visita ao hospital local, Paddington General. Ele tinha sofrido uma lesão no polegar durante o trabalho. No caminho de volta para casa, ele foi atacado por um grupo de cinco ou seis jovens brancos. Testemunhas disseram que viram ele sendo cercado e espancado. Um agressor chegou a pular nas costas dele. Dois homens jamaicanos que passavam pelo local correram para ajudar. Cochrane conseguiu se levantar, foi colocado em um táxi e levado para o Hospital St Charles, nas proximidades de North Kensington. Cochrane não parecia estar sangrando muito, mas ele havia sido esfaqueado no coração com uma lâmina fina. Quando chegaram ao hospital, ele estava em estado de choque. Ele morreu lá, pouco antes da 1 da manhã. Por volta das 4 da manhã, a notícia da morte chegou aos jornais. Uma edição tardia do Sunday Express daquela manhã trazia uma manchete chamativa: "Assassinato em Notting Hill". Notting Hill já era uma região conhecida pela tensão racial. No verão anterior de 1958, a região registrou tumultos que duraram dias. Os confrontos terminaram no início de setembro, mas para os moradores negros, a corrente de violência persistiu. Grupos de extrema-direita tornaram-se ativos na região, incluindo o Movimento Sindical de Oswald Mosley. Na primavera de 1959, outro grupo, a White Defense League, montou um escritório no coração de Notting Hill, dizendo que faria "campanha pelos interesses dos brancos". Mas, apesar de toda a tensão, ninguém havia sido morto em um ataque racista — até Kelso Cochrane. O inquérito policial foi conduzido por Ian Forbes-Leith, com uma equipe de 20 oficiais à disposição. A investigação rapidamente se concentrou em uma festa, que ocorria perto de onde Cochrane foi atacado. Vários convidados foram interrogados. Dois deles foram detidos por mais de 48 horas — Patrick Digby, um marinheiro mercante de 20 anos, e John "Shoggy" Breagan, de 24. Mais tarde, eles foram libertados sem serem indiciados. A polícia foi rápida em descartar a ideia de que o crime teria sido motivado por racismo. Forbes-Leith disse à imprensa que o esfaqueamento "não teve absolutamente nada a ver com conflito racial". Ele sugeriu que o motivo poderia ter sido roubo. Mas não era isso o que pensavam muitos na comunidade negra de Notting Hill. John Prince, amigo de Cochrane, disse à BBC em 2006 que o clima, na época, era de medo: "De repente, agora você se depara com a possibilidade de ser assassinado apenas por ser quem você é como pessoa". Em 6 de junho de 1959, centenas de pessoas — negras e brancas — se reuniram para o funeral de Cochrane em uma procuissão pelas ruas de Notting Hill, seguindo seu caixão até o cemitério de Kensal Green. Após o assassinato, a ativista Claudia Jones e outros colegas criaram o Conselho de Coordenação de Amizade Interracial, que pagou os custos do funeral de Cochrane, organizou protestos silenciosos em frente à sede do governo em Whitehall e pressionou por leis contra o ódio racial. Com o tempo, o inquérito policial foi arquivado. Décadas depois, em 2006, o irmão mais velho de Cochrane, Stanley, veio, pela primeira vez, à Inglaterra. Ele queria descobrir quem matou o irmão dele. Uma equipe que fazia um documentário para a BBC o acompanhou. O jornalista investigativo Mark Olden rastreou Patrick Digby e John Breagan, mas nenhum dos dois estava disposto a se encontrar com Stanley. Ambos negaram envolvimento no crime. Stanley pediu para ver o arquivo da polícia, mas só teve permissão para acessar uma versão resumida. Entre os que assistiram ao documentário estava a enteada de Patrick Digby, Susie Read. Ela contatou Olden e disse a ele que se lembrava dos amigos de Digby o provocando com um nome estranho - "Oslo" ou "Kelso". Ela nos disse que, certa vez, durante uma discussão, ela questionou Digby sobre a acusação: "Ele disse: 'Bem, se eu tivesse feito isso, você nunca poderia provar.' Eu disse, 'Você o matou? Ele disse, 'Sim'." Digby morreu em 2007. Olden continuou cavando. Ele falou com um convidado na festa da Southam Street, que lhe disse que Digby havia voltado à festa após o ataque e confessou (o ctrime) às pessoas presentes. Ele falou novamente com John Breagan, que disse que ele e Digby haviam deixado a festa juntos antes do assassinato. Quando questionados pela polícia sobre o motivo, um deles disse que era para procurar garotas, o outro disse que era para brigar. Mas, quando foram detidos na delegacia, eles foram mantidos em celas adjacentes. Breagan disse a Olden que isso permitiu que eles "alinhassem" suas histórias. Breagan morreu em 2019. Em 2011, Olden publicou um livro, Murder in Notting Hill, que levou a filha de Kelso Cochrane, Josephine, a contatá-lo. Crescendo em Nova York, ela sabia que o pai havia morrido, mas não sabia. até então, que ele tinha sido assassinado. Josephine está agora no centro dos esforços da família para abrir os arquivos da polícia. Ela nos disse que, como não conhecia o pai dela quando criança, queria saber "tudo" sobre o assassinato e a investigação "antes de morrer". O arquivo de investigação sobre o assassinato de Kelso Cochrane foi transferido para os Arquivos Nacionais em Kew, mas permanecerá fechado até 2054 — após o 100º aniversário de Josephine. Não é incomum que casos de assassinato não resolvidos sejam restritos por até 100 anos — para que eles só se tornem públicos depois que todos os envolvidos morreram. Mas alguns arquivos de assassinatos não resolvidos em Londres no mesmo período foram abertos, como o de Freda Knowles, assassinada em 1964, ou Ernest Isaacs, morto a tiros na casa dele em 1966. O historiador de crimes Mark Roodhouse, da Universidade de York, usa arquivos policiais de meados do século 20 para suas pesquisas. Ele diz ter ficado surpreso ao saber que o acesso ao arquivo Kelso Cochrane ainda é restrito. Na primavera de 2020, fiz meu próprio pedido baseado na lei de Liberdade de Informação para que o arquivo Cochrane fosse aberto antecipadamente, por motivos de interesse público. Consegui abrir outros arquivos com antecedência, principalmente dezenas de arquivos sobre abuso sexual infantil logo após o escândalo de Jimmy Savile (conhecido apresentador de rádio e TV que abusou sexualmente de centenas de pessoas impunemente). Na ocasião, porém, meu pedido foi recusado. A Polícia Metropolitana disse então que o caso Cochrane ainda estava aberto e que "novas técnicas científicas" significavam que "casos até então considerados insolúveis estão sendo examinados novamente". Também me disseram que liberar os arquivos causaria "sofrimento mental imediato" à família. No entanto, é a família de Cochrane que agora deseja que o arquivo seja divulgado. Além do mais, os principais suspeitos estão mortos e é difícil apontar para qualquer evidência que pudesse, hoje, ser examinada por "novas técnicas científicas". A equipe de documentários da BBC foi informada em 2006 que as roupas de Kelso Cochrane haviam sido destruídas no final dos anos 1960. Voltamos à Polícia Metropolitana nos últimos meses, pedindo que eles explicassem por que a família Cochrane não conseguiu acessar o arquivo. Eles nos disseram que "como acontece com todos os assassinatos não resolvidos, este caso não está encerrado e qualquer evidência que vier à tona será avaliada e investigada de acordo". Eles disseram que membros da equipe responsável pelo caso tentaram, sem sucesso, se encontrar com a família de Cochrane, para discutir os detalhes dessa investigação de assassinato. Daniel Machover, advogado da família Cochrane, diz que a família seguirá um caminho formal para obter o arquivo — contestando os motivos anteriormente apresentados para retê-lo. Machover reuniu várias declarações para apoiar o pedido, de parentes de Kelso Cochrane e de jornalistas que tentaram obter acesso ao arquivo durante muitos anos, inclusive eu. Machover também forneceu os atestados de óbito dos principais suspeitos e de outras pessoas que provavelmente foram testemunhas importantes no caso. Ele diz que é tarde demais para a justiça criminal, mas a família espera que haja algo no arquivo que "pelo menos dê a eles uma imagem, um sabor, uma ideia do que foi feito para tentar garantir uma acusação criminal e um processo criminal". Machover representou muitas famílias negras em ações contra a Polícia Metropolitana. Ele acredita que é preciso reconhecer os acontecimentos do passado para lidar com a desconfiança hoje. Comparações foram feitas com o assassinato em Londres do adolescente Stephen Lawrence, em 1993 — em ambos os casos, houve relutância por parte da Polícia Metropolitana em apontar o racismo como motivação, e uma falha inicial em indiciar alguém pelos crimes. A menos de um quilômetro de onde foi atacado, uma rua recebeu o nome de Kelso Cochrane, assim como um novo bloco de habitação social. Os membros da família Cochrane agradecem o reconhecimento, mas ainda querem algo mais. Millicent Christian, filha do primo de Cochrane, diz que a mãe de Stephen Lawrence, Doreen, acabou alcançando "algum tipo" de justiça. "Estamos procurando o mesmo para o nosso Kelso."
2023-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c99n55dn175o
sociedade
Problemas intestinais podem ser sinal precoce de Parkinson, diz estudo
Problemas intestinais, incluindo prisão de ventre, dificuldade em engolir e intestino irritável, podem ser um sinal de alerta precoce da Doença de Parkinson em algumas pessoas, indica um novo estudo. As descobertas, publicadas na revista científica Gut, acrescentam mais evidências à ideia de que a saúde do cérebro e do intestino estão intimamente ligadas. Compreender por que ocorrem problemas intestinais pode permitir o tratamento precoce do Parkinson, dizem os pesquisadores. O Parkinson é progressivo, ou seja, piora com o tempo. Pessoas com Parkinson não têm dopamina química suficiente no cérebro porque algumas das células nervosas que a produzem estão danificadas. Fim do Matérias recomendadas Isso causa sintomas que incluem tremores, movimentos lentos e arrastados e rigidez muscular. Embora atualmente não haja cura, existem tratamentos disponíveis para ajudar a reduzir os principais sintomas e manter a qualidade de vida pelo maior tempo possível. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Detectar a doença ainda mais cedo — antes que os sintomas neurológicos apareçam e haja danos substanciais nas células cerebrais — pode fazer uma grande diferença. Para o estudo, os pesquisadores analisaram históricos médicos dos Estados Unidos de 24.624 pessoas com Parkinson, comparando-os com: O que eles queriam descobrir era: Os pacientes com Parkinson tiveram problemas intestinais recente nos seis anos anteriores ao diagnóstico do distúrbio cerebral? As pessoas com problemas intestinais tinham maior chance de desenvolver Parkinson? A resposta obtida para ambas as perguntas foi "sim", com base em dados de cinco anos. Especificamente, quatro condições intestinais — obstipação (dificuldade em regular a progressão das fezes ou a incapacidade total em evacuar), dificuldade em engolir, gastroparesia (uma condição que retarda o movimento dos alimentos para o intestino delgado) e intestino irritável — foram associadas a um maior risco de Parkinson. A remoção do apêndice, no entanto, parecia ser protetora, algo que outros cientistas já reconheceram antes. Nem todas as pessoas com problemas gastrointestinais desenvolverão Parkinson, enfatizam os pesquisadores, mas parece haver algum tipo de ligação entre a saúde intestinal e a saúde cerebral. O trato gastrointestinal possui milhões de células nervosas que se comunicam com o cérebro. Especialistas dizem que é possível que terapias que ajudem um sistema também ajudem o outro, ou que uma doença em uma região afete a outra. A britânica Clare Bale, que sofre de Parkinson, disse que os resultados "adicionam mais peso" à hipótese de que problemas intestinais podem ser um sinal precoce da doença. A professora Kim Barrett, da Universidade da Califórnia, Davis, nos Estados Unidos, disse que são necessários mais estudos para entender se a ligação pode ser usada pelos médicos para ajudar os pacientes. "Continua a ser possível que tanto as condições gastrointestinais como a doença de Parkinson estejam independentemente ligadas a um terceiro fator de risco ainda desconhecido — o estudo não atribui causalidade". "No entanto, as conclusões podem ter relevância clínica e certamente devem levar a estudos adicionais". Tim Bartels, do Instituto de Pesquisa de Demência do Reino Unido da University College London, na Inglaterra, afirmou que a pesquisa estabelece firmemente que o intestino pode ser um "alvo principal" para a busca de biomarcadores do Parkinson — mudanças físicas mensuráveis que podem atuar como um sinal de alerta precoce. Segundo ele, a possibilidade de prever o Parkinson mais cedo seria "altamente valiosa para tratamento e direcionamento de medicamentos mais precoces e, portanto, mais eficazes".
2023-08-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnde4160982o
sociedade
Como cara ou coroa pode levar a decisões melhores
Se você é como eu, pode sentir uma leve paralisia ao decidir o que escolher em um cardápio extenso. Sou tão indeciso que o garçom muitas vezes tem que voltar alguns minutos depois de anotar o pedido de todos para finalmente ouvir o meu. Muitas das escolhas parecem boas, mas, ao tentar garantir que tomo a melhor decisão, corro o risco de ficar sem nada. Mesmo antes de a internet nos oferecer opções de consumo sem precedentes, a escolha era vista como a força motriz do capitalismo. A capacidade dos consumidores de escolher entre fornecedores concorrentes de produtos e serviços determina quais empresas prosperam e quais quebram - essa é a crença. O ambiente competitivo gerado pela livre escolha dos consumidores supostamente impulsiona a inovação e a eficiência, proporcionando uma melhor experiência geral do consumidor. Fim do Matérias recomendadas No entanto, teóricos mais recentes sugeriram que o aumento da escolha pode induzir uma série de ansiedades nos consumidores - como o medo de perder uma oportunidade melhor, a ausência em uma atividade (pensando "por que estou fazendo isso quando eu poderia estar fazendo outra coisa?") e o arrependimento por ter escolhido mal. As expectativas elevadas apresentadas por uma ampla gama de escolhas podem levar alguns consumidores a sentir que nenhuma experiência é verdadeiramente satisfatória e outros, a experimentar uma paralisia. Que mais opções proporcionam uma pior experiência de consumo e tornam os clientes menos propensos a concluir uma compra é uma hipótese conhecida como "paradoxo da escolha". De fato, experimentos sobre o comportamento do consumidor sugeriram que o excesso de escolha pode deixar os consumidores mal informados e indecisos ao tomar uma decisão de compra. A ideia, particularmente em questões subjetivas, de que existe uma solução perfeita para um problema é conhecida como "falácia do Nirvana". Na realidade, pode não haver solução que corresponda às nossas expectativas. Quando nos afastamos um pouco da decisão que estamos tentando tomar, geralmente fica claro que, embora possa haver uma melhor opção, também haverá várias boas opções com as quais ficaríamos satisfeitos. A escolha de uma alternativa que pode não ser a melhor, mas pelo menos é boa o suficiente, foi batizada de "satisciente" - uma junção de "satisfatória" e "suficiente". Como diz o provérbio italiano que o escritor e filósofo francês Voltaire registrou em seu dicionário filosófico: "Il meglio è l'inimico del bene" - "o ótimo é inimigo do bom". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Felizmente, como detalho no meu novo livro – How to Expect the Unexpected (Como esperar o inesperado, em tradução livre) – a aleatoriedade nos oferece uma forma simples de superar a paralisia induzida pela escolha. Quando confrontado com uma infinidade de escolhas, muitas das quais você ficaria feliz em aceitar, jogar uma moeda ou deixar que os dados decidam por você pode ser a melhor opção. Às vezes, fazer uma boa escolha rápida é melhor do que fazer uma escolha lenta e perfeita, ou mesmo ficar paralisado em total indecisão. Ao lutar para escolher entre múltiplas opções, ter uma decisão aparentemente tomada por um agente externo de randomização pode ajudá-lo a se concentrar em sua verdadeira preferência. Essa estratégia "randomizada" pode nos ajudar a vislumbrar as consequências daquilo que era, até então, uma decisão aparentemente abstrata. Pesquisas recentes realizadas por uma equipe da Universidade de Basileia, na Suíça, demonstraram que uma decisão ditada aleatoriamente pode nos ajudar a lidar com a sobrecarga de informação que muitas vezes leva à paralisia. Depois de ler algumas informações básicas, três grupos de participantes foram convidados a tomar uma decisão preliminar sobre demitir ou recontratar um hipotético gerente de loja. Depois de formar uma opinião inicial, dois dos três grupos foram informados de que, como essas decisões podem ser difíceis de tomar, eles seriam auxiliados por um único lançamento de moeda gerado por computador. O lado para o qual a moeda caiu sugeriria se a pessoa deveria manter sua decisão original (grupo 1) ou alterá-la (grupo 2). Os participantes foram informados de que poderiam ignorar o resultado do cara ou coroa se quisessem. Todos os três grupos foram então questionados se gostariam de mais informações (um indicador de paralisia analítica) ou se ficariam felizes em tomar sua decisão com base no que já sabiam. Depois que aqueles que pediram mais informações as receberam, todos os participantes foram questionados sobre sua decisão final. Os participantes que foram submetidos a um lançamento de moeda tiveram três vezes mais chances de ficarem satisfeitos com sua decisão original – não pedir mais informações – do que aqueles que não foram expostos ao procedimento. A moeda os ajudou a se decidir sem a necessidade de pesquisas mais demoradas. Curiosamente, os pedidos por mais informações foram menos frequentes quando a moeda sugeria o oposto da decisão original do participante do que quando confirmava os primeiros pensamentos do participante. Ser forçado a contemplar o ponto de vista oposto fez com que os participantes tivessem mais certeza de sua escolha original do que quando a moeda simplesmente reforçava sua primeira decisão. Embora muitos de nós nos sintamos desconfortáveis em permitir que uma moeda dite a direção da carreira de outra pessoa, é importante lembrar que você não é obrigado a seguir cegamente a decisão dela. A escolha sugerida é projetada para colocá-lo na posição de ter que contemplar seriamente a aceitação dessa opção, mas não forçá-lo a decidir de uma maneira ou de outra. Para aqueles de nós com dificuldade para tomar decisões, no entanto, é reconfortante saber que, ao lidar com uma escolha, podemos pegar uma moeda e permitir que ela nos ajude. Mesmo que decidamos rejeitar a opção da moeda, ser forçados a ver ambos os lados do argumento pode muitas vezes dar início ou acelerar o nosso processo de tomada de decisão.
2023-08-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72j5z17ereo
sociedade
'Meu pai resgatou obra-prima roubada de Da Vinci e acabou preso'
A Virgem do Fuso, de Leonardo da Vinci (1452-1519), foi a pintura mais valiosa já roubada na Grã-Bretanha. Vinte anos depois, Olivia Graham conta a história de como seu pai, ao recuperar a pintura, acabou preso e foi a julgamento acusado de um crime. Tinha 18 anos quando meu pai me puxou para um canto do bar de que era dono em Liverpool (norte da Inglaterra). Ele me disse que algo incrível iria acontecer — algo inacreditável — que um dia eu poderia contar aos meus netos. Na época, fiquei tão surpresa que não quis lhe perguntar mais nada a respeito daquilo. Fim do Matérias recomendadas Mas agora fiz um podcast para a BBC, em que conto a história de como meu pai resgatou uma obra-prima roubada do século 16. Essa história começa na manhã de 27 de agosto de 2003, quando um velho VW Golf GTI passou pela zona rural do condado de Dumfriesshire, na Inglaterra, e parou em frente ao Castelo de Drumlanrig, a casa do Duque de Buccleuch — um dos homens mais ricos da Grã-Bretanha. Dois homens saíram do carro e entraram no castelo, onde pegaram de surpresa a guia turística Alison Russell. Um deles colocou a mão na boca dela e disse para ela "deitar no chão". Então, arrancaram a obra-prima de Da Vinci da parede com um machado e fugiram. Toda a operação durou apenas alguns minutos. No dia seguinte ao assalto, foi realizada uma entrevista a jornalistas. A Virgem do Fuso era uma pintura de 500 anos de um dos artistas mais famosos do mundo e valia na ocasião 40 milhões de libras (cerca de R$ 250 milhões, em valores atuais). O roubo foi notícia no mundo todo. Mark Dalrymple, avaliador que trabalhava para a empresa de seguro, anunciou uma recompensa "substancial" por informações que levassem à sua devolução. Uma grande operação policial foi iniciada, mas os criminosos não foram encontrados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quatro anos depois, ninguém sabia o paradeiro da pintura. Nessa altura, ela estava com um grupo em Liverpool que a adquiriu como garantia num negócio imobiliário fracassado. Eles queriam recuperar o dinheiro que haviam perdido — 700 mil libras. Mas como? É aí que meu pai entra nessa história. Meu pai, Robbie Graham, era um homem de muitas virtudes. Ele não tinha formação universitária e não acho que tenha deixado a escola com qualquer qualificação, mas isso não o impediu de ser bem-sucedido em diferentes tipos de trabalho. Meu pai tinha um faro para negócios e via tudo como uma oportunidade. Algumas de suas ideias não davam certo, mas outras prosperaram, como sua agência de detetive particular e seu site reunindo itens roubados com seus proprietários. Era um negócio pequeno chamado Stolen Stuff Reunited, mas que atraiu a atenção de alguns clientes importantes. Foi assim que, em junho de 2007, dois homens, conhecidos como J e Frank, procuraram meu pai e seu sócio Jackie Doyle com uma proposta. Eles poderiam devolver a Virgem do Fuso ao seu dono e reivindicar a recompensa? Meu pai e Jackie estavam interessados, mas apenas se pudessem fazê-lo legalmente — então, entraram em contato com um advogado, Marshall Ronald. Marshall contatou David Boyce, advogado do respeitado escritório de advocacia escocês HBJ Gateley Wareing. David e seu sócio da HBJ, Callum Jones, aconselharam Marshall a entrar em contato com o avaliador Mark Dalrymple. Então, Marshall enviou-lhe um e-mail. "Imediatamente, pensei que Ronald estava me enganando", disse-me Mark. Essa reação acabou por ter um grande impacto sobre os próximos capítulos dessa história, mas isso só se tornou aparente mais tarde. Marshall não lidou diretamente com Mark Dalrymple. Em vez disso, ele foi encaminhado a uma terceira pessoa que seria representante do duque de Buccleuch. Uma recompensa de 2 milhões de libras (cerca de R$ 12 milhões) foi acertada rapidamente. O valor seria pago em uma conta caução — mantida por terceiros — antes de a pintura ser devolvida. Marshall não teria acesso ao dinheiro até que a pintura fosse devolvida, mas poderia ver o valor na conta à sua espera. O grupo que detinha a obra de arte concordou em entregá-la em troca de 700 mil libras do total da recompensa. Um plano foi arquitetado. Robbie recolheria a obra de arte, levaria-a aos escritórios da HBJ Gately Wareing em Glasgow para a devolução e reivindicaria o dinheiro. Mas, então, o duque mudou de ideia. Aparentemente, nenhum dinheiro sairia de sua conta até que o quadro fosse devolvido. Os criminosos que estavam com a pintura não gostaram nada disso. Isso abalou a confiança deles. Eles exigiram um pagamento adiantado. Mas onde Robbie e Marshall iriam conseguir 700 mil libras em dinheiro? "Foi a semana mais estressante da minha vida", lembra Marshall. As negociações levaram os dois homens a concordar com um pagamento de 350 mil libras em dinheiro, mais um cheque 150 mil libras. Marshall quase conseguiu colocar as mãos nessa quantia de dinheiro. Então, o processo de devolução teve início. Hale Village fica a poucos quilômetros a sudeste do centro da cidade de Liverpool. Foi aqui, na quarta-feira, 3 de outubro de 2007, que Robbie parou seu carro no estacionamento do pub Childe of Hale com o dinheiro e o cheque bancário. Foi J quem apareceu para pegar o dinheiro, mas desapareceu sem entregar o quadro. Quando ele voltou — quatro horas depois — Jackie se juntou ao meu pai. J veio até o carro carregando algo coberto por um cobertor branco. Só posso imaginar o que passou pela cabeça de Robbie e Jackie quando pegaram o pacote. Sei que eles o desembrulharam em um canto e deram uma espiada. Então, Robbie ligou para Marshall. "A Virgem está voltando para casa", disse ele. Às 11h05 do dia seguinte, Robbie, Jackie e Marshall se encontraram do lado de fora dos escritórios da HBJ Gateley Wareing — esperando serem tratados como heróis. Mas não foi isso que aconteceu. Mark Dalrymple me disse: "Sabia que a polícia de Glasgow e Dumfries estava lá e havia cercado os escritórios". Este tinha sido o plano o tempo todo: pegar a pintura de volta e efetuar prisões. A recompensa não era real, apenas parte de uma operação policial. Lembro-me de como descobri tudo. Minha irmã me pegou na estação de trem de Ormskirk e falou tudo de uma vez. Ela disse: "Papai foi preso, a polícia entrou lá em casa e estamos na primeira página do jornal local". Dois anos e meio depois, Marshall, Robbie, Jackie, Callum Jones e David Boyce foram julgados. A acusação era conspiração para extorquir. A defesa baseou-se em provar que o grupo tinha sido liderado pelos policiais. Não foi um caso simples. Em 20 de abril de 2010, Callum e David foram inocentados. A acusação contra Robbie, Jackie e Marshall não foi comprovada. Meu pai me telefonou pouco depois do veredicto. Não me lembro exatamente o que ele disse. Era algo como: "Fomos inocentados e daqui a alguns dias estarei em casa. Te amo". O duque de Buccleuch nunca viu sua pintura ser devolvida. Ele morreu em 4 de setembro de 2007 — um mês antes de a Virgem do Fuso ser entregue aos escritórios dos advogados. Ninguém foi preso pelo roubo da pintura e nenhuma recompensa foi paga por sua devolução. O quadro está atualmente na Galeria Nacional da Escócia, em Edimburgo. Meu pai tentou seguir em frente após o julgamento. Passou a dedicar mais tempo à família e a seu próximo grande plano — ele sempre tinha uma ideia mirabolante. Mas também desenvolveu um gosto pela arte, e lembro-me dele nos arrastando por galerias nas férias em família. Ele morreu em 19 de dezembro de 2013, com apenas 61 anos. O funeral do meu pai, assim como a vida dele, foi uma grande festa cheia de pessoas maravilhosas, muitas histórias, amor e risadas. Ele era um homem para quem cada dia tinha infinitas possibilidades. Sinto falta dele o tempo todo. Meu amor por ele é eterno. Seguindo seu último desejo, o caixão do meu pai trazia uma foto dele — uma que ele realmente amava. Nela, ele está abraçado a uma pintura — a Virgem do Fuso, de Leonardo da Vinci.
2023-08-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnde4ykewk6o
sociedade
Soltura automática? O que pode acontecer com presos se STF liberar porte de drogas
O Supremo Tribunal Federal (STF) está próximo de aprovar a descriminalização do porte de drogas para consumo. Cinco ministros se posicionaram a favor da medida, sendo necessário mais um voto para que ela entre em vigor. A Corte também caminha para fixar parâmetros objetivos de quantidade de maconha para diferenciar quem seria usuário ou traficante, o que, na visão de defensores da medida, pode reduzir o que seriam prisões equivocadas por tráfico no país. Por enquanto, estão a favor da descriminalização do porte para consumo Gilmar Mendes (relator da ação), Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Alexandre de Moraes e a presidente da Corte, Rosa Weber. Eles argumentaram que o uso da maconha é uma questão de liberdade individual e deve ser combatido com campanhas de informação e atendimento focado na saúde dos usuários. “A criminalização da conduta de portar drogas para consumo pessoal é desproporcional”, argumentou Weber. Fim do Matérias recomendadas Votou contra a descriminalização o ministro Cristiano Zanin, recém-nomeado para a Corte pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva, o que gerou revolta nas redes sociais de progressistas que apoiaram a eleição do petista. “A descriminação, ainda que parcial das drogas, poderá contribuir com o agravamento deste problema de saúde", argumentou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O julgamento, iniciado em 2015, foi novamente suspenso nesta quinta-feira (24/8), após o ministro André Mendonça pedir vista (mais tempo para analisar o caso). Além dele, faltam votar Nunes marques, Luiz Fux, Dias Toffoli e Cármen Lúcia. A ação não trata da venda de drogas, que continuará ilegal qualquer que seja o resultado. O crime de porte para consumo já não é punido com pena de prisão no país desde 2006, com a sanção da atual Lei de Drogas. Caso a descriminalização seja aprovada no STF, a pessoa que portar entorpecentes para consumo próprio não poderá mais ser submetida a outras punições atualmente em vigor, como prestação de serviços à comunidade ou comparecimento a programa ou curso educativo, nem terá um registro na sua ficha criminal. Apesar disso, estudiosos do tema afirmam que esse julgamento pode ter o impacto de reduzir o número de pessoas presas no país, caso a decisão do STF permita libertar pessoas que estariam, ao seu ver, erroneamente encarceradas por tráfico de drogas. Para que isso ocorra, dizem, seria necessário que a Corte estabelecesse parâmetros objetivos para diferenciar qual a quantidade de drogas deve ser considerada voltada para consumo e qual deve ser enquadrada como tráfico. Defensores da medida, como a associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF) e integrantes da Procuradoria-Geral da República, afirmam que a falta de parâmetros objetivos para que policiais, promotores e juízes diferenciem o consumo da venda faz com que muitas pessoas detidas no país com pequenas quantidades de maconha ou cocaína, por exemplo, acabem presas pelo crime de tráfico. No entanto, há organizações que estão participando do processo que duvidam deste efeito porque discordam da avaliação de que pessoas estejam sendo presas por tráfico equivocadamente. Por enquanto, cinco ministros se manifestaram a favor da adoção desses parâmetros: Barroso, Moraes, Weber, Mendes e Zanin. A quantidade, porém, só será definida ao final do julgamento, caso haja maioria a favor da medida. Barroso e Weber, por exemplo, propuseram 100 gramas de maconha como um corte para diferenciar usuário e traficante. A quantidade segue parâmetros usados em outros países, como Espanha e Holanda. Já Moraes e Mendes sugeriram 60 gramas, enquanto Zanin defendeu apenas 25 gramas. Os ministros também discutem fixar uma quantidade máxima de pés de maconha para um usuário cultivar. Os ministros ressaltaram, porém, que eventuais parâmetros a serem adotados serviriam como uma referência básica, podendo o juiz considerar o indivíduo como usuário, mesmo que esteja com quantidade maior, ou ainda enquadrá-lo como traficante, mesmo que tenha quantidade menor, desde que outros elementos corroborem o crime de tráfico, como apreensão de armas ou balança para pesar drogas, por exemplo. Fachin, quando votou em 2015, foi contra a adoção de critérios pelo STF, pois considerou que seria função do Congresso definir essa quantidade. Mas ele ainda pode revisar seu voto, como fez Mendes, que também havia ficado contra a fixação de parâmetros no início do julgamento. Há mais de 180 mil pessoas presas hoje no país por tráfico de drogas. A quantidade de presos que seria eventualmente beneficiada por uma decisão neste julgamento dependerá de a maioria do STF concordar com a fixação de parâmetros que diferenciem consumo e tráfico e de quais seriam os parâmetros adotados. No entanto, nenhuma decisão do Supremo levaria a uma liberação automática de presos, explica a subprocuradora-geral da República Luiza Frischeisen à BBC News Brasil. Cada pessoa detida pelo crime de tráfico de drogas e potencialmente impactada pelo julgamento, ressalta, teria que apresentar um recurso à Justiça solicitando a revisão de sua pena. “Se o Supremo decidir que até determinada quantidade não é tráfico de drogas, o que vai acontecer é que, nos casos em que houver pequena quantidade (de droga apreendida), as defesas vão arguir que aquilo não seria crime. E isso vai ser analisado caso a caso. Então, será um impacto de médio prazo”, afirma. “O efeito mais imediato é que pessoas com pequenas quantidades não seriam mais presas e processadas, se não estiverem presentes outros elementos que denotem tráfico, como por exemplo, anotações de contabilidade (da venda de drogas), a balança (usada para pesar a droga vendida), o dinheiro, a arma, a munição”, acrescenta. Uma fixação de parâmetros nas condições propostas por Barroso é apoiada também pela associação que representa os peritos da Polícia Federal (APCF). A instituição não se posiciona a favor ou contra a descriminalização do porte para consumo, mas defende que, independentemente do que for decidido nesse ponto, o Supremo estabeleça parâmetros para diferenciar o usuário do traficante. Segundo Davi Ory, advogado que representa a associação, a APCF avalia que “o principal fator para o aumento do encarceramento foi a adoção de critérios subjetivos demasiadamente amplos e que transferiram à estrutura do Poder Judiciário o ônus de definição de quem seria usuário e traficante tendo por base ‘as circunstâncias sociais e pessoais’, bem como o ‘local e condições em que se desenvolveu a ação’”. Isso, ressalta, estaria gerando prisões indevidas, principalmente, de pessoas negras e pobres. Já o advogado Cid Vieira, que representa a Federação Amor Exigente no julgamento do STF, questiona o impacto do julgamento na redução dos presos. A organização, que atua como apoio e orientação aos familiares de dependentes químicos, foi uma das instituições aceitas pelo Supremo para atuar no julgamento como amicus curiae (colaborador da Justiça que detém algum interesse social no caso mas não está vinculado diretamente ao resultado). “Eu não tenho notícia que dependente químico esteja preso. O artigo 28 da atual legislação de drogas não prevê a prisão daqueles que sejam surpreendidos com posse de droga para consumo pessoal. É uma colocação que não existe. Não é sob esse aspecto que as prisões vão estar mais lotadas ou não”, afirmou Vieira, que conversou em maio com a BBC News Brasil. Estudos indicam, no entanto, que a atual Lei de Drogas, sancionada em 2006 por Lula, contribuiu para o aumento do número de pessoas presas por crimes relacionados ao tráfico de drogas. Essa lei acabou com a pena de prisão para usuários e aumentou a punição para traficantes. A expectativa era que isso reduziria o número de prisões, mas o efeito foi o oposto, afirma o advogado Pierpaolo Bottini, que era secretário de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça naquela época. “A impressão que se tinha é que isso ia desencarcerar, porque as pessoas que estavam presas por uso iam sair (da prisão). Mas acabou aumentando o encarceramento porque justamente as autoridades policiais acabaram jogando tudo para o tráfico, então acabou tendo efeito absolutamente inverso”, disse em entrevista à BBC News Brasil em maio. Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, órgão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, quase 28% da população carcerária no país está presa por crimes previstos na Lei de Drogas. No caso das prisões estaduais, por exemplo, onde havia um total de 659.351 pessoas detidas provisoriamente ou condenadas no primeiro semestres de 2022 (dado mais recente), 182.958 estavam presas por esse tipo de delito, 27,75% do total. Um estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que analisou uma amostra dos processos julgados na primeira instância judicial de todo o país no primeiro semestre de 2019, estimou que 58,7% dos réus que respondiam por tráfico de maconha portavam até 150 gramas. E apenas 11,1% levavam mais de dois quilos da droga. Uma análise semelhante dos réus em processos por tráfico de cocaína identificou que 62,3% dos processos se referem a 100 gramas ou menos, enquanto 6,8% dos casos tratavam de apreensões de mais de um quilo. Esse mesmo estudo estimou quantas pessoas condenadas por tráfico de maconha ou cocaína poderiam ter sua pena revista caso fossem fixadas quantidades máximas de porte para consumo dessas drogas. Foram analisados processos de 5.121 réus por tráfico de drogas julgados na primeira instância judicial no primeiro semestre de 2019, uma amostra representativa do total de pessoas presas por esse crime no país. A conclusão do estudo do Ipea foi que se o parâmetro proposto por Barroso (25 gramas de maconha) fosse adotado, por exemplo, 27% dos condenados por tráfico de maconha poderiam ter sua pena revista. Se fosse adotada uma quantidade de 40 gramas de limite para consumo, 33% dos condenados poderiam ser impactados. Por outro lado, se o parâmetro fosse fixado em 100 gramas, quase metade (48% dos condenados) poderia ter a revisão de pena. Os cenários testados pelo Ipea levaram em conta três opções de parâmetros propostos em uma nota técnica do Instituto Igarapé, de 2015, que analisou pesquisas sobre uso de drogas no Brasil e experiências internacionais de fixação de quantidades para diferenciar tráfico e consumo. No caso da cocaína, 31% dos condenados por tráficos poderiam ter sua pena revista caso o STF fixasse um parâmetro de 10 gramas para consumo. Se a quantidade limite fosse de 15 gramas, o percentual subiria para 37%. “Os cenários acima constituem um exercício interpretativo para projetar o alcance de referidos parâmetros exclusivamente aplicados à quantidade de drogas, mas somente a análise dos casos concretos permitiria a reclassificação da conduta como consumo pessoal”, ressalta o estudo. As conclusões desse estudo, no entanto, não permitem calcular o potencial de presos que poderiam ser soltos caso o STF adote parâmetros para diferenciar tráfico e consumo, pois nem todos os réus processados por tráfico de drogas são condenados a regime fechado ou semiaberto, explicou a BBC News Brasil a coordenadora da pesquisa, Milena Karla Soares. “Estamos fazendo um novo estudo para analisar especificamente qual seria o impacto no sistema prisional”, disse. Soares ressalta que um elemento que dificulta essas análises é a falta de padronização do registro das quantidades apreendidas nos processos criminais. Para identificar as quantidades apreendida com cada réu, a equipe do Ipea pesquisou diversos documentos processuais, como laudos periciais, denúncias do Ministério Pública e as sentenças dos juízes. Foi selecionada, então, “a melhor informação disponível” nesses vários documentos, em cada caso, para realizar o estudo. Por isso, uma das recomendações da pesquisa é “o estabelecimento de um protocolo nacional para padronização das informações de natureza e de quantidade de drogas nos processos criminais”. O STF está analisando um Recurso Extraordinário com repercussão geral (cuja decisão valerá para todos os casos semelhantes) que questiona se o artigo 28 da Lei de Drogas é inconstitucional. Esse artigo prevê que é crime adquirir, guardar ou transportar droga para consumo pessoal, assim como cultivar plantas com essa finalidade. Não há previsão de prisão para esse crime. As penas previstas nesse caso são “advertência sobre os efeitos das drogas”, “prestação de serviços à comunidade” e/ou “medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo”. O recurso foi movido pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu pego com 3 gramas de maconha na prisão. Pela posse da droga, ele foi condenado a prestar serviços comunitários. A Defensoria argumenta que a lei fere o direito à liberdade, à privacidade, e à autolesão (direito do indivíduo de tomar atitudes que prejudiquem apenas a si mesmo), garantidos na Constituição Federal. “Por ser praticamente inerente à natureza humana, não nos parece o mais sensato buscar a solução ou o gerenciamento de danos do consumo de drogas através do direito penal, por meio de proibição e repressão. Experiências proibitivas trágicas já aconteceram no passado, como o caso da Lei Seca norte-americana e mesmo a atual política de guerra às drogas, que criou mais mazelas e desigualdades do que efetivamente protegeu o mundo de substâncias entorpecentes”, argumentou o defensor Rafael Muneratt, ao sustentar no início do julgamento. Já o então chefe do Ministério Público em São Paulo, o procurador-geral Márcio Fernando Elias Rosa, se manifestou contra a descriminalização. "O tráfico no Brasil apresenta índices crescentes. O Estado não se mostra capaz nem sequer do controle efetivo da circulação das chamadas drogas lícitas. Não há estruturada rede de atenção à saúde ou programa efetivo de reinserção social", sustentou.
2023-08-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnlyzz99xjxo
sociedade
Por que o 'score' de crédito tem tanto impacto na vida dos americanos
Nos EUA, os três dígitos do "score" de crédito ("credit score") podem fazer a diferença não somente na situação financeira de uma pessoa, mas até na de seus descendentes. O score de crédito, também chamado de pontuação de crédito, é um indicador que vai de 300 a 850, e serve para avaliar o grau de credibilidade financeira de um indivíduo. O número determina quem vai conseguir um empréstimo, um cartão de crédito ou uma hipoteca, além de afetar valores como o do seguro do carro ou do depósito exigido ao alugar um apartamento. Caso a pessoa consiga a hipoteca ou o empréstimo que pediu, o score de crédito ainda vai definir o valor dos juros que ela irá pagar. E a diferença pode ser gigantesca. Fim do Matérias recomendadas No atual cenário econômico dos EUA, as taxas de juros de um empréstimo podem variar entre pouco mais de 5% a mais de 35%. E, muitas vezes, o que determina o valor é justamente o score de crédito de quem pede: quanto mais baixo, maior a taxa. E vice-versa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "O score de crédito tem um impacto nada menos que astronômico sobre a vida nos Estados Unidos", diz Nicholas Schmidt, diretor de Tecnologia e Inovação da SolasAI, empresa que detecta e mitiga possíveis padrões discriminatórios nos algoritmos que as instituições financeiras usam para avaliar pedidos de crédito. "Esse indicador não afeta apenas a aceitação de um pedido de empréstimo, mas muito mais, como o fato de poder ou não alugar ou comprar moradia. A falta de um bom score de crédito pode ter um efeito catastrófico em muitas áreas da vida", acrescenta, em entrevista à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. David Silberman, que trabalhou por uma década no Consumer Financial Protection Bureau (CFPB), explica à BBC News Mundo que, do ponto de vista do proprietário, faz sentido considerar esse indicador de credibilidade ao decidir a quem alugar seu imóvel, e quanto pedir como caução. Já com relação aos seguros de automóvel, a questão é mais complexa. "Por razões que não entendemos muito bem, há uma forte correlação entre o score de crédito e a incidência de comunicações de acidentes de trânsito", explica Silberman, que atualmente é conselheiro sênior do Center for Responsible Lending, uma ONG focada em educação financeira para a população. "Por outro lado, na falta de outros dados válidos que indiquem a probabilidade de alguém ser mau motorista, as seguradoras procuram avaliar dessa forma o risco da pessoa realmente acabar envolvida em um acidente que lhes custará dinheiro." O especialista garante que as diferenças entre um score de crédito alto ou baixo são claras. "Com um score de 500 é quase impossível conseguir um empréstimo, a menos que os juros sejam extremamente altos. Isso significa que vai ser muito difícil comprar uma casa, ou até um carro, do qual a pessoa talvez precise para trabalhar", diz ele. O score de crédito se estabeleceu nos Estados Unidos durante a 2ª Guerra Mundial, quando nos bancos não havia suficiente pessoal qualificado trabalhando para avaliar a credibilidade dos requerentes de crédito. Foi criado, então, um tipo de cartão de pontos, facilitando aos funcionários não especializados, que seguiam instruções rigorosas, a tarefa de decidir a aprovação dos pedidos. Em meados da década de 1950, a Fair Isaac Company (FICO) transformou esse método em um instrumento estatístico padrão. Atualmente existem vários desses indicadores, mas o da FICO é de longe o mais usado nos EUA. Ele é calculado com base em diferentes fatores, como o histórico de pagamentos, o saldo devedor, a duração do histórico financeiro, os pedidos de crédito recentes e os tipos de crédito que a pessoa possui (por exemplo, podem ser apenas cartões, ou também empréstimos parcelados como hipotecas, carro etc.). Cada um desses fatores tem um peso diferente no cálculo final, mas o histórico de pagamentos é o principal. A adoção desse tipo de indicador de crédito foi considerada um progresso, pois os pedidos passaram a ser avaliados de acordo com parâmetros objetivos, e não através das características demográficas do solicitante, como anteriormente. "A alternativa era deixar que se julgasse de forma subjetiva quem poderia receber um empréstimo e quanto deveria ser cobrado de juros. E há todas as razões para pensar que esses julgamentos podem ser altamente tendenciosos. O score de crédito, pelo menos, é uma forma objetiva de medir riscos, além de ser eficiente porque permite tomar decisões rápidas, já que o acesso às informações é instantâneo", diz Silberman. Mas o método também tem desvantagens. "A principal desvantagem é que perpetua discriminações históricas, como o racismo e a desigualdade social", alerta o especialista. Ele explica que, por exemplo, os pais com maiores recursos financeiros podem ajudar seus filhos a aprovarem seus primeiros pedidos de crédito, começando assim a construir um bom score de crédito, além de poder ajudá-los se estiverem em dificuldades, evitando que isso se reflita no indicador. "Quem vem de uma situação socioeconômica diferente vai começar a construir seu histórico de crédito mais tarde, terá que trabalhar mais e acabará com uma pontuação mais baixa. Isto cria uma grande disparidade entre brancos e negros, e entre brancos e latinos, perpetuando assim as desigualdades também no futuro", afirma. Um estudo realizado em 2022 constatou que quem teve seu primeiro cartão de crédito entre 18 e 20 anos, com os pais como co-signatários, aos 30 anos tinha um score de crédito de, em média, 29 pontos mais alto que o dos jovens que obtiveram os cartões sozinhos e 55 pontos mais alto que o dos que construíram seus históricos por outros meios. Na escala FICO (300 a 850), uma pontuação entre 670 e 739 é considerada "boa". Dados da empresa de pagamentos Shift Processing, de 2021, indicam que o credit score médio da população branca nos Estados Unidos é de 734, enquanto a dos afro-americanos é de 677. A média dos hispânicos está em 701. Em geral, esse sistema tende a oferecer melhores condições de crédito àqueles com pontuações mais altas. Além disso, ao atribuir uma pontuação, o sistema não considera apenas os dados, mas também o histórico de comportamento financeiro das pessoas com dados semelhantes. Nicholas Schmidt explica que o score de crédito impacta consideravelmente os imigrantes. "Uma das características do score de crédito é que, para atribuir uma pontuação a alguém, o sistema precisa ter dados suficientes sobre a pessoa. Então, por exemplo, se alguém migrou recentemente para os EUA, ainda não há informações sobre o indivíduo e o algoritmo não sabe nada sobre ele". "A pessoa pode ter pago suas dívidas em dia a vida inteira, mas não há dados sobre isso neste país, então ela não pode ser pontuada e o sistema a interpreta como alguém sem histórico de crédito. Isso pode ser muito injusto", afirma. Schmidt explica que, com o tempo, é possível corrigir essa falha à medida que a pessoa constrói seu histórico de crédito, obtém empréstimos, cartões de crédito e paga suas contas. "Então, o sistema pode até oferecer uma pontuação mais justa, embora, já que trabalha com dados históricos, acabe inevitavelmente absorvendo alguns dos vieses e discriminações históricas que existem nos Estados Unidos", diz ele. "E isso não tem solução fácil", conclui.
2023-08-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pdlyyr740o
sociedade
Como uma foto mudou nossa visão dos chimpanzés
No dia 14 de julho de 1960, chegava de barco à costa do lago Tanganica - na porção que hoje pertence à Tanzânia - uma jovem de 26 anos. Seu nome era Jane Goodall. Ali, onde agora fica o Parque Nacional Gombe Stream, Goodall começou sua revolucionária pesquisa científica sobre o comportamento dos chimpanzés. Antes de chegar à África, Jane Goodall trabalhou como secretária e não tinha formação em ciências. Ela conta que observava os animais selvagens com a mente aberta e sem preconceitos. E contrariou as convenções e práticas da época, dando nomes aos chimpanzés, em vez de números. Foi uma imagem de Goodall registrada naquela época que capturou sua abordagem inovadora, desafiou as normas científicas e passou a ser uma das fotografias mais conhecidas do mundo. Fim do Matérias recomendadas Seu marido, o fotógrafo holandês Hugo van Lawick (1937-2002), viajou para Gombe em 1962. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Flint foi o primeiro chimpanzé a nascer em Gombe após a chegada de Goodall. Na foto, ela aparece agachada, esticando seu braço direito em direção ao filhote, que também estende seu braço esquerdo em direção a ela. Jane Goodall relembra à BBC que aquela era uma época muito anterior à fotografia digital. Por isso, ela precisava esperar algum tempo para poder ver as imagens impressas. "Levou dois meses ou mais até surgir uma forma segura de enviar os filmes revelados para a [National] Geographic para que fossem processados e, depois, havia mais uma espera enquanto eles enviavam as impressões de volta para Kigoma [a cidade mais próxima]", ela conta. "Quando eu a vi, não imaginei que se tornaria simbólica, mas ela realmente me fez pensar na pintura de Michelangelo, com Deus esticando o braço para o Homem", segundo Goodall. Outra foto de Goodall estudando os chimpanzés de Gombe ilustrou a capa da revista e foi publicada como parte de uma série de fotografias de van Lawick intitulada New Discoveries Among Africa’s Chimpanzees ("Novas descobertas entre os chimpanzés da África", em tradução livre). Naquele mesmo ano, a National Geographic lançou o documentário Miss Goodall and the Wild Chimpanzees ("A Srta. Goodall e os chimpanzés selvagens", em tradução livre), o primeiro de muitos filmes divulgando as pesquisas de Jane Goodall. A foto com Flint e o documentário de van Lawick People of the Forest: The Chimps of Gombe ("Pessoas da floresta: os chimpanzés de Gombe", em tradução livre) "forçaram a ciência a abandonar a ideia de que os seres humanos seriam os únicos seres sencientes, com personalidade, mente e emoções", afirma Goodall. Esta noção era ensinada quando ela estudou na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, em 1962. "Por isso, [esta imagem] abriu toda uma nova forma de compreensão sobre quem são os animais e mostrou que nós, seres humanos, somos uma parte do reino animal e não separados dele." O diretor de ciências da organização ambientalista WWF, Mark Wright, afirma que Jane Goodall foi "uma verdadeira desbravadora" em muitos sentidos. Mas, para ele, esta fotografia ajudou as pessoas a reconhecer a importância da perspectiva feminina na comunidade científica. "Ela era uma jovem afirmando que as mulheres eram igualmente aptas a fazer pesquisas de campo verdadeiramente de primeira categoria", destaca Wright. "Até então, era um ambiente bastante dominado pelos homens. Depois, houve uma sucessão de mulheres altamente qualificadas fazendo este tipo de trabalho." O ex-presidente da National Geographic Society, Gilbert M. Grosvenor, também defende que "o caminho desbravado por Goodall para outras mulheres primatologistas, sem dúvida, é o seu maior legado". "Na verdade, as mulheres agora dominam os estudos de longo prazo sobre o comportamento dos primatas em todo o mundo." Quando a foto simbólica foi tirada em 1964, Goodall estava imersa na vida em Gombe. Ela começava a entender os chimpanzés que vinha estudando e acumulava lentamente suas observações sobre o comportamento dos primatas. Esta experiência presencial sempre foi sua prioridade, segundo Wright. "Esta foto nos relembrou que, em grande parte deste trabalho, não há alternativa a não ser estar no campo." "Muitos dos estudos eram feitos em zoológicos ou parques de animais, [mas] você precisa estar no campo para realmente entender o comportamento natural", prossegue ele. "E você precisa fazer isso em longo prazo, não pode apenas aparecer por duas semanas. Ela reforçou este ponto." Goodall viajou para o leste africano sem nenhuma qualificação formal e viveu em Gombe por mais de duas décadas, dedicando sua vida ao estudo de gerações de chimpanzés. Para Wright, a foto transmite uma mensagem poderosa para as pessoas que não estudaram ciências, mas, mesmo assim, querem participar de pesquisas científicas: a de que, às vezes, uma mente aberta é o melhor começo. "Não era alguém usando jaleco, ela pôde ser empática", afirma Wright. "E, como ela não tinha a sobrecarga do grande aprendizado formal, ela conseguiu chegar como livre pensadora e interpretar [o que via]." Disposta a abrir o mundo das pesquisas científicas para todos, Jane Goodall inspirou muitas pessoas a estudar primatologia no campo. Ao lado do seu imenso acervo de documentários, livros e artigos para a National Geographic, as fotografias de Jane Goodall com Flint destacaram a importância da conservação de animais individuais. "Antes, tudo era sobre salvar as espécies – os indivíduos não tinham importância", ela conta. "O pensamento científico mudou." "Gombe é um exemplo do que se tornou um método padrão de estudo de campo dos primatas: pesquisas colaborativas, coletando informações sistemáticas sobre os indivíduos identificados, que são acompanhados ao longo de toda a sua vida", conclui ele. Atualmente, a foto deixa Jane Goodall com saudades. "Ela me lembra de uma época mágica, quando eu conhecia cada chimpanzé individualmente como os membros da minha família", ela conta. "Acompanhei o desenvolvimento de Flint desde que era um minúsculo bebê até se tornar um moleque mimado, sempre apoiado pela sua irmã mais velha ou por um dos irmãos mais velhos, se outro jovem o machucasse acidentalmente (ou, às vezes, de propósito!). A imagem me faz pensar nos melhores dias da minha vida." A proximidade entre Goodall e Flint na fotografia também reflete a cultura da época, segundo Wright. Ele ressalta que os cientistas agora se mantêm à distância dos animais que estão observando. "Mas ela estava fazendo algo que realmente não havia sido feito antes. Tiro meu chapéu para ela. Seu trabalho foi absolutamente revolucionário." Para Wright, acima de tudo, a foto mostra o verdadeiro amor de Goodall pelo animal. "Existe um carinho e afeição pela espécie que ela está estudando. E há também um amor por Gombe – ela encontrou o seu lugar." Para Jane Goodall, sua simples conexão com Flint é o que torna esta imagem tão cativante. "Suspeito que foi o apelo daquele pequeno bebê estendendo os braços com tanta confiança – uma conexão real entre o humano e o chimpanzé. Pelo menos, é por isso que ela é tão poderosa para mim." * O Instituto Jane Goodall salienta que não é mais considerado apropriado o contato físico com animais selvagens e que "não recomenda o manuseio, a interação ou o contato próximo com chimpanzés ou outros animais selvagens".
2023-08-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyd55lqm8d4o
sociedade
‘Minha mãe foi cortesã e não me envergonho’
“Eu dançava no escuro. Costumava iluminar o salão com velas e me apresentar. No escuro, meu naseeb [destino] iria brilhar.” O medo assolava as pessoas. Sirenes de alerta e apagões que duravam dias tornaram-se parte da vida diária. O futuro parecia incerto. Mas Rekhabai não deixava o medo de morrer ditar o seu destino. Em vez de se fechar em casa como as outras cortesãs (mulheres artistas), ela vestia um belo sári, noite após noite, cantando e dançando para grupos de homens que vinham assistir às suas apresentações no kotha – uma palavra em idioma hindi que designa o local onde as dançarinas profissionais se apresentavam para os homens ou, até mesmo, um bordel. Sua vida havia lhe ensinado que as dificuldades, muitas vezes, eram o caminho da oportunidade – ou, pelo menos, da sobrevivência. A conturbada vida de Rekhabai agora é tema de um livro, intitulado The Last Courtesan – Writing My Mother’s Memoir (“A última cortesã – escrevendo as memórias da minha mãe”, em tradução livre). O autor é seu filho, Manish Gaekwad. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Minha mãe sempre quis contar sua história”, afirma Gaekwad. Ele não sente vergonha nem constrangimento por narrar a história como ela aconteceu. Depois de viver com a mãe no kotha até o final da adolescência, a vida de Rekhabai não tem segredos para ele. “Crescendo no kotha, a criança observa muito mais do que deveria”, ele conta. “Minha mãe sabia e não sentia necessidade de esconder nada.” Gaekwad escreveu seu livro com base nas memórias contadas por sua mãe. A obra oferece ao leitor uma visão surpreendentemente honesta da vida de uma cortesã indiana em meados do século 20. As cortesãs – também chamadas de tawaifs, na cultura popular indiana – já existiam desde cerca do século 2 a.C. no subcontinente indiano, segundo Madhur Gupta, dançarina de Odissi – dança típica do leste da Índia – e autora do livro Courting Hindustan: The Consuming Passions of Iconic Women Performers of India (“Cortejando o Hindustão: as paixões que consumiam emblemáticas mulheres artistas da Índia”, em tradução livre). “Elas eram mulheres artistas, cuja função era oferecer entretenimento e prazer à realeza e aos deuses”, segundo Gupta. Até o domínio britânico, as cortesãs indianas eram consideradas artistas respeitadas. Elas eram profundamente qualificadas nas suas artes, ricas e apadrinhadas por alguns dos homens mais poderosos da sua época. “Mas elas também enfrentavam a exploração nas mãos dos homens e da sociedade”, afirma Gupta. A cultura das cortesãs na Índia começou a declinar quando os britânicos criaram leis destinadas a restringir essa prática. Eles as consideravam dançarinas ou profissionais do sexo. O seu status caiu ainda mais depois da independência da Índia em 1947, quando muitas cortesãs foram forçadas e prostituir-se para sobreviver. A prática extinguiu-se por completo, mas as histórias de cortesãs famosas e suas vidas fascinantes foram perpetuadas em livros e filmes. Uma dessas histórias é exatamente a de Rekhabai. Ela nasceu em uma família pobre na cidade de Pune, no oeste da Índia. Era a sexta de 10 irmãos. Rekhabai não se lembra exatamente da data ou do ano, pois sua noção de tempo é nebulosa. Cansado de gerar cinco meninas, seu pai, embriagado, teria tentado afogá-la em um lago quando ela nasceu. Com nove ou 10 anos de idade, Rekhabai casou-se para liquidar uma dívida da família. Mais tarde, ela foi vendida pelos sogros para um kotha na região de Bowbazar, em Calcutá, no leste do país. Rekhabai ainda não era adolescente quando começou a aprender a cantar e dançar, para se tornar tawaif. Mas sua vida e seus ganhos eram controlados por uma mulher da família que também era cortesã no mesmo local. Durante a guerra sino-indiana de 1962, essa mulher saiu do kotha e Rekhabai teve a chance de assumir sua própria vida. Suas apresentações à luz de velas a ajudaram a ganhar independência e a fizeram perceber que ela podia ser sua própria provedora e protetora, se tivesse coragem suficiente. Este princípio a orientaria pelo resto da vida. Ao contrário das personagens famosas dos filmes de Bollywood, como Umrao Jaan e Pakeezah, Rekhabai nunca desejou ter um homem. Ela decidiu não se casar novamente, apesar de ter uma longa lista de protetores que a cortejavam. Seus pretendentes variavam de pequenos criminosos até ricos xeques e músicos renomados, mas casar-se significaria deixar sua vida de tawaif e deixar o kotha. Ironicamente, o kotha – o pequeno espaço no qual ela se apresentava, morava, criava seu filho e onde abrigou diversos familiares, em diferentes épocas – tornou-se seu símbolo de liberdade e poder. Ainda assim, o kotha também era um espaço repleto de conflitos e dificuldades, onde as circunstâncias destruíam a inocência, eliminavam a humanidade e evocavam emoções destrutivas, como raiva, medo e desespero. No seu livro, Gaekwad narra algumas lembranças profundamente perturbadoras contadas por sua mãe, como o caso em que um marginal sacou uma arma para atirar em Rekhabai por ter se recusado a se casar com ele. Em outro ponto, Rekhabai relembra o abuso que sofreu de outras cortesãs, com ciúmes do seu sucesso. Algumas tentaram intimidá-la contratando gângsteres para ficar à espreita no lado de fora do seu quarto, enquanto outras a chamaram de prostituta – o que não era o caso. Mas o kotha também formou a mulher determinada que ela acabaria se tornando. Foi ali que Rekhabai descobriu seu talento de dançarina e o poder que ela exercia sobre os homens que procuravam escapar das suas próprias inseguranças ou do tédio e da melancolia da vida. Foi no kotha que ela aprendeu a ler os homens pela forma como eles a tratavam e a aplacar os egos quando necessário – ou despedaçá-los, se eles ameaçassem destruir o seu próprio. “Eu dominava a linguagem do kotha. Eu tinha que falar quando era necessário”, ela conta. Mas, ao lado daquela artista charmosa, esperta e exuberante, o kotha também viu Rekhabai transformar-se em uma mãe coruja, intensamente protetora, que fazia tudo ao seu alcance para dar uma vida melhor para o seu filho. Quando Manish Gaekwad era bebê, ela o mantinha ao seu lado no kotha. Rekhabai relembra como ela corria para ver como estava a criança entre cada apresentação, se achasse que havia ouvido seu choro. Mais tarde, ela o mandou para um internato e comprou um apartamento, para que ele pudesse convidar seus amigos para passar a noite sem constrangimentos. Rekhabai se orgulhava pelo homem que seu filho se tornou, embora o ensino médio em inglês e a criação mais refinada do internato tenha feito com que ele ficasse diferente dela de muitas formas. Ela relembra uma história encantadora, quando seu filho a visitou nas férias da escola e pediu garfo e colher para comer. “Eu conhecia o garfo [kaanta, em hindi], mas nunca havia ouvido aquele nome em inglês antes [fork]... Precisei ir ao mercado comprar quando você explicou [o que era aquilo]”, conta ela no livro. No final dos anos 2000, a cultura das cortesãs havia desaparecido por completo. Rekhabai deixou o kotha para viver no seu apartamento em Calcutá. Ela morreu em Mumbai, no oeste da Índia, em fevereiro. Gaekwad conta que irá admirar sua mãe para sempre, com sua coragem, seu talento e seu gosto pela vida. “Espero que os homens leiam este livro.” Segundo ele, os homens indianos têm essas “noções sobre a figura materna, de que ela precisa ser um modelo de pureza”. “Mas espero que este livro ajude as pessoas a identificar a individualidade das suas mães e aceitar quem elas são como pessoas, independentemente do seu relacionamento conosco”, conclui Gaekwad.
2023-08-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clm18rrl29go
sociedade
Serial killer de bebês: quem é Lucy Letby, enfermeira condenada por mortes no Reino Unido
Em uma manhã de julho de 2018, a enfermeira Lucy Letby foi levada algemada de sua casa, no Reino Unido, depois de ser presa pela primeira vez. Sua prisão ocorreu após uma investigação meticulosa da Polícia de Cheshire que, no auge, envolveu quase 70 policiais e servidores. O único foco da Operação Hummingbird era investigar o aumento alarmante e inexplicável de mortes e colapsos quase fatais de bebês prematuros na unidade neonatal do Hospital Condessa de Chester, na cidade de Chester, na Inglaterra, perto da fronteira com o País de Gales. Em poucas horas, a notícia da prisão de Letby estava nas manchetes em diferentes parte do mundo. Fim do Matérias recomendadas A enfermeira, hoje com 33 anos, estava sendo julgada desde outubro, acusada de assassinar sete bebês e tentar assassinar outros dez entre junho de 2015 e junho de 2016. Na última sexta-feira (18/8), ela foi condenada e recebeu várias penas de prisão perpétua - uma para cada ofensa - tornando-se apenas a quarta mulher na história do Reino Unido a receber tal sentença. Ela negou veementemente todas as 22 acusações contra ela, mas foi considerada culpada de sete acusações de assassinato. Letby também foi considerada culpada por tentativa de assassinato de outros seis bebês na unidade neonatal do hospital. Ela foi absolvida de duas acusações de tentativa de homicídio, enquanto os jurados não conseguiram chegar a veredictos em seis outras acusações de tentativa de homicídio. O júri composto por sete mulheres e quatro homens deliberou por mais de 110 horas depois de ouvir evidências durante nove meses, período no qual foram apresentadas alegações de que Letby deliberadamente injetou ar em bebês, alimentou outros à força com leite e envenenou alguns com insulina. O que se sabe sobre a mulher que assassinou e tentou matar bebês que ela tinha responsabilidade de cuidar? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Letby nasceu em 4 de janeiro de 1990 e cresceu na cidade de Hereford (Inglaterra) com sua mãe e seu pai, John e Susan, que desde outubro assistiram ao julgamento de sua filha na galeria pública. Ela frequentou uma escola local e uma faculdade na qual selecionou disciplinas que acreditava que a ajudariam a alcançar seus objetivos e aspirações. "Sempre quis trabalhar com crianças", disse ela ao júri, acrescentando que escolheu estudos "que melhor apoiariam essa carreira". Letby, que foi a primeira pessoa de sua família a ir para a universidade, estudou enfermagem por três anos na Universidade de Chester. Durante seus estudos, ela fez vários estágios de trabalho. A maioria ocorreu no Hospital Condessa de Chester, na ala infantil ou na unidade neonatal. Ela se qualificou como enfermeira em setembro de 2011 e começou a trabalhar em tempo integral no hospital a partir de janeiro de 2012, antes de se qualificar para trabalhar com bebês em terapia intensiva, em 2015. Letby disse ao tribunal que sua carga de trabalho naquela época era "predominantemente" usada cuidando dos bebês mais doentes da unidade. Ela também revelou como orientou cinco ou seis estudantes de enfermagem e estimou que cuidou de centenas de bebês recém-nascidos durante 2015 e 2016. Em setembro de 2016, Letby foi oficialmente informada em uma carta do Royal College of Nursing que estava sob investigação sobre a morte de bebês. No início daquele ano, ela havia sido afastada das funções clínicas e recebeu uma função administrativa na área responsável por risco e segurança do paciente no hospital. Na época, ela acreditava que isso era para verificar se os funcionários eram competentes para fazer seu trabalho e esperava voltar ao trabalho que amava. Mas, seis anos depois, Letby – que não tinha condenações anteriores, repreensões ou advertências registradas contra ela – se viu sentada no banco dos réus atrás de uma tela de vidro enquanto a promotoria a classificou como uma oportunista "calculadora e desonesta" que "iludiu" colegas para encobrir assassinatos. A equipe de defesa de Letby argumentou que as mortes e colapsos foram devidos a "falhas em série no atendimento" na unidade e ela foi vítima de um "sistema que queria atribuir culpa a terceiros quando falhou". Durante o julgamento, os jurados tiveram um vislumbre da vida de Letby fora do trabalho, com seu WhatsApp privado e mensagens de mídia social lidas para o tribunal. "Eu tinha uma vida social bastante ativa", disse ela ao júri. "Eu costumava frequentar regularmente aulas de salsa, sair com amigos, viajar e férias com amigos." Ela começou a chorar quando fotos de sua casa, onde foi presa pela primeira vez, foram mostradas ao júri. Letby morou em uma acomodação para funcionários antes de se mudar para um apartamento em Chester por cerca de seis meses. Ela voltou para a acomodação em junho de 2015, antes de se mudar para a casa que comprou em Chester, em abril de 2016. A foto de um quadro de avisos na cozinha estava coberta de fotos e letras e apresentava um pôster, desenhado por seu afilhado, que dizia: "(Título de) Madrinha nº 1 concedida a Lucy Letby". Em sua cama, ela tinha pelúcias do Ursinho Pooh e Bisonho, enquanto uma gaveta na sala continha vários documentos e anotações médicas para seus dois gatos, chamados Tigger e Smudge. Letby está sob custódia desde novembro de 2020 e passou por quatro prisões diferentes. Seu julgamento atraiu leitores de todo o mundo, muitos incapazes de entender como uma enfermeira neonatal poderia realizar atos tão hediondos.
2023-08-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx8glryrvp8o
sociedade
Os profissionais que se orgulham de fazer o mínimo possível no trabalho
Quando Hunter Ka’imi compareceu ao programa de TV americano Dr. Phil, em 2022, os produtores não chegaram sequer a mencionar seu sobrenome. Eles o identificaram apenas como um “demissionário silencioso”. “Acredito que a demissão silenciosa seja um protesto pelos direitos dos trabalhadores”, afirmou Ka’imi. “Não acho que o trabalho seja o que há de mais importante na minha vida, nem acho que deveria ser o mais importante na vida de uma pessoa.” Fim do Matérias recomendadas O jovem Ka’imi, de 23 anos, era gerente de um restaurante no Estado americano de Washington. Ele se tornou um símbolo do movimento, que rapidamente fez com que a demissão silenciosa se tornasse uma espécie de medalha de honra. Declarar sua demissão silenciosa logo se tornou um ato arrojado ou, pelo menos, virou tendência. Ka’imi afirma que aquilo aconteceu porque muitas pessoas se identificaram imediatamente com a sensação de estarem sendo usadas pelos seus empregadores. E “demissionários silenciosos” como ele simplesmente deram um nome a esta sensação. “Acho que as pessoas vinham se sentindo frustradas há tempos, mas não tinham as palavras para articular os motivos, a não ser ‘estou com raiva do meu patrão’”, segundo ele. “Quando apareceu a demissão silenciosa, a conversa passou a ser sobre a cultura do trabalho, o capitalismo e a exploração. Foi quando muitas pessoas perceberam, ‘oh, na verdade, é disso que tenho raiva”, explica Ka’imi. Esta tendência pode já ter saído do linguajar diário, mas ele e os especialistas afirmam que o espírito da demissão silenciosa permanece forte. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Como muitas tendências nas redes sociais, ela decolou porque acadêmicos, economistas, outros especialistas no mercado de trabalho e assim por diante, todos estavam falando sobre ela, o que fez com que ela ganhasse ainda mais importância”, conta a professora. “A expressão foi adotada e usada em diferentes formas por diferentes pessoas.” Para Bailey, a expressão entrou com muita força no zeitgeist (o espírito da época) devido às intensas reações dos profissionais ao conceito, resumido em uma expressão curta. No programa Dr. Phil, o planejador financeiro Brent Wilsey, de San Diego, nos Estados Unidos, afirmou que aquilo era simplesmente preguiça. “Acho que [a demissão silenciosa] realmente se resumiu a ‘nós contra eles’”, afirma Ka’imi. Ele esclarece que, embora parecesse algo arrojado e proibido, a demissão silenciosa, na verdade, nunca foi questão de rebelião. “Ela significa simplesmente fazer o seu trabalho”, explica Ka’imi. “Não é um protesto exagerado, nem uma retórica, digamos, de sabotar seu empregador, chegar tarde todos os dias ou roubar a sua empresa.” “A demissão silenciosa diz que, se sou contratado para fazer A, B e C, isso é tudo que eu irei fazer”, prossegue ele. “É a resistência a fazer X, Y e Z, que não estão na descrição do seu cargo e pelo que você não está sendo pago.” Bailey defende que a situação atípica, em alguns países, do mercado de trabalho - com empresas lutando para preencher vagas e reter funcionários - ajudou a encorajar os profissionais em demissão silenciosa a irem a público nas redes sociais, sem medo de serem demitidos. Ka’imi conta que simplesmente não teve medo de que os seus patrões assistissem ao vídeo. Na verdade, ele esperava que eles vissem, mesmo se, com isso, sua demissão silenciosa se tornasse, digamos, menos silenciosa. “Eu não me importei”, ele conta. Ka’imi afirma ainda que ficou orgulhoso quando pediu ao seu patrão para sair mais cedo para ir ao programa de TV e contar explicitamente o quanto ele não gostava do seu trabalho. Seus empregadores podem não ter ficado muito felizes, mas também não discutiram. Ao falar abertamente sobre a questão, Ka’imi esperava poder trazer alguma mudança significativa, tanto para o seu emprego quanto em escala mais ampla. A demissão silenciosa foi uma moda, segundo Katie Bailey, no sentido de que a expressão perdeu relevância em questão de poucas semanas. As discussões sobre a demissão silenciosa podem ter esmorecido, mas isso não significa que os profissionais tenham abandonado essa prática. “Questões subjacentes sobre nossas horas de trabalho e como nos dedicamos ao trabalho – acho que [a demissão silenciosa] continua por aí”, afirma Bailey. Nós podemos ter deixado de rotular esse comportamento como demissão silenciosa, mas as pessoas estão definindo mais fronteiras em torno do seu tempo e energia. Para a professora, “os profissionais estão mais conscientes sobre a reafirmação da autonomia e controle e dizendo ‘sou um ser humano e existem outras coisas na minha vida além do trabalho’”. Bailey destaca que alguns profissionais podem agora estar dedicando menos atenção a esse comportamento, para não prejudicar os seus empregos e proteger sua renda “devido à situação financeira enfrentada por muitas pessoas com a inflação crescente e a deterioração da economia”. Hunter Ka’imi afirma que “depois que o movimento se reduziu um pouco, acho que as pessoas perceberam que existe uma forma muito mais saudável de trabalhar”. “É normal dizer ‘vou fazer apenas o mínimo possível; vou chegar para o meu turno e sair quando ele acabar’. Atualmente, a demissão silenciosa é o status quo.”
2023-08-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0grw5xg39o
sociedade
Como nasceu a Cracolândia, bairro dos barões do café que virou problema 'sem solução' de São Paulo
Um ambiente caótico com centenas de pessoas aglomeradas 24 horas por dia. Algumas empurram carrinhos de supermercado cheios de roupas e objetos pessoais, enquanto outras caminham sem direção e com olhar perdido. Elas são atraídas pela mesma coisa: o crack. A área itinerante apelidada de Cracolândia, no Centro de São Paulo, dominou as páginas de jornais brasileiros e estrangeiros nas últimas décadas. O número de pessoas que se concentra ali varia bastante até mesmo em um único dia. Em alguns momentos, podem ser algumas dezenas de pessoas, em outros, centenas, que chegam a ocupar dois ou três quarteirões inteiros. Fim do Matérias recomendadas Mas como a Cracolândia chegou ao ponto em que está hoje? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A BBC News Brasil conversou com especialistas, moradores e ex-usuários para entender como a Cracolândia nasceu e por que ela nunca foi desmantelada. O fluxo, como é chamada a maior concentração de usuários, já mudou incontáveis vezes de lugar. A presença dele é motivo para desvalorização imobiliária, queda nas vendas do comércio nas redondezas e insegurança por conta do medo que os moradores têm de serem roubados. Glória, uma moradora local que pediu para não ter seu nome verdadeiro revelado, diz ter comprado um apartamento na região por conta da quantidade de serviços que havia no abastado bairro de Campos Elíseos na década de 1980. "Aqui era considerada uma região nobre. Com estação de trem, comércios nos arredores, uma sala de teatro, o Liceu Sagrado Coração de Jesus. Eu morava na [avenida] Nove de Julho, mas queria comprar um apartamento novo. Era tudo muito lindo, então compramos um aqui perto. Eu achei o bairro interessante porque era perto da rodoviária também. E, na época, não tinha crack", conta ela. O bairro de Campos Elíseos já nasceu como uma região nobre da capital paulista. Com a intenção de abrigar os barões do café, foi a primeira área planejada da cidade. Os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil contam que o local foi escolhido pela burguesia para erguer seus casarões porque era privilegiado em diversos aspectos, principalmente pela proximidade com a estação da Luz, que levava ao interior e à então capital do país, o Rio de Janeiro. Também era um local estratégico para que os barões tivessem próximos de onde partiam as locomotivas carregadas com o café negociado por eles. Raquel Rolnik, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), afirma que essa estrutura foi decisiva para que a elite paulistana se instalasse ali. “No final dos anos 1800, as estações ferroviárias da região eram usadas pela elite como meio de transporte. Mas isso mudou com a instalação da rodoviária, que trouxe um movimento de ônibus e migrantes recém-chegados, além da instalação de pensões de curta duração. Isso foi tensionando com o uso dos palacetes, que foram deixando de ser habitados”, conta. Em 1961, o bairro inaugurou a rodoviária da Luz, a primeira da cidade. O local se tornou instantaneamente o principal ponto de chegada à metrópole, e isso foi um divisor de águas para a região. A chegada em massa de migrantes vindos de outras regiões do país atraiu o comércio popular para os arredores da Luz. Com um aumento exponencial do número de pessoas que passaram a circular pelo bairro, a região se tornou movimentada, popular e poluída por conta do grande fluxo de veículos, afirmam os especialistas à BBC News Brasil. Dezenas de lojas foram inauguradas na região para atender às demandas dos viajantes, e a Luz se tornou um dos principais polos de trabalho da cidade. Aos poucos, as famílias mais ricas começaram a se mudar para as avenidas Paulista e Faria Lima, além dos bairros de Moema, Jardim Europa, Jardim Paulista e Higienópolis. Mas esse cenário mudou completamente em 1982, quando o então prefeito Paulo Maluf inaugurou a rodoviária do Tietê, a maior da América Latina e a segunda maior do mundo - atrás apenas do terminal de Nova York. Meses depois, o terminal da Luz foi desativado, e isso causou um efeito dominó na região. Da noite para o dia, ocorreu um esvaziamento repentino dos hotéis e comércios, explica o pesquisador e urbanista Aluízio Marino, pós-doutorando pela USP. A área abandonada foi ocupada rapidamente por pessoas em situação de rua. “As pessoas começaram a dormir na marquise da rodoviária. Mas, no começo, eram poucos e não incomodava. Anos depois, fechavam a rua”, afirma Glória, a moradora que vive há mais de três décadas na região. Rolnik lembra que o Shopping Fashion Center Luz foi inaugurado no lugar da rodoviária, mas a Prefeitura o desocupou para construir um teatro de ópera e dança em uma tentativa de atrair a classe média de volta para o bairro. “Desde os anos 1980, o governo não reconhece a existência de um bairro popular na região e tenta atrair a classe média. Essas tentativas são feitas sem levar em conta as necessidades de quem vive ali, em precariedade”, diz Rolnik. "A Prefeitura mandou fechar o shopping, mas ficou abandonado. E lugares abandonados atraem pessoas abandonadas. Hoje, há uma guerra contra as pessoas abandonadas para tentar transformar aquele lugar no que ele não é". Ela ainda cita que outros equipamentos culturais, como a Sala São Paulo, a Pinacoteca e o Museu da Língua Portuguesa foram inaugurados na região ainda nessa tentativa de atrair a classe média. Mas essa estratégia também fracassou. A região esvaziada, com quartos de hotéis e pousadas com preços promocionais para tentar manter a ocupação, se tornou um conhecido ponto de prostituição e consumo de drogas. Na época, era conhecida como Boca do Lixo. Para entender a origem do nome, é necessário saber que, nas décadas de 1920 e 1930, se instalaram na região empresas cinematográficas, como Paramount, Fox e MGM. A partir do final da década de 1960, a indústria do cinema independente ganhou destaque no bairro. O pesquisador Aluízio Marino afirma que a região passou a ter uma relevância também para o samba. “Nesse momento, iniciou-se um processo de abandono do território pelas elites. Saiu da Boca do Luxo para a Boca do Lixo. Mas a classe popular nunca abandonou a região”, afirma o professor. "O crack foi o acesso à cocaína para as pessoas que não tinham dinheiro." Naquele momento, Glória entendeu que o sonho dela tinha se tornado um pesadelo. Trinta anos depois de se mudar para a região, ela evita sair de casa por medo de ser roubada. E conta que o glamour de décadas atrás deu lugar ao desespero. “Para você ter uma ideia, a Paróquia Sagrado Coração de Jesus, do Liceu, fazia muitos casamentos. Tinha fila de até dois anos. Era lindo ver as noivas e as pessoas felizes. Mas, com o tempo, os próprios flanelinhas que pediam para olhar os carros passaram a quebrar os vidros e fazer furtos. As pessoas saíam, viam tudo destruído e aquilo acabava com o dia delas. Então, as pessoas não querem mais se casar lá”, afirma. Em 2022, o Colégio Salesiano, ligado à paróquia, anunciou que fecharia as portas por conta da insegurança na região e baixa procura por novas matrículas. Para evitar o encerramento das atividades, a Prefeitura de São Paulo fez uma parceria com o colégio e manteve o ensino para 500 crianças do ensino infantil e fundamental público. A possibilidade de se hospedar por um preço baixo, ser um ponto de prostituição e ainda a grande oferta de drogas em uma área abandonada atraiu traficantes e usuários de diversas regiões, até mesmo de outros Estados, para a Boca do Lixo. Pessoas que viviam nas praças Roosevelt e da Sé, também localizadas no Centro, por exemplo, migraram para a região onde hoje fica a Cracolândia. Edivaldo Godoy, de 65 anos, conta que foi um deles. Na época, diz ele à BBC News Brasil, era morador de rua e foi um dos primeiros a experimentar o crack e viver nas ruas da Cracolândia, no início da década de 1990. “Ali sempre foi uma boca de fumo. Tinha muita cola, maconha e cocaína. Eu costumava cheirar cola, mas, quando o crack chegou, a estrutura para o tráfico já estava pronta”, afirma. Ele conta que a droga tem um efeito "devastador" por conta de seu potencial de dependência e que logo se popularizou na região. Ele descreve o que sentiu nas primeiras experiências. “O efeito é muito rápido, forte e gostoso. Aquilo mexe com qualquer um porque ele acaba muito rápido. E ficar sem aquela sensação é devastador.” Depois de idas e vindas no sistema penitenciário, ele deixou de usar drogas, virou pastor e hoje lidera o projeto SOS Carentes, que acolhe usuários, principalmente da Cracolândia, e egressos do sistema penitenciário. Ele conta que, assim que o crack chegou a São Paulo, algumas pessoas do crime discordavam de que a droga deveria ser vendida por conta de sua potência. Todos os que discordavam foram mortos, diz Edivaldo. “Foram morrendo os caras que eram contrários. Mataram um deles e colocaram o corpo em um carrinho de lixo”, lembra ele. Na época, a droga mais consumida era a cola de sapateiro, por ser barata, de fácil acesso e ser um potente alucinógeno. Mas, assim que o crack apareceu, se tornou a bola da vez. A primeira apreensão da droga ocorreu em 1990, no bairro de São Mateus, no extremo leste da capital. O pastor explica ainda que a dinâmica do uso de crack foi determinante para essa constante concentração de usuários a céu aberto. “O cara que fuma maconha ou usa cocaína vai até a biqueira, compra e volta para casa. Já quem usa crack precisa daquilo toda hora. Acaba uma pedra e o cara quer outra. Então, ele não se distancia da boca, fica sempre ali por perto sempre juntando dinheiro para comprar mais", conta ele. Edivaldo diz que foi preso diversas vezes. Ele conta que chegou a ficar preso no Carandiru e foi um dos sobreviventes do massacre que deixou 111 mortos em outubro de 1992. Ele diz que só saiu com vida porque se fingiu de morto em meio a corpos ensanguentados. Aluízio Marino afirma que a primeira grande operação tolerância zero na Cracolândia ocorreu durante a gestão do então prefeito Celso Pitta, aliado de Paulo Maluf, em 1997. "Na época, surgiu a ideia de delimitar o território para estigmatizá-lo e justificar as operações policiais", afirma. "A guerra às drogas e a desumanização das pessoas que vivem ali criou uma carta branca para as operações. Mas essas ações ocorreram diversas vezes e não resolveram o problema.” Em 2005, o arquiteto conta que o poder público passou a inaugurar uma série de espaços públicos para tentar atrair mais abastados de volta para a região. “A Cracolândia só mudou de lugar", afirma Marino. "As construtoras querem derrubar tudo e erguer de novo, mas ali é uma região em que há muitos processos de herança mal concluídos, muitas dívidas em imóveis e patrimônio histórico. Tudo ali é tombado, e isso é uma pedra no sapato do mercado imobiliário. Dificulta muito o lado deles.” Para Marino, o governo deveria testar novas estratégias para tentar desocupar a Cracolândia. Uma delas é dar moradia e emprego para todos os usuários. No ponto de vista dele, a tentativa mais próxima de ao menos amenizar o problema da região foi a implantação do programa De Braços Abertos, da gestão de Fernando Haddad (PT) na Prefeitura. De maneira resumida, o programa oferecia moradia e um salário de R$ 15 por dia para que os usuários fizessem a limpeza das ruas da região. O programa foi criticado na época por moradores e comerciantes da região que avaliavam que o projeto não conseguiria resolver o problema e poderia até agravá-lo ao supostamente facilitar a permanência dos usuários na região. Em 2014, um dos idealizadores do projeto também apresentou críticas a ele. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira apontou que faltavam equipes médicas e treinamento. Em novembro do mesmo ano, no entanto, Dartiu retornou ao De Braços Abertos com um plano para capacitar agentes de saúde, médicos, psicólogos e policiais que atuavam no programa. “O Braços Abertos era um projeto piloto para tentar algo na linha da redução de danos, com critérios de atendimento. Mas a gestão mudou (para o prefeito João Doria), chamou o programa de Bolsa Crack e o encerrou. Um absurdo, que causou um desmonte”, afirmou Aluízio Marino. Nas últimas semanas, a Cracolândia viveu uma escalada de violência. Foram registrados constantes confrontos entre policiais militares, guardas civis e os usuários. A maior parte foi filmado por moradores da região. No início da noite de terça-feira (15/7), o porteiro João da Silva Sousa, de 54 anos, foi morto durante uma tentativa de assalto no largo General Osório, na região da Cracolândia. Ele foi golpeado por uma "arma branca cortante" usada por um homem que tentou roubar a mochila dele. João chegou a ser levado ao hospital, mas não resistiu aos ferimentos. Na mesma noite, as polícias civil e militar fizeram uma ação em conjunta com a Guarda Municipal na Cracolândia. O resultado foram três pessoas detidas por tráfico de drogas e a prisão de uma mulher procurada pela Justiça. A Secretaria da Segurança Pública informou em nota enviada à reportagem que "a operação também incluiu investigações visando à identificação das cerca de 800 pessoas na região, com o propósito de melhor compreender o perfil dos usuários para aprimorar os serviços de saúde e assistência social. Além disso, buscou-se identificar desaparecidos e indivíduos que estivessem descumprindo penas ou medidas alternativas na área, a fim de informar o Poder Judiciário". A morte ocorreu no mesmo dia em que usuários de drogas entraram em confronto com lojistas da região. Comerciantes, principalmente da rua Santa Ifigênia, conhecida pelo comércio de eletrônicos, frequentemente usam paus e pedras para expulsar os usuários da região. Os lojistas acusam os usuários de cometerem furtos e roubos contra comércios e pedestres, o que leva insegurança para a área e atrapalha as vendas. Vídeos publicados no YouTube mostram multidões se enfrentando nas ruas da Santa Ifigênia. Procurada pela reportagem, a Secretaria da Segurança Pública informou "que, ao longo deste ano, tem intensificado seus esforços na Cracolândia, buscando aprimorar a qualidade de vida dos moradores, comerciantes e pessoas que passam pelo local. Como resultado dessas iniciativas, os índices de roubo e furto têm diminuído em comparação ao mesmo período de 2022. Entre os dias 31 de julho e 6 de agosto, os registros de tais crimes nos bairros de Campos Elíseos e Santa Cecília caíram em 24%, apontando para uma tendência de redução sustentada por 18 semanas consecutivas". A pasta disse ainda que "essa queda nas estatísticas criminais reflete a atuação da polícia tanto na área central como nos arredores da região frequentada pelos usuários de drogas. Ainda, neste ano foram apreendidos 512,78% entorpecentes a mais do que no ano passado. Adicionalmente, o policiamento ostensivo foi intensificado com um acréscimo de 120 policiais nas ruas diariamente". Já a Prefeitura de São Paulo disse à BBC News Brasil que vem ampliando e melhorando a oferta de serviços de tratamento e assistência à população em situação de rua que faz uso de álcool e outras drogas. "Hoje, já são mais de 450 beneficiários que deixaram a Cracolândia e foram inseridos no mercado de trabalho. O monitoramento e aprimoramento desta política é constante", disse a Prefeitura em nota. Para o urbanista Aluízio Marinho, da USP, a melhor maneira de lidar com o problema é de forma humanizada e oferecer estrutura para que ela tenha atendimento médico, moradia e emprego. “É preciso tratar o problema sem cair no debate moral”.
