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cultura
Zenóbia, a 'rainha guerreira' descendente de Cleópatra que desafiou o Império Romano
No século 2, o Império Romano atingiu sua maior extensão, abrangendo grande parte da Europa, Oriente Médio e Norte da África. Um dos lugares mais importantes deste vasto império era a cidade de Palmira, na então província da Síria. Palmira tinha localização estratégica, entre o Mar Mediterrâneo, a oeste, e o Rio Eufrates, a leste. Isso a tornava parada obrigatória para caravanas viajando na Rota da Seda, que ligava o Oriente à Europa, o que acabou trazendo grande prosperidade à cidade. No século 3, Palmira havia se tornado uma das cidades mais ricas do Império Romano. Também teve grande importância militar, pois servia de barreira contra seu arqui-inimigo, o vizinho Império Persa (ou Império Sassânida, como era chamado naquele período). Palmira se tornou tão poderosa que, aproveitando uma das piores crises do Império Romano, no ano 268, decidiu se insurgir e criar seu próprio império. Essa façanha foi liderada por uma mulher: Zenóbia, a rainha regente de Palmira. Zenóbia, conhecida por sua cultura e habilidade militar, fundou o Império Palmira, que entre 268 e 272 conseguiu tomar a Síria, o Egito, a Anatólia (ou Ásia Menor), a Palestina e o Líbano. Em 270, Zenóbia chegou a se autoproclamar rainha do Egito e até cunhou moedas egípcias à sua imagem. Mas, diferentemente de sua antecessora mais famosa, Cleópatra, de quem ela afirma ser descendente, a rainha de Palmira não conseguiu permanecer no poder. Seu reinado foi breve, mas sua história capturou a imaginação de muitos escritores renascentistas e foi objeto de inúmeras óperas, poemas e peças de teatro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Zenóbia era casada com o príncipe de Palmira Septimius Odenato, que havia conquistado muito reconhecimento de Roma por suas campanhas bem-sucedidas contra os persas. Em gratidão por defender a fronteira oriental do Império Romano, Odenato foi nomeado rei de Palmira em 260. Mas sete anos depois, seu sobrinho matou Odenato e seu filho mais velho e herdeiro, Hairan, resultado de seu primeiro casamento. A coroa foi herdada pelo filho mais novo de Odenato, nascido de seu segundo casamento: Lucius Iulius Aurelio Septimio Vaballathus Atenodoro, mais conhecido como Vabalato. Devido à sua tenra idade, sua mãe, Zenóbia, assumiu como regente. A jovem, com cerca de 25 anos, era extremamente culta. Alguns historiadores sustentam que seu pai era um governador romano. A verdade é que ele havia recebido a educação de um membro da nobreza e falava várias línguas. Diz-se que cativava todos por sua inteligência, além de sua beleza. Sem dúvida, ela também foi muito ousada: após a morte de seu marido, ela não apenas defendeu a independência que Palmira havia alcançado, mas também decidiu desafiar o Império Romano. Os planos para conquistar o novíssimo Império de Palmira emergiram inicialmente como uma suposta tentativa de defender o Império Romano de seus inimigos persas. Mas o próprio Odenato havia deixado claro que sua ambição ia além: o objetivo final era dominar o Oriente. Zenóbia seguiu adiante com os planos do marido. Com grande astúcia militar, ela conseguiu não apenas manter os persas afastados, mas também conquistar terras que pertenciam ao Império Romano. Zenóbia aproveitou a grave crise que o novo imperador romano, Cláudio 2º (também conhecido como Cláudio Gótico) enfrentava. Ao assumir em 268, ele se viu diante de uma tripla ameaça: dos godos, dos gauleses e dos germânicos. Com Roma ocupada, Zenóbia invadiu o Egito em 269 e se proclamou rainha. Assim, conseguiu estender as fronteiras de seu Império do Eufrates ao Nilo. No comando de seu poderoso exército, a "rainha guerreira", como ficou conhecida, continuou a conquistar cidades romanas vitais para o comércio no Oriente Médio. Mas a chegada de Aureliano, que sucedeu Cláudio como imperador em 270, impediu as ambições do Império de Palmira. O militar experiente conseguiu não apenas conter os godos, gauleses e germânicos, mas também reconquistou o Egito e decidiu restaurar o poder de Roma no Oriente. Um a um, ele recuperou os territórios que havia perdido para Zenóbia. A imperatriz teve que retirar suas forças e se refugiou em Palmira. Mas Aureliano continuou a persegui-la. Para isso, levou a cabo um plano astuto: seu exército cercou os muros da grande cidade, impedindo a entrada de suprimentos. Em 272, Zenóbia e seu filho tentaram fugir para a Pérsia, mas foram capturados e levados para Roma, onde o imperador organizou uma marcha triunfal na qual expôs sua prisioneira humilhada. Existem versões