2023-08-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxxdgnwrer4o
sociedade
Por que lembramos de músicas da infância mas esquecemos onde deixamos as chaves
Por que tantas pessoas não conseguem se lembrar nem de onde colocaram a chave do carro, mas se recordam de cada palavra de músicas que não escutam há anos? Por acaso as canções vivem num lugar privilegiado em nossa memória? A música há muito tempo é usada como dispositivo mnemônico - ou seja, uma ferramenta para auxiliar na memorização de palavras e informações. Antes do surgimento da linguagem escrita, a música era usada para transmitir histórias e informações oralmente. Isso pode ser visto até hoje pela forma como ensinamos às crianças o alfabeto, os números ou – no meu caso – os nomes dos 50 estados dos EUA. Na verdade, eu desafiaria qualquer leitor adulto alfabetizado em inglês a tentar se lembrar das letras do alfabeto sem que aquela musiquinha familiar ou pelo menos seu ritmo surja em sua mente. Existem várias razões pelas quais a música e as palavras parecem estar intrinsecamente conectadas na memória. Em primeiro lugar, a estrutura da música muitas vezes serve como “andaime” para nos ajudar a lembrar das letras. Fim do Matérias recomendadas Por exemplo, o ritmo e a batida da música dão pistas sobre o tamanho da próxima palavra. Isso ajuda a limitar as opções de palavras a serem lembradas, por exemplo, ao sinalizar que uma palavra de três sílabas se encaixa em um ritmo específico da música. A melodia também pode ajudar a segmentar um texto em partes que fazem sentido entre si. Isso basicamente nos permite lembrar de trechos de informação mais longos do que se tivéssemos que memorizar cada palavra individualmente. As canções também costumam usar recursos literários como rima e aliteração, o que facilita ainda mais a memorização. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Cante Quando cantamos ou ouvimos uma música muitas vezes, essa música pode se tornar acessível por meio da nossa memória implícita (ou não consciente). Cantar a letra de uma música muito conhecida é uma forma de memória processual. Ou seja, é um processo altamente automatizado como andar de bicicleta: é algo que conseguimos fazer sem pensar muito. Uma das razões pelas quais a música está tão profundamente enraizada na memória é porque tendemos a ouvir as mesmas canções muitas e muitas vezes ao longo de nossas vidas (mais do que, digamos, ler um livro ou assistir a um filme favorito). A música também é fundamentalmente emocional. Pesquisas mostram que uma das principais razões pelas quais as pessoas se envolvem com a música é a diversidade de emoções que ela transmite e evoca. Uma ampla gama de estudos aponta que os estímulos emocionais são lembrados com mais facilidade do que os não emocionais. A tarefa de tentar lembrar do ABCdário ou das cores do arco-íris é inerentemente mais motivadora quando definida como uma melodia cativante - e podemos nos lembrar melhor desse conteúdo mais tarde, sempre que fizermos uma conexão emocional. É importante notar que nem todas os estudos afirmam que a música facilita a memorização. Por exemplo, na primeira vez que ouvimos uma nova música, memorizar tanto a melodia quanto a letra é mais difícil do que memorizar apenas a letra. Isso faz sentido, dadas as múltiplas tarefas envolvidas. No entanto, depois de superar esse obstáculo inicial e ser exposto a uma música várias vezes, efeitos mais positivos parecem surgir. Uma vez que uma melodia é familiar, as letras associadas são geralmente mais fáceis de lembrar do que se você tentasse memorizar essas letras sem uma melodia por trás. Pesquisas nesta área também estão sendo usadas para ajudar pessoas com diferentes distúrbios neurodegenerativos. Por exemplo, a música parece ajudar as pessoas com Alzheimer e esclerose múltipla a lembrarem de informações verbais. Então, da próxima vez que você colocar as chaves do carro em um novo local, tente criar uma música cativante para lembrar de sua localização no dia seguinte – em teoria, você não vai esquecer onde as colocou com tanta facilidade. *Kelly Jakubowski é professora associada de Psicologia da Música, na universidade de Durham.
2023-08-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c871x33l34lo
sociedade
Cachorros: algumas raças são mais agressivas que outras?
Mas será que raças como essa são realmente responsáveis pelo aumento do problema de mordidas de cachorro? Fim do Matérias recomendadas Em 2022, ocorreram dez fatalidades. Não está claro se isso é uma nova tendência, ou se 2022 foi um ano tragicamente anômalo. O aumento na incidência de mordidas de cachorro parece estar concentrado em adultos, onde os números triplicaram ao longo de 20 anos. Encontramos taxas mais elevadas em comunidades mais carentes. As razões para isso são desconhecidas, mas tendências semelhantes são observadas em outros tipos de lesões também. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Há poucas evidências científicas consistentes de que algumas raças são inerentemente mais agressivas do que outras. Nossas avaliações sugerem que as raças relatadas em casos de mordidas são simplesmente as raças mais populares naquela região. No entanto, quando examinamos as raças envolvidas em fatalidades, fica claro que a maioria delas é grande e poderosa. Isso não significa que raças menores não possam causar mortes — elas já foram conhecidas por isso. Como os American Bully XL são uma nova sub-raça do American bulldog, não houve nenhum estudo científico sobre o risco de mordida deles, e as taxas de mordida estavam aumentando muito antes de eles existirem. Eles e outros American bulldog e os pit bulls relacionados estão frequentemente presentes em listas de fatalidades. Mas rottweilers, pastores alemães e Malamutes também estão. As tendências genéticas nas linhas de reprodução são um fator importante, portanto, ao escolher um cachorro, é importante ver e avaliar os pais do filhote. Cães da mesma raça variam muito em seu comportamento. As tendências de comportamento são herdadas dos pais. Procure sinais de nervosismo ou timidez em relação às pessoas, bem como agressão direta (latidos, rosnados, mordidas). Cães provenientes de criações de filhotes, em particular, são propensos a problemas de saúde e comportamentais. Infelizmente, muitos filhotes que vêm desses criadores inescrupulosos de produção em massa são comercializados fraudulentamente como sendo de um lar amoroso. Proibir mais raças não funcionará. Novas variedades preencherão o vazio, como aconteceu com os pit bulls. As mordidas de cachorro são um problema complexo da sociedade, e não podemos esperar uma solução legislativa rápida (como proibir uma raça ou reintroduzir licenças para cães) para resolvê-lo. A licença para cães seria proibitivamente cara de administrar e, sem uma fiscalização rigorosa, seria fácil de contornar. O design ambiental inteligente poderia contribuir muito para evitar que pessoas e cachorros sejam expostos a situações arriscadas, por exemplo, instalando caixas de correio externas como padrão. As pessoas frequentemente destacam a educação como a resposta. Mas é uma pequena parte da solução. A educação pública precisa de medidas de fiscalização e políticas de apoio para funcionar. Melhorar as expectativas das pessoas sobre como é o bom cuidado do bem-estar dos cães é fundamental para minimizar situações de medo e frustração para os cães. Isso inclui não abusar dos cães em nome do treinamento e fornecer exercícios e espaço suficientes. Os métodos de treinamento devem ser gentis e baseados em recompensas, pois os métodos baseados em punição estão associados a menor sucesso e maior estresse, medo e agressão. Não caia na armadilha de pensar que "meu cachorro não morderia ninguém". Todos os dias, cães que nunca morderam alguém antes, mordem. *Carri Westgarth e John Tulloch são professores na Universidade de Liverpool (Reino Unido).
2023-08-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1mw38ev47o
sociedade
As profundas e duradouras consequências de ter 'filho favorito' na família
Meus irmãos e eu sempre sabíamos quando nosso irmão do meio vinha visitar meus pais. Minha mãe servia pequenas tigelas de coquetel de camarão como um aperitivo especial. "Filho pródigo", nós protestávamos, levemente irritados porque nunca tínhamos aquele tipo de tratamento privilegiado. A explicação oficial era que ele não vinha almoçar no domingo com a mesma frequência que nós, mas aquilo realmente não parecia justo. Na verdade, apesar do coquetel de camarão, eu não achava que meus pais tivessem filhos favoritos. Fui criada em uma família de classe média com seis filhos no norte de Londres. É claro que cada um de nós – meus irmãos, minha irmã e eu – tinha papéis e tarefas diferentes na família, mas as razões pareciam ser simplesmente práticas. Fim do Matérias recomendadas Como a mais nova, por exemplo, eu sempre era aquela que pegava as coisas para os meus pais, talvez porque eles achassem que eu tivesse muita energia. E minha irmã era quem normalmente saía para fazer as compras, já que ela sabia dirigir. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A casa era movimentada e, para completar o quadro, também tínhamos uma cachorrinha dálmata chamada Sheba. De forma geral, para mim, tudo parecia bem equilibrado. Mas, no ano passado, em uma reunião de família, um dos meus irmãos soltou o desabafo: ele achava que eu fosse a filha favorita do meu pai. Minha irmã pareceu um tanto surpresa. E eu percebi que a história que eu havia contado para mim mesma – de que nossos pais, na verdade, não tinham filhos favoritos – talvez fosse mais complexa. Fiquei imaginando como as pessoas da minha e de outras famílias realmente sentem essa dinâmica e como ela pode nos influenciar ao longo do tempo, mesmo se não tivermos total consciência dela. Pesquisas indicam que o favoritismo dos pais é surpreendentemente comum – e, em vez de ser apenas uma peculiaridade da vida familiar, ele pode realmente ser muito prejudicial. Irmãos da mesma família podem ter visões diferentes sobre o favoritismo por um dos filhos na família, como ocorreu comigo e com meu irmão. Isso ocorre porque a sensação de ser desfavorecido pode ser muito subjetiva, segundo a professora de psicologia aplicada Laurie Kramer, da Universidade do Nordeste, nos Estados Unidos. "É a experiência que as pessoas têm de que um dos pais prefere outro filho em vez delas", explica Kramer. "Pode ser porque ele dedica mais tempo, atenção, elogios ou afeição. Possivelmente exercendo menos controle, para que eles possam sofrer menos restrições, estar sujeitos a menos disciplina ou até punições." O importante é que nem todas as pessoas da família podem considerar a situação desta forma. "Pode não ser a mesma conclusão encontrada pelo outro irmão e também pode ser diferente pelo que o pai acredita que eles fizeram", afirma Kramer. Mas, para o filho que sente tratado em segundo plano, pode haver profundas consequências. Pesquisas indicam que, desde muito cedo, as crianças percebem o tratamento diferenciado, como pais que demonstram mais carinho por um irmão do que por outro. Esta percepção do favoritismo parental foi associada à baixa autoestima em crianças, ansiedade infantil, depressão e problemas de comportamento, incluindo comportamento de risco. E também pode causar efeitos em cascata sobre o bem-estar emocional, com consequências indiretas. Pesquisadores chineses demonstraram, por exemplo, que o favoritismo parental é uma das causas de dependência de telefones celulares em adolescentes. Já em um pequeno estudo canadense com oito adolescentes sem teto, sete deles afirmaram que sentiam que seus pais haviam favorecido um irmão em vez deles, enquanto eles sempre foram considerados a "criança-problema" – e que isso havia contribuído para o rompimento dos laços familiares. Embora este último estudo seja pequeno demais para tirar conclusões mais amplas, ele destaca até onde podem chegar as consequências da percepção de favoritismo parental por uma criança. Os impactos do favoritismo sobre a saúde mental podem persistir até a idade adulta. O favoritismo das mães, por exemplo, é associado a graus mais altos de depressão entre filhos adultos. O viés pode também permanecer ao longo da vida, com pais tratando filhos adultos com favoritismo. E, embora os irmãos não sejam responsáveis pela situação, mas sim os pais, o favoritismo pode prejudicar os laços entre os irmãos, aumentando as tensões e os conflitos entre eles. Isso é especialmente preocupante porque ter bom relacionamento com nossos irmãos é importante para nossa saúde e felicidade ao longo da vida. Considerando o quanto o favoritismo é prejudicial, será que os pais não podem simplesmente evitar escolher um filho favorito? Na opinião de Kramer, eles podem não exercer o favoritismo intencionalmente. E, provavelmente, eles nem mesmo sabem que o fazem. "O tratamento preferencial pode começar entre os pais porque um de seus filhos é mais fácil de criar", explica a professora. "Eles podem se relacionar mais com aquela criança, observar similaridades entre eles e a criança." Sua pesquisa sobre adolescentes e seus pais demonstrou que as famílias não costumam falar sobre o assunto, o que dificulta ainda mais a resolução de possíveis mágoas ou mal-entendidos. "Se estas situações fossem abordadas de forma sensível, sem que ninguém sentisse que está sendo responsabilizado ou que é sua culpa, você poderia ter conversas mais abertas para que todos os lados se entendessem", afirma Kramer. Os pais poderiam, por exemplo, perguntar por que o filho sente que eles preferem um de seus irmãos. "Se um dos pais ouvir [e] oferecer uma razão para o comportamento diferencial em relação a um dos filhos, isso pode fazer maravilhas", explica ela. O filho pode perceber que existe uma razão prática e não é questão de que o irmão seja mais amado do que ele. Na minha família, nunca mencionamos o tema do favoritismo. Mas, depois do desabafo do meu irmão, dizendo que eu seria a favorita, decidi investigar mais a fundo. Primeiramente, perguntei ao meu irmão por que ele havia feito aquele comentário. Ele respondeu que, um dia, nosso pai o mandou sair de perto porque estava me assustando com a Toupeira (“Mole”, em inglês) da série de TV Thunderbirds – uma espécie de máquina perfuratriz gigante – e me fazendo chorar. Eu não me lembro desse caso, talvez porque não fui eu que recebi a ordem de me afastar. Enquanto meus irmãos e eu continuávamos a conversar, nos lembramos de ocasiões em que minha mãe oferecia tratamento preferencial ao meu irmão mais velho, provavelmente porque ele nasceu primeiro. E de que nosso pai costumava elogiar nosso irmão do meio por ser perspicaz, uma qualidade que ele admirava e que os dois tinham em comum. E, é claro, do caso do coquetel de camarão que surge quando nosso irmão do meio nos visita. Existem pequenas diferenças, mas é fácil observar que elas podem ter se amplificado em algo maior, até causando ressentimentos. É possível que o impacto fosse diluído pelo fato de que somos seis irmãos – e os cinco que nem sempre recebiam o "tratamento com coquetel de camarão" podiam brincar entre si sobre a questão. E todos nós ainda apreciamos o aperitivo quando nosso irmão do meio nos visita. Mas imagine uma família com apenas dois filhos crescidos e um deles recebe um coquetel de camarão no almoço, enquanto o outro sempre come o prato comum. Provavelmente, seria muito cruel com este último filho, que pareceria estar sendo punido ou excluído. A professora de desenvolvimento humano e ciências familiares Megan Gilligan, da Universidade do Missouri, trabalhou com a professora de sociologia Jill Suitor, da Universidade Purdue, e o professor de psicologia Karl Pillemer, da Universidade Cornell, no Estudo de Diferenças Dentro da Família – um projeto financiado pelo Instituto Nacional do Envelhecimento, nos Estados Unidos. O projeto acompanhou diferentes famílias por duas décadas para compreender melhor o relacionamento entre as gerações. Como parte do estudo, os pesquisadores fizeram às mães e aos pais uma questão direta sobre favoritismo. E, para muitos deles, foi a primeira vez em que foram questionados sobre isso. A pergunta foi: "Com qual dos seus filhos você sente maior proximidade emocional?" Após uma breve deliberação, uma alta parcela das mães (75%) indicou um de seus filhos. As demais não escolheram nenhum ou disseram que se sentiam igualmente próximas de todos eles. Os pesquisadores também perguntaram aos pais e às mães por qual dos filhos eles sentiam mais decepção. A resposta acabou sendo reveladora: o estudo viu que o filho indicado inicialmente como "decepcionante" também foi tratado desta forma no futuro. A ordem de nascimento teve importância em alguns aspectos do favoritismo, mas talvez não tanto quanto se costuma acreditar. "Na idade adulta, [a pesquisa não] concluiu que este seja um fator decisivo para o favoritismo", explica Gilligan. Especificamente falando, a pesquisa científica não confirma o meu palpite de que o filho mais velho seria naturalmente escolhido como o "filho de ouro". A professora afirma que, em termos de proximidade emocional, os filhos mais novos, na verdade, costumam ser escolhidos com mais frequência do que o filho do meio ou o terceiro. Mas o fator mais forte para a proximidade emocional foi a sensação dos pais de que a criança é parecida com eles. Gilligan também destaca o risco real que pode resultar do tratamento diferencial, demonstrado no estudo, como o mau relacionamento entre os irmãos, a sensação de inadequação sobre si próprios pelos irmãos menos favorecidos e seu relacionamento menos positivo com o pai ou com a mãe. E ser o "filho de ouro" também pode trazer suas próprias dificuldades. "Você pode achar que ser o filho favorito traz muitos benefícios, mas também pode causar tensão emocional para os filhos adultos", afirma Gilligan. "Descobrimos que o favoritismo é associado a maiores sintomas de depressão entre os filhos favorecidos." "Acreditamos que isso ocorre porque ser o filho favorito de uma mãe cria conflitos no relacionamento com seus irmãos. Concluímos que esta tensão com os irmãos na idade adulta prejudica o seu bem-estar psicológico", explica a professora. O favoritismo também pode criar um encargo desigual ao longo da vida. Isso porque, quando um dos pais eventualmente precisa de assistência familiar, ele costuma procurar o filho que sente ter sido o favorito, segundo Gilligan. E, embora o favoritismo possa nos assombrar até a idade adulta, nossa experiência pode sofrer mudanças sutis à medida que envelhecemos. Gilligan realizou uma análise de estudos sobre o impacto do favoritismo ao longo da vida, desde crianças muito jovens até filhos crescidos, agora com 60 anos de idade ou mais. Ela concluiu que existem diferenças na forma em que o favoritismo se manifesta em diferentes etapas de vida. Entre as crianças mais jovens, o favoritismo pode ser mais questão de quanto tempo os pais passam com elas, em comparação com um dos irmãos. E, para os filhos adultos, pode ser mais questão de desigualdades no apoio financeiro. Para Laurie Kramer, tratar todos os filhos de forma exatamente igual não é a solução do problema. "É impossível tratar as crianças da mesma forma em todas as situações e nem é o que as crianças desejam", explica ela. "Elas querem ser compreendidas por quem são, pela sua idade, interesses, gênero e personalidade." Mesmo assim, a professora afirma que o aumento da autoconsciência pode ajudar os pais a evitar a constante criação de situações injustas. Isso é especialmente importante porque a criança pode aprender o padrão de favoritismo e aplicá-lo ao seu próprio estilo de criação de filhos e relacionamentos na idade adulta. "Se não formos conscientes e não tomarmos medidas para romper essa transmissão, estamos provavelmente adotando o mesmo comportamento", segundo Kramer. A ideia de aprender certos vieses dos nossos pais certamente é verdadeira. Durante as refeições, minha mãe sempre servia porções um pouco maiores para os meus irmãos, que eram considerados "meninos em crescimento". E meu parceiro observou que, quando sirvo nosso jantar, eu faço o mesmo, servindo mais para ele do que para mim. Não me sinto traumatizada pelas leves diferenças na forma em que meus irmãos e eu éramos tratados quando crianças – e, talvez, até hoje. Nós somos próximos dos nossos pais e também uns dos outros. Na verdade, se examinarmos a questão agora, talvez nossa cadela Sheba fosse a verdadeira favorita do meu pai. Mas adquirir mais consciência sobre algumas dessas diferenças de tratamento e como elas moldaram o meu próprio comportamento me fez ver algumas coisas de forma diferente. Para começar, talvez eu comece a tentar servir porções maiores para mim no futuro – e sem esperar a visita do meu irmão para me deliciar com um coquetel de camarão.
2023-08-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gzddlew4lo
sociedade
A mulher que ganhou indenização de R$ 6 bilhões de ex-namorado por pornô de vingança
A Justiça do Texas, nos Estados Unidos, concedeu a uma mulher uma indenização de US$ 1,2 bilhão (R$ 6 bi ) depois de decidir que ela foi vítima de pornografia de vingança. A mulher, que foi identificada apenas pelas iniciais DL em documentos judiciais, entrou com uma ação contra o ex-namorado em 2022. O processo alegou que ele postou fotos íntimas dela online para "envergonhá-la publicamente" após um rompimento. Seus advogados no caso disseram que a decisão é uma vitória para as vítimas de "abuso sexual" feito com a divulgação de imagens íntimas. "Embora seja improvável que o valor da indenização seja de fato pago (a cobrança de dívidas judiciais nos EUA é um processo à parte), a decisão da Justiça devolve a DL sua dignidade", disse Bradford Gilde, o principal advogado mulher, em um comunicado. Os advogados originalmente haviam pedido uma indenização de US$ 100 milhões. Fim do Matérias recomendadas "Esperamos que o valor impressionante desta decisão seja um alerta para evitar que outras pessoas cometam essas ações desprezíveis", acrescentou Gilde. De acordo com documentos judiciais, a mulher e seu ex-namorado começaram a namorar em 2016. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela havia compartilhado fotos íntimas de si mesma com o réu durante o relacionamento. Após um rompimento em 2021, ele foi acusado de ter postado as fotos em plataformas de mídia social e sites adultos sem o consentimento dela. Segundo a ação, ele teria enviado links das fotos para seus amigos e familiares por meio de uma pasta do Dropbox acessível ao público. Ele também foi acusado de ter acesso ao telefone, contas de redes sociais e e-mail da ex-namorada, bem como ao sistema de câmeras da casa de sua mãe, que ele usava para espioná-la. A certa altura, o réu supostamente enviou uma mensagem à mulher a provocando. "Você passará o resto da vida tentando e não conseguindo se apagar da internet. Todo mundo que você conhecer ouvirá a história e irá procurar pelas fotos. Boa caçada", teria dito. Os advogados da mulher afirmam que seu ex-namorado postou as fotos "para infligir uma combinação de abuso psicológico, violência doméstica e abuso sexual". Ele não compareceu ao tribunal e tinha um advogado para representá-lo, segundo relatos da mídia americana. Valores altos em danos foram decididos em casos de pornografia de vingança nos Estados Unidos no passado. Em 2018, uma mulher da Califórnia recebeu US$ 6,8 milhões depois que seu ex-parceiro compartilhou fotos explícitas dela em sites pornográficos. DL disse a uma emissora de TV do Texas que, depois de receber pouca ajuda da polícia local, ela procurou um advogado. Em 2016, cerca de 10 milhões de americanos relataram ter sido vítimas de pornografia não consensual - ou de pornografia de vingança. Muitas delas são mulheres de 18 a 29 anos, de acordo com um estudo da época do instituto de pesquisa Data & Society. Todos os estados dos EUA, com exceção de Massachusetts e Carolina do Sul, têm leis anti-pornografia de vingança em vigor.
2023-08-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgezjyrzgzyo
sociedade
101 crianças mortas a tiros no Rio desde 2007: 'Sei o que mãe da Eloah está vivendo'
Sempre que vê casos como o da menina Eloah da Silva Santos, morta na semana passada aos 5 anos por uma bala perdida durante uma operação policial, Vanessa Francisco Sales costuma falar: "Eu sei o que esta mãe está vivendo". Quase quatro anos atrás, foi ela, moradora do Complexo do Alemão, na zona norte carioca, que viveu tragédia semelhante. Um tiro matou a filha dela, a pequena Ágatha Vitória Sales Félix, uma garotinha negra, de cabelo farto e sorriso largo, aos 8 anos. A explicação oficial foi que o disparo foi feito por um policial militar contra "suspeitos". O crime, cometido em setembro de 2019, até hoje não foi a julgamento — e Vanessa diz que vive um dia de cada vez. Fim do Matérias recomendadas Um dos desafios é enfrentar as recordações, que são inevitáveis. "A minha vida é uma lembrança", diz ela à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Minha filha se foi. Ela morava comigo, uma criança. Ali se passou tudo com ela, naquele local. Ninguém quer voltar, ninguém quer viver aquilo. Porque vai ter lembranças, tem lembranças, sempre existirão lembranças. Em todo momento... Neste momento, tenho lembranças. Então, assim, a minha vida serão lembranças." Enfrentar as recordações foi justamente um dos desafios de Vanessa. Ela mora na localidade conhecida como Alvorada, no Complexo do Alemão, no mesmo local onde Ágatha nasceu e viveu até os 8 anos. Voltou para lá, após um período de afastamento que se seguiu à morte da filha. "Fiquei oito meses sem voltar para a minha casa", conta. "Mas depois tive que voltar. Consegui continuar vivendo a minha vida aqui fora." Ágatha e Eloah são parte de uma estatística macabra. Desde 2007, 101 crianças e adolescentes, com idades de zero a 14 anos, foram assassinadas no Rio de Janeiro, segundo a ONG Rio de Paz. Foram baleadas em ações policiais, em confrontos das forças de segurança com criminosos e em disputas entre bandidos. Em 2023, já foram onze vítimas assassinadas nessa faixa etária no Estado, contra quatro em 2022. Eloah foi baleada e morta em casa, na Ilha do Governador, em 12 de agosto. Na noite de 20 de setembro de 2019, Ágatha Félix foi baleada nas costas quando voltava de um passeio em uma kombi de transporte coletivo na localidade da Fazendinha, no Alemão. O veículo estava parado para que passageiros descessem. Um PM atirou quando homens passaram em uma motocicleta. A Polícia Militar, na época, alegou que foi um revide contra criminosos que teriam disparado. Testemunhas, no entanto, negaram ter havido troca de tiros. Segundo investigações da Polícia Civil, o policial teria confundido uma barra de alumínio, levada pelo garupa, com um fuzil, e atirado contra o "traficante". Vanessa evita lembrar detalhes do dia da morte de Ágatha. "Se eu ficasse lembrando, não ia conseguir continuar vivendo como eu vivo hoje, tentando sobreviver à tragédia que foi, na minha vida, a ida da minha filha", afirma, ao comentar como se sente ao saber, pela imprensa e pelas redes sociais, de mortes de outras crianças baleadas. Um dos pontos que inquietam Vanessa é a repetição, em outros casos, de circunstâncias semelhantes àquelas que levaram Ágatha à morte. "Não que sejam todos da mesma forma, mas partindo da mesma situação, de um tiro, de alguém que deveria te proteger de uma situação", diz. "Eu sempre vou lembrar. Não tem como isso apagar da minha vida. Infelizmente, a cena se repete com o passar dos dias, com o passar do tempo. Infelizmente, está acontecendo. Enquanto não houver, enquanto não tiver políticas públicas inteligentes, isso não vai acabar.” Segundo ela, mães de outras vítimas de crimes semelhantes, com quem tem contato, não costumam falar muito dos novos episódios que resultam em mortes de crianças e adolescentes. "Porque cada um tem o seu caso, então, se a gente for juntar os casos.", explica. "A gente não fica falando porque já é uma coisa tão dolorosa. A gente tem momentos que vai comentar 'infelizmente, lamentável', mas a gente não fica falando. Porque mexe muito com a mãe, com a família naquele momento." Aos 36 anos, Vanessa não teve outros filhos — nem faz planos de tê-los, embora não descarte a possibilidade. Religiosa, afirma ter colocado Deus em primeiro lugar. "O que Ele desejar para mim, se for para ter mais três, trigêmeos", diz. "Mas eu não fico planejando, não consigo pensar à frente. Hoje, eu quero estar com minha saúde mental intacta, equilibrada, a minha saúde também física. Estou priorizando isso, a minha saúde espiritual, mental e física. E o meu casamento. Então, são as coisas que estou priorizando hoje. Isso inclusive acho que vai ter consequência numa vida boa, numa vida trabalhada, (...) superando a cada dia." "Hoje escolhi estar viva", afirma, com a voz em tom sereno. "Só por isso estou aqui falando com você." O fundador da ONG Rio de Paz, Antônio Carlos Costa, diz que "nada do que vivemos é novo". Desde a fundação da organização, em 2007, os episódios violentos têm, segundo ele, um ciclo que passa pela indignação, silêncio e esquecimento. Esse é, na sua opinião, o destino, em poucos dias, do mais recente desses crimes: o assassinato de Eloah. Isso acontece, diz Costa, porque a sociedade se omite, já que "90% dessas mortes ocorrem dentro de comunidades pobres". E a sociedade, acusa ele, quer isso. "Não estou dizendo que a sociedade quer que as crianças morram", explica. "Mas que quer uma polícia truculenta, quer tiro, pancada e bomba." Costa afirma que os políticos sabem que, se prometerem em campanha eleitoral que vão "endurecer com os bandidos", conseguem muitos votos. São, inclusive, instruídos por profissionais de marketing a fazer esse tipo de promessa, ele diz. E a sociedade se mantém silente, encarando as mortes de crianças como "efeitos colaterais" de uma guerra à criminalidade, acusa. Ele também questiona qual país civilizado tem o histórico da polícia brasileira de envolvimento em episódios com mortes de crianças. "Não vejo como mudar isso sem muita pressão da sociedade, sem muita pressão dos meios de comunicação", afirma. Para ele, além de programas sociais, é preciso uma profunda reforma da polícia, o que é outro problema. "Ninguém encara a polícia, a reforma da polícia vai desagradar muita gente."
2023-08-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nrggeeg5yo
sociedade
Como ter virado meme foi pesadelo para jovem, mas se tornou conforto no fim da vida dela
Era setembro de 2017. Stephany Rosa estava em um jantar de formatura quando os olhares na mesa se voltaram em direção a ela. Todos começaram a rir e ela, meio sem jeito, deu um sorriso amarelo. Foi mais um dia em que um episódio de anos atrás havia reaparecido na vida da jovem. As risadas naquela mesa de formatura começaram porque uma jovem anunciou quem era Stephany: a "bêbada de Curitiba", desde 2012 um dos clássicos entre os memes brasileiros. "Foi desconfortável. Era formatura de uma colega nossa e as pessoas começaram a falar e rir sobre a Ste", diz Carol Gaertner, advogada e escritora, amiga de Stephany que também estava naquela mesa. A jovem se tornou meme ao ser detida por dirigir embriagada após comemorar o seu aniversário de 22 anos. Fim do Matérias recomendadas O vídeo da entrevista que ela concedeu em uma viatura policial viralizou e logo alcançou milhões de visualizações. Mais de uma década depois, o meme ainda costuma ser lembrado nas redes, seja por meio de figuras de WhatsApp ou em gifs nas redes sociais. O reconhecimento pelo episódio que a tornou famosa na internet era comum na vida de Stephany e, quase sempre, causava constrangimento para ela, que tinha vergonha da situação. Por anos, o registro das imagens foi um pesadelo e ela chegou até a buscar formas para tentar apagá-lo da internet. Mas no fim da vida, quando descobriu um câncer de ovário, o registro viral se tornou um apoio importante enquanto Stephany enfrentava a doença. No ano passado, a mãe dela, Nil Silva, publicou um livro que foi iniciado pela filha. Na obra Nosso Processo de Cura da Alma, que foi iniciada pela jovem quando começou o tratamento contra a doença, Stephany reflete sobre a própria vida. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No início da vida adulta, Stephany costumava sair com os amigos para festas e gostava de consumir bebidas alcoólicas. A celebração do aniversário de 22 anos foi um desses dias em que ela quis comemorar intensamente. A jovem saiu com colegas do trabalho para um restaurante em Curitiba (PR), onde morava. Quando estava indo embora, seguiu cambaleando em direção ao seu carro. Os policiais logo a pararam. Stephany estava bastante embriagada e foi detida. Equipes da imprensa local acompanharam o caso e registraram o momento. Dentro do carro da polícia, a jovem concedeu uma entrevista na qual proferiu palavras desencontradas e conversou de modo arrastado, evidenciando o seu estado. No vídeo da reportagem que viralizou, uma amiga ajuda Stephany a calçar os sapatos enquanto a jovem está sentada na calçada. Em outro momento, Stephany implora aos policiais para não ser detida, mas não adianta: ela é conduzida para a viatura. Dentro do veículo, ela demonstra animação e até brinca com os repórteres que chegam para entrevistá-la. "Nossa, meu pai vai me matar. Não, ele não vai me bater, ele vai me matar mesmo", diz a jovem, que logo tenta consertar a situação. "Pai, te amo, não me mata", diz aos risos. "Hoje é meu aniversário, vim comer no japonês com meus amigos do escritório", conta. "E daí eu achei: vou curtir e vou embora. Daí fui presa. E recebi uma suspensão (da carteira de motorista). Tô triste, não tô feliz. Já chorei", comenta, ainda aos risos. A reação da jovem diante do episódio arrancou risadas de muitas pessoas e o vídeo foi muito compartilhado nas redes. Assim, ela se tornou a "bêbada de Curitiba". Naquela noite, Stephany foi conduzida a uma delegacia e foi liberada pouco depois. Os pais só souberam da situação no dia seguinte. Nil Silva, a mãe de Stephany, diz que a filha chegou a fazer serviços comunitários após ser detida. "Ela fez isso por um ano aos sábados. Não me recordo o local, mas lembro que ela até gostava de ir", diz à BBC News Brasil. O episódio que se tornou meme era considerado por Stephany como um erro do qual se arrependia. Mas ainda que tentasse esquecer, ela era obrigada a se lembrar daquele dia com frequência porque sempre era reconhecida por alguém. Quando o vídeo viralizou, Stephany era estudante de Direito – curso no qual ela se formou anos mais tarde. Para ela, aquilo seria um duro empecilho na futura carreira no meio jurídico. Ela passou a ser reconhecida na rua. Situações como a da formatura em setembro de 2017 eram comuns na vida dela, principalmente nos primeiros anos após o vídeo viral. "No início foi bem complicado. Ela sentiu vergonha e muitas vezes deixou de sair, porque sempre era abordada por alguém. Muitas vezes, ela queria se divertir e não lembrar do acontecido", diz Nil Silva. O principal incômodo para Stephany era ser rotulada como "bêbada". Ela considerava que era como se fosse reduzida a uma situação que viveu em uma noite. "Ninguém gosta de ser reduzida a uma coisa só", disse Stephany em um vídeo compartilhado em junho de 2020 em seu perfil no Instagram. "Parece que você passou oito anos da sua vida bebendo, a 'bêbada de Curitiba'. Mas não foi isso que aconteceu, eu fiz muita coisa", completou. Ela justificou que aos 22 anos queria encontrar um sentido na vida, mas não sabia como. "De um jeito meio torto e tal, mas sempre estava buscando", disse a jovem no vídeo de 2020. Para os amigos, Stephany costumava falar sobre o vídeo que havia viralizado. "Eu desconhecia o vídeo, só soube quando ela tocou no assunto. Eu já tinha ouvido falar de outros estudantes que haviam sido pegos em blitz por estarem bêbados e sabia que qualquer pessoa estaria vulnerável a uma situação do tipo, mas nem todo mundo havia sido gravado nessa situação como ela foi", diz Carol Gaertner, que conheceu Stephany anos depois do viral. Por muitas vezes, Stephany levava o episódio na brincadeira e até costumava chamar de "fãs" aqueles que a procuravam nas redes dizendo que a adoravam por causa do vídeo. Mas a jovem tinha a principal preocupação de fazer com que as pessoas entendessem que ela não era somente aquele momento que se tornou meme. Em seu perfil no Facebook, por exemplo, usava uma capa que deixava clara essa mensagem: "Se você me conhece baseado no que eu era um ano atrás, você não me conhece mais. Minha evolução é constante. Permita-me apresentar novamente", diz uma imagem de destaque no perfil, que hoje é um memorial online para a jovem. Ela deixava as redes sociais fechadas para evitar que compartilhassem suas fotos recentes. Em sua caixa de mensagens nas redes, havia diversos recados de carinho de desconhecidos. Esse cuidado de não ser sempre associada àquele vídeo se tornou ainda mais forte após concluir o curso de Direito, quando Stephany passou a considerar aquele registro como um grande problema. "Quando ela me falou a respeito do vídeo, era como se ela tivesse um bom jogo de cintura e levasse essa situação na esportiva e com muito bom humor. Mas em certo momento ela se mostrou um pouco incomodada com as pessoas a associarem a isso", diz Carol. No episódio da mesa de jantar na formatura, Carol observou um incômodo na amiga. "Era aquela coisa: a gente já sabe (do meme), agora vamos seguir adiante? Porque já tinham se passado anos, e as pessoas amadurecem e evoluem", comenta a amiga. Meses após o episódio na formatura, Stephany se cansou de ser associada ao vídeo e quis buscar formas para que aquele episódio fosse esquecido. Mas ela teria uma dura luta judicial pela frente para tentar excluir aquele registro da internet. "Em 2018, no início do ano, ela me ligou e disse: 'amiga, o que você entende por direito ao esquecimento? O que você sabe a respeito? Estou pensando bem e não quero mais esse vídeo circulando na internet, não estou mais a fim de ficar associando a minha imagem a esse vídeo'", conta Carol. O direito ao esquecimento ao qual Stephany se referiu se trata de um tema que já foi até mesmo pauta no Supremo Tribunal Federal (STF), que em 2021 decidiu que isso é incompatível com a Constituição Federal, porque impedir a divulgação de fatos ou dados verídicos pode ferir a liberdade de expressão. Mas o STF apontou também que possíveis excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, com base em parâmetros constitucionais e na legislação penal e civil. Em casos como o de Stephany ela poderia alegar na Justiça que aquilo lhe causou danos e tentar fazer com que todas as publicações daquele vídeo fossem excluídas. Mas meses após decidir buscar formas para excluir o vídeo da internet, Stephany logo passou a ter uma preocupação que tomou todo o tempo dela. Em meados de 2018, ela estudava intensamente para o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) quando começou a sentir dores abdominais. Em um domingo de agosto de 2018, Stephany celebrou o aniversário da mãe e o Dia dos Pais. Após as comemorações, ela chegou em casa e notou uma dificuldade para ir ao banheiro. "Cheguei a vomitar, ali meu corpo enviou um sinal de alerta: há algo errado com você, investigue rápido", escreveu a jovem em um relato nas redes. Ela relatou que sentiu um inchaço na barriga, muitas dores e buscou atendimento médico. No hospital, fez diversos exames e após alguns dias recebeu o diagnóstico: câncer de ovário. E ali começou a jornada mais difícil da vida dela. O diagnóstico era preocupante e o quadro de Stephany era considerado grave. "O chão se abriu mais uma vez, meus problemas referentes ao Exame da Ordem (porque estava estudando como uma louca e nunca estava satisfeita com meu desempenho) acabaram na hora, pois encontrei outra questão maior", detalhou Stephany em um post nas redes sociais na época. O câncer de ovário é uma replicação desordenada de células malignas que invadem primeiro o ovário e depois podem se espalhar para os órgãos da pelve e abdome superior, assim como as vísceras como o fígado ou o pulmão, aponta a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). O câncer que Stephany teve é uma das doenças mais comuns entre as mulheres, aponta a Febrasgo. São 6 mil novos casos por ano no país, estima o Instituto Nacional do Câncer (Inca). Entre as brasileiras, é o 7° tipo de câncer com mais incidência e no mundo é o oitavo. Uma das dificuldades dessa doença, dizem especialistas, é que esse tipo de câncer costuma surgir rapidamente e raramente são detectados em estágios iniciais. Na maior parte das vezes, aponta a federação, as mulheres que apresentam um tumor ou cisto no ovário não têm câncer, mas sim uma lesão funcional ou benigna. No tratamento, Stephany passou por procedimentos como cirurgias e diversas sessões de quimioterapia. Ela começou a escrever um livro durante o período da descoberta da doença. Na obra, Stephany colocou por escrito os seus sentimentos diante do câncer. "Eu desejo que você não precise passar por um processo tão doloroso quanto um tratamento de câncer para se dar conta que você pode se tratar assim, com compaixão e flexibilidade. Você pode ouvir seu coração e ser guiado por ele", escreveu Stephany em trecho do livro. "Sabe, mãe, eu já questionei muito, hoje não questiono mais. Poderia ser com qualquer pessoa, penso 'por que não eu?'", refletiu em outro trecho. O hospital se tornou a casa de Stephany por vários períodos do tratamento. Na unidade de saúde, ela fez algumas amizades, incluindo o psicólogo Sidnei Evangelista. Ele define Stephany como uma pessoa alegre e que tinha muita vontade de viver. "Eu a conheci na internação, durante os últimos seis meses dela. Ela tinha muita energia e gostava de contar sobre a história de vida dela. Dizia que os 30 anos (que ela tinha na época) pareciam breves, mas era um tempo em que ela viveu muitas alegrias, arrependimentos e conquistas", diz o psicólogo. "Ela me disse: hoje você conhece esta Stephany, mas não essa do passado e me mostrou o meme. Nós rimos daquela situação. Ela falou que havia se transformado muito nos últimos anos e amadurecido bastante, principalmente após o diagnóstico de câncer", comenta. Sidnei chegou a ajudá-la a encontrar o filho, hoje com 18 anos, que era um dos desejos de Stephany, que foi mãe na adolescência. A dificuldade para encontrar o garoto ocorria, principalmente, porque era o auge da pandemia de covid-19. "Ela queria muito encontrar o filho, então mobilizamos toda a equipe, a levamos até o jardim e fizemos a surpresa de levar o filho dela lá. Eles não se viam havia uns 45 dias", conta Sidnei. Mas os tratamentos de Stephany deixaram de fazer efeito. Ela se tornou uma paciente paliativa, ou seja, passou apenas a receber tratamento para amenizar as dores e ter mais conforto. A doença em si, avaliaram os médicos, já havia avançado e se tornado praticamente impossível de curar. "A médica havia avisado que o quadro dela, aos olhos humanos era irreversível, os órgãos estavam parando, mas a gente se recusa a aceitar e vê sempre uma ponta de esperança", escreveu Nil no livro escrito junto com a filha. Nesse período, ela decidiu buscar uma qualidade de vida melhor. Para isso, criou uma vaquinha virtual com o objetivo de arrecadar R$ 20 mil. Com esse dinheiro, ela queria custear itens como terapia, alimentação saudável e fazer adaptações na casa da família para quando fosse liberada pelo hospital. E foi durante a vaquinha que Stephany viu o vídeo repercutir novamente. Mas dessa vez, de forma positiva. "Quando a Ste compartilhou a vaquinha, não comentou nada sobre ser a menina do meme. Mas aí alguns conhecidos começaram a compartilhar, contando que a menina do meme estava pedindo ajuda. E aí isso começou a ser muito divulgado e compartilhado", diz Carol. A família de Stephany avalia que o vídeo foi fundamental para a vaquinha e ajudou na arrecadação. Ela conseguiu R$ 123 mil, seis vezes mais do que esperava. "Quando ela conversou comigo em relação a lançar a vaquinha, ela pediu a minha opinião. Claro que respondi que seria uma boa, poderia ser a solução. Ela dizia que não queria fazer nada que eu não aprovasse, principalmente o lançamento da vaquinha, porque sabíamos que o vídeo poderia voltar à tona e ela tinha medo que isso fosse me deixar triste. Mas eu disse que jamais poderia ficar triste por algo que poderia ajudá-la", diz Nil. "Tivemos receio, pois não saberíamos como seria a reação das pessoas. Mas pela graça de Deus, foi a melhor reação possível, e isso fez muita diferença para ela, não apenas falando financeiramente, mas pela energia positiva e tantos carinho recebido", acrescenta Nil. A vaquinha foi uma ajuda emocional muito importante para Stephany, porque muitos se lembraram do meme de 2012 e mandaram inúmeras mensagens de apoio. Ela e a mãe ficavam horas lendo as mensagens. "Isso, com certeza, alegrou muito os dias dela no hospital", diz a mãe da jovem. Mas Stephany nunca conseguiu desfrutar dos benefícios do dinheiro que arrecadou, pois morreu logo depois, em julho de 2020. "É impossível medir a dimensão da dor da perda de um filho. É sentir que a vida nos jogou para o lixo. Não conseguimos mensurá-la, é uma dor única, intensa, egoísta e gigante. A perda de um filho é ferida que não cicatriza. É conhecer a decepção mais profunda. É para toda a vida", escreveu Nil no livro. A morte da jovem causou comoção nas redes sociais e repercutiu na imprensa. Muitas pessoas lamentaram o fato e relembraram do meme. O dinheiro arrecadado pela vaquinha ficou em uma conta do filho dela – 10% do valor é retido pelo site da vaquinha. "Até hoje não mexemos em nenhum valor. Ele vai decidir o que fazer quando estiver mais maduro", conta Nil. Hoje, a família já não pensa mais em buscar formas para apagar o vídeo da internet. "Se retirar o vídeo da internet não era mais o objetivo dela (no fim da vida), também não vai ser o nosso. E isso, que um dia incomodou, não incomoda mais, pois conseguimos ver um lado bom nisso no período em que ela estava doente", comenta Nil.
2023-08-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nrwngzw3zo
sociedade
Os benefícios de ser solteiro, segundo a ciência
Esta reportagem, originalmente publicada em 27 de julho de 2017, foi republicada em 15 de agosto de 2023 — data que marca o Dia dos Solteiros no Brasil. Dividir a vida com alguém é apontado por muitos estudos como benéfico à saúde. Já no século 19 havia pesquisas que indicavam que pessoas casadas levavam vidas mais saudáveis, e estudos mais recentes mostraram que elas tinham risco menor de pneumonia, câncer, problemas cardíacos ou de serem submetidas a cirurgias do que pessoas que vivem sozinhas. Mas a ciência também está de olho nas vantagens que ser solteiro pode trazer às pessoas, entre elas, uma vida com mais amigos e interação social, e com mais objetivos — e determinação para cumpri-los. "Todos nós crescemos ouvindo: 'case-se e você não se sentirá sozinho'. Mas eu nunca achei que essa seria a minha história", disse, em uma palestra do TedX, a pesquisadora americana Bella DePaulo, de 63 anos, da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara (EUA). Como solteira convicta, ela se dedicou a estudar a felicidade nesse grupo de pessoas. Fim do Matérias recomendadas Para DePaulo, "as preocupações com as dificuldades da solidão podem ofuscar os benefícios de ser solitário". Em 2016, a pesquisadora fez um levantamento de estudos que evidenciassem essas vantagens, e encontrou indícios de que: "Costumamos escutar que 'solteiros não têm ninguém', mas o fato é que muitas vezes eles têm mais amigos e se esforçam mais para manter elos com pais, irmãos e sua comunidade", diz ela. "Enquanto isso, casados tendem a ser mais insulares [ou seja, viverem mais em 'ilhas próprias']." Esse dado vem de um estudo de 2015 nos EUA, que avaliou levantamentos censitários para entender os laços entre parentes, vizinhos e amigos adultos americanos. Os pesquisadores, em artigo publicado no Journal of Social and Personal Relationships, dizem que "solteiros têm mais tendência a manter contato e receber ajuda de pais, irmãos, vizinhos e amigos do que os casados. Essas diferenças são mais proeminentes para os que nunca se casaram do que os que haviam sido casados". O que importa para a saúde, segundo DePaulo, é ter pessoas com as quais você possa se abrir, mais do que ter ou não um cônjuge. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast DePaulo argumenta que não é apenas o amor que nos traz sentimento de plenitude, mas também "autonomia, propósito e [a sensação de] estar no comando de nossas vidas". "Solteiros perseguem o que importa mais para eles, [como] trabalhos mais significativos e mais crescimento pessoal", argumenta. E, com mais autossuficiência, essas pessoas tinham menos chance de experimentar sentimentos negativos. Ela cita um estudo publicado no Journal of Family Issues que conclui que "ainda que o casamento continue a promover bem-estar para tanto homens quanto mulheres, em alguns casos — como autonomia e crescimento pessoal — os solteiros se saíram melhor do que os casados". Esses solteiros ouvidos pelo estudo tendiam a concordar mais com as frases "Para mim, a vida tem sido um processo contínuo de aprendizado, mudanças e crescimento" e "Acho importante ter novas experiências que desafiem como você vê a si mesmo e ao mundo". Um estudo posterior ao levantamento de DePaulo também colocou em xeque a ideia de que a saúde dos casados é sempre melhor. Publicada em março de 2017 na revista Social Forces, da Oxford University Press, a pesquisa de Matthijs Kalmijn, da Universidade de Amsterdã, usou dados coletados na Suíça ao longo de 16 anos e "lança dúvidas sobre a teoria de proteção de saúde" que beneficiaria pessoas casadas. O pesquisador questionava anualmente os participantes quanto a sua saúde. E não encontrou melhoras ao longo da vida dos casados — ressaltando que são necessários mais estudos para avançar no tema. "As evidências sugerem que o casamento tem mais a ver com a saúde mental do que física", escreve Kalmijn. "Especulamos que o casamento seja mais ligado a uma avaliação positiva da vida da pessoa do que a uma melhora em sua saúde." Vale lembrar, porém, que há extensa documentação científica sobre os efeitos favoráveis proporcionados por casamentos felizes, desde mais estabilidade econômica até o apoio mútuo cultivado entre o casal. Para DePaulo, ressaltar os benefícios da vida de solteiro não significa desprezar os do casamento — significa "buscar o estilo de vida que melhor funcione para cada pessoa". "O que importa não é fazer o que as outras pessoas acham que devemos fazer, mas sim buscar os espaços em que podemos ser o que realmente somos e nos permitir viver o melhor de nossas vidas", argumentou ela em uma apresentação de 2016 para Associação Americana de Psicologia.
2023-08-15
https://www.bbc.com/portuguese/geral-40734805
sociedade
Equipes devem achar de 10 a 20 mortos por dia, diz governador do Havaí
Equipes de resgate que vasculham casas e veículos reduzidos a cinzas no Havaí provavelmente encontrarão de 10 a 20 vítimas a mais por dia durante algum tempo, alertou o governador, Josh Green. O número de mortos aumentou para 96 no domingo (13/8), tornando este o incêndio florestal mais mortal nos Estados Unidos em mais de um século. Josh Green disse à CBS News que pode levar até 10 dias para saber o número total de mortos. Quase toda a cidade de Lahaina foi destruída pelo incêndio. "Não há nada exceto a devastação total", disse Green à CBS, parceira da BBC nos Estados Unidos. Ele acrescentou que todos os moradores de Lahaina - cerca de 12 mil pessoas - provavelmente escaparam ou morreram no incêndio. Ele disse que as equipes devem encontrar mais vítimas e que levará tempo para identificá-las. Fim do Matérias recomendadas "É difícil reconhecer alguém", disse Green. Até o sábado (12/8), as autoridades de Lahaina disseram que apenas 3% da cidade havia sido encontrada até agora. Eles têm usado a ajuda de cães farejadores para procurar mais vítimas. "Temos uma área com pelo menos cinco milhas quadradas que está cheia de nossos entes queridos", disse o chefe da polícia de Maui, Jeff Pelletier, em entrevista coletiva no fim de semana. Um total de 10 cães farejadores atuam com as equipes de busca e resgate da Agência Federal de Gerenciamento de Emergências (Fema, por sua sigla em inglês), disse a agência à CNN. Vários outros também foram enviados pelos bombeiros do sul da Califórnia, segundo autoridades locais. A administradora da Fema, Deanne Criswell, na segunda-feira (14/8), se recusou a dar uma estimativa exata de quanto tempo a missão de busca levaria, chamando a situação de "extremamente perigosa". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Os cães só podem trabalhar por algum tempo por causa do calor (que diminuiu)", disse Criswell, em coletiva de imprensa remota do Havaí. "Também existem pontos quentes e, portanto, temos equipes de bombeiros que estão ajudando a esfriar a área para que os cães possam entrar lá." Os cães são muito eficazes em encontrar restos humanos, dizem os especialistas, mas precisam descansar e se hidratar frequentemente entre as buscas. Apenas duas vítimas das 96 vítimas conhecidas foram oficialmente identificadas até agora, graças à tecnologia de DNA, disse o chefe Pelletier. A certa altura, mais de 2.000 pessoas foram tidas como desaparecidas desde o início do incêndio na ilha de Maui na semana passada. Green disse que o número de desaparecidos agora é de cerca de 1.300, já que as pessoas puderam se reencontrar depois que o acesso ao serviço de telefonia celular melhorou. "Nenhum de nós pensa isso, mas estamos preparados para muitas histórias trágicas." Pelletier incentivou as pessoas com familiares desaparecidos a enviar amostras de DNA para ajudar nos esforços de busca. Ele também pediu paciência a quem pretende entrar na vila, pois ainda existem vestígios que precisam ser recuperados e identificados. "Quando encontramos nossa família e amigos, os restos que encontramos foram a partir de um incêndio que derreteu o metal", disse ele. "Temos que fazer um DNA rápido para identificá-los." O incêndio mortal em Lahaina ainda está ativo, com cerca de 85% contidos, de acordo com autoridades do Condado de Maui. As causas do incêndio ainda não foram confirmadas, embora se saiba que ele se espalhou de forma tão devastadora graças aos ventos do furacão Dora nas proximidades e pelas condições de seca. Uma ação coletiva foi movida no sábado contra o maior fornecedor de eletricidade do Havaí, a Hawaii Electric, alegando que as linhas de transmissão de energia derrubadas da empresa contribuíram para os incêndios florestais. O processo acusa a empresa de não desligar as linhas, apesar do aviso prévio do Serviço Nacional de Meteorologia alertando que o Havaí estava em alerta máximo para incêndios florestais. Desligar temporariamente a energia para reduzir o risco de incêndio é uma tática usada nos Estados do oeste dos EUA, onde os incêndios florestais são comuns. Na Califórnia, as linhas de energia foram responsabilizadas por metade dos incêndios florestais mais destrutivos do Estado.
2023-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clj5jyez5ypo
sociedade
Nômades digitais e aluguel em dólar: por que moradores estão sendo expulsos de seus bairros na América Latina
Basta caminhar pelos bairros de Medellín, na Colômbia, para se deparar com dizeres nos muros: "Medellín não está à venda. Parem a gentrificação". O fenômeno é explicado pelo alto número de aluguéis de curta temporada, principalmente na plataforma Airbnb, e pela chegada em peso dos nômades digitais, segundo especialistas. E o cenário é comum em vários outros países da América Latina, onde moradores relatam o aumento no custo de vida. Segundo a plataforma AllTheRooms, que cataloga dados de habitações e aluguéis de temporada em todo mundo, houve um aumento expressivo de estadias na modalidade Airbnb na América Latina nos últimos anos. Na América do Sul, o Brasil aparece em primeiro lugar no número de diárias contratadas, seguido por Colômbia e Argentina. México, Costa Rica e Guatemala são outros países com taxas altas. Fim do Matérias recomendadas “A América Latina continua a desempenhar um papel significativo no mercado de aluguel de curto prazo, com forte crescimento ano a ano em todos os países da América Latina, tanto em receita quanto em oferta, em 2022 e até em 2023”, diz Joseph DiTomaso, CEO da plataforma. “Brasil e México continuam dominando o mercado, representando cerca de 72% da receita total de aluguel de curto prazo na América Latina”, acrescenta. Um estudo realizado pelo governo da cidade do México mostrou que o número de habitações temporárias na cidade, na categoria Airbnb, triplicou entre os anos de 2000 e 2020, passando de 22.122 a 71.780 unidades. A pesquisa mostrou ainda que a cidade do México expulsa anualmente 20 mil famílias de renda mais baixa por falta de opção de uma moradia acessível. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mesmo com o fim da pandemia de covid-19, muitos estrangeiros continuam trabalhando remotamente ou investiram para valer no modo de vida nômade. Muitos deles são remunerados em moeda valorizada e procuram cidades mais baratas, com qualidade de vida para morar ou passar longas temporadas, de acordo com Diana Quintas, sócia da Fragomen no Brasil, empresa especializada em imigração e líder na área de mobilidade internacional de pessoas físicas e empresas. “Falando de nomadismo digital na América Latina, nossa região é escolhida por muitos profissionais porque juntamos qualidade de vida a um custo atrativo para os mais bem colocados no mercado”, diz a especialista. Porém, isso afeta diretamente no aumento dos aluguéis para quem reside naquele lugar, aponta Isadora Guerreiro, coordenadora do Lab Cidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Esse processo, conhecido como gentrificação, se dá pela transformação da população local, que é substituída por outros perfis de renda mais alta, contribuindo para a supervalorização de um bairro ou cidade e, consequentemente, para a expulsão de antigos moradores. Segundo Guerreiro, esse movimento aprofunda a desigualdade urbana. "O que estamos vivendo na América Latina é que esses proprietários corporativos, que são empresas ou fundos de investimento internacional, passam a ser donos de unidades (...) e passam a definir (preços) baseado no setor internacional. (...) É totalmente descolado de quanto as pessoas podem pagar. Isso vai redefinindo o bairro", diz Guerreiro. Atrelado a isso, a América Latina também acompanha a onda de inflação global, intensificando o aumento dos aluguéis. Segundo dados do site de locação Quinto Andar, de maio de 2022 a maio de 2023, o custo médio do aluguel de um apartamento subiu 136% em Buenos Aires (Argentina); 13% na Cidade do México (México); 11% em São Paulo (Brasil), 11% em Quito (Equador), 11% na Cidade do Panamá (Panamá) e 6% em Lima (Peru). A gerente de comunicação brasileira Daniela De Caprio vive na cidade do México há três anos e meio. Ela se mudou para o país devido a uma oferta de trabalho. Mesmo o México tendo uma moeda desvalorizada frente ao real, segundo ela, alugar ou comprar um imóvel no país é muito caro. Desde que chegou ao país, De Caprio, de 33 anos, vem acompanhando o aumento nos preços dos aluguéis e mudou de bairro três vezes. Ela conta que, em alguns bairros, o aluguel de um apartamento pequeno sai por US$ 5 mil (R$ 24,5 mil). "Eu sabia que era caro, mas não tanto assim. Tem muitas empresas que vendem apartamentos já em dólar", diz. Maria Siqueira, dona da Imobiliária Ousía na Cidade do México, aponta que o aumento está ligado à chegada de nômades digitais e expatriados. Em outubro de 2022, o governo da Cidade do México anunciou uma parceria com o Airbnb e a Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para promover a cidade com um centro global para trabalhadores remotos e para se tornar a capital do turismo criativo. Segundo Vinicius Oike, economista do QuintoAndar, o fenômeno no México é até mais prevalente do que no restante da América Latina. "Esse processo é um fenômeno localizado, dentro de certos bairros e de certas cidades onde esse público se foca. Isso acontece até por questão geográfica de estar perto dos Estados Unidos, que adotou bastante o trabalho 100% remoto, mesmo depois da pandemia", diz o especialista. Siqueira confirma a dolarização nos aluguéis e aumento na procura dos imóveis por estrangeiros. "Para muitos proprietários, é conveniente cobrar em dólar. Eles aceitam a transferência já que tem muita burocracia para abrir uma conta. Às vezes, muitos vêm para cá temporariamente. O México é um dos países mais econômicos e tem uma boa qualidade de vida", diz. Siqueira acrescenta que muitos contratos são de um ano, mas acabam tendo flexibilidade caso a pessoa pague a multa e queira sair antes. No caso dos nômades digitais, ela diz que esse público não tem muitas exigências, são jovens e prolongam a estadia por mais tempo. "Alguns vêm para uma temporada e acabam ficando mais. Não querem gastar com um aluguel caro, querem viajar. Não importa se o edifício está caindo aos pedaços." Essa onda de trabalhadores remotos internacionais também foi sentida por pela brasileira Mayara Pinheiro, de 36 anos, consultora de operações em negócios na Cidade do México. Morando no local há dois anos e meio, ela diz que os preços de vários produtos e serviços começaram a mudar drasticamente. "Os 'gringos' estão se mudando para cá podendo pagar aluguéis que os locais, que ganham em moeda local, não podem. Daí, o aumento atinge não só os mexicanos, mas os latinos que já vivem aqui, como eu, que ganha em peso", opina. Ela conta que tem uma amiga mexicana que precisou deixar o apartamento atual e ir para um bairro mais distante, devido a um aumento de 20% no valor do aluguel. O problema também foi percebido pelo executivo de vendas de tecnologia Roberto Bucio, de 33 anos, que é mexicano e morou na capital a vida inteira. "Depois da pandemia houve várias mudanças. Algumas pessoas voltaram a morar com os pais ou saíram para cidades mais afastadas que ficam a uma hora de carro daqui. Os preços dos imóveis aumentaram muito", ressalta. Para ele, o modo de trabalho remoto, que começou em muitas empresas e segue até hoje, possibilitou a vinda dos nômades para o país. "Essa flexibilidade de não ir ao escritório tem uma conexão direta com o aumento do custo de vida na cidade nos últimos três anos." Considerada a cidade mais rica da Colômbia, Medellín vive um boom de estadias temporárias, muitas vezes cobradas em dólar. Segundo a plataforma AllTheRooms, entre 2020 e 2021, as estadias feitas por Airbnb cresceram 119% na cidade. Já em 2023, houve um crescimento de quase 40%, na comparação com o mesmo período do ano passado. Bairros como El Poblado e Laureles são os mais procurados por quem deseja ficar por mais tempo. Também são muito visados por turistas que visitam a cidade e buscam ficar perto do metrô, bares, cafés e restaurantes. Porém, a alta demanda por essas regiões já influencia no custo e estilo de vida dos moradores. A colombiana Diana Yanes, de 33 anos, vive em Medellín há 13 anos, e precisou sair do seu apartamento antigo devido ao aumento dos preços. A alternativa foi alugar apenas um quarto e dividir a casa com uma amiga. Ela diz que não conseguiria pagar por um imóvel se morasse sozinha. Mesmo sendo compartilhado, o espaço é simples e muito caro. Pelo fenômeno que ocorre na cidade, ela diz acreditar que a vinda de estrangeiros contribuiu para o aumento no valor dos aluguéis. "Os proprietários preferem alugar para estrangeiro para obter maior rentabilidade e não para pessoas locais que podem pagar um aluguel mensal mais baixo", diz. Marisol Pérez Hernández, de 43 anos, trabalha com uma pousada há quase três anos e ressalta que tudo mudou na cidade desde o aumento dos turistas estrangeiros e trabalhadores remotos. Embora tenha fortalecido a economia na região, principalmente no pós-pandemia, isso torna certos bairros proibitivos de morar, diz ela. "El Poblado, por exemplo, é impossível, são só turistas. Os aluguéis mensais são extremamente caros nessa região. Em Laureles, já está começando a chegar neste patamar." No bairro de Manila, que era conhecido por casas tradicionais, a realidade também mudou. Hoje, a região é completamente comercial, com cafés, albergues e pousadas. "Era um bairro velho e com população mais velha. Todos já saíram de lá. O turismo destruiu", diz Marisol. Ela também reforça que a cidade vive um movimento de construções de apartamentos destinados aos Airbnbs. "Todas as propriedades informam que será possível colocar o apartamento na plataforma. Querem investir nesse tipo de imóveis. Acho que não será possível ver o efeito agora, mas acredito que terá um efeito nocivo nos próximos dois anos", destaca. Hernández diz ainda que a inflação no país também está alta, provocando um aumento do preço de quase todos os serviços. O problema de estadias temporárias e preços cobrados em dólar já é uma realidade também na Argentina, principalmente na capital, Buenos Aires. É muito comum encontrar imóveis, principalmente na região metropolitana da cidade, com anúncios em moeda americana e não mais em pesos argentinos. Isso foi apontado também por um estudo realizado pelo Mercado Livre e pela Universidade San Andrés, que fica na capital. Segundo dados da pesquisa, 50% dos anúncios de aluguéis são feitos em dólar. O argentino Fernando Corraro, de 30 anos, confirma que observou essa mudança. "Já há lugares específicos na capital que o aluguel é pago em dólar", afirma. Por causa do aumento dos valores cobrados, ele diz que precisou mudar de bairro com os três filhos. Além da inflação que assola o país há anos, o local sofre com a baixa oferta de imóveis e também com o aumento do turismo internacional, principalmente de chilenos, uruguaios e brasileiros. Segundo o último relatório divulgado pelo Turismo da Argentina, o país recebeu somente em julho deste ano 622.445 visitantes não residentes. De acordo com a assessoria de imprensa, os dados são provisórios. Com a cotação do câmbio favorável, ficou muito mais fácil conhecer cidades argentinas sem gastar muito. A brasileira e advogada Ana Flavia Yarid, de 36 anos, foi uma das pessoas que aproveitou os preços baixos no país como nômade digital. Como ganha em real, sempre viaja para lugares mais baratos e onde a moeda brasileira tenha maior poder de compra. Segundo a brasileira, mesmo com o "efeito Airbnb", ainda é vantajoso viajar para a Argentina. Ela passou três meses explorando diversas cidades do território argentino. Ela constatou que algumas acomodações temporárias já estão sendo cobradas em dólar. Porém, para economizar, ela procura se hospedar em albergues e evita zonas muito turísticas. "É barato viajar dentro da própria Argentina. Peguei um ônibus leito de Buenos Aires para Mendoza e paguei R$ 170", diz. Ana Flavia passou por diversas cidades da América do Sul e ressalta que o país foi um dos melhores no quesito custo benefício, atrás apenas da cidade de Santa Marta, no litoral da Colômbia. Embora não exista um número oficial de quantos nômades digitais existem no mundo, a tendência é que eles cresçam ainda mais. Segundo dados do último relatório divulgado em 2022 pela empresa Fragmen, os nômades digitais já somam 35 milhões no mundo, podendo chegar a 1 bilhão em 2035. Outro estudo realizado pela MBO Partners, consultoria americana, mostrou que em 2022, ano em que a pesquisa foi realizada, 169 milhões de trabalhadores dos EUA se declararam nômades, um aumento de quase 9% em relação a 2021. A facilidade de visto e o bom custo benefício oferecido a alguns em muitos países possibilita a longa estadia em determinados lugares. No Brasil, por exemplo, a permanência de nômades já é regulamentada desde 2021 por uma resolução do Conselho Nacional de Imigração, do Ministério da Justiça e Segurança. A política migratória permite que o nômade estrangeiro fique por até um ano no país, podendo renovar o visto por esse mesmo período de permanência e que a renda mínima seja igual ou superior a US$ 1.500, entre outros requisitos. “O Brasil especificamente é um dos países que exigem as menores rendas para conceder o visto de nômade digital”, diz Quintas. A Argentina também já disponibiliza esse tipo de visto para nômades digitais estrangeiros, que podem ficar no país por até 180 dias. O governo não pede valor mínimo de comprovação de renda mensal, apenas recibos de honorários, além de cobrar pelo trâmite, que pode ser em euro ou dólar. “A região (América Latina) aderiu rapidamente à tendência de lançar vistos e criar programas de incentivo para atrair trabalhadores nômades e aquecer a economia local com capital estrangeiro”, afirma Quintas. Nos países da Europa, os valores de visto para essa modalidade podem ser bem mais custosos, se comparado à América Latina. Na Espanha, para quem deseja ser nômade é necessário ter em conta bancária 25 mil euros para o solicitante principal e 9.441 euros para cada membro da família. Em Portugal, há uma exigência de comprovação de rendimentos de pelo menos quatro salários mínimos portugueses mensais. Muitos nômades procuram cidades mais econômicas no México, Colômbia, Brasil, Argentina e outros países para trabalhar e ainda aproveitar os pontos turísticos nas horas vagas. Segundo a empresa Nomad List, em seu ranking global com centenas de países e cidades, a cidade do México aparece na 12ª posição e Buenos Aires aparece na 13ª ficando atrás apenas de alguns locais da Ásia e Europa, na escolha dos melhores locais para ser nômade digital no mundo. Já a empresa americana Kayak, líder no segmento de viagens, disponibilizou no ano passado um estudo que mostra um ranking dos melhores lugares para trabalhar remotamente. A Costa Rica, localizada na América Central, apareceu na sétima posição e o Panamá ficou em oitavo lugar. No ranking da América do Sul, o Brasil apareceu em primeiro na lista e a Colômbia em quarto. A pesquisa também levou em consideração fatores como segurança, custo de vida, boa internet, clima e outros requisitos. Segundo a Nomad List, as melhores cidades para trabalhar remotamente e viver como nômade digital na América Latina, de acordo com a opinião e avaliação dos visitantes, são Buenos Aires, em primeiro lugar, seguida da Cidade do México e Medellín na terceira posição. O Rio de Janeiro aparece na 12ª posição e Florianópolis, na 13ª. A avaliação no site leva em consideração segurança, internet, preços dos aluguéis e outros itens. O canadense Connor Ondriska, de 27 anos, atua na área de marketing digital e trabalha de forma remota há oito anos. Atualmente, é pago em dólares americanos. Ele já passou longas temporadas na Cidade do México, Medellín e Barranquilla, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. E relata que viver nessas cidades saía mais barato do que morar em Toronto, no Canadá, por exemplo. Connor diz que, embora no passado o valor mensal de moradia em Medellín girasse em torno de 2 milhões a 3,5 milhões de pesos colombianos (R$ 2,5 mil a R$ 4 mil), hoje o custo de vida para ele, inclusive na Colômbia, está caro. Mesmo sabendo que ganha em uma moeda valorizada, ele ressalta que ainda há um deslumbre na interpretação de que todos os nômades estrangeiros, principalmente europeus, americanos e canadenses, são ricos. “Uma grande parte dessas pessoas não ganha muito e não poderia viver em seus países de origem. Eles vão para países mais baratos para que possam viver uma vida um pouco melhor enquanto viajam", opina. A fotógrafa americana Katie Medow, de 36 anos, vive como nômade há mais de sete anos e já passou por diversos países da América Latina. Vivendo um longo período no México, entre cidades litorâneas e a própria capital, ela conta que a média por mês de um aluguel dividindo com o ex-namorado era de US$ 500 dólares (R$ 2,45 mil), o que, para ela, é muito econômico. "Na Filadélfia, por exemplo, teria que desembolsar, no mínimo, 900 dólares. E tem até mais caros", conta. Katie também achou o custo de vida em Cartagena, na Colômbia, bem acessível. Seus próximos planos agora são ir para o Egito e o Sudeste Asiático. "Ganhar em dólar realmente traz benefícios. Nesses lugares da Ásia, assim como na América Latina, a hospedagem em hostels e Airbnbs são muito baratas, além do transporte", afirma. O cenário não é muito diferente para os europeus. A italiana Sylvia Santarsiero, de 25 anos, é nômade digital e viaja com o namorado nesse estilo de vida desde maio de 2021. Trabalhando como freelancer, ela tem flexibilidade de estar em qualquer lugar do mudo. Sylvia diz que viver em países da América Latina realmente sai muito barato, já que ela e o companheiro ganham em euro. "A cidade mais barata que já vivemos foi Medellín, na Colômbia. Como trabalhamos para empresas europeias, podemos ficar em áreas melhores", afirma. O poder de compra é tão grande que a italiana conta que antes vivia na Holanda e pagava aproximadamente 500 euros (R$ 2,7 mil) por mês em um quarto sem mobília em uma casa compartilhada. Agora, ela e o namorado pagam no máximo 600 euros (R$ 3,3 mil) por boas moradias na América Latina. "Isso é menos da metade do que pagaríamos por um pequeno apartamento na Europa", diz. Além da Colômbia, Buenos Aires, na Argentina, também foi uma das cidades que mais os beneficiou no quesito economia. "O que realmente me surpreendeu é que para a maioria dos meus amigos argentinos era 'caro' sair para jantar, enquanto para mim era mais barato do que comprar mantimentos para comer em casa na Europa", afirma. "Se não ganhássemos em euros/dólares, não poderíamos ter o estilo de vida que estamos vivendo agora. Eu pessoalmente encontraria um emprego que me fizesse ganhar mais ou eu reduziria alguns padrões de viagem que tenho", complementa a nômade digital. Agora, o casal voltou para a Europa, onde vai passar alguns meses e depois segue para a Ásia. Embora pareça uma dinâmica difícil de ser resolvida a curto prazo, há maneiras para tentar amenizar esse fenômeno em cidades da América Latina, diz Isadora Guerreiro, da FAU-USP. Ele aponta que uma forma de impedir esse avanço de Airbnbs, aluguéis em dólares e outras medidas é por meio da intervenção do poder público. Na prática, isso significaria, por exemplo, tornar os edifícios de moradia pública para aluguel e que o município possa ter aluguel social em áreas que são de sua propriedade. O Estado pode fazer isso em prédios privados que tenham obtido benefícios públicos na construção; ou em prédios de sua propriedade (que já sejam seus ou que ele adquira). "Porque, com isso, se ele (Estado) tem muitas unidades, acaba conseguindo controlar o valor do aluguel e manter pessoas que querem morar naquele lugar", diz Guerreiro. Isso pode gerar benefícios para os centros das grandes metrópoles latino-americanas, como renovar edifícios que estão vazios hoje. Mas a especialista ainda alerta para a melhor forma de fazer esse processo. É importante, segundo ela, que essas unidades de aluguel em edifícios antigos restaurados (conhecidos como retrofits) tenham, de alguma maneira, um controle da demanda pública ou de baixa renda, que seja organizado e articulado por movimentos sociais ou entidades sem fins lucrativos. Isso vale dizer que o Estado define o perfil das famílias atendidas, dando prioridade para a baixa renda, e define a lista final de beneficiários. "Porque o grande problema de fazer retrofit ligado a plataformas de investimento internacional é ir para público de mais média e alta renda", diz Guerreiro. "É interessante a dinâmica de aluguel, renovando empreendimentos que estão vazios, desde que tenha um controle público sobre a demanda para que eles possam ser utilizados pela população que mais precisa."
2023-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy0p1z80yelo
sociedade
Lei Gompertz-Makeham: o modelo que calcula quanto tempo os humanos podem viver
A natureza tem de tudo — inclusive enormes diferenças na expectativa de vida dos seres vivos. Minúsculas e transparentes, elas têm habilidades extraordinárias de sobrevivência: voltam às suas formas juvenis em tempos de estresse, como quando são feridas fisicamente ou estão com fome, e, teoricamente, podem viver para sempre. Elas parecem ter encontrado aquela fonte mítica da juventude que os humanos não param de procurar. A história mais antiga que conhecemos, A Epopeia de Gilgamés, é sobre esse desejo. Fim do Matérias recomendadas Gravada em tabuletas de argila há quatro milênios na Mesopotâmia, ela conta a jornada empreendida pelo rei Gilgamés em busca de uma maneira de vencer a morte. O que ele encontra é o sentido da vida: "Humanos nascem, vivem e depois morrem, esta é a ordem que os deuses decretaram. Mas até o fim chegar, aproveite sua vida, gaste-a em felicidade, não em desespero." Seus conselhos, porém, não foram ouvidos, e até hoje existem cientistas nos melhores centros de pesquisa do planeta cuja missão se assemelha à do rei Gilgamés. Apesar de todos os esforços, no momento, nossa expectativa de vida média global é de 73,4 anos (segundo estimativa da Organização Mundial da Saúde de 2019). Embora essa idade tenha aumentado, existe uma lei sobre a vida e a morte que continua em vigor desde que foi formulada, há quase dois séculos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Curiosamente, essa lei sobre a expectativa de vida do ser humano não veio de uma área da Ciência que buscava a imortalidade, ou prolongar a vida, mas de outra área do conhecimento que também se interessa pelo tema da longevidade: a Ciência Atuarial. É a disciplina que aplica modelos estatísticos e matemáticos para avaliação de risco, principalmente nas indústrias de seguros e financeiras. Mais especificamente, o objetivo da lei era tornar mais confiável a ciência de calcular as taxas apropriadas para vender e comprar rendas vitalícias. E quem marcou uma nova era para essa ciência foi o matemático Benjamin Grompertz, que era da área de seguros, no século 19. Em 1825, ele apresentou um artigo intitulado Sobre a natureza da função expressiva da lei da mortalidade humana e sobre um novo modo de determinar o valor das contingências da vida, à Royal Society, em Londres. Era um modelo matemático que estabelecia que o risco de morte aumenta exponencialmente à medida que envelhecemos e agora é conhecido como Lei da Mortalidade Humana de Gompertz. À primeira vista, parece óbvio e, de fato, é em parte. Com o passar dos anos, nossas células param lentamente de se dividir, colocando uma carga maior sobre as que permanecem, que se deterioram até que nossos corpos não possam mais continuar. Mas a chave está na palavra "exponencialmente". Grompertz havia analisado relatórios sobre taxas de mortalidade e detectado um padrão. A lei é basicamente um cálculo da probabilidade de morrermos em um determinado ano. Ou seja, se lhe fizessem a pergunta incomum sobre quais são as chances de você morrer no próximo ano, o que você responderia? Uma em mil? Uma em 1 milhão? Seja qual for o seu cálculo, essa probabilidade dobrará a cada 8 anos. Se você tem 25 anos, sua chance de morrer no próximo ano é minúscula: 0,03%, aproximadamente uma em 3.000. Aos 33, é cerca de uma em 1.500. Aos 42, uma em 750 e assim por diante. Quando você chegar aos 100 anos, a probabilidade de viver até os 101 terá caído para 50%. Desde que Gompertz propôs sua lei, os dados das estatísticas de mortalidade a confirmaram, ajustando-a quase perfeitamente a um grande número de países, períodos de tempo e até mesmo a diferentes espécies de animais. Embora a expectativa média de vida real mude, a mesma regra geral de que "a chance de morrer dobra a cada X anos" ainda é válida. Isso, além de surpreendente, é misterioso: não se sabe ao certo por que é assim. Mas há dois "poréns". O primeiro "porém" é que, como você deve ter notado, o modelo do qual estamos falando é chamado de lei de Gompertz-Makeham, então está faltando alguma coisa. E isso foi acrescentado em 1860 por William Makeham, outro atuário britânico, quando ele propôs que o modelo de Gompertz poderia ser melhorado adicionando uma constante, independente da idade, ao crescimento exponencial. O modelo Gompertz funciona muito bem em ambientes protegidos onde as causas externas de morte são raras, como em condições de laboratório ou países com baixa mortalidade. No entanto, como sabemos, não importa quão jovem ou velho você seja, a vida pode ser fatalmente interrompida por outros motivos, como acidentes, desnutrição, doenças e assim por diante. Gompertz já havia assinalado isso: "É possível que a morte seja consequência de duas causas geralmente coexistentes; uma, o acaso, sem disposição prévia para morrer ou a deterioração; a outra, deterioração ou maior incapacidade de resistir à destruição". Mas foi Makeham quem acrescentou esse componente à fórmula matemática, um fator mais variável do modelo, que pode ser atenuado com a redução de riscos socioeconômicos e geopolíticos. Avanços na Ciência, Medicina e saneamento, por exemplo, significaram menores taxas de mortalidade em todos os países. Assim, essa lei destinada ao campo da venda de apólices de seguro tornou-se uma ferramenta valiosa para demógrafos e sociólogos, assim como para biólogos e biogerentólogos. O outro "porém" é intrigante e ainda está sob investigação. A lei da mortalidade de Gompertz-Makeham descreve a dinâmica da idade da mortalidade humana com muita precisão na janela de aproximadamente 30 a 80 anos. Mas alguns estudos descobriram que em idades mais avançadas as taxas de mortalidade aumentam mais lentamente, um fenômeno conhecido pelos cientistas como "teoria da desaceleração da mortalidade na velhice". O próprio Gompertz parece ter previsto esse platô de mortalidade mais tarde na vida, pois observou que as tabelas de vida humana mostravam que, a partir dos 92 anos, a taxa de mortalidade anual era quase constante em 0,25. Por que a lei deixa de vigorar após os 80 anos? O que muda quando você atinge essa idade? Os especialistas ainda não têm a resposta para essas perguntas.
2023-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5254nz04ro
sociedade
Como mudanças climáticas estão mudando língua de sinais
Para crianças surdas, professores e cientistas, falar sobre temas como "gases de efeito estufa" ou "pegada de carbono" significava soletrar termos científicos longos e complexos, letra por letra. Agora esses conceitos estão entre os 200 termos da ciência ambiental que têm seus próprios novos sinais oficiais na Língua de Sinais Britânica (BSL). Os cientistas surdos e especialistas em linguagem de sinais por trás da atualização esperam que o novo vocabulário torne possível para pessoas surdas participar plenamente das discussões sobre mudanças climáticas, seja no laboratório de ciências ou na sala de aula. "Estamos tentando criar sinais perfeitos que visualizem conceitos científicos", explica Audrey Cameron. Cameron, que é surda, lidera o projeto de língua de sinais na Universidade de Edimburgo, na Escócia, que acaba de adicionar os novos termos ao dicionário BSL. Fim do Matérias recomendadas Ela descreveu como, em sua própria carreira científica, a falta de vocabulário levou a uma exclusão em reuniões e conversas importantes. "Estive envolvida em pesquisa por 11 anos e fui a várias reuniões, mas nunca estive realmente envolvida porque não conseguia entender o que as pessoas estavam dizendo", disse ela à BBC News. "Eu queria falar com as pessoas sobre química e simplesmente não conseguia." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Liam McMulkin, professor de biologia em Glasgow, na Escócia, também esteve envolvido nas oficinas de criação de sinais, organizadas pelo Scottish Sensory Centre. "A beleza da linguagem de sinais, particularmente para a ciência, é que é uma linguagem visual", disse. "Alguns dos conceitos são abstratos, mas a linguagem de sinais pode realmente ajudar as crianças a entendê-los." McMulkin utilizou o sinal para "fotossíntese" como exemplo, que usa a forma de uma mão plana para representar uma folha, enquanto projeta os dedos — como os raios do sol — da outra mão. "Quando faço isso [mover a mão do sol em direção à mão da folha], você pode visualizar que a energia está sendo absorvida pela folha", explicou. O projeto de glossário científico, financiado em parte pela Royal Society, está em execução desde 2007 e adicionou cerca de 7 mil novos sinais à BSL. Cameron descreveu o processo pelo qual os sinais são desenvolvidos. "Pegamos uma lista de termos do currículo escolar e depois trabalhamos juntos para chegar a algo preciso, mas também visual, do significado". O glossário é projetado para apoiar crianças surdas nas escolas. E como Melissa, de 13 anos, uma aluna surda de uma escola regular em Glasgow explicou: "eles realmente ajudam você a entender o que está acontecendo". Melissa mostrou a diferença entre soletrar gases de efeito estufa (G-R-E-E-N-H-O-U-S-E G-A-S-E-S, em inglês) e usar o novo sinal que inclui mover os punhos fechados como moléculas de gás no ar. "Com o sinal, posso ver que algo está acontecendo com o gás", disse ela. McMulkin, que é professor de Ciências de Melissa e também é surdo, acrescentou que as pessoas ouvintes estão "constantemente aprendendo e adquirindo conhecimento" onde quer que vão, "mas as pessoas surdas perdem muita informação". "É por isso que é tão importante usar a linguagem de sinais nas aulas de Ciências nas escolas", diz. "Ele permite que crianças surdas aprendam em sua língua natural." Cameron também destacou o valor na educação de retratar conceitos científicos intrincados em movimentos de mão — tanto para crianças surdas quanto para ouvintes. Cameron observou uma aula em que crianças de cinco anos estavam aprendendo sobre como as coisas flutuam ou afundam. "Eles estavam aprendendo como as coisas menos densas flutuam, o que é bastante complexo", explicou. "E o professor estava usando o sinal para 'densidade'." O sinal explica esse conceito usando um punho fechado e envolvendo a outra mão — apertando e soltando para representar diferentes densidades. "Eu pensei: ‘essas crianças de cinco anos não vão entender isso’. Mas algum tempo depois do final da aula, eles foram questionados sobre por que as coisas flutuam ou afundam e todos eles usaram o sinal para densidade", disse Cameron. "Então, vi o impacto que isso pode ter. E minha paixão cresceu à medida que o glossário cresceu." O professor Jeremy Sanders, presidente do comitê de diversidade e inclusão da Royal Society, afirmou: "Esperamos que esses novos sinais inspirem e capacitem a próxima geração de estudantes que usam linguagem de sinais e permitam que cientistas compartilhem seu trabalho vital com o mundo". Reportagem adicional de Kate Stephens e Maddie Molloy
2023-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2jrd48ze5lo
sociedade
Vídeo, As dicas de negociadores de paz para reconciliar Brasil polarizadoDuration, 10,27
Métodos de mediação de conflitos vêm ganhando espaço em diversas esferas, até nos sistemas judiciais, onde são empregados como alternativas ao encarceramento e em conciliações entre vítimas e ofensores. Será que essas práticas poderiam ser úteis para uma sociedade brasileira tão polarizada como nos últimos tempos? Mediadores experientes teriam dicas a compartilhar com brasileiros que brigaram com parentes ou amigos por causa da política? Neste vídeo, nosso repórter João Fellet conversa com pessoas acostumadas a lidar com conflitos e procura lições a serem aprendidas. Assista e confira.
2023-08-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-66497070
sociedade
Como idosa salvou vidas com sua caminhonete rosa durante incêndio no Havaí
Lynette "Pinky" Iverson é presença constante na cidade havaiana de Lahaina há anos. Os moradores locais a conhecem por sua caminhonete extravagantemente decorada com gliter rosa e pelo seu chihuahua chamado Tiny. O veículo foi uma salvação para muitos, pois ela carregou "pelo menos uma dúzia" de pessoas na traseira do carro e fugiu da cidade na terça-feira (8/8) quando os incêndios florestais se espalharam. "Quando cheguei ao meu carro, ele já estava envolto em chamas ao redor dos pneus", disse ela à BBC News do abrigo de emergência War Memorial Stadium, lembrando como a provação dela começou. "Tentei salvar pessoas, mas algumas não consegui", acrescenta ela. Este é o desastre natural mais mortal da história do Havaí. Até a manhã de domingo (13/8), as autoridades locais já tinham confirmado ao menos 90 pessoas mortas. Fim do Matérias recomendadas Enquanto as chamas consumiam outras residências, ela jogava água na casa dela, na esperança de evitar que as brasas destruíssem o imóvel. Mas, apesar de seus esforços, ela se viu impotente ao testemunhar sua própria casa pegando fogo. "Uma senhora não queria sair. Outro homem estava gritando socorro". "Naquele momento, estávamos engolfados pela fumaça preta, muito preta", disse ela sobre a cena agitada. Ela só conseguiu pegar Tiny e as chaves do carro antes de fugir. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Enquanto conversávamos, notei algo rastejando na cama a apenas alguns centímetros de seu cachorro. Sem saber o que era, ela usou um caderno para jogá-lo no chão, depois o esmagou com sua bota roxa de cowboy. Era uma centopeia venenosa, disseram ela e outras pessoas do abrigo. Tiny poderia ter morrido se fosse picado, ela acrescentou. Iverson ficou abalada com a provação e frustrada com a limpeza dos lençóis doados no abrigo. Sem o telefone, ela diz que espera que o irmão dela, que vive em Nevada, veja que ela falou com a BBC e finalmente saiba que ela está segura. Iverson viveu em sua caminhonete por seis anos antes de finalmente ser aceita em uma comunidade habitacional para deficientes e idosos em Lahaina. Agora com 70 anos, ela espera poder encontrar um lugar para morar novamente. Steve Strode, um ex-mergulhador comercial que vive em Lahaina há 10 anos, diz que é assombrado pelos vizinhos que foi forçado a deixar para trás enquanto fugia para salvar sua vida. Falando de sua cama no mesmo abrigo, ele diz que havia um homem com deficiência em seu complexo de apartamentos que precisou da ajuda de várias pessoas para poder escapar. Mas não deu tempo de reunir um grupo para ajudar, diz. "Eu tinha que contorná-lo", lembra ele. Ele e seu vizinho sobreviveram usando suas bicicletas para fugir. Os homens, ambos na casa dos 60 anos, tiveram que passar pelas chamas que às vezes chegavam a 3 metros de altura. Os incêndios florestais na ilha de Maui, no Havaí, onde fica a cidade histórica de Lahaina, e na Ilha Grande começaram na noite de terça-feira. Os ventos do furacão e o clima seco ajudaram a alimentar as chamas, causando uma rápida propagação. Milhares ficaram desabrigados pelo desastre e Maui tem seis abrigos em operação.
2023-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1y125rp40o
sociedade
A cidade no Curdistão considerada por muitos o lugar mais sagrado que existe
A 125 km a nordeste de Erbil (a capital do Curdistão, uma região autônoma no norte do Iraque), fica um complexo de santuários do tamanho de uma aldeia. Lalish é o local mais sagrado do yazidismo, uma religião antiga com cerca de 700 mil seguidores em todo o mundo. “Lalish é tão sagrada para os yazidis quanto Meca para os muçulmanos, ou Jerusalém para os seguidores do islã, do cristianismo e do judaísmo”, afirma seu diretor de relações com os visitantes, Luqman Mahmood. O local tem 4 mil anos e também é aberto para pessoas que não sigam o yazidismo. Ele consiste de uma série de templos, com seus pináculos cônicos canelados característicos. O mais reverenciado deles contém o túmulo do xeque Adi ibn Musafir, considerado o fundador da religião. As origens exatas do yazidismo são controversas. Acredita-se que ele tenha mais de 7 mil anos. Ao longo do tempo, ele acabou incorporando elementos de outras religiões, como o zoroastrismo, o misticismo sufi, o cristianismo e o judaísmo. As principais crenças do yazidismo são que existe um único Deus (“Kuda”, em idioma curdo), que criou a humanidade, enquanto todos os outros seres vivos resultaram do trabalho de sete anjos, liderados pelo anjo em forma de pavão, chamado Malak Taus. Fim do Matérias recomendadas “Outra característica importante da religião yazidi é a crença na nossa unidade com o mundo natural, que tem raízes na antiga veneração da natureza”, afirma Mahmood. “A cobra preta na porta do tempo simboliza o nosso respeito pela Mãe Natureza. Nunca matamos uma cobra, mesmo se ela for venenosa.” A cobra é particularmente simbólica para os yazidis. Eles acreditam que a Arca de Noé teve um vazamento durante seu caminho até o repouso no pico do monte Ararat e uma serpente fechou o buraco com seu corpo, evitando que a embarcação afundasse e que todos a bordo morressem afogados. Como os muçulmanos que viajam para Meca, os yazidis são obrigados a peregrinar para Lalish pelo menos uma vez na vida. Os que moram no Curdistão ou no Iraque devem visitar a cidade pelo menos uma vez por ano. Os peregrinos e visitantes devem entrar no complexo em roupas modestas e andar descalços, em respeito ao local sagrado. Dentro do complexo, uma tradição popular entre os yazidis é dar girêk (nós) em lenços de seda pendurados em volta de árvores e pilares. As diferentes cores representam os sete anjos e cada nó representa uma oração. Os yazidis acreditam que desamarrar o nó de um peregrino anterior irá conceder àquela pessoa todos os seus desejos. Lalish abriga apenas 25 moradores permanentes. Eles incluem um sacerdote, diversos monges, uma freira e os chamados “servidores da casa”, que são responsáveis pela limpeza, manutenção, cuidados com as florestas de figueiras, nogueiras e oliveiras da região e por recolher solo para os peregrinos. Eles afirmam que todo yazidi deve ter um pouco de solo de Lalish e carregá-lo com ele como talismã. O solo também é uma parte fundamental dos ritos funerários dos yazidis. Ele é misturado com água sagrada de nascente e pequenas bolas de lama são colocadas na boca, nas orelhas e sobre os olhos do morto. Moedas também são colocadas no caixão (uma antiga tradição babilônica) para que o morto tenha dinheiro para gastar no paraíso. Azeitonas das florestas de Lalish são prensadas com os pés em barris de madeira e o óleo é armazenado em potes de argila, em uma das cavernas do complexo. O óleo é uma parte fundamental das práticas devocionais. Os yazidis rezam voltados para o sol, pelo menos duas vezes por dia, no nascer e no pôr do sol. À medida que chega o crepúsculo, são acesas em volta do local 365 lâmpadas de óleo de oliva (uma para cada dia do ano). Elas representam o sol e a luz de Deus. As crenças não convencionais do yazidismo geraram um longo histórico de perseguições aos seus praticantes. “Primeiro começou no tempo de Osmã 1º [séc. 14], fundador do Império Otomano”, afirma Mahmood. “Podemos contar mais de 70 episódios de genocídio diferentes desde então, os mais recentes por Saddam Hussein (1937-2006) e por membros do Estado Islâmico.” Mahmood prossegue contando que o jamadani – o turbante usado pelos homens yazidis – no passado era totalmente branco, mas, em Lalish, ele agora tem coloração xadrez vermelha, representando o derramamento de sangue dos yazidis. “Vestir roupas tradicionais não é apenas sinal de respeito para os que perdemos – é também forma de manter intacta nossa cultura”, explica ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sexta-feira é o dia sagrado dos yazidis, quando os membros da comunidade reúnem-se em Lalish em grandes números, para rezar e socializar-se. “O alimento sela a relação de união”, afirma a esposa de Luqman, Edee Mahmood, que me convida para o almoço com a família. Em uma cozinha ao ar livre, ela e outras mulheres prepararam pratos com carne de carneiro e os serviram à família, amigos e peregrinos da diáspora yazidi. Apesar de toda a hospitalidade, Edee Mahmood conta que os yazidis não se consideram uma comunidade inclusiva, já que eles não aceitam conversão, nem casamento com pessoas de outras religiões. “Se mantivermos o yazidismo puro, podemos manter nosso modo de vida”, explica ela. “Isso mantém nossas almas em paz e significa que somos capazes de suportar tudo o que vier ao nosso encontro.” “Sem raízes profundas, a árvore logo irá cair. O mesmo ocorre com o yazidismo.”
2023-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1vk1yd4ydqo
sociedade
A peça íntima que causou morte de milhares de mulheres na era vitoriana
Na noite de Halloween, 31 de outubro de 1871, Emily e Mary, meias-irmãs do escritor, poeta e dramaturgo Oscar Wilde, compareceram a um baile em Drumaconnor House, na Irlanda. Perto do final da noite, Emily estava dançando uma última valsa com Andrew Nicholl Reid, seu anfitrião, e, em um de seus giros perto de uma lareira, seu vestido roçou nas brasas e pegou fogo. Reid tentou em vão extinguir as chamas; quando Mary correu para ajudá-la, tudo o que ela fez foi colocar fogo em sua própria roupa também. Ambas as meninas morreram alguns dias depois. Seu pai, William, estava tão perturbado que seus "choros podiam ser ouvidos do lado de fora da casa", contou um amigo. Oscar, que aos 17 anos ainda morava com ele, ouvia o choro mais de perto. Fim do Matérias recomendadas As irmãs Wilde ficaram para a história como duas das milhares de fatalidades de uma das vestimentas mais amadas e ridicularizadas de todos os tempos: a crinolina, que são armações usadas sob as saias. A crinolina é uma reencarnação da anágua, peça popular e criticada que havia sido usada no século 18 — mas com uma diferença. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Enquanto a estrutura das anáguas era feita de osso de baleia, crina de cavalo, vime, madeira e até borracha inflável, a das crinolinas era feita de metal. E, com a invenção da máquina de costura na década de 1850, eles puderam ser produzidas em massa. Tal era sua popularidade que apenas um ano depois que a crinolina com armação de aço foi patenteada em 1856, o Reino Unido importou 40 mil toneladas de aço sueco para produzi-las. Em uma fábrica de Sheffield, 800 mulheres produziam 8 mil crinolinas por dia, uma taxa que não acompanhava a demanda, de acordo com o livro Crinoline, Fashion's Most Magnificent Disaster, de Brian May e Denis Pellerin. A vestimenta era criticada pela mais famosa das enfermeiras da época, Florence Nightingale, que chamou a crinolina de “um traje absurdo e hediondo”. Ela queria que as autoridades revelassem o número de mortes que o traje havia causado. Era — e ainda é — difícil saber realmente quantas mulheres morreram. Muitas publicações dão conta de milhares de mortes só no Reino Unido causadas de forma indireta pelo uso do apetrecho. Além de aproximar perigosamente as saias de chamas de velas e brasas de lareiras usadas para aquecer os ambientes, há registro de mulheres que foram arrastadas por carruagens depois que suas saias longas, vastas e extensas se enroscaram nas rodas dos veículos. Histórias não confirmadas dizem que algumas moças que passeavam por praias no sul da Inglaterra em dia de forte ventania teriam sido erguidas pelo vento como pipas e arremessadas no mar onde moreram afogadas. Na imprensa, as notícias sobre essas mortes eram frequentes e muitas vezes apresentadas com manchetes sensacionalistas. Uma deles, por exemplo, recebeu o título "Outro holocausto por crinolina" (1864). O texto cita o legista londrino e crítico da vestimenta, Edwin Lankester: "Ao longo de três anos, tantas mulheres perderam suas vidas em Londres para o fogo, principalmente por usar crinolinas, quanto as que foram sacrificadas em Santiago." Ele se referia ao trágico incêndio da Iglesia de la Compañía, no Chile, em 1863, no qual morreram cerca de 2 mil mulheres, cujos vestidos volumosos, segundo alguns relatos, dificultaram a fuga. Mas estatísticas confiáveis ​​são raras: os números mais citados estimam cerca de 3 mil mortes somente no Reino Unido nos dez anos em que a vestimenta esteve mais em voga, a partir do final da década de 1850. Quando o The New York Times relatou pela primeira vez o fenômeno das mortes relacionadas à crinolina em 1858, o jornal americano observou que o Court Journal de Londres havia registrado "nada menos que 19 mortes por essa causa na Inglaterra entre 1º de janeiro e meados de fevereiro". "Certamente uma média de três mortes por semana devido à queima de crinolinas deve assustar a mais imprudente do sexo privilegiado." Mas por que, apesar de tudo, as roupas íntimas femininas eram tão populares? Primeiro, vamos contextualizar tudo. Como conta a historiadora Alison Matthews David em seu livro Vítimas da Moda (2015), essa era uma época em que os chapéus eram feitos com mercúrio e os tecidos tingidos com corantes que continham quantidades assustadoras de arsênico. Esses venenos, porém, afetavam mais quem fabricava os artigos do que quem os usava. Além disso, essas mortes não foram tão espetaculares ou rápidas quanto as das mulheres em chamas. No entanto, como a revista satírica Anti-Teapot Review apontou em 1864, o problema não começou com crinolinas. “As anáguas antigas (...) eram imóveis se pegassem fogo. E elas pegaram fogo com mais frequência do que muitos imaginam, só que naqueles dias não havia dezenas de jornais de Londres, famintos para relatar acidentes domésticos nas épocas de falta de notícia." Mas, mesmo assim, é difícil entender por que tantas mulheres iriam querer usar algo tão obviamente pouco prático, que quando não pegava fogo, se enroscava em tudo pelo caminho, atrapalhava espaços estreitos, causava quedas em rajadas de vento vento. E, como mostram essas fotos, eram extremamente difíceis de vestir. Apesar das imagens, e do fato de no seu pico as crinolinas atingirem quase dois metros de circunferência, a verdade é que o seu tamanho não costumava ser tão exagerado. Muitas das fotos e charges que chegaram até nós faziam parte de uma campanha implacável da opinião pública majoritariamente masculina que ridicularizava as vestimentas. E enquanto para alguns era uma vestimenta que, como disse a historiadora Helene Roberts, "ajudou a moldar o comportamento feminino no papel de 'escrava primorosa'" e "literalmente transformou as mulheres em pássaros enjaulados cercados por aros de aço", curiosamente, as escritoras da época descreviam a crinolina como libertadora. As saias estilo Império que eram usadas no início daquele século eram tão estreitas que era difícil andar. "Eram calças com apenas uma perna em vez de duas", observou uma escritora do The Examiner semanalmente em 1863. Nas décadas seguintes, mais e mais anáguas foram adicionadas para alargá-las, até que se tornaram pesadas, imanejáveis e anti-higiênicas. É por isso que quando a crinolina chegou, ela foi aplaudida como um avanço tecnológico bem-vindo e prático: todas aquelas camadas que ancoravam as mulheres ao chão foram substituídas por uma única infraestrutura. "A crinolina é outra palavra para liberdade", disse a mesma escritora. Isso as camponesas já haviam descoberto há muitos séculos, quando foram criadas as primeiras versões de armações que levantavam as saias e deixavam as pernas livres. E essa era também a opinião de muitas das mulheres sufragistas, que anos depois lutaram pelo direito feminino ao voto, para surpresa de Florence Nightingale, que achava "alarmantemente peculiar" que aquelas que defendiam a utilidade geral das mulheres para o mundo se vestissem de uma maneira que as tornasse inúteis para qualquer tarefa. Mas essa opinião de Nightingale era contrário à percepção de muitas em seu tempo. "Para os próprios vitorianos, a crinolina tinha pouco a ver com submissão, parecendo mais uma trama monstruosa para aumentar o tamanho das mulheres e fazer os homens parecerem insignificantes", observou a historiadora da moda Christina Walkley. Essas saias ocupavam "mais espaço público do que uma mulher tinha direito", comentou a especialista em ilustração vitoriana Lorraine Janzen Kooistra. "A ansiedade masculina da época diante da agitação pelos direitos das mulheres foi capturada na imprensa popular na imagem visual da crinolina." Isso explica a veemência e tenacidade da oposição a essa vestimenta. Além de melhor mobilidade, ventilação e espaço, a crinolina deu às mulheres um lugar que elas poderiam controlar, evitando avanços físicos indesejados e permitindo que elas escolhessem o que revelar e o que esconder. Ela tinha potencial para guardar segredos, desde amantes proibidos até gravidez e contrabando. Tudo isso sem esquecer que, para desgosto de alguns, a crinolina era usada por mulheres de todas as classes sociais, até mesmo por ex-escravas recém-libertas, que, ao usá-las, demonstravam fisicamente a luta pela igualdade social. Em 1869, quando a tendência continuava, mas a forma e o tamanho dessas roupas começaram a mudar, surgiu um artigo intitulado "Quem matou a crinolina?". "Alguns dizem que a crinolina foi varrida por um grande maremoto de bom senso." E talvez eles estivessem certos. Mas por mais complicado e perigoso que fosse, aquela controversa roupa íntima feminina foi um prenúncio de ousadas mudanças culturais, apesar de sua aparente frivolidade.
2023-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nwypgkk7vo
sociedade
Como prisões da América Latina se tornaram centros de comando para as principais facções de tráfico de drogas
No Equador, as prisões são o epicentro de uma crise de segurança pública sem precedentes. No Brasil e na Venezuela, grupos criminosos nascidos atrás das grades estão se expandindo. Na América Central, governos tomam medidas extremas contra o poder exercido pelas facções nas prisões. Em toda a América Latina, penitenciárias criadas por países para melhorar a segurança de quem está fora delas tiveram o efeito contrário: tornaram-se centros de comando de importantes organizações criminosas. Em geral, essas facções que surgiram e são comandadas de dentro dos presídios têm como principal fonte de renda o tráfico de drogas. Mas especialistas acreditam que algumas se envolveram em outras formas de crime, desde extorsão até mineração ilegal. “A prisão não é como pensávamos”, diz Gustavo Fondevila, especialista do Centro de Pesquisa e Ensino Econômico (Cide), no México. “Esses presídios da região se tornaram motores da violência: você constrói um presídio em um lugar e o índice de criminalidade naquela área aumenta”, acrescenta Fondevila em entrevista à BBC Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Fim do Matérias recomendadas “É um Estado paralelo dentro das prisões." O desafio prisional para os países latino-americanos cresceu à medida que celas superlotavam nas últimas décadas, sem políticas efetivas para acompanhar essa tendência e ressocializar os presos. A população carcerária nas Américas, excluindo os Estados Unidos, mais do que dobrou desde 2000, de acordo com o World Prison Brief, um relatório global de dados prisionais publicado em 2021 pelo Institute for Crime and Justice Policy Research (ICPR, por sua sigla em inglês). Esse aumento no número de presos chegou a 200% na América do Sul, segundo o estudo, e a 77% na América Central. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No Brasil, onde a população carcerária multiplicou por 3,5 desde o início deste século, um grupo surgido na década de 1990 dentro de um presídio paulista passou a ser considerado nas últimas décadas a maior organização criminosa do país e talvez da América do Sul: o Primeiro Comando da Capital (PCC). Inicialmente concebido como um sindicato de proteção aos presos, com estatuto próprio, o PCC se fortaleceu dentro dos presídios até que em 2006 mostrou sua capacidade de atuar nas ruas. Na época, uma série de ataques violentos banharam em sangue e paralisaram a maior cidade da América Latina. "O crime fortalece o crime" é um dos lemas do PCC. O grupo se expandiu quando as autoridades enviaram seus líderes para prisões em outros Estados brasileiros onde recrutou mais membros, até chegar a cerca de 30 mil integrantes dentro e fora das prisões, indicam estudos. Sob a liderança de Marcos Herbas Camacho, conhecido como Marcola, preso desde 1999, o PCC expandiu suas operações de tráfico de drogas controlando rotas internacionais do Paraguai, Bolívia e outros países da região. Paralelamente, a facção ampliou seus ganhos com outros crimes, como assaltos a bancos e venda de telefones roubados. Neste ano, um relatório da ONU citou relatos de infiltração de operações ilegais de mineração de ouro na Amazônia pelo PCC e Comando Vermelho, outra poderosa facção brasileira nascida em uma prisão do Rio de Janeiro. “Mesmo dentro da prisão, grupos como o PCC não interromperam completamente sua comunicação com o que está acontecendo nas ruas. Quando falamos de presos com maior poder e centralidade na organização, com certeza eles têm a possibilidade de manter a influência, os lucros e a organização do negócio”, diz Betina Barros, socióloga e pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, para a BBC Mundo. Na prática, o PCC é um caso emblemático do que está acontecendo numa escala menor em outras partes da região. Em vez de controlar o interior da prisão de Tocorón, no centro-norte da Venezuela, autoridades transferiram a responsabilidade para os próprios presos. Assim, junto a uma boate, um cassino e um zoológico, outra transnacional latino-americana do crime, o Tren de Aragua, surgiu em 2014 nessa penitenciária venezuelana. Além de narcotráfico, a quadrilha, que conta com cerca de 3.000 membros, é acusada de uma ampla gama de crimes: de extorsão e sequestro a tráfico de pessoas e pistolagem —além de garimpo ilegal como o PCC, com o qual estabeleceu laços segundo autoridades brasileiras. Figura mais visível do Tren de Aragua, Héctor Rusthenford "Niño" Guerrero, "está protegido dentro de Tocorón e controla toda a operação de lá", disse Ronna Rísquez, jornalista venezuelana e autora de um livro sobre a quadrilha, em entrevista em maio. A falta de controle dos presídios superlotados também ficou evidente no Equador, onde o governo declarou na semana passada estado de emergência. O sistema prisional do país foi palco de uma série de massacres com mais de 450 mortos desde o ano de 2020. Por trás da violência nas prisões equatorianas, os especialistas veem uma guerra de gangues que também se espalhou pelas ruas, palco de homicídios, tiroteios e ataques enquanto o país se tornava um centro regional de distribuição de drogas. “Eu diria que o Equador é um narcoestado governado de dentro das prisões pelo crime organizado”, disse Carla Álvarez, professora e pesquisadora de segurança. Sem chegar a esses extremos, outros países da região viram crescer o desafio do narcotráfico atrás das grades. Na Argentina, várias pessoas foram presas acusadas de transportar quilos de cocaína sob o comando de líderes presos do "Los Monos", uma quadrilha do narcotráfico da cidade de Rosário. Recentemente, revelaram que um ex-piloto de aviação que já forneceu drogas ao grupo dirigia uma rede ativa de distribuição de entorpecentes e lavagem de dinheiro a partir do presídio de Ezeiza. No México, onde traficantes como Joaquín “El Chapo” Guzmán mantinham seus gigantescos negócios ilícitos em prisões de segurança máxima, estima-se que milhões de telefonemas de extorsão sejam feitos a partir das prisões todos os anos. Alguns governantes latino-americanos admitiram abertamente que as facções dominam suas prisões. “Iniciamos atividades para que as prisões deixem de ser escolas do crime e quebrem o ciclo com as facções”, disse José Manuel Zelaya, secretário de Estado de Defesa Nacional de Honduras, semanas atrás. Além de planejar a construção de uma prisão para cerca de 2.000 líderes de facções em um arquipélago caribenho, o governo hondurenho adotou medidas extremas para combater o crime, como toque de recolher, estado de emergência em grande parte do país e a militarização de presídios superlotados após vários massacres . Essa estratégia de "mão forte" parece ser cópia da usada pelo presidente salvadorenho Nayib Bukele para reduzir o enorme poder que as facções tinham dentro e fora das prisões de seu país, incluindo a inauguração de uma megaprisão para supostos membros de gangues neste ano. Com a taxa de homicídios despencando em El Salvador, Bukele goza de grande popularidade em nível doméstico e é considerado por alguns políticos da região um exemplo a ser seguido. Mas alguns alertam que o país está pagando um preço muito alto para restaurar a segurança pública, com erosão das liberdades civis, abusos das forças de segurança e concentração de poder no presidente. Outros lembram que as apostas apenas para punir muitas vezes se tornam um bumerangue na América Latina. “Em contextos com muitas vítimas, as pessoas querem uma mão forte. Dá para entender perfeitamente: elas querem sair na rua sem medo”, diz Fondevila. “Mas a resposta de prender todo mundo por qualquer coisa na região deu muito errado e o efeito é paradoxal: colocamos pessoas na prisão para ficar tranquilo e essas pessoas voltam para a sociedade com crimes cada vez mais graves e complexos”.
2023-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c03x57z15l6o
sociedade
O mistério do fungo que prometia o orgasmo feminino e foi um fiasco
“Na ilha do Havaí... crescendo apenas sobre lava derramada 600 a 1 mil anos atrás, este fungo tem a fama de ser um poderoso afrodisíaco feminino.” Estes são os efeitos de um fungo do possível gênero Dictyophora, descritos por John Holliday e Noah Soule em um artigo publicado em 2001 na revista International Journal of Medicinal Mushrooms. Os autores acrescentam que “quase a metade das mulheres do estudo – foram 19 as participantes, segundo o relatado – experimentaram orgasmos espontâneos ao cheirar o fungo”. Os pesquisadores não mencionam o caprichoso caráter sexista do fungo e seu aparente potencial de afetar apenas as mulheres. Mas Holliday e Soule cuidam de explicar os argumentos científicos da sua descoberta: “Os componentes voláteis dos esporos podem ter certas similaridades com os neurotransmissores que são ativados durante o encontro sexual.” Foi assim que um misterioso fungo que cresce sobre a lava dos vulcões do Havaí se tornou um ícone afrodisíaco, desbancando as ostras. Ao lado do artigo do International Journal of Medicinal Mushrooms, foi narrada a lenda de Makealani, filha do antigo rei do Havaí, Kupakani. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A história conta que, enquanto caminhava pelo bosque ao completar 16 anos, Makealani percebeu um aroma estranho e atraente. Naquele momento, começou a imaginar-se sozinha com Kepa’a, o filho de um amigo do seu pai. Quando chegou à fonte do odor, Makealani observou uma estranha planta de tom rosa-alaranjado. Ela se erguia com um único caule e um curioso véu ao seu redor. O aroma, igualmente repulsivo e atraente, incitou-a a ajoelhar-se e aspirá-lo diretamente da fonte. E, absorvida por um profundo êxtase sexual, ela correu até a aldeia, onde se encontrou com Kepa’a e se entregou totalmente a ele. A pesquisa específica sobre o fungo foi publicada sem protocolos, sem fotografias do fungo e sem conclusões definitivas, o que rapidamente causou suspeitas sobre a sua veracidade. Naquela época, Holliday era editor da revista que publicou o artigo. Mas era também funcionário de uma poderosa indústria farmacêutica. Holliday e Soule foram então acusados de buscar apenas o benefício econômico que seria oferecido por um elixir de farmácia com propósitos afrodisíacos. Existem pessoas que o consomem no seu estado de ovo, como se fosse um fungo do gênero Amanita. Não consta que seja algo venenoso ou prejudicial. Mas é claro que também não há nenhuma evidência de que o fungo provoque orgasmos ou ative o desejo sexual. E, como já anunciava a lenda de Makealani, este fungo singular esconde uma terrível característica: seu odor fétido. Para algumas pessoas, ele cheira a carne ou peixe em decomposição, enquanto, para outros, assemelha-se ao odor pútrido de um cadáver. Basta caminhar pelo campo para saber se existe algum fungo Phallus por perto. Seu cheiro pode ser percebido muito antes que ele seja localizado visualmente. O olfato é um dos sentidos mais poderosos da maior parte dos seres vivos. Com todas estas informações no inconsciente coletivo, fica fácil fazer acreditar que o odor de um fungo produza orgasmos nas mulheres. E, assim, voltamos ao fungo que cresce na lava dos vulcões do Havaí, mas agora para desvendar a sua lenda. Apesar das pouquíssimas informações existentes, Wilcox conseguiu localizar John Holliday e entrevistá-lo. Ele forneceu apenas indicações vagas sobre onde encontrar o fungo e pouca ou nenhuma informação sobre seus experimentos. Na sua busca, Wilcox entrou em contato com amigos e pesquisadores no Havaí, para tentar ampliar suas incipientes informações. E logo começou a suspeitar da fraude, já que ninguém ali conhecia a lenda da filha do rei Kupakani. Entusiasmado com o assunto, o professor emérito de botânica Don Hemmes, da Universidade de Hilo, no Havaí, aventurou-se além do esperado. Hemmes definiu o nome do fungo tão desejado. Ele afirmou que poderia se tratar do fungo Phallus cinnabarina. Christie Wilcox organizou uma viagem em busca do fungo, acompanhada do seu namorado Jake. Sua intenção era realizar a pesquisa da forma mais realista possível. Depois de uma longa busca, eles encontraram diversos espécimes descritos como o fungo Dictyophora. Jake e Wilcox então começaram os testes. Ambos cheiraram o fungo em diferentes distâncias e intervalos de tempo, registrando suas sensações e sua reação biológica, quando entregues ao repugnante aroma do fungo tão desejado. E a reação não tardou para vir. Christie Wilcox lembra-se de quase ter vomitado, enquanto Jake menciona apenas o odor desagradável. É verdade que os batimentos cardíacos de ambos aumentaram, mas sem nenhuma relação com um êxtase sexual. Parecia mais ter sido causado pelo impulso de fugir para longe daquele fungo hediondo. Ficou claro para Wilcox que o precioso fungo nada tinha de sexual, já que ele não produziu sensações prazerosas, nem de longe. Mas, segundo Holliday, as pesquisas farmacêuticas continuam até hoje, o que também carece de qualquer confirmação. O mistério continua e o falo hediondo permanece na cultura popular como curioso afrodisíaco, ao lado dos aspargos, das bananas e dos chifres de rinoceronte – independente do seu cheiro. * Sergio Fuentes Antón é professor de didática de ciências experimentais da Universidade de Salamanca, na Espanha.
2023-08-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgr8wyrwgkno
sociedade
Hip-hop, 50 anos: a história da cultura que saiu do Bronx para ganhar o mundo
Neste dia de 1973, em uma festa em um apartamento no Bronx, em Nova York, nascia o hip-hop. Utilizando dois toca-discos e um microfone, o pioneiro jamaicano do funk e soul, DJ Kool Herc, revolucionou a música ao misturar dois discos, isolando e prolongando as batidas do bumbo, também conhecidas como "breaks", ao mesmo tempo em que criava sobreposições sonoras ritmicas. E o resto é história. Na verdade, as raízes desse fenômeno remontam muito antes, tendo sido influenciadas por precursores como Last Poets e DJ Hollywood. No entanto, foi 11 de agosto de 1973 a data de nascimento simbólica. A partir desse momento, os DJs demonstraram uma versatilidade impressionante, lançando discos de 12 polegadas nos quais equipes de MCs faziam rimas sincronizadas com as batidas pulsantes. Um dos primeiros hinos emblemáticos da velha guarda emergiu em 1979 com o sucesso do Sugarhill Gang, intitulado "Rapper's Delight". Inicialmente considerada enigmática pelos críticos da época, essa faixa, construída sobre uma amostra da música "Good Times" do Chic, rapidamente se solidificou como um marco, capturando de maneira concisa o espírito inaugural do hip-hop. Fim do Matérias recomendadas Posteriormente, essa música receberia uma interpretação hilariante da "avó do rap", Ellen Albertini Dow, no filme "The Wedding Singer". O rap e a mixagem, juntamente com o breakdance - uma nova forma de dança de rua que cresceu junto com a música - e o graffiti se tornaram os quatro pilares do movimento rebelde e inovador. Outro DJ do Bronx, Afrika Bambaataa, formou a Universal Zulu Nation, que organizava eventos onde membros dos grupos podiam competir em competições de breakdance e ouvir música. Movendo-se da rua para a tela, os principais grafiteiros de Nova York Jean-Michel Basquiat e Fab 5 Freddy apareceram no primeiro vídeo de rap transmitido na MTV, para a faixa "Rapture" da banda pós-punk Blondie. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast À medida que o hip-hop cresceu, as possibilidades de paradas e oportunidades para colaborações entre gêneros também cresceram. A reformulação hip-hop de Run DMC de 1986 da faixa de rock do Aerosmith, "Walk This Way", tornou-se um novo clássico escolar instantâneo, tornando-os os primeiros superstars globais do hip-hop. Em um aspecto técnico notável, a estrela por trás de "The Message", Grandmaster Flash, desempenhou um papel crucial na popularização do "scratching" - a ação intencional de movimentar um disco para frente e para trás nas rodas de aço do toca-discos. Além disso, inovações como a introdução da bateria eletrônica Roland TR-808 impulsionaram ainda mais o avanço do movimento. No âmbito pessoal, surgiram indícios de que o hip-hop estava transcendo as barreiras do domínio exclusivo dos homens negros. O sucesso de "Push It!" por parte de Salt-N-Pepa e a revolta festeira dos Beastie Boys, que reivindicaram seu direito de celebrar, culminaram no marco de conquistar o primeiro álbum de rap a atingir o topo das paradas nos Estados Unidos, com "Licensed to Ill". O hip-hop estava encontrando sua voz, com rappers abordando questões políticas e sociais. Inspirado pelo Movimento Black Power da década de 1960, o "Fight the Power "do Public Enemy de Long Island destacou os problemas enfrentados pelos jovens negros. A música "NY State Of Mind" de Nas, notável por ser uma das poucas faixas de rap a ser incluída na Norton Anthology of African American Literature, foi elogiada por sua representação vívida da vida nas áreas urbanas, comparável à clareza de uma fotografia de Gordon Parks ou à profundidade poética de um verso de Langston Hughes. Na cena da costa oeste, o impactante sucesso "Express Yourself" da NWA trouxe Dr. Dre à tona, cujo cativante refrão emprestado expressava a mensagem de que haviam recebido a orientação de abandonar os temas do gueto em favor de produzir rap voltado para as paradas pop. Essa mudança de foco ressoou intensamente, destacando os contrastes e desafios enfrentados por diferentes facetas do movimento hip-hop. O gênero estava se tornando uma fera multifacetada, indo desde as batidas contundentes do coletivo Compton até a abrangência completa das criações do Wu-Tang Clan. O hip-hop estava expandindo seu som e alcance, ilustrado brilhantemente pelo lançamento inaugural de De La Soul, "3 Feet High and Rising", bem como por outras bandas alternativas e espiritualmente enraizadas da era conhecida como "a era das margaridas", exemplificada por A Tribe Called Quest. Posteriormente, surgiram Mos Def e The Roots, sendo até rotulados como "a primeira banda autêntica do hip-hop". Uma década depois, eles alcançaram reconhecimento como a banda residente do apresentador de talk show da televisão americana, Jimmy Fallon. Paralelamente, um movimento consciente ganhava força, celebrando a vivência das mulheres negras, com líderes como Monie Love e Queen Latifah, cujas músicas como "UNITY" ecoavam essa mensagem. Mais adiante, Lauryn Hill também se juntou a esse movimento, consolidando uma presença poderosa. "Hill observou com perspicácia: "Ao trazer conhecimento para nossa comunidade, também estamos compartilhando conhecimento com todos os outros, permitindo-lhes compreender nossa realidade". Ela acrescentou de maneira significativa: "Embora direcionado à cultura negra, é um conhecimento que enriquece a consciência de todos". O período que abrange o final dos anos 1980 até meados dos anos 1990 ficou eternizado como a "Era de Ouro" do hip-hop. No entanto, curiosamente, o gênero só conquistou o seu primeiro single a atingir o topo das paradas em 1990, cortesia de "Ice Ice Baby" de Vanilla Ice. Ao consolidar sua influência como um dos gêneros musicais mais proeminentes, nomes como Tupac Shakur e The Notorious BIG emergiram como líderes, impulsionando o movimento com faixas icônicas como "California Love", "Changes" e "Juicy". Paralelamente, Dr. Dre e Snoop Dogg pintaram um retrato vívido do estilo de vida gangster através de músicas como "Nuthin' But A 'G' Thang". As coisas ficaram feias em 1996 e 1997, quando as trágicas mortes de Tupac, que residia na Califórnia, e Biggie, nascido no Brooklyn, marcaram um ponto de virada sombrio. Ambos os assassinatos permanecem sem solução, mas suas mortes levaram a um esfriamento das tensões. O cenário sonoro passou por mais uma transformação significativa sob a liderança inovadora do produtor Timbaland e da irreverente Missy Elliott, dando origem a um modelo que viria a influenciar artistas como Nicki Minaj e Megan Thee Stallion, entre outros. Em contraponto, Will Smith, a estrela de "Fresh Prince of Bel-Air", trouxe uma abordagem notavelmente distinta ao hip-hop, entregando rimas cativantes voltadas para todas as idades, como evidenciado em faixas como "Gettin' Jiggy Wit It". Em um marco inesquecível, o ano de 1999 registrou um momento histórico com Lauryn Hill - anteriormente conhecida por seu papel nos Fugees e no filme "Dangerous Minds" - estreitando a lacuna entre o hip-hop e o cenário musical popular ao conquistar cinco prêmios Grammy por seu álbum profundamente pessoal, "The Miseducation of Lauryn Hill". Seu estilo de rap carregado de alma serviu de inspiração para as futuras gerações de rappers britânicas, incluindo notáveis figuras como as vencedoras do Mercury Prize, Ms Dynamite, Speech Debelle e Estelle. Antes do fim do milênio, estava prestes a surgir a primeira grande estrela branca do hip-hop, impulsionada pelo ressurgimento de Dr. Dre. Marshall Mathers III. Natural de Detroit, mais conhecido como Eminem ou Slim Shady, o rapper entrou em cena de maneira estrondosa. Sua rima de humor ácido, politicamente incorreto e veloz trouxe uma abordagem inovadora, e ele mais tarde personificou uma versão de si mesmo no filme de batalha de rap "8 Mile". Outro protegido de Dr. Dre, 50 Cent, fez vibrar as pistas com "In Da Club". "A essência jovem da cultura hip-hop", observou Fiddy jovialmente, "deve permanecer na juventude. Não acredito que o verso mais quente deva chegar aos cinquenta." Ainovação também foi feita através de pioneiros como OutKast de Atlanta, Kanye West, Tyler, the Creator e Kendrick Lamar, figuras que redefiniriam o hip-hop como uma forma de arte na era digital emergente. Lamar expressou o desejo de transmitir mensagens "incisivas" em um álbum que poderia desafiar a sociedade, mantendo ao mesmo tempo uma "conexão" com os ouvintes. Seu álbum de platina vencedor do Grammy em 2015, "To Pimp a Butterfly", se tornou um hino de resistência - "Alright" - para os ativistas do movimento Black Lives Matter após o trágico assassinato de George Floyd. A continuação, "Damn", de 2018, conquistou um Prêmio Pulitzer. No mesmo período, o rapper canadense de estilo pop, Drake, se tornou o primeiro artista de rap a ser nomeado Artista do Ano pela Billboard Hot 100, impulsionado por seu sucesso viral "One Dance". Lil Nas X, um notável rapper gay em uma indústria historicamente marcada por homofobia, estabeleceu um novo recorde nas paradas americanas, passando 19 semanas no topo com "Old Town Road". Anteriormente, quando o hip-hop cruzou o Atlântico pela primeira vez, muitos artistas do Reino Unido simplesmente copiaram seus colegas americanos. Mas nomes como Roots Manuva, So Solid Crew e depois The Streets, que misturaram hip-hop com dub e UK garage respectivamente, deram ao rap uma autêntica voz britânica - e sotaque. O trip-hop já havia testemunhado a fusão psicodélica de ritmo lento entre o hip-hop e a música eletrônica, através das criações de Massive Attack e Portishead, ambos originados em Bristol. Um momento de virada para o público do Reino Unido ocorreu em 2008, quando Jay-Z, o astro de "99 Problems", encabeçou o festival Glastonbury, apesar da objeção de Noel Gallagher, do Oasis, que criticou a escolha de um headliner de hip-hop. O palco foi logo dominado por apresentações marcantes de Beyoncé e Kanye, antes de Stormzy se tornar o primeiro rapper britânico negro a liderar o maior festival de música do país, enfocando a desigualdade no sistema de justiça e nas artes. Vale ressaltar que o coletivo de grime, Boy Better Know, havia feito um trabalho fundamental em Worthy Farm alguns anos antes. Após décadas de imersão na cultura de rua tanto no Reino Unido quanto nos EUA, o rap alcançou um ápice significativo em 2022, quando assumiu o Super Bowl com Eminem ajoelhando-se em apoio ao movimento Black Lives Matter durante uma performance ao lado de Dre, Snoop e Mary J Blige. A atual geração de jovens rappers britânicos aclamados pela crítica inclui figuras como Dave e Little Simz, ambos presentes na série de gangues de Hackney apoiada por Drake, "Top Boy", bem como Loyle Carner. Eles adicionam dimensões únicas ao som do hip-hop, contando suas narrativas de maneiras distintas para audiências contemporâneas. A dominância do hip-hop nas ondas do rádio, nas plataformas de streaming e nas paradas musicais nos últimos anos é incontestável, assim como sua influência difundida em áreas que vão desde o pop mainstream até a comédia, o cinema e a moda. A jornada desde os alicerces do Bronx até os palcos de Pilton, atravessando LA, Londres, Paris, Porto Rico e o mundo, pode ser descrita como uma jornada longa, mas ricamente enriquecedora.
2023-08-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjlwjzxkzrjo
sociedade
'Quanto pior, melhor': os agiotas que se aproveitam da alta no custo de vida no Reino Unido
"Quanto pior a coisa fica, melhor para mim." Quem afirma é D., um homem que trabalha como agiota no Reino Unido há duas décadas e atualmente diz que seus negócios - ilegais - nunca estiveram tão bem. Ele é um dos dois agiotas britânicos com quem a BBC conversou recentemente. As entrevistas revelam os perigos a que se expõem pessoas que recorrerem a credores não oficiais para amenizar o impacto da inflação e do alto custo de vida. Riscos enormes estão associados a estes empréstimos, normalmente realizados sem documentação, sob altas taxas de juros e muitas vezes com consequências brutais. Fim do Matérias recomendadas D. diz que emprestou dinheiro ilegalmente para centenas de pessoas em todo o país depois de começar a trabalhar na área de segurança, há 20 anos. No encontro com a reportagem, em um armazém, seu rosto está coberto por um tecido e por óculos escuros. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quase todos os seus "clientes" são reincidentes, ele diz. Eles pagam suas dívidas em dois ou três meses e geralmente voltam algumas semanas depois. D. acrescenta que a demanda por seus serviços disparou com a alta na inflação. Segundo ele, mães solteiras e famílias que o procuram em busca de dinheiro para pagar contas de gás e eletricidade, ou para comprar mantimentos. Para esses clientes, ele cobra taxas de juros de até 50%. Os demais costumam enfrentar juros de "bolha dupla", em que o valor do empréstimo original é dobrado. Na maioria das vezes em desespero, a maioria dos clientes de D. estaria disposta a aceitar quaisquer termos que ele decida estabelecer, ele diz. Com os preços em alta, é improvável que a demanda por seus serviços diminua tão cedo. Pesquisa compartilhada com a BBC sugere que, ao contrário, sua base de clientes em potencial pode estar se expandindo. Um novo relatório encomendado pela Fair4All Finance, baseado em entrevistas com 287 pessoas em Londres, Preston, Port Talbot e Glasgow que recorreram a agiotas nos últimos 3 anos, mostra o impacto dos empréstimos ilegais no Reino Unido. Em média, seus empréstimos eram de cerca de £ 3.000 (mais de R$ 20.000). A maioria dos entrevistados trabalhava em tempo integral com baixos salários. D. se autodenomina um "executor", em referência ao que acontece caso datas de pagamentos sejam perdidas ou suas mensagens sejam ignoradas. "As janelas e portas da frente da sua casa são arrombadas e você pode até ser espancado." Ele diz que as agressões físicas são "raras", mas admite ter praticado atos violentos - quebrar pernas, quebrar dentes ou mandar pessoas para o hospital. Quando questionado por que esse tipo de "execução" tem que ser tão brutal, ele diz: "É pessoal. Do jeito que eles me ferem, eu quero ferí-los - fisica e financeiramente". Em suas próprias palavras, ele está "prestando um serviço" que depende de pessoas "ajudando-o de volta" depois do empréstimo. Outro agiota com quem a BBC conversou, M. diz ter emprestado milhões de libras a clientes nos últimos 20 anos. Ele atualmente dirige uma equipe que opera em diferentes áreas do Reino Unido e estima ter cerca de £ 2 milhões (quase R$ 15 milhões) em empréstimos no momento. Pedidos de dinheiro acima de um determinado valor são encaminhados diretamente a ele. M. lida com "os ricos" - pessoas que pegam empréstimos de valores mais altos para financiar reformas de casas ou para tirar seus negócios de dificuldades. As taxas de juros aumentam com o risco associado e muitas vezes é exigido um fiador. Os clientes têm que dar uma forma de garantia caso não consigam pagar as prestações. As garantias vão desde relógios, chaves do carro, até fotos de documentos de identidade de seus amigos, para que ele saiba como encontrá-los e cobrar pelo dinheiro. "Fico constantemente surpreso com os casos que me aparecem", ele diz. M. afirma ter financiado até festas de aniversário para jogadores de futebol famosos - que o pagam de volta no dia em que recebem seu salários. Como a maioria das pessoas relutante em falar abertamente sobre dívidas, há poucos dados disponíveis sobre o número de credores operando sem licença. Em um relatório do ano passado, o centro de estudos Center for Social Justice estimou que cerca de um milhão de pessoas na Inglaterra poderiam dever dinheiro a agiotas ilegais. M. descarta o que ele descreve como uma visão desatualizada de "trabalho de valentão". Suas táticas como agiota são baseadas no medo. "Atualmente, o trabalho é mais sobre se tornar um incômodo para a pessoa", diz ele. "Se não houver contato, podemos tirar fotos da fachada da sua casa, ou bater na porta do vizinho perguntando onde você está." "Esse medo, essa intimidação, essa coerção é melhor do que um ato (violento)", afirma. A pesquisa recente da Fair4All Finance apontou que a violência propriamente era rara, embora ameaças de violência fossem comuns. Um homem disse aos autores do relatório que as ameaças que recebia pareciam mais reais quando se referiam a sua família. "Recebo ameaças de ataques contra a minha família... 'Tal coisa vai acontecer com a sua mãe, tal coisa vai acontecer com o seu irmão'." Já uma mulher que vive Glasgow afirmou que foi forçada a limpar um prédio de escritórios para um credor ilegal como forma alternativa de pagar o dinheiro que havia emprestado. Ela descreveu a experiência como "humilhante" e disse que se sentia ansiosa e deprimida. Ela agora raramente sai de casa. "Hoje, é muito mais sobre alguém entrar na sua cabeça do que quebrar as suas pernas", diz Cath Wohlers, que trabalha numa organização que processa agiotas na Inglaterra. "O agiota pode ser qualquer um", ela acrescenta, ressaltando que uma em cada cinco pessoas levadas à prisão por sua equipe no ano passado era mulher. Os clientes de agiotas normalmente têm crédito recusado em outras fontes antes de recorrerem a empréstimos ilegais. Aqueles com avaliações de crédito ruins geralmente tem opções de empréstimos limitadas e alto custo. Cath Wohlers adverte: "Agiotas vão fazer você sangrar você até secar. Simplesmente não vale a pena". "Se você está endividado, fale com seus credores e converse, em vez de pedir mais dinheiro emprestado para sair da dívida."
2023-08-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2xyj2xx4no
sociedade
O guarda de fronteira que descobriu ser imigrante irregular nos EUA e lutou para não ser deportado
Em um dia de abril de 2018, após quase duas décadas de serviço impecável, o guarda de fronteira Raúl Rodríguez foi chamado para uma conversa por seus supervisores do Serviço de Alfândegas e Proteção das Fronteiras (CBP, na sigla em inglês), no estado americano do Texas. "Logo que entrei, contamos piadas, mas havia algo estranho no ar. Um dos supervisores mandou o outro fechar a porta. Percebi que o papo era sério, mas não sabia o que era", lembra ele, em relato à BBC. Como agente do CBP, ele tinha uma ficha exemplar, que lhe rendeu até uma alta condecoração do governo dos Estados Unidos. Rodríguez também já havia servido na Marinha americana. Em seu trabalho na fronteira entre o Texas e o México, ele teve que lidar com milhares de casos de pessoas que queriam entrar nos Estados Unidos sem documentação adequada. Fim do Matérias recomendadas Às vezes, Rodríguez tinha que tomar decisões difíceis envolvendo homens, mulheres e crianças, e até pessoas que conhecia, que precisavam de ajuda. Pelo que se lembra, houve casos muito desafiadores que o fizeram pensar se deveria permitir a entrada de pessoas sem visto que buscavam uma vida melhor nos Estados Unidos. Mas naquela reunião com seus supervisores em abril de 2018, Rodríguez recebeu uma notícia que mudou completamente sua vida: ele estava sendo investigado por indícios de que era um imigrante irregular, fato que foi confirmado logo depois. "Eles tentaram muito me deportar e me tirar dos Estados Unidos, apesar do que fiz e do que sacrifiquei por este país", diz Rodríguez, em alusão à sua atuação tanto na Marinha quanto no CBP. "Assinei um cheque em branco. Ou seja, estava disposto a dar minha vida por esta nação. E eles viraram as costas para mim." Rodríguez falou ao programa de rádio Outlook, do Serviço Mundial da BBC. Raúl Rodríguez morou, desde pequeno, com parentes no estado americano do Texas. Seus pais sempre viveram no México, em uma cidade perto da fronteira. "A vida no México era difícil. Estava sempre procurando o que comer no dia seguinte. Não foi uma infância fácil", explica. Quando Rodríguez tinha cinco anos, sua mãe lhe disse que ele teria que ir morar nos Estados Unidos, já que havia nascido naquele país e que lá teria uma vida melhor. "Fiquei apavorado", lembra. "A razão que me deram foi que eu não poderia ir à escola no México porque era americano. Não confrontei meus pais. Então, quando minha irmã se juntou a mim, me senti aliviado. Mas, depois de três dias, ela voltou e eu fiquei lá", acrescenta. Rodríguez teve que frequentar uma escola onde a maioria das crianças era branca e de um bairro rico, e diz ter sofrido racismo. "Me envolvi em muitas brigas devido aos insultos que recebia", conta. Quando jovem, Rodríguez ingressou na Polícia Militar da Marinha dos Estados Unidos. "Minha mãe ficou muito orgulhosa quando entrei para as Forças Armadas e ela me viu três meses depois com meu uniforme. Entrei no México com o uniforme militar dos Estados Unidos. Meus pais não conseguiam acreditar no que aconteceu comigo", diz ela. No entanto, Rodríguez teve que deixar a Marinha devido a uma lesão. Por isso, optou por um cargo no CBP, órgão que se encarrega, entre outras coisas, de processar a entrada de visitantes estrangeiros nos EUA. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em uma fronteira tão ativa quanto a dos Estados Unidos e do México, os casos que os agentes enfrentam às vezes podem representar dilemas: cumprir a lei ou abrir uma exceção humanitária. Rodríguez garante que nunca teve dúvidas na escolha do primeiro. "Você perde amigos, perde família por causa do dever, por causa do que tem que fazer. E isso era uma das coisas mais difíceis do trabalho: às vezes você tem que impedir a entrada de pessoas que eram conhecidas ou próximas de você", explica. O caso mais difícil de que se lembra, que o persegue até hoje, foi o de um estudante do Ensino Médio de uns 16 ou 17 anos. "Ele morava nos Estados Unidos; foi estudar. Mas agentes de imigração quiseram checar sua situação migratória. Estávamos tendo uma conversa normal e descobrimos que ele não era cidadão americano. Na verdade, nasceu no México. Ele era menor de idade na época", explica. "Tive que entrar em contato com o consulado do México para o jovem pudesse ser retirado dos Estados Unidos. E eles enviaram um oficial de imigração do outro lado da fronteira. Ele foi solto no México. E resolveu voltar aos EUA passando de volta pela fronteira por baixo de uma ponte, atravessando a nado", continua. "Ele foi encontrado afogado no rio no dia seguinte." Rodríguez lamenta que aquele adolescente, com muitos sonhos e objetivos, com quem havia falado algumas horas antes, tenha morrido dessa forma. "Esse menino queria um emprego para sustentar sua família no México. E a razão pela qual foi para o México naquele dia foi porque sua avó faleceu. Ele queria comparecer ao seu funeral no México. Ele falava inglês fluentemente. Então, pensou que poderia fazer a travessia (de volta aos EUA), falando em inglês, sem apresentar nenhum documento. Mas foi detido, devolvido ao México e acabou se afogando", diz Rodríguez. Foi um caso que trouxe de volta memórias de si mesmo, quando criança cruzando a fronteira para ver sua família e voltando usando seu inglês fluente como "passaporte" para os EUA. "Foi um dos muitos casos pelo qual você sente empatia. Você acha que deveria deixar a pessoa atravessar, mas não pode. E muitas vezes me perguntavam: 'Deixe-me passar desta vez.' Mas não estava disposto a arriscar o sustento da minha família ou ir para a cadeia por ninguém, porque minha família era mais importante", assinala. Rodríguez diz que o trabalho de agente do CBP é estressante e exige muito — descumprir a lei pode trazer consequências gravíssimas. Mas, para ele, isso não significa que quem tente entrar ilegalmente nos Estados Unidos deva ser maltratado. "Quando atravessava a fronteira, via a forma como me tratavam, como me olhavam e falavam comigo, a intimidação, que queriam me mandar de volta ao México por causa da minha aparência ou das minhas feições. Meu aspecto muito indígena me assombrou durante toda a minha vida enquanto crescia", lembra. "Queria, eu acho, fazer uma pequena diferença", acrescenta. Rodríguez teve que treinar os novos membros do CBP por um tempo. Ele lembra que deu a eles uma primeira palestra na qual insistia: "Seja cortês, seja justo. Não trate as pessoas mal. Não as trate como criminosos quando as vir pela primeira vez. 99% dessas pessoas são boas pessoas." Certa vez, ele se deparou com o caso de uma mulher que o abordou em uma loja pedindo um favor. "Preciso trazer uma criança para cá." Ele se recusou a ajudá-la, mas a mulher deixou seu telefone em um pedaço de papel. Rodríguez notificou seus supervisores sobre o caso, e eles pediram que ligasse para ela para fingir que aceitaria a travessia do menino em troca de dinheiro. Mas tudo tinha que ser feito com um gravador e um equipamento de rastreamento. "A mulher disse 'Tenho vários filhos que quero trazer para cá’. Depois de várias ligações e reuniões, ela me disse 'Meu chefe quer falar com você'", recorda. "Eles tinham esconderijos na fronteira e alguns esconderijos aqui nos Estados Unidos e estavam contrabandeando pessoas. Eram todos menores de idade. Então, chegou o dia em que ela traria as crianças e eu as deixaria passar. A alguns poucos quilômetros de distância, todos foram parados e efetuamos a prisão". Por este caso, Rodríguez recebeu o Integrity Award, que é o segundo prêmio mais importante do Departamento de Segurança Interna dos EUA, entregue na capital do país, Washington DC. "Eles dão a você uma bela medalha, um distintivo e US$ 5 mil (cerca de R$ 25 mil em valores atuais)", diz Rodríguez com orgulho. Em seus cursos para novos agentes do CBP, Rodríguez conta que sempre pediu aos recém-chegados que deixassem seus sentimentos em casa para evitar problemas no cumprimento da lei. "Seus sentimentos não têm lugar no seu trabalho porque você vai tomar muitas decisões ruins, porque vai se deparar com um caso em que vai sentir pena das pessoas e vai fazer algo errado", dizia Rodríguez aos novatos. Em 2018, e pouco antes de se aposentar, os supervisores de Rodríguez o chamaram ao escritório do CBP e lhe entregaram um envelope com documentos indicando que ele estava sendo investigado. Rodríguez teve que entregar seu distintivo e arma, e foi suspenso. Ele não sabia o que estava acontecendo, mas logo depois foi chamado a uma sala de interrogatório do CBP, onde prestou juramento e os oficiais leram seus direitos. Em seguida, mostraram a ele uma certidão de nascimento mexicana com o nome dele, dos pais e dos avós. "Então, você era um cidadão mexicano", ouviu Rodríguez de seus supervisores. "Não, eu não sabia. Sempre soube que era um cidadão americano", respondeu. Então, seus supervisores solicitaram uma reunião com o pai de Rodríguez. Em uma lanchonete, os agentes perguntaram a Margarito Rodríguez se seu filho realmente nasceu no México. "E ele meio que olha para baixo e diz com um aceno de cabeça: 'Sim, você nasceu no México.'" "Foi quando percebi que minha carreira havia acabado e que havia perdido tudo. Desmaiei", lembra. Rodríguez foi demitido do CBP. Seu tempo na Marinha foi invalidado. Ambos os trabalhos são permitidos apenas para cidadãos americanos. A certidão de nascimento mexicana de Rodríguez veio à tona quando ele ajudava um irmão em um processo de imigração perante as autoridades dos Estados Unidos. "Eles fizeram uma investigação enquanto o processo se desenrolava e encontraram uma certidão de nascimento. Naquela época, não sabiam que eu tinha nascido no México até meu pai admitir isso”, explica. "Meu pai disse que foi minha mãe quem inventou (que eu havia nascido nos Estados Unidos). Ele nunca admitiu ter estado envolvido", acrescenta. A mãe de Rodríguez faleceu há algum tempo. Por não ter a documentação exigida, Rodríguez enfrentou processo de deportação. O agora ex-agente do CBP temia que, ao ser expulso para o México, pudesse ser vítima de pessoas que queriam prejudicá-lo por causa de seu passado como agente de fronteira. "Pensei 'não vou durar muito no México', porque saberiam onde eu havia trabalhado. Assim que eu cruzasse a fronteira, eles viriam atrás de mim. Era um dos meus medos, de que fosse torturado. E muitas coisas passaram pela minha cabeça. Coisas que provavelmente aconteceriam comigo." Rodríguez teria que deixar esposa, quatro filhos e cinco netos nos Estados Unidos. Perder tudo pelo que havia trabalhado durante dia e noite o deixou com muita raiva. "Não sabia para onde ir. Não sabia o que fazer", conta. "Meus colegas de trabalho disseram que não queriam mais ser vistos comigo. Eu os via em um restaurante e eles se viravam. Eles fazem você pensar que você não é mais um deles, que você é um pária". "Foi uma sensação terrível estar do outro lado", diz Rodríguez, lembrando que, de uma hora para outra, teve que fazer de tudo para não ser parado na rua e enfrentar os agentes que procuram imigrantes sem documentos para detê-los e expulsá-los dos Estados Unidos. "Me escondi. Passei de uma pessoa que fazia cumprir a lei para alguém que se escondia da lei. Foi assim que me senti. Senti como se estivesse fazendo algo errado". Refletindo sobre o que viveu, Rodríguez lamenta que seu país tenha "virado as costas para ele". "Eu me senti traído. Me senti enganado, usado por esse país", diz. Ele iniciou, então, um processo de imigração para buscar permanência legal nos Estados Unidos. Seu caso chegou à Justiça, e um juiz avaliou seu caso. "Li seu processo. Não acredito que este país fez o que fez com você. Você é um cidadão modelo. Você fez tudo certo. Você serviu em nossas Forças Armadas. Você serviu nosso governo. Não vejo nada de errado com você além do que dizem que você fez, mas você não sabia que não era cidadão", disse o juiz, lembra Rodríguez. "Então, peço desculpas pelo que eles fizeram você passar e por todos esses obstáculos pelos quais você passou. Não acredito que fizeram isso com você. Então, eu concedo a você seu status de imigração." Com essa decisão, Rodríguez pôde se tornar oficialmente residente nos Estados Unidos, o que lhe dá direito a obter futuramente a cidadania do país que durante quase toda a sua vida considerou o seu lar. Questionado se, depois de tudo o que viveu, voltaria a trabalhar para o CBP, lidando com casos de imigrantes em apuros, Rodríguez não tergiversa. "Sim. E vou lhe dizer o porquê: eu tinha que fazer meu trabalho da melhor maneira possível. Não posso fazer nada diferente porque tenho que fazer a coisa certa. Tenho que seguir as regras. Não poderia quebrar as regras porque seria uma decepção para minha família se eu o fizesse", diz ele. "Se eu tiver que ir para o México, se eles tiverem que me deportar, tudo bem? Eu diria que sim. Já que você não pode mudar as regras para mim e nem para outras pessoas, eu esperaria que eles me tratassem da mesma forma que todos os outros." Mas, acrescenta, tudo isto é algo que mudou definitivamente a sua vida.
2023-08-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ck5lwy8pgygo
sociedade
Os obstáculos enfrentados por mulheres que não querem ser mães e tentam laqueadura na América Latina
O sangramento começou às 22h do sábado, 22 de julho. Paula* (chilena, 30 anos) estava em casa. Ela pensou que era a sua menstruação, mas depois de um tempo se assustou. Havia muita dor e sangue. Resolveu ir para o hospital. Ao chegar, os médicos disseram a ela: "Você teve uma perda, um aborto espontâneo". Ela ficou completamente surpresa. A mulher nunca esperou tal notícia. Paula havia tomado a decisão anos atrás: não queria ser mãe em hipótese alguma. Fim do Matérias recomendadas As pílulas anticoncepcionais falharam e, mais uma vez, ela lamentou que nenhum médico quisesse fazer a esterilização cirúrgica, mais conhecida como laqueadura, um desejo que tinha desde os 18 anos. "Se minhas trompas tivessem sido amarradas, nada disso teria acontecido. Não foi uma experiência agradável e sinto raiva porque há anos procuro um profissional para me ajudar a realizar meu desejo de não ser mãe", disse à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, poucos dias depois de sofrer a perda. Paula representa milhares de mulheres na América Latina que não têm acesso à esterilização cirúrgica voluntária, mais conhecida como "laqueadura de trompas". Esse procedimento é mais de 99% eficaz na prevenção da gravidez, o que o torna um dos métodos mais seguros disponíveis. A Organização Mundial da Saúde (OMS), de fato, o coloca entre os poucos contraceptivos "muito eficazes". Além disso, não afeta os níveis hormonais do corpo (como fazem outros anticoncepcionais), o que para muitas mulheres é uma vantagem considerável, pois não tem "efeitos colaterais". A principal diferença em relação aos demais métodos de prevenção da gravidez – como pílulas, dispositivos intrauterinos, anel vaginal, adesivos, ampolas injetáveis ou preservativos ​​– é que é permanente e irreversível. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Isso pode ser um benefício importante para aquelas mulheres que decidiram não ter filhos porque nunca mais terão que se preocupar com isso: nem tomar pílula diária, nem trocar o aparelho todo mês, nem continuar gastando dinheiro com anticoncepcionais. No entanto, para muitos médicos é o principal motivo que os leva a evitar esse procedimento. Ainda mais se a mulher for jovem e não tiver filhos. Isso acontece mesmo em países onde o acesso ao procedimento é supostamente garantido por lei. Esse é um cenário que acontece no Brasil, apontam especialistas. Além disso, também ocorre situação semelhante em países como Colômbia, Argentina, México ou Chile. Nesses países latino-americanos, assim como no Brasil, essa cirurgia é considerada um "direito reprodutivo". Para promover a maternidade e paternidade responsáveis, a maioria desses países estabelece como requisito que a mulher seja maior de idade, que faça o pedido por escrito (assinando um consentimento informado) e que antes do procedimento seja submetida a aconselhamento em questões sexuais e saúde reprodutiva pelo médico assistente. Mas, de acordo com as mulheres e especialistas consultados pela BBC News Mundo, muitas vezes isso se traduz em uma série de obstáculos que dificultam muito o acesso à laqueadura. É o caso de Paula, que manifestou o desejo de ser esterilizada por três vezes, mas sempre obteve negativas nas orientações de seu médico. "A primeira vez que tentei foi aos 23 anos, na rede pública chilena. O médico me disse que não, que eu era muito jovem, que ainda não tinha saído da universidade, que ia mudar de ideia", conta. "Na segunda vez eu tinha 25 anos e a resposta foi a mesma: que eu não tinha maturidade para tomar essa decisão. E na terceira vez, há apenas 3 anos, me fecharam a porta categoricamente ao dizer que, se eu quisesse uma laqueadura, deveria pedir lá fora (em outro país)." A sua gravidez recente, embora sem sucesso, a deixa em estado de alerta. "Com os outros contraceptivos, sempre pode ocorrer falha. Esse é o problema", diz. "Eu já quero esquecer isso. E eu não posso", acrescenta. Um dos maiores problemas enfrentados pelas mulheres que desejam acesso gratuito a esse procedimento são as longas filas de espera existentes na maioria das instituições de saúde pública da América Latina. E a situação das mulheres que não têm filhos é ainda mais complexa. "No sistema público, as filas de espera são enormes e mulheres sem filhos não são prioridade. Por isso, são estimuladas a se cuidar com outros métodos anticoncepcionais", comenta o ginecologista-obstetra Gabriel Zambrano, do Centro Médico Itenü de Caracas, sobre a realidade venezuelana que se repete em vários países da região. De acordo com o último relatório da ONU sobre planejamento familiar, a pandemia de covid-19 agravou essa situação, reduzindo a disponibilidade e o acesso a serviços contraceptivos para mulheres, principalmente aqueles de ação irreversível, como a laqueadura. A ONU afirma que a realidade é pior em países de baixa e média renda, e entre os mais vulneráveis. Diante desse cenário, a esterilização voluntária acaba sendo muito mais acessível às mulheres que podem pagar por ela de forma privada. É o caso de Amanda Trewhela, uma chilena que aos 34 anos conseguiu a esterilização após solicitá-la por 16 anos. “No sistema público, ninguém queria me operar porque eu era muito nova ou porque não tinha filhos... Então fui parar no sistema privado. E é muito caro. Esse é o maior obstáculo de todos”, conta à BBC News Mundo. Amanda teve que pagar 4 milhões de pesos chilenos (aproximadamente R$ 23 mil). “Eles podem te dizer de tudo, as perguntas duríssimas. E é preciso enfrentá-los. Mas se não tiver dinheiro, vai tudo pro chão”, conta. Mas há também um problema cultural. Assim afirma Francisca Crispi, médica, acadêmica e presidente da Faculdade de Medicina de Santiago do Chile, que há anos estuda a questão dos direitos sexuais das mulheres. “Na América Latina existe uma questão de autonomia da mulher na relação médico-paciente. O preconceito de que a mulher não pode tomar decisões sozinha, de que ela é muito emotiva”, alerta. “Existe a ideia de que toda mulher deveria querer ser mãe e, se não quiser naquele momento, vai se arrepender depois”, acrescenta. Aliás, o ginecologista-obstetra Gabriel Zambrano afirma que "o maior medo que temos é que a mulher se arrependa... nós, os médicos, podemos ser acusados ​​de cortar a fertilidade de uma paciente". No entanto, para as mulheres consultadas pela BBC News Mundo, esse medo de arrependimento que os médicos têm muitas vezes faz com que seus direitos reprodutivos e liberdade de decisão não sejam respeitados. “Existe um julgamento em relação às mulheres em que nos infantilizam, nos fazem pensar que nossas decisões são precipitadas, sem pensar nelas”, diz Paula. Em meio a tudo isso, também estão os argumentos religiosos. “Existem centros que não fornecem certos benefícios contraceptivos por motivos religiosos, embora nesse caso a objeção de consciência não seja regulamentada”, diz Crispi. Por outro lado, ela assegura que, apesar de em muitos países a lei esclarecer que a mulher não necessita do consentimento do seu companheiro para fazer esse procedimento (é o caso da Argentina, Brasil ou da Colômbia, por exemplo), a realidade é que ainda existem centros de saúde que o pedem. “Temos muitos casos em que eles pedem a opinião do casal e isso acaba se tornando uma grande barreira”, diz. No Brasil, essa questão é recente: somente em março deste ano entrou em vigor a lei que dispensa o aval do cônjuge para fazer laqueadura para as mulheres e vasectomia para os homens. Essa nova regra também diminuiu de 25 para 21 anos a idade mínima para a realização desses procedimentos no país. A chilena Paula lembra que o consentimento do parceiro foi justamente uma das perguntas que recebeu quando manifestou o desejo de ter as trompas. “É como se seu marido fosse o dono de suas decisões. É um olhar muito arcaico e patriarcal porque é uma decisão pessoal”, diz. No caso da Espanha, a situação parece ser diferente. Segundo o Dr. José Cruz Quílez, presidente da Sociedade Espanhola de Contracepção (SEC), não há perguntas adicionais se uma mulher não teve filhos. "Aqui, se a mulher quiser a laqueadura, o procedimento é feito independentemente de ela ter sido mãe ou não", explica. "É um direito delas", acrescenta. Para Francisca Crispi, todas as barreiras existentes na América Latina são problemáticas, pois a contracepção é "dependente do tempo". “Se uma mulher for negada, pode significar que ela tem uma gravidez indesejada a curto prazo. Portanto, essa recusa a certos tipos de contracepção me parece problemática”, aponta. Esse cenário se torna ainda mais relevante se forem levados em consideração os números da ONU sobre gravidez indesejada: segundo a organização internacional, entre 2015 e 2019, ocorreram 121 milhões desse tipo de gravidez, o que representa 48% de todas as gestações. Dois anos depois de ser esterilizada, Amanda Trewhela diz que se sente "calma e feliz". Ela lembra que, ao entrar na enfermaria para fazer o procedimento, uma parteira de 50 anos a abordou para contar algo que ela jamais esquecerá. “Ela me disse: ‘Acho que o que você está fazendo é super valioso. Não cheguei a pertencer à sua geração que pode tomar essas decisões. Nunca quis ter filhos, mas ninguém nunca quis me operar. Eu vou cuidar de você aqui." Amanda afirma que ali entendeu que fazia parte de uma "comunidade de mulheres que convivem com essa dor dos obstáculos, das perguntas, como se fôssemos fracas emocional e hormonalmente". Ao acordar da operação, Amanda começou uma nova vida. “Senti uma tranquilidade infinita. Pensei: 'finalmente acabou'”. Paula vive uma realidade diferente hoje. Mal recuperada de seu recente aborto, ela garante que não tem mais energia para continuar tentando obter uma esterilização. "Talvez em alguns anos eu encontre alguém que pense que tenho idade razoável - e maturidade razoável - para que liguem as minhas trompas." "Enquanto isso, meu companheiro vai fazer vasectomia, porque para ele não há empecilhos, nem perguntam a idade dele, nem se teve filhos ou não", diz, com evidente desconforto.
2023-08-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c97pm77v10no
sociedade
'Não tranco mais o portão esperando ele voltar': a angústia das famílias de pessoas com Alzheimer que perderam rumo de casa
Em 16 de junho, José Pereira do Nascimento, o "Zé Pedreiro", acordou agitado. O enteado contou que ele dava voltas na casa, sentava, dava voltas de novo. Silvana Ribeiro Cabrini, sua mulher, percebeu a inquietação do marido quando chegou do serviço. Há oito anos, ela trabalha das 18h às 6h como cuidadora em um abrigo de idosos e sabe bem como o Alzheimer pode causar esses momentos de atribulação. Com seu marido, não era diferente. Silvana tinha consulta médica às 7h30 – sua diabetes estava descontrolada - e trocou rapidamente a roupa de Zé para irem juntos. Botou nele a calça jeans escura, uma blusa cinza de manga comprida, o tênis azul e uma malha de lã por cima. "Zé é friorento." Fim do Matérias recomendadas Foram e voltaram rápido. Em Cordeirópolis, cidade do interior paulista a 158 km da capital, tudo é relativamente perto. Comeram o almoço requentado, e o dia transcorreu normalmente, entre os cuidados com a enxuta casa de dois quartos, a vira-lata Luana e os 18 gatos que Silvana pegou para criar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por volta das 17h, Zé convocou a mulher: "Vamo, fia, vamo embora, vamo pra casa". "Fio, faz quatro anos que a gente mora aqui, esta é a nossa casa", respondeu Silvana. "Mas a Silvana não tá aqui", retrucou ele. "Eu sou a Silvana, sua mulher", rebateu ela, na costumeira ladainha de fazê-lo se lembrar de sua existência. "Silvana é magra, e você é gordinha", respondeu Zé. A mulher deu ao marido o costumeiro remédio para dormir. Tomou também o seu calmante, indicado pelo médico naquele dia, já que o estresse contribuía para fazer desandar a diabetes. Fechou o portão da casa com o cadeado e tirou a chave. Trancou a porta da sala com outra chave, mas a deixou na fechadura, como sempre fazia. Já no quarto, Zé não quis colocar o pijama. Andava de um lado para o outro, pegava o chinelo da mulher e o mostrava para ela. Abria e fechava a primeira gaveta da cômoda várias vezes. Silvana capotou de sono, crente de que Zé se deitaria do seu lado. Eram 20 anos de convívio, os últimos três com o Alzheimer entre eles. Seria mais uma noite assim. Às 4h30, ela passou a mão do lado direito do colchão e não sentiu o marido. Levantou correndo, chamando-o pela casa. Descobriu a porta da sala aberta e o portão encostado, mas sem o cadeado. Recordou-se dos últimos cuidados na noite anterior, e um flash de memória lhe deu um frio na espinha: tinha deixado a chave do cadeado sobre a cômoda do quarto. Ela encontrou a chave um pouco mais à frente, na calçada da rua onde moram. O cadeado foi com o Zé, que, prestes a fazer 76 anos, não havia sido encontrado até a publicação desta reportagem. Restou o boletim de ocorrência feito por Silvana, no qual consta que "José tem problemas de saúde (Alzheimer)". Ainda assim, Zé Pedreiro entrou para mais uma estatística "inexistente" no Brasil: a de pessoas com Alzheimer que se perdem e não voltam para casa. "Essas 'fugas' acontecem com certa frequência, mas não temos números sobre esse assunto especificamente, é muito empírico, vem da nossa experiência no dia-a-dia dos atendimentos", diz Aline Martins Gratão, enfermeira e professora de Gerontologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ela é uma das coordenadoras do iSupport-Brasil, plataforma do Ministério da Saúde criada em conjunto pela UFSCar, a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e a Universidade de Brasília (UnB). A iniciativa auxilia o cuidador de pessoa com demência a entender a doença, lidar com os desafios da mudança de comportamento, prestar um bom cuidado e cuidar de si mesmo. "Sabemos que os familiares usam as redes sociais para tentar localizar a pessoa que se perdeu. Às vezes dá certo, às vezes não", diz Gratão. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo informou, por meio de sua assessoria, não dispor de dados computados sobre desaparecidos que apresentem demência. Em 2017, Ana Lúcia Lopes Miranda, então delegada na 4ª Delegacia de Pessoas Desaparecidas, afirmou no site do governo do Estado de São Paulo que registrava, em média, aproximadamente 80 desaparecimentos mensais de pessoas com idade acima de 65 anos – e que o principal motivo era a desorientação decorrente de doenças como o Alzheimer. Fábio Porto, professor de Neurologia da Universidade São Camilo e diretor científico da Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAz) regional São Paulo, aponta que há muitas pesquisas sobre a Doença de Alzheimer, mas não conhece nenhuma que contabilize aqueles que se perdem de casa em função da doença, com ou sem volta ao lar no final. Porto explica que, se no estágio leve da doença há problemas na memória recente, a partir do estágio moderado a falta de orientação e a busca por uma moradia do passado são sintomas clássicos. "Frequentemente acontece alguma desorientação no tempo e no espaço, porque a pessoa não reconhece mais marcos que a orientam. Junte-se a isso a perambulação, o andar a esmo sem razão específica, e está criada uma combinação muito propensa para a pessoa se perder", diz Porto. Não raro essa perambulação vem acompanhada de agitação. "A gente sempre associa agitação com agressividade física ou verbal, mas um dos conceitos de agitação é um aumento da atividade motora espontânea", afirma. Inquieta, a pessoa sai andando, perambulando, vagando. De acordo com a Alzheimer’s Association, seis em cada dez pessoas com demência vai andar a esmo, confundir-se com sua localização ou se perder de fato pelo menos uma vez, se não repetidamente. Apesar de comum, o perambular pode botar a vida da pessoa em perigo, sem falar na angústia que o desaparecimento provoca nos cuidadores. No último ano, Zé Pedreiro já havia andado sem destino duas vezes por Cordeirópolis. Na primeira vez, com parte do dinheiro da aposentadoria em mãos, disse que iria comprar pão doce na padaria. Silvana pediu que ele esperasse até que ela acabasse de lavar a roupa para irem juntos. Quando se deu conta, ele já tinha saído. O marido voltou para casa numa picape cujo motorista percebeu a desorientação. Na época, Zé soube dizer o próprio endereço, ainda que já bem distante de casa. Na segunda vez, uma de suas filhas (Zé tem três filhas e dois filhos do primeiro casamento) soube pela cunhada que ele estava vagando com a cachorra Luana na entrada do bairro Jardim Progresso, longe de casa. "Na verdade, a Luana é quem carregava o Zé, porque ela estava amarrada ao cós da calça dele", lembra Silvana. O pedreiro se recusou a entrar no carro da moça com a Luana. Silvana teve de buscar os dois. Da terceira vez, a do atual desaparecimento, um homem teria dado carona para Zé, a pedido dele, até o velório de Santa Gertrudes, cidade encostada em Cordeirópolis. Dali, a família não teve mais pista concreta de seu paradeiro. Uma cachorra também foi personagem central do desaparecimento de outro idoso com Alzheimer, este morador de São Francisco do Pará, a cerca de 85 km de Belém. Jonivaldo do Nascimento Pereira, de 81 anos, se perdeu no dia 3 de fevereiro na Granja Marathon, vila na zona rural. A família procurou a polícia, fez boletim de ocorrência e vasculhou a área por madrugadas frias até que, seis dias depois, o latido de uma cachorra caramelo alertou sobre a presença dele no meio de um matagal, antigo seringal do município. Pereira, agricultor aposentado, retornou à casa onde mora com a esposa, casa agora munida de portões e câmeras. Nas redes sociais, o filho Ediel Brito Stern agradecia aos vizinhos por deixarem seu conforto para estar ao lado da família e requisitava a Deus que guardasse a cachorrinha, “usada pelo espírito santo como uma luz”. Era o que a família pedia: uma luz para guiá-los nas buscas. O número de pessoas atingidas por demências no Brasil, está aumentando. Segundo levantamento coordenado pela psiquiatra e epidemiologista Cleusa Ferri, da Unifesp, que será apresentado em setembro ao Ministério da Saúde, ao menos 1,76 milhão de brasileiros com mais de 60 anos vivem com alguma forma de demência. A previsão é que chegue a 2,78 milhões no final desta década e a 5,5 milhões em 2050. Mais de 70% delas não dispõem de diagnóstico, o que bloqueia um tratamento adequado para controlar alterações de memória, problemas cognitivos e mudanças de comportamento que surgem à medida que a doença avança. Descrita pela primeira vez em 1906 pelo psiquiatra e neuropatologista alemão Alois Alzheimer, a Doença de Alzheimer é a mais conhecida das demências. Representa até 70% dos casos em países desenvolvidos e algo entre 50% e 60% no Brasil. É a partir desses números que a ABRAz anuncia a sexta edição da Jornada Paulista de Alzheimer, que será realizada no dia 2 de setembro abrindo o Setembro Lilás, mês de conscientização para a doença. A Jornada terá uma sala dedicada a profissionais de saúde, familiares e cuidadores, com foco na organização de ambientes para pessoas com demência pensando em conforto, harmonia e o máximo possível de autonomia. Aline Gratão diz que ajuda muito os cuidadores de alguém com Alzheimer o conhecimento sobre os estágios da doença e sobre estratégias possíveis para melhorar o convívio e garantir a segurança da pessoa. "Muitas vezes o desconhecimento faz com o que o cuidador bata de frente, discuta, diga que a pessoa com Alzheimer insiste numa coisa de pirraça, que quer maltratar a família, mas isso só vai gerar mais agitação para ambas as partes", diz. Uma das orientações é mudar o foco, dizer que seria melhor tomar um banho ou comer algo antes, dar uma volta de carro e avisar depois que chegaram em casa. Quanto à agitação, sugere-se identificar o período do dia em que isso costuma acontecer com mais frequência e planejar atividades e exercícios que possam reduzir a ansiedade. Evitar lugares movimentados e com muitos estímulos, como shoppings e grandes supermercados, também faz parte da prevenção. Sobre a segurança, a pessoa com Alzheimer deve ter sempre alguém vigilante por perto. A Alzheimer’s Association indica ainda luzes noturnas pela casa, campainha sonora nas portas que anuncie a passagem por elas, rótulos nas entradas de cada cômodo que expliquem sua finalidade e travas altas ou baixas nas portas, num nível fora da linha de visão da pessoa. Outra dica primordial: esconder chaves, carteiras e agasalhos que possam desencadear a vontade de sair. Avisar vizinhos e amigos sobre a situação é mais uma medida valiosa. Quando tinha 79 anos, um ano depois de ser diagnosticado com a Alzheimer, Osvaldo Pimenta de Oliveira saiu de casa e desapareceu por algumas horas. Foi encontrado por um amigo de seu filho perambulando pelo bairro onde a família sempre morou, na cidade paulista de Franca, a cerca de 344 km da capital. "Foi algo que nos assustou, eu e meus irmãos não tínhamos o conhecimento de que isso podia acontecer", diz Maria Auxiliadora de Oliveira Pereira, filha de Osvaldo. A partir dali, tiraram seu acesso à chave de casa e se organizaram para que o pai e a mãe, Maria Divina de Oliveira, também diagnosticada com Alzheimer, fossem morar com Maria Auxiliadora algum tempo depois. "Não foi fácil, porque meu pai insistia, normalmente ao entardecer, em voltar para casa", lembra ela. Em 2019, ano da morte dos pais, o marido de Maria Auxiliadora, Silvino Gonçalves Pereira, então com 68 anos, também passou a apresentar sinais de falta de memória, como esquecer completamente onde havia estacionado o carro. Exames confirmaram as primeiras evidências do Alzheimer. "Hoje, ele depende completamente de mim para tomar banho, para se vestir, para colocar os alimentos no prato, porque ele confunde os alimentos", afirma Maria Auxiliadora. Mesmo sob total vigilância, Silvino teve um dia acesso à chave da porta principal de casa e foi encontrado pela sua mulher a vários quarteirões de distância, parado em uma das esquinas da avenida em que fica o supermercado onde Maria tinha acabado de fazer compras. Diante da possibilidade de algum parente com Alzheimer se perder, a recomendação é que se tenha à mão uma lista de lugares e pessoas do passado dessa pessoa potencialmente revisitáveis, como a casa da mãe, a igreja frequentada, o restaurante preferido, a manicure ou o barbeiro da vida toda. Além disso, é bom pedir a vizinhos e amigos que entrem em contato com a família caso vejam a pessoa vagando na rua, assim como manter uma foto atual e em close à mão, para entregar a polícia, se for o caso. O GPS é outro recurso. Luciane Midory Sakuma e o irmão, Rhenan, contrataram uma empresa para monitorar a mãe, Iracema Sizuko Gushi Sakuma, de 72 anos, diagnosticada há 7 anos com a doença. O intuito era deixar Iracema independente, mas sob vigilância. Na bolsinha inseparável de dinheiro dela, colocaram uma carteira de identificação com seu nome, endereço, o problema de saúde e o contato de Luciane, também gravado no objeto. "Cheguei a comprar uma correntinha com esses dados, mas ela a tirava na hora do banho e deixava pendurada no box", diz Luciane. O melhor recurso, porém, foi a rede de apoio da redondeza. "Meu tio avisou os vizinhos, os funcionários do supermercado, o pessoal da padaria, lugares por onde ela passava, para que, se a vissem vagando na rua, era para acompanhá-la até em casa, mas isso felizmente nunca aconteceu." O que aconteceu foi Iracema ter dado dinheiro a mais nas compras, mas, segundo a filha, as pessoas sempre devolviam o valor. "Ela sempre foi muito querida e carismática." Nos Estados Unidos, existe um sistema de notificação público chamado Silver Alert (alerta prateado, em inglês), que transmite informações sobre idosos desaparecidos que tenham Alzheimer ou outra demência a fim de ajudar na localização deles. Modelado a partir do Amber Alert (alerta âmbar, em inglês), para o rapto de criança, o Silver Alert usa uma gama de meios de comunicação, como estações de rádio e de TV, afora mensagens nas estradas voltadas a motoristas, para alertar sobre a situação. Cuidadores de idosos desaparecidos no Brasil se sentem, em geral, sem recursos quanto a isso. Depois de fazer o boletim de ocorrência, Silvana e filhas de José Pereira do Nascimento fizeram cartazes que nem puderam afixar em rodoviárias e pontos de ônibus de Cordeirópolis e cidades próximas, porque não há autorização pública para isso. Silvana cogitou contratar um funcionário que anuncia promoções no supermercado para intercalar o preço dos produtos com o desaparecimento do marido. Trotes não faltaram, o que desgasta ainda mais a família. "No país, ainda não temos políticas públicas voltadas às demências", avalia Aline Gratão. "Se forem bem estabelecidas e aprovadas, a gente consegue traçar caminhos e unir forças, inclusive em torno da segurança, mas os trabalhos que fazemos são ainda muito iniciais quando comparados aos países desenvolvidos." Silvana manteve o ambiente do jeitinho que José gostava. Tem consigo que "Deus vai abrir a mente dele", que ele vai lembrar que mora em Cordeirópolis e que sua mulher se chama Silvana ou Fia. Tanto que nunca mais passou cadeado no portão. "Ele vai voltar e entrar."
2023-08-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1yxl3mm07o
sociedade
Por dentro da polêmica barca onde Reino Unido está abrigando solicitantes de refúgio
O Reino Unido começou a abrigar solicitantes de refúgio em uma barca gigante em Dorset, no sul da Inglaterra. A expectativa é que até 500 homens sejam alojados na Bibby Stockholm enquanto aguardam o resultado de seus pedidos. Segundo o governo britânico, o objetivo principal é reduzir os custos associados à acomodação de refugiados. Alguns grupos de direitos humanos descreveram o esquema de abrigo como "desumano", mas ministros insistem que a barca é segura e economizará dinheiro público. As primeiras 15 pessoas embarcaram nesta segunda-feira (7/8), mas 20 se recusaram. Fim do Matérias recomendadas Quem não aceitar ser abrigado na barca não terá direito à acomodação alternativa, informaram fontes do governo britânico à BBC. A barca está no porto de Portland, em uma península no sul da cidade de Dorset, no sul da Inglaterra, um destino de cruzeiros e navios cargueiros. Ela está atracada no mesmo local que um navio-prisão, usado para aliviar a superlotação carcerária por nove anos, até 2006. Houve significativa oposição à iniciativa do governo britânico, devido a preocupações com o bem-estar dos solicitantes de refúgio, bem como o potencial impacto nos serviços locais. Mas alguns moradores estão determinados a acolhê-los e criaram um grupo de apoio local. Os primeiros a embarcar receberam kits financiados por meio de doações de moradores locais e montados por voluntários do grupo. Os kits incluem produtos de higiene pessoal, além de um mapa da região, cadernos, canetas e o número de telefone do grupo de voluntários. Jornalistas foram autorizados a fazer uma visita guiada pela Bibby Stockholm, antes que os primeiros ocupantes chegassem. Por dentro, a barca mais parece "um motel antigo", segundo o repórter da BBC Dan Johnson. Corredores longos e confusos levam a cabines relativamente espaçosas, que incluem mesa, guarda-roupa, cofre, TV e janelas grandes. Cada quarto tem um banheiro privativo com chuveiro e existem comodidades adicionais em cada um dos três andares. Originalmente a barca tinha 222 cabines, que vão acomodar agora 506 ocupantes. Isso só se tornou possível porque foram colocadas beliches em cada quarto. Há uma sala de TV com telão e sofás, uma sala de oração ecumênica e uma sala de estudo que pode ser utilizada para reuniões e atividades. Alguns outros espaços comuns foram convertidos em dormitórios extras para quatro a seis homens — mas jornalistas não tiveram permissão para vê-los. O refeitório é grande, com um longo balcão para comida e mesas de seis cadeiras dispostas em fileiras. No dia da visita da imprensa, o cardápio incluía ovos e panquecas no café da manhã, sopa de batata e ensopado de carne no jantar. Segundo as autoridades, ele mudará regularmente e atenderá às necessidades individuais e aos requisitos religiosos. Há um ginásio e um espaço de lazer ao ar livre nos dois pátios no centro da barca. Os ocupantes também terão acesso ao cais, numa área cercada — segundo as autoridades, isso é para garantir a segurança do porto, que também recebe cruzeiros, navios cargueiros e embarcações da Marinha. Também haverá segurança 24 horas por dia, 7 dias por semana a bordo. Os solicitantes de refúgio receberão cartões de identificação e terão que passar por controles de segurança semelhante aos de aeroportos para entrar e sair da embarcação. Por motivos de segurança, eles serão aconselhados a pegar um ônibus que os levará até a saída do porto e, em seguida, usar outros ônibus de hora em hora, entre 9h e 23h, para ir a Portland ou Weymouth. Não há toque de recolher, mas se eles não voltarem, haverá um "telefonema de bem-estar" para verificar se estão bem. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Estão previstas excursões, assim como atividades esportivas, caminhadas guiadas e visitas a fazendas, além da oportunidade de ajudar a comunidade local. Os homens receberão atendimento médico na barca ou remotamente, por parte de uma equipe de profissionais de saúde, em meio a preocupações da comunidade local sobre o impacto que mais pessoas teriam na infraestrutura hospitalar da região. Segundo Dan Johnson, da BBC, o governo "claramente quer mostrar que essa acomodação não é cruel ou desumana", apesar de o Ministério do Interior sempre tê-la descrito como "básica e funcional". "Certamente não tem o esplendor de um transatlântico — não há uma grande escadaria, belas obras de arte ou esculturas. As escadas parecem bastante industriais", diz Johnson. "Mas parece razoavelmente confortável", acrescenta. Alguns dos jornalistas que participaram da vista afirmaram que o padrão é melhor do que alguns dos hotéis que atualmente abrigam solicitantes de refúgio. No entanto, a visita dos profissionais de mídia durou apenas uma hora. Segundo o governo britânico, alguns homens podem ficar a bordo por até nove meses. E quando a barca estiver lotada, as condições de vida dos ocupantes podem mudar. O governo diz gastar atualmente 6 milhões de libras (R$ 37,5 milhões) por dia abrigando mais de 50 mil migrantes em hotéis. O Ministério do Interior diz que, até o outono, pretende alojar cerca de 3 mil solicitantes de refúgio em lugares que não sejam hotéis — como a barca e as antigas instalações militares de Wethersfield e Scampton, nos condados de Essex e Lincolnshire, respectivamente. O ministro da Imigração, Robert Jenrick, disse que o governo foi "claro que aqueles que chegam ao Reino Unido ilegalmente não devem ser alojados em hotéis caros". "Nosso uso de locais de acomodação alternativos e embarcações fornece padrões básicos e apropriados para chegadas de migrantes em pequenos barcos enquanto suas solicitações (de refúgio) são analisadas", disse ele.