diferentes do que aconteceu a seguir. A versão mais aceita é que Aureliano a perdoou e permitiu que ela levasse uma vida luxuosa em Tibur (atual Tivoli), como exilada. Segundo essa versão, Zenóbia teria se tornado uma excelente filósofa da alta sociedade romana. Além do que aconteceu com ela, o legado mais tangível que a rainha Zenóbia deixou foi o esplendor de sua cidade, que hoje ainda é considerada uma das joias da antiguidade. Durante seu breve reinado, ela embelezou a cidade, famosa por seus belos templos, edifícios públicos, monumentos e jardins. A beleza e a importância cultural de Palmira foram mantidas ao longo da história, tornando a cidade antiga e suas famosas ruínas uma das atrações turísticas mais importantes da Síria. Em 1980, Palmira foi declarada Patrimônio da Humanidade pela Unesco, o braço da ONU para Educação, Ciência e Cultura. No entanto, a cidade também passou por um grande número de cercos. A primeira foi a dos romanos, que após a queda do Império de Palmira e uma tentativa frustrada de rebelião, devastaram a capital. Muitos dos tesouros mais valiosos de Palmira acabaram sendo trazidos para Roma. Palmira até sofreu nos tempos modernos: em 2015, foi destruída pelo auto-denominado Estado Islâmico, que tomou conta da cidade durante a sangrenta guerra civil síria. Os integrantes da EI explodiram muitos de seus monumentos e joias arqueológicas, considerando-os símbolos da idolatria. No entanto, após retomar o controle da cidade, o governo sírio informou que, embora pedaços de amplo valor histórico tenham sido destruídos, muitas das ruínas de Palmira permanecem intactas.
2020-07-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53381035
cultura
Como é ser negro no Japão, país onde 98% da população é nativa
Quando o nigeriano Samuel Lawrance chegou ao Japão, aos 17 anos de idade, a vida na terra do sol nascente era mais difícil e os desafios do idioma e da cultura, assustadores. Hoje com 34 anos, Samuel é um engenheiro bem-sucedido que vive em Tóquio e carrega uma história de quem enfrentou a escola japonesa, a universidade e o preconceito para conquistar um espaço. "Quando era adolescente, passava por situações bem complicadas, como estar sentado no trem e ter um espaço livre ao meu lado, mas ninguém querer sentar comigo. As pessoas preferiam ficar de pé, inclusive idosos. Me sentia tão mal que queria levantar para que as pessoas pudessem se sentar", conta ele à BBC News Brasil. Samuel diz achar que o Japão melhorou e hoje é um país mais aberto, embora situações como essa do trem ainda ocorram eventualmente. "Acho que o Japão foi uma sociedade muito fechada por um longo período e de repente passou a aceitar muitos estrangeiros. Eles estão tentando se acostumar a ter pessoas naturais de outros países ao redor. O Japão hoje é muito melhor do que era quando cheguei aqui." A discriminação racial é uma questão pouco debatida no Japão, mas que esteve no centro de discussões desencadeadas por eventos específicos nos últimos anos. Não há estimativas sobre a quantidade de negros no Japão, uma vez que o órgão de estatísticas do país só colhe dados por nacionalidade. Os estrangeiros respondem por apenas 1,7% da população japonesa. Em 2015, quando a modelo Ariana Miyamoto, filha de mãe japonesa e pai afro-americano, conquistou o título de Miss Universo Japão, a questão ganhou espaço depois de uma chuva de críticas. Embora tenha nascido e crescido no Japão, Ariana sofreu ataques de pessoas que diziam que ela não era "japonesa o suficiente" para representar o país. Naquele ano, a modelo deu declarações de que a discriminação a deixava ainda mais motivada, e o debate foi além da questão do racismo: colocou em xeque a hegemonia da sociedade japonesa. Em janeiro do ano passado, outra questão racial levou o tema novamente para a mesa de debates. A prestigiada tenista nipo-haitiana Naomi Osaka foi retratada em uma animação da empresa Nissin, fabricante de macarrão instantâneo, com a pele branca. A polêmica fez a empresa vir a público pedir desculpas, dizendo que terá "mais sensibilidade no futuro". A morte do afro-americano George Floyd, de 46 anos, assassinado durante uma abordagem violenta de um policial branco nos Estados Unidos, desencadeou uma onda de protestos antirracistas no mês passado e gerou um debate de proporções internacionais. Alguns veículos japoneses aproveitaram a oportunidade para levantar uma importante questão: será que o Japão não tem nada a ver com a luta contra o racismo? Para Yasuko Takezawa, professora do Instituto de Pesquisa em Ciências Humanas da Universidade de Quioto, a questão racial também é um problema na sociedade japonesa. "A maioria