2023-08-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clewv31lw2jo
sociedade
Por que contrair a barriga o tempo todo pode ser prejudicial
Entretanto, certas condições de saúde e movimentos desnecessários ao longo do dia podem desajustar esses músculos. Se essa situação se tornar crônica, pode levar à síndrome da ampulheta, uma alteração na estrutura da parede abdominal que resulta na formação de uma dobra no meio do abdômen. E não é só isso: essa alteração pode afetar os órgãos internos e outras partes do corpo se não for tratada a tempo. Existem quatro principais causas que levam ao desequilíbrio da função dos músculos abdominais, resultando nessa síndrome. Fim do Matérias recomendadas A primeira é devido a certas condições congênitas (como gastrosquise ou onfalocele) que fazem com que os músculos abdominais se desenvolvam incorretamente, levando a desequilíbrios musculares. Outra causa é a má postura, que pode alterar a curva tradicional em S da coluna, provocando mudanças fundamentais na tensão e função dos músculos abdominais. A dor abdominal, seja associada a problemas no estômago, fígado ou vesícula biliar, pode levar uma pessoa a contrair involuntariamente os músculos abdominais na tentativa de aliviar o desconforto. Surpreendentemente, a síndrome da ampulheta também pode estar associada a problemas de imagem corporal, um tópico que tem se destacado cada vez mais. Algumas pessoas que se sentem inseguras em relação ao próprio corpo ou desejam obter um abdômen reto podem exagerar ao "contrair" os músculos abdominais de forma desproporcional para alcançar essa aparência. Quando contraímos o estômago, contraímos o “reto abdominal” (comumente conhecido como barriga tanquinho). Mas como tendemos a acumular mais tecido adiposo na parte inferior do abdome, os músculos da parte superior do estômago tendem a se tornar mais ativos. Esses dois aspectos fazem com que se forme uma dobra nessa área por longos períodos, com o umbigo deslocado para cima. Independentemente da causa — e se é voluntária ou involuntária —, a ação de "puxar" a barriga também coloca maior pressão na região lombar e no pescoço. Isso ocorre porque agora eles precisam compensar as mudanças na estabilidade do core. A compressão do abdômen também reduz o espaço disponível para os órgãos que ficam naquela região do corpo. Podemos fazer uma analogia simples para ilustrar esse processo. Imagine que a região do abdômen se assemelha a uma embalagem de pasta de dente: ao apertar o meio dessa embalagem, ela é pressionada para cima e para baixo. Essa pressão exercida no topo afeta a respiração, dificultando o movimento descendente do diafragma, que é o principal músculo envolvido na inspiração do ar. A pressão na parte inferior do abdômen faz com que os músculos pélvicos exerçam uma maior força, devido à redução do volume da cavidade abdominal. Além disso, quando os músculos abdominais estão contraídos, eles absorvem menos impacto, o que resulta em uma maior pressão na coluna e na pelve. Esses efeitos combinados podem causar desconforto e desequilíbrio na função dos músculos abdominais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Não se sabe se isso pode levar a alterações a longo prazo na capacidade respiratória de uma pessoa. Mas, a curto prazo, pode-se dizer que reduz o oxigênio que chega ao sangue. Além disso, "apertar" o abdômen pode exercer pressão sobre o assoalho pélvico, o que afetará as funções da bexiga, útero e reto, com consequências como possíveis efeitos na retenção de urina ou matéria fecal. Para pessoas que já têm problemas com disfunção do assoalho pélvico (como incontinência urinária ou fecal), apertar o estômago como um exercício contínuo pode piorar a condição. Felizmente, a síndrome da ampulheta é reversível. Uma forma de ajudar é tratando o desequilíbrio muscular através de exercícios que fortaleçam todos os músculos do core, como pranchas ou pontes, por exemplo. Além disso, atividades como yoga ou pilates também podem ser benéficas para relaxar os músculos. O desenvolvimento da síndrome da ampulheta provavelmente ocorre gradualmente ao longo de um longo período, como semanas contraindo constantemente a barriga. Portanto, contrair os músculos abdominais ocasionalmente não deve causar problemas. No entanto, existem muitas maneiras de evitá-la. Se você tem dor abdominal inexplicável ou prolongada, é importante consultar um médico, não apenas para prevenir desequilíbrios musculares, mas também para tratar a causa raiz da dor. Se você tende a contrair o estômago para melhorar sua aparência, exercícios que fortalecem os músculos e a parte superior das costas serão úteis para ajudar a manter uma boa postura e tornar o abdômen menos protuberante. *Adam Taylor é professor e diretor do Centro de Aprendizagem de Anatomia Clínica da Universidade de Lancaster (Reino Unido)
2023-08-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1vkylg3q23o
sociedade
'Me fizeram sentir vergonha por ser gay': o escândalo por prisão de 33 homens em sauna na Venezuela
Enquanto tomava uma bebida no salão do Club Avalon, Iván Valera Benitez ouviu um alerta: "Comando da Polícia Nacional Bolivariana. Mãos para cima, fique parado!" O venezuelano de 30 anos esteve no domingo, dia 23 de julho, no Club Avalon, uma sauna gay localizada na cidade de Valencia, no norte da Venezuela. Ivan pensou que era algum tipo de brincadeira. Aquele era um clube privado com saunas e salas de massagem, um restaurante e uma sala para fumantes. A entrada era cobrada e o catálogo de serviços podia ser consultado nas redes sociais. Ele se sentia seguro no Club Avalon. Lá, eles não o provocavam sobre suas preferências sexuais ou o chamavam de "ela", como em ambientes com desconhecidos onde faziam piadas sobre ele. Fim do Matérias recomendadas Os policiais uniformizados pediram aos funcionários e clientes que os acompanhassem à sede da polícia "como testemunhas". Todos seguiram a instrução, embora não entendessem do que eram testemunhas. Iván e outros 32 homens ficaram detidos por três dias e foram apresentados ao Ministério Público venezuelano sem entender o motivo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A polícia vazou imagens nas quais os detidos são vistos em pé ao lado de uma mesa que mostrava como "provas" os seus documentos de identificação, celulares, preservativos e lubrificantes. A imprensa local informou que se tratava de uma "orgia clandestina", na qual teria sido encontrado "material pornográfico". No entanto, os advogados de defesa esclareceram que não há nenhuma evidência disso nos registros policiais. A denúncia pelos crimes de atentado ao pudor, formação de quadrilha e poluição sonora causou indignação na comunidade LGBT+ venezuelana, que denuncia a criminalização de seus integrantes pelas autoridades. Os slogans "Libertem os 33" e "Justiça para os 33" viralizaram nas redes sociais. Ativistas e familiares dos detidos protestaram na Justiça, no Ministério Público e na sede da polícia ligada à operação. O procurador-geral venezuelano, Tarek William Saab, disse que o Ministério Público vai pedir o arquivamento do caso e uma investigação dos policiais que participaram da operação, depois que as investigações mostraram que o clube não reunia as condições de saúde necessárias para ser aberto ao público. A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, tentou contato telefônico e foi até a sede da Polícia Nacional Bolivariana em Valencia, onde estavam os detidos, para solicitar um posicionamento sobre o caso, mas não obteve resposta. Neste depoimento, contado em primeira pessoa, Iván reconstrói o que viveu com o grupo durante a detenção. Eles nunca nos diziam o que estava acontecendo. A polícia dizia que era uma verificação de rotina e pedia as nossas identidades para verificar se tínhamos antecedentes criminais ou se éramos procurados (pelos tribunais). Depois nos disseram que a revista seria no Comando da Polícia Nacional Bolivariana e que deveríamos ir como testemunhas. Nós fomos em nossos próprios carros de boa fé. Chegamos à sede por volta das 18h. É aí que tudo de ruim começa. Ao revisarem as identidades, percebem que ninguém é requisitado ou possui ficha criminal. O policial diz: “Eles estão limpos. Não há nada aqui". Mas eles nos levam ao gabinete do chefe do comando e nos revistam, pegam nossos telefones e ficamos incomunicáveis. Fiquei preocupado, mas pensei: "Esse procedimento está mal feito em todos os pontos de vista. Isso não vai a lugar nenhum." Quando pegaram nossos telefones, cada um foi obrigado a fornecer as senhas. Um policial pegava o telefone de alguém, desbloqueava e começava a revisar suas fotos, seus vídeos, sua vida privada. E ele dizia: "É você? É isso que você faz?". Isso foi feito com várias pessoas. Não aconteceu comigo porque não levei o celular naquele dia, pois estava descarregado. Quando levaram nossos pertences, um policial passou com uma lista e nos disse: "Vocês vão me dizer seu nome e vão me dar todo o dinheiro que tiverem para a gente anotar, para não perder." Eles disseram que era a única maneira de garantir que o dinheiro não sumiria. Até aquele momento, sustentavam que não estávamos detidos. Hoje, não sabemos onde está (o dinheiro). Ele não está no Ministério Público. Esse dinheiro deveria constar no registro policial, mas sumiu. Eles também pediram para entregarmos as camisinhas porque aquilo era uma prova. Isso ocorreu na sede do Comando da Polícia Nacional Bolivariana, em Los Guayos. Depois disso, eles nos mandaram descer para tirar uma foto. É aí que começa a preocupação mais forte porque uma imagem é feita para registrar alguma coisa. Já entendemos que estávamos sendo fichados. Tiraram uma foto nossa na frente da mesa com as "provas", que na época eram camisinhas, lubrificantes, celulares, RGs e uma garrafinha de popper [droga inalável], que nunca foi usada, que nunca entendemos de onde saiu. Depois nos levam para outro cômodo, que era como uma sala de reuniões. Mandaram a gente sentar e ficar em silêncio. Aí eu me descontrolei. Queria muito ir ao banheiro. Um policial foi bastante enfático: “Se você quiser, se arrisque, não vou te levar ao banheiro. Quem manda você fazer aquela coisa suja que você estava fazendo? Espera aí, marica. Ou faça nas calças." Ele usou essas palavras. Aí ele resolve, a pedido de outro funcionário, me levar ao banheiro e me diz: “Tudo bem, mas você tem que fazer na minha frente. Você não pode fechar a porta." Falei que ia ser incômodo porque me sentia mal, mas que ia ter que fazer. Ele sabia que estava violando meu direito. E ele me disse: "Você não tem nada a pedir, pelo que estava fazendo." Até aquele momento eu não entendia o que tinha feito. Fui obrigado a usar o sanitário com a porta aberta enquanto o policial me olhava. Várias vezes nos disseram: "Se estiver insatisfeito com alguma coisa, é só falar". E, para quem fez isso, eles respondiam: "Cala a boca". Era estranha aquela dinâmica de falar e não falar ao mesmo tempo. Muitas outras coisas passavam nas nossas cabeças. “Como vou contar à minha família?”, perguntávamos. Alguns de nós podemos ter nossas vidas sexuais abertamente e expressar nossa orientação ou preferência. Mas muitos dos meus colegas não. Em alguns casos, as famílias ficaram sabendo de tudo por causa desse constrangimento. Eu apenas pensava: “Por que vou contar para minha irmã se isso é estúpido? Por que vou incomodá-la? Surgiu uma segunda foto que tiramos em grupos de seis e viralizou. Fizemos uma reclamação pública sobre o primeiro portal que divulgou aquela foto porque nossa identidade não foi respeitada, nossos rostos não foram borrados. Nessa segunda foto, havia dois cidadãos a menos. A informação oficial para nós é que eles se sentiram mal, foram levados ao serviço médico e não voltaram a aparecer. Descobrimos que nos tornamos virais quando um dos funcionários mostrou um vídeo no TikTok e disse: "Já conhecem vocês em todos os lugares". O pior é que estava viralizando como uma notícia diferente da realidade, o que tornava a situação mórbida. Já era um tema homofóbico e moralista. Estávamos sendo submetidos ao ridículo em público e ninguém se importava com o que estava acontecendo conosco. Um colega disse que preferia se matar. Então todos procuramos ajudá-lo, para que ele entendesse que não estávamos fazendo nada de errado. Em nenhum momento o boletim de ocorrência menciona que estávamos reunidos para uma orgia. Se assim for, isso não é crime e menos ainda se é consensual. Mas em nenhum momento isso aconteceu. No boletim de ocorrência, consta que estávamos todos vestidos e se ouvia barulho de conversa. A essa altura, eu não sabia mais se minha irmã estava me apoiando ou se ela estava acreditando em tudo isso. Depois, entraram outros fatores. O fator pessoa, o fator dignidade, o fator religião. Havia companheiros de outras religiões nas quais qualquer ato homossexual é inaceitável. Teve gente que desmaiou, gente que chorou inconsolavelmente, gente que se aborreceu. No meu caso, eu estava sem esperança. "Como eu saio disso? Como explicar algo que não tem explicação? Ser viral por algo que não estava acontecendo. Eles nos diziam: “Estão em apuros. Vocês sabem o que eles estavam fazendo, tudo está vindo tudo a tona”. Mas também não nos contaram o que estava acontecendo. Perguntamos e não obtivemos resposta. Nunca demos depoimento. Nunca ficou claro o que eles estavam fazendo. Por volta da 1 da manhã, eles nos permitiram uma ligação. Liguei para minha irmã e, como ela não atendeu, perguntei (ao policial) se podia mandar mensagem de texto para ela e ele disse que sim. Na mensagem, eu disse a ela: “Não se preocupe, estou aqui. Não há nada aqui. Eu não estava fazendo nada de errado." Eu disse a ela onde estava localizado, que era um procedimento de rotina que não entendíamos, mas que resolveria amanhã. Eles nos disseram que passaríamos a noite lá e que deveríamos nos acalmar porque possivelmente no dia seguinte não íamos resolver nada porque aquela segunda-feira era feriado. Naquela noite, não dormi sentado naquela cadeira. No dia seguinte, nos levaram para o exame médico-legal. O procedimento normal deveria ser pedir a um médico que verifique se você está fisicamente apto, para garantir que não houve abuso físico durante a detenção. Mas os médicos nos fizeram duas perguntas e pronto. Esse foi o exame médico que eles fizeram. Aquele momento foi triste porque nos trataram como bandidos numa patrulha com muitos policiais e já havia parentes e militantes do lado de fora do comando da Polícia Nacional. Aos olhos do público, já éramos criminosos. Minha irmã não estava lá naquele momento. Consegui ver dois conhecidos e foi chocante. Não sabia se aquele apoio me confortava ou me debilitava, me tornava mais suscetível. “Eu realmente quero ser visto assim?”, eu me perguntei. Eu não sabia mais o que se passava na minha cabeça. Voltamos àquela sala de reuniões disfarçada de cela. Teve colegas que começaram a passar mal, tiveram taquicardia. Foram momentos sombrios. Os policiais nos disseram: "Estamos ajudando, queremos que fiquem bem". Aquela violação do seu direito disfarçada de bondade. Foi estranho sentir essa necessidade de estar bem com os funcionários para que eles nos tratem bem, quando, na verdade, isso é um direito. A certa altura, senti que eles eram bons, que eram meus amigos e que estavam fazendo todo o possível para que eu ficasse tranquilo. Acho que meus colegas também sentiram isso. Passamos mais uma noite lá. Até então, não tínhamos permissão para tomar banho ou escovar os dentes. Tínhamos permissão para ir ao banheiro urinar e tentar o mínimo possível fazer outras coisas. Éramos supervisionados por funcionários. Sempre dividimos comida. Se alguém trazia uma arepa (comida típica venezuelana), eles cortavam e comíamos entre os 33. Mas não tinha fome. Ainda tenho dificuldade com o apetite. No dia seguinte, terça-feira, fomos ao Palácio da Justiça ao meio-dia. Como não tínhamos celulares, perguntamos ao funcionário que horas eram, pois não sabíamos. A audiência era às 3 ou 4 da tarde. Havia ativistas e parentes do lado de fora do Palácio da Justiça. Foi um pouco assustador porque os funcionários olhavam para nós como se dissessem: “Chegaram as pessoas da orgia que vão ser julgadas”. Era como os policiais nos faziam ser vistos. É tão estranho ter que ficar envergonhado por algo que você nem está fazendo. Também não deveria ser vergonha porque todo mundo faz o que quer com suas vidas. Mas chega uma hora que te falam tanto, que você pensa: "Talvez eu estivesse fazendo algo errado." Entramos no Palácio da Justiça e a realidade era caótica. Primeiro, eles nos revistaram, depois deram a cada um de nós um número para rastrear e nos colocaram em fila nas celas. Pedimos que não nos separassem porque estávamos com medo. Eles já haviam nos dito: “Lá vão ficar com criminosos comuns. Lá nós, policiais, não cuidamos deles. Lá eles ficam por ordem do Palácio da Justiça”. Eles nos colocaram em uma cela, que imagino ter três por três metros. Colocaram os 33 lá. Havia espaço para alguns sentarem e administramos quanto tempo eles ficariam sentados. Havia uma latrina que transbordava de urina. Havia muita ferrugem. O cheiro era insuportável. Entre a polícia e os parentes que estavam do lado de fora, procuraram máscaras para nós. Não sabíamos se era melhor colocar a máscara porque quase não respirávamos. Os outros prisioneiros jogavam coisas em nós enquanto mostravam seus membros. "Abaixem a cabeça, não olhem para nós", diziam eles. Mas pensei: "Por que tenho que abaixar a cabeça?" "Olhem para os 33", eles nos disseram. Eles me fizeram sentir muita vergonha por ser gay. Fico triste e dolorido em admitir isso. Eu me senti envergonhado por encarar minha família. Parece mentira, mas às vezes dentro de um mesmo grupo homossexual temos a homofobia internalizada. Somos heteronormativos. "Mas é isso, não fiz nada de errado", dizia a mim mesmo. Hoje estou entendendo. Tive ataques de ansiedade, insônia, talvez estresse pós-traumático. Mas entendi que não preciso ter vergonha. Entrei em tantas prisões na Venezuela. Esse era o meu trabalho como defensor de direitos humanos. Que irônico ser uma pessoa privada de liberdade. Passei quase dez anos trabalhando no Ministério dos Serviços Penitenciários, na Diretoria de Direitos Humanos e Relações Internacionais. Percebo que sou um prisioneiro quando me dizem: "Faça fila aqui, mãos para trás, cabeça baixa, vamos sair, entra na viatura". O juiz decidiu adiar a audiência e fomos mandados de volta para nossas celas. Então eles nos levaram de volta ao Comando da Polícia Nacional Bolivariana e os familiares e ativistas fizeram um grande rebuliço lá fora. Era noite de terça-feira (25 de julho). Eles nos transferiram em um comboio usado por pessoas da ordem pública quando há manifestações. Estávamos com muitos policiais. Houve o primeiro encontro com os parentes, mas minha irmã não estava. Eu vi três grandes amigos e desmaiei. Toda a força que eu tinha desapareceu quando vi as pessoas que me amam. Eu senti como se estivesse os decepcionando. E eu duvidei. “O que vai acontecer com minha irmã? Será que vai acreditar em mim? Ou está acreditando no que as redes sociais dizem? O que está passando pela cabeça dela?", eu me perguntava. Nós não tínhamos conversado. Somos muito próximos, ela é minha melhor amiga. Quando chegamos à delegacia, ela foi a primeira a chegar. Acenei para ela e ela me disse: “Eu te amo. Está bem?". Concordei com a cabeça e ela me disse: "Calma, vamos sair dessa". "Eu te amo, eu te amo e me desculpe", eu disse a ela. Naquela noite de terça-feira, a situação mudou um pouco. Eu estava mais rebelde. Quando conversei com minha irmã, me senti impotente. Um dos funcionários me disse: “Ivan, o que há de errado com você? Você tem mantido a calma, por que está olhando assim? Nunca te vi assim". E eu disse a ele: “Eu também nunca tinha me visto assim. Eu realmente quero que uma bomba caia sobre nós, que todos nós morramos aqui. Isso é desesperador." “Não há justiça aqui”, eu disse a ele. "Você não sabe como é fácil para você, de uniforme, estragar a vida de alguém." “Vamos deixar sua irmã entrar”, eles me disseram. E eles deixaram minha irmã falar comigo para me acalmar. Rapidamente, tentei explicar a ela: "Não é assim como dizem." Então, ela me disse: “Não se preocupe, o que há de errado com você? Eu sou sua irmã. Não preciso acreditar em nada do que dizem. Eu sei quem você é. Não se preocupe. Eu te amo". E ela tirou as meias e as deu para mim porque ela não tinha mais meias. Eu tive que usá-las numa das vezes que fui ao banheiro. Eles nos deixaram tomar banho por volta das 2 da manhã. Ficamos felizes em nos lavar no pátio, com uma mangueira ao ar livre, supervisionados por funcionários. Um advogado comprou 33 sabonetes, um para cada um de nós. Não trocamos de roupa porque tínhamos que ir à audiência no dia seguinte, quarta-feira. Aquele banho baixou meus níveis de estresse, me senti um pouco mais limpo. Achei que os policiais foram bons em deixar que eu ficasse limpo. Eu senti gratidão. Naquela noite, consegui dormir um pouco mais. Tive pesadelos com fugas e brigas entre nós. Se agora estou na rua e vejo um carro da polícia, verifico meus bolsos para ter certeza de que tenho minha identidade. Estou com um pouco de medo. No dia seguinte, partimos sem tomar café da manhã. A audiência foi marcada para as 11 da manhã. Fomos os primeiros detidos a chegar ao Palácio da Justiça e levaram-nos para as celas. Dividiram-nos em dois grupos e colocaram-nos em duas celas, uma com 17 e outra com 16. E começa aquela longa espera, por volta das 9 da manhã até às 4h30 ou 5 da tarde. Meus companheiros estavam na mesma cela do dia anterior, mas meu grupo pegou a da frente. Ele era mais baixa, menor. Tivemos que sentar no chão. Tentamos fazer piadas para passar as horas. Sentimos que, se passasse uma hora, eles iriam nos acusar de outro crime. Os privados de liberdade queriam nos silenciar. Então dissemos: “Somos mais. Vamos deixar que nos calem?". E começamos a cantar músicas muito icônicas para a comunidade heterossexual. Cantamos “A quién le importa?”, de Thalía. “Todos me Miran”, de Gloria Trevi. E fechamos essas músicas com o hino nacional. Havia silêncio em todas as celas, apenas nos ouvíamos cantando o hino nacional. "O juiz nunca falou conosco". Aí chegamos na plateia calados, com respeito, com um cheiro muito ruim eu diria, com a mesma roupa de todos aqueles dias. Protegidos por nossos defensores, públicos e privados, que fizeram um trabalho impecável. Os promotores eram novos, não os mesmos que apareceram na noite anterior. O juiz nunca falou conosco. Foi uma audiência introdutória, mas parecia um julgamento. Ela era muito lenta e nunca olhavam para nós. Lá, descobrimos que eles estavam nos acusando de atentado ao pudor, conspiração e poluição sonora. Tínhamos 12 defensores: quatro públicos e oito privados. Todos pediram a anulação do processo e que fôssemos liberados integralmente e sem restrições. O último defensor intitulou seu discurso como "A esperança perdida". E isso me marcou. Havíamos perdido a esperança no Estado de Direito. Aquele defensor foi tão enfático que a juíza saiu e voltou, dando pouca importância ao que ele dizia. Fizemos uma pausa e, quando voltamos, ele disse que estava rejeitando todos os pedidos da defesa. Ele emitiu um mandado de prisão para três pessoas e as outras 30 foram deixadas para comparecer em juízo a cada 30 dias durante seis meses. Depois de tudo isso, sinto-me zombado e preocupado. Toda vez que falo, vou soltando a experiência. Mas também me sujeita a uma exposição que eu não queria. Não quero que nada pior me aconteça por mostrar minha cara e tornar visíveis os vícios desse sistema.
2023-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn069v72rzqo
sociedade
Como vai funcionar contratação de médicos brasileiros por Portugal com casa e salário de R$ 15 mil
Portugal quer contratar médicos brasileiros com salário equivalente a R$ 15 mil por mês, além de vale-refeição e moradia paga, para suprir a escassez de profissionais em regiões onde há maior demanda por serviços de saúde. Isso ocorre em um contexto de aumento do número de imigrantes no país e aposentadoria de médicos, o que vem colocando pressão sobre o sistema de saúde público, o Serviço Nacional de Saúde (SNS), similar ao SUS brasileiro. Só de brasileiros, o número de imigrantes em situação regular no país mais do que dobrou desde 2016 — são quase 300 mil (ou 30% de todos os estrangeiros), segundo os dados oficiais mais recentes. Os detalhes sobre como vai funcionar a contratação de médicos estrangeiros ainda estão sendo acertados, uma vez que os modelos de contratação relativos ao recrutamento ainda "estão sendo desenvolvidos", informou a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), órgão vinculado ao Ministério da Saúde português, em nota enviada à BBC News Brasil. Sabe-se, porém, que as contratações serão de "natureza transitória" — três anos — "para facilitar o acesso regular das populações a cuidados médicos", enquanto médicos de família estão sendo formados, segundo a ACSS. Fim do Matérias recomendadas "Estão sendo testadas as condições que poderão vir a ser oferecidas e que constam da súmula criada pela ACSS e que está ainda a ser trabalhada", informou o órgão no comunicado. "A remuneração oferecida tem como referência a prestação de serviços médicos em atendimento em Cuidados de Saúde Primários, para um horário semanal de 40 horas." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os médicos contratados vão trabalhar em centros de saúde nas regiões de Lisboa, Vale do Tejo, Alentejo e Algarve. O salário mensal é de 2.863 euros (R$ 15 mil brutos, ou cerca de R$ 9 mil líquidos), além de vale-refeição diário de seis euros (R$ 32). A moradia também está incluída no pacote de benefícios. Os médicos contratados vão ter "um período de integração com apoio de um médico do serviço". Mas devem obedecer aos seguintes requisitos: ter "o reconhecimento de qualificações estrangeiras" em Portugal e, "preferencialmente, um mínimo de cinco anos de experiência como médico". Interessados devem enviar canditatura ao e-mail: recrutamento.medicos@acss.min-saude.pt. A revalidação do diploma, no entanto, segue sendo um dos maiores entraves a médicos estrangeiros que queiram atuar em Portugal e pode frustrar planos de brasileiros que queiram emigrar. Isso porque, para poderem exercer a profissão no país, esses profissionais precisam realizar várias provas numa das oito faculdades de medicina portuguesas, um processo considerado longo e complicado. Diante disso, o governo português aprovou no início de julho um regime excepcional para o reconhecimento automático dos diplomas. O objetivo é agilizar o recrutamento de estrangeiros para reforçar o SNS. Dirigentes sindicais ouvidos pela imprensa portuguesa criticaram a decisão do governo de contratar médicos estrangeiros. Nos últimos meses, profissionais de saúde do país vêm realizando greves cobrando melhores condições de trabalho e salários. "Vamos reivindicar moradias para os jovens especialistas na próxima reunião com os representantes do Ministério da Saúde", afirmou ao jornal Público Jorge Roque da Cunha, secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos (SIM). Ele destacou que os médicos portugueses não têm direito à moradia e em Lisboa, isso representa "mais 1 mil (R$ ) por mês". "Infelizmente, o governo, em vez de fazer a sua obrigação, que é atrair médicos portugueses para o SNS, pretende contratar profissionais estrangeiros que, naturalmente, serão médicos assistentes dos governantes e dos seus familiares e assessores", acrescentou. Já a presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fnam), Joana Bordalo e Sá, descreveu as medidas como "uma falta de respeito pelos profissionais formados em Portugal". "É com estranheza que vemos este tipo de anúncio. Não há falta de médicos em Portugal, há falta de médicos no SNS. Temos cerca de 60 mil médicos inscritos na Ordem dos Médicos, mas só 31 mil estão no SNS. Isso só revela o desespero do Ministério da Saúde, que não consegue contratar para o SNS. Mas há soluções: o governo tem que investir nas condições de trabalho e na melhoria dos salários dos médicos que se formam em Portugal", disse ela ao Público. O ministro da Saúde de Portugal, Manuel Pizarro, afirmou que, por enquanto, não há "nenhuma decisão sobre os contingentes de médicos estrangeiros". Ele adiantou, no entanto, que o número deve girar entre "200 a 300 profissionais" e que eles serão recrutados em "vários países da América Latina". Segundo ele, Portugal "não pode" buscar médicos em países onde há falta desses profissionais. Por isso, o recrutamento, disse ele, deve ocorrer em "Cuba, Colômbia e mais alguns da América Latina". No passado, Portugal contratou médicos em países como Uruguai, Cuba, Costa Rica e Colômbia.
2023-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czkpj5mkmg0o
sociedade
Secos & Molhados, 50 anos: a história da banda que desafiou a ditadura
Gerson Conrad estava pintando o rosto, ao lado de Ney Matogrosso e João Ricardo, quando sentiu o chão do vestiário tremer. Não se tratava de um abalo sísmico; mas da abertura dos portões do Maracanãzinho, no Rio de Janeiro. "Foi algo assustador", recorda o caçula dos três integrantes do Secos & Molhados, hoje com 71 anos. Dali a pouco, Moracy do Val entrou no camarim improvisado e, ofegante, deu a notícia que todos esperavam ouvir: “Tudo lotado!”. “Quantas pessoas cabem aqui?”, perguntou João, enquanto dava os últimos retoques da pintura na boca. “Umas vinte mil!”, calculou o empresário. Havia outras 20 mil do lado de fora. Quando tocou a terceira campainha, rolou nervosismo entre os integrantes da banda para saber quem entraria primeiro. Se não lhe falha a memória, Gerson foi o primeiro a pisar no palco. O show do Maracanãzinho, no dia 10 de fevereiro de 1974, foi um dos 369 que, pelas contas do artista, o grupo fez em um ano de turnê. Fim do Matérias recomendadas Quem estava lá, naquela tarde de domingo, era o poeta Paulinho Mendonça. Coautor de Sangue Latino – um dos maiores hits do grupo – e responsável por sugerir o sobrenome artístico a Ney Matogrosso, ele conta que a polícia havia interditado a quadra e liberado apenas a arquibancada. Mas, como não havia mais lugar disponível no anel superior do ginásio, o público teve que descer para a pista central. Foi recebido a golpes de cassetete. Diante da truculência policial, Ney interrompeu o show e gritou com os guardas. "Deixa os caras ficarem aí!". A tropa de choque, sob o comando do coronel Ardovino Barbosa, recuou. E o público pôde, finalmente, assistir ao show à beira do palco. “Em plena ditadura, o Ney teve a coragem de confrontar a polícia”, espanta-se Paulinho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A ideia de fundar o Secos & Molhados, um dos maiores fenômenos da indústria fonográfica brasileira, partiu de João Ricardo. Português de Arcozelo, ele chegou ao Brasil no dia 28 de março de 1964, acompanhado da família – seu pai, o jornalista João Apolinário (1924-1988), fugia da ditadura salazarista. São de autoria de Apolinário cinco letras do Secos & Molhados: Amor e Primavera nos Dentes, do primeiro álbum da banda, lançado em 1973, e Flores Astrais, Voo e Angústia, do segundo, de 1974. No Brasil, pai e filho trabalharam em redações de jornais: o primeiro deu plantão no Última Hora e o segundo se revezou entre três empregos: no Última Hora, pela manhã; na TV Globo, à tarde; e na TV Record; à noite. Cinco anos depois de desembarcar no Brasil, João conheceu Gerson, um jovem estudante de Arquitetura que morava na mesma rua, a Alameda Ribeirão Preto, na Bela Vista, e logo ficaram amigos. Juntos, compuseram a primeira canção do Secos & Molhados: El Rey. O grupo, aliás, teve incontáveis formações. A mais famosa delas, com Ney Matogrosso, João Ricardo e Gerson Conrad, durou apenas dois anos: de 1973 a 1974. Certa manhã de 1971, João estava em Ubatuba (SP), curtindo as férias, quando se deparou com o letreiro de um velho armazém. Pensativo, perguntou aos amigos se Secos & Molhados daria um bom nome a uma banda de rock. Todos riram. Logo, teve a certeza que sim. A formação original, de 1971, era composta por João Ricardo, no violão de doze cordas e na gaita; Fred, na percussão; e Antônio Carlos de Lima, nos vocais, e chegou a se apresentar no Kurtisso Negro, uma boate em São Paulo. Quando o vocalista pediu para sair, João saiu à procura de um novo cantor. Foi a cantora Luhli, nome artístico de Heloísa Orosco (1945-2018), quem sugeriu um tal de Ney de Souza Pereira, no Rio de Janeiro. Luhli é autora de três letras do Secos & Molhados: O Vira e Fala, do primeiro disco, e Toada & Rock & Mambo & Tango & Etc, do segundo. João e Gerson viajaram até o Rio só para conhecer Ney, um jovem ator hippie que fazia artesanato em couro. Em poucas horas, viraram amigos de infância. Em janeiro de 1972, já em São Paulo, começaram a ensaiar o repertório do primeiro disco. Enquanto Ney assumia o papel de principal cantor do grupo com seu timbre agudo, João e Gerson se revezavam nos vocais de apoio e também nos violões de seis e doze cordas. O primeiro show do Secos & Molhados com a nova formação aconteceu na Casa de Badalação e Tédio, do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, no dia 10 de dezembro de 1972. João chegou a sugerir que eles subissem ao palco usando boinas como se fossem guerrilheiros, mas Ney e Gerson não aprovaram a ideia. No ano seguinte, João conheceu duas figuras importantes para o sucesso do grupo: o jornalista Moracy do Val, em janeiro de 1973, e o fotógrafo Ary Brandi, em novembro. Como empresário, Moracy do Val realizou duas proezas: fechou contrato com a Continental – antes dele, o grupo havia recebido recusas da EMI-Odeon, Phonogram e RCA Victor – e agendou shows pelo Brasil inteiro, e até duas apresentações no México, em junho de 1974, para o lançamento do disco Secos y Mojados. À época, o que o grupo ganhava era dividido em quatro partes iguais: 25% para João, Ney, Gerson e Moracy. Já Ary Brandi tornou-se o fotógrafo oficial do Secos & Molhados. Fotografava Ney, João e Gerson nos quartos de hotéis, nos estúdios de gravação, nos camarins dos ginásios... “Tinha carta branca para fotografar o que quisesse. Ninguém nunca disse ‘Não faça isso’ ou ‘Não faça aquilo’. Era proibido proibir”, afirma o fotógrafo que, ano que vem, pretende fazer uma exposição com as fotos do grupo. “Não fazia ideia do que estava acontecendo. Se soubesse que estava testemunhando um fenômeno da indústria fonográfica, teria tirado mais fotos. Em vez de gastar um filme, teria gasto uns dez”, brinca. O primeiro álbum da banda, intitulado simplesmente de Secos & Molhados, foi gravado em apenas 15 dias no Estúdio Prova, na capital paulistana, entre 23 de maio e 8 de junho de 1973. Além do trio principal, contou com o baixista Willy Verdaguer, o pianista Emílio Carrera, o guitarrista John Flavin, o flautista Sérgio Rosadas e o baterista Marcelo Frias. É de Marcelo, aliás, a quarta cabeça da capa do disco. A princípio, ele topou fazer parte do grupo, mas, depois, preferiu continuar como músico contratado. Quem também participou da gravação do LP foi o cantor e compositor Zé Rodrix (1947-2009). Tocou, entre outros instrumentos, sanfona em O Vira e sintetizador em Fala. Willy, Emílio, John e Marcelo tocavam no espetáculo A Viagem, uma adaptação de Carlos Queiroz Telles para Os Lusíadas, do poeta português Luís de Camões. Um dia, Ney Matogrosso, um dos 72 figurantes do musical, convidou a trupe para assistir ao show do Secos & Molhados. “Nosso som tinha atitude”, orgulha-se Emílio. O repertório do álbum de estreia da banda trazia versões musicadas de grandes nomes da literatura brasileira, como Vinícius de Moraes (Rosa de Hiroshima), Manuel Bandeira (Rondó do Capitão), Cassiano Ricardo (Prece Cósmica e As Andorinhas) e Solano Trindade (Mulher Barriguda). “Musicar poemas de autores já publicados foi uma esperteza do João para enfrentar a censura”, relata o jornalista Miguel de Almeida, autor de Primavera nos Dentes – A História dos Secos & Molhados (Record). “A censura, sempre ignorante, não atentou para o caráter sedicioso de alguns versos. Afinal, livros de poesia nunca venderam muito no país. Por essa razão, não representavam um perigo para a sociedade”. Terminada a gravação, a próxima etapa seria fazer a capa do disco. Foi João Apolinário quem sugeriu o nome do fotógrafo Antônio Carlos Rodrigues. Os dois foram colegas de redação do jornal Última Hora. Convite aceito, Antônio Carlos logo se lembrou de outra foto que fizera não havia muito tempo para um ensaio da revista Fotoptica. Nela, sua mulher, a modelo Ceni Câmara, aparece com a cabeça sobre um prato de papelão prateado. E sugeriu fazer algo parecido para a capa do disco. Os integrantes do grupo estranharam a proposta, mas, logo em seguida, mudaram de ideia. Menos Marcelo Frias, o baterista, que se recusou a pintar o rosto. “Sou músico, não palhaço”, teria reclamado, segundo o jornalista Julio Maria em Ney Matogrosso – A Biografia (Cia das Letras). Numa noite gelada de junho de 1973, Antônio Carlos montou o cenário em seu estúdio no Jardim Europa e, para produzir a foto, comprou, entre outros ingredientes, pão, cebola, vinho, linguiça e azeite. “Levamos uma noite inteira para fazer a foto da capa do disco”, relata João Ricardo em um vídeo no canal do Secos & Molhados no YouTube. “Fazia muito calor em cima, por causa dos holofotes, e muito frio em baixo, porque estávamos sentados em tijolos”. Entre um show e outro no Teatro Itália, o Secos & Molhados foi convidado a gravar dois videoclipes para o Fantástico, da TV Globo. As músicas escolhidas por Luís Carlos Miéle e Ronaldo Bôscoli, os responsáveis pelos quadros musicais do programa, foram Sangue Latino e O Vira. Bem, eles não chegaram a ouvir as músicas. No dia combinado, tomaram um porre daqueles. Mas, durante uma reunião com Augusto César Vannucci, usaram como critério de seleção a capa do disco. “Quais músicas?”, quis saber o diretor. “As duas primeiras do lado A”, arriscaram. Para sorte deles, Vannucci aprovou a indicação. A Continental não botou muita fé no grupo. Tanto que mandou imprimir apenas 1, 5 mil cópias. Mal sabiam os executivos da gravadora que aquela tiragem não duraria nem 10 dias. Logo, tiveram que produzir mais e mais discos: em 60 dias, o Secos & Molhados vendeu 250 mil cópias. Em três meses, 350 mil e, em sete, quase 800 mil. Com a crise do Petróleo, a Continental precisou derreter os discos encalhados de outros artistas para fabricar vinis. Em um ano, o Secos & Molhados vendeu, segundo estimativas, 1 milhão de cópias e colecionou discos de ouro, platina e diamante. Em 1997, com o relançamento do LP em CD, foram mais 250 mil cópias vendidas. As letras “políticas e contundentes”, nas palavras de Miguel de Almeida, passaram despercebidas pelos militares. Mas, o visual andrógino do grupo, e a dança provocativa de Ney Matogrosso, não. “Volta e meia, eu botava a cara para fora da janela e via dois agentes à paisana dentro de um Dodge Dart com um binóculo”, recorda Gerson. Não foi o único. Ney chegou a receber cartas anônimas com ameaças de morte. Mas não se intimidou. Com o disco tocando em todas as rádios, o grupo caiu na estrada. Percorreram diversas capitais como Rio, Salvador e Porto Alegre. “Tínhamos um Galaxie Landau”, recorda Gerson, referindo-se ao maior e mais luxuoso carro da época. “Viajávamos sempre os quatro, revezando a direção.” No dia 20 de fevereiro, Ney teve que sair de um show no ginásio Geraldo Magalhães, o Geraldão, no Recife (PE), escoltado pela polícia e dentro de um camburão. Não havia cordão de isolamento que acalmasse os ânimos dos fãs. Naquela noite, Ney só conseguiu respirar aliviado quando fechou a porta do quarto do hotel. O trio principal não foi o único a passar perrengue. Sobrava até para a banda. Mal terminava o show e os músicos saíam correndo do palco, rumo ao carro que tinham alugado ao chegar à cidade. Certa ocasião, não funcionou. Emilio Carrera virou a chave de ignição, mas o motor não deu sinal de vida. Tentou uma, duas, três vezes... e nada. Em poucos minutos, a Variant já estava cercada por uma multidão ensandecida. “No meio daquele show de horrores, o motor pegou. Mas, eu não podia mais sair com o carro. Se saísse, atropelaria meio mundo”, relata o pianista que não sabe o que teria acontecido se o regimento da polícia montada não tivesse dispersado os fãs. Em 22 de março, o grupo se apresentou em Brasília (DF). A sogra do então ministro de Minas e Energia, Shigeaki Ueki, implicou com o peito nu do vocalista. Chegaram a cortar a luz do ginásio Nilson Nelson. Mas, de nada adiantou. Ney se recusou a vestir uma camisa e o show teve que continuar. Logo no início, tentaram proibir alguns shows, mas não conseguiram. “Os netos dos generais adoravam o Secos & Molhados”, explica Moracy. Em Santo André (SP), um juiz tentou proibir uma apresentação, mas o neto não deixou. “Quando você conquista a criança, conquista a família inteira”, completa. O Vira caiu nas graças do público – do netinho à avó. Foi tocada em festa de aniversário e baile de Carnaval. Se o Secos & Molhados conquistou a garotada pelo aspecto lúdico, atraiu a atenção da mulherada pelo lado sensual. “Até hoje, o público feminino se esgoela nos shows do Ney Matogrosso”, observa Miguel. O grupo fazia shows de terça a domingo – às vezes, até mais de um por dia. Tirava a segunda para descansar. Certa ocasião, João convidou Gerson para ir ao Shopping Iguatemi, em São Paulo. Queria prestigiar a inauguração da loja de discos de um amigo. Chegar lá foi fácil; difícil foi sair. Mesmo de cara limpa, foram reconhecidos. A multidão cercou a loja e ameaçou invadir. “Fomos resgatados pelos bombeiros”, recorda. Concluída a agenda de shows, o Secos & Molhados voltou aos estúdios. A banda que gravou o segundo álbum era praticamente a mesma – a única exceção foi o baterista Norival D’Angelo, que substituiu Marcelo Frias. Dessa vez, foram musicados poemas de Júlio Cortázar (Tercer Mundo), Fernando Pessoa (Não: Não Digas Nada) e Oswald de Andrade (O Hierofante). No repertório do novo disco, três músicas sofreram censura: Pasárgada, baseada no poema Vou-me Embora Pra Pasárgada, de Manuel Bandeira, por causa do verso “Tem alcalóide à vontade”; Tristeza Militar, com letra e música de João Ricardo; e Tem Gente com Fome, versão de João Ricardo para poema de Solano Trindade. Quando voltaram do México, Ney e Gerson descobriram que Moracy do Val tinha sido demitido da banda. Com o desligamento dele, João Apolinário assumiu os negócios do grupo e propôs uma nova divisão dos lucros: Ney e Gerson deixariam de ser sócios e passariam a empregados. Revoltado, Ney teria rasgado a minuta do contrato. Ao fim das gravações do segundo disco, não houve coletiva de imprensa, nem turnê de lançamento. Apenas a gravação de um videoclipe da música Flores Astrais para o Fantástico. No dia 11 de agosto de 1974, o programa dominical da TV Globo anunciou o fim do grupo. Indagado sobre o que levou ao fim precoce do Secos & Molhados, se foram divergências artísticas ou financeiras, Moracy do Val dispara: "foi burrice mesmo!". “Mataram a galinha dos ovos de ouro!”, lamenta. Não foi por falta de planos que o Secos & Molhados chegou ao fim. João pretendia lançar um disco com poemas de autores de língua inglesa. Moracy planejava uma turnê pelo exterior com show de encerramento em Hiroshima, e até um filme, no melhor estilo Os Reis do Iê-Iê-Iê, dos Beatles, com direção de Luís Sérgio Person. “É bom que eu repita o que venho dizendo há décadas: não tenho nenhum ressentimento em relação ao João Ricardo”, declara Ney no livro de memórias Vira-Lata de Raça (Tordesilhas). “Pelo contrário. Sou muito grato ao Secos & Molhados e a ele. A palavra que resume minha história com o grupo é gratidão. Foi uma experiência que me trouxe muitos ensinamentos. O maior deles foi a compreensão de que era um artista de verdade”. Fã do Secos & Molhados, Danilo Fiani, de 41 anos, não tinha sequer nascido quando o grupo estourou, em 1973. Quarenta e cinco anos depois, o cantor teve a ideia de criar, em 2018, o espetáculo Flores Astrais e convidou Luiz Lopez e Mario Vitor para integrar o projeto. No tributo que revisita os dois LPs da banda, Danilo, Luiz e Mario interpretam Ney, João e Gerson, respectivamente. O baixista Alan James e o baterista Rike Frainer completam a formação. O espetáculo Flores Astrais já passou pelo Rio, São Paulo e Minas Gerais. Proibida em 1974, a música Tem Gente com Fome entrou no álbum Seu Tipo, o quinto da carreira solo de Ney, em 1979. Para gravá-la, ele convidou João Ricardo. Foi a última vez que entraram em um mesmo estúdio. “O Secos & Molhados foi vítima do próprio sucesso”, filosofa Miguel. “Ao morrerem jovens, criaram uma lenda”. Gerson conta que, em 1984, recebeu um telefonema de uma TV alemã. Cada integrante ganharia US$ 1,5 milhão por um show acústico do Secos & Molhados. Segundo ele, João nem quis ouvir a proposta. “Se esse show tivesse rolado, minha situação financeira hoje seria completamente diferente”, admite. João se recusou também a participar da série Primavera nos Dentes, que o biógrafo Miguel de Almeida adaptou e dirigiu para o Canal Brasil. O fundador do Secos & Molhados, a princípio, aceitou o convite. Mas, no último minuto, mudou de ideia. Pior: não quis liberar suas canções. O jeito foi entrar na Justiça e pedir a liberação. “O sucesso do Secos & Molhados não pertence ao João Ricardo. Pertence ao João Ricardo, ao Ney Matogrosso e ao Gerson Conrad. E aos cinco músicos que tocaram com eles nos discos e nos shows”, afirma Miguel. A previsão é que a série Primavera nos Dentes, em quatro episódios de 60 minutos cada, seja exibida em outubro. “O Secos & Molhados foi um cometa que riscou o céu do Brasil. Um cometa que deixou muito brilho por onde passou”, afirma o letrista Paulinho Mendonça. “Tinham fôlego e talento para muito mais. Poderiam ter chegado muito mais longe. O segundo LP, por exemplo, é tão sofisticado quanto o primeiro. É um álbum belíssimo”.
2023-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1e0241kl73o
sociedade
Por que usuários do Twitter se sentem 'traídos' por mudança da marca da rede social
Adeus Twitter, olá X. A mudança não agrada a muitos de seus usuários mais fiéis, e pode haver razões para isso. Muitos usuários que acessaram o Twitter em 23 de julho encontraram um X preto no canto da guia do navegador, no lugar do passarinho azul que costumavam ver. Elon Musk, empresário de tecnologia e CTO (Chief Technology Officer) da plataforma de mídia social, surpreendeu quase todos ao anunciar planos de renomear o Twitter, que ele comprou por US $ 44 bilhões em outubro de 2022. A empresa agora se chama X. Depois de anunciar que a plataforma de comunicação será articulada para incluir uma variedade de serviços futuros – pagamentos, jogos e muito mais – Musk também disse que eventualmente “todos os pássaros” e a marca do Twitter seriam retiradas. Um dia após o anúncio, a placa do Twitter saiu na sede da empresa em São Francisco, na Califórnia (desde então, ele instalou uma grande placa em forma de X no topo do prédio). Fim do Matérias recomendadas A medida atraiu escárnio, escrutínio e confusão – até mesmo ira – de muitos usuários do Twitter e especialistas do setor de tecnologia. O repórter técnico Casey Newton descreveu a abordagem de Musk como proprietário do Twitter como “um ato prolongado de vandalismo cultural”. “Acho que havia uma verdadeira afinidade com o Twitter e a marca por parte de seus usuários avançados”, diz Orlando Baeza, da Califórnia, diretor de receita da Flock Freight e ex-executivo de marketing e líder de marca da Buzzfeed, Paramount, Activision, Adidas e Nike. “Esta é uma virada dramática e inesperada. A identidade da marca passou de calorosa e acolhedora para sombria e exclusiva para membros. E ainda por cima, tudo isso aconteceu durante a noite. Literalmente." O Twitter não está sozinho em mudar o nome e a iconografia de sua marca altamente reconhecível e até significativa. O movimento de Musk é paralelo aos recentes esforços de transformação, como Facebook para Meta, ou HBO para Max. Mas, segundo especialistas em marcas, alguns pivôs de marca são mais bem-sucedidos do que outros – e há razões para isso. As empresas mudam de marca – é assim que elas inovam e se adaptam. Os principais objetivos de uma reforma, diz Maggie Sause, diretora de estratégias de entrada no mercado da agência de branding Red Antler, com sede em Nova York, geralmente é melhorar o reconhecimento e a reputação de uma empresa e sinalizar uma mudança em seu foco e investimentos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No entanto, a mudança é quase sempre chocante para alguns consumidores. Sause diz que as pessoas muitas vezes se sentem emocionalmente envolvidas com as marcas, especialmente com os produtos que usam em suas vidas diárias. “É quase como se estivéssemos dizendo: 'Como você ousa tomar essa decisão sem me consultar?' Pode parecer quase como um ato de traição.” Zach Dioneda, vice-presidente de marketing de marca da fintech Public.com, concorda que as pessoas podem levar as rebrands para o lado pessoal. “Haverá pessoas que sentirão que é uma afronta para eles como um usuário leal”, diz ele. “As pessoas não gostam de mudanças.” No entanto, especialistas dizem que existem maneiras de tornar as transformações de marca mais palatáveis, com os usuários finais na frente e no centro. Entre essas práticas recomendadas estão os pivôs que consideram os hábitos, desejos e valores dos principais usuários e clientes, e geralmente são orientados por dados e pesquisados. Um exemplo é o Dunkin Brands Group, Inc., com sede em Massachusetts, nos Estados Unidos, que em 2018 anunciou que estava mudando o nome de sua principal marca Dunkin 'Donuts, fundada em 1950. Eles retirariam a palavra Donuts de seu apelido e iconografia, e doravante seria apenas Dunkin ', para representar uma faixa mais ampla de ofertas de alimentos e bebidas. Assim como em outras transformações corporativas, a mudança de nome e logotipo não agradou perfeitamente a todos os consumidores no início. No entanto, Sause diz que vê o rebranding da Dunkin' como um grande sucesso porque se baseou em dados e estudos de resposta do usuário – especialmente porque a marca tinha tanta nostalgia e afinidade do consumidor devido à sua longevidade. A reforma foi “resultada de uma profunda pesquisa de público e mercado para expandir para novos públicos sem isolar ou dissuadir o atual”, diz ela. Essa, ela acrescenta, é uma das razões pelas quais a mudança de marca do Twitter para X não teve o mesmo sucesso, deixando os usuários principais e dedicados se sentindo excluídos. Sem consultá-los, ela acredita que “parece uma promessa de buraco negro, cheia de coisas que Musk pode fazer”, sem nenhuma evidência de que haja um plano claro para implementar qualquer uma das novas funções que ele lançou aos consumidores. Isso, ela pensa, é em grande parte alienante para sua base de usuários dedicada. O diretor executivo de criação da Red Antler, Michael Ciancio, também diz que é importante que os rebrands reflitam os interesses e valores do consumidor – coisas com as quais eles desejam se associar. Ele acredita que alguns usuários acharam a transição para o X “um momento de orgulho [para Musk], em que uma nova pessoa no comando, que tem um histórico de fazer grandes gestos a serviço de sua própria reputação”, assumiu. E isso fez do pivô um “choque”. Ele acrescenta: “É uma rejeição completa do ethos e da tradição [da marca]”. Apesar da reação, Musk não deu indícios de que reverterá a decisão - por enquanto, ele dobrou a marca, removendo o restante do nome do Twitter e pássaros azuis do site, que permaneceu em 23 de julho e durante a semana seguinte. Há precedentes, no entanto, para marcas que fizeram novas transformações com base no feedback negativo do usuário. Por exemplo, a mudança da marca da rede de varejo americana JCPenney para JCP foi amplamente rejeitada pelos consumidores que eram leais à loja de departamentos há anos, o que fez com que os executivos revertessem o nome em 2013; a empresa global de manutenção de peso WeightWatchers tomou a mesma decisão em 2018, depois que os consumidores recuaram em seu pivô de missão e subsequente rebranding para WW. No geral, Sause diz que é difícil construir o prestígio da marca que o Twitter tem – até se tornou um verbo na linguagem comum. Apesar da fase difícil da empresa, “sua marca ainda é um ativo poderoso”, mas ela acredita que eles a enfraqueceram com a mudança de nome. Apesar de todas as reações emocionais às mudanças repentinas, no entanto, alguns especialistas dizem que a difícil transição do Twitter para o X pode não ser um problema de longo prazo – pelo menos do ponto de vista corporativo. “A maioria das reações são apenas temporárias e, com o tempo, a oposição à mudança tende a se dissipar”, diz Kuram Zaman, fundador e CEO da Fifth Tribe, uma agência de estratégia digital e branding com sede em Washington, DC. “Vimos isso com o Airbnb, cujo redesenho do logotipo foi ridicularizado pelos usuários, ou com a Kia, cujo logotipo causou confusão no redesenho. Há muita discussão no início dessas mudanças – o que pode não ser necessariamente uma coisa ruim – mas os clientes eventualmente seguem em frente. A vantagem é que mudanças de marca podem ser necessárias e as respostas negativas diminuirão com o tempo.” Baeza concorda. “Não tenho nenhuma evidência de comportamento de compra dos consumidores mudando para negativo apenas por causa de uma mudança de nome”, diz ele. “Então, talvez tudo isso se torne uma mídia conquistada, sem nenhum prejuízo real, para dar início à reinvenção da marca antes conhecida como Twitter. Talvez esta seja apenas a reinvenção de que precisa para superar a estagnação do crescimento dos últimos anos.” De fato, embora o rebranding da empresa de tecnologia rival Meta tenha atraído críticas iniciais, a receita da empresa atingiu as metas de Wall Street no segundo trimestre de 2023, e a Meta prevê mais crescimento. Sause e Ciancio concordam que pode haver uma estratégia combinada por trás da ação de Musk, apontando para o momento do anúncio. Ele veio logo depois que a Meta lançou sua nova plataforma social, Threads, que na época dominava o ciclo da mídia como o 'assassino do Twitter'. “Talvez seja parte da estratégia de mídia e ele pode mudar o logotipo novamente amanhã”, diz Ciancio, “mas mesmo que não haja um plano, ele definitivamente está mudando a conversa.”
2023-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cllgp2n159go
sociedade
Como exportação de drogas tornou a Baixada Santista ponto estratégico para o PCC
Iniciada após a morte do policial da Rota (tropa de elite paulista) Patrick Bastos Reis, de 30 anos, a ação é justificada pela Secretaria da Segurança Pública como uma ferramenta para sufocar o tráfico de drogas e retirar armas de circulação na região. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), afirmou que a operação está prevista para durar ao menos 30 dias. Ao ser questionado sobre as mortes causadas pelos policiais, ele afirmou que “não existe combate ao crime sem efeito colateral”. Depois, falou a jornalistas que “se houver excesso, vamos punir os responsáveis”. Na terça (1º/8), dois policiais ficaram feridos após serem atingidos por disparos durante a operação em Santos. Ao menos um dos tiros foi feito por um fuzil, arma considerada de grosso calibre e usada em operações militares por ser capaz de atingir alvos a longas distâncias. Por meio de nota, a Secretaria da Segurança Pública (SSP) informou que esse ataque contra policiais "comprova a necessidade de manter em curso a Operação Escudo na região, para sufocar o tráfico de drogas e desarticular o crime organizado.” Também afirma que “o Estado de São Paulo não terá nenhuma região dominada pela criminalidade". Fim do Matérias recomendadas A SSP informou ainda que "todas as ocorrências com morte durante a operação resultaram da ação dos criminosos que optaram pelo confronto, colocando em risco tanto vítimas quanto os participantes da ação". "Por determinação da própria SSP, todos os casos desse tipo são minuciosamente investigados pela Divisão Especializada de Investigações Criminais (DEIC) de Santos e pela Polícia Militar, por meio de Inquérito Policial Militar (IPM). As imagens das câmeras corporais serão anexadas aos inquéritos em curso e estão disponíveis para consulta irrestrita pelo Ministério Público, Poder Judiciário e a Corregedoria da PM", continua a nota. A reportagem da BBC News Brasil conversou com especialistas em segurança pública e policiais que atuam na região para entender por que o local é palco de tantos conflitos e se tornou um ponto estratégico da facção PCC (Primeiro Comando da Capital). Segundo os entrevistados, o principal atrativo é o Porto de Santos, usado para escoar cocaína em larga escala, principalmente para países da Europa, África e América do Norte. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Maior da América Latina em movimentação de cargas, o Porto de Santos envia mercadorias para mais de 200 países, em 600 destinos diferentes. E em meio às 162 milhões de toneladas de produtos que são enviados anualmente para o exterior pelo mar, a facção criminosa PCC aproveita para exportar seu produto mais lucrativo: a cocaína. Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que o crime organizado possui um time que atua no porto para colocar as drogas dentro de containers, negociar “vistas grossas” com a fiscalização e despachar os navios sem problemas. A facção paulista ainda possui, segundo as fontes, estrutura semelhante nos países de destino, principalmente na Itália, para que a carga chegue ao destino sem complicações. A Delegacia Sindical de Santos do Sindifisco Nacional informou à reportagem "que não há notícia de qualquer envolvimento de Auditores Fiscais ou outros servidores da Receita Federal nas ocorrências de tráfico de drogas identificadas nos portos e aeroportos do país". O órgão, disse ainda, por meio de nota, que "a Receita Federal foi responsável pela interceptação de mais de 200 toneladas de cocaína nos portos e aeroportos do país desde 2018, sendo que cerca de metade desse volume foi apreendido no Porto de Santos". O cientista político e ex-subsecretário nacional de Segurança Pública Guaracy Mingardi afirma que dois pontos tornam a região da Baixada Santista relevante para as finanças do PCC: a venda local de drogas na alta temporada de verão e a exportação de entorpecentes. “A partir de outubro, a região recebe muitos turistas e vende muito mais droga, inclusive cocaína. A população triplica e vai com dinheiro para comprá-las. A outra questão é o porto que exporta cocaína”, diz Mingardi. Também membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Mingardi conta como funciona a rede de pessoas que atuam para que essa droga, produzida em sua maioria na Bolívia, chegue a Santos e depois cruze o Atlântico. Segundo ele, o Partido do Crime, como também é conhecido o PCC, é especialista em corromper policiais, fiscais e tem uma logística completamente estruturada. “Toda essa rede é controlada por gente do PCC, mas não pela facção em si. As pessoas confundem como se o PCC fosse uma empresa sem rosto, como as gigantes varejistas. Na verdade, esse grupo é um amontoado de criminosos, muitos com cargos importantes na facção, mas cada um na sua função. Juntos, eles fazem a droga chegar até o porto de Gioia Tauro, na região da Calábria, no sul da Itália”, conta. Segundo o especialista, a grande maioria da droga enviada para a Europa é cocaína, já que a maconha é facilmente encontrada no continente por diferentes meios. Policiais que atuam na Baixada Santista disseram à reportagem que há uma grande diferença entre atuar na capital paulista e na Baixada, tanto pela geografia quanto pelo armamento usado pelos criminosos. Um policial militar que pediu para não ser identificado disse que a equipe dele, que atua principalmente na capital, foi recebida a tiros de grosso calibre quando participou de uma operação no Guarujá em anos anteriores. O PM disse que a área “é complicada” por conta da ostensividade dos criminosos, mas que as equipes de segurança “respondem à altura” quando são alvejadas. Guaracy Mingardi diz que essas ações contra policiais ocorrem principalmente porque a geografia da região favorece a fuga dos bandidos. “Ao contrário de São Paulo, na Baixada você tem morros que dificultam a ação policial. Você está próximo à mata na Serra do Mar, com montanhas e florestas. Essa vegetação facilita o esconderijo dos criminosos”, afirmou. O professor ainda explica que o armamento pesado usado pelos criminosos da Baixada é herança de uma guerra que o PCC travou com o Comando Vermelho para evitar que a facção carioca dominasse a região. “Em São Paulo, os criminosos não usam armamento pesado para defender boca de fumo como no Rio, mas apenas para cometer roubos. Em Santos, houve uma guerra para dominar o tráfico. Faz tempo que o PCC é hegemônico na região, mas o armamento pesado é uma herança disso”, explica. Camila Nunes Dias, autora do livro Guerra: A Ascensão do PCC e o Mundo do Crime no Brasil (Ed. Todavia) afirma, no entanto, que o armamento de grosso calibre usado pelo crime organizado na Baixada Santista está ligado ao grau de defesa que eles consideram necessário para se proteger. “Quando você tem um ambiente com armas ostensivas, é porque há uma situação mais tensa e não tão estável envolvendo a polícia e outros atores criminais”, explica. Para ela, que também é professora da UFABC (Universidade Federal do ABC), a Baixada Santista não é semelhante ao Rio de Janeiro apenas por conta de sua geografia, com praia e forte ocupação dos morros. Ela afirma que uma “cultura criminal” também tem influência do Estado vizinho. “Nos anos 1990 e 2000, houve uma integração e atuação de proximidade [entre essas regiões]. Essa ainda é uma história que precisa ser contada, pois precisamos nos aprofundar mais nisso para entender. Mas penso que esse tráfico de varejo na comunidade tem esse ponto de contato histórico com o Rio de Janeiro, com uma maior frequência de uso de armamento mais pesado. Isso não existe em São Paulo, na capital ou interior”, diz. Ela afirma que, assim como no Rio, o litoral paulista também tem um histórico de atuação de grupos de extermínio envolvendo policiais. Outra característica semelhante entre as duas regiões, de acordo com a pesquisadora, são conflitos entre o próprio crime organizado e contra a polícia. “Em São Paulo, há poucos confrontos envolvendo o comércio de drogas. Na Baixada, não é como no Rio, onde isso ocorre muito regularmente, mas há muito mais incursões policiais que resultam em violência do que em São Paulo [capital ou interior]”, afirma. Para Rafael Rocha, coordenador de projetos do instituto Sou da Paz, o PCC tem uma presença muito forte na Baixada Santista que precisa ser combatida pela polícia, mas com inteligência e ações duradouras, e menos operações. “A gente sabe que essa região é um ponto central para o PCC por causa do Porto de Santos. Essa operação não vai desmantelar o PCC porque é apenas uma vingança, com uma entrada massiva e matança indiscriminada para dar recado. Isso pode provocar um revide, um contra-ataque como já vimos antes. Isso não é bom para a polícia nem para a população. Houve uma morte condenável de um policial, mas a resposta foi desmedida”, afirma Rocha. A Secretaria de Segurança Pública informou que, em cinco dias de operação, "a polícia prendeu 58 suspeitos e apreendeu quase 400 kg de drogas e 18 armas, entre pistolas e fuzis". Camila Nunes Dias afirma que a Baixada Santista tem dois tipos de tráfico de drogas. Um deles é o varejista e o segundo é o de atacado, escoado pelo porto — e as pessoas que lideram essas frentes não são necessariamente as mesmas. Para ela, o discurso do governo de que essas ações nas favelas da região são para combater o tráfico de drogas em grande escala não faz sentido. “É imensurável a distância de valor entre essas duas atividades. Há um efeito de interação entre essas coisas, mas aqueles que atuam nessas cargas não são moradores dos morros e de favelas. O dono da droga pode ser o mesmo dono das biqueiras, mas esse dono não está no morro. Se a polícia matou 20 pessoas, nenhuma delas é responsável pelo envio de drogas para a Europa." "Quando ela faz uma incursão para reagir à terrível morte do policial, ela está buscando vingança e querendo mostrar ao tráfico que não vale a pena tentar contra a vida de um policial, mas está atingindo pessoas que não tem ligação com o crime”, diz a pesquisadora. Camila Dias também defende que a polícia tenha uma atuação mais investigativa do que ostensiva para sufocar o tráfico na região. “Uma polícia verdadeiramente eficiente estaria investigando essas redes, trabalhando com técnica, captação de diálogo e análise de movimentação financeira para identificar essas pessoas. Não fazendo incursão em favela matando preto e pobre. É necessário fazer essa distinção para deslegitimar esse discurso (do governo) porque ele é mentiroso”, afirma. Para o especialista em segurança pública Guaracy Mingardi, a operação da Polícia Militar no Guarujá tem claros indícios de uso excessivo da força. “Essa quantidade absurda de mortos mostra que algo está errado. Além disso, há relatos de tortura. Ou seja, ainda não sabemos o que está acontecendo, mas não está seguindo como deveria ser. O Estado está extrapolando lá, usando força demais, com vários casos com suspeita de execução que só serão investigados depois”, afirmou. Para a pesquisadora do Núcleo de Estudos e Violência da USP (Universidade de São Paulo) Camila Nunes Dias, o PCC não teria ligação com a morte do policial da Rota Patrick Bastos Reis, pois as operações causadas por mortes assim atrapalham a atuação da facção. “Não me parece razoável que alguém do PCC mande atirar no carro da Rota com um fuzil. Essa é uma ação que causa um desequilíbrio. As forças no Estado mantêm seu funcionamento rotineiro, cada um em seu território com conflitos pontuais. Mas algumas ações detonam uma crise como essa. O PCC mantém uma hegemonia que não é abalada e não faz o menor sentido ele buscar situação de enorme conflito como esse. Nem faz sentido pensar o que ele ganharia com um ataque e morte de um policial”, explica Dias. Ela ainda faz um paralelo com os ataques em 2006, quando mais de 400 pessoas foram mortas por policiais no Estado de São Paulo em resposta ao assassinato de 59 agentes públicos. “Desde aquele fato, a guerra com a polícia não vale a pena. Ouvi de um entrevistado que tinha relação com o PCC que o conselho dele era de que ninguém vence uma guerra contra o Estado e que ele considerava bobagem essa guerra com ataques. À atuação do PCC interessa mais a estabilidade, o funcionamento regular, não uma operação da PM”, diz. Ela afirma que o mais provável é que a morte do policial da Rota tenha sido resultado de um crime individual, com motivação ainda desconhecida. E que, mesmo que as pessoas mortas tivessem envolvimento com o crime, não justificaria que fossem executadas. “A polícia não pode tomar a decisão de matar pessoas. O PCC também não tem direito de ser um ator, de promover justiçamento. Se os dois atuam dessa forma, estamos tratando de uma ação criminal feita por grupos diferentes”, conclui Dias. O governo de São Paulo nega o uso excessivo da força na operação. A SSP reforçou que "todas as ocorrências com morte durante a operação resultaram da ação dos criminosos que optaram pelo confronto". O governador Tarcísio de Freitas afirmou que a atuação policial seguiu todos os protocolos e que os oficiais não cometeram excessos. “A gente tem uma polícia extremamente profissional que sabe usar exatamente a força na medida em que ela precisa ser utilizada. Não houve hostilidade, não houve excesso, houve uma atuação profissional e que resultou em prisões”, afirmou o governador.
2023-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c515kylvvdpo
sociedade
O que explica alta de quase 90% na população indígena registrada pelo Censo 2022
Os indígenas no Brasil são hoje mais de 1,69 milhão de pessoas, segundo dados do Censo 2022 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) divulgados nesta segunda (7/8). Esse total representa 0,83% do total da população brasileira. Os números mostram um grande aumento em relação aos dados do último Censo, em 2010, quando a população indígena era de 896,9 mil e representava 0,47% do total da população. O crescimento de 88,8% na população indígena registrada é em parte explicado por uma mudança na metodologia do IBGE. Em 2022, o Censo encontrou mais terras indígenas do que em 2010 e passou a fazer uma pergunta a mais para as pessoas entrevistadas em certas localidades. A identificação de indígenas no Censo normalmente acontece quando alguém responde “indígena” à pergunta “qual é sua cor?”. No entanto, o IBGE notou que muitas pessoas com ascendência indígena respondiam que sua cor é “parda”. Por isso, em 2022, os recenseadores passaram a fazer a pergunta “você se considera indígena?” à lista de perguntas em locais que não são oficialmente terras indígenas, mas onde se sabe que há presença de povos originários. Isso fez com que o Censo captasse muito mais pessoas que se consideram indígenas, segundo o IBGE. Fim do Matérias recomendadas “Essa diferença acontece porque as pessoas olham muito para a cor da pele quando essa pergunta (qual é sua cor?) é feita. Mas quando você faz a pergunta a mais (se a pessoa se considera indígena), isso abre para uma série de outros critérios de etnia que a pergunta sobre cor não responde”, afirma Tiago Moreira, pesquisador do ISA (Instituto Socioambiental), uma das organizações da sociedade civil convidadas pelo IBGE a acompanhar a elaboração do Censo. Ou seja, muitas pessoas reconhecem sua ancestralidade indígena muito mais através de sua herança cultural do que através da cor da pele. “A pergunta remete à ascendência indígena, diferente da pergunta sobre a cor, que existe em um contexto mais restrito. Muitas vezes as pessoas são descendentes, até militam no movimento indígena, mas respondem pardo para a cor da pele”, afirma Moreira. Segundo Moreira, a pergunta “qual é sua cor” gera confusão e não é muito boa para captar a etnia das pessoas, mas ela é mantida por um motivo importante — a possibilidade de fazer comparação histórica precisa com censos anteriores, que já a usavam. Mudanças limitam a possibilidade de comparação de um ano com o outro — a inclusão da pergunta sobre os indígenas em 2022 também limita a comparação com 2010 devido ao aumento na detecção da população indígenas gerado pela mudança de metodologia. No entanto, o acréscimo da pergunta, sozinho, não explica a magnitude do aumento da população indígena, segundo os especialistas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para entender detalhadamente esse aumento, diz Moreira, são necessários os dados sobre natalidade e mortalidade indígena — que ainda não foram divulgados pelo IBGE. No entanto, ao menos parte desse aumento pode ser atribuído a um grande movimento de recuperação da identidade indígena, que tem se fortalecido nos últimos anos. “A gente tem um movimento antigo de recuperação dessa identidade, dos descendentes dos povos originários voltarem a se reconhecer, a prestar atenção nessa identidade, nessa ancestralidade”, diz Moreira. “O movimento indígena cresceu muito, tem inovado nas estratégias de mobilização. Nenhum outro movimento social no Brasil é tão capilar, consegue ter uma mobilização tão grande na base social.” O pesquisador afirma que o movimento conseguiu manter sua força apesar das dificuldades enfrentadas por essa população nos quatro anos de governo Bolsonaro, abertamente contrário à pauta dos povos originários. “Apesar dos quatro anos de ataque aos direitos, a atuação do movimento indígena teve o efeito de produzir segurança para que a população recupere essa identidade”, diz Moreira. Outros elementos que podem explicar esse aumento só ficarão claros com os dados de natalidade e mortalidade, explica o especialista. “A população indígena é o grupo social que mais cresce, que tem fecundidade alta. E isso está refletido nesse dado (de aumento da população)”, diz ele. No entanto, dentro das terras indígenas, essa população parece estar crescendo menos do que crescia antes — algo que precisa ser confirmado pelos próximos dados divulgados pelo IBGE. Isso, segundo Moreira, pode ser resultado dos efeitos devastadores da covid dentro das terras indígenas. Segundo estudos epidemiológicos feitos pela Fiocruz, os indígenas foram um dos grupos mais vulneráveis durante a pandemia. “Com a divulgação dos dados completos do Censo é que vamos entender melhor os efeitos demográficos da covid tanto na população indígena quanto na população geral”, afirma Tiago Moreira. Ainda não há um calendário fechado para a divulgação dos próximos dados do Censo 2022, que começaram a ser divulgados no final de julho. O Censo foi feito com atraso por causa da pandemia e de cortes orçamentários. A última edição da pesquisa censitária do IBGE havia sido feita em 2010 e, pela lei, ela não poderia demorar mais de 10 anos para ser feita — ou seja, deveria ter ocorrido em 2020. Mas a nova edição só foi realizada entre 1º de agosto de 2022 e 28 de maio de 2023 (fase de coleta e apuração de dados). Os dados do Censo 2022 divulgados nesta segunda trouxeram outras informações importantes sobre a população indígena. A terra indígena com maior número de pessoas indígenas hoje é a Terra Indígena Yanomami (AM/RR), com 27 mil pessoas, o equivalente a 4,36% do total de indígenas em terras indígenas no país. O segundo maior número é na Terra Indígena Raposa Serra do Sol (RR), com 26.176 habitantes indígenas. No entanto, o Censo mostrou que a maior parte dos indígenas do Brasil — cerca de 63% — vive hoje fora dos territórios indígenas oficialmente limitados. Isso mostra que o atendimento específico aos indígenas não pode ficar restrito aos territórios delimitados, segundo Moreira. "São dados muito importantes para planejamento de políticas públicas, para se ampliar o atendimento especial que leve em consideração as línguas, os valores e as necessidades de cada povo", diz o pesquisador. Outro dado que chama atenção é que, embora cinco estados (AM, BA, MS, PE, RR) concentrem 61,43% da população indígenas (veja gráfico acima), o IBGE registrou presença indígena na maioria dos municípios do Brasil — em 4.480 dos 5.568 municípios do país. O município com maior número de pessoas indígenas em 2022 foi Manaus (AM), com 71,7 mil pessoas. Já a maior proporção ficou em cidades como Uiramutã (RR), onde 96,6% dos habitantes são indígenas; Santa Isabel do Rio Negro (AM), com 96,2%, e São Gabriel da Cachoeira, com 93,17%.
2023-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pw10g6w4xo
sociedade
'Pais de adolescentes estão tão solitários e depressivos quanto filhos, mas são ignorados'
Ana é professora de ensino médio, mas a proximidade que ela tem com os alunos adolescentes foi de pouca serventia para quando seu próprio filho entrou nessa fase da vida. O uso intenso de telas e os questionamentos comuns a essa faixa etária têm tornado muito difícil a convivência de mãe e filho, hoje com 14 anos. “Vejo ele muito apegado a jogos e pouco sociável, e isso me incomoda demais”, diz ela (que preferiu omitir seu sobrenome) à BBC News Brasil. Diagnosticada com depressão anos antes, Ana viu a saúde mental dela e do garoto — assim como o relacionamento entre eles — piorarem desde que ele virou adolescente. “Deixei de ter o papel da mãe que brinca. Deixei de ter um filho presente e carinhoso para ter um que se isola e se rebela. Ter os limites testados o tempo todo é algo que esgota muito”, diz ela, que é divorciada. Ana afirma que não tem com quem compartilhar ou desabafar as angústias. O difícil, diz, é sentir que “você deixa de ser alguém que tenha alguma prioridade na vida dele (filho) para ficar escanteada, só servir para pagar contas”. As mudanças sociais e hormonais típicas da adolescência, somadas ao isolamento da pandemia de covid-19 e aos efeitos das redes sociais, ampliaram as discussões sobre depressão e ansiedade nos adolescentes nos últimos anos. Fim do Matérias recomendadas Mas o debate costuma deixar de lado um ponto crucial: os problemas de saúde mental que afetam também pais e mães desses jovens. E mais: como a saúde mental das duas faixas etárias — pais e adolescentes — está interconectada. Em dezembro de 2022, duas pesquisas feitas nos EUA pela Universidade Harvard — uma com jovens e outra com pais e cuidadores — identificaram que os pais e os adolescentes sofrem com índices parecidos de problemas de saúde mental. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Enquanto 18% dos adolescentes diziam sofrer de ansiedade, o mesmo valia para 20% das mães e 15% dos pais. Já a depressão afetava 15% dos adolescentes e, ao mesmo tempo, 16% das mães e 10% dos pais. Isso não quer dizer que eles experimentavam momentos de tristeza, que é um sentimento normal. Mas sim que tinham “pouco interesse ou prazer nas suas atividades” e se sentiam “mal, deprimidos ou desesperançosos” mais da metade do tempo — ou seja, em níveis considerados alarmantes pelos especialistas. Outro dado preocupante: a pesquisa estima que um terço dos adolescentes americanos tenha ao menos um dos pais sofrendo de ansiedade ou depressão. E 40% desses jovens se diziam preocupados com o estado mental de seus pais. “Pais e adolescentes depressivos ou ansiosos podem inflamar e ferir uns aos outros de muitas formas. E nossos dados indicam que adolescentes deprimidos têm cinco vezes mais chance de ter um pai ou mãe deprimido”, agrega o relatório. Mas qual é o ponto de partida desses problemas de saúde mental que retroalimentam duas gerações? A depressão pode começar tanto nos pais como no adolescente, diz à BBC News Brasil Richard Weissbourd, diretor do MCC em Harvard e coautor da pesquisa. “Ocorre em ambos os sentidos. Existe aquela expressão que diz ‘você é tão feliz quanto seu filho menos feliz’. E ter um adolescente deprimido ou muito ansioso costuma ser desgastante e contribuir para que você próprio tenha ansiedade e depressão”, ele explica. “Mas se você é um adolescente que convive com um pai depressivo, retraído, crítico e raivoso — há pais que gerenciam bem sua depressão, mas há aqueles que não conseguem —, pode sentir que seus pais não te amam e estão decepcionados com você. E isso realmente afeta a autoestima, porque você acha que os humores dos pais são culpa sua.” Além disso, em uma idade em que naturalmente adolescentes buscam seu próprio espaço e autonomia, desafiando limites, estes últimos costumam naturalmente se sentir mais desconectados — e preocupados — com os filhos, mas sem saber a quem recorrer. É um dos motivos por que pais dessa faixa etária estão entre os mais vulneráveis a problemas de saúde mental. “Muitos pais sofrem porque estão solitários. Eles receberam muito pouca atenção (das políticas públicas). Realmente acho que eles estão sendo negligenciados”, diz Weissbourd, apontando que esses pais vinham deprimindo em mais intensidade mesmo antes da pandemia de covid-19. Em 2021, pesquisa da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP) já havia identificado que 36% dos jovens apresentavam sinais de depressão ou ansiedade. Embora fosse o retrato de um período particularmente difícil de estresse e isolamento durante a pandemia, corroborava a existência de um problema mais amplo: “a saúde mental da população em geral está muito frágil”, diz à BBC News Brasil Guilherme Polanczyk, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da FMUSP. Os motivos por trás desse quadro são complexos, mas incluem, no Brasil, um contexto de mais sensação de solidão e violência na vida urbana e também uma vulnerabilidade socioeconômica em grande parte da população. “No Instituto de Psiquiatria, a gente atende pessoas de baixa renda e vê situações em que a família não sabe se vai haver comida para a próxima refeição. Então nesse contexto de estresse enorme, de violência, é muito difícil falar ‘senta com seu filho e conversa com ele, isso vai melhorar sua saúde mental’”, aponta Polanczyk. Mesmo em circunstâncias menos extremas, adolescentes costumam se distanciar dos pais nessa etapa — com o agravante, nos tempos atuais, da ligação dos jovens com eletrônicos e redes sociais. É esse o principal desafio da professora Ana, cujo depoimento abriu esta reportagem. “Sei que a adolescência é uma fase natural, todos passamos por nossas divergências com nossos pais e tentamos construir nossos espaços. Essa parte eu até entendo. Mas a parte da tecnologia tem sido muito difícil de controlar”, diz. “A nossa geração não tinha essa necessidade de estar em constante contato com jogos, computadores. Se peço para o meu filho lavar a louça, ele logo diz que se cansa e que quer conversar com os amigos no celular. Qualquer atividade só interessa se tiver o estímulo constante de um vídeo de TikTok”, lamenta. Depoimentos parecidos abundam entre as mais de 10 mil participantes do grupo de Facebook “Mães de Adolescentes e Pré-adolescentes”. Muitas se queixam da sensação de terem perdido a conexão com filhos que, até pouco anos antes, eram crianças próximas e carinhosas. Rosângela Casseano, que é mãe e psicóloga, criou o grupo no Facebook quando o próprio filho virou pré-adolescente. Ela sentia que havia poucos espaços para mães desabafarem e pedirem conselhos sem se sentirem julgadas e culpabilizadas. “É muito verdade que existe essa sensação de isolamento. As mães têm medo de contar o que estão passando com seus filhos adolescentes porque não querem ouvir críticas de que ‘não souberam educar’”, diz Casseano. Mas a psicóloga acha que, no que diz respeito à relação entre mães e filhos, as tensões de hoje são parecidas às de gerações anteriores. “Isso de os jovens buscarem seu espaço sempre aconteceu. A novidade de agora é o instrumento (a internet e as telas). Faz parte do desenvolvimento do adolescente esse afastamento. Só que os pais ficam muito assustados em ver os filhos no computador, sem interagir com a família.” Apesar de tudo isso, os especialistas dizem que há muito o que pais e filhos podem fazer para se ajudar mutuamente a sair do ciclo nocivo à saúde mental. E o primeiro passo, diz Weissbourd, é conversar — algo crucial, embora nem sempre fácil. Mas talvez surpreenda os pais saber que os próprios adolescentes desejam serem ouvidos. Dos jovens entrevistados na pesquisa de Harvard, 40% diziam ansiar por seus pais “perguntarem mais como eles estão — e realmente escutarem”. Mesmo que os pais estejam passando por depressão e ansiedade, “ajuda muito quando eles conseguem compartilhar esses sentimentos com seus filhos e dizer 'não é culpa sua'", explica o pesquisador de Harvard. “E os adolescentes de hoje estão muito mais conscientes, têm um vocabulário psicológico mais amplo do que em qualquer outra época da história e não sentem tanto o estigma que cercava a saúde mental”. “Há estudos que mostram que fazer uma refeição por dia em família já melhora os sintomas depressivos. (Mas) uma refeição sem eletrônicos, em que os pais possam conversar com os filhos”, aponta Guilherme Polanczyk, da USP. “Gosto de propor às mães que tenham um tempo com seus filhos. E isso não precisa ser uma viagem à Disney e nem mesmo um fim de semana inteiro. Pode ser uma caminhada, uma ida à padaria, algo que dê um tempo de qualidade, sendo ouvinte, com afeto”, diz Rosângela Casseano. Outras questões cruciais são, segundo especialistas, cuidar do sono — cujo déficit é fortemente associado a problemas de saúde mental, especialmente entre adolescentes — e cultivar hábitos em família. “Pais podem ajudar na ansiedade e depressão dos filhos ao engajá-los em atividades focadas neles mesmos ou em outras pessoas, atreladas a princípios e objetivos maiores que eles próprios — algo que é uma fonte rica de significado e propósito”, diz o relatório de Harvard. E, é claro, a ajuda médica pode ser fundamental se sinais de depressão e ansiedade persistirem. “Muitas vezes isso se resolve com aconselhamento (profissional), uma psicoterapia em grupo, e eventualmente com tratamento medicamentoso pontual. Quando (o transtorno) é identificado precocemente, é absolutamente tratável, e as pessoas vivem muito bem”, afirma Polanczyk. Há também outros dois fatores importantes a se prestar atenção, segundo os especialistas. O primeiro é que existe um componente genético nos transtornos mentais. Esse é um dos mecanismos pelos quais ansiedade e depressão afetam pais e filhos ao mesmo tempo, aponta o psiquiatra da USP. Esse fator genético, aliás, fez a fotógrafa paulista Andreia tremer quando o filho mais velho, então com 15 anos, disse a ela que “não estava com vontade de viver, não estava feliz e não queria decepcioná-la”. O motivo que mais a preocupou é que, uma década antes, o pai do menino havia se afundado na depressão e se suicidado. “Tive muito medo de perder o meu filho da mesma forma”, ela conta. Ao mesmo tempo em que marcou todos profundamente, a experiência traumática fez a família ter consciência da importância em prestar atenção a sinais de depressão uns nos outros. O filho de Andreia passou por terapia — pela segunda vez, já que havia sido tratado depois da morte do pai — e hoje está bem. Em segundo lugar, outro fator importante destacado por especialistas é manter uma relação respeitosa e não violenta com as crianças desde a infância. Tudo o que ela vive em seus primeiros anos de vida servirá como base para a saúde mental futura, tanto na adolescência quanto na vida adulta. “As experiências na infância marcam — elas influenciam como o cérebro se desenvolve e como, do ponto de vista emocional, aquele indivíduo vai se desenvolver”, afirma Polanczyk. “Situações de abuso físico e emocional geram um estresse grande, que de fato leva a transtornos mentais”. Por fim, Weissbourd, de Harvard, lembra que a adolescência é uma fase turbulenta, mas também enriquecedora. “Aqui nos EUA, as pessoas tendem a ter medo, a serem tão negativas com adolescentes, como se fossem criaturas de outra tribo — mas acho que há tantas coisas interessantes neles”, afirma o pesquisador. “Muito da raiva, da frustração e da tristeza que eles expressam é uma resposta apropriada a coisas difíceis na vida e no mundo. E os adolescentes estão hoje muito conscientes sobre o que acontece no mundo, e muitos são bastante comprometidos moralmente, incorporam causas com muita paixão. Eles nos questionam e nos criticam, o que é muito difícil, mas também é algo bom de muitas formas. Então também há muitas coisas empolgantes em se criar um adolescente.”
2023-08-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv21ejrpxgno
sociedade
A escola britânica centenária em que alunos decidem regras e o que querem estudar
Ben não queria tirar o pijama. Há dias, ele dormia e, depois, brincava no jardim, na cama elástica ou subia em árvores, com a mesma roupa de dormir. Ben havia acabado de entrar na escola Summerhill, um centenário internato britânico que permite que as crianças estabeleçam suas próprias normas. Por isso, ninguém podia obrigá-lo a tomar banho ou trocar de roupa. Os dias passavam e Ben ficava cada vez mais sujo. Até que seus colegas chegaram ao limite. Eles levaram o caso à assembleia semanal, que decide democraticamente tudo o que acontece na escola. A assembleia decidiu que Ben não poderia continuar assim. Surgiu então uma nova regra que seria acrescentada às cerca de 400 normas que regem o internato: a regra do pijama. Ben podia passar o dia todo de pijama? A assembleia decidiu que sim. Mas, à noite, ele precisaria trocar de roupa e vestir outro pijama. Fim do Matérias recomendadas Assim é Summerhill, a escola onde as crianças têm a liberdade de estabelecer suas próprias normas e não é obrigatório assistir às aulas. Fundada em 1921 pelo educador escocês Alexander Sutherland Neill (1883-1973), Summerhill baseia-se na premissa "freedom but not licence" ("liberdade, mas não licença", em inglês). E, cem anos depois, muitos ainda consideram que esta filosofia é um experimento radical. Segundo ela, as crianças devem ter liberdade para fazer o que desejarem, desde que não interfira na liberdade dos demais. Isso inclui a liberdade de aprender o que quiserem, quando e como quiserem. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast São 10h30 da manhã de uma sexta-feira de junho. As crianças da Classe 2, que recebe estudantes com 10 a 12 anos, são uma boa amostra dessa independência. Está na hora da oficina de redação, que tem nove crianças inscritas, mas só há uma aluna em aula com a professora. Outros três estudantes jogam Banco Imobiliário na sala comum e uma quarta, confortavelmente instalada em uma poltrona e imersa em um livro, apenas levanta os olhos quando os visitantes entram no salão. No lado de fora, o sol brilha pela primeira vez em muitos meses. As crianças logo trocam as cartas do jogo por saltos e piruetas na cama elástica no jardim. "No início do trimestre, você indica as aulas de que gosta, mas depois é livre para ir ou não", explica Latisha, há nove anos no colégio. Ela entrou com sete anos. Ela e seu irmão são a segunda geração de estudantes de Summerhill da mesma família. Seu pai, Adrian, também passou a infância na escola. Ele gostou tanto que matriculou seus filhos. "Depois, ele foi para a universidade e se dedicou aos negócios", conta a menina, que quer seguir os passos do pai. "Muita gente pensa que todos nós de Summerhill queremos nos dedicar a atividades artísticas, mas não é verdade. Eu mesma, na verdade, não tenho muito jeito", confessa Latisha. Latisha — ou Tisha, como todos a chamam — faz parte do grupo de 60 estudantes de Summerhill. Eles têm entre 5 e 17 anos. Um cartaz na entrada da escola — uma mansão vitoriana de tijolos vermelhos, revestida de pedra — recebe os visitantes com a mensagem "Beware! Children playing!" ("Atenção! Crianças brincando!", em inglês). Ao lado de diversas construções anexas que servem de dormitórios e oficinas, a escola se estende por quase cinco hectares de jardins e bosques, na região de Suffolk, no leste da Inglaterra. Todos os alunos convivem em regime de internato, exceto as crianças menores. A escola custa entre 10 mil e 23 mil libras (cerca de R$ 60 mil a R$ 140 mil) por ano. São valores impeditivos para muitas famílias, mas bem abaixo de muitos internatos britânicos. Atualmente, mais de um terço dos estudantes vem do exterior. Eles são de países como China, Japão, Polônia ou, no caso de Tisha, Alemanha. A escola não obedece ao currículo nacional e as crianças não são divididas em cursos, como nas escolas britânicas convencionais. Também não há exames em Summerhill, mas a escola prepara os alunos com 15 e 16 anos que desejarem prestar as provas para o Certificado Geral de Educação Secundária (GCSE, na sigla em inglês), exigido no Reino Unido para ingressar na educação superior. Quando os estudantes completam 12 ou 13 anos, um orientador os ajuda a formar o caminho a ser percorrido depois que eles saírem de Summerhill. "Se uma criança quiser ser, por exemplo, cientista espacial quando for maior de idade, nós nos asseguramos de oferecer todas as opções e bases para que ela possa seguir este caminho", afirma o subdiretor da escola, Henry Readhead, à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC). "Por isso, para nós, é muito importante ter as qualificações." Edie, Joe e Iris — esta, vestida com um enorme roupão de pelúcia rosa — estão se preparando para o exame de Matemática em uma das aulas, com música ao fundo. Os três alunos têm 16 anos e precisam passar no GCSE de matemática para os estudos que querem cursar posteriormente. "Vocês gostam?", pergunta a reportagem. "Mmm...", os três se entreolham e caem na risada. Benji tem 10 anos e também está escrito em Matemática. "Às vezes, vou à aula", confessa ele. Sua grande paixão é a oficina de carpintaria, onde está construindo uma vassoura voadora. Ele já conseguiu esculpir e envernizar o cabo, que exibe com orgulho. Depois, irá colocar as cerdas. Ele ainda não pensou em como irá fazer a vassoura voar, mas diz que terá alguma ideia a respeito. Benji chegou a Summerhill há poucos meses. Ele veio de uma escola convencional onde, segundo ele, algumas crianças riam dele porque, às vezes, gagueja. "Aqui, sinto que posso me expressar melhor e, além disso, ninguém me força a aprender, faço o que mais gosto", explica Benji. Ele mostra uma varinha mágica que acabou de colar e está secando na janela. Na aula de Música, Sure toca no baixo uma canção que ele próprio compôs com seu pai, Warabe, que canta e toca guitarra. Warabe também foi aluno da escola nos anos 1980. Os dois formaram um grupo, chamado Peasoup. As estantes da sala misturam discos de Bach com The Cure. É um dos locais favoritos de Sure. Warabe trabalha no setor de informática, mas a Música, que ele descobriu em Summerhill, é sua paixão até hoje. De vez em quando, ele passa algumas semanas na escola. A poucos metros dali, o professor Steven lê em voz alta um trecho do romance Holes ("Buracos", Ed. Martins Fontes), do escritor americano Louis Sachar. Sua voz profunda e pausada tem efeito sedante sobre as crianças da Classe 3, que o ouvem com atenção. Steven foi diretor de uma escola estatal por 30 anos. Apaixonado pelo magistério, ele entrou em Summerhill quando se aposentou. Diferentemente de outros métodos pedagógicos alternativos, como Montessori ou Waldorf, o ensino em Summerhill, de alguma forma, é convencional. "Quando [os alunos] decidem finalmente aprender e ir para a aula, eles vão com motivação, com entusiasmo e não precisam que o professor facilite ou enfeite [a matéria]", conta o subdiretor. “De fato, tivemos o caso de um professor que trouxe um método alternativo e as crianças disseram: 'você pode simplesmente nos ensinar?'" Readhead é neto do fundador da escola, Alexander Sutherland Neill. Entre o grande público, é possível que Summerhill seja menos conhecida do que outros internatos britânicos famosos e mais aristocráticos, como o Eton College, por exemplo. Mas a aposta de A. S. Neill teve grande influência sobre as chamadas pedagogias "livres", especialmente nas décadas de 1960 e 1970. E Summerhill também é pioneira no modelo de escola democrática. Gerações de professores de todo o mundo estudaram ou, pelo menos, ouviram falar de Summerhill — incluindo a professora mexicana Montserrat Mejía Ortiz, que se apaixonou pela filosofia de A. S. Neill quando era estudante de pedagogia. Montse, como todos a chamam, chegou à escola em 2015. Ela explica que o modelo ensina as crianças "a serem responsáveis pelo próprio aprendizado, pelos resultados e pela própria vida". Ela conta que, aqui, as desculpas não funcionam — "se fui reprovada, não foi porque o professor fez alguma coisa; fui reprovada porque não estudei, porque não fui às aulas". A professora começou em Summerhill como houseparent, uma função que ela descreve como "ser a mãe das crianças internas. Em caso de emergência física ou emocional, você está ali para cuidar delas." Desta função, Mejía Ortiz passou a lecionar para a Classe 1, que recebe crianças de cinco a nove anos. Ela também dá aulas de espanhol para os alunos que querem aprender o idioma, como Catherine, de cinco anos. "Ela veio para mim depois de ver Encanto [o desenho da Disney, de 2021]", conta a professora à BBC News Mundo. O que mais a agrada em Summerhill é que a escola não impõe às crianças expectativas sobre o que elas deveriam saber em cada idade. "Se, com oito anos, você não souber ler perfeitamente, não acontece nada, logo você irá aprender", ela conta. "É preciso deixá-los aprender no próprio ritmo." Mas os inspetores de Educação do Reino Unido nem sempre concordaram com esta visão. A escola esteve a ponto de ser fechada em 1999, quando a inspeção estatal quis forçar a escola a ter aulas obrigatórias. E também afirmou que o internato deveria ter banheiros separados para meninos e meninas. O caso chegou à Justiça. Se fosse avaliada segundo os mesmos padrões das escolas convencionais, Summerhill seria considerada um desastre. Mas a escola conseguiu convencer os juízes de que as inspeções deveriam ser feitas considerando valores e filosofia própria. E, desde então, o internato não enfrentou mais problemas. "Meu avô acreditava que era importante criar uma escola que se ajustasse às crianças e não fazer com que as crianças se adaptassem à escola", explica Henry Readhead. "Ele acreditava que as crianças têm direito a uma infância plena e feliz." Segundo esta filosofia, é importante liberar as crianças das expectativas impostas pela educação convencional, pelos pais ou pela sociedade "para que elas possam seguir suas próprias motivações, sejam autônomas e tomem suas decisões a respeito da comunidade em que vivem e da educação que recebem", afirma o subdiretor. Nico, por exemplo, é um menino espanhol com 17 anos que cursa o colégio desde os 11 anos. Ele é apaixonado pelo trabalho de ferreiro. Na oficina, ele nos mostra uma faca que ele mesmo fez. "A folha é de aço de Damasco e tem forma de pluma", explica ele, com orgulho. É uma verdadeira obra de arte. Ele quer se dedicar a este trabalho e já encontrou uma escola para continuar sua formação. "Nico terá as qualificações necessárias para entrar no instituto, mas existem outras 99 qualificações que não são necessárias", explica Readhead. "É um tempo que ele pode passar na oficina, fazendo aquilo de que gosta." Mas alguns veem problemas na ideia de que as crianças escolham seu próprio currículo e estudem apenas o que elas quiserem. É difícil saber se alguém gosta de algo sem ter tido contato com aquilo "e, frequentemente, existem coisas de que não gostamos porque não tivemos sucesso com elas, mais do que por qualquer outra razão", afirma à BBC News Mundo o professor de educação e valores Nigel Fancourt, da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Segundo o acadêmico, existem certas coisas que precisamos saber, gostemos ou não. "Precisamos também aprender a conseguir fazer as coisas que não são fáceis para nós", acrescenta ele. Nesta mesma linha, a doutora em educação e psicologia Catherine L’Ecuyer defende que este tipo de pedagogia concentrada no interesse das crianças pode acabar sendo uma trava para elas, já que, "ao limitar a criança ao seu campo de conhecimento — que é praticamente nulo, pois a criança nasce sem saber nada —, o que você está fazendo é eliminar oportunidades de aprendizado". São três horas da tarde — hora da assembleia, que é o pilar que sustenta o modelo de convivência em Summerhill. Nela, a voz de todos tem o mesmo peso. O voto de uma criança de cinco anos tem o mesmo peso do voto da diretora. A assembleia é o tribunal da escola. Nela, todos são juízes. É ali que se solicitará permissão, por exemplo, para passar o fim de semana na casa de um parente ou para saltar na cama elástica com uma amiga, como pede hoje uma menina de cerca de 12 anos. Em Summerhill, apenas as crianças menores podem usar a cama elástica em grupo, por questão de segurança. A assembleia também trata das brigas entre os colegas e define os planos para a próxima festa da escola. Alba, por exemplo, tem nove anos. Ela conta que pretende levar à assembleia suas amigas Bee e Catherine. Ela afirma que as meninas "riram da forma como me visto". Alba é charmosa e gosta de usar delineador nos cílios e brilho labial. Hoje, ela está usando uma camiseta curta. "Gosto de me vestir assim e não me importa o que os outros pensam", ela conta. Tisha explica que a assembleia oferece às crianças a confiança necessária para dizer o que pensam e fazer valer suas opiniões. Ela não lembra exatamente qual foi o primeiro assunto que levou à assembleia, quando entrou no colégio, com sete anos. "Não era nada grave, mas para mim parecia importante", ela conta. Mas Tisha se lembra bem de como se sentiu. "Apesar de ser tão pequena, senti que tinha toda a comunidade me apoiando, foi uma sensação incrível", relembra ela. Como em qualquer outra escola, Summerhill não está livre dos casos de assédio escolar, embora eles não sejam muito frequentes em uma comunidade tão pequena e restrita. Mas o que talvez seja um diferencial em relação aos outros centros é que, aqui, todos os integrantes do colégio — alunos, professores e administradores — participam de cada assunto e procuram soluções. Na assembleia de hoje, não é discutido nenhum caso de assédio, mas Nico apresenta à reunião o caso de uma colega que, muitas vezes, fica preguiçosamente na cama na hora de levantar-se pela manhã. Existe muita liberdade em Summerhill, mas também há certos horários que devem ser respeitados porque foram definidos em assembleia. O café da manhã, por exemplo, vai das 8h às 8h45 da manhã. Às 8h30, todos devem estar vestidos. Caso contrário, os beddies officers — "policiais da cama", crianças maiores que cuidam para que todos se deitem e se levantem nos horários definidos — podem impor uma multa. A punição pode ser, por exemplo, 10% do pagamento semanal (cada criança recebe aos sábados uma quantia que varia em função da idade) ou uma multa em forma de trabalho — talvez um período de tarefas comunitárias na escola, como ajudar o jardineiro ou recolher o lixo. Na assembleia de hoje, muitos levantam a mão para opinar sobre o caso da colega dorminhoca e decidir em conjunto qual será o seu castigo. Um propõe que ela deva lavar os pratos de uma refeição. Outro, que precise levantar-se no dia seguinte às sete horas da manhã para dar um passeio. "Mas amanhã é sábado", lembra outra criança. "Se ela se levantar às sete, vai acordar os demais." Por fim, todos votam e decidem que o castigo mais justo é uma "multa média de trabalho": 40 minutos de tarefas comunitárias. E, é claro, a assembleia também decidiu pelo voto — mesmo com a discordância de vários professores — que a cama elástica é mais divertida quando saltamos com a nossa melhor amiga. De forma que, sim, o pedido está aprovado! Para Henry Readhead, é fundamental que as crianças vivam em um ambiente igualitário com os adultos à sua volta. "Mais do que perguntar por que os votos de todos têm o mesmo valor, a pergunta deveria ser: 'por que não?'", defende ele. "As crianças deveriam ter os mesmos direitos que nós na hora de tomar este tipo de decisão." A autorregulamentação fez, por exemplo, com que eles próprios decidissem proibir o uso de telas — incluindo as redes sociais dos celulares dos adolescentes — antes das quatro horas da tarde. Mejía Ortiz explica que, por algum tempo, foi permitido que as crianças jogassem videogame ou usassem as telas no horário e pelo tempo que desejassem. Até que um menino de nove anos acabou levando a questão para a assembleia, depois de perceber que precisava que alguém lhe dissesse quando deveria parar. Ele ficava o tempo todo em frente ao computador e se esquecia até de comer. "Isso ter vindo deles é o máximo, é um assunto que discutimos muito durante a assembleia", comenta a professora. A assembleia termina e o jardim está novamente repleto de crianças brincando. "Aqui, queremos celebrar a infância como um período essencial para os seres humanos", resume Readhead. "E não é só uma ideia de A. S. Neill, é uma ideia para a humanidade."
2023-08-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd14gdvlppwo
sociedade
Psicanálise é pseudociência? A polêmica que divide opiniões há um século
A microbiologista e divulgadora científica Natalia Pasternak provocou polêmica em seu novo livro ao descrever a psicanálise como "uma pseudociência". A afirmação gerou reações acaloradas nas redes sociais, contra e a favor da especialista, que se tornou conhecida do grande público por seus comentários durante a pandemia de covid-19. Em Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério (ed. Contexto), Pasternak e o jornalista Carlos Orsi também criticam a homeopatia, astrologia e acupuntura, chamando-as de "falsificações da ciência". Mas a polêmica levantada por Pasternak sobre a psicanálise não é nova e vem, há mais de um século, colocando em lados opostos seus apoiadores e críticos. Fim do Matérias recomendadas Alguns especialistas afirmam que o próprio trabalho de Freud era inteiramente pseudocientífico por natureza e que os defensores de sua teoria pouco fizeram para revisá-la. Outros defendem que a eficácia da psicanálise pode ser comprovada cientificamente. Também destacam que ela teve uma tremenda influência na cultura ocidental e, apesar de todas as críticas, ainda conta com muitos adeptos em todo o mundo (ler mais abaixo). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Desde seus primórdios, nos primeiros anos do século 20, tem havido discussões exaltadas sobre se a psicanálise é mesmo uma ciência. Mas, antes de mergulhar nessa polêmica, é preciso primeiro entender o que é a psicanálise, método para tratar transtornos mentais e teoria que explica o comportamento humano. O austríaco Sigmund Freud (1856-1939) é considerado seu pai fundador. Freud acreditava que os acontecimentos de nossa infância têm grande influência em nossa vida adulta, moldando nossa personalidade. Por exemplo, para explicar de forma simplificada, a ansiedade originada de experiências traumáticas no passado de uma pessoa é escondida da consciência e pode causar problemas na idade adulta (neuroses). Assim, quando explicamos nosso comportamento para nós mesmos ou para os outros (atividade mental consciente), raramente damos um relato verdadeiro de nossa motivação. Freud dedicou-se, portanto, a tentativas de penetrar essa "camuflagem", muitas vezes sutil e elaborada que obscurece a estrutura e os processos ocultos da nossa personalidade. Ele insistia que suas postulações formavam a base da ciência da psicologia. Ou seja, para Freud, a psicanálise era uma "ciência natural". Por outro lado, dizia sobre si mesmo: "A verdade é que não sou um homem da ciência, absolutamente. Sou apenas um conquistador, um aventureiro". Um dos principais críticos das teorias de Freud foi o austro-britânico Karl Popper (1902-1994). Um dos mais influentes filósofos do século 20, Popper considerava a psicanálise uma pseudociência por produzir hipóteses que não podem ser refutadas empiricamente, chegando a compará-la à astrologia. Ele defendia que a ciência se diferencia da pseudociência ou da superstição, porque hipóteses científicas podem se mostrar falsas por meio da observação e de experimentos. Trata-se do "falsificacionismo de Popper": segundo ele, qualquer afirmação científica baseada em observação jamais poderá ser considerada uma verdade absoluta ou definitiva. Popper sustentava que as teorias científicas são caracterizadas por implicar previsões que observações futuras podem revelar ser falsas. Por exemplo: no passado, por desconhecer a existência de cisnes negros, acreditava-se que "todo cisne era branco". Mas, para Popper, não importa se todos os cisnes observados eram brancos; basta o aparecimento de um único cisne negro para desmontar essa teoria. Por consequência, não podemos afirmar cientificamente que "todos os cisnes são brancos". Quando as teorias se mostram falsas por tais observações, os cientistas podem responder revisando a teoria ou rejeitando a teoria em favor de uma rival ou mantendo a teoria como está e mudando uma hipótese auxiliar. No caso da psicanálise freudiana, Popper argumentava que ela, assim como outras teorias que ele descreve como não científicas, não fazem nenhuma previsão que possa permitir que sejam "falsificadas". Neste sentido, por não haver previsões precisas, essas teorias acabam sendo criadas para se adequar e fornecer uma suposta explicação de qualquer comportamento observado. Para ilustrar seu ponto, Popper dá como um exemplo dois homens, um que empurra uma criança na água com a intenção de afogá-la e outro que mergulha na água para salvá-la. Segundo ele, a psicanálise pode explicar essas duas ações aparentemente contraditórias. No primeiro caso, o psicanalista pode afirmar que a ação foi impulsionada por um componente reprimido do id (inconsciente) e, no segundo caso, que a ação resultou de uma sublimação bem-sucedida desse mesmo tipo de desejo pelo ego e pelo superego. Em outras palavras: para Popper, independentemente de como uma pessoa realmente se comporta, a psicanálise pode ser usada para explicar tal comportamento. Isso, por sua vez, nos impede de formular quaisquer experimentos cruciais que possam servir para "falsificar" a psicanálise. Para Popper, a psicanálise era "simplesmente não testável, irrefutável. Não havia comportamento humano concebível que a contradissesse". "O ponto é muito claro. Nem Freud nem Adler (Alfred Adler, psicólogo austríaco fundador da psicologia do desenvolvimento individual) excluem a ação de qualquer pessoa em particular de qualquer maneira particular, quaisquer que sejam as circunstâncias externas. Se um homem sacrificou sua vida para resgatar uma criança que se afogava (um caso de sublimação) ou se ele assassinou a criança por afogamento (um caso de repressão) não poderia ser previsto ou excluído pela teoria de Freud", escreveu ele em 1974. "Eu pessoalmente não duvido que muito do que eles (Freud e Adler) dizem é de considerável importância e pode muito bem desempenhar seu papel um dia em uma ciência psicológica que pode ser testada". "Mas isso quer dizer que aquelas 'observações clínicas' nas quais os analistas ingenuamente acreditam confirmar sua teoria não são nada diferentes do que as confirmações diárias que os astrólogos encontram", acrescentou. Popper, por outro lado, assinalou que muitas vezes existem propósitos legítimos para postular teorias não científicas. Ele argumentava que as teorias que começam como não científicas podem mais tarde se tornar científicas, à medida que determinamos métodos para gerar e testar previsões específicas com base nessas teorias. Um exemplo citado por ele é a teoria de Nicolau Copérnico (1473-1543) de um universo centrado no sol, que inicialmente não produziu previsões potencialmente falsificadas e, portanto, não teria sido considerada científica pelos critérios de Popper. No entanto, astrônomos eventualmente determinaram maneiras de testar a hipótese de Copérnico, tornando-a científica. Ao longo dos anos, a validade científica da psicanálise foi posta em xeque por outras figuras proeminentes como o psicólogo Steven Pinker, o linguista Noam Chomsky, o biólogo evolutivo Stephen Jay Gould e o físico Richard Feynman. Alguns mergulharam fundo na obra de Freud, dissecando o que consideravam suas deficiências, como o filósofo alemão-americano Adolf Grünbaum (1923-2018). Seu livro, Os Fundamentos da Psicanálise: Uma Crítica Filosófica, de 1984, o tornou mundialmente famoso. Na época, a obra foi encarada como um ponto de inflexão no debate sobre a psicanálise e considerada por alguns críticos de Freud como uma "obra-prima". Curiosamente, Grünbaum era um crítico de Popper antes de se tornar um crítico de Freud. Na verdade, foi por meio de Popper que Grünbaum passou a se interessar por Freud. Isso porque, tanto na teoria quanto na prática, insistia Grünbaum, Freud compreendeu e aceitou a lógica da falseabilidade de Popper. "O primeiro ímpeto para minha investigação sobre os méritos intelectuais do empreendimento psicanalítico", escreve ele, "veio de minhas dúvidas sobre a filosofia da ciência de Karl Popper", em alusão ao falsificacionismo. Ele também defendia que o pai da psicanálise praticava o que pregava: em várias ocasiões, Freud realmente desistiu de ideias porque elas se mostraram empiricamente insustentáveis. Em outras palavras, na opinião de Grünbaum, Freud agiu exatamente como a teoria popperiana diz que um cientista deveria fazer, abandonando as posições teóricas quando elas eram contrariadas pelos fatos. Mas, segundo ele, o problema da psicanálise estava no que chamava de "Tally Argument" ("argumento da adequação"). Resumidamente, Grünbaum criticava Freud por acreditar que apenas a psicanálise podia produzir efeitos terapêuticos. Segundo ele, os pacientes não são fontes confiáveis para descobrir o que realmente "funcionou" para curar seus transtornos. Muitos especialistas defendem que algo merece ser considerado uma ciência quando há uma consideração predominante pelos dados, que estão disponíveis para todas as partes interessadas, e quando a teoria é orientada por dados e muda em resposta a novas observações. Essa é uma visão mais tradicional. Segundo esse ponto de vista, o progresso da teoria é cumulativo, e o modelo original pode servir de base para modelos mais novos. As alegações também devem ser baseadas em evidências e não em autoridade. Em entrevista à BBC News Brasil, ela diz que as reações inflamadas sobre se a psicanálise é ou não ciência "se devem, pelo menos em parte, ao fato de que, apesar de suas deficiências bastante debatidas e delineadas, a psicologia continua a ter uma presença bastante proeminente, não menos no domínio clínico". "Muitos acham isso desconfortável e francamente ameaçador, possivelmente devido ao fato de que a teoria de Freud não é fácil de entender no sentido intelectual (e muito poucos leram seus textos em primeira mão), e toca em áreas muito sensíveis", acrescenta ela, que tem PhD em Psiciologia no Goldsmiths College, da Universidade de Londres, no Reino Unido. Segundo Järvinen, "a psicanálise é extremamente poderosa, com o paciente sendo frequentemente colocado na posição de objeto, e os tratamentos costumam ser vistos como misteriosos e até sombrios". "Os fatores acima mencionados tornam a teoria de Freud altamente provocadora/evocadora emocionalmente, e as pessoas respondem naturalmente com uma atitude defensiva". "Além disso, nesta era do modelo médico e tratamentos baseados em evidências, muitos possivelmente acham incompreensível por que se dá atenção à psicanálise. No entanto, o tratamento continua a beneficiar muitos", conclui. Apesar de, assim como muitos psicólogos, Järvinen não considerar a psicanálise como uma ciência, ela ressalva que tratamentos médicos mais comprovados cientificamente nem sempre "atingem os níveis mais profundos da psique e carecem da flexibilidade necessária", diz ela. "Precisamos de uma ampla variedade de opções de tratamento para atender à enorme heterogeneidade da população humana e seus vários sintomas, e indiscutivelmente a psicanálise é uma opção útil", destaca. Järvinen também lembra ser "crucialmente importante" colocar a teoria de Freud em seu contexto cultural adequado — "ele viveu e foi criado no mundo sexista, racista e imperialista do século 19, na privilegiada Viena, e isso com certeza se reflete em sua teoria; no entanto, ele provavelmente estaria atualizando sua teoria se pudesse testemunhar a evolução da psicologia". "No entanto, a meu ver, a contribuição de Freud para o campo da psicologia é irrefutável", conclui ela. Para Érico Andrade, psicanalista, filósofo e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a concepção de ciência "não é uniforme". "A própria concepção da ciência vai variar ao longo da história. O ataque à psicanálise é pautado num modelo de evidência científica estritamente de ordem empírica, demonstrável em termos de observação laboratorial. A ideia de empiria também está ligada nesse contexto a algo que podemos mostrar em termos físicos, ou seja, a evidência é de ordem material", assinala. "Com o advento das Ciências Humanas, tivemos uma reelaboração da própria concepção de evidência. A evidência empírica não está mais no plano material, mas na observação do comportamento humano a partir de análises sociológicas, antropológicas, etc. A psicanálise deixa de orbitar em torno da ligação com a psiquiatria e neurociência e passa a dialogar mais com as Ciências Humanas", acrescenta. "Quando se diz que a psicanálise não é uma ciência, há um desentendimento da produção das Ciências Humanas. E, mais grave, quando se fala que a psicanálise é uma pseudociência, coloca-se a ideia de que seus efeitos são calcados em coisas mágicas e misteriosas, que não tem a ver com a reflexão que a própria psicanálise propõe". Segundo Andrade, a psicanálise não propõe ser "a única verdade, uma solução transcendental, como mecanismos imateriais, tampouco uma substância física possa mudar o ser humano". "A base da psicanálise é a ideia de que, por um processo de análise pessoal, chegar a compreender melhor nosso desejo e isso tem implicações em nossa vida, porque parte do nosso sofrimento está ligado a questões psíquicas e não de ordem material." "Não uma ciência dura, que implica refutações por meio de replicabilidade, mas uma ciência que engloba um conjunto de conhecimentos solidamente estabelecidos através de pesquisas clínicas e infindáveis debates teóricos", afirmou ela. Na opinião de Zuanella, a psicanálise "tem incessantemente mostrado sua eficácia, não no interior dos laboratórios, mas dentro do sujeito". Para Martin Hoffmann, pesquisador-associado do Departamento de Filosofia da Universidade de Hamburgo, na Alemanha, "mesmo que o próprio Freud considerasse a psicanálise uma teoria científica válida, sua própria metodologia de pesquisa enfrenta sérios problemas". "Mas — ao contrário da proeminente crítica de Popper — não se pode negar que muitas reivindicações da teoria psicanalítica são empiricamente testáveis e que, desde a década de 1950, um notável corpo de evidências que atende aos padrões de pesquisa científica foi gerado com o objetivo de confirmar as reivindicações teóricas centrais de psicanálise e a eficácia da terapia psicanalítica", escreveu ele, no artigo "Psicanálise como ciência" do livro Manual de Filosofia da Medicina, publicado em 2017. "Portanto, em um sentido processual ou metodológico, a psicanálise de hoje é sem dúvida uma ciência". "Mas, ao mesmo tempo, é uma questão em aberto se o esforço científico para confirmar as afirmações centrais da psicanálise será bem-sucedido".
2023-08-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c90vjnlv97do
sociedade
O casal que sofre com vídeo de gravidez que viralizou: 'Não sabem o que vivemos'
Emerson Rosa, de 32 anos, quis fazer uma surpresa para a esposa após comprar um carro. Desde que ele começou a namorar com Kerileine Fernanda, de 33 anos, eles sonhavam em ter um automóvel. A gravidez de Kery, como ela é chamada, pareceu o momento ideal para realizar o sonho. A surpresa aconteceu em maio do ano passado. Emerson registrou o momento em que contou sobre o carro para a companheira. No vídeo, ela sai de casa com um capacete na mão. “Ué, cadê a nossa moto?”, pergunta ao marido. Ele, então, entrega uma chave para ela. Kery logo percebe que era a chave de um carro e corre em direção a um veículo estacionado próximo a ela. Fim do Matérias recomendadas “É o nosso primeiro carro”, diz emocionada ao abrir a porta do automóvel. O vídeo viralizou, teve milhões de visualizações e rendeu ao casal diversos comentários de pessoas emocionadas os parabenizando. “Hoje em dia, ver aquele vídeo é muito doloroso”, disse Emerson em outra postagem no TikTok publicada um ano depois. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “Muitas pessoas assistem àquele vídeo e passam para o próximo (de outro perfil no TikTok), não veem a nossa realidade atual”, afirmou. Ivy, a filha do casal, tem paralisia cerebral. Hoje com 11 meses, a bebê faz poucos movimentos, passa os dias na cama e sobrevive com a ajuda de aparelhos. A condição dela foi causada por uma lesão cerebral que sofreu por causa de complicações enquanto estava internada para tratar um episódio de infecção urinária. “Os médicos quando olham o exame dela falam que a lesão cerebral foi gravíssima, praticamente irreversível. Só descartam a morte cerebral porque ela tem alguns leves movimentos. E ela não tem prognóstico de melhora”, explica Emerson. Os dias são difíceis para os pais da criança, que se desdobram com a ajuda de cuidadores para dar as melhores condições de vida possíveis para Ivy. Mas os comentários positivos continuam a chegar — e se multiplicaram em maio, quando completou um ano que o vídeo viralizou. Naquele momento, Ivy estava em estado grave em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), uma das muitas internações que se tornaram rotina em pouco tempo de vida. “Os comentários são todos baseados naquele momento de maior alegria, não são baseados na nossa vida. Ler aqueles comentários e saber o que vivemos hoje é muito duro”, desabafou Emerson no TikTok. A chegada de Ivy não foi planejada, mas ocorreu em um bom período, diz o casal, porque eles estavam em um momento financeiro positivo. Kery trabalhava como vendedora. Emerson cantava em bares e casas noturnas da região de Santa Bárbara d'Oeste, no interior de São Paulo, onde moram. Eles contam que a descoberta da gravidez causou alegria. O casal já fazia vídeos para a internet, mas as publicações não tinham muitas visualizações. Nesse período, os dois viviam uma boa fase financeira e começaram a falar com frequência sobre o desejo de comprar um carro. “A Kery sabia que eu já estava olhando um veículo, mas não falei quando consegui fechar o negócio”, conta Emerson. O vídeo da surpresa alcançou mais de 10 milhões de visualizações só no TikTok em poucos dias – atualmente já são mais de 12,5 milhões. Isso sem contar a repercussão em outras plataformas. Eles chegaram até a participar de um programa de televisão para falar sobre aquele momento. O casal decidiu aproveitar o sucesso nas redes para investir mais nas produções de vídeos e, desde então, compartilhou várias situações da rotina. Os pais de Ivy contam que ela não tinha problemas de saúde até os dois meses de vida. Ela precisou ser internada nessa época para tratar uma infecção urinária que não parecia ser nada muito sério. Mas o quadro se agravou. Os pais contam que ela teve três paradas cardiorrespiratórias em cerca de 40 dias e, em uma delas, teve uma lesão cerebral, que quase a matou e deixou uma grave sequela. Para cuidar da filha com paralisia cerebral, Kery e Emerson tiveram que mudar completamente suas vidas. Kery parou de trabalhar, e Emerson trocou os palcos pelo trabalho de motorista de aplicativo com o carro que compraram no ano passado. “Comecei a fazer corridas por aplicativos porque o horário é mais flexível e assim posso ter mais disponibilidade para cuidar da Ivy”, explica Emerson. Ivy recebe todos os cuidados médicos de que precisa em casa, pagos pelo plano de saúde. Seus pais contam ainda com o apoio financeiro de familiares mais próximos. “A gente paga o plano de saúde dela e eu tento conseguir, como motorista, o básico para alimentação e aluguel. E, para outros custos, como medicamentos e outras contas da casa, recebemos ajuda de parentes”, explica Emerson. “Chegamos também a fazer rifas para conseguir dinheiro”, acrescenta Kery. O casal continua ativo nas redes sociais. Nelas divulgam a história da filha e até chegam a ganhar algum dinheiro – pouco, dizem – com os vídeos publicados no TikTok. Eles afirmam que não se arrependem de ter compartilhado o vídeo da surpresa no ano passado. Mas ficam tristes ao relembrar aquele momento de alegria quando outros perfis nas redes sociais compartilham novamente aquele registro, o que vem inevitavelmente acompanhado por novas felicitações feitas por pessoas que desconhecem as dificuldades que enfrentam no período atual. “Ainda dói qualquer coisa que faz lembrar de como era antes de tudo acontecer, antes de ela ficar mal. É horrível ver comentários naquele vídeo do carro”, diz Emerson, que é o principal responsável pelos vídeos compartilhados sobre a família nas redes sociais. Kery diz que encara um pouco melhor os comentários positivos que ainda recebem. “Eu não tenho como me afundar nisso, preciso encarar de frente e entender o agora para ser forte e cuidar dela. Mas claro que dói, dói muito”, diz. Em meio às dificuldades, o casal se apega na esperança de que algum tratamento possa ajudar a filha a melhorar. “Os médicos dizem que a lesão dela é praticamente irreversível. Mas existem tratamentos em desenvolvimento, que têm chances muito baixas de dar resultado, mas podem ser algumas possibilidades para o futuro, como um tratamento com célula tronco”, comenta Emerson. Esses tratamentos para casos de paralisia cerebral como o da garota ainda estão em fase de estudos. Para amenizar os problemas, Emerson e Kery tentam aliviar a rotina. Uma forma de fazer isso é comemorar os “mesversários” da filha. A última comemoração teve o seriado Chaves como tema, com direito a fantasia para Ivy. Eles dizem que é uma forma de descontrair, ainda que a filha não responda aos estímulos. Em meio aos cuidados intensivos com Ivy, Kery diz que ela e o marido estão aprendendo a lidar com a nova fase da vida, apesar dos diversos momentos delicados. “Hoje eu vi umas crianças brincando na rua quando eu saí de casa. E isso machuca, sabe? Eu penso: será que vou viver isso um dia com a minha filha?”, diz Kery.
2023-08-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxxl051pj57o
sociedade
'Pessoas foram condenadas à morte por post no Instagram': o relato de dinamarquês sobre a vida em prisão no Irã
Um blogueiro de viagens dinamarquês foi um dos quatro europeus liberados pelo Irã em uma troca de prisioneiros em junho. Em entrevista exclusiva à BBC, Thomas Kjems contou o que viveu durante sua detenção e admitiu se sentir culpado por ter sido trocado por um diplomata iraniano preso na Bélgica, por supostamente planejar um ataque. Parecia que para onde quer que Kjems viajasse no ano passado, ele logo mergulhava em conflito ou crise. Ele então decidiu ir para a Armênia, onde o vizinho Irã despertou seu interesse. Em setembro, a embaixada iraniana em Yerevan concedeu a ele um visto de turista. Fim do Matérias recomendadas Mas sua chegada ao país persa coincidiu com a morte sob custódia de Mahsa "Zhina" Amini, uma jovem curda de 22 anos detida pela Polícia de Moralidade por supostamente violar o estrito código de vestimenta da República Islâmica. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Eu tinha regras para evitar qualquer conflito e qualquer coisa política no Irã. Eu disse a mim mesmo: não chegue perto de locais militares ou prédios do governo, não tire fotos ou vídeos deles. E então acrescentei que não deveria chegar perto de qualquer manifestação", disse ele à BBC. Mas ele não evitou o olhar das forças de segurança iranianas. No início de outubro, agentes de inteligência detiveram Kjems no albergue em que ele estava, em Teerã. Eles o levaram para a famosa prisão de Evin, conhecida por abrigar muitos manifestantes e prisioneiros políticos. "Eles não me disseram por que me prenderam. Eles me perguntaram: 'Por que estamos levando você (para a prisão)?' Fiquei confuso e disse: 'Fiz alguns vídeos, não sei por quê'", disse. Um promotor então o forçou a assinar dois papéis escritos em persa. "Eu não sabia o que estava assinando. (Mas) estava basicamente aceitando que as acusações (contra mim) eram verdadeiras", disse ele. Kjems foi acusado de participar dos protestos e filmá-los, o que foi considerado um ato contra a segurança nacional do Irã. Dentro da Evin, ele dividia uma cela com vários iranianos também detidos durante as manifestações. Ele se preparou para uma fase difícil, mas vivenciou um ato inesperado de bondade. Um de seus companheiros de cela era o aiatolá Abdolhamid Masoumi-Tehrani, um clérigo crítico do líder supremo do Irã, detido em Teerã em outubro. "Esperamos que Thomas não julgue o Irã com base nas ações daqueles que o mantiveram na prisão", disse ele à BBC em uma videochamada. Kjems disse que o aiatolá lhe dava uma porção de sua própria comida todos os dias. "Foi um pequeno gesto, mas na prisão é um gesto muito grande", acrescentou. Outro de seus companheiros de cela foi Mohammad Boroughani, um manifestante de 20 anos que em novembro foi considerado culpado por um tribunal revolucionário de Teerã por "inimizade contra Deus" e condenado à morte. Boroughani foi acusado de agredir um segurança e incendiar um prédio do governo. A Anistia Internacional afirmou que seu julgamento foi uma "farsa". Kjems disse que estava na cela no dia em que Boroughani foi informado de sua sentença de morte. “Quando perguntei por que ele estava com raiva, seus companheiros de cela me disseram que sua detenção seria estendida por mais um mês. Tentei dar ânimo a ele”, disse. Alguns dias depois, ele descobriu a verdade. "Fiquei chocado", disse ele, acrescentando: "Me lembro que ele me disse que havia tentado bater em um daqueles policiais de choque, mas não conseguiu. Havia outras pessoas na prisão condenadas à morte por publicar um story no Instagram". Kjems disse que os agentes de inteligência não o machucaram fisicamente, mas ouviu relatos angustiantes de promotores submetendo outros presos à tortura brutal. Em junho, após sete meses de detenção, os funcionários da prisão disseram a ele para fazer as malas e sair da cela. Ele foi levado ao aeroporto de Mehrabad, em Teerã, e embarcou em um avião particular com destino a Omã. Ele havia sido libertado pelo Irã após a mediação do governo de Omã. Dois cidadãos iraniano-austríacos, Massud Mossaheb e Kamran Ghaderi, e o trabalhador humanitário belga Olivier Vandecasteele também foram libertados como parte da troca de prisioneiros. Os três homens estavam cumprindo penas após serem condenados por espionagem, acusações que eles negaram. Ao mesmo tempo, o diplomata iraniano Asadollah Assadi foi libertado pela Bélgica, onde cumpria uma sentença de 20 anos de prisão por planejar bombardear um comício de um grupo de oposição iraniano exilado na França em 2018. Kjems disse que sentiu "muita culpa" após saber que Assadi havia sido libertado, acrescentando: "Toda essa troca é um dilema ético". O advogado dele, Sam Jalaei, da Dinamarca, disse que ele era inocente, mas esses casos não poderiam ser resolvidos apenas por meio do processo legal no Irã. "Desde o início sabíamos que era uma questão política. Por isso mantivemos contato permanente com o Ministério das Relações Exteriores dinamarquês e o serviço de inteligência", explicou. Kjems disse que, depois de sete meses na prisão, ele só queria ir para casa e tomar o café de sua mãe. "Agora que sei como funciona o sistema no Irã, como eles usam estrangeiros como moeda ou como dinheiro, nunca mais voltarei", disse ele enquanto tomava um café expresso em uma cafeteria em Copenhague, a capital da Dinamarca.
2023-08-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cglye53z8ggo
sociedade
'Perdoo meu irmão por ter matado nosso pai'
Adam Merritt tinha um vínculo muito forte com o pai, Rob, que também foi seu cuidador depois que ele foi diagnosticado com esquizofrenia na adolescência. Mas em junho do ano passado, Adam ligou para o 999 (número de emergência) para confessar que o havia matado. A irmã de Adam diz que está tentando seguir em frente, mas que vai sempre se perguntar se poderia ter feito mais para ajudá-los. Sarah Merritt falava com o pai todos os dias e lembra de ter enviado a ele uma foto de um momento em família na piscina, à qual ele simplesmente respondeu: "legal". Esta seria a última mensagem que ele enviaria à filha. Na manhã seguinte, Sarah recebeu a notícia — foi "obviamente a pior coisa que ouvi na minha vida". Fim do Matérias recomendadas Seu irmão, Adam, havia esfaqueado o pai 16 vezes na casa em que os dois moravam em Peterborough, no leste da Inglaterra. "Ele (o pai) cuidou de Adam desde o primeiro dia, desde que nasceu e nunca deixou de cuidar", diz Sarah. Adam estava no final da adolescência quando começou a apresentar sinais de problemas de saúde mental e foi diagnosticado com esquizofrenia em 2008. Ele foi internado nessa época, mas conseguiu escapar do hospital mais de uma vez, deixando sua família com medo do futuro. "Foi quando meu pai pensou: 'Tudo bem, vou fazer isso sozinho, vou acolhê-lo e cuidar dele sozinho', e assim pelo menos ele podia estar lá com ele e cuidar dele", diz Sarah. Embora os dois tivessem um vínculo forte, Sarah diz que seu pai não recebeu treinamento, apesar de nunca ter lidado com esse tipo de situação antes. "Ele sentiu que entendia e poderia fazer isso, mas acho que houve altos e baixos com Adam ao longo dos anos quando ele teve uma reviravolta." "Acabou deixando meu pai doente também, a ponto de ele acabar sofrendo e tendo que ir ao médico com depressão e ansiedade tentando lidar com isso." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele "nunca desistiria" do filho, diz Sarah. Adam era conhecido do Cambridgeshire and Peterborough NHS Foundation Trust, instituição pública de saúde mental local, mas não da assistência social para adultos. No entanto, a assistência social sabia que Rob era um cuidador não remunerado, recebendo um subsídio para cuidadores revisado anualmente. Sarah estava preocupada com o quão bem Adam estava sendo monitorado na comunidade. Ela sente que o irmão foi "deixado na mão" porque ele "não estava sendo atendido por nenhum profissional, não [havia] visitas regulares ou controles para saber como ele estava mentalmente ou se estava tomando os remédios". Como resultado, Sarah acredita que a morte do pai poderia ter sido evitada. "Se Adam tivesse a ajuda de profissionais, talvez pudesse ter falado com eles, se ele já soubesse em sua mente o que potencialmente poderia fazer, talvez eles pudessem então ajudá-lo", afirma. Adam foi originalmente acusado de assassinato, mas foi considerado incapaz de ser julgado. Isso levou a um julgamento sobre os fatos - usado para determinar se alguém cometeu ou não um ato, e não se alguém é culpado. No julgamento, foi dito ao júri que Adam tinha parado de tomar seus remédios anti-psicóticos duas semanas antes, mas havia tomado uma dose um dia antes do assassinato. Adam e Rob estavam planejando se mudar na época. O marido de Sarah, James Knight, acredita que a mudança iminente era estressante para Adam. "Acho que, no fundo, a mudança deve ter trazido algumas ansiedades para Adam. E não houve ajuda do NHS naquele momento, e nem ao longo dos anos. Acredito que tudo isso contribuiu para o resultado." "Ele agora está recebendo a ajuda que deveria ter recebido anos atrás", diz James. Sarah permanece próxima do irmão e não o culpa pelo que aconteceu. "Não tenho nada contra ele. Não estou com raiva dele. Só sinto muito por ele", diz ela. Questionada se ela perdoa Adam, Sarah responde imediatamente: "Eu perdoo, sim." Ela acredita que seu irmão nunca teria a intenção de machucar seu pai "se ele estivesse em seu juízo perfeito". "Ele não queria fazer isso e tenho certeza que ele diria a mesma coisa, que se arrepende muito", acrescenta ela. Julian Hendy, da organização de caridade Hundred Families, diz que há de 100 a 120 homicídios por pessoas com doenças mentais graves no Reino Unido todos os anos, com a maioria deles acontecendo dentro das famílias. "Eu lidei com muitas famílias nesta situação e muitas vezes a família perdoa quem fez isso", diz ele. "Acho que muitas vezes o sentimento que recebemos de muitas famílias é 'por que foi só depois de uma tragédia que as pessoas conseguiram receber os cuidados e o tratamento de que precisavam?'". Tanto o Cambridgeshire and Peterborough NHS Foundation Trust (CPFT) quanto o sistema local de atendimento integrado (uma parceria de organizações com o objetivo de fornecer serviços integrados de saúde e assistência) disseram que não podiam comentar casos individuais. A Safer Peterborough Partnership disse que o caso estaria sujeito a uma revisão de "homicídio doméstico", projetada para ver se lições podem ser aprendidas. Sarah espera que, ao falar sobre o caso, esteja aumentando o conhecimento sobre como as pessoas com problemas de saúde mental são tratadas. Ela fala com o irmão regularmente. Em vez de falar sobre o que aconteceu, as conversas se concentram no cotidiano, muitas vezes sobre seus hobbies, que incluem pintar e ir à academia. "Eu tento manter a normalidade possível para a saúde dele e para o bem dele. Estamos apenas tentando seguir em frente", diz ela.
2023-08-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clm111mgej4o
sociedade
'Barbenheimer': por que Warner Bros teve que pedir desculpas ao Japão
O estúdio de cinema Warner Bros no Japão se desculpou depois que uma conta oficial do filme Barbie respondeu na internet a memes do filme com imagens de bombas atômicas. Algumas imagens mostraram a atriz Margot Robbie, de Barbie, com um penteado de nuvem em forma de cogumelo. A conta oficial do filme da Barbie respondeu: "Este Ken é um estilista". Outras imagens de memes que enfureceram os usuários japoneses de mídia social incluem uma mostrando Cillian Murphy, que interpretou Robert Oppenheimer — conhecido como o "pai da bomba atômica", carregando Margot Robbie em seu ombro por uma cidade em chamas. A conta oficial do filme da Barbie respondeu: "Vai ser um verão para ser lembrado". Barbie chegará aos cinemas japoneses em 11 de agosto — cinco dias após o 78º aniversário do ataque a bomba atômica em Hiroshima. Fim do Matérias recomendadas Na internet japonesa, a hashtag #NoBarbenheimer ficou no topo dos trending topics. Em um comunicado publicado na própria conta da Barbie da Warner Bros no Japão, a empresa disse que era "extremamente lamentável que a conta oficial da sede americana do filme Barbie tenha reagido às postagens nas redes sociais dos fãs de 'Barbenheimer'". A Warner Bros nos EUA não respondeu a um pedido de comentário da BBC. O Twitter, que recentemente foi renomeado para X, adicionou notas às postagens originais para destacar o contexto histórico dos ataques com bombas atômicas no Japão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O número de mortes registradas são estimativas, mas acredita-se que cerca de 140 mil dos 350 mil habitantes de Hiroshima foram mortos na explosão em 6 de agosto de 1945. Pelo menos 74 mil pessoas morreram quando Nagasaki foi bombardeada três dias depois. A radiação liberada pelas bombas fez com que milhares de pessoas morressem de doenças causadas pela radiação nos anos que se seguiram. Um usuário de mídia social postou: "Meu avô estava em Hiroshima até alguns dias antes do lançamento da bomba atômica. Entre os que morreram sob aquela nuvem de cogumelo estavam muitas crianças que estavam na idade de brincar com bonecas Barbie". Um porta-voz da cidade de Hiroshima disse à BBC que, 78 anos depois, "continuará trabalhando para disseminar o conhecimento e a compreensão do impacto físico e psicológico das bombas nucleares, bem como a esperança dos sobreviventes de uma bomba no desarmamento nuclear". A distribuidora de Oppenheimer ainda não anunciou a data de lançamento do filme no Japão.
2023-08-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgr8d1r353o
sociedade
Por que tantos prédios ficam despejando água limpa sem parar nas ruas?
Dois canos à beira da calçada jorram água cristalina em abundância durante horas ao lado do Platina 220, o prédio mais alto de São Paulo, localizado no bairro do Tatuapé, na Zona Leste. De vez em quando, a água dá uma trégua, mas logo volta "a cachoeira", como moradores da região batizaram a situação. Por onde a água passa, o asfalto está visivelmente deteriorado pelo fluxo constante. "Pode fazer sol ou chuva, a rua quase sempre está molhada", diz um vizinho do prédio, que diz morar na região há 40 anos e pediu para não ser identificado. Ele conta como isso tem causado transtornos a quem vive ali: "Aqui do lado, tem uma clínica de fisioterapia onde vão muitos idosos que usam andadores e cadeira de rodas. Eles sempre precisam atravessar esse rio de água na valeta. Deveriam armazenar essa água e usar ou oferecer para alguém, um lava-rápido". Fim do Matérias recomendadas Quem vive em grandes cidades, onde é comum haver edifícios com subsolos, já deve ter visto cenas parecidas. Apenas na capital paulista, a reportagem da BBC News Brasil presenciou dezenas de outros edifícios que despejam água limpa na rua em grande quantidade, em diferentes partes da cidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas por que esses prédios jogam tanta água fora? De onde ela vem e o que poderia ser feito com ela? A BBC News Brasil entrevistou especialistas em hidrologia e procurou o Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) do Estado de São Paulo para responder a essas questões. Segundo eles, trata-se de uma situação bastante recorrente em todo o país e que surge quando os prédios são construídos. A água poderia até ser aproveitada, mas isso exigiria uma autorização do órgão responsável em cada Estado. Essa permissão segue no entanto um processo burocrático e moroso, o que pode levar muitos edifícios a simplesmente decidir que é melhor despejar tudo na sarjeta de uma vez. A Porte Engenharia e Urbanismo, que construiu o Platina 220, disse à BBC News Brasil que "segue rigorosamente as diretrizes estabelecidas pelo Código de Obras e Edificações de São Paulo". "A água interceptada do lençol freático superficial é imprópria para consumo, sendo lançada na sarjeta para captação no sistema de microdrenagem do município, cumprindo o ciclo hidrológico e seguindo estritamente as normas da legislação vigente", disse a Porte em nota. No entanto, a empresa não respondeu ao questionamento da reportagem se foi pedida uma autorização para uso da água. A Porte afirmou que "não há registro de reclamações da vizinhança sobre eventuais transtornos causados pelo empreendimento" e disse que mantém aberto um canal de relacionamento com os vizinhos "para promover melhorias e bem-estar aos moradores da região". Procurada, a administradora do prédio, a Innova, também disse que segue a legislação vigente e que não há "registros de reclamações sobre eventuais transtornos causados pelo edifício". A empresa também não informou se solicitou a outorga para usar a água do lençol freático. A raiz do problema está literalmente sob a terra, e tudo começa logo quando um edifício é construído, explica Ricardo Hirata, professor de Geociências e Recursos Hidro subterrâneos na Universidade de São Paulo (USP). O hidrólogo diz que essa situação ocorre geralmente quando é feito um rebaixamento do solo para a construção dos andares que ficam sob a superfície da terra. Se a fundação atinge um lençol freático, produz uma vazão constante de água, que precisa então ser bombeada para evitar que um prédio inunde. "Na capital paulista e na região metropolitana, temos o aquífero São Paulo. Na região central, ele é poroso, com areia e arenito. E, se você cavar a partir de três metros (de profundidade), encontra água nele", diz o professor. Anderson Paiva, professor de engenharia civil na área de recursos hídricos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), afirma que isso acontece em cidades de todo o país, especialmente onde há prédios altos com garagens no subsolo. No entanto, Paiva afirma que isso é menos comum em cidades como o Recife, onde os engenheiros costumam já fazer as garagens acima do nível do solo para evitar inundações. "Até temos prédios aqui que chegaram nesse nível e precisam bombear água, principalmente hotéis e prédios em áreas nobres. Mas, como temos muitos alagamentos, é mais comum que as garagens sejam acima do nível da rua e, dessa forma, não atingimos o lençol freático", relata o engenheiro. Ele afirma que o principal cuidado quando é feito o rebaixamento do solo é impermeabilizar para evitar o contato da água com a alvenaria. "A água consegue ter uma capilaridade por meio dos microporos do tijolo, o que pode causar umidade e comprometer a estrutura. O ideal é que a água entre em contato apenas com estruturas de concreto, que não tem essa porosidade do tijolo", afirma. O professor da UFPE afirma não ser possível estimar quanta água é bombeada do solo em geral por prédios assim, porque seria preciso calcular a vazão, a potência do maquinário e quanto tempo elas passam ligadas diariamente, caso a caso. A situação se complica de verdade quando uma construtora ou a administração de um edifício precisa dar um destino para toda essa água. A água poderia ser em tese aproveitada por prédios, mas algumas complicações tornam mais fácil mandar tudo para a sarjeta. O primeiro ponto é preciso ter uma autorização para usar essa água. Uma outorga é emitida para o órgão responsável por regular a água e esgoto do Estado, como o DAEE em São Paulo, a Cedae, no Rio de Janeiro, e o Seia, na Bahia. "Os pedidos são analisados caso a caso, levando-se em conta as especificidades do uso e da finalidade da demanda", informou o DAEE por meio de nota. Mas Hirata explica que os órgãos podem com frequência demorar para emitir a autorização, porque ainda não estão plenamente acostumados a lidar com essas solicitações. "Se você pede para tirar água do rio, o Estado sabe fazer isso de maneira ágil. Mas quando você vem com alternativas diferentes, ele se embaralha porque não tem essa prática", diz. Prédios que usam este tipo de água sem pedir permissão podem ser multados e, inclusive, responder por crime ambiental. Para quem não tem autorização de uso, a recomendação oficial é despejar na rua, o que não exige nenhum tipo de outorga. Outro ponto importante é que essa água não serve para beber, porque a cor cristalina da água não garante que seja potável, como explica o DAEE. Mesmo assim, poderia ter outras finalidades, diz Hirata, que deu uma palestra neste ano sobre o assunto na Faculdade de Hiroshima, no Japão. "Ela pode ser aproveitada para rega, lavagem ou até mesmo na prumada da descarga dos banheiros. Não existe restrição, desde que não seja usada de maneira potável", diz o hidrólogo. Normalmente, recomenda-se que a água seja tingida para deixar claro que é de reuso, segundo Hirata. "No shopping Eldorado, em São Paulo, a descarga tem água azul. Isso porque eles pegam água do esgoto, a tratam e tornam apta a outros usos. E eles usam um corante alimentício para que os funcionários não se atrapalhem", explica. No entanto, o especialista ressalta que, mesmo para um uso não potável, é necessário fazer um estudo dessa água antes de usá-la. Segundo Hirata, isso é importante porque, essa água pode ter algum contaminante, que pode causar problemas de saúde ao entrar em contato com a pele, ou doença respiratória, porque algumas destas substâncias podem ser voláteis. Anderson Paiva, da UFPE, alerta ainda que a água do lençol freático de cidades litorâneas tem outra questão importante que existe o tratamento. "Você pode até retirar a água, mas, além dos contaminantes, é possível que ela tenha alta concentração salina", diz. Hirata alerta que, mesmo com a autorização, é necessário fazer análises periódicas da água. Por estar mais próxima à superfície, ela pode se contaminar com facilidade. Por isso, o especialista reforça que não é recomendado bebê-la. Hirata afirma que o uso dessa água pode não causar grandes problemas no reservatório subterrâneo de onde ela sai, porque ele acaba sendo constantemente "recarregado". "A cidade impermeabiliza o solo, principalmente com concreto e asfalto. No entanto, a rede de distribuição de água tem vazamentos ao longo do caminho até nossas casas e essa água para em algum lugar. Normalmente, ela vai para o aquífero. Então, você não perde ela completamente, e alguém que cava um poço pode usá-la", afirma o hidrólogo. Hirata também explica que a água da chuva também alimenta esse aquífero superficial após infiltrar no solo. Depois de cair nessa rede subterrânea, ela se desloca até chegar a um rio. O professor estima que entre 30 a 40% da água da capital paulista é subterrânea, por isso os rios não secam durante o período de estiagem. No entanto, quando a água é retirada abundantemente e sem controle de pontos mais profundos, com mais de 150 metros de profundidade, isso pode ter um grande impacto, segundo o hidrólogo. "Quando tira muita água profunda, tem mais problema porque os aquíferos funcionam como descargas no rio em todo o percurso dele. Se tirarmos muita água dos poços, essa descarga diminui e o rio pode secar, o que chamamos de superexplotação", diz. Ele cita como exemplo o aquífero Ogallala, nos Estados Unidos, que secou após ser usado de maneira excessiva por fazendeiros do meio-oeste do país. Por isso o órgão responsável faz uma análise do quanto de água é retirada, para entender o impacto que ela causará. Para o professor, o Estado deveria ter programas de conscientização para estimular o aproveitamento dessa água, que acaba sendo desperdiçada diariamente por prédios no país inteiro. "O futuro das cidades passará por reconhecer o uso dessas águas. Isso é um benefício para o usuário e para a sociedade, principalmente quem mora na periferia e sofre com constantes racionamentos", diz Hirata. "A cidade moderna vai fazer mais uso desse tipo de água porque não podemos depender da água potável para lavar carro e regar jardim."
2023-07-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c28p2rw929wo
sociedade
A sobrevivente de abuso infantil que ajudou a condenar o avô pelo crime
Aviso: este artigo contém detalhes que podem ser perturbadores. Uma adolescente que ajudou a prender o avô paterno depois que ele abusou sexualmente dela na infância está se manifestando publicamente para "acabar com a vergonha" que ronda vítimas de abuso como ela. Ela espera que sua história ajude outras pessoas. Poppy, britânica de 18 anos, deixou de lado seu direito ao anonimato porque acredita que "se as pessoas podem ver um rosto por trás de algo tão tabu, é mais fácil de se identificarem". Ela revela como, quando era criança, achava normal o abuso que sofria — e como sentiu um alívio enorme quando finalmente contou aos pais, aos 11 anos. Só falando abertamente, diz Poppy, que os outros vão entender que o abuso pode acontecer dentro de qualquer família. Fim do Matérias recomendadas "Por que deveríamos nos esconder? É um crime, simples assim", diz ela. "Sou provavelmente como qualquer outra pessoa passando por isso. Os sobreviventes são muito bons em agir como se nada estivesse errado, as pessoas não viam isso em mim." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Novos dados mostram que há mais casos de abuso sexual infantil sendo denunciados à polícia na Inglaterra e no País de Gales do que nunca. Foram registrados 105.542 crimes sexuais contra crianças no ano até março. Os números do Home Office (Ministério do Interior) foram analisados ​​para a BBC pelo Centre of Expertise on Child Sexual Abuse (CSA Centre), que estuda as causas, o impacto e a dimensão dos abusos. O centro afirma que a maior conscientização é uma das principais razões para o aumento de 57% nos crimes denunciados em seis anos. O abuso sexual infantil dentro do ambiente familiar é responsável por quase metade dos casos. É por isso que Poppy acredita que tornar pública sua história vai ajudar as crianças a perceberem que alguém vai ouvi-las. Os dados brasileiros também apontam que a maioria dos agressores são do sexo masculino, responsáveis por mais de 81% dos casos contra crianças de até 9 anos e 86% dos casos contra adolescentes de 10 a 19 anos. E as vítimas são predominantemente do sexo feminino: 76,9% das notificações de crianças e 92,7% das notificações de adolescentes. É um dia quente de verão. Em um aeródromo movimentado em Kent, no sudeste da Inglaterra, Poppy veste um macacão e recebe ajuda para ajustar o paraquedas. Quatro dias depois de terminar as provas do A-levels (o Enem britânico) e uma semana antes de seu aniversário de 18 anos, ela está prestes a saltar de um avião para arrecadar dinheiro para uma instituição de caridade que a ajudou a lidar com o abuso que sofreu na infância. Poppy acredita que seu primeiro salto de paraquedas reflete o "passo assustador" que você dá quando conta a alguém sobre o abuso. Sua mãe, Miranda, está lá para apoiá-la. Seu pai, David, está trabalhando, mas ela faz uma videochamada para ele pouco antes de entrar no avião. Eles são uma família unida. Tiveram que ser para sobreviver nos momentos mais difíceis. Eles acreditam que Poppy foi abusada pela primeira vez quando estava aprendendo a andar. "Pensava que os avós faziam isso com os netos", conta Poppy. "Achava que era bastante normal." O pai de David, John, ajudava a cuidar de Poppy quando eles precisavam. "Eu conhecia as deixas", diz Poppy. Quando o programa infantil que ela costumava assistir com ele terminava, o abuso começava. Hoje, Poppy é eloquente e ponderada, mas, ao voltar sua mente para aquela época, ela hesita enquanto procura as palavras. "Sempre começava com: 'Você pode vir me ajudar a me vestir?' E eu tinha que ir para o quarto dele. Era forçada a fazer coisas com ele, depois ele fazia coisas comigo." Quando digo a ela que sofreu abuso, ela diz que sim — e descreve a complexa relação que tinha com o avô paterno. Ela conta que sentia muita vergonha e acreditava que estava errada, então queria protegê-lo. Aos cinco anos, pouco antes de uma viagem ao parque de diversões Legoland, ela tentou contar à mãe sobre o abuso. Uma foto tirada naquele dia mostra uma garotinha com longas tranças loiras sorrindo para os pais. Se é difícil para Poppy encontrar as palavras certas agora, isso mostra como deve ter sido impossível para uma menina tão nova. "Ela começou a nos contar, depois deu risadinha", diz Miranda. "Nós simplesmente não percebemos o que ela estava tentando nos dizer." Os pais acharam que ela tinha visto John saindo do banho. David conversou com o pai. "A resposta imediata dele foi: 'Talvez eu tenha me trocado na frente dela'", lembra David. O pai dele prometeu que isso não aconteceria novamente. "Ele literalmente encerrou completamente o assunto, mas de uma forma calma. E eu pensei: Tudo bem! Ele é meu pai!" O abuso parou, mas conforme Poppy crescia, sua ansiedade também aumentava. Ela conta que a culpa que sentia a estava consumindo. Aos 10 e 11 anos, Poppy estava tendo aulas que alertavam sobre abuso e exploração sexual na escola. Ela começou a reconhecer o que havia acontecido com ela. "Estou sentada lá pensando: 'Estou envolvida nisso'", diz Poppy. "Sou eu, isso é sombrio. É nojento." O CSA Centre estima que uma em cada 10 crianças terá sua vida prejudicada por alguma forma de abuso sexual até os 16 anos. Chegou um dia em que Poppy ficou fisicamente doente. Sua mãe sugeriu que elas fossem dar uma volta. Foi então que Poppy deu o passo que faltava e contou a ela sobre o abuso. "Foi nauseante", lembra Miranda. "Ela obviamente viu a expressão no meu rosto e disse: 'Mãe, por favor, não conte a ninguém. Não quero que nada aconteça com ele. Eu amo ele.' Ela disse imediatamente: 'A culpa é minha. Não sou uma pessoa boa'." Miranda diz que não sabia o que fazer a seguir. "Eu nunca tinha me deparado com ninguém que tivesse passado por isso. Eu só precisava mantê-la segura." Poppy estava preocupada com a reação da mãe, mas diz que foi um imediato "vamos superar isso". O alívio que ela sentiu foi enorme, porque "agora estava nas mãos de outras pessoas". Elas voltaram então para casa. "Chorei muito, depois pensei: Como conto para o David?", recorda Miranda. Ela telefonou para o marido, que estava trabalhando. Ele conta que houve uma "grande mistura de emoções" quando ouviu a notícia. "Tive que tomar esta decisão de denunciar meu pai", diz ele. "Foi incrivelmente difícil. No entanto, ela é minha filha e vem em primeiro lugar." Em poucas horas, John foi preso. Poppy foi então entrevistada pela detetive Deniz Aslan, da equipe de proteção à criança da Polícia de Kent, e uma assistente social. Aslan lembra que a menina de 11 anos estava muito ansiosa. Esta foi a primeira vez que ela explicou a alguém exatamente o que seu avô havia feito. "Qualquer abuso sexual de uma criança é sério", diz Aslan. "Mas o estupro de um menor de 13 anos, não acho que haja algo mais sério do que isso." Ela diz que o avô nunca admitiu o que havia feito. A voz de Miranda falha enquanto ela afirma que a polícia contou a ela os detalhes do que havia acontecido. "Ela estava sendo estuprada por ele. E ela se sentia responsável por isso. Nenhuma criança deveria se sentir responsável por isso", diz ela. "Poppy nunca nos daria todos os detalhes do que ele fez. Ela estava tentando nos proteger." Para David, houve a angústia de saber que seu pai era o abusador. "Ele estava abusando da nossa filha e, cinco minutos depois, estava tomando uma xícara de chá com a gente. Eu pensei: Quem é esse homem?" "Mas, da mesma forma, quando era criança, eu tinha muitas lembranças felizes. Havia um conflito real acontecendo na minha cabeça." Demorou 18 meses para o processo aberto contra o avô, John, ir a julgamento. Na Inglaterra e no País de Gales, apenas 12% dos crimes denunciados resultam em acusações, de acordo com o CSA Centre — e normalmente leva quase dois anos para os casos chegarem ao tribunal. A entrevista gravada de Poppy foi apresentada e, na sequência, ela foi interrogada. Ela tinha acabado de completar 13 anos. "Eu estava tão desesperada para me defender", diz ela. "De certa forma, havia uma boa quantidade de raiva, então contar o meu lado da história foi incrivelmente importante." Em 2018, John foi considerado culpado de três acusações, incluindo estupro, e foi condenado a 13 anos e meio de prisão. O juiz descreveu o testemunho de Poppy como "dilacerante" e "totalmente convincente". A defesa de John de que ela havia inventado o abuso, instigada pelos pais, foi descrita como "bastante absurda". Ele morreu na prisão no ano passado. A condenação foi importante para Poppy, mas também a terapia. Ela teve que esperar cinco meses para receber esse suporte — e agora, pode demorar muito mais. Na instituição Family Matters em Kent, que atendeu Poppy, há mais de 300 sobreviventes de abuso na fila de espera. "Quando você quer ajuda, você quer ajuda agora", diz Mary Trevillion, CEO da Family Matters, cuja equipe passa muito tempo avaliando o risco que as pessoas correm enquanto esperam por um terapeuta. Ela também vê que muitas pessoas escondem o que aconteceu com elas, e só pedem ajuda quando são adultas. O Home Office informou que estava aumentando significativamente o apoio às vítimas de abuso sexual infantil — incluindo quadruplicar a verba para os serviços de auxílio às vítimas até 2024-25. Também afirmou que reconhece que o abuso sexual infantil é um crime "frequentemente oculto" — e é por isso que o governo tornou "obrigatório para aqueles que trabalham com jovens denunciar qualquer suspeita de que uma criança está sendo abusada ou explorada sexualmente". O pequeno avião voa alto no céu sem nuvens. Poppy está saltando de paraquedas para arrecadar dinheiro para uma central de atendimento que apoia sobreviventes de abuso enquanto esperam para ser atendidos por um terapeuta. Até agora, ela arrecadou mais de £ 70 mil (cerca de R$ 425 mil) Poppy e seu instrutor se dirigem até a beirada da porta aberta do avião — os campos de Kent estão espalhados abaixo deles. Eles saltam. Minutos depois, Poppy está no chão — em segurança e rindo. "Você tem aquele pânico inicial", diz ela. "Mas depois é simplesmente um alívio pular — você está lá agora, precisa fazer isso." Pensando na menina de 11 anos que encontrou coragem para contar à mãe sobre o abuso, Poppy diz: "Eu daria a ela um grande abraço. Sem a força dela, acho que não estaria aqui hoje, e a vida que tenho agora é incrível." A mensagem dela para outras pessoas que sofrem abuso é "dê esse passo"— conte a alguém. "Não posso prometer que todos vão acreditar em você", ela afirma. "Mas posso prometer que há alguém que vai acreditar em você, e há uma maneira de superar isso."
2023-07-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n44pdlz1yo
sociedade
Como os soviéticos roubaram segredos nucleares e perseguiram Oppenheimer, o pai da bomba atômica
O filme não é um documentário, mas aborda corretamente os grandes temas e momentos históricos. As questões apresentadas por Nolan não são relíquias de um passado distante. O novo mundo que Oppenheimer ajudou a criar e o pesadelo nuclear que ele temia persistem até hoje. As acusações de que Oppenheimer era um espião soviético e um risco à segurança — um dos principais enfoques do filme — foram desmentidas. Fim do Matérias recomendadas Em dezembro de 2022, o governo Biden anulou postumamente a decisão de 1954 da Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos, que revogou a licença de segurança de Oppenheimer, chamando esse processo de injusto e tendencioso. Documentos que antes eram confidenciais vieram a público, revelando que a espionagem soviética sobre os esforços americanos para desenvolver a bomba atômica fizeram avançar o programa nuclear de Moscou, mas que Oppenheimer não era um espião. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Oppenheimer entrou para o Projeto Manhattan — o esforço nacional americano para construir a bomba atômica antes dos nazistas — em 1942. Os cientistas que ele liderou em Los Alamos, provavelmente, formavam o grupo mais talentoso de cérebros já reunidos em um único laboratório — 12 deles viriam a ganhar o Prêmio Nobel. Em 1954, no auge da era McCarthy, Oppenheimer foi acusado de ser comunista e até de espionar para a União Soviética. Mas o que é verdade? Sabemos que, nos anos 1930 e até 1943, Oppenheimer era simpatizante comunista. Seu irmão Frank (1912-1985) e sua namorada Jean Tatlock (1914-1944) eram membros do Partido Comunista dos Estados Unidos. A esposa de Oppenheimer, Katherine (1910-1972), era ex-integrante do partido. Para Oppy, como seus alunos o chamavam, o marxismo era intelectualmente interessante, mas também era prático. O cientista considerava o comunismo a melhor defesa contra a ascensão do fascismo na Europa — o que, por sua ascendência judaica, era uma questão pessoal para ele. Mas, em 1943, o apoio de Oppenheimer às causas do Partido Comunista mudou — evidentemente, quando ele percebeu a magnitude de sua missão de produzir a bomba atômica. Naquele ano, o físico ajudou autoridades de segurança do Exército dos Estados Unidos a identificar cientistas que ele acreditava serem comunistas. Oppenheimer era um alvo importante da inteligência soviética, que o identificava pelos codinomes CHESTER e CHEMIST. Ele também foi "cultivado" pelas autoridades soviéticas de inteligência. Mas ser um alvo cultivado para recrutamento não é o mesmo que ser um espião aliciado. Como mostra o filme, o colega acadêmico de Oppenheimer na Universidade da Califórnia em Berkeley, Haakon Chevalier (1901-1985), contou a Oppenheimer, em 1943, que um cientista britânico que trabalhava em São Francisco poderia repassar informações para os soviéticos. Oppenheimer rejeitou a abordagem, mas só informou as autoridades vários meses depois, por motivos que permanecem incertos até hoje. Nos anos que se seguiram, Oppenheimer divulgou pelo menos três versões da história, às vezes envolvendo seu irmão Frank. Parece provável que o cientista estivesse tentando proteger seu irmão da segurança do Exército americano. Os arquivos divulgados após o colapso da União Soviética comprovaram, sem margem de dúvida, que Oppenheimer não era um espião soviético. Na verdade, os relatórios soviéticos de inteligência sobre o Projeto Manhattan revelaram que, em momentos cruciais, os chefes de espionagem de Stalin ficaram frustrados por sua equipe de campo não ter recrutado Oppenheimer. Mas os soviéticos, de fato, penetraram no Projeto Manhattan, o que foi a maior falha de segurança da história dos Estados Unidos. Diversos cientistas que trabalharam no Projeto Manhattan forneceram informações cruciais para a União Soviética sobre as pesquisas da bomba atômica dos EUA. O filme Oppenheimer apresenta o brilhante físico teórico Klaus Fuchs (1911-1988), que fugiu da Alemanha nazista para o Reino Unido, onde se naturalizou cidadão britânico. Desde que começou a trabalhar no projeto britânico da bomba atômica na época da guerra, Fuchs manteve o que ele próprio descreveu posteriormente como "contato contínuo" com a inteligência soviética, fornecendo cálculos teóricos necessários para a construção da bomba atômica. O general Leslie Groves (1896-1970), comandante militar do Projeto Manhattan, culpou posteriormente os britânicos por não terem identificado Fuchs como espião soviético. Ele tinha razão. Mas o dossiê confidencial, agora publicado, do MI5 — serviço de inteligência britânico — demonstra que, na época, a agência não tinha evidências positivas e confiáveis das atividades comunistas de Fuchs. O MI5 sabia que o físico era antinazista, mas não que ele era pró-soviético. Como discuti no meu novo livro, Spies: The Epic Intelligence War Between East and West ("Espiões: a épica guerra de inteligência entre o Oriente e o Ocidente", em tradução livre), outros espiões em Los Alamos incluíam o prodigioso cientista Theodore "Ted" Hall (codinome MLAD ou "Jovem"); Julius Rosenberg (codinome ANTENNA, depois LIBERAL); e David Greenglass (codinome BUMBLEBEE, CALIBER). Outros espiões soviéticos, como o cientista britânico Alan Nunn May, trabalharam em outros setores do Projeto Manhattan. Estes homens tinham diversos motivos para revelar segredos atômicos dos Estados Unidos. Eles acreditavam verdadeiramente no comunismo e achavam que as armas nucleares eram poderosas demais para ficarem de posse de um único país. Além disso, eles mantinham uma defesa (falaciosa): como a União Soviética foi aliada dos Estados Unidos na época da guerra, eles estariam "apenas" fornecendo segredos para um governo aliado. Mas, como Nolan mostra corretamente no filme, quando Chevalier apresentou este argumento a Oppenheimer, ele retrucou, dizendo que, ainda assim, era traição. A espionagem soviética dentro do Projeto Manhattan mudaria a história. No final da Segunda Guerra Mundial, os espiões de Stalin haviam fornecido os segredos da bomba atômica para o Kremlin, o que acelerou o projeto da bomba de Moscou. Quando os soviéticos detonaram sua primeira arma atômica, em agosto de 1949, era uma réplica da bomba construída em Los Alamos e lançada pelos americanos em Nagasaki, no Japão. Até hoje, cerca de 80 anos depois, ainda são revelados segredos sobre a espionagem nuclear da União Soviética. Outro agente soviético, cujas atividades de espionagem foram reveladas apenas recentemente, foi o engenheiro americano George Koval (codinome DEVAL). Ele foi recrutado para o Projeto Manhattan, onde trabalhou com "iniciadores" da bomba de polônio em uma instalação na cidade de Dayton, no Estado americano de Ohio. Depois da morte de Koval em 2006, aos 93 anos, o Ministério da Defesa da Rússia revelou que o "iniciador" da primeira bomba atômica soviética foi preparado conforme as especificações fornecidas pelo engenheiro americano. Putin concedeu a Koval a homenagem póstuma de "Herói da Rússia", oferecendo um brinde com champanhe em sua honra. Se o filme de Nolan inspirar as pessoas a lerem a biografia de Oppenheimer, fruto de uma extensa pesquisa de Kai Bird e Martin Sherwin (e que inspirou Nolan a produzir o filme), ou outros relatos sobre o Projeto Manhattan e a Guerra Fria, elas vão perceber que as relações subjacentes entre a ciência e a espionagem permanecem vivas até hoje. O mundo atual está à beira de revoluções tecnológicas que vão transformar a sociedade no século 21, da mesma forma que as armas nucleares fizeram no século passado: a inteligência artificial, a computação quântica e a engenharia biológica. Assistir a Oppenheimer me faz imaginar se governos estrangeiros hostis podem já ter roubado os segredos para o desenvolvimento destas novas tecnologias, da mesma forma que os soviéticos fizeram com a bomba atômica. *Calder Walton é diretor assistente do Projeto de História Aplicada e do Projeto de Inteligência da Harvard Kennedy School, nos Estados Unidos.
2023-07-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2xj7ev9k4o
sociedade
A família que abandonou civilização e acabou morrendo em montanha nos EUA
Eles queriam viver desconectados, longe do caos e da desordem do mundo, mas não conseguiram superar os obstáculos da natureza. Duas irmãs e o filho de uma delas morreram enquanto tentavam viver longe da civilização nas Montanhas Rochosas no Estado do Colorado, informaram as autoridades locais. Os restos mortais de Christine e Rebecca Vance, assim como os do filho de 14 anos desta última, foram encontrados em um acampamento neste mês. E na terça-feira (25/7), após um exame forense, os especialistas concluíram que provavelmente eles morreram de fome ou por exposição ao frio do inverno. Aparentemente, eles começaram a acampar durante o verão. Fim do Matérias recomendadas A meia-irmã de Rebecca Vance, Trevala Jara, disse ao jornal The Washington Post na quarta-feira: "Ela não gostou da maneira como o mundo estava indo e pensou que seria melhor se ela, seu filho e Christine estivessem sozinhos, longe de tudo". As irmãs, que estavam na casa dos 40 anos, e o adolescente não tinham experiência de sobrevivência na selva. Eles apenas assistiram a vídeos online para aprender como sobreviver no terreno acidentado do Colorado, disse Jara. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Você não pode acessar a internet e assistir a vídeos sobre como viver sem água e eletricidade e depois realizar isso se não tiver experiência", afirmou a familiar ao jornal Colorado Springs Gazette. "Você simplesmente não pode fazer isso. Eles morreram de fome porque não estavam preparados", acrescentou. Todos os três vieram da cidade de Colorado Springs. Os investigadores dizem que a causa das mortes ainda não foi determinada e não será divulgada até que os relatórios toxicológicos sejam concluídos. Em 9 de julho, um trilheiro encontrou alguns restos decompostos no acampamento Gold Creek, na Floresta Nacional de Gunnison. De acordo com o legista do condado de Gunnison, Michael Barnes, dois corpos foram encontrados em uma barraca, enquanto outro foi localizado do lado de fora, a uma altitude de cerca de 3.000 metros O nome do adolescente não foi divulgado. "Parece que eles tentaram construir um abrigo, mas desistiram quando o inverno chegou e passaram um tempo dentro de uma barraca", disse o legista à agência de notícias Associated Press. "Eu me pergunto se o inverno chegou rapidamente e de repente eles estavam no modo de sobrevivência na barraca", disse Barnes. "Eles tinham muitos guias com eles sobre sobrevivência na mata, busca por comidas e coisas assim. Mas parece que eles [compraram suprimentos] em uma mercearia." No início de agosto passado, o grupo chegou à casa da meia-irmã das mulheres "para se despedir". "Tentamos impedi-los", explicou Trevala Jara. "Mas eles não quiseram ouvir. Já estavam decididos."
2023-07-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c512p1k1101o
sociedade
'Desempregados e exaustos': os jovens chineses que estão voltando para a casa dos pais
Sobrecarregada de trabalho e exausta, Julie deixou seu emprego como desenvolvedora de games em Pequim, em abril deste ano, para se tornar "filha em tempo integral". Aos 29 anos, ela agora passa os dias lavando louça, preparando comida para os pais e fazendo outras tarefas domésticas. Os pais pagam a maior parte das despesas dela, mas Julie recusou a oferta deles de receber um salário mensal de US$ 280 (cerca de R$ 1,3 mil). Afinal, a prioridade dela hoje é dar um tempo nas jornadas de trabalho de 16 horas do seu antigo emprego. "Eu vivia como um cadáver ambulante." Fim do Matérias recomendadas Jornadas de trabalho extenuantes e um mercado de trabalho desanimador estão forçando a juventude chinesa a tomar decisões incomuns. Julie faz parte de um número crescente de jovens que se autodenominam "filhos em tempo integral", voltando para o conforto da casa dos pais porque desejam dar uma pausa na exaustiva vida profissional ou simplesmente não conseguem encontrar trabalho. Os jovens chineses, que sempre ouviram que o sacrifício feito para estudar e se formar valeria a pena, agora se sentem derrotados e presos. Mais de um em cada cinco jovens chineses entre 16 e 24 anos está desempregado, segundo dados oficiais publicados em maio. A taxa de desemprego entre os jovens na China é hoje a mais alta desde que as autoridades começaram a publicar esses dados em 2018 - uma estatística que não inclui o mercado de trabalho rural. Muitos dos chamados "filhos em tempo integral" dizem que a ideia é ficar na casa dos pais apenas temporariamente. Eles veem isso como um momento para relaxar, refletir e encontrar empregos melhores. Mas é mais fácil falar do que fazer. Julie se candidatou a mais de 40 empregos nas últimas duas semanas e recebeu apenas duas ligações. "Era difícil encontrar um emprego antes de pedir demissão. Agora é ainda mais difícil", diz ela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O burnout (esgotamento) que leva esses adultos a se tornarem "filhos em tempo integral" não é surpreendente, devido ao equilíbrio notoriamente precário entre vida pessoal e profissional na China. A cultura de trabalho do país costuma ser chamada de "996", uma vez que muitos consideram a norma trabalhar das 9h às 21h, seis dias por semana. Chen Dudu, outra "filha em tempo integral", largou o emprego no setor imobiliário no início deste ano porque se sentia exausta e desvalorizada. A jovem de 27 anos conta que "não sobrava quase nada" depois de pagar o aluguel. Quando voltou para a casa dos pais no sul da China, Chen diz ter "vivido a vida de uma aposentada", mas a ansiedade a atormentava. Ela escutava duas vozes em sua cabeça: "Uma dizia que é raro ter esse ócio, então aproveite o momento. A outra me incitava a pensar no que fazer depois". "Se isso tivesse continuado, eu teria me tornado um parasita", avalia Chen, que desde então abriu o seu próprio negócio. Jack Zheng, que recentemente deixou a empresa de tecnologia chinesa Tencent, conta que respondia a quase 7 mil mensagens fora do horário de trabalho todos os dias. Aos 32 anos, ele chama isso de "horas extras invisíveis", uma vez que isso era esperado, mas não compensado. Ele pediu demissão depois que teve uma foliculite grave, doença de pele na qual os folículos pilosos ficam inflamados - e que pode ser causada por estresse. Ele encontrou trabalho desde então, mas diz que muitos à sua volta não têm a mesma sorte. Muitos enfrentam a chamada "maldição dos 35", uma crença predominante na China de que os empregadores estão menos dispostos a contratar funcionários com mais de 35 anos. Em vez disso, preferem pessoas mais jovens que são "mais baratas". Esta faca de dois gumes de discriminação etária e oportunidades de trabalho sombrias é um desafio para aqueles na faixa dos 30 anos que estão pagando financiamento imobiliário ou planejam começar uma família. O desespero não é menor entre os jovens universitários. Muitos não passam propositalmente nos exames para atrasar a formatura. Nas últimas semanas, as redes sociais chinesas foram inundadas de fotos atípicas de formatura que revelam a desilusão dos recém-formados. Algumas mostram jovens deitados com suas becas de formatura e capelo cobrindo o rosto; em outras, eles aparecem segurando seus diplomas sobre latas de lixo, prontos para jogá-los fora. A universidade já foi um espaço de elite na China. Mas entre 2012 e 2022, as taxas de matrícula aumentaram de 30% para 59,6%, à medida que mais jovens passaram a ver os diplomas universitários como um passaporte para melhores oportunidades em um mercado de trabalho competitivo. Mas as aspirações deram lugar à decepção, ao passo que as oportunidades do mercado de trabalho despencam. De acordo com especialistas, o desemprego entre os jovens deve piorar com a entrada no mercado de um número recorde de 11,6 milhões de recém-formados. "A situação é muito ruim. As pessoas estão cansadas e muitas estão tentando sair. Há muito desespero", diz Miriam Wickertsheim, diretora da empresa de recrutamento Direct HR, com sede em Xangai. A recuperação econômica da China mais lenta do que o esperado após a pandemia de covid-19 é uma das principais razões para o alto índice de desemprego, observa Bruce Pang, economista-chefe para a Grande China da prestadora de serviços imobiliários corporativos Jones Lang LaSalle. Alguns empregadores também estão menos dispostos a contratar recém-formados com "currículo em branco", que têm menos experiência profissional do que seus antecessores devido aos lockdowns impostos pela pandemia, acrescenta Pang. As recentes medidas regulatórias impostas pelo governo da China em setores populares entre os jovens profissionais chineses também sufocaram o mercado de trabalho. Regulamentações contra grandes empresas de tecnologia, restrições aos programas de tutoria e proibição de investimento estrangeiro em educação privada levaram a cortes de empregos. Embora o governo chinês esteja ciente desses problemas, ele tem tentado minimizá-los. Em maio, o presidente Xi Jinping foi citado na primeira página de um jornal do Partido Comunista Chinês incentivando os jovens a "comer amargura", tradução de uma expressão em mandarim que significa suportar dificuldades. Enquanto isso, a mídia estatal se deu o papel de redefinir o desemprego. Um editorial publicado na semana passada no jornal estatal Economic Daily usou o termo "emprego lento": enquanto alguns jovens chineses estão desempregados, disse o jornal, outros "optaram ativamente por empregos lentos". A origem da expressão não é clara, mas um artigo do China Youth Daily de 2018 afirmou que um número crescente de recém-formados não estava com pressa para encontrar trabalho, com muitos optando por viajar ou ensinar por curtos períodos. Isso, disse o jornal, era "emprego lento". Desta vez, a definição inclui aqueles que não encontraram trabalho ou que optaram por continuar os estudos, aprender novas habilidades ou tirar um ano sabático. Independentemente de quão difícil esteja o mercado de trabalho, o jornal aconselhou a população a "agir e trabalhar duro" e, enquanto fizerem isso, não precisariam se preocupar em ficar desempregados. No entanto, dada a situação atual do mercado de trabalho, a expressão e o conselho não foram bem recebidos. Alguns ficaram admirados com a "recusa do governo em reconhecer a situação do desemprego", enquanto outros reagiram com sarcasmo. "Obviamente estamos desempregados, mas [as autoridades] inventaram o termo 'emprego lento'. Quão lento seria? Alguns meses ou alguns anos?", escreveu um usuário na Weibo, rede social chinesa semelhante ao Twitter. Um usuário da plataforma Xiaohongshu, o equivalente chinês do Instagram, disse que o termo "joga de repente a responsabilidade sobre os jovens". "Segundo essa explicação, a taxa de emprego durante a Grande Depressão nos EUA no fim da década de 1920 deveria ser de 100%, já que a maioria das pessoas estava em 'empregos lentos'. Que maneira de resolver um problema global!", escreveu o usuário. "Desemprego é desemprego. Devemos chamá-lo como é", declarou Nie Riming, pesquisador do Instituto de Finanças e Direito de Xangai. "De fato, pode haver jovens que gostariam de tirar um ano sabático antes de começar seu próximo emprego, mas acho que a grande maioria dos desempregados de hoje está desesperada por um emprego, mas não consegue encontrar um", acrescentou. * Reportagem adicional de Fan Wang em Cingapura.
2023-07-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz4y95vdz77o
sociedade
Onda de calor: Brasil pode sofrer com verão extremo como o Hemisfério Norte?
É provável que, enquanto você lê esta reportagem, quem está em países como Espanha, França, Alemanha, Polônia e Itália esteja procurando como aliviar o calor intenso. O momento atual é, em parte, explicado pela geografia: em latitudes médias e altas, um quadro chamado de anticiclone tende a se formar. Ele faz com que a circulação atmosférica — diferença de aquecimento entre as regiões equatoriais e polares — crie áreas de alta pressão, comprimindo e elevando a temperatura do ar. Essas áreas de alta pressão contribuem para o tempo seco e estável, que pode elevar as temperaturas e, consequentemente, a ondas de calor. Fim do Matérias recomendadas "Esse fenômeno também impede a formação de nuvens, fazendo com que os raios solares cheguem muito fortes. O calor faz com que o solo perca a umidade rapidamente, deixando todo o ambiente seco e quente", explica o climatologista Carlos Nobre, ex-presidente do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e doutor em meteorologia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos. Nobre aponta que este é um processo natural do verão no Hemisfério Norte — mas as mudanças climáticas têm feito com que essas ondas de calor se tornem mais frequentes e fortes. André Turbay, mestre e doutor em Gestão Urbana, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e coordenador do ClimateLabs — programa da União Europeia para mitigação da crise climática, explica que o fenômeno vai além da Europa. "Também tivemos isso em outras áreas do Hemisfério Norte. Foi registrado um pico de 52,2ºC na China [no município de Sanbao, em Xinjiang] e de 51ºC nos Estados Unidos [em Corpus Christ, Texas]", diz Turbay. E no Brasil? Devemos nos preparar para um verão mais quente do que o normal e um calor tão intenso quanto o visto agora em outras partes do mundo? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil explicam que, apesar de o país não ter as mesmas características geográficas do Hemisfério Norte, não está a salvo de ondas de calor cada vez mais fortes e recordes de temperatura. No entanto, Nobre explica que esse tipo de fenômeno pode ter um impacto um pouco diferente aqui do que nas regiões mais ao norte do planeta justamente porque o calor é mais comum. "Uma diferença importante é que, pelas características tropicais do país, as populações estão um pouco mais acostumadas com temperaturas altas — principalmente os moradores de regiões semiáridas no Nordeste", aponta o climatologista. "As ondas de calor são sentidas de forma diferente do que na Europa." No Brasil, onde o clima favorece as temperaturas mais altas, as mudanças climáticas, que impactam o mundo todo e a degradação de diferentes biomas podem levar a verões cada vez mais quentes, diz Turbay. "A gente observa pelos dados de séries históricas que temos o aumento da temperatura no território brasileiro também, principalmente em áreas que já são reconhecidas como de calor intenso, como o Centro-Oeste", afirma o professor da PUCPR. O recorde de calor registrado no Brasil foi justamente na região citada por Turbay. Em novembro de 2020, os termômetros chegaram a 44,8ºC em Nova Maringá, no centro-norte de Mato Grosso, segundo dados do Instituto Nacional de Meteorologia. O mesmo ano teve outras cidades com recordes de temperaturas: em 30 de setembro, Cuiabá (MT) alcançou 44ºC, e, em 1º de outubro, Água Clara (MS) chegou a 44,4ºC. "Coberturas verdes dando lugar a grandes áreas voltadas para a agricultura, a redução das áreas florestais na Amazônia e o ambiente do Cerrado, que já tem características de seca… Tudo isso contribui para a tendência da potencialização de eventos climáticos extremos", avalia Turbay. De abril a setembro, o Centro-Oeste, Sudeste e parte do Norte e Nordeste brasileiro experimentam uma temporada com pouca chuva. É durante o fim dessa estação seca que historicamente ocorrem os períodos de maior aquecimento nessas regiões. No sul do Brasil, por outro lado, os picos de calor acontecem durante o verão, quando a chuva é mais irregular e os dias, mais longos. “Em geral, durante o segundo semestre, ou seja, no final da primavera e verão, é esperado que a temperatura fique acima da média em grande parte do centro-sul do Brasil”, aponta Estael Sias, meteorologista do Metsul. "No entanto, no Sul, o El Niño pode trazer mais dias de chuva, o que tende a reduzir os períodos de calor mais persistentes para esta região — mas não exclui essa possibilidade, especialmente considerando o aquecimento global dos oceanos, que pode também contribuir para esses eventos extremos." A especialista aponta que os eventos extremos, como os observados na Europa, no entanto, têm o potencial de ocorrer em momentos diferentes do ano, sendo mais prováveis no Centro-Oeste entre setembro e novembro, e no Sul do Brasil durante o período de verão climático, que abrange dezembro a fevereiro. “Ainda é cedo para estipular temperaturas, mas modelos europeus preveem que podemos ter 2 ou 3 graus acima da média.” As temperaturas do planeta vêm se elevando nas últimas décadas. Especialistas apontam que esse fenômeno, conhecido como aquecimento global, é causado pelo acúmulo crescente de dióxido de carbono e outros gases causadores do efeito estufa na atmosfera, graças à queima de combustíveis fósseis e ao desmatamento. Quanto maior a quantidade de dióxido de carbono e outros gases na atmosfera, pior o impacto para a vida na Terra. Esses gases são responsáveis por absorver a radiação solar refletida pela superfície do planeta, o que faz com que o calor fique retido na atmosfera. Assim, o mundo fica cada vez mais quente, acelerando mudanças climáticas e aumentando o risco de eventos climáticos extremos, como as ondas de calor intensas vistas agora no Hemisfério Norte, além de incêndios naturais, monções e enchentes. Com as temperaturas aumentando em toda a Terra, há, segundo os especialistas, duas palavras de ordem: mitigação e adaptação. A mitigação envolve medidas a longo prazo para proteger o planeta. O objetivo do acordo é reduzir as emissões muito rapidamente, diminuindo-as em 50% até 2030, e alcançar emissões líquidas zeradas dos gases de efeito estufa antes da metade do século, seguido pela remoção significativa de dióxido de carbono da atmosfera na segunda metade do século. "No entanto, não estamos caminhando nessa direção, pois as emissões em 2022 foram as mais altas registradas desde o final do século 18, com a evolução industrial, principalmente crescendo muito nos últimos 50 a 60 anos em todo o mundo", avalia Nobre. "Portanto, a situação do clima é extremamente arriscada, mesmo que tenhamos sucesso total no acordo de Paris [acordo prévio que foi aperfeiçoado na COP26]", avalia Nobre. Já a adaptação, aponta Turbay, busca proteger a população mais vulnerável aos eventos climáticos extremos. "É o cenário que temos na América Latina, com uma população maior [em relação à Europa] em situação de vulnerabilidade", diz o professor. "Temos populações sofrendo por conta da seca, de deslizamentos de terra, chuvas… Além das próprias ondas de calor que devem se potencializar nos próximos verões. Por isso eu digo que é impossível dissociar o lado social do ambiental." Para que o país possa se proteger para os riscos dos eventos meteorológicos extremos, na avaliação do professor, além das mudanças globais, o Brasil requer uma política nacional forte e unificada. "A partir disso é que geramos políticas públicas mais locais com eficiência, para Estados e municípios."