dos japoneses não tem uma experiência direta com pessoas negras. A imagem no país é proveniente da mídia, novelas, filmes, famosos com descendência africana ou comediantes que fazem imitações estereotipadas. É uma imagem que não é corrigida e acaba influenciando a sociedade", explica. Em janeiro de 2019, o engenheiro mecânico Stephen Estelle, de 25 anos, saiu dos Estados Unidos para tentar a vida no Japão. Sem falar o idioma, Stephen passou um ano em Tóquio, onde adquiriu experiência com os japoneses e depois se mudou para o extremo sul do país, para trabalhar no Instituto de Ciências e Tecnologia de Okinawa. Stephen conta que teve mais experiências positivas do que negativas e que a interação com os japoneses geralmente ocorre através da curiosidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Sinto que as pessoas ficam mais interessadas em conversar comigo por causa da curiosidade. Elas fazem perguntas, querem saber sobre o meu cabelo e a minha cultura. Eu acho que é algo bom, pois eles estão aprendendo e assim conseguem dissolver os estereótipos", explica. Acostumado a falar sobre si, Stephen conta que já passou por situações constrangedoras e que nem sempre a curiosidade é positiva. "Há pessoas que passam dos limites e invadem a sua privacidade, tentam tocar em você sem pedir. Conversando com um amigo negro, descobri que temos uma experiência parecida, a de ir em um banheiro público e ter um desconhecido tentando 'espiar' você. Isso é desrespeitoso, além dos limites", critica. Apesar dos inconvenientes, o afro-americano conta que a experiência no Japão tem sido positiva. "Aqui eu não preciso me preocupar com a violência policial, mas nos Estados Unidos há mais suporte, amigos afro-americanos, a comunidade, a família. Se eu pegar o carro à noite nos Estados Unidos e sair de casa, posso chamar atenção de um policial. Aqui não me preocupo com isso, eu me sinto mais seguro". A jamaicana Danielle Thomas, de 28 anos, chegou ao Japão em 2016 e foi trabalhar como professora de inglês em uma escola primária em Ibaraki, província a 82 km de Tóquio. Acostumada com as crianças japonesas, Danielle conta que passou por algumas experiências "engraçadas", como a de um menino que disse para a mãe que a professora tem "a cara marrom" e outro garoto que a chamava de "professora marrom". "Eu adoro trabalhar com as crianças, elas são energéticas e puras. Eu não me ofendo com isso, acho que é bonitinho. Eles são honestos, ficam surpresos comigo e deixam os pais constrangidos", diz. A curiosidade também é algo presente em seu dia a dia no Japão. "Estou sempre respondendo às mesmas perguntas sobre o meu país e principalmente sobre o meu cabelo. Eu canso, mas não me importo. Na Jamaica, todo mundo era como eu, e quando cheguei ao Japão, eu também fiquei fascinada pelo cabelo dos japoneses. Eu também queria tocar neles, por isso eu entendo", brinca. A brasileira Lorraina Eduarda Vital Cota Nakamura, de 28 anos, veio de São Joaquim da Barra, em São Paulo, para o Japão há dois anos, depois de vencer o medo de se mudar para o outro lado do mundo. "Na época, o meu marido (descendente de japoneses) ficou desempregado e então surgiu a ideia de ir ao Japão. Eu tinha muito medo, acreditava que os japoneses eram preconceituosos e temia pela minha filha, que tinha só seis anos", conta. Lorraina se instalou com a família na província de Mie, na região central do Japão. A brasileira conta que começou a trabalhar em fábricas e se sentiu bem recebida, mas enfrentou uma adaptação difícil, principalmente por causa do idioma. "Assim que cheguei eu procurei um curso de japonês e comecei a estudar. Aprendi o hiragana (um dos três sistemas de escrita) e depois tive aulas particulares, mas quanto mais eu estudava, menos eu aprendia. Essa língua é muito difícil para mim, tenho me esforçado para vencer essa barreira." Lorraina se tornou autônoma e abriu um salão de beleza em casa, especializado em tranças, dreads e alongamentos capilares. A brasileira conta que a filha Helena, hoje com 8 anos, se adaptou bem na escola japonesa, mas passou por um episódio de bullying. "Um colega japonês zombou do cabelo dela e logo fomos na escola resolver a situação. Hoje em dia eles são amigos e não houve mais nada. Todos os dias, quando ela chega da escola, eu pergunto como foi com os colegas e com a professora, estamos sempre acompanhando", diz. Com relação ao racismo, Lorraina diz que passou por poucas situações desconfortáveis, como a vez em que estava em uma loja de usados e se aproximou de algumas crianças para se olhar no espelho. "A mãe disse 'abunai, abunai' (perigo em japonês) e eu não entendi. Pareceu que estava dizendo