2023-07-29
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0dkr9epnwdo
sociedade
'Meus pais iam me matar para limpar a honra da família': jovem trans conta como escapou de ser morto por preconceito na Índia
Quando Manoj — que foi registrado como sendo do sexo feminino no nascimento — disse à família, aos 17 anos, que se sentia como um homem e amava uma mulher, ele quase foi morto. Ele conta que seus pais se recusaram a aceitá-lo, amarraram suas mãos e pés, bateram muito nele e o prenderam em um canto da casa. Seu pai ameaçou matá-lo. "A violência foi além de qualquer coisa que eu havia imaginado", diz ele. "Pensei que qualquer que fosse a minha verdade, eu seria aceito, afinal de contas, era minha família. Mas meus pais estavam prontos para me matar em nome da sua honra." Para uma mulher na Índia rural, querer reivindicar o direito de se identificar como um homem trans pode levar a uma forte retaliação. Fim do Matérias recomendadas Manoj conta que foi retirado da escola do vilarejo, em um dos estados mais pobres da Índia — Bihar, no norte do país —, e obrigado a se casar com um homem com o dobro da sua idade. "Pensei até em tirar minha própria vida, mas minha namorada me apoiou em meio a isso tudo. Se estou vivo, e estamos juntos agora, é porque ela não desistiu de mim", afirma. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Agora com 22 anos, escondido em uma cidade grande desde o ano passado, Manoj e sua namorada, Rashmi, aguardam ansiosamente o veredicto da Suprema Corte em relação à petição em que pedem o direito legal de se casar. A Índia descriminalizou o sexo gay em 2018, mas os casamentos entre pessoas do mesmo sexo ainda não são reconhecidos. A Suprema Corte recebeu 21 petições neste ano solicitando a legalização — e uma decisão é esperada em breve. Enquanto outros defendem o direito ao casamento como uma questão de igualdade, a petição de Manoj e Rashmi, apresentada em conjunto com dois casais e quatro ativistas feministas LGBTQ+, argumenta que o casamento é uma saída para a violência física e mental brutal infligida a eles por suas próprias famílias. "O reconhecimento legal do nosso relacionamento é a única saída desta vida de medo", diz Manoj. A Índia tem meio milhão de pessoas transgênero, de acordo com o último censo em 2011, um número que os ativistas acreditam ser significativamente subestimado. Em 2014, a Suprema Corte decidiu que as pessoas trans deveriam ser reconhecidas como o terceiro gênero. Cinco anos depois, a Índia aprovou uma lei que proíbe a discriminação na educação, no mercado de trabalho e nos serviços de saúde — e criminaliza as ofensas contra elas, incluindo abuso físico, sexual, emocional e econômico. Mas a violência por parte das famílias é um desafio complexo. A maior parte das leis e da sociedade vê a família de sangue, por casamento ou adoção como o espaço mais seguro para os indivíduos, diz Veena Gowda, advogada feminista de Mumbai. "A violência familiar não é desconhecida para nenhum de nós, seja contra a esposa, filhos ou pessoas trans queer. Mas é conscientemente invisível, pois vê-la e reconhecê-la significaria questionar a própria instituição da 'família'", acrescenta. Gowda fez parte de um painel composto por um juiz aposentado, advogados, acadêmicos, ativistas e uma assistente social do governo que ouviu depoimentos detalhados da violência familiar enfrentada por 31 pessoas da comunidade LGBTQ+ em uma audiência pública a portas fechadas. As descobertas foram publicadas em abril deste ano em um relatório intitulado 'Apno ka bahut lagta hai' ("Os nossos são os que mais nos machucam", em tradução livre), que recomendava que as pessoas LGBTQ+ tivessem o direito de escolher sua própria família. "Vendo a natureza da violência enfrentada pelos depoentes, se eles não tiverem o direito de escolher sua própria família, livre de violência, isso equivaleria a negar a eles o próprio direito à vida e à vida com dignidade", avalia Gowda. "O direito de casar seria uma forma de criar esta nova família e redefini-la." Alguns meses após seu casamento forçado, Manoj tentou se reaproximar de Rashmi, mas foi flagrado por seu "cônjuge", que ele diz ter ameaçado agredir sexualmente os dois. Eles fugiram para a estação ferroviária mais próxima e embarcaram no primeiro trem que estava saindo, mas ele diz que foram encontrados pela família e levados para casa para uma nova rodada de espancamentos. "Ele estava sendo forçado a assinar uma 'carta de suicídio' que me culpava por sua morte", relembra Rashmi. A resistência de Manoj fez com que ele fosse trancafiado novamente, e seu telefone celular fosse confiscado. Só depois que Rashmi entrou em contato com um grupo feminista LGBT e a delegacia da mulher local, que eles conseguiram proteção, e Manoj escapou da casa da família. Eles foram para um abrigo do governo para pessoas trans, mas logo tiveram que se mudar porque Rashmi não é trans. Manoj também conseguiu o divórcio. Mas são poucos os sistemas de apoio que ajudam a escapar de famílias violentas e a construir uma vida nova. Koyel Ghosh, que adota o pronome de gênero neutro da língua inglesa "they", é responsável pela administração da Sappho for Equality, o primeiro coletivo lésbico-bissexual-transmasculino de direitos humanos no leste da Índia, criado há duas décadas. Ghosh se lembra claramente do dia, em 2020, em que recebeu um telefonema na central de atendimento sobre um casal que havia fugido para uma cidade no leste da Índia, mas teve que dormir na calçada por sete noites. "Alugamos um espaço e colocamos eles lá para que tivessem um abrigo temporário por três meses e pudessem se concentrar em conseguir um emprego, pois é a única maneira de construir uma vida nova", relembra. Além do estigma social, da ameaça de violência em casa, da educação interrompida e dos casamentos forçados, muitas pessoas trans também têm dificuldade de encontrar um emprego estável. O último censo da Índia mostrou que a taxa de alfabetização delas, 49,76%, era muito menor do que a do país, 74,04%. De acordo com uma pesquisa feita, em 2017, com 900 pessoas trans pela Comissão Nacional de Direitos Humanos em Déli e Uttar Pradesh, 96% tiveram empregos negados ou foram forçados a pedir esmola e se prostituir. A Saphho montou um abrigo para ajudar casais em fuga a reconstruir suas vidas — 35 casais ficaram alojados lá nos últimos dois anos. É um trabalho duro. Ghosh recebe de três a cinco telefonemas pedindo socorro diariamente e contata regularmente uma rede de apoio de advogados para encontrar soluções. "Recebi ameaças de morte, enfrentei multidões em vilarejos, hostilidade em delegacias de polícia, porque também revelo minha identidade queer, e eles simplesmente não conseguem lidar com isso", afirma. Quando Asif, um homem trans, e sua namorada, Samina, procuraram Ghosh, eles estavam na delegacia de polícia local em um vilarejo no leste da Índia. Samina alega que os policiais a chamaram de eunuco — e disseram que ela deveria ter morrido em vez de tornar público seu relacionamento. Amigos de infância que viraram amantes, eles haviam fugido de suas famílias duas vezes antes, mas acabaram sendo levados de volta. Esta era sua última chance de escapar, e eles precisavam de ajuda. "Só quando Ghosh chegou que o mau comportamento da polícia parou. Um superior repreendeu os subalternos por seu preconceito e ignorância em relação às leis como funcionários públicos”, diz Samina. Agora vivendo com segurança em uma cidade grande, o casal é um dos signatários da petição de Manoj e Rashmi na Suprema Corte. "Estamos felizes agora. Mas precisamos deste pedaço de papel, uma certidão de casamento, para deter nossas famílias e comunidade com o medo de penalidades ou ação policial", explica Asif. "Se a Suprema Corte não nos ajudar, podemos ter que morrer. Nunca seremos aceitos como somos, continuaremos foragidos, sempre com medo de sermos separados", acrescenta. Os nomes dos signatários da petição foram alterados para proteger suas identidades.
2023-07-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c25gpylxw5eo
sociedade
Derretimento de geleira revela corpo de alpinista desaparecido em 1986 nos Alpes
Restos humanos encontrados em uma geleira perto da famosa montanha Matterhorn, na Suíça, foram confirmados como sendo o corpo de um alpinista alemão desaparecido desde 1986. A descoberta é a mais recente de uma série de segredos de longa data que as geleiras alpinas, agora encolhendo rapidamente devido às mudanças climáticas, revelaram. O corpo foi descoberto no início deste mês por alpinistas que cruzavam a geleira Theodul acima de Zermatt. Eles notaram uma bota de caminhada e crampons (peça com picos metálicos, acoplada ao calçado e usada em montanhismo ou escalada) emergindo do gelo. A análise de DNA mostrou que o corpo era de um alpinista alemão, desaparecido há 37 anos. Uma grande operação de busca e resgate na época não conseguiu encontrar nenhum vestígio dele. Fim do Matérias recomendadas A polícia não identificou o alpinista, mas disse que ele tinha 38 anos quando desapareceu durante uma caminhada. A geleira Theodul, assim como as geleiras dos Alpes, registrou um recuo acentuado nos últimos anos. Ela faz parte da famosa região de esqui de Zermatt, a mais alta da Europa. Mas os campos de gelo alpinos são especialmente sensíveis ao aquecimento global. Até a década de 1980, o Theodul ainda estava conectado ao seu vizinho — a geleira Gorner — mas os dois agora se separaram. Seu dispositivo não consegue visualizar esta imagem Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quase todo verão, o derretimento do gelo revela algo, ou alguém, perdido por décadas. No ano passado, os destroços de um avião que caiu em 1968 emergiram da geleira Aletsch. Em 2014, o corpo do alpinista britânico desaparecido Jonathan Conville foi descoberto por um piloto de helicóptero que avistou algo incomum enquanto entregava suprimentos para um refúgio de montanha no Matterhorn — o pico mais famoso da Suíça. Conville estava desaparecido desde 1979. Sua família, que passou décadas sem saber seu destino, descreveu a sensação de poder ter certeza de que ele havia morrido em um ambiente que ele amava como "agridoce". Um ano depois, os corpos de dois alpinistas japoneses foram descobertos na borda da geleira Matterhorn. Eles haviam desaparecido em uma tempestade de neve em 1970. No ano passado, o derretimento do gelo mudou até a fronteira entre a Suíça e a Itália. A fronteira havia sido originalmente estabelecida na divisão de drenagem — o ponto em que a água derretida desce em direção a um país ou outro. O encolhimento da geleira significou que a posição da divisão de drenagem mudou. O famoso Rifugio Guide del Cervino, um chalé de montanha italiano muito amado por esquiadores e caminhantes, está agora tecnicamente na Suíça, e negociações delicadas entre os governos suíço e italiano estão ocorrendo para decidir como redesenhar a fronteira. Mas o derretimento do gelo tem consequências muito maiores do que uma briga diplomática sobre fronteiras ou a descoberta de alpinistas perdidos há muito tempo. As geleiras alpinas são fundamentais para o meio ambiente da Europa; a neve do inverno que eles armazenam enche rios europeus como o Reno e o Danúbio, fornecendo água para as plantações ou para resfriar usinas nucleares. Tanto neste ano como no ano passado, os níveis de água no Reno às vezes caíram a tal ponto que barcaças de carga que transportam suprimentos da Holanda pela Alemanha para a Suíça não puderam navegar. A água derretida também esfria os rios. Sem o efeito de resfriamento, a água fica muito quente, e os peixes morrem. Quase exatamente um ano atrás, os especialistas suíços em geleiras ficaram chocados com a extensão do recuo do gelo; as geleiras haviam perdido metade de seu volume desde 1931, um encolhimento muito mais rápido do que haviam previsto. Nesse ritmo, quase todas as geleiras alpinas vão desaparecer até o final deste século. Mas essa previsão foi feita no verão passado. Em 2023, a Suíça teve um de seus junhos mais quentes e secos. As três primeiras semanas de julho foram, globalmente, as mais quentes já registradas. Em agosto e setembro deste ano, os especialistas em geleiras medirão o gelo novamente e temem o que encontrarão.
2023-07-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-66336825
sociedade
Como prostitutas foram confinadas à força no bairro do Bom Retiro em São Paulo
Eram duas ruas estreitas, que corriam paralelas, cheias de homens. Das portas e janelas das casas geminadas, através de venezianas, mulheres vestidas com quimonos coloridos esboçavam acenos e gestos lascivos aos passantes. "Os seus estranhos movimentos faziam-nos rir. De vez em quando deixavam entrever um pedaço de seio nu: 'Vem cá, benzinho, vem cá!", conta o escritor Eliezer Levin na obra Bom Retiro. Policiais, médicos, ambulantes, mascates, funcionários públicos, comerciantes do bairro, trabalhadores da indústria de confecções e de pequenas oficinas, além de "desocupados, bandidos e muitos ébrios" buscavam prazer e diversão nas ruas Itaboca e Aimorés. Foi ali, entre 1940 e 1953, que funcionou a zona de meretrício do Bom Retiro – a única instalada por decreto do Governo de São Paulo e que lá ficou por 13 anos. Fim do Matérias recomendadas "Essa medida trará inúmeros benefícios: não só para facilitar o policiamento, como também, por oferecer um interessante campo para estudos sociais, defendendo, ao mesmo tempo, a ordem e a moralidade públicas", argumentava à época Ademar de Barros, interventor do Estado de São Paulo, nomeado pelo então presidente Getulio Vargas. Com a prostituição confinada nas duas ruas, em uma tentativa de livrar as demais regiões do Centro de São Paulo da prática, a zona cresceu sem controle. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Um levantamento de 1948, parte de estudo sobre o problema da sífilis na capital paulista, apontou que havia ali cerca de 150 casas de meretrício e mais de 1 mil prostitutas. "A maioria delas era de mulheres empobrecidas e migrantes brasileiras", relata o historiador Enio Rechtman, autor da tese de mestrado Itaboca, rua de triste memória: imigrantes judeus no bairro do Bom Retiro e o confinamento da zona de meretrício (1940 a 1953). "O centro da cidade na época era frequentado pela elite paulistana que não queria conviver com esses 'tipos perigosos'", completa o pesquisador, que ministra em agosto o curso "Bom Retiro 1938 – 1953: Meretrício confinado no bairro e imigrantes à procura de um lugar seguro", na Unibes Cultural. A zona do meretrício do Bom Retiro funcionou a poucas quadras de onde, oito décadas depois, o atual governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), cogitou realocar a Cracolândia – área que reúne centenas de consumidores de crack no Centro da capital paulista e se tornou uma crise complexa, que abarca da saúde e situação social dos dependentes, a questões de segurança e impacto para o mercado imobiliário. Sob uma enxurrada de críticas e até protesto no bairro, o governo estadual voltou atrás na proposta, informando que "novas possibilidades para solucionar o problema da Cracolândia estão sendo estudadas e serão divulgadas em breve". Conheça a história da zona do meretrício "oficial" do Bom Retiro e de como sua memória foi apagada deliberadamente pelo poder público paulistano. Naquele final de década de 1930, o Brasil vivia sob o Estado Novo, fase ditatorial da Era Vargas, que durou de 1937 a 1945. À época, Vargas ainda flertava com o fascismo – o Brasil só romperia com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão) em 1942 – e nomeou Ademar de Barros como interventor para o Estado de São Paulo. "Getúlio Vargas e Ademar de Barros nutriam ideais eugenistas [teoria baseada na genética de que seria possível criar uma 'raça humana superior'] e higienistas", diz Rechtman, lembrando que este período foi marcado por reformas urbanas nos centros de várias capitais brasileiras. "Acontece que, após 1937, apesar do golpe do Estado Novo e instauração da ditadura getulista que impôs repressão e controle severo sobre costumes, a prostituição alastrava-se pelo centro da cidade [de São Paulo]", observa Edison Loureiro no artigo O passado triste do Bom Retiro. Na capital, a prostituição, que no início do século 20 se concentrava nas ruas Líbero Badaró e São João, no Centro da cidade, espalhou-se com o alargamento dessas vias e, em 1930, tomava a Rua Amador Bueno (atual Rua do Boticário), Ipiranga (ainda não alargada) e Timbiras, lembra o pesquisador. Como interventor em São Paulo, Ademar de Barros inaugurou a estação de trem atualmente chamada de Estação Júlio Prestes. "Ele queria fazer bonito naquela região, mas, no entorno dali, havia muita atividade de prostituição", lembra Rechtman. As "pensões alegres" ou "casas de diversões noturnas" também incomodavam na região da Rua dos Timbiras, em um momento em que, na Avenida São João, começava a se formar a Cinelândia Paulista, local de lazer familiar, com cinemas, cafés, confeitarias e salões de dança. "Quando São Paulo começa a se urbanizar, é o momento em que a preocupação com a prostituição cresce", observa Margareth Rago, autora de Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930. "A prostituição existia em outras épocas, mas não era um problema. Vira um problema para as elites quando se entende que ela seria uma má influência para as mulheres ricas e castas. E isso passa para a classe trabalhadora – também os operários vão olhar para suas esposas e dizer que 'mulher que é mulher é rainha do lar', vendo a prostituição como uma ameaça." Ademar de Barros, que era médico de formação e chegou a estudar na Alemanha e na França nos anos 1920, se inspirou então no chamado regulamentarismo francês para propor o confinamento da zona do meretrício em uma região específica da cidade. O regulamentarismo foi criado na França no início do século 19, explica Rago. "A ideia era que o Estado tinha que interferir no espaço urbano para definir onde deveriam ficar os marginais, os loucos, as prostitutas e as 'pessoas normais'. Então há uma questão de poder, de interferir no território", observa a historiadora. "Em relação à prostituição, os regulamentaristas defendem que o Estado deve dizer onde os bordéis devem ser construídos, que tamanho eles devem ter, quantas pessoas podem estar lá. Então o Estado deveria ter um controle absoluto das 'casas de tolerância'." Rago vê pontos de contato entre a iniciativa de Ademar de Barros e a ideia, já abandonada, de levar a Cracolândia para o Bom Retiro. "Em ambos os episódios parece haver um objetivo de se agradar certos setores da sociedade, higienizando uma região e jogando um problema para outra mais afastada", diz a historiadora. Procurado, o Governo de São Paulo afirma que "ampliou as ações de assistência e saúde aos dependentes químicos, além de ter intensificado as atividades de policiamento no centro da capital". Em relação ao Complexo Prates, local no Bom Retiro cogitado para a realocação da Cracolândia, o governo afirma que "a proposta está sendo revista após novas avaliações". No final de 1939, Ademar de Barros também escolheu o Bom Retiro para levar adiante seu plano de confinar as prostitutas em uma zona restrita – mais especificamente, as ruas Aimorés e Itaboca. Rechtman explica a motivação geográfica para a escolha de Ademar. "Havia o muro da estação de trem, que separava o Bom Retiro dos Campos Elíseos, um bairro de classe média alta no período, onde ficava o palácio do governo", diz o pesquisador. Ele lembra que, à época, o Bom Retiro era uma espécie de "periferia do Centro", em um momento em que São Paulo ainda era uma cidade pequena. "Aquela região era perfeita para fazer um confinamento, porque, fechando duas ruas, era possível fechar um quarteirão inteiro e controlar o fluxo de entrada e saída de pessoas." E assim foi feito, com a instalação de cancelas com guardas nos acessos às ruas, diz Rechtman. "Controlava-se o movimento através da delegacia de costumes, que mantinha acompanhamento médico e fazia a profilaxia dos frequentadores através de delegacia, posto médico e farmácias locais", conta o pesquisador. Alguns historiadores destacam, porém, uma fala atribuída a Ademar de Barros para justificar a escolha do local: "É produto vosso, fica para vocês", teria dito o interventor. É que o Bom Retiro, tradicional bairro de imigração judaica, tinha fama por abrigar uma onda tardia de imigração de "polacas", como ficaram conhecidas as mulheres judias traficadas do leste europeu para serem exploradas sexualmente nas Américas, explica Rechtman. Desde o final do século 19, as polacas saíram da Europa e chegaram em cidades como Nova York, Buenos Aires e Rio de Janeiro. Segundo o pesquisador, no final da década de 1920, houve um movimento de expulsão de cafetões de Buenos Aires, o que acabou levando algumas dessas mulheres a vir para São Paulo. Mais velhas e agora sozinhas, algumas acabaram se tornando elas mesmas cafetinas e donas de pensões no bairro. "Esse é um passado que nenhuma comunidade quer lembrar", diz Rechtman, que é ele mesmo de família judaica, nascido e criado no Bom Retiro. Ele observa, porém, que não se deve confundir a prostituição das polacas do final do século 19 e início do século 20, com a da zona de baixo meretrício do Bom Retiro nos anos 1940. Não só são momentos históricos distintos, como demografias diferentes – uma de mulheres europeias emigradas, outra em sua maioria de brasileiras de baixa renda, destaca o pesquisador. "Se a expansão da prostituição para os lados da Rua dos Timbiras foi lenta, a ocupação das duas ruas do Bom Retiro foi de supetão, forçada e violenta", relata o pesquisador Edison Loureiro. Ele resgata um episódio que revela a transferência forçada de mulheres ao local. "O Anhanguera Futebol Clube, um time de várzea, resolveu uma noite comemorar a vitória do campeonato na Rua Itaboca e conta seu memorialista da surpresa que [todos] tiveram quando, no meio da farra e fogos de artifício, já madrugada, chegaram os camburões com mulheres e as despejaram pelas ruas. Talvez mais de cinquenta." Segundo o pesquisador, os camburões da polícia simplesmente invadiam as pensões declaradas "irregulares" e, sem aviso prévio, embarcavam todos para a zona confinada. Uma vez transferidas ao novo local, as prostitutas não ficavam presas ali, mas muitas moravam nas pensões onde trabalhavam. "A Itaboca era para os menos favorecidos e a Aimorés, para os remediados", relata Rechtman. Durante o dia, a região tinha o movimento de ruas comuns, onde circulavam "leiteiros, padeiros, verdureiros, catadores de papel e vendedores dos mais variados", segundo depoimento de Nuno Santana, colhido pelo pesquisador Guido Fonseca, autor de História da prostituição em São Paulo. "Ao entardecer, no entanto, as mulheres iam [se] postando junto às portas e janelas como em mostruários, à espera do desfile de homens que aumentava com a chegada da noite." O que o interventor de São Paulo planejou como uma solução para o problema da prostituição nas ruas da cidade só mudou o problema de lugar. Com o passar dos anos e aumento da concentração de bares, bordéis e profissionais do sexo, também cresceu o descontentamento local com a zona de meretrício. No seu mestrado, Rechtman recupera uma carta de leitor publicada em 8 de março de 1946 no jornal O Estado de S. Paulo. Exaltado, o senhor Valdomiro Borges Couto, autor da carta, citava diversas escolas próximas à zona, ao argumentar em favor da repressão ao local. "Imagine Senhor Redator, que os alunos dessas escolas transitam diariamente por esta Zona, viajando de bonde ou ônibus em promiscuidade com homens e mulheres da pior espécie", bradou o leitor. "Par disso inúmeros 'bars' se abriram como satélites do 'bas fond' e as orgias e as brigas se sucedem diuturnamente, com assassinatos, roubos, ferimentos, etc. Não se compreende como a Polícia não tome medidas drásticas (...)". Respondendo ao clamor popular, em junho de 1953, o então prefeito Jânio Quadros suspendeu todos os alvarás dos bares nas ruas Itaboca, Ribeiro de Lima, José Paulino e Aimorés. A desocupação final veio em 30 de dezembro, quando o então governador Lucas Nogueira Garcez anunciou uma ordem para extinção da zona de meretrício, às vésperas do Quarto Centenário de São Paulo, que seria comemorado em 1954 com grande pompa e circunstância. A desocupação, no entanto, não foi pacífica. No dia seguinte à ordem do governador, a polícia cercou o local, onde ainda trabalhavam pouco mais de 600 mulheres. "Logo as mulheres começam a sair à rua e protestar, algumas gritando e rasgando as roupas. Outras atiram móveis e utensílios pelas janelas”, relata Loureiro. “Na confusão generalizada uma prostituta chamada Antônia, moradora da Rua Aimorés, tem um colapso e morre no local. A notícia se espalha causando mais revolta." Furando o cerco policial, um grupo de prostitutas invadiu o comércio da Rua José Paulino e três delas foram gravemente feridas por um comerciante armado com uma barra de ferro. A confusão só acabou com a chegada do Batalhão de Choque e dos Bombeiros, que atacaram a multidão com jatos d'água e cassetetes. Com o fim da zona no Bom Retiro, a prostituição migrou para o bairro dos Campos Elíseos, em pensões nas Alamedas Cleveland, Glete e Nothman, dando início ao período da chamada "boca do lixo" como principal centro de baixo meretrício da cidade de São Paulo. Para além de acabar fisicamente com a zona de meretrício do Bom Retiro, o poder público paulistano se esforçou em apagar também a memória do local. Em 1957, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou um projeto de lei mudando o nome da Rua Itaboca para Rua Professor Cesare Lombroso. Ao propor a mudança, o vereador autor do projeto argumentava que a Rua Itaboca era um local de "triste memória". A historiadora Margareth Rago observa a ironia na escolha do novo nome. Cesare Lombroso (1835-1909), um médico e criminologista italiano, acreditava haver características físicas específicas que tornavam determinadas pessoas propensas à criminalidade. Ele foi autor de livros como O homem criminoso (1871) e A Mulher Delinquente: A Prostituta e a Mulher Normal (1893, em coautoria com Guglielmo Ferrero). "Para Lombroso e Ferrero, a prostituição não seria resultado de condição social, mas de distúrbios biológicos que poderiam ser identificados por traços como tamanho do queixo, posição dos olhos, construção das orelhas. A prostituta, mais do que o homem criminoso, era, nesta visão, uma degenerada", resume a sinopse brasileira da obra de Lombroso e Ferrero. Ao relacionar criminalidade e características físicas, a obra de Lombroso é muito criticada por ter dado um verniz científico a preconceitos, estereótipos e discriminação contra minorias. No entanto, observa Rago, a escolha do nome é tratada com tanta naturalidade, que existe hoje, onde um dia foi a antiga Rua Itaboca, um shopping center chamado Lombroso Fashion Mall. *Com a colaboração de Caroline Souza e da equipe de Jornalismo Visual da BBC.
2023-07-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c809r452n4yo
sociedade
Como é viver em 5 das cidades consideradas as melhores do mundo
Depois da crise gerada pela pandemia de covid-19, a qualidade de vida voltou a aumentar em muitas cidades do mundo. Mais especificamente, a qualidade de vida geral atingiu o pico nos últimos 15 anos, de acordo com o Índice Anual de Habitabilidade Global da The Economist Intelligence Unit. O ranking avalia 173 cidades em fatores como estabilidade, saúde, cultura e meio ambiente, educação e infraestrutura. O aumento da qualidade de vida se deve em grande parte a melhorias na saúde e na educação na Ásia, Oriente Médio e África. O fim das restrições da pandemia em todo o mundo também elevou os índices de cultura e meio ambiente, já que eventos e exposições voltaram com força total. Fim do Matérias recomendadas Embora um índice possa mostrar dados sobre o que torna um lugar habitável, são as pessoas que o vivenciam dia após dia que podem falar melhor sobre como é realmente viver em um local. Conversamos com residentes de algumas das 5 principais cidades com as melhores classificações para descobrir por que eles gostam de morar nesses locais. Para a capital austríaca, a posição de número um no índice de melhores locais para viver não é novidade. Ela só perdeu o prêmio brevemente em 2021, quando o fechamento da pandemia afetou seus museus e restaurantes. Com pontuações perfeitas para estabilidade, saúde, educação e infraestrutura, Viena é muito mais do que a soma de suas partes, de acordo com os residentes. "Basicamente, você tem todo um ciclo de vida em um só lugar", explica Manuela Filippou, gerente do restaurante Konstantin Filippou, com duas estrelas Michelin, e de um bar de vinhos naturais. Essa cidade histórica tem um sistema de transporte público confiável, as creches são acessíveis e é fácil chegar a cafés, teatros e até vinícolas da região. Tudo isso faz com que Viena pareça um local de férias atemporal, diz Filippou. "Às vezes, quando estamos sobrecarregados de trabalho e incapazes de viajar por muito tempo, nem percebemos porque podemos satisfazer nossa fome de tudo isso dentro dos limites da cidade", acrescentou Filippou. Para Richard Voss, residente em Viena e gerente de vendas e marketing do hotel Das Tigra, a qualidade de vida da cidade é aprimorada por sua rica história cultural e pelas atividades disponíveis. "Viena tem muitos edifícios históricos impressionantes, incluindo o Palácio de Schönbrunn, o Hofburg ou a Prefeitura de Viena", diz ele. "A cidade também é conhecida por sua tradição musical. Compositores famosos como Mozart, Beethoven e Strauss viveram e trabalharam aqui." Voss lembra que toda essa história também permeia os diversos museus, teatros e óperas da cidade. Ele também recomenda mergulhar na história culinária de Viena, degustando pratos tradicionais como o wiener schnitzel (algo como uma carne empanada) e o bolo sacher (um tipo de bolo de chocolate muito conhecido na região). Ou visite os vários mercados, como o Naschmarkt, para desfrutar de comida fresca e especialidades locais. Tanto Melbourne quanto Sydney recuperaram suas posições no ranking (3º e 4º, respectivamente) depois de cair no índice durante a pandemia que afetou o sistema de saúde australiano e levou a bloqueios prolongados. Melbourne, em particular, obteve a pontuação mais alta do país em cultura e meio ambiente, características que os moradores adoram. "Melbourne tem uma culinária incrível, cultura, cena artística, bem como eventos e atrações, além de ser o lar de todos os maiores esportes e eventos internacionais, incluindo o Grande Prêmio da Austrália de Fórmula 1 e o Aberto da Austrália de tênis", diz Jane Morrell, ativista da deficiência e fundadora da Carer Solutions. Ela também diz que a cidade é fácil de se locomover, com bondes fáceis de usar circulando pelo distrito central e outros bairros. Além disso, a cidade fica a uma curta distância de carro das praias e da região de vinícolas, que tem fama mundial. Para a blogueira Kimmie Conner, natural da Califórnia, a cidade supera um pouco as outras cidades. "Existem lugares como Sydney que você sabe que são lindos assim que os vê. Tem vistas deslumbrantes, costas e edifícios icônicos. Mas Melbourne não é uma cidade de monumentos, é uma cidade de cultura. E descobrir isso requer um pouco mais de esforço na pesquisa”, diz Conner, que escreve em "Adventures & Sunsets". Ela afirma que prefere Melbourne a qualquer outra cidade. "Para descobrir o que está acontecendo em Melbourne, tudo o que você precisa fazer é entrar em um pequeno café em um beco colorido e ser servido com um dos melhores cafés da sua vida." “Recomendo experimentar os menus de degustação nos restaurantes de especialidades da cidade e beber coquetéis em bares escondidos, muitas vezes escondidos atrás de portas ou armários secretos”, acrescentou. A população de Melbourne é muito acessível e amigável. Não há nada que essa cidade brilhante não possa oferecer. Conner acredita que as pessoas inicialmente são mais acolhedoras em Melbourne do que em Sydney, enquanto Morrel também cita a atitude positiva dos moradores como um fator que torna a vida mais agradável na cidade. Três cidades canadenses (incluindo Calgary e Toronto) ficaram entre as 10 primeiras deste ano. Mas Vancouver ficou em primeiro entre elas (5º) por suas pontuações culturais e ambientais, características que os residentes imediatamente apontam em seu amor pela cidade. "De Vancouver, é muito fácil chegar às florestas, ao mar ou às montanhas", diz Tony Ho, morador e pequeno empresário. "Nosso sistema de transporte permite que você vá da bela English Bay até o topo da cidade na Grouse Mountain, tudo no mesmo dia e você pode fazer isso de ônibus, bicicleta, trem e barco." Ele também adora a culinária diversificada da cidade, um reflexo da composição multicultural de Vancouver, onde você pode encontrar de tudo, desde injera etíope a momos tibetanos. "A cultura gastronómica e a origem de quem a cozinha está sempre crescendo.” Como pai de uma criança pequena, Ho também aprecia os muitos parques e praias, todos a menos de 20 minutos do centro da cidade. "É algo que quero que meu filho tenha acesso pelo resto da vida", diz ele. Empresários de outros países também são atraídos por políticas de imigração favoráveis. "Como empresário e imigrante da Croácia, eu estava procurando uma cidade que promovesse o crescimento dos negócios, mas também fosse vibrante e receptiva", diz Joe Tolzmann, diretor-executivo da plataforma móvel RocketPlan. "Vancouver é perfeita para começar um negócio porque há muitos trabalhadores qualificados. Sempre há alguém que você pode contatar ou serviços a quem recorrer em todas as fases de seu empreendimento comercial. A comunidade empresarial aqui é extremamente solidária e inclusiva." Além dos negócios, a paisagem sempre oferece boas alternativas para o descanso. "Quando preciso de uma pausa, tenho o oceano de um lado e as montanhas do outro", acrescenta Tolzmann. Classificada em 10º lugar no índice e o único país asiático a chegar ao top 10, Osaka obteve uma pontuação 100 em estabilidade, atenção médica e educação. À medida em que o custo de vida continua reduzindo o ingresso em muitos lugares em todo o mundo, a acessibilidade em Osaka também é uma grande vantagem para os residentes. "Alugar em Osaka não é caro em comparação com outras metrópoles do Japão e do mundo", diz Shirley Zhang, natural de Vancouver. "Meu aluguel é aproximadamente [o equivalente a] US$ 520 (cerca de R$ 2,4 mil) por mês com água, internet e taxa de manutenção incluídos. Embora o apartamento seja pequeno, é novo e limpo. Se eu alugasse um lugar como o meu em Vancouver, não me custaria menos de US$ 900 (cerca de R$ 4,2 mil)”. Sair para jantar em restaurantes e gastar pouco também é uma das coisas mais destacadas pelos moradores. "Ao contrário do Reino Unido, de onde eu sou e onde jantar fora pode custar caro, Osaka oferece refeições de qualidade a preços surpreendentemente baratos", diz James Hills. "Você pode se dar ao luxo de comer em restaurantes todos os dias." A cidade também parece mais segura do que outras grandes cidades. “Me sinto muito segura a caminhar sozinha para casa, mesmo durante a noite", diz Zhang, acrescentando que nunca se preocupa com o roubo da sua carteira ou mala, mesmo quando deixa esses itens sem supervisão. "A cidade e seus arredores têm uma extensa rede ferroviária", diz Jonathan Lucas, especialista em marketing do Departamento de Turismo de Osaka. "É rápido e fácil sair da cidade por um dia e explorar outros lugares incríveis como Kyoto, Nara e Kobe." Auckland subiu mais de 25 posições em relação ao ano passado, devido em grande parte à sua reabertura atrasada pela pandemia, onde as restrições e bloqueios não foram totalmente suspensos até setembro de 2022. Juntamente com sua pontuação perfeita em educação, a cidade também teve a pontuação mais alta em cultura e meio ambiente entre as 10 melhores cidades. "Você pode encontrar uma bela praia isolada provavelmente a apenas 20 minutos de carro de Auckland, se não mais perto", diz a moradora Megan Lawrence, que escreve para o My Moments and Memories. "Temos um parque aquático incrível logo ali na esquina, com tantas formas de aproveitá-lo. Da mesma forma, a cidade é cercada por belas matas nativas, de onde é fácil fugir e não se sentir na cidade." Como a maior cidade da Nova Zelândia, os residentes também se beneficiam de eventos de classe mundial, incluindo a Copa do Mundo Feminina da FIFA, que está acontecendo atualmente. "Temos os melhores shows, espetáculos e eventos esportivos bem na nossa porta", diz o residente Greg Marett da empresa de turismo AAT Kings. "Na próxima semana, vou ver uma exposição sobre a época dos faraós no Egito no Museu de Auckland." Ele também enfatiza a beleza do impressionante porto da cidade, com iates e veleiros atracados que justificam o apelido de "A Cidade das Velas". E ele recomenda que os visitantes explorem o Museu Marítimo de Auckland para aprender sobre a história marítima da cidade e a história da Nova Zelândia na competição da Copa América de Vela. Como um país relativamente jovem e culturalmente diversificado, a Nova Zelândia adota e se adapta às culinárias de todo o mundo, então tanto os restaurantes quanto os supermercados oferecem muitas opções, diz Lawrence. Mas o que realmente faz dela um bom lugar para se viver é a simpatia das pessoas. "A maioria das pessoas são amigáveis, dispostas a ajudar e sempre cumprimentam você alegremente quando você passa por elas em uma caminhada", disse. "Adoro como as pessoas aqui são abertas, sempre com um sorriso e um olá."
2023-07-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy7yp8g3jweo
sociedade
Por que filme de Bollywood é acusado de banalizar Holocausto
Uma organização judaica escreveu para a Amazon Prime pedindo ao serviço de streaming que remova o filme de Bollywood Bawaal de sua plataforma por seu "retrato insensível" do Holocausto. O Simon Wiesenthal Center diz que o filme banaliza o "sofrimento e o assassinato sistemático de milhões". Muitos na Índia também criticaram o filme pela forma como usou o Holocausto no drama romântico. Mas o elenco e o diretor consideraram as críticas injustificadas. Desde que o filme estreou no Prime Video na última sexta-feira, críticos de cinema e telespectadores questionaram algumas cenas e diálogos que traçam um paralelo entre a história de amor dos protagonistas e o Holocausto. Fim do Matérias recomendadas O filme inclui uma cena de fantasia dentro de uma câmara de gás e usa o líder nazista Adolf Hitler e o campo de extermínio de Auschwitz como metáforas. É estrelado pelos atores populares Varun Dhawan e Janhvi Kapoor nos papéis principais como um casal recém-casado, viajando pela Europa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele é professor de história e seu objetivo é fazer vídeos curtos no Instagram para ensinar sobre a Segunda Guerra Mundial a seus alunos, e ela espera fazer uma última tentativa de salvar seu casamento fracassado. Sites que acompanham o desempenho de filmes de Bollywood anunciaram que Bawaal é um sucesso comercial - eles dizem que já atraiu entre seis e sete milhões de visualizações e, na quinta-feira, o aplicativo Prime Video o mostrou liderando a lista "Top 10 na Índia". Mas desde o seu lançamento, o filme tem sido notícia por outros motivos - não recebeu muitas críticas positivas, com os críticos apontando que o uso de imagens e diálogos do Holocausto foi de mau gosto. Em uma cena, Hitler é usado como uma metáfora para descrever a ganância humana, com o personagem interpretado por Kapoor dizendo: "Somos todos um pouco como Hitler, não somos?" Em outro exemplo, ela diz que "todo relacionamento passa por Auschwitz" - uma referência ao campo de extermínio da Alemanha nazista onde quase um milhão de judeus foram mortos. Em uma recriação dos horrores do acampamento, o casal vestido com roupas listradas é colocado dentro de uma câmara de gás, onde são cercados por pessoas que gritam e sufocam. Na terça-feira, a organização judaica de direitos humanos Simon Wiesenthal Center também se juntou às críticas - disse em um comunicado que Auschwitz não deveria ser usado como uma metáfora, pois é um "exemplo por excelência da capacidade do homem para o mal". "Ao fazer o protagonista deste filme declarar que 'Todo relacionamento passa por Auschwitz', Nitesh Tiwari [o diretor] banaliza e rebaixa a memória de seis milhões de judeus assassinados e milhões de outros que sofreram nas mãos do regime genocida de Hitler, ", disse o comunicado. "Se o objetivo do cineasta era obter relações públicas [publicidade] para seu filme, supostamente filmando uma sequência de fantasia no campo de extermínio nazista, ele conseguiu", acrescentou. O comunicado também pedia à Amazon Prime que "parasse de monetizar" o filme e o removesse imediatamente de sua plataforma. Embora os produtores do filme ainda não tenham respondido à declaração, Dhawan havia dito em uma entrevista anterior durante a turnê promocional do filme que as pessoas se ofendiam com pequenas coisas nos filmes hindi, mas tendiam a dar mais liberdade aos filmes ingleses. O diretor Nitesh Tiwari disse que os filmes não devem ser vistos com uma "lente de aumento" porque então "você encontrará problemas em cada obra criada".
2023-07-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clj5g6xnk97o
sociedade
'Não é esmola, é reparação histórica': os quilombolas visitados por Lula em campanha que esperam demarcação há 18 anos
Durante a campanha eleitoral de 2022, o então candidato e agora presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) visitou um quilombo no interior de Minas Gerais e postou foto em que ele e a agora primeira-dama aparecem sorridentes ao lado de integrantes da comunidade. Em junho, Lula voltou a falar deste quilombo, quando lançou o Plano Safra para Agricultura Familiar, no Palácio do Planalto. O presidente mencionou visita durante mandato anterior. "Quando era presidente, a gente reconheceu um quilombo na cidade de Contagem. Eu fui lá o ano passado. Esse quilombo não foi legalizado ainda. (...) passaram 15 anos e a gente não conseguiu legalizar”, disse Lula. Arturos, o quilombo que ficou na memória de Lula, foi criado há cerca de 133 anos. Ele é considerado uma das comunidades originais do país e reconhecido como Patrimônio Imaterial pelo Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha-MG). Hoje, vivem naquela propriedade coletiva e no seu entorno 180 famílias, em um total de 700 pessoas, com uma cultura e folclore próprios, herdados de seus ancestrais de origem africana, passando seus costumes, músicas, danças e ritos de geração em geração. Fim do Matérias recomendadas Eles aguardam, há quase duas décadas, a regularização fundiária oficial — que os líderes argumentam que protegeria os quilombolas, por exemplo, de perder as terras para outros grupos e facilitaria aplicação de políticas públicas no local. A comunidade foi certificada como quilombola pela Fundação Cultural Palmares em 2004 — o primeiro passo no processo de titulação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A etapa seguinte geralmente é ter um processo aberto no Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o principal órgão que gere esse processo, embora outros, como o Ministério Público Federal, possam estar envolvidos. No Incra, os passos incluem a Elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTDI), publicação desse relatório, homologação pelo governo (reconhecimento do território como quilombola pelo poder federal), desapropriação (tirar outros grupos da terra quando necessário), e por fim, a chamada regularização fundiária. Para os Arturos, o processo só começou de fato no ano seguinte da certificação pela Fundação Cultural Palmares, em 2005. Hoje, 18 anos mais tarde, é considerada a principal reivindicação da comunidade, e, segundo o Incra, não é possível saber quando e se esse processo será concluído. O gestor da associação que administra o quilombo Arturos e um dos articuladores da campanha pela titulação, João Pio de Souza, de 59 anos, cobrou agilidade do presidente. “Estamos sofrendo especulação imobiliária e queremos nosso direito de preservar a sobrevivência e tradições — algumas delas que só existem aqui. Mas o processo é burocrático, o que é correto, mas poderia ser mais rápido. Dissemos isso ao Lula”, afirmou. Defensores da regularização de terras apontam que ela é fundamental para a garantia de direitos às comunidades quilombolas já previstas na Constituição e que representam uma segurança para as comunidades. Críticos das demarcações dizem que elas podem violar direito à propriedade privada ou ter um suposto impacto negativo no desenvolvimento econômico e disputas territoriais com outros grupos. A situação dos Arturos não é incomum. De acordo com o IBGE, existem atualmente 494 territórios quilombolas oficialmente delimitados e 4.859 comunidades fora de terras oficialmente delimitadas. Este número, quase dez vezes maior, está em revisão, a partir de dados coletados recentemente. Apesar desta contagem, uma dúvida persistia sobre essa população. Não havia até agora estimativas oficiais de quantos quilombolas vivem no Brasil. Isso mudou com a divulgação pelo IBGE nesta quinta-feira (27/8) de parte dos resultados iniciais do Censo 2022, o primeiro a contar os quilombolas na história do país. Há mais de 1,3 milhão de pessoas autodeclaradas quilombolas no Brasil, segundo esses dados. Quase nove em cada dez quilombolas (87,4%) vivem em territórios ainda não oficialmente titulados, como o quilombo Arturos, enquanto só 12,6% estão em territórios delimitados. Marta Antunes, responsável pelo Projeto de Povos e Comunidades Tradicionais do IBGE, diz que os resultados do Censo superaram as expectativas dos pesquisadores. Eles antes baseavam seus conhecimentos apenas em registros administrativos do Cadastro Único e os dados de vacinação quilombola do DataSUS, explica Antunes. As informações do IBGE mostram, por exemplo, que a região Nordeste concentra mais de dois terços desta população (veja mais detalhes abaixo). Que ali estivesse boa parte dos quilombolas já era esperado pelos pesquisadores, porém o índice de mais de 60% chamou atenção dos especialistas ouvidos pela reportagem. Surpreendeu, ainda, a existência de 55 municípios com mais de 5 mil quilombolas e a presença deles em 1.696 do total de 5.568 municípios do país, diz Antunes. Os Arturos compõem um grupo familiar que descende de Camilo Silvério da Silva, que chegou ao Rio de Janeiro em um navio negreiro vindo de Angola em meados do século 19. Logo após a chegada, Camilo foi enviado a Minas Gerais para trabalhar num povoado situado na Mata do Macuco, antigo município de Santa Quitéria, hoje Esmeraldas. Lá, trabalhou nas minas e como tropeiro nas lavouras. Casou-se com a escrava alforriada Felismiba Rita Cândida, com quem teve seis filhos. Entre os irmãos, Artur Camilo Silvério foi o que mais prosperou. Nasceu em 1885, época da Lei do Ventre Livre, que determinou que os bebês de mulheres escravizadas não teriam o mesmo destino que elas, e casou-se com Carmelinda Maria da Silva. O casal teve 10 filhos e se estabeleceu em Contagem, na localidade conhecida então conhecida como Domingos Pereira, onde adquiriram a propriedade na qual ainda vivem seus descendentes. “Um pedaço de terra, para boa parte do Brasil, é para gerar riqueza, para pôr no mercado. Para nós, é sobrevivência e cultura. A titulação não é um pedido de esmola para o Estado — é nosso direito e uma reparação histórica por todos os anos de escravidão”, diz João Pio, que além de articulador da comunidade, também é superintendente de Política para a Promoção da Igualdade Racial da Prefeitura Municipal de Contagem. O Incra disse à BBC News Brasil que o processo de regularização da Comunidade Quilombola dos Arturos está em fase de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID). “Trata-se do levantamento de informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, socioeconômicas, ambientais, históricas, etnográficas e antropológicas, que são obtidas em campo, com a comunidade e com outras instituições públicas e privadas. O relatório tem como objetivo identificar os limites de cada território.” A autarquia afirmou, ainda, que não é possível definir o tempo médio para concluir processos desta natureza. “A atividade é complexa, composta por várias etapas, e depende de informações de terceiros — particulares e públicos”, disse em nota, reiterando que o processo de identificação e a regularização fundiária não é competência exclusiva do Incra, mas também envolve União, Distrito Federal, dos estados e dos municípios. A regularização de terras, avalia Milene Maia, coordenadora do Programa de Política e Direito Socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA), é fundamental para a garantia de direitos às comunidades quilombolas já previstas na Constituição Federal de 1988. “A titulação permite uma segurança das comunidades em relação à proteção e ao uso do seu território. Uma vez que o seu território não está oficialmente reconhecido, isso possibilita conflito com terceiros que disputam essa área.” Outro fator importante, lembra João Pio, é que, com a titulação, a população passa a ter gerenciamento completo do seu território, podendo escolher, por exemplo, como deseja fazer o cultivo agrícola e como organizar as escolas dentro das comunidades. O processo para conseguir a regularização das terras, no entanto, é caracterizado por Maia como “tortuoso e longo”. “A revisão da instrução normativa é urgente, inclusive é uma demanda do movimento quilombola, para que o executivo possa, em especial o Incra, revisar os passos e agilizar a parte burocrática. Temos mais de 1.800 processos abertos no Incra que também não avançam, o que mostra como é gritante a morosidade do processo de titulação.” No governo anterior, o ex-presidente Jair Bolsonaro se posicionava de forma abertamente contra a titulação de terras quilombolas. Meses antes de ser eleito, Bolsonaro prometeu que não alocaria recursos financeiros à causa e se referiu a um integrante da comunidade com uma medida de peso usada para animais. “Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Eles não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve (...) Pode ter certeza que, seu eu chegar lá, não vai ter dinheiro para ONG (…). Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena ou para quilombola”. A promessa foi parcialmente levada em frente: seu governo emitiu apenas 12 títulos de terras quilombolas, a média histórica mais baixa de 1995, segundo divulgou o Jornal da Cultura, com dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação. Até agora, com um semestre do novo governo Lula, foram contabilizadas três titulações parciais, 21 Portarias de Declaração (um passo inicial no processo) e três Relatórios de Identificação e Delimitação (RTID) de Terras Quilombolas. É o que aponta o levantamento realizado pela Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP). Na avaliação de Fernando Damasco, gerente de Territórios Tradicionais e Áreas Protegidas do IBGE, o conhecimento sobre a diversidade territorial pode ajudar na criação de políticas públicas que atendam as necessidades diversas das diferentes comunidades. “Esse panorama certamente permitirá o aperfeiçoamento da atuação dos órgãos que executam políticas públicas destinadas aos quilombolas, aumentando a eficácia e a precisão das ações e o direcionamento de investimentos para melhorar as condições de vida dessa população.” Embora a primeira versão não conte com detalhes como renda e escolaridade desses grupos, há informações inéditas sobre seu recorte espacial. O censo mostra que no Nordeste residem 68,19% dos quilombolas do país. A Bahia concentra 29,90% desta população e o Maranhão vem a seguir, com 20,26%. Juntos, os dois estados abrigam 50,16% da população quilombola do país. O Censo também afirma que há pelo menos um morador quilombola em 473.970 domicílios pelo Brasil. Dos 5.568 municípios do país, 1.696 tinham moradores quilombolas, mas destes, apenas 326 tinham territórios delimitados. “Mapeando as populações quilombolas no Brasil, trazemos visibilidade e reconhecimento do Estado para essas comunidades. Isso possibilitará a implementação de políticas públicas mais eficazes em níveis nacional, estadual e municipal”, diz Maia. De acordo com a especialista, a dificuldade no enfrentamento da covid-19 mostrou quão prejudicial a falta de informações pode ser na hora de criar planos específicos para comunidades originárias — algo que pode ser evitado com dados precisos. Para João Pio, a expectativa é que políticas públicas alcancem os territórios das comunidades tradicionais. “Em todos os campos: saúde, educação, a geração de renda, a pauta da agricultura familiar, que caracteriza muitas comunidades quilombolas, e da educação — inclusive com acesso ao ensino superior. E [o Censo] é importante sobretudo para nós, das comunidades, que com mais conhecimento sobre os quilombos poderemos revindicar a garantia e proteção dos nossos direitos.”
2023-07-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9ekgzy0k5ro
sociedade
Óvnis nos EUA? O que Congresso americano quer investigar sobre o tema
Se a verdade está lá fora, o Congresso dos Estados Unidos quer saber. A Câmara dos Deputados convocou uma audiência histórica sobre fenômenos aéreos não identificados (UAPs, na sigla em inglês), mais conhecidos como objetos voadores não identificados (óvnis), nesta quarta-feira (26/7), no reconhecimento mais sério de que os avistamentos misteriosos merecem atenção nos níveis mais altos do governo. Os legisladores americanos "não estavam trazendo homenzinhos verdes ou discos voadores para a audiência... vamos apenas chegar aos fatos", disse o republicano Tim Burchett no início da reunião. No entanto, o testemunho às vezes se desviava para o desconhecido. Ao longo de duas horas, três testemunhas relataram seus encontros com objetos que desafiavam a física e contaram sobre pilotos com medo de falar, material biológico recuperado de embarcações e supostas retaliações contra denunciantes. Fim do Matérias recomendadas Todos reconheceram que os fenômenos anômalos eram uma ameaça potencial à segurança nacional. A audiência não chegou a qualquer conclusão mais séria – nem a uma confirmação de vida alienígena – mas o fato de que as testemunhas receberam uma grande atenção perante o Congresso foi notável por si só. Parlamentares e testemunhas usaram o episódio para exigir "maior transparência" dos militares sobre os óvnis. O comandante aposentado da Marinha dos EUA, David Fravor, mais uma vez relatou seu encontro com óvnis em 2004 que se moviam de uma maneira que confundia os aviadores, cujas imagens foram divulgadas em 2017 e verificadas publicamente pela Marinha dos EUA dois anos depois. "A tecnologia que enfrentamos era muito superior a qualquer coisa que tínhamos, temos hoje ou pretendemos desenvolver nos próximos 10 anos", disse Fravor. David Grusch, um ex-oficial de inteligência da Força Aérea, deu a entender que funcionários do governo haviam escondido informações e punido denunciantes, mas afirmou que não poderia elaborar mais em público devido a leis de sigilo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nancy Mace, uma republicana da Carolina do Sul, pediu a Grusch que explicasse o que ele sabia sobre corpos não terrestres. Ela perguntou a ele se materiais "biológicos" foram recuperados de qualquer possível resquício de óvni que teria sido recuperado pelo governo. Referindo-se a entrevistas anteriores à mídia, Grusch respondeu que "materiais biológicos vieram com algumas dessas recuperações". Eles eram humanos ou não humanos? perguntou Mace. "Não-humano, e essa foi a avaliação de pessoas com conhecimento direto sobre o programa com quem conversei", respondeu Grusch. Posteriormente, enquanto respondia a outras questões, ele confirmou que nunca tinha visto pessoalmente um corpo alienígena. As testemunhas pediram um processo de denúncia oficial para militares ou membros do público relatarem avistamentos inexplicáveis. "Precisamos de um sistema em que os pilotos possam relatar sem perder seus empregos", disse Ryan Graves, diretor executivo da Americans for Safe Aerospace e ex-piloto de caça da Marinha americana, uma das testemunhas ouvidas nesta quarta. O Congresso parecia ansioso para conceder esse pedido até o final da sessão. “Os óvnis, sejam eles quais forem, podem representar uma séria ameaça para nossas aeronaves militares e civis, e isso deve ser entendido”, disse Robert Garcia, um democrata da Califórnia. "Devemos encorajar mais relatórios. Quanto mais entendermos, mais seguros estaremos." Enquanto os legisladores republicanos e democratas levaram os assuntos a sério, alguns expressaram ceticismo de que a atividade extraterrestre estava em andamento. Eric Burlison, um republicano do Missouri, tentou lançar dúvidas no conceito de que os pilotos viam objetos alienígenas. Ele disse que achava difícil acreditar que seres que poderiam viajar bilhões de quilômetros para chegar até nós seriam "incompetentes" o suficiente para cair na Terra. Ele perguntou se algum dos óvnis poderia realmente ser criado por empreiteiros militares ou pertencer a programas de agências secretas que outras entidades governamentais haviam ocultado. A aceitação pública de Washington dos óvnis como uma questão política se moveu com a mesma velocidade surpreendente dos objetos misteriosos, indo de reuniões sombrias nos bastidores com um punhado de entusiastas a um painel televisionado completo que recebeu o mesmo questionamento sério que qualquer outro assunto de segurança nacional. Em 2017, a questão veio à tona quando o The New York Times noticiou a existência de um programa secreto do Pentágono para investigar fenômenos aéreos não identificados. O programa foi apoiado pelo ex-líder da maioria no Senado, Harry Reid, que representou o estado de Nevada - e, portanto, a Área 51. O New York Times, assim como uma organização chamada To The Stars Academia de Artes e Ciências, também publicaram três vídeos mostrando encontros inexplicáveis ​​com óvnis. Desde aquela época, os militares dos EUA gradualmente reconheceram esses encontros, mas se recusaram a especular sobre suas origens. Investigar óvnis, agora conhecidos por muitos como UAPs, se tornou uma rara questão bipartidária no Congresso. Legisladores de ambos os partidos pediram investigações e transparência militar. Em 2022, o Comitê de Inteligência da Câmara realizou uma audiência sobre o programa secreto do Pentágono. A Nasa fez uma audiência pública sobre o assunto em junho. Os ex-presidentes Barack Obama, democrata, e Donald Trump, republicano, abordaram a questão em entrevistas públicas. O porta-voz do Conselho de Segurança Nacional, John Kirby, disse que tem a mente aberta sobre o tema. "O que acreditamos é que existem fenômenos aéreos inexplicáveis ​​que foram citados e relatados por pilotos - Marinha e Força Aérea", disse Kirby. "Não temos as respostas sobre o que são esses fenômenos." Em uma raridade para uma audiência do Congresso televisionada, quase todos os legisladores concentraram seus questionamentos no assunto em foco na quarta-feira. "Muitos americanos estão profundamente interessados ​​nesta questão", disse Jared Moskowitz, um democrata da Flórida. "E não deveria ser necessário o potencial de origem não-humana para nos unir."
2023-07-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyd56lz001no
sociedade
Dia dos Avós: por que comemoramos a data em 26 de julho?
Esta matéria foi publicada pela BBC News Brasil originalmente em julho de 2018 e foi republicada em 26 de julho de 2023. Dona Aninhas era como todos conheciam a portuguesa Ana Elisa do Couto (1926-2007) em Penafiel, cidade de 15 mil habitantes na região do Porto. E se hoje ela tem uma placa afixada em praça pública na terra natal não é sem motivo: foi por causa dela, avó de quatro netas e dois netos, que o dia 26 de julho se tornou reconhecido como Dia dos Avós em Portugal - data também celebrada no Brasil. Nos anos 1980, porque ela achava que ninguém dava o valor merecido aos avôs e avós, decidiu se tornar uma missionária da causa. Dona Aninhas esteve em países como Brasil, França, Estados Unidos, Alemanha, África do Sul, Espanha, Angola, Suíça e Canadá, sempre defendendo que se comemorasse o Dia dos Avós. E a data escolhida tinha um forte motivo: dia 26 de julho é quando a Igreja Católica celebra São Joaquim e Santa Ana, pais de Maria, avós de Jesus. Uma história, entretanto, que nem na Bíblia está. "Não há nomes, pormenores, nem citações da vida e da existência dos pais de Maria", afirma o teólogo e filósofo Fernando Altemeyer Júnior, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "Ambos são citados no evangelho apócrifo de São Tiago, não reconhecido pela Igreja. Portanto, não constam em livros canônicos." Isso não impediu que São Joaquim e Santa Ana viessem a ser reconhecidos e celebrados pela Igreja como pais de Maria. Fim do Matérias recomendadas Desde o século 6 há registros do culto e da veneração aos pais de Maria. "No mundo ocidental, a popularização acontece sobretudo no século 14", pontua Altemeyer. O teólogo lembra que São João Damasceno, monge sírio que viveu entre 676 e 747, quando comentava o Natal, já abordava os pais de Maria com esses nomes, como sendo o casal São Joaquim e Santa Ana. "Sua festa era celebrada originalmente em 20 de março, junto a São José. Depois, acabou transferida para 16 de agosto, por causa do triunfo da filha, Maria, na Assunção, no dia precedente", conta Altemeyer. "Em 1879, o papa Leão 23, cujo nome de batismo era Gioacchino, ou seja, versão italiana de Joaquim, oficializou a festa em toda a Igreja. Já o dia 26 de julho foi determinado pelo papa Paulo 6º." No imaginário religioso, por sua vez, é famosa a representação dos avós de Jesus na Capela dos Scrovegni, em Pádua - pintada por Giotto (1276-1337). Mas o dia 26 de julho não é um consenso mundial. Na Itália, por exemplo, houve a preocupação de desconectar o Dia dos Avós da memória dos santos, justamente para enfatizar o caráter civil (e não religioso) da celebração- e a "Festa Dei Nonni" é celebrada dia 2 de outubro. Nos Estados Unidos, comemora-se no primeiro domingo de setembro. No Reino Unido, no primeiro domingo de outubro. A França é um caso raro: há o Dia das Vovós (primeiro domingo de março) e o Dia dos Vovôs (primeiro domingo de outubro). A Estônia comemora no segundo domingo de outubro. A Austrália, no primeiro domingo de novembro. O Canadá, em 25 de outubro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Autodenominado especialista em velhice, o jornalista e escritor Ulisses Tavares, avô de um menino de um ano e meio, aborda a comemoração do Dia dos Avós em seu recém-lançado livro Engate uma 3ª e Vá em Frente!. "Os avós fingem, acomodados ou com medo de afastar a família, que acham lindo terem filhos e netos-efemérides, que costumam lembrar deles em dia das mães, natal, avós etc. Aparecem e depois somem. É bem injusto, triste, e cabe a avós, filhos e netos romperem esse comportamento repetitivo e completamente deslocado no século 21. Menos selfies e mais amor contínuo e desinteressado, please", reclama. O hábito de presentear avós na data, porém, ainda não pegou - para lamento do comércio. "O Dia dos Avós tem um simbolismo grande, mas do ponto de vista comercial não é significativo, não é uma data de peso para o varejo. O impacto é limitado, não chega a alterar os dados de desempenho do comércio", afirma o superintendente institucional da Associação Comercial de São Paulo, Marcel Solimeo. "Uma das possíveis razões é que se trata de uma data no final do mês. Depois do dia 15, o brasileiro geralmente está com menos dinheiro, e isso se agrava em momento de crise. As principais datas comerciais são na primeira metade do mês. Black Friday e Natal são exceções, mas, por outro lado, se beneficiam das parcelas do 13º salário - e por isso são tão benéficas para o varejo", aponta. Solimeo também acredita que a proximidade com o Dia dos Pais, data bastante consolidada, atrapalha o viés comercial da data. "Não é fácil lançar uma data comercial, mas nada impede que ela eventualmente deslanche, a partir de investimento e planejamento bem feitos. Outra opção é mudar a data no calendário, colocando-a no começo de setembro ou de julho, por exemplo", afirma. A banalização comercial da data, entretanto, tem opiniões contrárias. "Presentear com flores, artesanato, desenhos, mensagens, ok. Relação humana não é relação comercial. Mamães, papais e avós devem incentivar seus filhos e netos a não serem consumistas. Amor não se compra com dinheiro. Essas datas são boas para manter a economia girando e as pessoas afundando", afirma Ulisses Tavares. "Abraços e beijos sinceros e espontâneos valem ouro e são os presentes que todos precisam, independente da idade. Esse é o calcanhar de Aquiles do deus-mercado. No caso, ele quer ver todos no inferno do consumo desenfreado e odeia qualquer coisa que seja de graça, como o afeto genuíno entre os familiares." Mas não é assim que funciona, afinal? Datas como Dia dos Namorados - no Brasil comemorado em 12 de junho - não foram obra pura e simplesmente de publicitários? E o Natal, com a onipresente figura do Papai Noel bonachão? "O cara que desenhou ou Papai Noel do jeito que conhecemos, barba branca e roupitcha vermelha, foi o Norman Rockwell. A serviço da Coca Cola! Você vai na sede da Coca, em Atlanta, e tem Norman Rockwell para todo lado, em todas a paredes", compara o publicitário Lusa Silvestre. "Então, não é que o mercado se apropria das datas. O mercado (ou os publicitários, sendo mais dedo-duro) inventa as datas. É para isso que estamos lá: pra inventar demanda onde não existe. Não sei se há futuro nessa estratégia, o consumidor já identifica essas ações oportunistas." A professora de Marketing Mariana Munis, da Universidade Presbiteriana Mackenzie de Campinas, concorda que o consumidor está de olho. "Em tempos de tanta informação, o varejo deve tomar cuidado para que suas ações não aparentem algo fake, que force a barra, ou seja, ao escolher ações para serem efetuadas em datas comemorativas, deve-se levar em consideração a sinergia desta com o negócio", analisa E se presente não parece ter vez na data, como fica aquela história de que na casa dos avós criança pode tudo? "Os avós já criaram os filhos que, agora, por preguiça ou falta de tempo, deixam os próprios filhos no pseudoparaíso que é a casa dos avós. Onde tudo pode e todos os desejos das crianças são realizados. Só que esse paraíso vira um inferno para os avós, exatamente porque estão em um momento da vida em que precisam de ordem, energia e tempo livre para eles mesmos", aponta Tavares. "Avós precisam ver respeitados seus limites, necessidades, interesses e privacidade. E os netinhos também. Nos tempos atuais, na casa dos avós pode ter muito amor, carinho, mimos, mas sem bagunçar e virar tudo de pernas para o ar."
2023-07-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1gmq2gzg5o
sociedade
O lençol de Clelia, a impressionante obra na qual camponesa italiana escreveu toda sua vida após perder marido
Em 1986, Clelia Marchi saiu de casa com a história da sua vida debaixo do braço. Ela passou sua vida no vale do baixo Pó, no norte da Itália. Lá, ela havia nascido 74 anos antes e conheceu seu esposo Anteo quando tinha 14 anos de idade. Com ele, teve oito filhos, dos quais perdeu quatro. Ela frequentou sozinha os dois primeiros anos da escola primária, mas apenas no inverno. No verão, ela trabalhava no campo, como continuaria a fazer com Anteo em uma plantação de milho. Depois de passar por duas guerras mundiais e ter uma vida de miséria, dores e trabalho duro, quando a ameaça da pobreza já não era tão grande, as crianças já haviam crescido e a idade prometia a chegada de um pouco de serenidade, veio a tragédia: seu amado esposo morreu atropelado por um automóvel. Sua ausência fez com que ela se sentisse "uma videira sem árvore", como escreveria mais tarde. Escrever foi tudo o que aliviou sua alma quando ficou sozinha, na sua cama matrimonial, sem poder fechar os olhos. Fim do Matérias recomendadas “Eu me sinto vazia, encerrada, inútil. Passo os dias chorando. Nunca havia pensado que, depois de 50 anos de vida matrimonial, nós nos separaríamos desta forma; escrevo toda a minha tristeza à noite, pois durmo pouco, como um ser humano dolorido”, escreveu ela. E escreveu como, às vezes, as pessoas choram – desenfreadamente. Ela começou a preencher todos os papéis, folhetos e cartolinas que encontrou em casa com palavras e fotografias. Eles eram tecidos com lã colorida para formar livretos. Ela usou 15 kg de papel, até que ficou sem ter mais onde escrever. Foi aí que ela se lembrou da sua professora da escola, que havia contado sobre uma múmia vendada com um pedaço de linho com um texto em idioma etrusco. "Pensei que, se eles fizeram isso, eu também poderia fazer o mesmo", contaria ela mais tarde. Inspirada, Clelia Marchi sabia que tinha um tecido ideal para registrar as recordações da sua vida com Anteo – aquele tecido que sempre os acompanhou, toda vez que eles acordavam: seu lençol nupcial. Ela explicaria que, já que não podia mais compartilhar o lençol com ele, ela o usaria para contar o seu passado. Clelia Marchi retirou o lençol do armário onde estava guardado desde a morte do marido. E, nos mais de dois metros daquela peculiar página em branco, começou a descrever todas as suas recordações: “Querida pessoa, preserve este lençol onde está um pedacinho da minha vida; e do meu esposo; Clelia Marchi (72) escreveu a história das pessoas da sua terra, preenchendo um lençol com escritos, desde o trabalho na agricultura até os seus afetos.” E, noite após noite, por dois anos, Clelia foi tecendo uma história de pobreza, dignidade e amor, linha por linha. “As coisas terminam, mas não são esquecidas... Esta semana, nossa família perdeu dois filhos... Para sobreviver quando você tem quatro filhos, é preciso fazer bem as suas contas. Com 10 liras para alimentos, compramos 7 onças [200 g] de manteiga de porco, 7 onças de azeite, um limão, 7 onças de açúcar, algumas verduras... Foi então que começou a última guerra e, novamente, eu estava grávida... O valor não é algo que você pode comprar. Ou você tem, ou você não tem...” Quando o lençol ficou todo coberto de recordações e reflexões, escritos parte em prosa, parte em poesia e parte em dialeto, ela o enfeitou. Costurou laços cor-de-rosa, uma imagem sagrada, uma do seu marido e outra dela própria. E deu um título: Gnanca na busia (“Nem sequer uma mentira”). Clelia Marchi havia usado o lençol que ela compartilhava com Anteo para contar ao mundo a íntima verdade sobre o amor que eles viveram. Ela levou o lençol para o prefeito local. Maravilhado com a obra, ele achou que o melhor para sua preservação era levá-la para um lugar na Itália que tinha mais memórias do que habitantes – embora as memórias tivessem sido apagadas em certo momento, no século 20: Pieve Santo Stefano, na Toscana. Pieve Santo Stefano perdeu suas memórias na Segunda Guerra Mundial. A região foi ocupada pelo exército alemão até agosto de 1944, quando as forças aliadas começaram a se aproximar. Os nazistas reuniram os moradores na praça principal, carregaram-nos em caminhões e os levaram para o norte. Em seguida, voltaram à cidade para transformar o que antes era uma bela localidade, repleta de edificações centenárias, em uma barricada para deter o avanço das forças aliadas. Por muitos meses, o local ficou desabitado. Até que, pouco a pouco, os moradores deslocados foram retornando. E, à medida que chegavam, eles percebiam que só haviam sobrado ruínas... e recordações. Mais de 90% de Pieve Santo Stefano precisaram ser reconstruídos. Ela se tornou uma cidade moderna de concreto, com pouco mais de três mil habitantes. Décadas depois, o renomado jornalista italiano Saverio Tutino (1923-2011) – antigo membro da resistência italiana na Segunda Guerra Mundial – andava pela região carregando um sonho e procurando um lugar onde poderia realizá-lo. Ele acreditava que era importante recolher histórias das pessoas comuns – aquelas que, normalmente, não passam para a História, evaporando como a água da chuva quando sai o Sol. Para isso, ele escolheu aquele lugar que, na época, era a menos atraente das cidades da região. Tutino afirmou ao prefeito que Pieve era o local ideal, pois eles poderiam criar algo que devolvesse o que a cidade havia perdido. E foi assim que, 40 anos depois do final da guerra, foi criado, na cidade sem memória e sem história, um local para guardar a memória e a história de todos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O diário mais antigo data de 1591 – 25 frágeis páginas com o testemunho da esposa de um sapateiro veneziano, completo com as fofocas da cidade, incluindo um adultério e um assassinato. Este é um dentre milhares: diários de fascistas arquivados ao lado de soldados da resistência; de condessas ao lado de camponeses; o diário de viagem de um adolescente ao lado das cartas de um jovem nas trincheiras... verdadeiros murmúrios no papel. Para Tutino, eles eram parte do seu ideal de democracia. São vidas que, às vezes, chegam em diários encadernados com couro, folhas datilografadas ou pedaços de papel rabiscados apressadamente, que foram trazidos pelos seus protagonistas, herdeiros ou por quem os encontrasse nos mercados de pulgas ou esquecidos nos áticos. Todas as histórias estão à disposição do público, com poucas exceções. Uma mulher de Foligno, na região italiana da Úmbria, insistiu para que seu diário fosse acessível a todos, exceto dois parentes desprezados, enquanto outro cronista pediu que seu diário permanecesse lacrado até 2072. Todos estes segredos íntimos e verdades sem filtro que normalmente ficam guardados são lidos pelos 15 "comedores de histórias", como são carinhosamente chamados os membros do Comitê de Leitura, devido à quantidade de recordações que eles já absorveram. De avós e cientistas até historiadores e engenheiros, os "comedores" se reúnem depois de lerem os escritos para indicar os nomeados ao Prêmio Pieve – textos selecionados que possuem um tom de autenticidade inconfundível. Este prêmio fez de Claudio Foschini um dos cronistas mais conhecidos da Itália, mesmo na sua situação: “Nasci ao meio-dia de 30 de julho de 1949 (...) Era o quarto filho de uma família maravilhosa. Você conseguia literalmente tocar o amor dominante.” Quando suas memórias conquistaram o prêmio, o autor não conseguiu recebê-lo pessoalmente porque estava preso: era ladrão de bancos. “Meu amigo tirou um saco grande para comprovar se tudo estava pronto. Quatro pares de luvas, três balaclavas, quatro pistolas e uma metralhadora. Peguei uma balaclava. Experimentei e ficou perfeita. Ao olhar no espelho, com uma pistola na mão, meu reflexo até a mim dava medo.” Ele acreditou ter encontrado a redenção ao escrever enquanto estava na prisão. Mas, depois de libertado, ele planejou um último assalto para ter com o que começar a nova vida. Claudio Foschini foi então morto a tiros por um segurança em frente a um armazém na periferia de Roma. Sua vida foi resumida em poucas linhas nos jornais locais no dia seguinte, como apenas mais um delinquente que teve um final trágico. Mas sua história está no arquivo, escrita à mão em 11 livretos quadrados. “Olho ao meu redor e vejo salas e corredores repletos de quilos e quilos de recordações, recuperadas em milhões de páginas, reunidas em milhares de diários, cartas e memórias, enfim, uma festa de recordações, um hino duradouro à memória [...]. São a persistente tentativa de resistir ao esquecimento, em uma batalha desigual entre alguns poucos milhares de sobreviventes contra milhões de existências das quais nunca saberemos nada.” O autor é Mario Perrotta no seu livro O País dos Diários. O livro inspirou a criação, em 2013, do Pequeno Museu do Diário, onde o arquivo italiano exibe algumas das obras mais destacadas do seu acervo. Lá estão guardados, por exemplo, os pensamentos de Orlando Orlandi Posti, de 18 anos, sobre sua experiência e o amor pela sua namorada, rabiscados em 39 pedaços de papel durante suas últimas seis semanas de vida, quando foi aprisionado pelos nazistas. Posti foi um dos 335 italianos que morreram em março de 1944 no massacre das Fossas Ardeatinas, em Roma, cometido em represália pelo assassinato de 33 policiais alemães nas mãos da resistência italiana. Mas, antes, conseguiu enviar de contrabando seus escritos, enrolados no colarinho das camisas que iam para lavar. Outro ato de valentia foi registrado no diário íntimo de uma cidadã italiana chamada Luisa, que recebeu o título Diário da Resistência de uma Dona de Casa: “21 de julho de 1994. Começa de novo, às 11 da noite, depois de um jantar tranquilo e um filme. De repente, as mesmas acusações. Ele se aproxima de mim em direção à minha garganta, dizendo-me para me calar, agarra uma cadeira e aponta suas pernas para mim. Agarrei uma faca de cortar frutas da mesa para mostrar que estava preparada para me defender, esperando que ele a abaixasse. Mas ele continua me insultando e se move em direção ao corredor. Fechei a porta, achando que passaria a noite na cozinha, mas ele tratou de quebrá-la. Eu estava apavorada. Depois, uma espécie de anjo indicou a janela e pulei com a toalha. Tentei correr desesperadamente em direção ao campo, mas ele estava correndo rapidamente atrás de mim, eu nas minhas sapatilhas. Consegui ver a mim mesma, perdida e sem poder me afastar daquele monstro. Gritei com toda a minha voz. De repente, um milagre. Ele desapareceu o mais rápido que pôde. É uma experiência muito peculiar esperar a luz do dia na neve. Olhei em direção à minha casa e me senti feliz por estar no lado de fora, com os pés molhados, sabendo que poderia morrer de frio. Mas seria mais digno do que morrer em um momento de loucura com meu marido.” É no Pequeno Museu do Diário que está guardado o lençol de Clelia Marchi. Quando o Arquivo o recebeu, reconheceu não só uma obra bela e única, mas um documento valioso como retrato da Itália rural durante um século diferente de todos os outros. E outorgou a ela um prêmio especial. Cinco anos depois, o testamento de sua vida de penúria, abnegação e amor foi publicado na forma de livro, com o título Gnanca na Busia, e foi um sucesso de vendas. Clelia morreu em casa no ano de 2006, com 93 anos de idade. Mas, graças à escrita, que foi o bálsamo para sua solidão, fica sua história, que poderia ter facilmente se perdido para sempre, como tantas outras.
2023-07-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72vv9r3yp7o
sociedade
Por que Vaticano dissolveu os jesuítas no século 18 e os readmitiu 40 anos depois
Com 14.439 membros, 200 universidades, 850 escolas e milhares de obras sociais, culturais e religiosas espalhadas por 127 países, a Companhia de Jesus era, ao menos até janeiro de 2022, a maior ordem religiosa do catolicismo. Uma posição que foi reforçada com a eleição, há uma década, de um deles: o argentino Jorge Mario Bergoglio, atual papa Francisco, à frente do Vaticano. Porém, 250 anos atrás, a congregação fundada por Santo Inácio de Loyola estava prestes a desaparecer da Terra e por decisão daquele a quem jurara obedecer: o então papa. Em 21 de julho de 1773, Clemente 14 assinou um documento intitulado Dominus ac Redemptor, por meio do qual eliminou os jesuítas da estrutura da Igreja e retirou todos os bens deles. Mas quais as razões pelas quais Roma decretou a supressão dos jesuítas, como são popularmente conhecidos os membros da ordem? Fim do Matérias recomendadas A medida não ocorreu da noite para o dia: foi precedida por uma campanha de difamação e perseguição contra os integrantes dessa ordem iniciada 15 anos antes, com a expulsão deles de Portugal e de seus domínios ultramarinos. "As notícias da época diziam que as missões que a Companhia mantinha no Paraguai tinham minas de ouro, e o rei português as queria. Então, depois de assinar um acordo com a Espanha, ele eliminou as missões", explica Andrés Martínez Esteban à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC). Martínez, que é professor de História da Igreja na Universidade de San Dámaso (Espanha), afirma que a decisão desencadeou uma revolta dos indígenas guaranis que viviam nas missões, e as autoridades lusitanas acusaram os jesuítas de serem os responsáveis pelo problema. Esses eventos foram recriados, com licenças históricas, no premiado filme de 1986 A Missão, estrelado por Robert De Niro e Jeremy Irons. "Pouco depois, ocorreram dois acontecimentos que aprofundaram a desconfiança da Coroa portuguesa: o terremoto de Lisboa de 1755, que alguns jesuítas afirmaram ter sido um castigo divino, devido à decisão do rei de retirar as missões paraguaias. E a tentativa de assassinato do rei José 1° em 1758, trama que as autoridades atribuíram aos jesuítas”, diz o especialista. Uma combinação de razões econômicas, teológicas e, sobretudo, políticas fez com que, nos anos seguintes, os monarcas da França, Espanha e Nápoles e Parma seguissem os passos de Portugal. "A Companhia de Jesus era uma entidade com muito acesso às diferentes monarquias. Muitos jesuítas eram confessores ou diretores espirituais de reis e rainhas. No entanto, suas ideias políticas incomodavam tanto os monarcas absolutistas quanto os esclarecidos", diz o jesuíta venezuelano Arturo Peraza, reitor da Universidade Católica Andrés Bello, de Caracas (UCAB). “A Companhia assumiu o tomismo, que não sustenta a ideia do absolutismo real, mas sim acreditava que o rei deveria prestar contas a Deus e também ao povo”, acrescenta o especialista, que é advogado e doutor em Ciência Política. O tomismo é uma doutrina filosófica e teológica desenvolvida por São Tomás de Aquino que, entre outras coisas, considera lícito que governados se rebelem contra governantes quando estes se comportam como tiranos, desde que esgotadas as alternativas para resolver a situação. A forma como os membros da ordem fundada por Santo Inácio de Loyola realizavam sua obra evangelizadora pelo mundo também servia para atacá-los. “A Companhia considerou que as culturas alcançadas tinham um conjunto de elementos positivos que poderiam ser integrados ao ritual católico. (…) Isso gerou uma espécie de histeria por parte dos grupos conservadores, algo semelhante ao que aconteceu recentemente com a posição do papa Francisco sobre o uso do latim”, diz o jesuíta venezuelano Peraza. Martínez, por sua vez, dá outro motivo para a animosidade dos soberanos, principalmente dos espanhóis: a forma como os jesuítas estavam organizados, que impedia que fossem controlados como o resto da hierarquia católica. “Os reis tinham direitos sobre a Igreja e eram quem indicavam os bispos ao papa, mas isso não acontecia com os jesuítas. Essa falta de controle não agradava aos reis e seus conselheiros”, afirma. Em termos semelhantes, o professor de História da Universidade de Navarra, Jesús Mari Usunáriz, declara: “A Companhia não dependia dos estados, e se as monarquias e os estados suspeitavam dela, era por causa de seu quarto voto: o voto de obediência ao papa, que a colocava fora da jurisdição do estado”, diz. Peraza concorda que a independência da ordem foi outra das razões que levaram à sua supressão. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast “O povo esclarecido queria alcançar a independência dos estados nacionais contra a pretensão do Vaticano de exercer uma espécie de controle moral sobre eles e (...) perseguiam os jesuítas como espiões de Roma”, afirma. O chamado motim do Esquilache, ocorrido na Espanha em 1766, foi usado pelos críticos da ordem - tanto conservadores quanto liberais - para convencer o rei Carlos 3° de que os seguidores do Santo Inácio estavam por trás desses eventos. A revolta foi desencadeada por uma decisão controversa de um ministro (Leopoldo de Gregorio e Masnata, Marquês de Esquilache) de proibir capas e outras roupas tradicionais, como forma de combater a criminalidade, uma vez que as vestimentas longas supostamente ajudavam a esconder armas. A medida impopular, aliada ao alto custo de vida da época, desencadeou intensos protestos que obrigaram o monarca a deixar temporariamente Madri. "Carlos 3° estava convencido de que os jesuítas tinham orquestrado os tumultos e temia por sua vida. E, por isso, não só os expulsou da Espanha e das colônias, como fez um pacto familiar pelo qual as Coroas Bourbon (Espanha, França, Nápoles e Parma) uniam forças para que, quando Clemente 13 morresse, fosse eleito um papa que se comprometesse a suprimir a Companhia de Jesus", explica Martínez. Após ameaçar romper com Roma, a aliança das monarquias Bourbon alcançou seu objetivo e o novo pontífice, Clemente 14, dissolveu a congregação. No entanto, na opinião dos especialistas, o papa não ficou convencido com a medida. Os pesquisadores apontam que o instrumento legal com o qual o papa suprimiu a ordem deixou uma brecha para a sua reintegração, algo que de fato aconteceu 41 anos depois. “Para que a súmula tivesse força de lei, deveria ser avalizada pelos diferentes monarcas onde seria aplicada”, explica Revuelta González. A recusa de Frederico 2° da Prússia e de Catarina da Rússia em endossar a decisão papal permitiu aos jesuítas continuar operando como se nada tivesse acontecido naqueles territórios. Cerca de 200 dos cerca de 22 mil jesuítas da época encontraram refúgio sob o manto de soberanos protestantes e ortodoxos. "A czarina Catarina queria que os jesuítas continuassem administrando suas escolas e educando a nova classe dominante russa, a fim de competir com o resto das potências europeias", explica Peraza. Tanto os especialistas como a bibliografia consultada pela BBC apontam que os frades, monges e padres da Companhia de Jesus aceitaram as medidas contra eles sem oferecer resistência, apesar de centenas terem morrido quando foram expulsos das colônias americanas. O fato de o então superior geral, Lorenzo Ricci, ter sido preso e ter morrido nas masmorras de Castel Sant'Angelo, adjacente ao Vaticano, é prova da submissão à vontade do pontífice. Durante o tempo em que a ordem foi suprimida, sucederam-se a Revolução Francesa, as guerras napoleônicas e o início das guerras de independência da América Latina. A ressaca desses acontecimentos acabaria por facilitar o retorno da Companhia, em 1814, com a aprovação de Pio 7°. "A Companhia renasceu num ambiente político e religioso marcado pela restauração. (...) Dinastias destronadas e antigas fronteiras foram restauradas. (...) O espírito racionalista parecia bater em retirada antes da recuperação do espírito religioso", escreve o jesuíta e historiador espanhol Manuel Revuelta González. O professor Usunáriz usa termos semelhantes e afirma: "A supressão da Companhia significou uma perda de poder para a Igreja, a meu ver. E com sua restauração a Igreja tentou recuperar um instrumento de influência social, política e cultural." Martínez aponta outras razões. “A supressão foi uma injustiça, uma decisão que não teve motivos canônicos ou magistrais, mas políticos”, diz. Na época da restauração da ordem, havia apenas 2.500 religiosos, a maioria deles já idosos. Apesar de sua restauração, os acontecimentos históricos fizeram com que os jesuítas continuassem a carregar uma espécie de estigma. Por sua vez, Peraza admite que nem sempre foi compreendido o modo como os seguidores de Santo Inácio realizam seu trabalho, nem dentro nem fora da Igreja. “Os jesuítas acreditam que a salvação não se consegue no convento, mas na medida em que tentamos transformar a realidade. Portanto, se o monarca ou governante pode mudar a realidade, então porque não tentar influenciá-lo?”, explica.