para as crianças que eu sou perigosa", relembra. De uma maneira geral, ela conta que a experiência no Japão tem sido positiva. "Geralmente sou bem tratada e tenho gostado de morar aqui pela segurança e a estabilidade. Fora o problema da língua, eu sinto falta do calor humano do Brasil. Aqui as pessoas são afastadas, é cada um por si. Isso poderia me fazer querer voltar ao Brasil, mas o racismo, não", diz. O nigeriano Samuel Lawrance, que está há mais de 15 anos no Japão e se aprofundou na sociedade e no sistema do país, acredita que há um racismo "passivo-agressivo" na sociedade japonesa, por ser algo que ocorre muitas vezes de maneira discreta. "Eu trabalhei em uma empresa japonesa há alguns anos e passei por uma situação bastante desconfortável, de ver alguém bem menos capacitado e experiente do que eu se tornando o meu chefe simplesmente por ser japonês. A sensação é de que não importa o quão bom eu seja no que eu faço, não posso crescer por ser estrangeiro ou por ser negro", desabafa. Samuel trabalha atualmente para uma empresa estrangeira, que implementa tecnologia de inteligência artificial em campos de golfe e tênis. Depois de passar pelo sistema educacional do Japão e de se encaixar na sociedade como um trabalhador, o nigeriano acredita que tem a missão de ajudar a educar os japoneses com relação aos negros. "Já ouvi todo o tipo de pergunta, até se tem ar-condicionado na Nigéria. Eu poderia ficar bravo, mas acredito que a minha missão é educar e apresentar informações corretas para qualquer um que esteja me perguntando. Quero que os japoneses saibam como é o meu país e a minha cultura." Depois de passar metade da vida no Japão, o nigeriano acredita que se adaptou por ter entrado no sistema e seguido uma carreira, mas nem por isso pensa em ficar para sempre no país. "A diferença entre mim e um trabalhador japonês é que ele tem um passaporte japonês e obviamente não se parece como eu, apenas isso. Eu estou aqui porque os meus serviços estão sendo requisitados. Quando não forem mais, acredito que vou embora", diz.
2020-07-18
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53367241
cultura
As 4 vidas de Piera Aiello, a mulher que viveu sem rosto durante 3 décadas por enfrentar a máfia na Itália
Piera Aiello ainda não sabe, mas sua primeira vida está prestes a terminar. São nove horas da noite de 24 de junho de 1991. Nesse exato momento, ela está brincando na cozinha de seu restaurante. Ela tem 23 anos, uma filha de três anos que dorme em casa com os avós, e um marido, Nicola Atria, que será assassinado diante de seus olhos em alguns minutos. No terraço da pizzaria Europa, que Piera comanda com o marido, o verão não dá sinais de trégua. O clima abafado percorre todos os cantos da cidade de Montevago, 20 ruas e uma catedral na base do Valle del Belice, no interior do oeste da ilha da Sicília. O local não tem o charme dos templos gregos de Agrigento, os elegantes edifícios de Palermo, nem as águas azul-turquesa de Marsala ou Trapani, e poucos fora da ilha sabiam de sua existência até 1968, quando um terremoto varreu várias cidades da região do mapa e causou a morte de centenas de seus habitantes. O nome acabou gravado na memória coletiva do país e, devido ao ritmo lento de reconstrução, a corrupção e os interesses poucos transparentes que se tornaram evidentes nos anos seguintes acabaram associando-o irremediavelmente a duas palavras: Cosa Nostra. Mas Piera não pensa em nada disso enquanto ainda está ocupada na cozinha de sua pizzaria. Ela está mais preocupada em cuidar de sua irmã grávida, que está no terraço com outros clientes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De repente, ela ouve a cortina de vime da cozinha se mover. Piera se vira e vê um homem com um capuz sobre a cabeça: ele veste um traje de camuflagem, cheira a gasolina e tem uma espingarda na mão. Ele é baixo e avança em direção ao casal. "O que está acontecendo?", grita ela, enquanto o homem aponta a arma. Seu marido empurra Piera contra a parede e diz: "Não toque na minha esposa". Entra outro homem, muito maior, também com uma espingarda e dedo no gatilho. Piera pula, agarra a culatra da espingarda, o objeto está quente e cheira a gasolina. Atrás dela, ouve duas explosões, suas mãos arrancam a culatra, o homem se liberta, a aperta contra a pia e com a outra mão dispara. O marido de Piera grita - e cai no chão. O ar da cozinha cheira a pólvora e a gasolina. Nicola está morto. *** "É uma sensação estranha", diz Piera, 29 anos depois do crime, recostando-se na poltrona do escritório que compartilha com um colega em Roma, capital da Itália. Ela limpa sua garganta. "Você sente alívio porque