2023-07-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckmk5l2prveo
sociedade
Eleição na Espanha: por que conquistar eleitores latinos é cada vez mais importante
A inauguração de um campo de softbol, o popular jogo caribenho parecido com o beisebol, é um ato que começa com uma pregadora evangélica colombiana dando sua bênção e onde políticos balançam - ou tentam - os quadris ao som de um reggaeton ou de uma música pedindo para votar em um candidato cujo ritmo e cantor poderiam muito bem ser da República Dominicana. Não são eventos de campanha na América Latina, mas sim na Espanha, onde ocorrerão eleições gerais neste domingo (23/7) e onde não era habitual ver campanhas como essa nas quais o latino é tão claramente disputado. Mas nos últimos anos a importância desse grupo cresceu. Isso é confirmado por Laura Morales, professora de ciência política no Instituto de Estudos Políticos de Paris. Desde o início dos anos 2000, ela estuda o comportamento eleitoral dos migrantes na Espanha e viu como passou do não se importar com ninguém à maior importância dada ao voto latino, há cerca de cinco anos. Fim do Matérias recomendadas Assim são vistos os atos e estratégias eleitorais que os principais partidos políticos da Espanha adotaram para as eleições deste domingo. Embora analistas e partidos ainda tenham uma incógnita: não sabem ao certo a que porcentagem do eleitorado se dirigem. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Quantas pessoas da América Latina e nacionalizadas como espanholas existem no país? Como dizemos, não está tão claro. "Os dados são difíceis de calcular e os números que temos são aproximados", explica Morales. Os últimos números do Instituto Nacional de Estatística (INE) da Espanha são de janeiro de 2021 e apontam que cerca de 1,5 milhão de estrangeiros com nacionalidade espanhola e direito de voto residiam na Espanha na época. Mas, além disso, aponta o professor, não se sabe o total da população nacionalizada desde a década de 1980, por exemplo. Também não se sabe quantos dos espanhóis que votam no exterior têm dupla nacionalidade. Ou, dos que moram no país, se estão sendo considerados os descendentes desses migrantes, que já nascem espanhóis mas que têm uma relevância de voto como as de latinos. Com esta contagem aproximada, estima-se “que cerca de 10 a 13% do eleitorado tenha essa origem”. Dado esse peso, diz Morales, não há tanta atenção específica voltada a esse grupo, formado principalmente por equatorianos, colombianos, venezuelanos, argentinos, peruanos, dominicanos e cubanos. Mas, então, por que agora eles colocaram mais foco nisso. Por um lado, há uma consciência de que o número potencial de eleitores é maior do que há 10 ou 15 anos. Mas também para acumular crédito político a médio prazo. “É bem provável que daqui até as próximas eleições gerais ou daqui a 10 anos um quarto do eleitorado seja de origem imigrante”, diz a professora. Dois partidos em particular, o PP (direita) com o candidato Alberto Núñez-Feijoó à frente e o Vox, de extrema direita e liderado por Santiago Abascal, têm feito uma campanha mais visível para captar o voto latino. Isso porque eles têm “uma certa percepção de que esses eleitores (latinos) podem compartilhar valores parecidos em relação aos modelos familiares, uma visão religiosa mais conservadora”, diz Morales. Opinião sustentada por Carmen Beatriz Fernández, cientista política radicada na Espanha, mas nascida na Venezuela, precisamente uma comunidade a que ambas as partes têm dirigido o seu discurso porque, pela experiência no seu país de origem, “fazem com que se associem mais aos valores da direita”. São pescadores de votos “fáceis de atrair com um custo relativamente baixo de mobilização eleitoral, sem grande esforço, um low hanging fuit”, diz Morales, ou como diriam em venezuelano, uma “manga baixa”. A estratégia do PP, partido favorito a ser o mais votado neste domingo, segundo as pesquisas, tem um ponto-chave em Madri, onde a presidente da comunidade, Isabel Díaz Ayuso, tem feito acenos constantes aos latinos. Ali nasceu a iniciativa “Hispânicos com o PP”, uma organização dentro do partido que se estendeu à Galiza, Canárias, Valência ou Andaluzia para “mobilizar o voto hispânico”, explica Michael Ferreira, venezuelano-português membro do grupo. “Nos Estados Unidos, falar de uma campanha sem hispânicos é uma campanha fracassada. O voto hispânico marca tendência e é relevante. A Espanha está entrando nesta dinâmica e o PP está promovendo-a”, afirma. Eles fazem isso por meio de pequenos atos para cada região do país, com outros mais gerais nos quais se misturam a bandeira espanhola e as dos países latino-americanos, ou na inclusão cada vez maior nas suas listas de políticos com origem na América Latina. Mas também ultimamente com atos que chamaram a atenção da imprensa e não ficaram isentos de críticas. Por exemplo, um ato que eles chamaram de "Europa é Hispanica", onde o candidato Núñez-Feijóo junto com Díaz Ayuso fizeram uma passeata ao som da conhecida canção “El tiburón”, de Proyecto Uno, cantada ao vivo pelo dominicano Henry Méndez e que fez parte da campanha para as eleições a prefeitos e Comunidades Autônomas (regiões), em maio deste ano. O ato teve a participação da pregadora evangélica colombiana Yadira Maestre, polêmica por seus postulados. A aproximação com a comunidade evangélica, que conta entre seus seguidores com boa parte da comunidade latina, também tem sido feita pelo Vox como parte de sua estratégia. Para essas eleições específicas, eles criaram a iniciativa "Latinos por Abascal" para ganhar votos. Para o seu lançamento, utilizaram um jingle feito com ritmos e letras animadas típicos de campanhas feitas na América Latina e onde se veem as bandeiras de Cuba, Venezuela, Brasil ou Bolívia. Mas o discurso voltado para a comunidade latino-americana é uma exceção no Vox, partido político com forte discurso anti-imigração. Eles fazem essa distinção com os latinos porque é mais fácil para eles “se assimilarem à ‘etnia espanhola’ por compartilhar a mesma religião, língua, costumes, visão de mundo e história”, concordam os professores de ciência política David Lerín Ibarra (Universidade Complutense) e Guillermo Fernández-Vázquez (Universidade Carlos 3). Esse também é um voto fácil de capturar em alguns nichos, como explicou Morales. Alguns setores latinos “são sensíveis a apelos sobre os perigos potenciais de um suposto governo que inclui comunistas”, diz Morales. O espectro político da esquerda para estas eleições gerais é ocupado, por um lado, pelo PSOE (centro-esquerda), com o atual presidente Pedro Sánchez à frente. Do outro, está a Sumar, uma coalizão recém-nascida que protege sob seu guarda-chuva diferentes grupos de esquerda e que é liderada pela atual vice-presidente do governo Yolanda Díaz. Morales aponta que o PSOE e a esquerda em geral já tiveram iniciativas para abordar o voto latino, embora devido à sua estrutura e às características das campanhas eleitorais na Espanha —discurso mais geral, campanha mais genérica, sem segmentação de mensagens e de nível e extensão mais limitados—, já não tem um protagonismo tão grande. Hana Jalloul, Secretária de Política Internacional e Cooperação para o Desenvolvimento do PSOE entre 2020 e 2021 e Secretária de Estado das Migrações diz que o partido acredita na migração, “e temos trabalhado pela sua inclusão sociolaboral, para lhes dar acesso ao trabalho”. Para esta campanha, a esquerda se concentrou mais em círculos de confiança, atos ou convivência onde os migrantes em geral são explicados sobre seus direitos, protocolos contra a xenofobia ou o racismo. “Não vamos dançar reggaeton, mas daremos direitos aos migrantes. Fatos, não palavras”, diz Jalloul ao destacar as nacionalizações de migrantes que o presidente José Luis Rodríguez Zapatero fez em sua época ou a concessão de residência por motivos humanitários implantada por Sánchez para os venezuelanos. Esse é um ponto-chave do discurso da esquerda não apenas para a comunidade latina, mas para os migrantes em geral: “Lembre-se sistematicamente que o Vox é contra as regularizações migratórias”, diz Morales. Mas, como sustenta Laura Morales, a esquerda em geral não encontra um equilíbrio em seu discurso para se dirigir a esse eleitorado que “potencialmente poderia votar neles porque as políticas universais implementadas pelo governo de coalizão (PSOE-Podemos, atualmente no poder) são benéficas para eles”. Embora a importância do voto latino seja maior do que em anos anteriores, a Espanha é um caso difícil para mobilizar esse eleitor. Por exemplo, você não pode fazer um discurso diferenciado, algo que nos Estados Unidos consegue apenas mudando o idioma. Além disso, na Espanha é preciso ter cuidado, diz Morales, “para não fazer algo étnico-racial, que possa ofender a comunidade e marcá-los como migrantes quando já têm nacionalidade”. E é difícil sustentar um discurso específico, porque o coletivo na Espanha é tão heterogêneo e variado quanto a América Latina é ampla. Por exemplo, os venezuelanos votam mais à direita, enquanto argentinos, uruguaios, colombianos e, em menor grau, peruanos, tendem a votar à esquerda. Enquanto os equatorianos têm um voto mais volátil, segundo especialistas. E o fazem, um e outro, em proporções semelhantes, por isso, explica Morales, “não se pode dizer que o coletivo latino-americano como um todo é um voto que favorece um espectro político específico”. O desafio para os próximos anos na Espanha é que os partidos políticos encontrem uma forma de atender uma população que, por um lado, cresce, mas, por outro, mal dispõe de dados para entender seu comportamento eleitoral.
2023-07-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pw62x34edo
sociedade
Quem foi Messalina, imperatriz com reputação mais sexual da Roma Antiga
A política no Império Romano era um drama constante e implacável, repleto de intrigas e conspirações. Mas, mesmo neste mundo de politicagem implacável, mortes suspeitas e conspirações de alto risco, a reputação da imperatriz Valéria Messalina se destaca. Ela é lembrada não apenas por suas intrigas para se apegar ao poder, mas também, e acima de tudo, por seu apetite sexual. Tanto que ela apareceu até na enciclopédia de História Natural, a grande obra de Plínio, o Velho (77 dC), como evidência científica de que os humanos são os únicos animais sexualmente "quase insaciáveis". Segundo o escritor romano, Messalina demonstrou isso ao competir com "a mais famosa das prostitutas profissionais" para ver quem dormia com mais homens em 24 horas. Fim do Matérias recomendadas "A imperatriz a ultrapassou, após coito contínuo, noite e dia, no vigésimo quinto abraço" (Livro X, cap. 83). Histórias como essa contribuíram para um retrato de Messalina que dificulta muito a compreensão de como ela realmente era. No entanto, foi isso que o classicista – estudioso sobre o classicismo – Honor Cargill-Martin, autor de "Messalina: uma história de império, calúnia e adultério" (2023) se propôs a fazer. Messalina foi a terceira esposa de Cláudio, o imperador que estendeu o domínio romano no norte da África e fez da Grã-Bretanha uma província. Não se sabe exatamente quando ela nasceu, mas estima-se que quando se casaram ela tinha entre 15 e 18 anos, enquanto ele já se aproximava dos 50. Apesar de Messalina vir de uma das mais prestigiadas e ricas famílias nobres da época e seu marido fazer parte da família imperial, nada indicava que ela se tornaria imperatriz. Cláudio era doente, coxo, gago, pouco atraente, mal-educado e grosseiro, o que o tornava mais um embaraço para sua família do que um pretendente ao trono. Por muito tempo se dedicou a escrever livros de história e permaneceu fora do poder até que seu sobrinho, o imperador Calígula, o nomeou cônsul e senador. O poder veio inesperadamente após o assassinato de Calígula em 24 de janeiro de 41, quando um soldado descobriu Cláudio tremendo no palácio. No dia seguinte, ele foi feito imperador pela Guarda Pretoriana (as tropas da casa imperial). Naquela época, Roma ainda estava se acostumando com uma nova forma de governo. Cláudio era apenas o quarto imperador da dinastia Júlio-Claudiana, a primeira do Império Romano, que estava no poder desde 27 aC. Durante a maior parte de sua história antes desse ponto, Roma havia sido uma república, governada por um senado aristocrático e por magistrados eleitos. Mas depois de meio século de guerra civil entre Júlio César e Pompeu, o Grande, Augusto chegou oferecendo paz, prosperidade e estabilidade em troca de poder autocrático. A política deixou de ser feita em assembleias e fóruns públicos para ser praticada na intimidade da corte imperial. A partir de então, o que realmente importava não era a posição de alguém no Senado, mas sua proximidade com o imperador. E a pessoa mais próxima ao imperador no trono é a imperatriz sentada ao lado dele. Mas se Messalina aprendeu alguma coisa com sua experiência na corte de Calígula, foi que, embora a proximidade com o imperador pudesse dar a qualquer romano poder e oportunidade, também colocava sua vida em risco. A política na corte romana era brutal. “Havia muito em jogo: se você era o imperador, sabia que a única forma de deixar de ser era morrendo", explicou Cargill-Martin à BBC HistoryExtra. "É por isso que eles se agarravam ao poder, porque, se vacilassem, provavelmente seriam mortos”, acrescentou. "Cláudio e Messalina estavam muito, muito cientes dos perigos imediatos de sua posição, pois haviam literalmente visto seus predecessores despedaçados no palácio imperial." "Calígula foi morto de maneira tão selvagem que houve rumores de que as pessoas comeram pedaços de sua carne.” “E junto com ele, mataram sua esposa e filha porque eram vistas como ameaças potenciais no futuro”, enfatizou o especialista. Quando tudo isso aconteceu, os futuros regentes tinham uma filha quase da mesma idade que a de Calígula, e Messalina estava grávida de 8 meses de seu filho e herdeiro Britânico. "É por isso que acho que Messalina, desde o primeiro dia no poder, sabia que tinha que fazer absolutamente tudo o que podia para se manter no controle, e essa força motriz continuou durante todo o seu reinado." Por quase uma década, ela foi provavelmente a mulher mais poderosa do Mediterrâneo. Ela estava no topo da perigosa corte imperial, sempre disposta e capaz de fazer quase qualquer coisa para manter a sua posição. Ela se envolveu em intrigas políticas, fazendo com que seus inimigos políticos fossem exilados ou executados. E ela navegou naquele campo minado com muito sucesso até o final do ano 48 DC. quando, em circunstâncias muito misteriosas e dramáticas, ela foi assassinada. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Após a sua morte, ela foi submetida a uma ordem de damnatio memoriae (condenação da memória), então tudo que se referia a ela foi apagado, suas estátuas, quebradas e seu nome, riscado das inscrições. Nas décadas que se seguiram, aquele vácuo da história oficial se encheu de boatos que forjavam a fama que tornaria seu nome sinônimo de pessoa pervertida e sexualmente voraz. Descrita como bela, de cabelos negros como azeviche, quadris sensuais e um sorriso que apaixonaria qualquer homem, ela foi protagonista de escritos como o do poeta Décimo Junio ​​Juvenal dos séculos 1 e 2, que em uma de suas sátiras a chamou de "prostituta imperial". O autor conta em detalhes que, assim que o marido adormeceu, ela saiu do palácio com uma peruca loira para esconder sua identidade e foi para um bordel "porque preferia uma cama barata a uma cama de verdade". Lá, ela dormiu "nua e com seus mamilos dourados" com clientes até que o cafetão a obrigou a sair, "exausta, mas não saciada". Durante séculos, sua alegada promiscuidade e libertinagem sexual continuaram a inspirar romances, óperas e filmes. "Depois de sua morte, ela se tornou um símbolo de sexualidade descontrolada, e quase todas as histórias sobre suas ações políticas estão incluídas nessa narrativa de Messalina como ninfomaníaca", disse Cargill-Martin. "Mas se formos fundo e realmente olharmos para as decisões políticas que ela toma, acho que fica muito claro que a grande maioria visa evitar qualquer ameaça potencial ao poder dela ou de seu marido, porque ela sabe que sua fortuna e a fortuna de seus filhos são completamente entrelaçados para a contínua supremacia de Cláudio". Messalina não é a única mulher cuja memória foi distorcida pelos historiadores da Roma Antiga, mas o classicista aponta que nenhuma outra “tem uma fama tão complexa como ela. Ela é muito excepcional”. "Ela se tornou o arquétipo da mulher má no sentido sexual.” "Mas acho importante notar que esta não é a única maneira de caluniar mulheres poderosas em Roma; existem outras opções possíveis.” "Por exemplo, a sucessora de Messalina, Agrippina, também é retratada como um tipo muito perigoso de mulher 'má', mas de maneira quase exatamente oposta.” "Messalina aparece como uma figura hiperapaixonada e irracional, transgressora no sentido de que ela é quase feminina demais em um espaço político que deveria ser masculino.” "Já a Agrippina se apresenta como uma transgressora porque se comporta de uma maneira inerentemente muito masculina: muito racional, muito ambiciosa." Mas nem tudo o que foi dito sobre ela era mentira. "Embora os historiadores romanos gostassem de criar personagens arquetípicos, e Messalina fosse o epítome da sexualidade descontrolada, não acho que possamos fugir totalmente da ideia de que ela era uma pessoa muito sexual e adúltera." Além desses rumores bizarros, como o descrito por Juvenal, havia outros mais plausíveis, observou Cargill-Martin. É bem possível, concluiu ele, que ela tivesse tido casos extraconjugais com homens como Mnester, a maior estrela do palco da época, e também com Gaius Silius, considerado o aristocrata mais bonito de toda Roma. Diziam que por causa deste último ela enlouqueceu, não escondeu sua paixão e quis ir mais longe do que com qualquer outro amante. “E assim, no final do ano 48, vemos um acontecimento incrivelmente dramático que termina com a morte de Messalina.” "Conforme relatado nas fontes, Cláudio partiu em uma viagem para a cidade portuária de Ostia, e Messalina e Gaius Silius, desesperadamente apaixonado, decidiu se casar com ela enquanto o imperador estava fora, e então deu um golpe e tomou o trono de Roma", conta o autor. O surpreendente episódio foi narrado por vários historiadores romanos, como Tácito, que o relatou, estupefato, nos Anais, 11.26: "Sei que vai parecer incrível que, em uma cidade tão vigilante como Roma, alguém possa se sentir tão seguro.” "Muito mais, que em um dia determinado, com a presença de testemunhas, um cônsul designado e a esposa do imperador se reuniram para o propósito declarado de um casamento legítimo. Que a mulher ouça as palavras dos auspícios, assuma o véu, realize o sacrifício para os céus. Que ambos jantem com os convidados, se beijem e se abracem e, finalmente, passem a noite na certidão de casamento.” "Mas não acrescentei nenhum toque de fantasia: tudo o que registrei foi o testemunho oral ou escrito de meus mais velhos." Como esperado, eles contaram a Cláudio, que voltou correndo para Roma. O escravo liberto Narciso, ex-aliado de Messalina e conselheiro do imperador, tomou as rédeas da situação. Em questão de horas, Silius e outros oito "romanos ilustres" que haviam sido amantes da imperatriz, incluindo Mnester, foram presos, julgados e executados. Quando Messalina tentou falar com o marido, Narciso a impediu; e quando Cláudio ordenou que o julgamento de sua esposa ocorresse no dia seguinte, temendo que César se apaixonasse por ela novamente e a perdoasse, o liberto enviou centuriões para matá-la. Se refugiando nos seus jardins em Roma e compreendendo que não tinha saída, à chegada dos seus carrascos, Messalina tentou se suicidar, mas precisou da ajuda de um deles, que lhe enfiou a espada no peito. Para Cargill-Martin, essa história é altamente duvidosa, por vários motivos. "Não há nenhuma evidência real de que Messalina e Silius tentaram armar um golpe contra Cláudio. E eu acho que se você está tomando a decisão de se casar de forma bígama com seu amante enquanto seu marido, o imperador do mundo conhecido, não está tão longe, você teria um plano para o que fazer a seguir", disse ele. Além disso, ressaltou, Messalina não tinha motivos para fazer algo assim. "Isso não apenas não melhoraria sua posição de forma alguma, mas também colocaria seus filhos em perigo muito mais significativo do que estariam se Cláudio permanecesse no poder.” "Acho que o que realmente é o curso mais provável dos eventos é que foi de fato um golpe, mas contra Messalina, planejado por seus antigos aliados dentro da casa imperial, que começaram a vê-la como uma ameaça ao seu status quo.” "E a coisa toda foi essencialmente projetada por Narciso para se livrar dela, o que ele fez de forma muito eficaz." Depois que Messalina foi assassinada em seu jardim em Roma e Cláudio recebeu a notícia de que ela estava morta, ele supostamente não pediu nenhuma explicação… apenas pediu outra taça de vinho.
2023-07-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cer88d2xwx3o
sociedade
As diferenças de amizades de homens e mulheres: 'Elas se importam com quem você é, e eles com o que você é'
Quantos amigos temos? O quanto eles são bons amigos ou próximos? Como escolhemos os homens e mulheres que serão nossos amigos? O que privilegiamos? O quanto essas amizades são duradouras? O famoso psicólogo, antropólogo e biólogo evolucionista britânico Robin Dunbar, professor emérito da Universidade de Oxford, passou anos estudando a amizade. Especialista em comportamento de primatas, ele é mais conhecido por ter sido o primeiro a formular o chamado número de Dunbar, com valor correspondente a 150 em humanos, número que representa uma medida do "limite cognitivo de indivíduos com os quais se pode manter uma relação estável." Autor de mais de vinte livros, entre eles Amizade, A Ciência do Amor e A Odisseia da Humanidade, ele foi entrevistado pela BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) sobre as diferenças entre as amizades masculina e feminina e o que há de verdade nos estereótipos que geralmente são atribuídos a elas. BBC News Mundo - Você diz que as amizades entre homens e mulheres são diferentes. Quais são essas diferenças? Fim do Matérias recomendadas Robin Dunbar - Elas se diferenciam principalmente pela intensidade de suas relações. Amizades entre mulheres tendem a ser muito mais intensas emocionalmente, tornando-as mais diádicas (relativas a grupos de apenas duas pessoas vinculadas muito estreitamente). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Seus círculos de amizade são baseados mais em amizades duplas do que em grupos, enquanto os homens tendem a formar clubes de amigos. Em geral, as amizades das mulheres são semelhantes a um modelo de centro e raios, em que cada amiga tem uma amizade particular com a amiga do centro, mas não necessariamente com as outras amigas de um pequeno grupo. Enquanto os círculos masculinos são muito mais integrados. Todos são amigos de todos, mas a qualidade e a intensidade das relações são menores. BBC News Mundo - O que mulheres e homens procuram em uma amizade? O que é o mais importante? Dunbar - Para as mulheres, é mais importante quem você é como pessoa, e não o que você é. Enquanto os homens se preocupam muito mais com o que você é, a que clube você pertence. Eles se importam menos com quem você é. As amizades entre homens são um pouco mais anônimas nesse sentido. BBC News Mundo - Como diria que são esses clubes de amigos? Dunbar - Neles, o fato de pertencer ao clube parece ser o mais importante. É o que define a amizade. Muitos homens sabem muito pouco sobre seus amigos, mas os aceitam porque fazem parte do mesmo clube. Os clubes de amigos tendem a ser muito informais e isso reflete a natureza muito mais casual das amizades masculinas. A associação ao clube também costuma ser casual. São os amigos que jogam futebol juntos ou os caras que vão beber toda sexta à noite. A elegibilidade para ser membro de um clube não é muito exigente. Você pode tomar uma cerveja sem derramar na mesa? Se você pode fazer isso, então você faz parte do nosso clube. BBC News Mundo - Dizem que as mulheres tendem a falar mais sobre suas emoções e sentimentos. O que os homens falam? Dunbar - De nada (risos). Os homens não falam tanto sobre emoções, tendem a se relacionar em torno de atividades, ao contrário das mulheres, que expressam sentimentos. É por isso que as mulheres tendem a ter amizades de maior qualidade. As atividades nos grupos de amigos são o que dão o caráter do clube. Nesse contexto, os homens criam laços de amizade por meio do riso, enquanto as mulheres o fazem por meio de conversas e emoções. É por isso que as mulheres podem contar exatamente sobre o que conversaram ontem, com detalhes e antecedentes, enquanto os homens que estavam sentados na mesma mesa não conseguem se lembrar de nada. BBC News Mundo - Então, você diria que os homens precisam mais de uma presença física, de um amigo fisicamente presente? Dunbar - Sim, os homens precisam poder fazer coisas com seus amigos. Eles têm que vê-los. Se eles não os veem, o relacionamento evapora. Nem sempre, claro, mas acontece com frequência. As amizades entre mulheres tendem a durar com o tempo, mesmo quando não podem se ver regularmente, porque se esforçam para conversar ou manter contato. Essas coisas são menos frequentes entre os homens. Isso não quer dizer que as amizades masculinas não durem; algumas podem durar mais do que as amizades entre as mulheres. Mas se a amiga de uma mulher se muda para outro país para sempre e elas não podem se ver, elas tentam manter a amizade pelas redes sociais ou por telefone. BBC News Mundo - E os homens perdem um amigo que se muda... Dunbar - Os homens muitas vezes não mantêm contato regular com o amigo que se foi, mas simplesmente o substituem. Por exemplo, Paulo é membro do grupo de amigos que vai ao bar para beber todas as sextas-feiras à noite, mas ele se mudou para a Tailândia. Em vez de tentar manter contato com Paulo, os outros amigos dizem uns aos outros: “Bem, Paulo era ótimo, mas ele se foi. Eu sei que Eduardo seria uma ótima opção, podemos adicioná-lo ao grupo agora que Paulo se foi." Isso vai mudando ao longo dos anos. Depois de uma certa idade, alguns homens preferem sair do clube e ficar com um único amigo com quem vão beber no bar com muita calma. Eles se tornam melhores amigos. BBC News Mundo - A comunicação continua sendo ruim? Dunbar - Provavelmente muitos ainda não estão tendo muitas conversas profundas. Há uma fotografia maravilhosa, muito vista em jornais e revistas, de dois velhos gregos do lado de fora de uma taverna, sentados um de cada lado de uma mesa enquanto o sol brilha. Eles se sentam em silêncio e ocasionalmente levantam seu ouzo (licor grego) ou seu café para tomar um pequeno gole. Eu sempre digo: essa é a imagem de dois homens se comunicando. BBC News Mundo -Você diria que os homens são socialmente mais preguiçosos? Dunbar - Com certeza. Muitos homens mais velhos acabam pertencendo ao clube dos maridos das amigas de suas esposas, ou de suas parceiras, e isso porque as mulheres são muito mais ativas socialmente. Elas são mais propensas do que nós a organizar eventos sociais, seja um jantar ou qualquer outra coisa. Às vezes, os homens que assistem (aos eventos das esposas) formam seu próprio clube, mas a única coisa que o mantém unido é o fato de serem maridos ou parceiros das mulheres. É completamente circunstancial. BBC News Mundo - O quanto é importante ter amigos quando envelhecemos? Dunbar - Aqui podemos ir para as razões pelas quais temos amigos. Uma delas é ter apoio moral e social, e ajuda, se precisarmos. Bons amigos acabam se tornando uma espécie de proteção e podem até ser um amortecedor econômico. Além disso, as amizades proporcionam benefícios de saúde realmente consideráveis. A melhor maneira de medir sua saúde física e psicológica é ver o número e a qualidade dos bons amigos que você tem. O número ideal é você e mais quatro amigos, de acordo com vários estudos. BBC News Mundo - Esse número é de amigos íntimos ou amigos em geral? Dunbar - Amigos próximos, mas inclui a família também. À medida que envelhecemos, tendemos a priorizar a família. BBC News Mundo - Dizem também que isso melhora a saúde mental. Dunbar - No lado psicológico, reduz muito o risco de cair em depressão. As atividades que fazemos com os amigos, conversar, rir, contar histórias tristes, cantar, dançar, comer... todas essas coisas ativam o sistema de endorfina, que é ativado na parte do cérebro que controla a dor. Eles dão a você uma euforia emocional que faz você se sentir bem, em paz com o mundo, confiante. Quando você cai em depressão, seu sistema imunológico fica deprimido e você fica muito mais suscetível a doenças, principalmente vírus e bactérias, porque seu corpo é pouco capaz de atacá-los com eficácia. No fim, quando você tem poucos ou nenhum amigo, a sua expectativa de vida é afetada.
2023-07-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c87mgkgyxyvo
sociedade
O rapper que ajudou a derrubar um ditador
O rapper tunisiano El General tinha apenas 21 anos quando seu vídeo Rais Lebled, ou Mr President, viralizou no final de 2010. Nascido Hamada Ben Amor, o jovem deu voz à raiva, frustração e desespero de toda uma geração. "Sabia que haveria consequências, o que me assustou devido à minha pouca idade. Percebi o perigo do que havia feito", disse ele à BBC em seu estúdio na cidade costeira de Sfax, na Tunísia. El General estava rapidamente se tornando famoso, mas com o boné de beisebol puxado para baixo na testa, poucos sabiam sua verdadeira identidade. No entanto, à medida que manifestantes passaram a cantar gritando sua música em todo o país, sua identidade acabou sendo descoberta, e ele foi preso. "Achei que era o fim, sabe, porque naquela época se você entrava no Ministério do Interior, não saía mais." Felizmente e talvez surpreendentemente, El General foi libertado depois de alguns dias. A essa altura, sua canção não era apenas um hino revolucionário na Tunísia, mas também um grito de guerra para manifestantes pró-democracia em todo o Oriente Médio, das ruas do Egito aos mercados de rua do Bahrein. O rosto de El General estampou a primeira página da revista americana Time, que o listou entre as 100 pessoas mais influentes do mundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em meados de janeiro de 2011, Ben Ali havia fugido do país. El General e todos aqueles que saíram às ruas no que ficou conhecido como a Revolução de Jasmin haviam vencido. Infelizmente, a democracia foi uma grande decepção para muitos na Tunísia. Embora tenha sobrevivido lá, ao contrário de outros países que foram varridos pela chamada Primavera Árabe, sucessivos governos pouco fizeram para melhorar a situação da maioria dos tunisianos. A maioria dos políticos passou a ser vista como mais interessada em disputas inúteis e em sua própria importância do que em resgatar uma economia em queda livre. A democracia logo foi vista por muitos como sinônimo de anarquia, inércia política e colapso da lei e da ordem. Tudo isso levou à vitória esmagadora de Kais Saied nas eleições presidenciais de 2019. O ex-professor de direito prometeu resgatar o país do caos político e econômico. O que se seguiu é descrito por seus críticos como semelhante a um golpe. Depois de suspender o Parlamento em julho de 2021, o presidente populista passou a atribuir poderes a si mesmo para governar por decreto. Depois disso, fechou o Congresso, que desde então foi substituído por uma versão mais fraca, em grande parte destituída de poderes para se opor ao mandatário. Saied dissolveu o Conselho Superior da Magistratura, que protegia a independência dos tribunais, antes de demitir mais de 50 juízes. No ano passado, o presidente tunisiano reescreveu a constituição depois de vencer um referendo, que havia sido boicotado pela maioria dos grupos de oposição, acumulando ainda mais poder para si. Seguiu-se a isso a prisão de dezenas de pessoas que se opuseram a ele, de políticos, advogados e jornalistas a acadêmicos e ativistas. A sensação, segundo El General, é que os dias de medo e repressão estão voltando. "Estamos mais sob controle do que nunca. Não sabemos se estamos vivendo no presente ou em 2010. Sou um dos muitos que sentem que nosso país está em perigo. Ainda estamos em choque. Não esperávamos esse nível de repressão." Embora Saied tenha sido amplamente eficaz em suprimir a dissidência, ele teve muito menos sucesso em manter a inflação sob controle. A escalada de preços está afetando até mesmo tunisianos de classe média, e há uma grave escassez de alimentos básicos como arroz, açúcar e óleo. Tudo isso, lamentou um vendedor do mercado, está forçando algumas pessoas a buscar comida no lixo. Em nenhum lugar o aumento da pobreza é mais evidente do que no subúrbio de Ettadhamen, na capital, Túnis, onde o desemprego entre os jovens é particularmente alto. Diante do aumento do uso de drogas, o dono de uma academia de lá, que preferiu não ser identificado, começou a oferecer aulas de kickboxing. Ele espera que isso dê aos jovens um estímulo para ficar longe das drogas. Um jovem, suando muito por causa de um treino vigoroso, explicou que pretendia chegar se tornar atleta profissional, para poder competir em competições na Europa. A ideia era “abandonar o barco” assim que ele chegasse lá. "Se eu tiver a chance de ir para o exterior e lutar boxe, a primeira coisa que vou fazer é pensar em uma maneira de ficar lá. Não posso mentir, se eu encontrar uma maneira de fazer isso, não voltarei." Infelizmente para ele, o dono da academia revelou mais tarde que as autoridades do esporte ficaram sabendo de tais planos. Ele disse que agora os agentes do governo estão confiscando os passaportes dos tunisianos que competem no exterior e os escoltando o tempo todo enquanto participam de competições. Milhares de outros tunisianos desesperados estão se juntando a um número crescente de migrantes da África subsaariana na tentativa de chegar à Europa em pequenos barcos improvisados. Infelizmente muitos não conseguem. Desde 2014, quase 28 mil pessoas morreram tentando cruzar o Mediterrâneo ilegalmente. Muitos sobrevivem à jornada extremamente perigosa. Até agora, este ano, mais de 60 mil migrantes chegaram à Itália, o dobro do número no mesmo período de 2022. À medida que os números crescem, aumenta também a determinação da União Europeia em impedi-los de chegar. Isso está provando ser um grande ganho para o líder tunisiano. Apesar de ter dito no início deste ano que não estava disposto a atuar como guarda de fronteira da Europa, no início desta semana Saied aceitou cerca de US$ 118 milhões (R$ 600 milhões) da UE para ajudar a combater o tráfico de pessoas na Tunísia. Outros US$ 1 bilhão (R$ 5 bilhões) estão sendo oferecidos pela UE para investimento na Tunísia. A liberação de tal montante, porém, depende de Saied concordar com os termos de um pacote de resgate de US$ 2 bilhões (R$ 10 milhões) do Fundo Monetário Internacional (FMI). Até agora ele se recusou a fazer isso. O acordo com o FMI exige que a Tunísia corte subsídios caros e diminua a inchada folha de pagamento do governo, que Saied sabe que será altamente impopular e pode até levar a outro levante, desta vez contra ele. Por enquanto, pelo menos Saied continua surpreendentemente popular, embora haja um número crescente de pessoas que estão profundamente preocupadas com a direção que ele está tomando no país, de discursos incendiários sobre migrantes e prisão de seus oponentes políticos, ao enfraquecimento deliberado do parlamento e do Judiciário. Uma dessas pessoas é El General, embora os tempos sejam outros. Desde o enorme sucesso de seu hino de revolta, ele se casou e passou a ter uma vida mais tranquila para criar sua família. El General, outrora famoso por seu raps incendiários, agora mora em uma mansão imponente em um dos subúrbios luxuosos de Sfax. Tendo visto seu país ser vítima de uma repressão crescente novamente, ele diz que se sentiu compelido a voltar a compor. E insiste que as letras de seu último álbum incluem críticas a Saied, embora desta vez certamente não seja um rap revolucionário. Parece que El General se contenta em deixar essa luta para uma nova geração de rappers, que talvez tenha um pouco menos a perder. "El General sempre será El General, mas talvez haja alguém que agora seja mais revolucionário do que eu. Como no futebol, por exemplo, dizemos que Lionel Messi é o melhor dos melhores, e talvez em alguns anos haverá alguém jogando futebol melhor do que ele."
2023-07-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4n0rpz9ypmo
sociedade
'Minha obra foi copiada por IA mais do que a de Picasso'
"Minha obra foi copiada por IA mais do que a de Picasso." Ele disse que seu nome havia sido usado mais de 400 mil vezes como prompt em ferramentas de IA que geram arte desde setembro de 2022 — mas sem seu consentimento. Prompts são os comandos enviados ao sistema de inteligência artificial para que ele gere a resposta almejada. Fim do Matérias recomendadas Nascido na Polônia, Greg teve suas obras usadas em games como Dungeons and Dragons e Magic: The Gathering, mas tem receio de que a popularidade recém-descoberta no mundo da inteligência artificial afete trabalhos futuros. Sites como Midjourney, Dall.E, NightCafe e Stable Diffusion são conhecidos como plataformas de inteligência artificial generativa. Eles são capazes de criar obras de arte geradas artificialmente em segundos, a partir dos prompts que os usuários digitam. As ferramentas aprenderam a fazer isso coletando bilhões de imagens existentes na internet. E os artistas estão reclamando que isso é feito sem o consentimento deles. "Logo no primeiro mês que descobri, percebi que isso afetaria claramente minha carreira, e eu não seria capaz de reconhecer e encontrar meus próprios trabalhos na internet", diz Greg. "Os resultados vão ser associados ao meu nome, mas não será a minha imagem. Não será criado por mim. Então vai confundir as pessoas que estão descobrindo meu trabalho." "Tudo em que trabalhamos por tantos anos foi tirado de nós com muita facilidade pela inteligência artificial", acrescentou. "É bem difícil dizer se isso vai mudar toda a indústria a ponto de os artistas humanos se tornarem obsoletos. Acho que meu trabalho e futuro estão sob um grande ponto de interrogação." Embora os problemas sejam claros, há algumas maneiras pelas quais as ferramentas de inteligência artificial podem ser usadas para beneficiar os artistas, de acordo com o animador Harry Hambley, que é a força criativa por trás do personagem Ketnipz, uma sensação da internet. "Acho que para mim a principal coisa que a arte generativa pode resolver é o tédio", diz ele."Mas pode ser assustador, e a internet já é um lugar selvagem, e você mistura IA com isso… não sabemos aonde vai dar." "Se eu acho que meu trabalho vai ser sacrificado pela IA ou que a IA vai fazer melhor do que eu? Não sei. Espero que não." Harry acredita que há mais na arte do que sua aparência. "No fim das contas, acho que há uma razão maior pela qual as pessoas se envolveram com o Ketnipz, e não acho que seja apenas a mera estética dele." "Acho que há uma personalidade por trás que não acredito que alguém imitando possa realmente explorar." O artista James Lewis publica vídeos de sua técnica de pintura para mais de 7 milhões de seguidores no TikTok e no Instagram. Ele ainda não descobriu se o seu trabalho foi usado pelas ferramentas, mas disse que, como a inteligência artificial aprendeu a partir de bilhões de obras de arte, seria difícil rastrear que trabalhos de artistas foram usados ​​em cada imagem. "Se houvesse uma maneira de voltar e descobrir quem inspirou esse estilo de imagem que foi gerado, acho que seria justo que esse artista recebesse algum tipo de compensação", diz ele. Enquanto isso, ele acredita que os artistas devem continuar sendo criativos. "Tenho esperança de que por mais que a arte da IA ​​se desenvolva e aperfeiçoe, nunca será capaz de capturar a verdadeira essência humana, a verdadeira criatividade que temos como pessoas", avalia. "Você ainda vai precisar de suas próprias ideias criativas, da sua própria iniciativa." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para a artista e pesquisadora de direitos humanos Caroline Sinders, cabe às empresas de IA resolver o problema. "Parte do argumento que ouvimos das empresas é: 'Temos tantos dados, seria impossível para a gente dizer, seria como procurar uma agulha no palheiro'." "Eu gostaria de dizer: Tudo bem, isso é um problema 'seu', não um problema 'meu'", ela acrescenta. "Tenho direitos autorais sobre as imagens e pretendo exercer meus direitos autorais se minhas imagens forem usadas sem meu consentimento." Ela afirmou que também estava preocupada com o viés que essas ferramentas criaram — e como isso significava que a arte da IA ​​não estava refletindo o mundo real. "Digamos que a gente peça a um sistema de IA de geração de imagens para gerar um médico atendendo uma família", diz ela. "O mais provável é que o médico seja gerado como um homem e provavelmente branco, e o progenitor provavelmente será gerado como mulher." "E este não é um exemplo que estou inventando aleatoriamente. Já foram feitos testes com esse tipo de pergunta genérica sem o gênero estar no prompt e, com bastante frequência, está refletindo esses estereótipos." Isso se estende ao preconceito racial e também ao capacitismo, afirma Irene Fubara-Manuel, que dá aulas na Universidade de Sussex, no Reino Unido. Embora veja com entusiasmo as possibilidades oferecidas pela arte generativa, em sua opinião, questões como vieses raciais e de gênero em algumas imagens criadas são difíceis de superar. "Eu estava tentando pintar meu cabelo no verão, e estava só procurando 'pessoas de cor, cabelos loiros'", relembra. "O que recebi como resposta foi essa imagem fetichizada de pessoas negras. Sabe como? Com as linhas da mandíbula esculpidas, com a pele brilhando." "Há pessoas negras que são tão bonitas assim, mas as imagens que você vê comumente em muita IA são representações muito, muito fetichizadas das pessoas.Você não veria pessoas 'plus-size' ou com deficiências visíveis, por exemplo", acrescenta. Os artistas agora estão pedindo aos órgãos reguladores do Reino Unido e ao redor do mundo que tomem mais medidas para proteger os artistas e a indústria. Irene explica que os artistas não são contra a inteligência artificial — "o argumento é contra a exploração". "Mas tenho esperança de que contribua para a criatividade humana em geral, assim como a criação dos computadores colaborou com a criatividade. Estou animada com sua contribuição", pontua. Caroline afirma, por sua vez, que mais regulamentação para a emergente indústria de IA no Reino Unido não "sufocaria" a inovação. "Torna as coisas mais seguras, e é por isso que temos certas leis", diz ela. "É por isso que agora temos cinto de segurança e airbag nos carros, e muitas regras relacionadas a isso. Quando foram inventados, não tínhamos nada disso. Portanto, não é nada de outro mudo pedir, ou criar, salvaguardas e proteções." *Reportagem adicional de Lola Mayor.
2023-07-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqq42vdygqxo
sociedade
A espada viking achada por família no jardim de casa na Noruega
Imagine fazer uma obra no jardim de casa e descobrir um túmulo viking de 1,1 mil anos – com direito a armas e joias.⁠ Foi o que aconteceu com a família de Oddbjørn Holum Heiland ao se deparar com uma grande pedra chata no meio do jardim onde planejam construir um anexo à casa principal.⁠ A pedra era uma antiga lápide e debaixo dela foi encontrado um verdadeiro tesouro da antiguidade.⁠ O tipo de espada viking de 70 centímetros – embora enferrujada e partida em duas – permitiu que arqueólogos estabelecessem a idade dos objetos.⁠ "É a empunhadura que nos diz que a espada é da Era Viking", disse o arqueólogo Joakim Wintervoll à publicação norueguesa Science Norway.⁠ Fim do Matérias recomendadas O estilo das empunhaduras mudou muito na história, sendo muitas vezes apenas um detalhe decorativo.⁠ A peça encontrada no jardim dos Heiland dataria de fins dos anos 800 ou início dos 900, período referente a meados da Era Viking. ⁠ Entre os tesouros encontrados estão contas de vidro folheadas a ouro, um broche de bronze e uma fivela de cinto também dourada.⁠ Além disso, ali estava uma lança longa que era usada por guerreiros cavaleiros.⁠ Embora hoje seja comum retratarmos vikings com suas espadas, o arqueólogo Jo-Simon Frøshaug Stokke, que também estuda o sítio, disse que a maioria dos vikings não tinha condições de ter armas assim. ⁠ ⁠"Somente as armas já mostram que este é um túmulo rico e, além delas, temos as joias também. Ou seja, tratava-se de uma pessoa que nitidamente tinha uma boa condição", afirmou ele à Science Norway.
2023-07-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg3zn08l03po
sociedade
'Café alterou curso da História e fomentou ideias do iluminismo e do capitalismo', diz pesquisador
Todos os dias, mais de 2 bilhões de xícaras e copos de café são ingeridos em todo o mundo. Isso significa que, nos poucos minutos que você demorar para ler este texto, ao redor de 10 milhões de pessoas terão tomado uma bebida dessas, segundo os dados de associações do setor. Isso faz da cafeína, uma das substâncias presentes no café, a droga psicoativa mais consumida em todo o planeta. Mas como o interesse pelo fruto de um arbusto originário da Etiópia ganhou o mundo — e, segundo alguns autores e pesquisadores, influenciou até as ideias que deram origem ao iluminismo e ao capitalismo? E, afinal, o costume de ingerir a bebida faz bem ou mal à saúde? Fim do Matérias recomendadas Diz a lenda que um pastor que morava na região da atual Etiópia, no leste da África, observou que suas cabras pareciam ficar mais alegres e ativas depois que consumiam o fruto do cafeeiro. A partir disso, os indivíduos que habitavam o local passaram a ingerir diretamente os grãos macerados — alguns relatos apontam também para o hábito ancestral de fazer chá a partir das folhas dessa planta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC), os primeiros registros escritos sobre esses costumes cafeeiros originários vêm do Iêmen, a partir do século 6 d.C. Nesse período, 15 séculos atrás, as partes da planta eram usadas com fins medicinais, e monges também passaram a consumi-la para manter a atenção em rezas e vigílias noturnas. Mas o café como conhecemos hoje — torrado e moído — só foi desenvolvido a partir do século 14. Nas décadas seguintes, o hábito de tomar a bebida como um rito de sociabilidade conquistou partes da Europa e do Oriente Médio, a começar pela Turquia, onde surgiram as primeiras cafeterias do mundo. Poetas, filósofos, escritores e outros intelectuais foram os adeptos de primeira hora da prática — o que, aliás, nos leva ao próximo assunto. A história da popularização do café fez com que alguns autores creditassem à bebida o desenvolvimento de importantes ideias que moldaram o mundo pelos séculos seguintes. O filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas, por exemplo, destaca o papel das cafeterias na Inglaterra e na Alemanha durante os séculos 17 e 18 como os locais em que ocorria a comunicação, na forma de conversas e publicações. Já o escritor americano Michael Pollan, autor de Sob o Efeito de Plantas (Editora Intrínseca) defende que o consumo de café serviu de combustível para novas ideias, como o iluminismo — o movimento do século 18 que defendia o uso da razão no lugar da fé para entender e resolver os principais problemas da nossa sociedade. "Antes do café chegar à Europa, as pessoas estavam bêbadas ou inebriadas a maior parte do dia. Tomavam bebidas alcoólicas até no café da manhã. E indivíduos alcoolizados não vão ser racionais, lineares no pensamento ou com energia", continua ele. Com a popularização do café a partir do século 17, porém, as coisas mudaram. "Em Londres, existiam cafeterias dedicadas à literatura, onde escritores e poetas se congregavam. Outras eram específicas para o mercado de ações, ou as ciências…", lista Pollan. Em entrevista à BBC News Brasil, o professor de antropologia Ted Fischer, da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, concorda com essa relação histórica entre a bebida e as ideias iluministas. "O café alterou o curso da História e fomentou ideias do iluminismo e do capitalismo", diz o pesquisador, que dirige o Instituto de Estudos sobre o Café na universidade americana. "Não me parece um mero acidente que as ideias sobre democracia, racionalidade, empirismo, ciência e capitalismo vieram num momento em que o consumo dele se popularizou. Essa droga, que amplia a percepção e a concentração, definitivamente fez parte do contexto que desembocou no capitalismo", complementa. Falando em capitalismo, Fischer chama a atenção para como a demanda por café alterou o curso da história de vários países, incluindo a do próprio Brasil. "De um lado, temos em 1888 a abolição da escravatura e a ampliação da produção cafeicultora no Brasil. Do outro, alguns industriais na Europa começaram a oferecer café aos funcionários, além de vender o produto por um preço mais baixo", destaca. "E isso não era algo altruísta da parte dos donos das fábricas. Eles queriam aumentar a produtividade dos funcionários. Ou seja, temos o consumo de café ligado à produção capitalista, que levou ao aumento do cultivo em locais como Brasil e Guatemala", completa o pesquisador. Em linhas gerais, especialistas e agências de saúde apontam que o hábito de tomar café com moderação é seguro e pode até trazer benefícios. Mas como a bebida age no corpo? Em resumo, ela demora ao redor de 45 minutos para "viajar" pelo sistema digestivo, ser absorvida, cair na corrente sanguínea e agir no sistema nervoso. A cafeína, uma das principais substâncias do café e de outros produtos, tem uma estrutura química semelhante à adenosina, um composto produzido pelo próprio organismo que leva às sensações de relaxamento e dormência (entre outras funções). Isso faz com que a molécula do café se encaixe em receptores localizados na superfície das células nervosas, impedindo a ação da tal adenosina. "A cafeína tem a habilidade de bloquear esses receptores e, com isso, gerar um efeito psicoestimulante. Ou seja, ele surte uma ação contrária à adenosina e dá a sensação de estar desperto e focado", explica a nutricionista Marilyn Cornelis, professora da Escola de Medicina da Universidade Northwestern, nos Estados Unidos. Os estudos de farmacologia calculam que essa sensação de foco e atenção obtida com a cafeína dura entre 15 minutos e duas horas. E, como mencionado mais acima, essa substância psicoativa está presente não apenas no café, mas também em outras dezenas de espécies vegetais, como o guaraná, o cacau, a erva mate e o chá verde. A cafeína aparece ainda em produtos industrializados, como refrigerantes, energéticos e remédios. Mas será que essas alterações no organismo não geram repercussões negativas à saúde? Tudo depende da quantidade consumida, garantem os especialistas. O café é desaconselhado para crianças ou adolescentes pela falta de estudos específicos sobre o efeito da substância nessas faixas etárias. Já para as gestantes, a recomendação é conversar com o médico antes do consumo, pois algumas mulheres ficam sensíveis à cafeína durante esse período. Para adultos saudáveis, ultrapassar o limite de 400 mg pode gerar alguns sintomas desagradáveis, como insônia, nervosismo, ansiedade, taquicardia, incômodos estomacais, náusea e dor de cabeça. Já episódios de overdose de cafeína são mais raros e estão relacionados ao abuso de remédios ou energéticos. Ainda segundo a FDA, eles ocorrem quando a ingestão ultrapassa 1.200 mg por dia — o equivalente a tomar mais de 18 xícaras de expresso em poucas horas. Além das questões de segurança, estudos epidemiológicos e experimentais publicados nos últimos dez anos passaram a observar efeitos positivos do consumo regular (e moderado) de café. "Tomar entre duas e cinco xícaras por dia está relacionado a uma redução do risco de mortalidade, mas também de diabetes, doenças cardiovasculares e até alguns tipos de câncer", lista o farmacêutico Mathias Henn, que faz pesquisas na Universidade Harvard, nos EUA, e na Universidade de Navarra, na Espanha. "Também temos estudos sobre cafeína e redução no risco de doença de Parkinson", acrescenta ele. Que fique claro: esses trabalhos avaliaram especificamente o consumo de café. A cafeína que aparece em outras versões, como em refrigerantes, energéticos ou chocolates, pode não trazer o mesmo efeito. Além disso, esses produtos possuem dosagens diferentes (maiores ou menores) e muitas vezes carregam uma quantidade excessiva de açúcar — que, na contramão, está relacionado a uma série de problemas de saúde. E vale lembrar que o café não traz apenas a cafeína. Há uma série de outras substâncias ali, como é o caso do ácido clorogênico, um antioxidante. Para Cornelis, o acúmulo de conhecimento sobre os pontos positivos da bebida fez com que especialistas passassem a enxergá-la com bons olhos. "Em 2015, pela primeira vez, as Diretrizes Americanas de Nutrição indicaram que, com relação às evidências disponíveis naquele momento, o consumo de até cinco xícaras de café por dia era algo seguro e possivelmente benéfico", lembra ela. Mas a nutricionista lembra que o hábito de tomar café vai muito além dos efeitos psicoestimulantes da cafeína ou da tentativa de proteger a saúde. "O consumo do café está relacionado ao ambiente comunitário, às pausas no trabalho para interagir, às oportunidades de desenvolver relacionamentos e aproveitar uma boa atmosfera social", acredita ela. "E esse tipo de ambiente é ainda mais bem-vindo agora, depois de todas as questões de isolamento que tivemos com a pandemia de covid-19", conclui Cornelis.
2023-07-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clm1857vrg5o
sociedade
Desenrola Brasil: vale a pena renegociar dívidas no programa do governo?
Esta primeira etapa inclui quem tem débitos com bancos e renda mensal bruta de até R$ 20 mil. Cada banco decide se quer ou não participar. Em setembro, o governo promete lançar a segunda e mais importante fase do programa, destinada a quem tem renda até dois salários mínimos (R$ 2.640) ou esteja inscrito no CadÚnico, o cadastro único de quem recebe Bolsa Família e outros programas sociais. O objetivo do Desenrola, segundo o governo, é que brasileiros endividados limpem seus nomes ou deixem de ter o "CPF negativado". Com o nome "limpo" e o CPF livre, é possível voltar a comprar a prazo, pedir empréstimos, abrir crediário ou fazer um novo contrato de aluguel, por exemplo. Abaixo, a BBC News Brasil explica os principais pontos do programa e ouve economistas que avaliam as duas fases do Desenrola: vale participar desta etapa ofertada pelos bancos? O que deve servir de alerta para os endividados? Quais são os riscos de fazer a renegociação e não conseguir pagar? Fim do Matérias recomendadas Etapa já iniciada, faixa 2: renda até R$ 20 mil e "limpeza do nome" para débitos de R$ 100 Quem ganha até R$ 20 mil brutos por mês e tem dívidas atrasadas de qualquer valor pode procurar sua instituição bancária para saber se ela aderiu ou não ao Desenrola - cada banco pode decidir se entra ou não no programa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Atenção para a data dos débitos: só poderão ser renegociadas as dívidas contraídas entre 2019 e 31 de dezembro de 2022. Só valem dívidas com os próprios bancos. Débitos com concessionárias de serviços como água e luz, ou com lojas, não podem ser incluídos. As renegociações poderão ser feitas até o dia 30/12/2023. Os bancos que aceitarem entrar no Desenrola também vão "limpar o nome" automaticamente de quem tem débitos até R$ 100. Quem tem dívida até esse teto de valor não vai estar mais "negativado", ou seja, vai poder comprar a crédito, se não tiver outras restrições. Com essa ação, o governo federal considera que pode beneficiar cerca de 1,5 milhão de pessoas. Etapa prevista para setembro, faixa 1: renda até 2 salários mínimos O governo promete lançar em setembro a fase de renegociação das dívidas da chamada faixa 1 de renda, que são os trabalhadores que recebem até dois salários mínimos (R$ 2.640) ou pessoas cadastradas no CadÚnico, que reúne os os beneficiários dos principais programas sociais. Para este público, valem dívidas de até R$ 5 mil. Nesta segunda fase, além das dívidas com os bancos, também poderão ser renegociadas outras dívidas, como contas de energia, internet e telefone. Destinada à parcela mais pobre da população, essa fase é considerada “o grande teste de fogo" do programa, diz Lauro Gonzalez, professor do departamento de finanças da FGV. Segundo Gonzalez e Izis Ferreira, economista da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), ainda não está claro como funcionará esse aplicativo. A expectativa é que, por meio dessa plataforma, as pessoas endividadas tenham acesso a todos os débitos e às propostas de cada instituição para a renegociação. Garantir que ela funcione e seja fácil para o uso é um dos desafios. Para renda até R$ 20 mil (faixa 2) Na etapa já iniciada, cada endividado deve procurar seu banco para saber se: 1) a instituição está participando do programa; 2) avaliar qual a oferta de renegociação está sendo feita. Ou seja, para esta faixa de renda, não há teto para as taxas de juros que os bancos podem oferecer nem mínimo de desconto nas dívidas, desde que parcelem os débitos em pelo menos 12 vezes. Para incentivar os bancos a darem descontos maiores, o governo vai oferecer crédito tributário. Em outras palavras, vai reduzir os impostos a serem pagos pelas empresas. Segundo o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a cada R$ 1 dado em desconto nas dívidas, o governo vai abrir mão de receber R$ 1 real em tributos. Para renda até 2 salários mínimos (faixa 1) Nesta etapa prevista para setembro, o teto para as taxas de juros na renegociação das dívidas é de até 1,99% ao mês, com débitos parcelados em até 60 vezes, tendo valor mínimo de R$ 50 por parcela. Como as negociações vão ser feitas por meio de um aplicativo, a expectativa do governo é que haja um "leilão". Quem oferecer as melhores condições (maiores descontos no débito), leva. O que o banco ganhará em troca? A certeza de que receberá todo o dinheiro da dívida renegociada, caso o cliente não pague. Isso ocorre porque, para esta etapa do programa, o governo criou um Fundo Garantidor de Operações (FGO) para o Desenrola. Após 60 dias de atraso da parcela, o banco pode pedir ao governo que pague a dívida correspondente. Para os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, é sempre importante renegociar dívidas para evitar que os valores devidos cresçam mês a mês com as altas taxas de juros. Quanto antes for possível renegociar e ficar com o nome limpo, melhor. Mas, como nesta etapa atual do programa não há teto para a taxa de juros das renegociações, a recomendação é avaliar cuidadosamente a oferta dos bancos para decidir se vale a pena aderir já. A dica é tentar barganhar as melhores condições para pagar o que deve antes de setembro. "Primeiro, eu buscaria a instituição para a qual eu devo e perguntaria o que ela me oferece para renegociar esse valor sem o Desenrola", diz Ferreira. "Tentaria propor que eles adiantem as condições para que essa dívida, sujeita a juros, não aumente”, sugere a economista. Para a especialista, mesmo que a instituição financeira ainda não tenha aderido ao Desenrola, ou que a dívida só se enquadre na segunda etapa do programa, vale a pena já ligar para o banco e perguntar que tipo de condições ele oferece para uma eventual renegociação. Outra opção, caso seu banco não esteja no programa, é tentar fazer a transferência da dívida para outra instituição que tenha aderido ao Desenrola. Ferreira afirma, ainda, que este período pode ser uma oportunidade para que até mesmo as pessoas que tenham prestações em dia tentem uma renegociação para baixar os juros. “As pessoas podem conversar diretamente com a instituição financeira. No contrato de crédito, há uma cláusula que garante a renegociação em qualquer período do contrato. Principalmente se ela está com dificuldades para arcar com esse pagamento, há chances desses juros serem revistos”, diz. O material de divulgação do Desenrola incentiva que os devedores façam já o cadastro do portal oficial, usando o CPF e seguindo as instruções. Quem se conectar usando dados de seu banco, por exemplo, "sobe" de nível no portal, de "Bronze" para "Prata" ou "Ouro". O professor da FGV Luiz Gonzalez afirma que é essencial manter a calma no momento de fazer a renegociação. O objetivo é que as pessoas não acabem aceitando parcelas que não vão conseguir pagar. “A pessoa tem que estar atenta para que ela saiba se vai conseguir de fato cumprir as obrigações dessa nova renegociação", diz o professor. "Se ela desconfiar que não vai dar conta, ela pode tentar barganhar para obter uma prestação que caiba no orçamento dela e sabendo quais são as condições oferecidas normalmente pelo mercado”, afirma. Já Iziz Ferreira, da CNC, alerta que as pessoas que eventualmente não cumprirem com esses pagamentos da renegociação devem ter muita dificuldade ao tentar garantir crédito novamente no futuro. “A pessoa que aceitar a renegociação e não cumprir com essa nova dívida tem que ter saber as consequências disso. Porque o credor vai receber, mas ele (o consumidor) provavelmente vai ter muita dificuldade para obter crédito novamente”, diz a economista. A Febraban alerta que os interessados no programa devem buscar informações e ofertas de renegociação apenas dentro dos canais oficiais dos bancos. "Caso desconfie de alguma proposta ou valor, entre em contato com o banco nos seus canais oficiais", diz a entidade. Além disso, é preciso cuidado com propostas fraudulentas para o envio de valores. Somente após a formalização do contrato de renegociação é que os débitos serão feitos na conta, em datas combinadas. O governo afirma que a plataforma que será lançada para o programa terá um curso de educação financeira para os beneficiários que aderirem ao Desenrola Brasil da faixa 1 de renda. "É muito importante a realização do curso, para que o beneficiado pelo programa saiba como evitar novas situações de endividamento", diz o material de perguntas e respostas disponibilizado pelo programa. Não está claro, porém, se fazer o curso será obrigatório. Para a economista Izis Ferreira, uma das principais preocupações como o programa é saber como as pessoas vão reagir quando souberem que estão com o nome limpo e podem fazer novas dívidas. “Não vimos nenhum tipo de grande campanha nacional sendo feita em paralelo com o Desenrola. Não adianta o governo só colocar um curso atrelado ao aplicativo, como já anunciou, porque muitas vezes as pessoas nem conseguem acessá-lo por falta de internet", comenta. "Se a gente quer manter o consumo dessas pessoas sustentável, vamos ter que fazer com que elas tenham uma racionalidade e uso melhor desse crédito”, afirma. Ferreira aponta, por exemplo, que 87% dos endividados do país têm faturas do cartão de crédito atrasadas. Em 2022, a cada 100 famílias brasileiras, 78 estavam endividadas. O patamar já era o mais elevado da série histórica (com início em 2010) da Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic) da CNC. Em junho, depois de meses de estabilidade, esse número avançou mais um pouco, chegando a 78,5%. Entre 2020 e 2022, a proporção de famílias endividadas passou de 66,5% para 77,9%, uma alta de 11,4 pontos percentuais. A CNC explicou esse recorde de endividamento em 2022 com base em três fatores: a alta da inflação até a metade do ano passado, que corroeu o poder de compra das famílias; o incentivo crescente ao uso do cartão de crédito, através da oferta de novos produtos e serviços por bancos e fintechs; e, para os mais ricos, a demanda represada por serviços, como viagens e compra de passagens aéreas, geralmente pagos no cartão. Aliviar a situação dos endividados foi uma promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Para o governo, limpar o nome de boa parte dos brasileiros vai devolvê-los ao mercado consumidor e ajudar a economia a crescer. *Colaborou Flávia Marreiro, da BBC News Brasil em São Paulo
2023-07-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c515wn3g4w4o
sociedade
Deus na Constituição e religião na escola: a intrincada história da separação entre Igreja e Estado no Brasil
Que atire a primeira hóstia quem nunca viu um crucifixo pendurado na parede em uma instituição pública no Brasil. Sim, em pleno século 21, mais de 130 anos depois de ser oficializada a separação entre Igreja e Estado, ainda há repartições e gabinetes da administração laica ostentando o símbolo do cristianismo. Para não dizer em políticos usando o nome de Deus em vão — no caso, para justificar suas decisões que deveriam se prezar pelo civil e não pelo religioso — e até cidades que afixam placas, em suas entradas, dizendo que "pertence ao Senhor Jesus" e outros que-tais. Mas como se deu a separação entre Igreja e Estado no Brasil? E por que essa ruptura foi tão gradual, a ponto de a religião ainda estar presente no dia a dia das instituições públicas? Oficialmente, o Brasil se tornou um Estado laico com a Proclamação da República, em 1889. Era a tendência, naquele período de positivismo e ideais de constituição de um Estado moderno. Mas é preciso retroceder no tempo para entender essa relação e, principalmente, como já havia um desgaste entre o império brasileiro e a cúpula da Igreja ao longo do século 19. Professor na Universidade Federal do Maranhão, o historiador Ítalo Domingos Santirocchi explica que essa relação íntima entre fé e poder, no caso brasileiro, é uma herança portuguesa. "Era o direito do padroado, que dava ao rei português o direito de administrar parte da Igreja", explica ele à BBC News Brasil. Fim do Matérias recomendadas Segundo suas pesquisas, essa relação foi sistematizada a partir de uma gama de documentos emitidos por coroa e Igreja Católica em duas fases. Primeiramente, de 1420 a 1551. Em seguida, de 1486 a 1511. Santirocchi identificou que havia idas e vindas entre petições pró e contra tais direitos. Era um momento delicado, aquele. Ao mesmo tempo que havia um contexto de expansão marítima, o que resultaria em um imperialismo para o Estado e um potencial aumento de clientela para a Igreja, a Europa vivia um cenário em que diversas monarquias desafiavam a hegemonia da Igreja Católica, inclusive patrocinando a fundação de igrejas nacionais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Historaidores como Santirocchi entendem, portanto, que isso acabou fazendo com que a cúpula católica visse como um bom negócio conceder poderes eclesiásticos para as coroas abertas a isso — no caso, Espanha e Portugal. Além de manter esses povos dentro do catolicismo, ainda havia a possibilidade de chegar a novos fiéis. Na prática, a coroa mandava e desmandava. Criava dioceses e paróquias, nomeava bispos. O papa apenas precisava ratificar. Em troca: o governo precisava construir e manter as igrejas, bancar a côngrua — o salário dos religiosos —, construir e financiar o funcionamento de seminários e até mesmo investir em trabalhos missionários. A Igreja Católica também contribuía justificando e legitimando o movimento expansionista, é claro. Em artigo acadêmico de 2010, o jurista Rulian Emmerick, atualmente professor na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, comentou que "o projeto de colonização das novas terras pelo Estado português teria grandes dificuldades de ser implementado sem o apoio da Igreja Católica enquanto instituição legitimadora do poder e responsável pela coesão social e pela unidade nacional". Emmerick lembra que "em boa parte da história da sociedade brasileira (...) o direito do Estado confundia-se com o direito divino, isto é, o direito ditado pela Igreja Católica". "Desta forma, as instituições Igreja e Estado confundiam-se enquanto instituições legitimadoras do poder e normatizadoras dos corpos e das mentes. Ambas tinham pretensões de regular os princípios organizadores da incipiente sociedade brasileira e conquistar a consciência dos sujeitos, bem como deter o monopólio do capital simbólico no imaginário social", pontua o jurista, em seu artigo. Emmerick analisa as contrapartidas previstas pelo regime do padroado e resume que enquanto "os reis de Portugal detinham o direito de criar cargos eclesiásticos, nomear seus titulares, arrecadar o dízimo nos cultos e autorizar a publicação das atas pontifícias", a Igreja se beneficiava porque a coroa facilitava "a difusão da religião católica nas novas terras" e se responsabilizava "pela construção de igrejas, mosteiros etc". No Brasil Colônia essa relação foi automática, porque Brasil era parte de Portugal. Com a independência, em 1822, houve uma jogada que pode ser lida até mesmo como um movimento de dom Pedro 1º (1798-1834), o primeiro imperador, para deixar claro que quem dava as cartas era ele - e não a Igreja. Na carta, a religião católica é mencionada quatro vezes. O artigo 5º do primeiro título, que define a organização social do império, crava: "A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas, sem forma alguma exterior do templo". O texto constitucional ainda prevê o texto que deve ser lido como juramento durante a nomeação de um novo imperador: "Juro manter a religião católica apostólica romana, a integridade, e indivisibilidade do império; observar, e fazer observar a constituição política da nação brasileira, e mais leis do império, e prover ao bem geral do Brasil, quanto em mim couber". Santirocchi contextualiza que "após a independência, os direitos que eram concessões papais foram estabelecidos pela constituição". E o documento instituído ainda delegava ao imperador o direito de "conceder ou negar o beneplácito aos decretos dos concílios e letras apostólicas e quaisquer outras constituições eclesiásticas". Mas o papa não se deu por vencido. Em 1827 — ok, a distância e a comunicação da época faziam com que ações e reações levassem mais tempo —, o papa Leão 12 (1760-1829) mandou publicar a bula Praeclara Portugalia, concedendo esses direitos ao rei. "Só que [pela constituição] todo e qualquer documento papal tinha de ser aprovado e receber o beneplácito do imperador. E esse documento não recebeu o beneplácito", nota Santirocchi. "Mas, para a Igreja, era ela quem havia conferido esse direito ao imperador. Para o imperador, era um direito constitucional." Mais tarde, as rusgas só aumentariam. Conforme lembra o historiador, em 1858, "o Brasil e a Santa Sé não chegaram a um acordo para celebrarem uma concordata". "Os bispos queriam liberdade para se comunicar com o papa, administrar e organizar as dioceses", ressalta ele, lembrando que, até a década de 1870, eram somente 12 as dioceses no Brasil, com uma delas tendo o status de arquidiocese, Salvador. Na contenda, "o Estado queria controlar o aparato religioso", acrescenta Santirocchi, "como instrumento legitimador do sistema". E seguir tratando "o clero como funcionário público". "Tudo isso diminuindo cada vez mais os repasses financeiros para a Igreja". "A partir dos anos 1870 vários grupos passaram a pressionar para a separação [entre governo e religião]", afirma o historiador. "Os republicanos, os liberais mais radicais e até mesmo alguns católicos, padres e bispos, pois acreditavam que era melhor uma igreja livre, sem apoio financeiro do Estado." Ele recorda que esse desgaste se intensificou ainda mais depois da chamada "questão religiosa" ocorrida entre 1872 e 1875, quando dois bispos foram presos porque, entre o papa e o imperador, preferiram obedecer ao papa. "Eles decidiram punir as irmandades religiosas que tinham maçons em sua diretoria", explica Santirocchi. "Embora tenha ocorrido de forma institucionalmente abrupta, no sentido da transformação constitucional [no pós-proclamação da República], eu diria que a mudança foi sendo feita de forma gradual, ainda no período da monarquia", diz à BBC News Brasil o historiador Victor Missiato, pesquisador na Universidade Estadual Paulista e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré. Missiato recorda que dom Pedro 2º (1825-1891), o segundo e último imperador do Brasil, "começou a estabelecer algumas políticas no sentido de afastar o poder da Igreja, principalmente nas décadas de 1870 e 1880". São sete artigos. A lei proibia que a autoridade federal ou dos Estados criasse "leis, regulamentos ou atos administrativos estabelecendo alguma religião" e determinava que todos os "habitantes do país" tivessem tratamento sem diferenças. A liberdade de culto também foi instituída e ficou determinada que todas as igrejas e confissões religiosas seriam reconhecidas como "personalidade jurídica". Mas o governo federal também precisou ceder. Ficou acertado, na lei, que o Estado precisava seguir pagando a côngrua e, por um ano, subvencionaria os seminários. Santirocchi conta que a lei resultou de uma hábil negociação entre o jurista Rui Barbosa (1849-1923), então Ministro da Fazenda, e um dos protagonistas — do lado católico — da "questão religiosa", o bispo Antônio de Macedo Costa (1830-1891). Naquele mesmo ano de 1890, Costa se tornaria arcebispo de Salvador. "Ele estava cotado para se tornar o primeiro cardeal da América Latina, se não tivesse morrido meses depois". "Com o fim do padroado, o Estado deixa de ter o direito justificado de interferir na Igreja. E também não paga mais à Igreja. A Igreja passa a ter de se virar e se autofinanciar", acrescenta Santirocchi. E talvez a Igreja Católica estivesse muito acomodada em uma zona de conforto, sob o sustento do governo federal. Prova disso é que a separação institucional, em vez de prejudicar o catolicismo, fez com que a religião crescesse no Brasil, fora das amarras do controle governamental. "Depois da separação a Igreja católica cresceu vertiginosamente. Muitas paróquias, dioceses e arquidioceses foram criadas, muitas ordens religiosas vieram para o Brasil", analisa Santirocchi. "O mesmo aconteceu com as religiões protestantes e evangélicas: cresceram, aumentaram a variedade de denominações, nasceram as primeiras igrejas evangélicas brasileiras já no início do século 20." Mas essa separação não foi automática. Primeiro porque era natural uma certa resistência de alguns setores da Igreja e, por outro lado, a complacência de alguns setores da administração pública. Em segundo lugar, o emaranhado entre Igreja e Estado era tão extenso que, realmente, ficava complicado identificar todos os pontos de contato e ingerências da noite para o dia. Em 2017, quando estava pesquisando em diversos documentos e arquivos públicos em busca de informações para meu livro Santo Antônio: A história do intelectual português que se chamava Fernando, quase morreu na África, pregou por toda a Itália, ganhou fama de casamenteiro e se tornou o santo mais querido do Brasil (Editora Planeta, 2021), deparei-me com uma história bastante inusitada envolvendo o governo brasileiro e o santo português. Desde os tempos coloniais, Santo Antônio vinha sendo nomeado militar - com as mais diversas patentes - em muitas localidades do território brasileiro. Era uma cargo simbólico, obviamente, mas que previa remuneração equivalente ao salário militar compatível com o cargo - dinheiro este que era pago a algum convento ou paróquia. Durante o período em que a corte portuguesa transferiu-se de Lisboa para o Rio de Janeiro, o então príncipe regente João 6º (1767-1826) publicou um decreto fazendo do santo sargento-mor de todo o exército luso-brasileiro. No documento, o monarca confessou "particular devoção" ao santo e frisou que fazia isto como gratidão pela intercessão do mesmo "em prol da monarquia portuguesa, duramente hostilizada" por Napoleão Bonaparte (1769-1821). Os procuradores do santo eram os frades franciscanos do convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro - ou seja, era essa a instituição que ficava com os salários do "militar". O santo acabaria sendo promovido, três anos mais tarde, a tenente-coronel de infantaria. A trajetória militar de Santo Antônio no Brasil chegaria ao fim com a proclamação da República. Ao fazer um pente-fino nas contas estatais, o delegado fiscal do Tesouro Nacional, Antônio de Pádua Mamede, impugnou a inclusão do nome de Santo Antônio nas folhas de pagamento. O argumento era profundamente republicano. "Não é lícito que a nação continue a pagar aquele soldo (...) concorrendo-se, assim, para conservar a crendice que teve o príncipe regente ao expedir aquelas patentes, sob o fundamento de haver o dito Santo Antônio influído para salvar a monarquia portuguesa da grande crise que então atravessava", considerou ele. O processo levou cinco anos para ser aprovado. Em mais um capricho do deus das coincidências, o documento que extinguiu o salário do santo foi assinado por um ministro da fazenda de nome Francisco Antônio de Sales (1863-1933). O ato foi registrado na folha 21 do livro 486 da então diretoria de contabilidade da guerra. Mesmo sem salário, contudo, ainda não havia sido publicado nenhum ato que extinguisse as patentes do santo. Seguia, portanto, o incansável Antônio um eterno integrante do Exército Brasileiro. Até que, em 1924, o presidente Artur Bernardes (1875-1955) cobrou de seu ministro da guerra, Fernando Setembrino de Carvalho (1861-1947) que resolvesse a questão. "O coronel Antônio de Pádua vai quase em três séculos de serviço. Nomeie-o general e ponha-o na reserva", escreveu Bernardes. Solucionado o caso. Santo Antônio que desfrute do descanso merecido. No dia a dia da população, a separação entre Igreja e Estado resultou em algumas mudanças. De um lado, a liberdade de culto, inclusive em espaços públicos - com exceção para os espíritas e os de religiões africanas, "que ainda terão de lutar", conforme lembra Santirocchi. De outro, uma questão de ordem burocrática. Antes monopólio das paróquias, os registros de nascimento, casamento e óbitos passaram a ser incumbência do estado. Inclusive com a instituição do casamento civil. E a seguinte criação de cemitérios públicos. Mas, conforme recorda o historiador Victor Missiato, nem só de crucifixos em repartições públicas sobrevive a religiosidade dentro do aparato estatal. "É um processo gradual e relativo", pondera ele. Um exemplo está na educação. Em 1931, em sua primeira passagem pela presidência do país, Getúlio Vargas (1882-1954) promoveu a volta do ensino religioso nas escolas - tornando "facultativo" o que havia sido abolido; na prática, reativando-o. Ensino religioso que, no dia a dia daquele contexto, beneficiava exclusivamente a Igreja Católica. "Nos anos 1920, a Igreja Católica se reaproximou dois políticos. Essa reconciliação ficou mais evidente depois da Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas chegou ao poder e, alguns meses depois, publicou o decreto que tornava o ensino religioso facultativa nas escolas públicas", afirmou o historiador Angelo Antonio Greco, em sua tese de doutorado defendida em 2017 na Universidade de São Paulo. Segundo Greco, o ensino religioso "foi instrumento de fortalecimento católico, reconquistando espaços perdidos na República Velha". "O decreto de Vargas foi feito claramente em benefício dos católicos e, anos depois, foi incorporado na Constituição de 1934", afirma o pesquisador. "O ensino religioso era considerado como obra principal pelos católicos e houve grande organização na arquidiocese de São Paulo, com fiscais e delegadas fazendo relatórios do seu andamento nas escolas", relata o historiador, destacando que "houve a inserção do ensino católico num ambiente laico", em escolas públicas, "com alunos de outras confissões religiosas". E Deus está mesmo nos detalhes. Victor Missiato lembra que mesmo a Constituição atual, de 1988, parece não se esquecer das relações intrincadas entre religião e Estado. O preâmbulo do texto diz que o mesmo está sendo publicado "sob a proteção de Deus". "A laicidade brasileira é uma laicidade republicana, mas ela tem aspectos morais que, na longa duração, a gente pode dizer que estão ligados a uma visão cristã de sociedade. No Brasil, essa separação entre Igreja e Estado não ocorre de forma nitidamente delimitada", diz. Ele recorda que diversas legislações civis demoraram a perder o lastro religioso, como no caso da lei do divórcio — instituída apenas em 1977. Outro exemplo é o casamento homoafetivo, reconhecido no Brasil apenas em 2013. "Não é uma linha reta. A cultura republicana vai sendo instituída com o tempo, de forma gradual, afastando os temas religiosos dos temas do Estado. Mas até hoje ainda temos muitas relações com a religião, por exemplo no Congresso, onde muitas decisões ainda são pautadas pela religião."
2023-07-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1z547xjdwo
sociedade
O dia em que inesperadamente passei de repórter da BBC a negociador de reféns
Quando me entregaram o telefone para falar com o agressor, tudo que sabia era que ele ameaçava incendiar o hospital e que um médico havia sido feito refém. Eu ia falar com David Collins e, ainda que a polícia não tivesse me dado todas as informações, sabia que estávamos em um momento crítico. Metade do hospital, com 300 pacientes, havia sido evacuado quando o Exército e 100 policiais chegaram. Mas negociar com um atirador não era o que eu esperava quando fui cobrir o sequestro como repórter local da BBC. Era uma tarde de outubro de 1999 e, como jornalista de rádio que cobria o oeste do País de Gales, fui para a cidade de Haverfordwest assim que soube do caso. Fim do Matérias recomendadas Eu estava esperando do lado de fora do Hospital Withybush por algumas horas quando me pediram para ligar para o policial encarregado da operação. Eu estava animado porque queria saber exatamente o que estava acontecendo lá dentro, mas não esperava o que o superintendente da polícia local, John Daniels, tinha em mente para mim. Ele queria que eu falasse com o sequestrador. David Collins, que tinha 38 anos na época, buscava vingança contra o hospital pela forma como o trataram mal. Ele era alcoólatra e afirmou que, na primavera de 1999, um especialista em Withybush lhe disse que seu vício o mataria. Então ele acumulou milhares de libras em dívidas pensando que nunca precisaria pagá-las. Mas em uma consulta no final daquele ano, após perguntar ao especialista "quando eu vou morrer?", a resposta do médico foi "você não vai morrer, mas seu risco de morte aumentará se você continuar bebendo muito". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ao saber que não estava enfrentando uma morte iminente, ele ficou muito chateado e quis se vingar. Collins voltou para o hospital e tomou como refém o médico residente Kingsley Paul, de 28 anos, o amarrou em uma cadeira e o manteve sob a mira de uma arma. Ele também disse aos serviços de emergência que havia enchido balões com gasolina e que, se alguém invadisse o quarto, ele incendiaria o local. Então, sem saber exatamente no que estava me metendo, fui escoltado até o porão do hospital, onde o Superintendente Daniels me disse: "Gil, eu queria saber se você poderia nos ajudar e falar com esse cara e ver o que pode fazer." "Fazer? Claro", foi minha resposta. Embora meu pedido para gravar a conversa para o rádio tenha sido educadamente recusado. Imediatamente, fui levado dois ou três lances de escadas, por uma porta lateral, passando por muitos policiais armados e entrando em um escritório administrativo logo abaixo do corredor de onde o crime estava acontecendo. A sala continha dois negociadores experientes, um telefone e um quadro-negro onde era possível ler "não é hora de encerrarmos o dia?" Quando me sentei, o telefone foi colocado em minha mão e liguei para o sequestrador. Fiquei surpreso com a rapidez com que aconteceu, pareceram alguns minutos. Não recebi informações preliminares, apenas o apelo: "fala com ele, Gil". Era tão simples como isso. O que você diz a um homem apontando uma arma para a cabeça de um médico a alguns quartos de distância? Então entrei no modo jornalista e comecei a perguntar a ele sobre a sua vida. Comecei cumprimentando e perguntando: "Você já ouviu falar de mim?" Ele respondeu: "não". Foi um golpe no meu ego. Conversamos sobre sua família, filhos, amigos, seu trabalho e onde ele morava. De vez em quando, eu mencionava: "Não é hora de acabarmos com o que está acontecendo?", como haviam me pedido. Ele trabalhava com andaimes, mas estava desempregado. E como na época eu estava reformando a minha casa, tivemos uma conversa surreal sobre os tipos de andaimes que eu tinha em casa. Tentei não pensar nas possíveis consequências, pois seria muita pressão, então apenas conversei. Houve um momento aterrorizante quando ele parou de falar, ficou em silêncio e a linha caiu. Eu pensei: "Oh não, o que eu disse? Ele vai matar aquele médico e este lugar vai explodir a qualquer momento?" Prendi a respiração, todos nós prendemos a respiração, mas nada aconteceu, então disquei novamente e continuei nossa conversa. Após cerca de quatro horas de conversa, ele começou a chorar e me confidenciou: "Eu me meti em problemas e não sei o que fazer." Ele me explicou a sua situação. Não estava bem. Tentei parecer o mais compreensivo que pude, mas sem sugerir que o que ele estava fazendo estava correto. Eu estava muito tenso. Meus músculos do estômago estavam tão tensos que senti dores por dias. O hospital cancelou 68 operações e 700 consultas ambulatoriais, enquanto 150 pacientes foram retirados do local, mas logo me disseram que estávamos embaixo da unidade de cuidados intensivos. Portanto, embora tenham esvaziado o resto do hospital, as pessoas em aparelhos de suporte de vida no andar de cima não puderam ser transferidas. Conversei com ele por mais de quatro horas. Collins liberou o doutor Paul após 28 horas. Mas o cerco durou 48 no total. Fiquei no hospital a pedido da polícia, caso eles precisassem de mim novamente. Até fiz transmissões de rádio ao vivo de dentro, só que não pude divulgar minha missão secreta na operação. Frequentemente me perguntavam por que o Superintendente Daniels me escolheu. Não sei. Nós nos conhecíamos de casos anteriores e talvez ele soubesse mais sobre mim do que sobre os outros jornalistas presentes. Alguns colegas acreditam que me escolheram porque dizem que tenho uma voz distinta e grave. Meus amigos brincam e me chamam de "Gil sussurante". Eles até acham que minha voz é bastante reconfortante. A verdade é que não sei e nunca me disseram o motivo de a polícia ter me escolhido. Eu também não perguntei. Algumas pessoas também me contaram que minha história inspirou o filme Alpha Papa, de Steve Coogan, de 2013. Mais uma vez, não tenho certeza. No final, convenceram Collins a libertar seu refém e ele se entregou após 48 horas. Descobriram que a arma que ele dizia ter era falsa e os balões estavam cheios de água. Ele acabou condenado à prisão perpétua após admitir o falso sequestro, possuir uma imitação de arma de fogo com a intenção de cometer um crime e ameaçar destruir propriedades. Dois anos depois que ele foi preso em Swansea Crown Court, recebi uma ligação de uma prisão: era Collins. Fiquei muito surpreso, mas ele queria que eu o ajudasse a fazer um programa de TV sobre ele e o ataque ao hospital, mas recusei a oferta. O superintendente Daniels me disse mais tarde que havia levado as fitas do sequestro para uma conferência de combate ao crime nos Estados Unidos porque, até aquele momento, um jornalista nunca havia ajudado a negociar uma situação de refém antes. Devo dizer que gostaria de ter férias grátis nos Estados Unidos. No entanto, fiquei muito grato ao receber um elogio do chefe de polícia pelo meu trabalho. Fiquei feliz por ter ajudado e por ninguém ter se machucado. Tenho agora 80 anos e vou me aposentar neste verão depois de cinco décadas na BBC, cobrindo casos que incluem assassinatos famosos no País de Gales. Encontrei histórias muito emocionantes para cobrir e muitas vezes ainda tenho sonhos sobre aquela situação de refém em Withybush. Coisas assim tendem a ficar com você por toda a vida.
2023-07-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2jp7edm52o
sociedade
O mito do 'macho alfa', desmentido pelo homem que ajudou a popularizá-lo
O que vem à sua mente quando você ouve a frase "macho alfa" referindo-se a um ser humano? Um homem que, graças ao seu nascimento nobre ou características atraentes ou charme natural, tem mais acesso a sexo, riqueza e estima da sociedade? Ou melhor, alguém forte, poderoso, que impõe sua vontade sem ligar para as consequências e sem ninguém para desafiá-lo? Talvez até um valentão ou tirano? Embora existam várias definições, o conceito geralmente implica um nível de dominação. Fim do Matérias recomendadas Mas, segundo o importante primatologista Frans de Waal, "macho alfa" não significa apenas força e intimidação, como o estereótipo parece sugerir. E ele vem tentando corrigir essa interpretação porque ele mesmo contribuiu sem querer para criar o mito que quer desmascarar. O conceito de macho alfa já era há muito usado em vários campos do comportamento animal, mas raramente aplicado a humanos. O que mudou isso, pelo menos em parte, foi um de seus livros, publicado há 40 anos. De Waal, que estudou o comportamento social dos primatas por cinco décadas, acredita que os humanos são fundamentalmente semelhantes a eles emocional e socialmente. Como os primatas, temos hierarquias e competimos para estar no topo. No entanto, o que é preciso para chegar lá não é necessariamente o que você pensa, a julgar pelos muitos livros, vídeos e sites de autoajuda para homens. A BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC, conversou com De Wall para nos ajudar a entender o que realmente era um "macho ou uma fêmea alfa". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC: De onde vem o termo 'macho alfa'? De Waal: Inicialmente, era usado para lobos e depois foi estendido para outros animais, e o usamos muito na primatologia. Um macho alfa é apenas o macho no topo da hierarquia, assim como a fêmea alfa é a fêmea na posição mais alta da hierarquia. Isso não significa nada além disso. Em cada grupo de primatas há um macho alfa e uma fêmea alfa, nunca mais de uma, e não são mutuamente exclusivos; às vezes eles trabalham juntos. BBC: O que significa ser um macho alfa? De Waal: Nos chimpanzés, por exemplo, você pode ter 12 machos, e há muita competição entre eles sobre quem será o dominante. Não é necessário ser o maior, porque isso não é necessariamente decidido por habilidades físicas, mas por um processo político. BBC: Quando o senhor diz "político" referindo-se aos chimpanzés, o que isso significa? De Waal: É político porque eles têm coalizões: não podem se tornar o macho alfa sem o apoio de outros. É quase como um processo democrático no sentido de que os outros têm influência sobre quem é o alfa. E se o alfa não se comporta muito bem, digamos que ele é um valentão ou muito agressivo, e os outros querem se livrar dele, esperam que alguém o desafie e o apoiam. Quando o macho alfa percebe que não consegue manter sua posição, às vezes nem é preciso uma luta física para ele desistir. Além do mais, dependendo da gravidade da situação, às vezes acaba expulso do grupo. E também há relatos de que alguns (machos alfa) são mortos - o que também acontece, claro, na sociedade humana, quando o líder é tão impopular que não é apenas afastado de seu cargo, mas executado. BBC: Então, qual é o perfil de um macho alfa? De Waal: Muitas vezes ele é um macho muito vigoroso e fisicamente saudável, pois se ele perder a saúde, outros machos tomarão seu lugar. Entre as fêmeas é muito diferente, porque todas as fêmeas costumam ser dominantes, então as fêmeas alfa não são muito fortes fisicamente, mas são respeitadas pela idade. Mas alfa não é um tipo de personalidade. As pessoas começaram a usar o termo para descrever algo que realmente não é como usamos na primatologia. BBC: Mas o senhor é um pouco culpado por termos essa imagem de macho alfa nos seres humanos… De Waal: Há algum tempo escrevi o livro Chimpanzee Politics: Power and Sex among Apes (Políticas de Chimpanzé: Poder e Sexo entre Macacos, publicado em 1982) no qual usei muito o termo macho alfa. E então os políticos em Washington começaram a usá-lo, mas geralmente eles queriam dizer outra coisa. BBC: Qual era a diferença? De Waal: Entre os chimpanzés, por exemplo, muitos dos machos alfa protegem os oprimidos, interrompem as brigas, têm muita empatia, mantêm o grupo unido e contam com algum senso de responsabilidade, portanto não são ditatoriais. Às vezes existem tiranos, mas na maioria das vezes são bons líderes. Mas os políticos em Washington começaram a usar o termo para um tipo de homem forte. BBC: Ou seja, o conceito foi distorcido? De Waal: Não fiz comparações com a sociedade humana. O livro era principalmente sobre chimpanzés. Falei muito pouco sobre as pessoas. Mas nos políticos, e depois na comunidade empresarial na América, eles começaram a usá-lo para um homem que não é apenas forte e um líder, mas também um valentão, alguém agressivamente dominador. Nunca usei o termo nesse sentido, mas foi o que eles fizeram dele. Introduzi o termo da maneira que um primatologista o introduziria e depois ele foi alterado - o que me deixou contrariado. Acho que devemos voltar ao significado original, que é o do homem, e muitas vezes da mulher, no topo da hierarquia, que pode ser um líder muito responsável, alguém que mantém o grupo unido e garante a paz. Na verdade, é isso que um verdadeiro líder normalmente faz. Toda essa bobagem sobre mostrar a todos quem é o chefe, quem manda e quem fica com as garotas, essa bobagem toda que circula por aí está errada, na minha opinião. BBC: Quando isso começou a te incomodar? Essa distorção começou a circular logo que o livro foi lançado? De Waal: Não, todo o hype do macho alfa veio muito mais tarde. O livro saiu em 1982 e foi adotado pelos republicanos em Washington por volta de 1995. E o hype em torno dos machos alfa é algo das últimas duas décadas, portanto é um fenômeno mais recente. Agora é usado para pessoas como, digamos, (Jair) Bolsonaro, (Donald) Trump e (Vladimir) Putin. É para isso que o usam: líderes muito fortes, muitas vezes muito mandões, obtusos e egoístas. BBC: Esses tipos de interpretações errôneas podem ser perigosos porque quando se afirma que algo vem da natureza é mais difícil de refutar. Por exemplo, no passado, as pessoas diziam que a homossexualidade não era natural, alegando que nenhum animal era homossexual, o que não era verdade. Mas foi um argumento forte porque não apenas tinha um 'fundo' de ciência, mas parecia ser um fato, e quem pode argumentar com fatos? De Waal: Sim, infelizmente as palavras natural e antinatural são usadas como um julgamento moral: natural é bom e antinatural não é. E muitas vezes é uma projeção. As pessoas têm uma ideologia e buscam justificativas na natureza. Nela você pode encontrar quase qualquer coisa, ali você sempre encontra algum fundamento para sua posição. Diz-se, por exemplo, que a competição é natural, porque no mundo animal há muita competição. Mas se você olhar para a natureza, verá uma quantidade enorme de cooperação, muitos animais que cooperam: os leões, os elefantes, os insetos sociais, que vivem em colônias... A cooperação está em toda parte. Portanto, se você quiser fazer uma declaração sobre cooperação, também pode dizer que é natural. As pessoas usam a natureza para justificar ideologias, e isso é perigoso. Por exemplo, para a homossexualidade, como você mencionou, há muitas evidências de comportamento homossexual no reino animal, então não é antinatural. Na verdade, há uma quantidade enorme de diversidade de gênero. Quando as pessoas dizem "isso é natural ou não é natural", acho que deveriam conversar com biólogos, e provavelmente vão ouvir que tudo é muito mais complexo do que pensam. Eu diria a elas: "Observe com mais atenção o reino animal e provavelmente verá que, para tudo o que encontrar na sociedade humana, encontrará alguma equivalência na sociedade animal, especialmente em animais tão próximos de nós quanto os primatas." BBC: E vice versa? O senhor já viu machos alfa no sentido real do termo na sociedade humana? De Waal: Um verdadeiro macho alfa costuma ser muito popular porque proporciona segurança e harmonia ao grupo. E às vezes você os vê entre os humanos, por exemplo, os alemães tiveram uma fêmea alfa governando-os por mais de 10 anos. Alfa é uma posição muito importante para manter o grupo unido. É verdade que às vezes existem indivíduos abusivos, também entre os primatas, mas na maioria das vezes não são assim. Agora, se você pensar em termos de poder físico, os machos costumam ser dominantes porque são fisicamente maiores e mais fortes. Se você pensar em poder político, a fêmea alfa pode ser muito poderosa.