sobreviveu. Mas, ao mesmo tempo, sente um vazio. Esse é o sentimento quando você testemunha um homicídio", acrescenta ela em entrevista à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Sua empregada abre as janelas do escritório. O ar é permeado pela fumaça do cigarro. Nem mesmo um raio de sol de início de março entra pelas persianas, iluminando uma Roma mergulhada em plena crise causada pela pandemia do novo coronavírus. No fim da rua, pode-se ver o Palazzo Montecitorio, a sede do Parlamento italiano e também o local de trabalho de Piera desde que, há dois anos, começou sua quarta vida. "Agora que sou deputada, fumo como um caminhoneiro", confessa. Em sua primeira vida, Piera é Piera Aiello, um nome que ela perderá e não recuperará até o início de sua quarta vida. Mas isso só acontecerá mais tarde. Agora, Piera é adolescente em Partanna, vilarejo da Sicília onde nasceu em 1967 e que deixou junto de sua família alguns meses depois, quando o terremoto o devastou, para embarcar rumo à Venezuela. Cinco anos depois, ela retornaria à terra natal. Com a puberdade confundindo seus desejos, naquela cidade siciliana que nada tem a ver com a Venezuela da qual sua família voltou com mais dinheiro, Piera se dá conta de três coisas. Que em Partanna não é bem visto que as meninas expressem seus pensamentos. Que, como em muitos outros vilarejos da ilha italiana, existem dois guardiões veteranos que patrulham as ruas e punem os cidadãos rebeldes: o medo e a omertà (código não escrito que proíbe denunciar atividades criminosas. Quem o violar, pode sofrer retaliação violenta). E que esses guardiões respondem a um homem que eles dizem ser um paciere, que parece ser respeitado por todos e a quem se dirigem com reverência, como o protagonista da trilogia de "O Poderoso Chefão": Don Vito. Mas Don Vito de Partanna não se chama Corleone, como o filme, mas Atria, e ele não tem o olhar enigmático de Marlon Brando, mas os modos rudes de um chefe da máfia local. Don Vito Atria tem uma filha mais nova que Piera, Rita, e um filho um pouco mais velho, Nicola, que se apaixona por ela. Eles começam a namorar - "com a aprovação prévia, é claro!" - de suas respectivas famílias. Mas o comportamento possessivo de Nicola, suas frequentes traições e a conversa doce que os habitantes da cidade dedicam a Piera por ser a nora de Vito Atria convencem-na a interromper o relacionamento. *** "Nicola não ficou muito afetado, mas o pai dele não aceitou essa afronta", lembra ela à BBC News Mundo de seu escritório em Roma. "Depois de algumas semanas, Don Vito veio à minha casa e me disse: 'Não me importo se você o fará sofrer por um mês, dois meses, um ano, dez anos... mas, no final, você será minha nora. Porque todos nós temos uma família que amamos.'" Piera faz uma pausa e se lança sobre a mesa. Então continua. "Ele estava praticamente me ameaçando. Naqueles anos, se matava em Partanna por muito menos, mesmo por um olhar enviesado", lembra. "Essa foi a primeira encruzilhada da minha vida." *** Piera tem 18 anos e quatro meses quando se casa com Nicola. Nove dias após o casamento, em 18 de novembro de 1985, enquanto está em lua de mel, o casal recebe a informação de que Don Vito Atria "sofreu um acidente". Esse acidente é uma explosão que claramente ninguém viu ou ouviu. Em frente ao cadáver de Don Vito, deitado no mármore branco do necrotério, Nicola Atria grita a promessa que será sua sentença: "Quem matou meu pai pagará com sangue". Entre 1983 e 1997, na Sicília, houve 1.464 assassinatos da máfia, segundo o órgão de estatística italiano (ISTAT). Somente na província de Trapani, à qual pertence Partanna, entre 1983 e 1993, houve 88 assassinatos envolvendo a máfia. Naqueles anos, uma guerra sangrenta foi travada entre os diferentes clãs pelo controle do comércio internacional de drogas e armas. Segundo as autoridades, Vito Atria foi vítima de um acerto de contas. No entanto, os responsáveis nunca foram encontrados. Nos anos que se seguiram ao assassinato de seu sogro, Piera se dá conta de outras três coisas. A primeira é que o marido negocia com traficantes de drogas locais. A segunda, que será difícil se libertar da violência de Nicola. "Nunca perdia a oportunidade de me aterrorizar", diz. "Uma vez ele começou a me chutar na barriga. Estava grávida de oito meses. Pensei que o bebê e eu íamos morrer." Mas o bebê nasceu, uma menina. As tradições exigiam que ela recebesse o nome de sua sogra, nesse caso, Giovanna. Mas Piera decidiu desafiar a família Atria. Questionada sobre o porquê, ela diz: "Não queria me curvar só porque eles me mandaram. Embora eu soubesse que isso teria consequências. E, de fato, foi o que aconteceu." Piera batizou a menina de Vita Maria. "'Vita' porque essa garota deu sentido à minha vida", diz. "E Maria, porque rezei para a Virgem Maria que fosse uma menina, para não seguir os passos de seu pai e avô." *** Naqueles anos, há outra pessoa na família de seu marido que marcará seu destino para sempre. Ela é Rita Atria, irmã adolescente de Nicola, com quem ela estabelece um relacionamento íntimo e de confiança mútua. A terceira coisa que Piera se dá conta é que o marido está buscando os assassinos de seu pai e que ele obteve pistas suficientes para saber quem foi o mandante do crime. Mas o código de honra sequer o proíbe de falar com os sbirri (palavra depreciativa usada para se referir à polícia e instituições judiciais). Nicola sabe muito bem o que significa atravessar a porta de uma delegacia com a intenção de acusar um membro da máfia. Ele sabe que colaborar com a polícia, revelando o que sabe sobre a organização criminosa, significa tornar-se um pentito (pessoa que pertence ao crime organizado que decide se arrepender e colaborar com a justiça), o que, para a Cosa Nostra, é muito pior do que um traidor. É assim em muitas partes da Sicília. E ainda mais em cidades pequenas como Partanna ou Montevago. Não, ele tem que encontrá-los por conta própria e se vingar, matando seus assassinos. Mas pensar que alguém pode fazer certas perguntas - naquele território e naquele período - e esperar que ninguém descubra é ingenuidade ou imprudência. Nicola não é uma coisa nem outra. Ele sabe que quem está procurando compartilha o mesmo código e as mesmas regras. Finalmente, acredita ter encontrado o assassino de seu pai e contrata dois assassinos profissionais para matá-lo. Mas a emboscada falha - não está claro o porquê - e agora é sua vez de ficar em guarda. Piera não tem escolha a não ser limpar as manchas das camisas do marido na altura dos quadris todos os dias, onde ela carrega uma pistola de calibre 7,65. Seu marido a convence de que não tem outra escolha a não ser aprender a atirar por conta própria e sempre carregar uma submetralhadora - "o iraniano, ele a chamava" - entre as fraldas e as mamadeiras de Vita Maria. Mas nem o conselho de Nicola, nem as aulas de tiro nem a submetralhadora impedirão a fatídica noite de 24 de junho de 1991, na qual Piera Aiello perderá seu marido - e a partir da qual perderá seu nome. *** "Quando a polícia me informou do assassinato, decidi acompanhar a autópsia", lembra Morena Plazzi. Plazzi é uma juíza de Bolonha, uma cidade no norte da Itália, onde a máfia naqueles anos era um fenômeno mais distante. A 1,3 mil quilômetros dali, ficava Sciacca, cidade na província de Agrigento, para onde foi enviada como procuradora. Foi seu primeiro emprego, ela tinha 28 anos e começou a trabalhar ali havia um mês. Quando Plazzi chegou ao necrotério, a cena que assistiu parecia a imagem clichê da Sicília para alguém que viesse do norte do país. "Havia um grupo de mulheres, todas vestidas de preto, que cercavam a jovem viúva. Outras, também de preto, gritavam sua dor e lamentavam o 'infortúnio' que o destino lhe reservara", diz ela à BBC News Mundo. "'Mas de qual desgraça elas estão falando?', perguntou ela à viúva. 'Seu marido foi baleado na cara, ele foi morto'", responderam. Plazzi lembra que uma das coisas que mais a surpreendeu nesse período como promotora na Sicília foram os poucos relatos de furtos ou roubos. Isso porque a Cosa Nostra se encarregava de matar esses criminosos. E muitos desses assassinatos tinham um fator em comum: ninguém tinha visto ou ouvido nada. Também não havia lei de proteção às testemunhas - ela só entraria em vigor dez anos depois, em 2001. Sendo assim, diz a juíza, ninguém se arriscava a denunciar as atividades da máfia. Mas policiais afirmaram a Plazzi que com aquela viúva poderia ser diferente, que a família de Piera Aiello não tinha conexão com a máfia, que ela deveria tentar. "Aproximei-me da jovem e disse: 'Se você precisar conversar com alguém, estou disponível, como mulher, como mulher da mesma idade, como amiga. Você não precisa se tornar uma delas, com o lenço preto enrolado na cabeça por toda a sua vida. Deixe o luto para elas." Ela conseguiu esconder um pedaço de papel com o número de telefone de Plazzi, pouco antes de sua sogra e as outras mulheres a levarem embora. Questionada se teria sido perigoso para ela falar com a polícia, a juíza responde: "Claro que sim!". "A máfia naqueles anos matou um garoto e dissolveu seu corpo em ácido. Você acha que eles teriam tido qualquer escrúpulo em matá-la por ser mulher?" "Aiello Piera, [...] enquanto pessoa informada dos fatos, já há algum tempo começa a fornecer