2023-07-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjrl8702ypno
sociedade
O que é o 'lagom', a filosofia sueca para a busca da felicidade e do equilíbrio
A filosofia sueca do lagom convida você a aproveitar mais a vida de forma equilibrada. É fazer o que for absolutamente essencial e saber quando parar. Não surpreende, portanto, que o termo tenha sido eleito, há alguns anos, como a "palavra da moda" por diversas publicações internacionais, como as revistas Vogue e Elle. Para a escritora e fotógrafa Lola Akinmade Åkerström, moradora de Estocolmo, capital da Suécia, o espírito do lagom é o que realmente define o estilo de vida escandinavo. "Não é apenas uma palavra, mas a essência do que significa ser e viver como sueco", escreve Åkerström em seu livro Lagom: The Swedish Secret of Living Well ("Lagom: o segredo sueco para viver bem", em tradução literal). "Ele impregna profundamente a sociedade e a linguagem da Suécia, desde o trabalho e a família até a decoração do lar, a comida, o cuidado com o meio ambiente, as finanças e muito mais", explicou Åkerström em entrevista à revista Forbes. Fim do Matérias recomendadas "Para mim, lagom significa, na verdade, a melhor solução, não a solução perfeita, para criar equilíbrio em qualquer contexto", acrescentou ela. "Me atreveria a dizer que é a raiz da mentalidade sueca." Para o psicólogo Niels Eék, cofundador do aplicativo de bem-estar Remente, é natural que o lagom esteja se popularizando entre as pessoas ao redor do mundo. "Por um lado, somos exagerados nos nossos hábitos de trabalho, relacionamentos e caprichos", diz ele. "Por outro, somos aconselhados a nos limitar, experimentando uma nova dieta ou uma desintoxicação da moda." "Em um mundo de contrastes e conselhos contraditórios, o lagom acerta em cheio: ele permite que as pessoas se divirtam, mantendo-se saudáveis e contentes ao mesmo tempo", explica. Etimologicamente, a palavra lagom é uma forma nórdica antiga da palavra "lei". Ela também significa "grupo", em sueco. Mas, culturalmente, suas raízes remontam aos tempos dos vikings, que se reuniam ao redor da fogueira depois de um dia árduo de trabalho e compartilhavam chifres cheios de hidromel, uma bebida fermentada feita de mel. Esperava-se que cada pessoa bebesse uma quantidade justa para que hiuvesse o suficiente para todos. E, ao longo dos séculos, esse "laget om" ("sentar-se em grupo") foi abreviado para "lagom". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O conceito é difícil de traduzir porque muda de significado conforme a situação e em diferentes contextos. Pode significar "apropriado" no âmbito social, "moderação" na comida, "menos é mais" na decoração de interiores, "atenção plena" no bem-estar, "sustentabilidade" no estilo de vida e "lógica" nos negócios. Mas tudo isso carrega uma conotação de tomada de decisão ideal. E, sobretudo, representa tomar sempre a melhor decisão para você ou para o grupo em que você se encontra. "Pense em lagom como uma balança imaginária que precisa sempre estar equilibrada", disse Åkerström. "Muito pouco desestabiliza a balança, assim como o demasiado também a desestabiliza. Assim, a mentalidade lagom tenta eliminar o estresse, a desestabilização, para manter a balança sempre equilibrada. Os hábitos sustentáveis que podem ser mantidos diariamente são o segredo para manter esse equilíbrio." Ser lagom também significa ser moderado na personalidade, nas opiniões e na política. Os suecos geralmente odeiam discordar, até mesmo durante um debate no jantar. É algo incrivelmente frustrante em outras culturas, que veem a exaltação como sinal de comprometimento, mostrando que você realmente se importa com o que está sendo discutido. Quando se diz skratta lagom às crianças ou lagom kul aos adolescentes, não significa "ria à vontade" nem "divirta-se um pouco" — mas, sim, "não ria demais" ou "não ultrapasse os limites". Se você seguir a máxima de fazer tudo de forma equilibrada, fica fácil entender como funciona essa filosofia nas diferentes situações cotidianas. Trabalhar demais, por exemplo, contraria a filosofia do lagom. Por isso, uma forma simples de aplicar o conceito no trabalho é fazer pausas regulares. Na Suécia, descansar tomando um café e, quem sabe, comendo um doce com os colegas de trabalho tem até um nome: fika. É costume fazer esse intervalo duas vezes ao longo da jornada de trabalho. Isso ajuda a recalibrar o dia para não trabalhar demais. A mentalidade lagom também significa planejar e buscar sempre o consenso, para minimizar os conflitos e discussões no trabalho. Em casa, o lagom significa reduzir o estresse, a partir do entendimento de que tudo que não tenha uma função ou um forte valor emocional está ocupando um espaço. O objetivo é criar um ambiente aconchegante e acolhedor, somente com objetos que gerem bem-estar ou felicidade porque trazem boas recordações, por exemplo. Você deve se desapegar do que é desnecessário para evitar casas abarrotadas. O mesmo acontece com a alimentação. O lagom incentiva hábitos alimentares saudáveis que você possa manter confortavelmente. Isso significa se alimentar adotando um consumo sustentável, ético e local, com produtos frescos e da estação. E as sobras devem ser reutilizadas. Um exemplo é a receita de pyttipanna, tradicionalmente preparada com os restos das últimas refeições. Da mesma forma, o lagom incentiva o consumo consciente, com uma abordagem meticulosa do uso do dinheiro, evitando gastos inúteis. Isso não significa que você deva apenas economizar. Na verdade, a filosofia defende que vale mais gastar com algo bom e durável, como uma peça de roupa de qualidade, do que com algo acessível e mal feito. "Acredito que a beleza deste estilo de vida é que podemos escolher as melhores partes para aplicá-las e combiná-las com as nossas próprias culturas", afirma Åkerström. "Na minha própria vida, por exemplo, me tornei uma ouvinte melhor por falar menos e compartilhar apenas as informações relevantes." "Em relação ao bem-estar, aprendi a falar 'não' com mais frequência e, o que é mais importante, a não me sentir culpada por isso", acrescenta. O lagom é fascinante porque se trata de uma mentalidade — e não apenas de um conjunto específico de ações a serem seguidas. O lagom quer que encontremos o nosso próprio equilíbrio e momentos de felicidade em nossa vida para nos sentirmos confortáveis. Não há um hábito específico. Em suma, cada um tem seu próprio lagom. Se nos concentrarmos primeiro nas nossas necessidades e em satisfazê-las ao máximo com a melhor qualidade possível, já estaremos estabelecendo as bases para satisfação em nossas vidas. Como o lagom de uma pessoa não é exatamente igual ao de outra, um lado negativo do lagom pode se manifestar dentro de grupos. Isso faz com que as pessoas se conformem, em nome da harmonia, a não impor seus níveis individuais de lagom ao grupo, para evitar causar problemas e ressentimentos. O lagom quer nos levar para um espaço de satisfação individual, ao mesmo tempo em que cria harmonia dentro de grupos. "O lagom nos ensina a evitar o excesso e a limitação extrema, o que nos permite compreender melhor o que nos faz felizes e o que funciona para o nosso próprio e único bem-estar mental", explica Eék. Segundo ele, "ao adotar uma mentalidade lagom, nós ensinamos a nós mesmos como evitar variações de humores ou sentimentos extremos." Por isso, se você for à Suécia e notar longos intervalos de silêncio e respostas estudadas, o mais provável é que não tenha nada a ver com você — é apenas o lagom em ação.
2023-07-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cld3rd9llwpo
sociedade
Os países onde dar gorjeta é costume malvisto
A eterna discussão sobre a cultura das gorjetas nos Estados Unidos voltou ao noticiário após funcionários da primeira loja sindicalizada da Apple no país defenderem receber gratificação de clientes. O anúncio levantou intensos debates sobre a prática, onde segue muito arraigada. Muitas pessoas acreditam que a cultura das gorjetas está saindo do controle. Expressões como "dar gorjeta por culpa", "cansaço das gorjetas", "arrepio das gorjetas" e "inflação das gorjetas" já se tornaram frequentes entre os americanos. Essa prática polêmica se espalhou por todo o mundo, mas nem todos os países a adotam com o mesmo vigor que os Estados Unidos. Fim do Matérias recomendadas O costume de dar gorjetas gerou recentemente discussões na Espanha, enquanto, na França, service compris ("serviço incluso") significa que a gorjeta já está embutida na conta. Em outros lugares, particularmente no leste asiático, a inexistência da tradição de gorjetas é motivo de orgulho. Para exemplificar o velho dilema de dar ou não gorjeta, aqui estão alguns lugares com suas próprias características. Eles foram selecionados com base na cultura de aprovação ou não desta prática e mostram como o comportamento em relação à gorjeta reflete aspectos mais abrangentes da sociedade de cada país. A sabedoria popular costuma dizer que o Japão é uma espécie de paraíso da limpeza, onde não existe lixo. Lá, a imperfeição (wabi-sabi) é respeitada e a consciência social valorizada como uma forma de arte (não coma enquanto estiver andando; fique em silêncio no transporte público; não aponte com as mãos, nem com os hashis; não assoe o nariz em público — a lista é quase interminável). No Japão, as gorjetas também não são apenas incomuns. Elas são consideradas desagradáveis e constrangedoras. E essa cultura japonesa de prestação de serviços sem gorjetas precisa realmente ser comunicada para o visitante estrangeiro com uma advertência: se você der gorjeta, irá ofender alguém. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Mesmo quando os visitantes são informados que no Japão não se dá gorjetas, algumas pessoas ainda ficam dispostas a demonstrar seu reconhecimento com dinheiro, mas não é assim que funciona", afirma James Mundy, da operadora de turismo britânica InsideJapan Tours. "É comum ver as pessoas deixarem dinheiro para os garçons no restaurante e depois serem seguidas na rua e receberem seu dinheiro de volta". "Muitos não conseguem entender que as pessoas fazem seu trabalho com orgulho e que [dizer] oishikatta ('estava delicioso') ou gochiso sama ('obrigado por preparar a refeição') será muito bem aceito. O dinheiro nem sempre traz diálogo." A repulsa japonesa às gorjetas é perceptível. O shokunin kishitsu — algo como "espírito de artesão" — está infiltrado em muitos aspectos da vida japonesa. É uma filosofia aprimorada por muitas pessoas nos setores de atendimento aos turistas, como recepcionistas de hotéis até vendedores e chefs de sushi. A prestação de serviços significa, nessa cultura, fazer as necessidades básicas de um trabalho com orgulho. É mais comum que o reconhecimento seja demonstrado por meio de cumprimentos (de preferência, em japonês) ou com reverências. Mas existe uma exceção: os ryokans, as hospedarias tradicionais, revestidas com tatami. Nelas, os visitantes podem deixar dinheiro para o nakai san — o atendente vestido com quimono que prepara seu alimento e seu futon (estofado). Mas é preciso usar a forma apropriada: não entregue a gorjeta pessoalmente; deixe notas novas e fechadas em um envelope especialmente decorado. Um costume profundamente arraigado no norte da África, no Oriente Médio e no sul da Ásia é o conceito de baksheesh, que é uma gorjeta ou esmola por caridade. Ela pode ser solicitada abertamente por um motorista de táxi ou guia turístico, ou sugestivamente sussurrada em um bazar no canto da rua. Mas as duas formas têm o mesmo significado: o que está sendo pedido é um presente ou uma pequena gorjeta, independentemente do serviço oferecido. Se interpretado erroneamente, o baksheesh pode ser traduzido como um pedido de esmola. Mas dar esmolas para os pobres é um dos pilares do islamismo. Compreender este ponto irá aprofundar o conhecimento daquela parte do mundo pelo visitante. E o benfeitor supostamente se tornará uma pessoa mais sagrada com esta ação. No Egito, essas gratificações são comuns para os funcionários de hotéis e restaurantes, motoristas de táxi e guias turísticos, bem como para os porteiros, funcionários que cuidam dos banheiros, seguranças e vendedores de lojas. Uma análise mais profunda do baksheesh também revela que o costume é parte de um sistema informal de pagamento adiantado. Os guias turísticos e concierges de hotéis do Cairo até Assuã podem fornecer tratamento preferencial, garantir serviço de primeira qualidade e fazer favores se receberem gorjetas antecipadamente. Dólares americanos ou libras egípcias são bem-vindos: US$ 1-2 (cerca de R$ 5-10) são suficientes para ser bem recebido com um sorriso. Em circunstâncias como estas, não é incomum no Egito conseguir milagrosamente a chave de um templo trancado no Vale dos Reis ou fazer com que um banheiro inacessível em um museu seja subitamente reaberto para os visitantes. E os turistas não irão encontrar essa recomendação nos folhetos turísticos. Mesmo nas mais modernas metrópoles da China, como Pequim e Xangai, tradição e superstição ainda têm forte influência na sociedade. Na China, as pessoas não esperam receber gratificações. E, embora possa parecer difícil de acreditar nisso em um país obcecado pelos avanços tecnológicos e pelo mundo do futuro, as gorjetas já foram proibidas por no passado. Um dos mandamentos da China é que todas as pessoas são iguais e nenhuma é servidora de outra. Insinuar superioridade sobre outra pessoa é um tabu há muito tempo. E, embora o gigante asiático seja cada vez mais um país de grandes hotéis e enormes restaurantes, as gorjetas continuam a ser mal-vistas, algumas vezes até interpretadas como subornos, principalmente em cidades menores e que recebem menos visitantes. Mas o crescimento do turismo chinês e a assimilação de muitos costumes ocidentais estão mudando pouco a pouco essa cultura, segundo Maggie Tian, gerente-geral na China da operadora de turismo australiana Intrepid Travel. "Dar gorjetas na China, historicamente, era considerado ofensivo, mas os tempos estão mudando", explica ela. "Os chineses ainda não têm o hábito de dar gorjetas, mas as gratificações agora são aceitáveis, especialmente nas cidades maiores, onde existem muitos moradores e visitantes estrangeiros." "Se você for visitante, dar pequenas gorjetas aos porteiros, guias de turismo e garçons por um serviço excepcional ou por um ajuda específica é algo que é bem recebido. Apesar do histórico, os moradores locais irão apreciar", segundo Tian. Poucos países levam a cultura das gorjetas tão a sério quanto os Estados Unidos. As gorjetas são tão arraigadas na psique nacional quanto o Super Bowl (a final da NFL, a liga de futebol americano). E, às vezes, pode ser difícil para o turista estrangeiro mensurar ou explicar este espírito. Atualmente, deve-se acrescentar 20-25% ao valor final da conta. A inflação das gorjetas traz dificuldades para moradores locais e visitantes. De fato, o valor oferecido ou esperado aumentou exponencialmente nos últimos tempos e o desenvolvimento das opções de gorjetas digitais tornou esta prática ainda mais complexa. Existem casos em que os profissionais de serviços são mal pagos e dependem do ciclo diário de gratificações. Com isso, cada vez mais varejistas — desde postos de gasolina até a rede de cafeterias Starbucks — acrescentam taxas de serviço opcionais às vendas de balcão, que antes eram feitas pelo valor líquido. A questão é que quase tudo, incluindo ou não a prestação de serviço, pode acabar tendo custos maiores. Existem muitas formas de agir errado (não dar gorjeta por uma bebida ao sentar-se em um bar pode fazer com que um cliente deixe de ser servido, por exemplo), mas apenas uma forma de fazer o certo. "Os Estados Unidos têm uma cultura de gorjetas que não existe em outros lugares", afirma Peter Anderson, diretor-gerente do serviço de concierges de viagem Knightsbridge Circle. "Recentemente, em Nova York, comprei uma garrafa d’água em uma loja e, na hora de pagar, pediram-me uma gorjeta", conta. "Mas eu peguei a água sozinho, levei para o balcão e paguei. Ainda assim, eles esperavam que eu deixasse 20%." "Em muitos lugares, é apenas uma forma de pagar salários mais baixos aos funcionários e repassar mais custos para o cliente", explica Anderson. Os Estados Unidos têm presenciado um movimento contra as gorjetas e uma mudança para métodos de remuneração mais equitativos para os funcionários, mas o progresso tem sido lento. No momento, é preciso entender que, embora dar gorjetas seja legalmente um ato voluntário nos Estados Unidos, os salários dos atendentes e outros profissionais do setor de turismo, muitas vezes, estão abaixo do mínimo. E sempre vale a pena ser agradável, especialmente quando se viaja como representante do seu próprio país. Em um país frequentemente mencionado como um dos mais felizes do mundo pela sua sociedade igualitária, benevolência para com os demais e generosidade comunitária, pode ser uma surpresa verificar que os dinamarqueses são majoritariamente um país de pessoas que não dão gorjetas. Basicamente, são dois os motivos: os cidadãos do país se beneficiam do PIB (Produto Interno Bruto, ou soma de bens e serviços produzidos por um país) per capita mais alto e de um sistema de assistência social melhor do que a maioria dos outros países. Isso faz com que os profissionais de serviços, motoristas de táxi e profissionais da linha de frente não dependam de gorjetas da mesma forma que em outros lugares. Além disso, a taxa de serviço normalmente é incluída na conta dos hotéis e restaurantes dinamarqueses. Mas, ainda que dar gorjetas não seja uma tradição, a norma na Dinamarca — e nos outros países escandinavos — é arredondar a conta no restaurante como um gesto simbólico. E, como em quase todos os lugares da Europa atualmente, serviços acima do padrão costumam ser recompensados com uma gorjeta em dinheiro ou com a fidelidade ao estabelecimento e visitas frequentes, o que também é muito valioso. Cada país tem suas regras específicas sobre as gorjetas. Às vezes, essa prática pode parecer um campo minado. Mas o importante é sempre respeitar as outras culturas na hora de viajar. Por isso, certifique-se de pesquisar os costumes locais sobre gorjetas antes de viajar para qualquer destino, para evitar ofender as pessoas.
2023-07-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2kk78xj2jo
sociedade
'Estavam muito felizes em viajar juntos': o trágico acidente de helicóptero em que morreram 5 pessoas da mesma família no Everest
Os membros da família Sifuentes González tiveram poucas oportunidades de viajar juntos. Os filhos viviam ocupados com estudos ou trabalho. Por isso foram tão especiais os dias de férias na Índia para o casal Ismael Sifuentes Rincón e Luz María González Olacio com os filhos Fernando, María José e Abril Sifuentes González. Mas tragicamente, os membros da família que era do norte do México morreram na terça-feira (11/7) quando o helicóptero em que eles estavam caiu na região do Monte Everest, no Nepal. A aeronave deveria seguir até a capital nepalesa, Katmandu, mas perdeu contato com a torre de controle dez minutos após o início da viagem. O piloto nepalês Chet Bahadur Gurung também morreu. O governo do Nepal anunciou uma investigação para determinar as causas do acidente. Fim do Matérias recomendadas Os dias antes da viagem eram de muita felicidade para a família mexicana, contou Samuel Sifuentes, um parente das vítimas. “Eles estavam muito felizes em fazer a viagem porque os cinco iriam juntos. Antes, viajavam dois ou três, porque Abril era médica e era impossível os cinco saírem juntos. E por isso estavam muito contentes”, disse Samuel ao jornal Vanguardia de Coahuila. "A notícia caiu como uma bomba", lamentaram os familiares. "Ficamos sabendo pela imprensa, algo muito triste." O Instituto Nacional de Câncer do México expressou suas condolências pela morte de Abril Sifuentes, que era médica residente da instituição. O embaixador do México na Índia, Federico Salas, informou que os Sifuentes González estiveram na Índia e no domingo viajaram para o Nepal onde contrataram um serviço de transporte “que se faz regularmente às montanhas do Himalaia, especificamente ao Monte Everest”. A empresa contratada, Everest Experience and Assistance, se encarregou do passeio em um helicóptero operado pela Manang Air, que havia realizado o sobrevoo do Everest. Na viagem de volta, a aeronave caiu na região de Khumbu. A Manang Air lamentou a morte do piloto: “Você pode não estar mais aqui, mas ainda está em nossos corações. Descanse em paz, capitão Chet Bahadur Gurung." Tanto Ismael Sifuentes Rincón quanto Luz González Olacio eram conhecidos em San Pedro, cidade do estado de Coahuila, no norte do México. Os filhos nasceram em Monterrey, cidade mexicana em que a família morou nas últimas décadas. Ismael Sifuentes era um empresário conhecido em San Pedro por ser descendente de um dos fundadores do município, Epitacio Sifuentes. Todos os anos eles realizavam reuniões familiares na região. "Eles vieram (a San Pedro) há cerca de um ano, apresentaram seus três filhos, sua esposa", disse Samuel Sifuentes. Nas redes sociais, Luz María González e sua filha Abril compartilhavam regularmente fotos de suas viagens a diferentes partes do planeta. A médica publicou uma foto em frente ao Taj Mahal, na Índia, em 4 de julho. A viagem ao Nepal seria rápida: “Eles vieram só para ver o Everest. Eles não poderiam ir a nenhum outro lugar, nem mesmo a Katmandu", disse Mukti Pandey, chefe da empresa de turismo. “Eles queriam conhecer a região de Khumbu e a cultura de lá. Só tiveram um dia para fazer isso porque não tinham muito tempo”, acrescentou. Lhakpa Sherpa, um morador local que ajudou nas buscas e no resgate, disse que encontrou uma cena "muito assustadora" no local do acidente. "Ouvimos o som do helicóptero. Não conseguimos vê-lo por causa das nuvens. Então ele se chocou contra uma árvore a cerca de um quilômetro de nossa casa", disse um morador da área ao serviço nepalês da BBC. O primeiro-ministro do Nepal, Pushpa Kamal Dahal, expressou suas condolências no Twitter. O governo nepalês anunciou uma investigação e cooperação com o México para a repatriação dos corpos da família.
2023-07-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw5rek1ydz3o
sociedade
A Barbie pode se tornar o novo Homem de Ferro?
À primeira vista, pode parecer uma comparação descabida, mas o CEO da empresa de brinquedos Mattel gostaria que a Barbie fosse o próximo Homem de Ferro. Isso porque Ynon Kreiz aspira a criar um "universo Mattel", disse ele à BBC — repetindo o sucesso do universo Marvel, que gerou dezenas de filmes de sucesso para a Disney a partir de um elenco de personagens de quadrinhos como Thor, Capitão América e Guardiões da Galáxia. Essa é a estratégia por trás do filme 'Barbie', que chega ao Brasil neste mês de julho. Quando se tornou CEO da Mattel em 2018, Kreiz começou a trabalhar no longa-metragem, do qual é produtor-executivo. Barbie e Ken são interpretados por Margot Robbie ('O Lobo de Wall Street') e Ryan Gosling ('Blade Runner 2049' e 'La La Land: Melodia de Amor'), com direção de Greta Gerwig ('Adoráveis Mulheres'). Fim do Matérias recomendadas Kreiz reconhece que há algum risco em dar à Barbie o tratamento de Hollywood, trabalhando com diretores e roteiristas que têm suas próprias ideias criativas. Há "humor e autodepreciação" no filme, diz ele (pelo menos de sua parte, pois é interpretado por Will Ferrell ('Saturday Night Live' e 'Zoolander'), um CEO controlador e um pouco enfadonho). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Fica claro até no trailer que a Barbie é alvo de piadas. Para os mais gentis, ela é ingênua e inocente. Já para os mais críticos, superficial e frívola, obcecada com a aparência e incapaz de compreender o significado do sexo, da morte — ou da vida sem salto alto. A "terra dos sonhos" da Barbie é uma utopia rosa, divorciada da realidade. "Este filme levou 64 anos para ser feito (a Barbie foi lançada em 1959)", diz Kreiz, "mas representa como a cultura vê a Barbie hoje". A Barbie continua sendo a marca mais vendida da Mattel, gerando para a empresa mais de US$ 1,5 bilhão (R$ 7,2 bilhões) anualmente. Suas outras marcas incluem Hot Wheels, Masters of the Universe, Polly Pocket, Matchbox, etc. Kreiz argumenta que as outras marcas da Mattel também têm potencial para serem transformadas em "spin-offs" de sucesso, como videogames. O especialista em marketing e autor Mike Buonaiuto diz admirar a publicidade inventiva que a equipe por trás do filme tem feito, incluindo a listagem no Airbnb de uma "Casa dos sonhos da Barbie". "Mas vamos ser honestos", diz Buonaiuto, "a oportunidade para o universo Mattel é muito diferente da Marvel, e enquanto a Barbie está sendo alimentada por colaborações nostálgicas milenares, tente fazer o mesmo para Hot Wheels, e provavelmente não será possível obter o mesmo resultado". "Não acredito que a Mattel possa competir com a Marvel nesse aspecto." Entretanto, a falência recente da Toys R Us, famosa loja de brinquedos sediada nos Estados Unidos, mostra por que fabricantes de brinquedos como a Mattel precisam diversificar seus negócios para além da venda de produtos físicos, acrescenta Buonaiuto. A Barbie surgiu nos Estados Unidos em 1959, desenvolvida por Ruth Handler, co-fundadora da Mattel. Antes dela, as bonecas normalmente assumiam a forma de bebês, para que as crianças pudessem brincar de ser pais carinhosos. Mas as Barbies passaram a encorajar os pequenos a brincar de serem adolescentes, imaginando seu futuro através das bonecas. Como os anúncios de TV originais veiculados durante o Clube do Mickey diziam: "Algum dia serei exatamente como você." Isso se mostrou atraente e um bom negócio. Mais de 1 bilhão de bonecas Barbie foram vendidas no início dos anos 1990. Mas também houve questionamentos sobre o que exatamente as bonecas Barbie ensinam às crianças, especialmente sobre a imagem corporal. O design original retratava Barbie como uma mulher extremamente magra, e as mensagens reforçavam ideias pouco saudáveis. Um infame conjunto de festa do pijama criado em meados da década de 1960 apresentava balanças de banheiro fixadas em 50 kg e um livro de dieta que aconselhava: "Não coma". Outra Barbie falante criada no início dos anos 1990 dizia a seguinte frase: "A aula de matemática é difícil". A Mattel mais tarde se desculpou. Esses questionamentos continuaram a afetar a percepção das pessoas sobre a marca e, sem dúvida, estão por trás de uma queda em sua popularidade cerca de uma década atrás. A Mattel aprendeu as lições e agora está acompanhando a evolução dos tempos, diz Kreiz. "A Barbie é uma bandeira da diversidade e inclusão", diz ele, "com mais de 170 tipos diferentes de Barbie em termos de forma corporal e cor de pele, e a Barbie tem mais de 200 carreiras, então as meninas podem explorar seu potencial de maneiras diferentes. " A Barbie lançou recentemente bonecas com deficiências, membros protéticos e uma com Síndrome de Down. Para se ter uma ideia, a "Barbie clássica e tradicional" representa menos da metade do negócio agora, diz Kreiz. Esse novo compromisso com a diversidade se reflete no elenco do filme, enquanto a clássica Barbie, que é a personagem central, é gentilmente ridicularizada. Kreiz também aponta que a Mattel está reestruturando a empresa para se adequar aos tempos atuais. Agora, seus produtos são divididos em categorias, em vez de ter equipes dedicadas a separar produtos para meninos e meninas. Isso apesar do fato de que muitas lojas ainda dividem os brinquedos por gênero, com corredores cor-de-rosa para meninas que querem ser princesas e azuis para meninos que gostam de dinossauros e carrinhos. O filme da Barbie faz parte da estratégia de Kreiz para posicionar a Mattel como um "ímã de talentos", trabalhando com pessoas como diretores de cinema para testar empreitadas novas com suas criações conhecidas. "As pessoas que compram nossos produtos não são apenas consumidores", diz Kreiz. "Eles são fãs, que têm uma relação afetiva com os produtos. As crianças tocam, abraçam e vão para a cama com nossos brinquedos". "Acreditamos na oportunidade de longo prazo para a Barbie. Mas precisamos evoluí-la, mantê-la relevante e no centro da conversa cultural."
2023-07-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clwz4q1w7nxo
sociedade
O introvertido arquiteto acusado de ser serial killer de mulheres em Nova York
Um arquiteto descrito como "introvertido" por vizinhos foi acusado pela morte de três das 11 vítimas nos assassinatos de Gilgo Beach, no estado de Nova York, há mais de uma década. Rex Heuermann, de 59 anos, é acusado de matar Melissa Barthelemy, Megan Waterman e Amber Costello. Também é suspeito da morte de uma quarta mulher. Ele se declarou inocente. Os detetives dizem que combinaram o DNA da pizza que o suspeito comeu com o material genético encontrado nos restos mortais das mulheres. O comissário de polícia do condado de Suffolk, Rodney Harrison, disse em entrevista a jornalistas na sexta-feira (14/7): "Rex Heuermann é um demônio que caminha entre nós — um predador que arruinou famílias". Fim do Matérias recomendadas O suspeito, que foi preso em sua casa na noite de quinta-feira (13/7), enfrenta três acusações de assassinato em primeiro grau e três acusações de assassinato em segundo grau pelas mortes das três mulheres. O juiz do caso ordenou que ele permanecesse sob custódia, citando a "extrema depravação" dos crimes. Depois de formalizar sua apelação no tribunal, Heuermann teria começado a chorar, dizendo ao seu advogado: "Não fiz isso". O advogado, Michael Brown, disse que seu cliente estava "perturbado" e chamou as evidências de "extremamente circunstanciais". "Estamos ansiosos para enfrentar este caso em um tribunal, não no tribunal da opinião pública", afirmou Brown. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As três mulheres foram encontradas mortas em 2010 perto de uma quarta vítima, Maureen Brainard-Barnes. Elas foram apelidadas de "Gilgo Beach Four". Todas eram profissionais do sexo, segundo os promotores. O promotor distrital do condado de Suffolk, Ray Tierney, disse em entrevista a jornalistas na sexta-feira que "cada uma das quatro vítimas foi encontrada posicionada de maneira semelhante, amarrada de maneira semelhante por cintos ou fita adesiva, com três das vítimas encontradas envoltas em um material do tipo serapilheira". O promotor local disse que o caso contra Heuermann foi baseado em registros de telefone celular que o ligavam às vítimas, bem como a uma caminhonete que foi vista perto da casa de uma das mulheres. Ele supostamente se comunicou com elas usando telefones pré-pagos, que posteriormente descartou. Registros telefônicos também permitiram aos investigadores determinar que as mortes ocorreram quando a esposa e os filhos de Heuermann estavam fora da cidade. O cabelo encontrado em um pedaço de serapilheira usado para embrulhar uma das vítimas foi associado a Heuermann por meio de uma amostra de uma caixa de pizza que ele descartou em uma lixeira em Manhattan em janeiro de 2023, segundo as autoridades. Os investigadores dizem que chegaram até ele por ligações repletas de insultos que uma pessoa que afirma ser o assassino fez para um dos membros da família de Barthelemy usando seu telefone celular. Barthelemy foi sequestrada em 2009. Waterman e Costello desapareceram em 2010. Heuermann também é o principal suspeito da morte de Brainard-Barnes, que foi sequestrada em 2007, embora até agora ele não tenha sido acusado de sua morte. Em 2010, a polícia procurava uma mulher desaparecida, Shannan Gilbert, quando descobriu os restos mortais de outras quatro. Ao todo, 11 conjuntos de restos humanos foram encontrados no mesmo trecho de Gilgo Beach entre 2010-11, ligados a nove mulheres, um homem e uma criança. As identidades de quatro, incluindo a criança, sua mãe e o homem, permanecem não identificadas. xxxxOnze conjuntos de restos humanos foram encontrados na praia de Gilgo em 2010 e 2011 Os restos mortais de Gilbert foram finalmente encontrados, e um exame necroscópico foi declarado inconclusivo. Sua família acredita que ela pode ter sido assassinada - uma teoria sustentada por uma autópsia independente que eles próprios encomendaram. Uma nova força-tarefa para investigar os assassinatos de Gilgo Beach foi formada em fevereiro de 2022. Heuermann se tornou o foco da investigação em um mês, disse Tierney. Mais de 300 intimações e mandados de busca foram emitidos pelos investigadores do caso. Desde que a força-tarefa foi formada, Heuermann supostamente também usou um telefone pré-pago para realizar mais de 200 pesquisas sobre tópicos relacionados a assassinos em série e à investigação de Long Island. Isso incluiu uma busca por "por que o serial killer de Long Island não foi pego" e "mapear as vítimas de assassinato de Long Island", mostram os documentos do tribunal. Tierney acrescentou que "pornografia de tortura" e "representações de mulheres sendo abusadas e mortas" foram encontradas no computador de Heuermann. A investigação sobre as outras vítimas está em andamento. Heuermann é dono da RH Consultants and Associates, um escritório de arquitetura de Manhattan que se descreve como "o principal escritório de arquitetura da cidade de Nova York". A agência de notícias Associated Press informou que ele tem uma filha e um enteado. Um vizinho disse que ele ia ao trabalho todas as manhãs vestido de terno e gravata e carregando uma maleta. Tierney disse que Heuermann tinha licenças para 92 armas e um "cofre muito grande" no qual armas de fogo eram guardadas. Em uma entrevista no YouTube para um canal especializado em imóveis no ano passado, ele afirmou trabalhar no coração da cidade de Nova York desde 1987, descrevendo-se como um "solucionador de problemas". E acrescentou que seu trabalho ajudou a ensiná-lo a "entender as pessoas". Vizinhos de Heuermann demonstraram surpresa com sua prisão. "Ele sempre está na dele, nunca incomoda ninguém", disse o vizinho Etienne DeVilliers à emissora americana CBS. "Estamos chocados. Porque este é um bairro muito, muito tranquilo. Todo mundo se conhece, todos os nossos vizinhos, somos todos amigáveis."
2023-07-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgr8yx9yzreo
sociedade
‘Um renomado neurocirurgião fez experimentos comigo e arruinou minha vida’
Leann Sutherland tinha 21 anos e sofria de enxaqueca crônica quando um dos principais cirurgiões da Escócia se ofereceu para fazer uma operação nela. Ela foi informada de que ficaria no hospital por alguns dias e que tinha 60% de chance de melhora. Em vez disso, ela ficou internada por meses enquanto Sam Eljamel a operou sete vezes. A BBC revelou que o cirurgião - ex-chefe de neurocirurgia do NHS Tayside, uma das unidades na Escócia do serviço público de saúde britânico - estava causando danos aos pacientes e os colocando em risco há anos, mas o conselho de saúde o manteve na função. O NHS Tayside sempre afirmou que só soube das acusações a partir de junho de 2013 e que o pôs sob supervisão naquele momento. Mas uma pessoa disse à BBC que o conselho de saúde sabia desde 2009 que havia sérias acusações contra ele. O serviço escocês da BBC conversou com três cirurgiões que trabalharam com Eljamel em Tayside. Todos os três disseram que Eljamel tinha permissão para se comportar como se fosse um "deus" - em parte, por causa dos recursos para pesquisa que ele levava para o departamento. O conselho de saúde disse à BBC que estava trabalhando com o governo escocês numa análise independente sobre as ações de Eljamel e que não poderia comentar casos individuais. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Antes de sua cirurgia em 2011, Leann trabalhava em período integral e passava férias no exterior com amigos, mas sua vida era marcada por enxaquecas. Eljamel, considerado o melhor neurocirurgião da Escócia, disse a ela que poderia ajudá-la. Depois de uma operação, ela estaria em casa em questão de dias, ele teria lhe dito. Ele removeria uma pequena parte do crânio dela para aliviar a pressão e disse a ela que usaria uma nova cola para selar a ferida. Leann disse à BBC: "Infelizmente, não selou adequadamente e estourou. A ferida abriu e o fluido cerebral começou a escorrer pela parte de trás do meu pescoço." Ela diz que, no dia seguinte, a cama de hospital onde ela estava ficou "encharcada" com seu fluido espinhal. Quando se levantou para usar o banheiro, ela desmaiou e disse que o fluido se espalhou pelo chão. Uma enfermeira colocou um aviso de piso molhado na área. Leann passou meses no hospital. Ela contraiu meningite e desenvolveu hidrocefalia. Eljamel ordenou que ela fizesse quatro punções lombares - o que análises médicas concluíram que ela não deveria ter feito. Leann agora sabe que ele estava usando a cola como parte de um teste de pesquisa. "Testando em mim - isso é o que ele estava fazendo", diz ela. "Não pode haver outra razão para testar uma cola, experimentar diferentes desvios. Isso é experimentar. Eu era a cobaia dele." Ela acrescenta: "Ele tinha rédea solta sobre meu corpo. Ele estava brincando de Deus com meu corpo e o NHS (serviço público de saúde do Reino Unido) entregou a ele o bisturi, sete vezes." Quando Leann citou suas preocupações à equipe, ela foi informada de que Eljamel havia salvado a vida dela. Ela não foi informada de que ele estava sob investigação, nem que ele mais tarde foi forçado a renunciar do cargo. Foi só depois de ver a cobertura recente da BBC que ela percebeu que não estava sozinha. Leann agora tem 33 anos. Ela vive em constante dor. Ela precisa de muletas para andar e tem um tubo - chamado de derivação - instalado no corpo dela e que controla seu fluido espinhal. "Tudo mudou", diz ela. "Meu sonho era ser policial e isso nunca vai acontecer. Eu luto com isso. Não poder ter a carreira que você quer, não poder ter o estilo de vida que você quer, não poder ter filhos.” "Muitas coisas foram tiradas de mim sem que eu tenha culpa." Leann é um dos 100 pacientes que pedem um inquérito público para descobrir exatamente o que Eljamel fez. Os danos a ela e a outros pacientes são irreversíveis, mas ela quer garantir que o conselho de saúde seja responsabilizado e que nenhum outro cirurgião possa causar tais danos. Ela diz que só percebeu que ele havia prejudicado os pacientes depois de ver uma reportagem da BBC Escócia. "Pensei que seria apenas eu. Não sabia que havia outras 99 pessoas", diz ela. "Não entendo como ele conseguiu lavar o sangue das mãos e ir para casa." Eljamel foi suspenso pelo NHS Tayside após procedimentos internos e externos em 2013 e foi trabalhar na Líbia. Pela primeira vez, três pessoas que trabalharam com Eljamel falaram com a BBC. Mark, cujo verdadeiro nome não será revelado, diz que está falando agora porque teme que o conselho de saúde ainda não tenha aprendido as lições do passado. "Eu fiz acusações na época, mas fui calado", diz ele. "Parte de mim se sente culpada por não ter feito nada [mais] sobre isso, mas eu era muito jovem. "Disseram-nos que nunca conseguiríamos o nosso estágio." Ele diz que enfermeiras, cirurgiões sêniores e gerentes sabiam, pelo menos desde 2009, que Eljamel estava regularmente fora do hospital para fazer trabalhos particulares quando deveria operar pacientes. Mark diz que semanalmente Eljamel deixava cirurgiões juniores operar sem supervisão. "Deixar um júnior operar quando você nem está no prédio e um paciente se machucar é negligente", diz ele. "O NHS Tayside cobriu coisas assim por muito tempo em Dundee.” "Chegou no conselho. Todos sabiam disso." Mark se lembra de uma ocasião em que estava em uma cirurgia para observar um médico júnior operando um paciente de Eljamel quando o cirurgião iniciante cortou acidentalmente a medula espinhal. Ele disse que o fluido espinhal estava "escorrendo" e que ele e outro cirurgião foram enviados para encontrar um cirurgião mais experiente. Esse paciente ficou permanentemente incapacitado. "O que esse importante neurocirurgião fez com esses pacientes?", questiona ele. "Acho que foi um dano sério. Acobertamentos acontecem, então essas coisas precisam ser investigadas novamente. Os três cirurgiões nos disseram que Eljamel desencorajava o uso de raios-X porque era muito arrogante e queria economizar dinheiro. Acredita-se que, como resultado, ele operou no lugar errado a coluna de pelo menos 70 pacientes - deixando muitos permanentemente incapacitados. Mark diz que uma das razões pelas quais Eljamel era considerado "intocável" era porque ele trazia muito dinheiro para o departamento por meio de projetos de pesquisa que muitos deles consideravam "estranhos e até questionáveis". Uma porta-voz do NHS Tayside disse: “O diretor médico e executivo-chefe do NHS Tayside se reuniu com o secretário de gabinete e os MSPs (membros do parlamento escocês) locais de Tayside em abril para discutir as preocupações contínuas dos pacientes do professor Eljamel. "Foi acordado na reunião que o NHS Tayside trabalharia com o governo escocês nas próximas etapas para apoiar pacientes individuais por meio de um processo independente do conselho de saúde e do governo.” "O NHS Tayside continua comprometido em fazer o que for necessário para apoiar o processo independente, reconhecendo que será adaptado às circunstâncias de cada paciente. "Embora não possamos comentar sobre pacientes individuais e seu tratamento devido à confidencialidade do paciente, convidamos a Sra. Sutherland a entrar em contato com a Equipe de Atenção aos Pacientes do NHS Tayside."
2023-07-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72101ewk0yo
sociedade
Quais filmes e séries podem ser afetados pela greve em Hollywood?
Uma megagreve de roteiristas e artistas em Hollywood, a Meca do cinema mundial, provavelmente paralisará a produção da maioria dos filmes e de muitos programas de televisão. A última vez que membros do Screen Actors Guild - Federação Americana de Artistas de Televisão e Rádio (SAG-AFTRA, na sigla em inglês) fizeram uma greve foi em julho de 1980. Naquela época, parte da briga entre seus membros e as gigantes do entretenimento era sobre os lucros com a venda de programas e filmes feitos para a TV fechada e fitas de vídeo, informou o jornal The New York Times na época. Quarenta e três anos depois, a nova paralisação — que se soma a uma greve em curso de roteiristas — se concentra em demandas semelhantes relacionadas a material feito para plataformas de streaming e preocupações com inteligência artificial. Espera-se que a paralisação cause um impacto na produção e promoção de filmes e programas de TV. Fim do Matérias recomendadas Entre os próximos lançamentos, incluindo eventos promocionais como coletivas de imprensa e estreias no tapete vermelho, estão Mansão Mal Assombrada, As Tartarugas Ninja: Caos Mutantes e A noite das Bruxas. Alguns dos maiores sucessos de bilheteria que atualmente estão em produção incluem Mulher Maravilha 3, Caça-Fantasmas 4, Mufasa: O Rei Leão e Avatar 3 e 4, de acordo com o Internet Movie Database. Embora o roteiro desses projetos provavelmente esteja concluído, a greve dos artistas interromperá grande parte do trabalho de produção e causará estragos na programação. O número de licenças de filmagem para longas-metragens e projetos de televisão, incluindo reality shows, em Los Angeles caiu 64% na semana passada, em comparação com o mesmo período de 2022, segundo dados da FilmLA. "Em uma semana normal nesta época do ano, haveria dezenas de projetos de televisão com roteiro em produção. Por outro lado, não temos séries de TV com roteiro com permissão para filmar esta semana", disse a agência. Mesmo que a fotografia principal — a maior parte da filmagem em um projeto — esteja concluída, os atores agora não estão disponíveis para solicitações típicas, como refilmagens e substituição de diálogos — onde as falas são regravadas para corrigir erros ou resmungos. Produções no exterior, como as filmagens da sequência de Gladiador, da Paramount, em Marrocos e Malta, também devem ser afetadas. Em termos de TV, a Warner Bros Discovery já se gabou por sofrido efeitos mínimos da greve dos roteiristas em projetos da HBO, como a série House of the Dragon, porque os roteiros estavam completos. Mas a greve dos artistas que são membros do SAG-AFTRA significa que muitos roteiros totalmente escritos provavelmente serão suspensos. Acredita-se que acordos paralelos possam ser fechados entre artistas e produtores da associação para permitir que certos projetos continuem. Nos Estados Unidos, outros projetos de TV que devem ser produzidos durante o verão no Hemisfério Norte incluem a segunda série de Night Court e Chicago Med, Fire e P.D. na NBC, NCIS e Young Sheldon na CBS, e Family Guy e Os Simpsons na Fox. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast À medida que os estúdios nos Estados Unidos e em outras partes do mundo ficam mais silenciosos como resultado da megagreve de Hollywood, ocorrerão reuniões entre as associações e representantes da indústria do entretenimento. Em 1980, durante a última greve dos atores, a paralisação durou 10 semanas enquanto os dois lados debatiam os termos de um novo acordo que refletisse as demandas e preocupações de todos. O custo dessa paralisação foi estimado em cerca de US$ 100 milhões (R$ 480 milhões no câmbio atual) pelo setor, disse o The New York Times na época. Hoje o valor equivaleria a cerca de R$ 1,7 bilhão. A última vez que roteiristas e atores entraram em greve juntos foi em 1960 — quando os roteiristas pararam de trabalhar por 21 semanas e os atores pararam de trabalhar por seis. Desta vez, as negociações podem ser ainda mais prolongadas, já que alguns atores incentivam o sindicato a adotar uma abordagem linha-dura, de acordo com a revista Variety. "Este não é um momento para ficar em cima do muro", diz uma carta assinada por 2.000 atores. De sua parte, os empregadores e produtores de Hollywood disseram estar desapontados com a decisão da SAG-AFTRA de entrar em greve. A Alliance of Motion Picture and Television Producers disse que "certamente não foi o resultado que esperávamos, pois os estúdios não podem operar sem os artistas que dão vida aos nossos programas de TV e filmes". “Lamentavelmente, o sindicato escolheu um caminho que levará a dificuldades financeiras para incontáveis milhares de pessoas que dependem do setor”.
2023-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cq5y8e1lq35o
sociedade
O menino de 9 anos que cruzou sozinho 4 países para se unir aos pais nos EUA
Eles fazem você querer abraçá-lo, confortá-lo, protegê-lo. O protagonista de Solito (Sozinho, em tradução literal), o livro de memórias do escritor e poeta Javier Zamora, é um menino de 9 anos que faz uma viagem impossível e terrível. Uma viagem que ninguém deveria fazer. Nessa idade, Zamora deixou sua cidade natal em El Salvador com o objetivo de chegar aos Estados Unidos para se juntar aos pais (na Califórnia), que partiram antes dele: o pai fugindo da guerra civil, a mãe, alguns anos depois, para se encontrar com o marido e em busca de novas oportunidades. Seu avô o acompanhou até a Guatemala, mas Javier, conhecido como "Chepito", teve que continuar sozinho e atravessar o México e o deserto de Sonora, junto com outros migrantes que seguiam a mesma rota. Muitos ficaram pelo caminho. Eles foram presos - alguns morreram ou simplesmente desapareceram. A travessia deveria durar duas semanas, mas, por causa de uma traição, durou nove. Solito relata o que aconteceu nesses 49 dias e as relações que nasceram nessa jornada. Fim do Matérias recomendadas É um texto onde detalhes devastadores se entrelaçam com passagens de uma beleza de tirar o fôlego. Um livro que a crítica qualificou como importante, necessário, inesquecível. Leia os principais trechos da entrevista da BBC News Mundo com Javier Zamora: BBC - "Pela primeira vez me senti alone, lonely, sozinho, solito, solito de verdade"... Comecemos por essa frase que dá título ao livro e que reflete uma solidão desoladora. O que você sentiu ao descrever aquela criança que você foi? Javier Zamora - Lembro que quando escrevi aquela frase, saiu assim da primeira vez, não fiz nenhuma alteração nela. Acho que marcou um momento e de alguma forma resume o que senti enquanto trabalhava no livro, que é como um reconhecimento do que aconteceu comigo, do que sofri, algo que demorei muito para aceitar. Vim para os Estados Unidos com 9 anos e só comecei a escrever essas memórias aos 29. Demorei 20 anos para ousar lembrar e deixar para trás aquele escudo masculino, de homem latino, tão machista que acredita que se você não pensar em algo que aconteceu vai, simplesmente, fazer com que aquilo desapareça. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas aconteceu. E escrever me libertou, ajudou a me curar. Claro, não escolhi o título e, quando meu agente me propôs, não gostei nem um pouco. BBC - Por quê? Zamora - Talvez porque eu estivesse no meio de uma terapia e ainda não estivesse pronto para enfrentar aquela desolação. Que era muito forte. Na verdade, se eu pensar no título, acho que não tive uma, mas três solidões. A primeira foi crescer sem meus pais. Sem meu pai, que vai embora primeiro quando eu tenho 1 ano, e sem minha mãe, que o acompanha quando estou prestes a fazer 5 anos. A segunda ocorre quando meu avô, que me acompanhou à Guatemala, volta para El Salvador, e me sinto muito só porque é a primeira vez na vida que não tenho algum conhecido perto de mim. E a terceira é quando, depois de sobreviver com todos aqueles migrantes - principalmente Chino, Patricia e Carla, que se tornaram minha família - chegamos aos Estados Unidos e nos separamos. Eles vão embora, e eu fico sem eles. BBC - Aliás, é muito paradoxal que o livro termine quando você encontra seus pais, e que essa alegria venha acompanhada de uma perda que tanto te dói. Zamora - Sim. Essa é provavelmente a solidão que mais me custou. É aquela que escondi, aquela que esqueci por 20 anos até começar a escrever Solito. É aquela de ter perdido aqueles que literalmente me carregaram quando eu não conseguia mais andar, aqueles que salvaram minha vida. BBC - E, ao mesmo tempo que existe tamanha desolação, há muita ternura no livro. Você estava ciente disso ao escrever? Zamora - Sim, foi algo que fiz conscientemente. Me ajudou muito que, em 2017, dois anos antes de começar a escrever Solito, eu tivesse publicado meu primeiro livro nos Estados Unidos, Unaccompanied (Desacompanhado, em tradução literal), que é uma coletânea de poemas. Eu tinha 27 anos, e quando a reli, no meio da terapia que estava fazendo, percebi como eram tristes todos os poemas, que falavam do meu pai durante a guerra civil em El Salvador, da minha vida nos Estados Unidos sem documentos, e sobre cruzar a fronteira. E quando reconheci a raiva e o ressentimento que aqueles versos tinham de mim mesmo, dos meus pais, dos Estados Unidos, entendi que estava me enganando, que eu era muito mais do que esse trauma. Então, quando tomei a decisão de escrever minhas memórias em prosa, fiz questão de ser mais carinhoso comigo mesmo e com os migrantes com quem viajei. É também a minha forma de criticar o que os jornalistas escreveram na época, quando se deu a crise na fronteira e parecia terem descoberto que havia crianças migrantes. Sendo um deles, doía-me o que lia, aqueles relatos que nos reduziram a uma estatística ou ao perfil de alguém que sofre, um coitado que precisa ser ajudado. Eu sabia que aquilo não era tudo, que não passávamos 24 horas sofrendo. Há também momentos de ternura, momentos engraçados, de pura alegria, ao comer, por exemplo, ao provar os tacos, e em muitas outras coisas que espero que tenham sido captadas no livro. BBC - De fato, um dos momentos mais emocionantes do livro é quando vocês são detidos pela polícia de imigração americana e obrigados a deitar no chão com as extremidades estendidas, e você imagina que é o Super-Homem e que está voando. É uma imagem que parte o coração. É real ou uma licença literária? Zamora - Estou convencido de que isso aconteceu. Acho que é a técnica que meu cérebro usou para me distanciar da realidade, para não estar ali deitado no chão com soldados apontando armas para nós. Preferi voar ou brincar com a lagartixa que apareceu naquele momento, que chamei de Paula. Fazendo isso, transcendendo a cena, eu saio dali. E eu sei o que aconteceu, que é verdade, porque ainda hoje quando estou numa situação em que não quero estar, por exemplo numa conversa que não gosto com a minha mulher, eu digo "ah, olha, olha o pássaro, olha como ele voa". É algo que nunca vai embora, que aprendi quando criança através de um trauma, e que continua comigo. BBC - Uma das primeiras cenas que você botou no papel, pelo que entendi, foi a do barco, que sai da Guatemala para chegar ao México. E que, embora contenha a doçura de como seus companheiros cuidam de você, descreve uma situação brutal com detalhes raramente mencionados na imprensa, que só fala de naufrágios ou daqueles que conseguem atravessar e ficam detidos ou encurralados... Zamora - Comecei a escrever o livro como uma obra de memórias tradicional, como um homem de 29 anos, um poeta, que se lembra das piores nove semanas de sua vida. Mas até eu, como escritor, fiquei entediado com o que escrevia. Foi nesses dias que minha terapeuta sugeriu que eu fizesse o exercício de pensar no que aconteceria se eu me conectasse com aquela criança com quem, por 20 anos, eu não queria conversar ou me colocar na pele dela, no lugar dela. Estamos falando de 2019 e nos jornais ainda havia muito pouco entendimento sobre o que é emigrar para os Estados Unidos. Eles só falavam sobre as caravanas de andarilhos ou da Besta, como é chamado o trem de carga em que viajam migrantes do sul do México até a fronteira. Mas essa não era minha história ou minha rota. E ninguém escreveu sobre esses barcos, que ainda são usados​. Foi algo que me enojava. E, quando comecei a escrever, veio-me esse capítulo, que escrevi quase compulsivamente, sem parar. Foi uma experiência dura, mas escrevê-la no presente me ajudou a lembrar de muitas coisas, como o cheiro do mar misturado com gasolina e suor. Ou das tonturas e vômitos dos que foram comigo e como o vento nos devolvia o que eles vomitavam e ficávamos todos encharcados. Ou mesmo do homem que gritava porque tinha medo do mar e não sabia nadar e que me dava muito, muito medo, porque eu também não sabia nadar. BBC - Você tinha medo de morrer ou mais medo de não chegar ao seu destino, de não encontrar seus pais? Zamora - Não sei se naquela idade eu compreendia cognitivamente o conceito de morte, embora, como todos os seres humanos, certamente tinha essa intuição. Mas ver adultos tão cheios de medo me causou um grande horror, um terror que não se esquece, que te marca. BBC - Pode-se dizer que, paralelamente à travessia, o livro é como uma viagem inaugural em que você nomeia muitas coisas que aprende ou acontecem com você pela primeira vez, desde amarrar os cadarços, até descobrir novos países, comidas que você não experimentou antes, sua atração por Carla... Zamora - Sim, coisas lindas aconteceram comigo naquela viagem, mas, olhando para trás, percebi que não tive infância, que a perdi na viagem. E isso é triste. Há uma cena particular que marca isso, que é quando experimento meu primeiro cigarro e os homens que me acompanham me mandam procurar gasolina em pó. Como uma piada. Porque eu era ingênuo e não sabia que não existia. Para eles, aquela fumaça foi o que bastou para fazer esse menino de 9 anos se sentir mais homem ou mais poderoso. Sim, funciona. Mas aquele momento também marca o fim de uma etapa da infância, do que eu fui e do que poderia teria sido se as coisas tivessem seguido outro caminho. É algo muito complexo, porque, ao mesmo tempo, o que aconteceu é o que me moldou e o que me fez ser a pessoa que sou. Talvez por isso, por sentir que não tive infância, o melhor elogio que alguém pode me fazer quando nos conhecemos é dizer que pareço uma criança. BBC - Como em qualquer história de migração, o coiote é um personagem importante em seu livro. Mas você diz que, para as pessoas do seu vilarejo, ele era uma figura popular, um "coiote bom", o que soa bastante contraintuitivo. Zamora - Sim, esse é um ponto que muitas pessoas podem não entender, mas naquela época, nos anos 1990, muitas dessas pessoas, que chamávamos de coiotes, pensavam que estavam realmente ajudando outras pessoas, como eu ou como outras que estavam fugindo de uma guerra ou um pós-guerra, para se juntar a suas famílias nos Estados Unidos. E, na cabeça das pessoas, aqueles coiotes estavam fazendo algo bom. E, apesar de muito do que aconteceu comigo ter sido culpa de um coiote, sou da mesma opinião. De que sim, eles estavam fazendo algo bom. Funciona um pouco como uma economia. O trabalho estava lá e alguém teria que fazer aquele trabalho. Mas hoje o mercado ficou tão rico, tão bom, que virou um monopólio dominado por cartéis, que compram e contratam coiotes. Não há coiotes que não pertençam a um. A infraestrutura de imigração mudou exponencialmente para pior. É por isso que cada vez mais migrantes estão morrendo. BBC - Nem salvadorenho, nem americano, você prefere ser descrito como migrante, certo? Zamora - Sim, sim, já usei essa palavra e pedi para que usem também, mas agora, em muitas das minhas palestras e entrevistas, estou tentando usar o termo sobrevivente, porque acredito que a palavra migrante foi tão distorcida que, pelo menos nos Estados Unidos, tornou-se muito negativa. BBC - Vamos terminar falando de amor. Os relacionamentos que nascem em sua jornada são repletos disso. Depois de ter escrito tanto sobre a dor, não te deu vontade de escrever sobre o amor? Zamora - Ah, sim, é verdade que talvez meus poemas não tenham tanto amor, mas vejo minha prosa, este livro, como uma grande carta de amor às pessoas que fizeram parte da jornada. A carta que eu sempre espero que leiam ou ouçam dela - para, quem sabe, nos encontrarmos novamente. E o que estou escrevendo hoje, que é tipo a segunda parte, minha vida nos Estados Unidos, acho que vai ser ainda mais difícil de ler, mas também é uma carta de amor, dessa vez para meus pais, que me tiveram aos 18 anos, e que também sofreram muito. Para eles, o que aconteceu foi muito difícil. Meu pai diz que nunca vai esquecer o cheiro que eu tinha quando nos reencontramos. Ele chorou muito com isso. Ele leu o livro, mas minha mãe não passou do primeiro capítulo. BBC - E você sabe o impacto que teve sobre outros migrantes? Zamora - Veja, curiosamente, nos três anos que estive em turnê com meu livro de poemas, nunca falei com nenhum migrante sobre meu trabalho. Mas com Solito é diferente. Tem sido maravilhoso que a leitura chegue às crianças ou que os adultos se aproximem de mim e digam "Eu também fui uma criança migrante". Chega a ser assustador que muitos me contem que cruzaram no mesmo mês e ano que eu, que estávamos no deserto de Sonora ao mesmo tempo. Por muito tempo, senti que estava sozinho naquele trauma, que tinha sofrido mais do que ninguém. E isso é muito tóxico, porque você deixa de se importar com quem está ao seu lado. Mas não é verdade. Nós não estamos sozinhos. Somos muitos. Agora mesmo, enquanto falamos, certamente há uma criança da Venezuela, de Cuba, da Nicarágua ou de El Salvador que está fazendo a travessia. Espero que eles também saibam que não estão sozinhos, que nunca estiveram.
2023-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn0e5vd0xk2o
sociedade
'Achei que era piada, mas me curou': como é o transplante de fezes, que Brasil estuda regulamentar
Durante dez meses, um desequilíbrio intestinal severo causado por uma bactéria fez com que a aposentada Sônia Maria Vitor Oliveira, de 67 anos, tivesse diarreias incontroláveis e persistentes. "Eu sofria noite e dia, sem controle algum do meu corpo. Precisei usar fraldas e cheguei a perder 45 quilos", conta ela. A bactéria Clostridium difficile, que causou o problema de saúde de Sônia, está presente no organismo de qualquer pessoa. No entanto, quando há uso prolongado ou descuidado de antibióticos, as bactérias podem se deslocar, causando o quadro chamado de colite pseudomembranosa, apontam especialistas. Trata-se de uma inflamação do cólon, região central do intestino grosso, que causa febre, dor abdominal e diarreia. Fim do Matérias recomendadas Sônia, por exemplo, precisou usar várias medicações diferentes nos últimos anos devido a pressão alta e diabetes, passou por um transplante de rim e teve uma infecção grave por covid-19 durante a pandemia. O uso prolongado de diferentes medicações, de acordo com o médico Felipe Tuon, que acompanhou Sônia, contribuiu para a disbiose — o desequilíbrio de bactérias na flora intestinal. Sem apetite e perdendo peso continuamente, ela foi internada no Hospital Universitário Cajuru, em Curitiba, no Paraná — um dos hospitais universitários que pesquisam transplante de fezes atualmente no Brasil. "Passei 63 dias internada, foi um período muito difícil. Os médicos encontraram várias úlceras [feridas] no meu intestino. Quando descreveram isso, fiquei com medo de ter câncer. Mas, depois de alguns exames, constataram que era essa bactéria que estava causando os danos." Quando escutou do médico a recomendação de um transplante de fezes, Sônia pensou que se tratava de uma brincadeira. "Eu dei risada, mas ele logo me disse que era sério, e depois acrescentou de forma bem humorada: 'É um transplante de cocô mesmo. A senhora topa fazer?' E eu não pensei duas vezes. Disse que se fosse para o meu bem, toparia, sim." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Também chamado de transplante de microbiota fecal, o procedimento é simples e tem como objetivo transferir bactérias intestinais de um doador saudável para uma pessoa que está com a flora danificada. O primeiro trabalho descrevendo esse procedimento foi feito em 1958, mas, no Brasil, o transplante de fezes aconteceu pela primeira vez apenas em 2013. Apesar do nome sugestivo, não são literalmente fezes que são colocadas no paciente doente. O bolo fecal passa por um procedimento para separar as bactérias "boas", que são os microorganismos presentes no organismo humano que exercem papéis positivos, como ajudar na digestão, fortalecer o sistema imunológico, produzir vitaminas essenciais, competir com bactérias prejudiciais e manter o equilíbrio do microbioma. Depois, o conteúdo pode ser injetado como pó, após passar por processo de desidratação, ou líquido, a forma mais utilizada, que precisa ser armazenada em um ultrafreezer (-80°C), o que garante a sua viabilidade por cerca de quatro meses. O procedimento é similar à colonoscopia, exame que analisa o intestino grosso. Depois de tomar um remédio contra diarreia e ser sedado, o paciente recebe uma injeção do transplante da amostra fecal no cólon através de um tubo de colonoscopia. "O remédio contra a diarreia segura as bactérias saudáveis no organismo, o que aumenta as chances de se proliferarem e auxiliarem no tratamento", explica o infectologista Felipe Tuon, responsável pelo projeto no Hospital Universitário Cajuru. Para Sônia, o transplante foi um sucesso. "Em dez dias não tive mais diarreias, pude parar de usar fraldas e voltar a sair de casa", conta. De acordo com Tuon, entre os 30 pacientes que já foram atendidos gratuitamente pelo projeto, 27 tiveram sucesso na cura dos quadros. "Como pesquisador, embora seja empolgado por trazer benefícios, às vezes sou bastante cético", diz o médico. "E é também por isso que o transplante surpreende tanto: realmente os pacientes apresentam uma resposta maravilhosa, muitos cessam a diarreia em 24 horas. Além disso, o procedimento evita necessidade de cirurgia, tempo prolongado de internação e infecções por bactérias multirresistentes." Na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), outra que oferece transplantes de fezes dentro de um protocolo de pesquisa feito no hospital universitário, a taxa de sucesso também é alta: 11 dos 12 pacientes que passaram pelo procedimento tiveram resultados satisfatórios, segundo informou a instituição à BBC News Brasil. Com a triagem correta do material fecal, o procedimento é considerado seguro e bem tolerado pelo organismo humano. Os possíveis efeitos colaterais são leves, incluindo dores abdominais, desconforto gástrico, inchaço, constipação e diarreia. Embora rara, há a possibilidade de transmissão de doenças entre o doador e o receptor - ou pela falta de triagem adequada ou por quadros que não foram identificados nos testes de triagem. Em 2022, locais como Reino Unido, Estados Unidos e Austrália receberam a aprovação dos órgãos reguladores de saúde locais para realizar o transplante fecal como opção oficial de tratamento contra infecções recorrentes por superbactérias. "Nos Estados Unidos, inclusive, já estão mais avançados: a FDA [órgão regulador equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária no Brasil, a Anvisa] aprovou dois comprimidos diferentes que funcionam como transplante de microbiota por via oral", explica Eduardo Vilela, gastroenterologista e coordenador do Centro da UFMG. Por enquanto, a indicação do uso é para casos como o de Sônia, pela bactéria Clostridium difficile. Mas há estudos em curso para avaliar se a técnica pode ser efetiva para doenças como Síndrome do Intestino Irritável e Doença de Crohn. Já no Brasil, a técnica ainda não foi aprovada e regulamentada pela Anvisa e, por isso, não pode ser amplamente oferecida em hospitais. As universidades que oferecem o procedimento estão dentro de um protocolo de pesquisa aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa — e devem seguir as regras estipuladas no projeto autorizado. A Anvisa afirmou à BBC News Brasil que recebeu recentemente um pedido de "enquadramento regulatório" para este tipo de tratamento. "O ‘enquadramento regulatório’ define qual o caminho de regularização necessário para uma nova tecnologia", informou a agência. "No momento, os técnicos estudam o assunto e buscam informações em agências internacionais de referência." O infectologista Felipe Tuon considera que a história do transplante de fezes está "apenas começando" no Brasil. "Ainda é um desafio sem uma legislação específica, mas estamos trabalhando nesse sentido, para que o procedimento seja regulado e que possa ser inspecionado pelos órgãos fiscalizadores, garantindo a segurança para os pacientes", afirma. Dentro de seus projetos de pesquisa, tanto o Hospital Universitário Cajuru quanto a UFMG, que atende por meio do Hospital das Clínicas, tentam construir bancos de fezes — locais de estoque de material fecal de doadores saudáveis. “É uma forma de facilitar a oferta para os pacientes que atendemos, e nossa ideia é expandir para oferecer material não só para a nossa instituição, mas também para fora”, afirma Tuon. Atualmente, os grupos de pesquisadores enfrentam o desafio de encontrar doadores. "A triagem é extremamente rigorosa, mais exigente que um transplante de órgão. É feita uma entrevista e uma série de exames de sangue e de fezes para garantir que não ocorra nenhuma transmissão de infecção viral, bacteriana, fúngica ou parasitária", detalha o médico do Hospital Universitário Cajuru. Eduardo Vilela, coordenador do projeto da UFMG, complementa que os critérios clínicos incluem não ter doença crônica ou em curso e não usar medicamentos de uso contínuo, não ter sofrido infecção gastrointestinal nos últimos seis meses e ter boa saúde cardiovascular. O candidato passa por uma bateria completa de exames, com vários testes sanguíneos para detectar possíveis infecções transmissíveis, além de avaliação clínica e laboratorial. Por fim, seu material fecal passa por testes moleculares que visam detectar patógenos que não estão causando nenhum sintoma naquela pessoa, mas podem vir a causar no receptor. "Já avaliamos mais de 170 doadores, e só 6 cumpriram todos os requisitos necessários", diz Vilela. "Conseguir um material biológico perfeito é uma preocupação muito grande, já que a segurança é essencial para quem vai passar pelo transplante." No Brasil, poucos centros contam com iniciativas semelhantes, e as doações acabam sendo realizadas conforme a demanda. Por ser uma técnica ainda não regulamentada, se há alguém com indicação de transplante de fezes internado em um hospital, o procedimento pode ser realizado com o consentimento do paciente, que assina um termo. "Como não há banco de fezes nos hospitais, eles chamam um familiar que passa por toda a triagem", explica Tuon. "É um processo complicado de se fazer dessa forma individual, porque a pessoa tem que coletar imediatamente, analisar esse material, e o outro paciente tem que estar preparado para fazer o transplante. E ainda há chances de não ser um material biológico ideal."
2023-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd16x2d9p62o
sociedade
Huw Edwards: quem é apresentador da BBC no centro de escândalo no Reino Unido
O apresentador da BBC News Huw Edwards, apontado como a pessoa no centro de um caso que envolve um possível pagamento por fotos íntimas de uma pessoa menor de idade, é um dos âncoras de maior destaque do Reino Unido. Ele tem sido a escolha da BBC para a cobertura de grandes eventos nacionais, como um reflexo de como ele é bem visto na emissora. Ele construiu ao longo de décadas uma reputação como uma presença confiável e tranquila à frente das câmeras. Na última quarta-feira (5/7), seu último dia no ar para a BBC News antes do escândalo estourar, Edwards fazia uma transmissão a partir de Edimburgo, na Escócia, enquanto o país se preparava para receber o rei Charles. Menos de uma semana depois, a carreira do jornalista de 61 anos está sob séria pressão, depois que a mulher dele divulgou uma declaração indicando-o como o apresentador da BBC que enfrenta uma série de acusações graves. Fim do Matérias recomendadas Ele entrou na BBC News como estagiário em 1984 e acabou conseguindo um emprego como repórter político da BBC no País de Gales. Apenas dois anos depois, ele se tornou correspondente parlamentar da BBC no País de Gales. No início dos anos 1990, ele era o principal correspondente político da BBC em Westminster. Ele se tornou um rosto conhecido no canal BBC News, na época chamado BBC News 24, após seu lançamento em 1997. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em seus primeiros dias, o canal sofreu por conta de dificuldades técnicas, mas a postura confiante e equilibrada de Edwards em circunstâncias desafiadoras impressionou os chefes da BBC. Na mesma época, Edwards trabalhava como apresentador substituto no Six O'Clock News, da BBC One, um dos programas de notícias de televisão mais vistos no Reino Unido, tornando-se um dos principais âncoras do programa em 1999. Quatro anos depois, ele foi promovido para o Ten O'Clock News, considerado o principal programa da BBC, e cada vez mais era solicitado a apresentar e comentar os principais eventos nacionais pela emissora. Entre esses eventos estão o casamento do Duque e da Duquesa de Cambridge (como eram conhecidos na época) em 2011, o funeral do Duque de Edimburgo (2021), o Jubileu de Diamante e Platina da Rainha (2012 e 2022) e a coroação do Rei Charles (2023). Ele também estava no ar quando Nelson Mandela morreu em 2013 e co-apresentou os resultados do referendo do Brexit em 2016. Mas talvez o maior momento na longa carreira de apresentador de Edwards tenha ocorrido em setembro de 2022, quando ele anunciou a morte da rainha Elizabeth 2ª. Ele havia começado o turno dele mais cedo naquele dia após rumores sobre uma piora no quadro clínico da saúde da rainha. Na época, ele apresentou a cobertura contínua de notícias a partir das 14h, antes de confirmar a morte da monarca naquela noite enquanto usava uma gravata preta. Ele então passou a fazer a cobertura principal do funeral da falecida rainha. Foi amplamente elogiado pelos telespectadores, e a cobertura rendeu a Edwards e seus colegas um prêmio TRIC — concedido a profissionais da rádio e da TV britânica — em junho de 2023. Além dos principais eventos envolvendo a família real, Edwards recentemente se tornou o rosto da BBC na cobertura das eleições gerais no Reino Unido. O apresentador galês chegou a receber um dos maiores salários da BBC. Em 2017, o primeiro ano em que a BBC foi obrigada pelo Parlamento a publicar os salários de seus principais apresentadores, foi revelado que Edwards ganhava 550 mil libras por ano, o equivalente a R$ 3,4 milhões. Após uma enxurrada de manchetes negativas sobre a quantidade de dinheiro que a BBC gastava com seus melhores talentos e a disparidade entre algumas de suas estrelas masculinas e femininas, Edwards teve um corte salarial e, seis anos depois, o rendimento anual dele é de 435 mil libras (cerca de R$ 2,7 milhões). Edwards fez uma participação especial interpretando ele mesmo no filme James Bond de 2012, Skyfall, apresentando uma reportagem da BBC News sobre um ataque fictício ao serviço de inteligência britânico MI6. Em entrevista à BBC Radio Cymru em 2021, Edwards indicou que poderia não ter muitos anos restantes como o principal âncora de notícias da corporação devido às demandas do cargo. "A rotina do noticiário noturno, depois de 20 anos, pode ser cansativa, embora eu ainda goste do trabalho", disse ele. "Mas não acho que vou fazer isso por muito tempo... Acho que é justo que os telespectadores tenham uma mudança." No mesmo ano, Edwards fez um documentário em galês sobre a carreira dele, no qual revelou que sofreu crises de depressão ao longo de 20 anos e ficou "acamado" por sua luta pela sua saúde mental. Mas, depois de uma carreira de sucesso na BBC, agora há sérias dúvidas sobre o futuro de Edwards. Depois que o jornal The Sun publicou na sexta-feira (7/7) acusações de que um apresentador não identificado da BBC teria pago grandes quantias de dinheiro em troca de imagens explícitas de uma pessoa, isso gerou uma especulação sobre quem poderia ser o apresentador. Nos dias seguintes, o Sun e, posteriormente, a BBC News divulgaram novas denúncias, mantendo a história nas manchetes. Finalmente, na quarta-feira (12/7), a esposa dele, Vicky Flind, confirmou a identidade de Edwards, dizendo que estava fazendo isso "principalmente por preocupação com o bem-estar mental dele" e para proteger seus cinco filhos. "Huw está sofrendo de sérios problemas de saúde mental", disse ela. "Os acontecimentos dos últimos dias pioraram muito as coisas. Ele sofreu outro episódio grave e agora está internado em um hospital onde permanecerá no futuro próximo". "Quando estiver bem o suficiente, ele pretende responder às reportagens que foram publicadas."
2023-07-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2d4jlrjd1o
sociedade
A política do Japão que submeteu milhares de pessoas a esterilização forçada, incluindo crianças
Junko Iizuka ainda sofre as consequências daquela misteriosa cirurgia que foi forçada a fazer há mais de 60 anos. Ela tinha apenas 16 anos quando foi levada a uma clínica no nordeste do Japão para o procedimento, que, como descobriria mais tarde, a deixou irreversivelmente estéril. Mas isso não foi uma consequência indesejada de uma cirurgia necessária. Não. O principal objetivo daquela intervenção cirúrgica, era o de garantir que Junko nunca pudesse ter filhos. Ela foi realizada no âmbito da política de eugenia aplicada no Japão entre 1948 e 1996, com o objetivo de "impedir o nascimento de descendentes inferiores sob o ponto de vista da proteção eugênica e também proteger a vida e a saúde da mãe”. Eugenia é a teoria ou conjunto de práticas que visam "melhorar" a qualidade genética da população através de medidas de reprodução seletiva. Fim do Matérias recomendadas Estima-se que 16,5 mil pessoas, principalmente mulheres, foram operadas sem seu consentimento. Cerca de 8 mil pessoas deram autorização – embora se acredite que provavelmente sob pressão. Outras 60 mil mulheres fizeram abortos para evitar doenças hereditárias, segundo um relatório parlamentar de 1,4 mil páginas apresentado recentemente. O relatório, resultado de uma investigação iniciada em 2020, gerou grande indignação ao revelar que pelo menos uma menina e um menino de 9 anos foram submetidos a esses procedimentos. O texto também foi criticado por deixar questões importantes sem resposta em relação a essa política, que, na opinião de muitos, o Japão demorou a rejeitar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A Lei de Proteção Eugênica foi aprovada em 1948, pouco após a Segunda Guerra Mundial, e permitiu que os médicos esterilizassem pessoas com ou sem o seu consentimento. Neste último caso, se o médico considerasse que a intervenção era necessária "para proteger o interesse público de modo a prevenir a transmissão hereditária de doença", tinha de solicitar a uma comissão da prefeitura local para avaliar se o procedimento era adequado. Havia, pelo menos em teoria, um mecanismo que permitia ao paciente apresentar objeções e até mesmo iniciar um julgamento para evitar a operação. No entanto, como alerta Takashi Tsuchiya, professor da Osaka City University, em um artigo publicado em 1997: “essas disposições de notificação, revisão e demanda não se aplicam no caso de pacientes com deficiência mental ou intelectual”. Além disso, algumas diretrizes aprovadas pelo Ministério da Saúde em 1953 estabeleciam que, quando a comissão julgasse necessário, esse tipo de cirurgia poderia ser realizada "contra a vontade do paciente" e autorizavam a realização do procedimento, mesmo que, para isso o paciente fosse enganado. De acordo com o relatório parlamentar, pacientes eram informados de que seriam submetidos a procedimentos de rotina, como uma operação de apêndice, quando, na verdade, seriam esterilizados. A lei incluía uma lista de doenças então consideradas hereditárias e que tornavam o paciente candidato à esterilização, como esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva, "desejo sexual acentuadamente anormal", "inclinação criminosa acentuada", albinismo, distrofia muscular, epilepsia , surdez, hemofilia e daltonismo, entre outros. Segundo Tsuchiya, essa legislação refletia a preocupação do governo japonês com o que via como "deterioração" das novas gerações. Em 2019, o governo do Japão pediu desculpas por essa política e anunciou que pagaria a cada sobrevivente das esterilizações uma indenização equivalente a cerca de US$ 28,6 mil (cerca de R$ 140 mil). O então primeiro-ministro, Shinzo Abe, disse em seu pedido oficial de desculpas que a lei de eugenia causou "grande sofrimento" às suas vítimas. Para Junko lizuka, que passou anos lutando para receber justiça e hoje usa óculos e máscara para não ser reconhecida publicamente, as consequências foram muito além. "A cirurgia eugênica me privou de todos os meus modestos sonhos de ter um casamento e filhos felizes", disse Iizuka a repórteres. Ela explicou que seu marido a abandonou e pediu o divórcio imediatamente depois de ela dizer a ele que fora submetida a uma cirurgia de esterilização e não poderia ter filhos. “Eu tinha problemas de saúde mental e não conseguia trabalhar. Fui diagnosticada com transtorno de estresse pós-traumático. A cirurgia eugênica virou minha vida de cabeça para baixo", disse ela. De acordo com Tsuchiya, muitas das esterilizações forçadas foram realizadas em pacientes em hospitais psiquiátricos e outros centros para pessoas com deficiência intelectual, que muitas vezes eram enganados para se submeter à operação. "Às vezes, essas pessoas eram perguntadas (se queriam passar pelo procedimento), mas eram virtualmente forçadas a dar consentimento porque a esterilização era frequentemente um requisito para admissão nessas instituições, que é o que os pais dessas pessoas desejavam", diz. Como o objetivo dessas cirurgias não era apenas evitar que essas pessoas tivessem filhos, mas também – no caso das mulheres – interromper a menstruação para facilitar o atendimento dessas pessoas nos centros de saúde, muitas vezes essas esterilizações não eram realizada através de ligadura das trompas de falópio, mas através de uma histerectomia, ou seja, da extração do útero. “Para interromper a menstruação, a cirurgia precisa remover os ovários ou o útero, mas, como a perda dos ovários causava 'perda da feminilidade', os médicos preferiam remover o útero 'para benefício da paciente'. Esse procedimento era ilegal porque a lei permitia apenas a esterilização 'sem remover os órgãos reprodutivos'", explica Tsuchiya. Durante décadas, as vítimas fizeram campanha pelo reconhecimento dos danos sofridos e pelo pagamento de uma indenização mais justa. Em alguns casos, elas foram diretamente aos tribunais, obtendo resultados diferentes. No ano passado, um tribunal em Osaka ordenou que o governo japonês pagasse o equivalente a cerca de US$ 200 mil (R$ 970 mil) a três vítimas. No entanto, no início deste mês, outro tribunal derrubou essa decisão, argumentando que, depois de mais de 20 anos, a causa legal havia expirado. Junko Lizuka, que foi uma das vítimas nesse processo, chamou a decisão de "terrível". Ela disse à imprensa achar que "a responsabilidade do governo é óbvia" e que esperava uma solução rápida que oferecesse indenizações justas sem a necessidade de recorrer aos tribunais. Não se sabe ainda se o relatório parlamentar vai ajudar na luta das vítimas. Koji Niisato, um advogado que representou vítimas dessa política, contestou o relatório por não ir "longe o suficiente". Ele destacou que se trata basicamente de um apanhado do que já foi investigado e relatado sobre o assunto. “Faltou explicar por que essa lei terrível foi criada e existiu por 48 anos e não menciona por que o governo não assumiu a responsabilidade mesmo depois que a lei foi alterada. Isso é extremamente lamentável”, disse Nisato a repórteres em julho. Para algumas vítimas, como Saburo Kita, que foi esterilizada à força aos 14 anos, o relatório mostra que o governo enganou crianças. Agora, aos 80 anos, ela diz esperar que a questão seja resolvida o mais rápido possível. “Gostaria que o Estado não escondesse o problema no escuro, mas levasse a sério nosso sofrimento logo”, disse. Por enquanto, a espera continua.
2023-07-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj7jky2re1zo
sociedade
O concurso de Miss Mundo que gerou revolta na Índia
O concurso Miss Mundo 2023 será realizado na Índia. O anúncio fez reviver as lembranças da última vez em que a competição aconteceu no país. Na época, houve violentos protestos, ameaças de autoimolação e previsões de que o evento levaria a um apocalipse cultural. O ano era 1996. A Índia havia retirado suas políticas protecionistas alguns anos antes, abrindo seus mercados para o mundo. Marcas internacionais como Revlon, L’Oréal e KFC estavam abrindo lojas no país — o que, às vezes, gerava tensões entre os ativistas locais e as empresas estrangeiras. Naquela época, os concursos de beleza já eram populares na Índia. Dois anos antes, Sushmita Sen e Aishwarya Rai haviam sido escolhidas, respectivamente, Miss Universo e Miss Mundo. Elas se tornariam estrelas do cinema indiano de Bollywood. Fim do Matérias recomendadas Milhões de mulheres jovens sonhavam em seguir seus passos e iniciar carreiras de sucesso, enquanto outras criticavam a ênfase desses concursos na beleza física das participantes. Semanas antes do evento, violentos protestos irromperam pelo país, chegando às manchetes internacionais. Os manifestantes incluíam desde agricultores militantes até feministas e políticos de direita. E, para garantir a segurança das participantes, o desfile em trajes de banho precisou ser transferido para as ilhas Seychelles. “Os defensores do concurso de beleza — que contam com a solidariedade da maioria dos indianos — têm dificuldades para acreditar que um evento tão trivial tenha provocado um tumulto tão grande”, escreveu, na época, o jornal americano Los Angeles Times. A diretora de cinema Paromita Vohra afirma que as reações indicavam um conflito entre as convicções conservadoras e o encanto de um mundo moderno e reluzente. “O Miss Mundo chegou à Índia ao mesmo tempo em que o mercado globalizado”, ela conta. “Ele agitou a cultura e houve resposta a essa agitação.” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É claro que a Índia mudou desde 1996. O país ganhou pelo menos meia dúzia de outros concursos de beleza internacionais e abriga hoje uma indústria da moda milionária, reconhecida em todo o mundo pelo seu trabalho criativo e produção cheia de detalhes. Filmes e programas na internet abordam temas controversos regularmente e as discussões sobre as roupas e padrões de beleza das mulheres ficaram mais moderadas. O concurso de 1996 foi organizado na Índia por uma empresa de propriedade do superastro de Bollywood Amitabh Bachchan. Relatos indicam que a empresa contratou mais de dois mil técnicos, 500 dançarinos e trouxe até 16 elefantes para o evento. Mas, semanas antes do concurso, ocorreram violentos protestos na cidade de Bengaluru (antes chamada de Bangalore, no sul da Índia), que sediou a competição. Membros de uma organização de mulheres ameaçaram cometer suicídio em massa, afirmando que concursos como o Miss Mundo “aumentariam a promiscuidade e a prostituição”. “Vestir minissaias não faz parte da nossa cultura tradicional”, segundo afirmou, na época, uma líder do grupo feminista ao jornal norte-americano The Washington Post. E um homem suicidou-se “em protesto”, segundo a rede de TV CNN. O concurso também recebeu oposição do Partido do Povo Indiano — que detém o poder atualmente na Índia — além de um grupo de fazendeiros que ameaçou incendiar o estádio de críquete onde seria realizado o concurso (o que não aconteceu). Muitas feministas também protestaram. Um grupo promoveu uma paródia do concurso, que ofereceu às participantes títulos como Miss Pobreza e Miss Sem-Teto. Milhares de policiais, muitos em trajes de combate, foram destacados pela cidade. Eventos preliminares tiveram lugar nas proximidades de Bengaluru, incluindo em uma base da força aérea. E, naturalmente, o desfile mais controverso foi retirado do país. A ex-modelo Rani Jeyaraj foi a representante indiana no concurso Miss Mundo de 1996. Ela conta que ficou aliviada com a decisão de levar o desfile em trajes de banho para as ilhas Seychelles. “Na época, eu já estava esgotada de dar entrevistas para os canais”, afirma ela. “Foi maravilhoso ser resgatada para uma pequena ilha onde eu não seria importunada todo o tempo.” As participantes foram protegidas da controvérsia ao máximo possível. Elas passaram semanas confinadas em um luxuoso hotel cinco estrelas, com pouco contato com o mundo exterior. “Mas foi uma sensação estranha ficar isolada e não poder encontrar meus amigos e a família”, afirma Jeyaraj. “Houve um momento, horas antes da última competição, em que quase desisti, pois estava muito cansada de tudo aquilo.” O protesto durante o concurso de 1996 não foi o primeiro contra as competições de beleza e as mulheres em trajes de banho — nem o último. Em 1968, um grupo feminista organizou um evento paralelo, no lado de fora do concurso Miss Estados Unidos. As manifestantes encheram uma lata de lixo com produtos de beleza. Dois anos depois, ativistas entraram no Royal Albert Hall, em Londres, e atiraram farinha e vegetais estragados no palco do concurso Miss Mundo, em apoio à liberação feminina. Em 2013, a final do concurso Miss Mundo na Indonésia foi transferida da capital Jacarta para a ilha turística de Bali, após semanas de protestos de grupos islâmicos conservadores. Na ocasião, o desfile de biquíni foi cancelado e as participantes desfilaram com “sarongues modestos, tradicionais de Bali”. Em 1996, os trajes de banho não eram totalmente desconhecidos na Índia. Vohra destaca que algumas heroínas de Bollywood já estavam questionando os estereótipos e vestindo esses trajes na época, embora não fosse algo comum. Diversas participantes indianas, como Rai e Sen, também haviam participado de desfiles em trajes de banho em concursos de beleza no exterior. Mas Vohra afirma que talvez a ansiedade em torno do concurso de 1996 também se devesse ao temor de que “mulheres de classe média, de castas superiores” — que normalmente participavam daqueles eventos — fossem vistas vestindo trajes de banho em público. Quase três décadas depois dos protestos na Índia, os concursos de beleza ainda têm a mesma relevância? Houve uma época em que os concursos de beleza ofereciam a mulheres uma porta de entrada para um mundo glamouroso e promissor, economicamente falando. Afinal, modelos poderiam viajar pelo mundo e tornar-se um ícone. Até a apaixonada feminista norte-americana Gloria Steinem participou de um concurso de beleza quando adolescente. Ela conta que parecia “uma forma de sair de uma vida sem muita grandeza em um bairro relativamente pobre”. Na Índia, os concursos de beleza também são uma forma de entrar em Bollywood (embora a taxa de sucesso neste quesito tenha sido irregular) e “esta conexão é o motivo para que o glamour sobre eles não diminua”, afirma Jeyaraj. Mas muitas jovens indianas não consideram mais os concursos de beleza como o único caminho para o sucesso, nem como um veículo empoderador para atingir os seus sonhos. Vohra afirma que os concursos nunca pretenderam oferecer um padrão de beleza autêntico ou ideal. Na verdade, ela os chama de fenômeno econômico “enraizado no mercado”. Quando o Miss Mundo passou a ser popular na Índia, ele também trouxe uma noção diferente de beleza — as cinturas minúsculas e esculpidas, vestidos em tons pastéis e rostos fortemente maquiados. “As mulheres dos filmes de Bollywood de 30 anos atrás, por exemplo, eram mais voluptuosas do que esse padrão de beleza globalizado das supermodelos”, explica Vohra. Mas os concursos de beleza internacionais ajudaram a criar uma nova noção da figura feminina arrojada. “E somente permitia que as mulheres entrassem naquela vida pública se fossem daquele jeito”, afirma Vohra. Ela acrescenta que as mulheres indianas, hoje em dia, não dependem dessas competições para terem oportunidades. “É por isso que eu acho que o próximo Miss Mundo na Índia será um evento como outro qualquer”, segundo ela. “No máximo, talvez, um exótico retorno ao passado.” Mas, para os fãs dos concursos de beleza, este ainda é um mundo que eles adoram profundamente e no qual acreditam, não uma simples relíquia de outros tempos. “[Para as participantes] esses concursos não servem para exibir apenas sua beleza, mas também sua inteligência e suas realizações para uma plataforma global. É o seu passaporte para o mundo”, afirma o estilista Prasad Bidapa, um dos jurados do concurso de 1996. Para ele, é impossível evitar o fascínio dos concursos de beleza porque, afinal, “todos querem ter melhor aparência e grandes sonhos”.
2023-07-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqe0nplv8m4o