declarações detalhadas sobre inúmeros homicídios e outros crimes que ocorreram na área de Belice e está trazendo declarações interessantes sobre a estrutura e o tamanho das famílias mafiosas naquela área, alvo de um banho de sangue nos últimos tempos por ataques muito sérios entre grupos rivais." "Aiello, viúva de um dos que foram mortos, faz essas declarações sem o conhecimento de seus familiares e vive com medo de ser descoberta." "Portanto, é necessário que a mencionada, cuja colaboração continua e se prolongará por um tempo indefinido, seja assistida para poder se afastar de Montevago e ser adequadamente protegida." Essas declarações constam do pedido que o Ministério Público de Marsala - a 60 quilômetros de Partanna, na província de Trapani - enviou em 26 de agosto de 1991 ao Alto Comissariado para a luta contra o crime organizado em Roma. Para Piera, no entanto, é o papel que certifica seu segundo nascimento. As dores do parto começam um mês antes, quando em sua casa Piera ainda ouve condolências de conhecidos e advertências de sua sogra para que não fale com os sbirri. Mas ela decide aceitar o convite de Plazzi. Ele marca um encontro com um carabiniere (policiais) e segue em seu carro para a delegacia, onde troca de automóvel e depois por outro. No caminho para Palermo, permanece com a dupla o medo de que alguém os estivesse seguindo. Eles mudam de rota, seguem um caminho secundário, mudam de rota novamente, ficam confusos, falam pouco, se entreolham, checam se está tudo bem, se entreolham novamente... Depois de uma hora, o carro chega à delegacia de Terrasini, uma cidade a poucos quilômetros do aeroporto da capital siciliana. Lá Piera se encontra com Plazzi, com outra promotora, Alessandra Camassa, e com o procurador-geral, Paolo Borsellino. Borsellino e seu colega Giovanni Falcone são dois dos juízes mais envolvidos na luta contra a máfia desde a década de 1980. E serão até a morte. Ambos são de Palermo, entendem muito bem a idiossincrasia da Cosa Nostra e estão desenvolvendo um novo sistema de investigação que conseguirá prender e condenar centenas de bandidos. Será graças a suas investigações que a estrutura complexa da Cosa Nostra e as relações costuradas ao longo dos anos com o poder político e empresarial italiano serão descobertas. Mas Piera, naquele tempo e naquela delegacia, não sabe de nada disso. Tampouco sabe quem é esse homem que está sendo apresentado a ela, que ela vê como alguém importante e a quem chama de "excelentíssimo", como se fosse um deputado. Borsellino, afável, mas conciso, diz: "A colaboração com a justiça funciona assim: se a Sra. quer que prendamos aqueles que mataram seu marido, precisa nos contar tudo o que sabe, sem esconder nada. E se encontrarmos evidências de que o que a Sra. nos diz é verdade, então podemos parar aqueles que a Sra. acusa". "Então a Sra. terá que comparecer diante de um juiz, repetir tudo na frente dos assassinos de seu marido, que podem estar lá, atrás das grades e que olharão para você com olhos cheios de ódio." E termina com um aviso que se tornará profético. "Se a Sra. decidir testemunhar, terá que sair daqui. Terá que arrancar a Sicília do seu mapa." "Já me decidi", responde Piera a Borsellino. "Só preciso de três dias para fechar minha conta bancária, dizer adeus aos meus pais, arrumar tudo e ir embora com minha filha." Três dias depois, na noite de 30 de julho de 1991, Piera está dormindo com a filha em um apartamento protegido pela polícia em Roma. A partir desse momento, não será mais Piera Aiello. Seu nome e sua primeira vida aparecerão apenas nos complexos relatórios judiciais. Agora ela é um testimone di giustizi (pessoa familiarizada com certos crimes relacionados ao crime organizado que colabora com a Justiça, figura que é reconhecida pela lei italiana desde 2001). *** "Pouco antes de sair da Sicília, fui me despedir de Rita Atria", diz Piera, balançando as mãos no ar, com as unhas pintadas de esmalte rosa. "Disse a ela: 'Não quero ser como sua mãe. Não quero ser uma viúva da máfia. Não quero ver os assassinos de seu irmão, os assassinos de seu pai, caminhar diante dos meus olhos.' Tínhamos que colocar um basta em tudo isso. A nossa cidade se tornou um local de órfãos e viúvas. Não havia família que não tivesse algum ente querido assassinado", continua ela, com seu pequeno pingente com o símbolo da Sicília balançando no decote de sua blusa listrada. "Estava cansada dessa vida. Estava cansada de ver como essas mulheres abaixavam a cabeça, como se vestiam com seu lenço preto de luto, como se ajoelhavam diante desse sistema de gângsteres." "Contei tudo isso para Rita e repetia isso todas as quintas-feiras às três da tarde, quando ligava para ela de uma cabine telefônica em Roma." *** Uma noite em outubro, alguém bate à porta da casa Atria. Rita atende, não abre. Um homem a exorta a fazê-lo: "Abra a porta!" - mas Rita não quer. Ele se afasta da porta. Rita grita para ele ir embora. O homem se aproxima e sussurra: "Na vida você tem que falar pouco, porque senão ...". No dia seguinte, Rita munida de sua mochila com seus livros escolares descansa no apartamento onde Piera e sua filha estão. Ela também decidiu contar aos juízes tudo o que viu e ouviu em seus 17 anos vivendo em uma família de mafiosos. As duas mulheres começam a listar, calcular, relacionar e detalhar tudo o que sabem. Porque, como Piera repetirá para os promotores Camassa e Borsellino, "uma mulher sempre sabe o que seu marido ou filho faz". "Esse período de convivência foi maravilhoso, estávamos recuperando nossa liberdade. Até então, nunca tínhamos sido livres para dar um passeio por conta própria ou ir ao cabeleireiro", diz Piera. "Foram minhas 'férias em Roma'", ela sorri, piscando em alusão aos filmes protagonizados por Audrey Hepburn. E ela continua me dizendo como sua felicidade não demorou para acabar. *** Em 23 de maio de 1992, a máfia detonou 400 kg de explosivo na rodovia que liga o aeroporto de Palermo à cidade. Naquele momento, um comboio de três carros estava passando, no qual viajavam o juiz Giovanni Falcone, sua mulher, a juíza Francesca Morvillo, e três acompanhantes. No ataque, conhecido como "o massacre de Capaci", além dos corpos das cinco pessoas, foram destruídas as esperanças levantadas naqueles anos para derrotar a Cosa Nostra. Essas mesmas ilusões foram enterradas 57 dias depois, em 19 de julho de 1992, sob os escombros de "a matança de via D'Amelio", quando um carro-bomba matou o juiz Paolo Borsellino e cinco guarda-costas quando ele visitava a casa de sua mãe. Não foram apenas dois ataques contra inimigos da máfia. Foi a declaração de guerra da Cosa Nostra e seus padrinhos (Totò Riina, Bernardo Provenzano, Leoluca Bagarella, entre outros) ao Estado italiano. Uma guerra que continuaria até o ano seguinte com ataques ao patrimônio artístico e cultural de Roma, Milão e Florença, e que causaria a morte de várias pessoas inocentes. *** As notícias do ataque de Borsellino deixam Piera e Rita atordoadas e desorientadas. A polícia entende a situação de ambas e decide levá-las para um local protegido na Sicília, perto da família de Piera. Mas, no último momento, Rita decide ficar em Roma. Será a última vez que as duas mulheres se abraçam. Em 25 de julho de 1992, Rita se lança no vazio do sétimo andar do apartamento na capital italiana para onde foi transferida "por segurança", disseram as autoridades. "Meu coração não vive sem você", dizem as folhas escritas em uma parede. Em seu diário, eles encontram a mesma frase: é dirigida ao juiz Borsellino. Giovanna Cannova, sogra de Piera e mãe de Rita, não comparece ao funeral da filha. Alguns meses depois, eles a verão no cemitério do vilarejo, destruindo com marretadas a lápide de sua filha. Ela promete que, enquanto viver, no túmulo da família não haverá vestígios de sua Rita: sem foto, sem nome, nada. Porque ela era "infame". Ela não quebrará sua promessa nos 20 anos restantes de sua vida. *** "'Quando eles me disseram que uma das duas havia se jogado de uma sacada, pensei que fosse você', eu disse para Piera naquela noite", lembra à BBC News Mundo Alessandra Camassa, atual presidente do tribunal de Marsala. Camassa nunca esquecerá aquele verão também. "Não se sabia quem seria a próxima vítima." "Piera Aiello me confessou que a Sra. era a musa dela", digo a Camassa e acrescento: "Ela me disse que se não a tivesse encontrado, não seria a pessoa que é agora." Camassa ri. "Piera não ganhou nada ao fazer o que fez", responde, com seu suave sotaque de Trapani. "Ela poderia ter seguido com sua vida e teria sido mais fácil para ela; tendo feito o que muitas mulheres sicilianas fazem, que são consistentes com os valores dos gângsteres." Caso contrário, não seria possível explicar como conseguem transmiti-los de geração a geração. Em vez disso, graças às revelações de Piera e Rita, em 1993, conseguimos levar 14 membros da máfia a julgamento e condená-los, alguns por assassinato". Durante o julgamento, um homem arrependido revelou que as notícias do suicídio de Rita Atria foram recebidas com aplausos na prisão de Trapani. *** "Nos meses seguintes à morte de Rita, eu morava em um hotel isolado, protegido pela polícia, sem nome. Era um vegetal", diz Piera, com o olhar fixo na parede atrás de mim. "Foi então que decidi me isolar do mundo e entrar em um convento", acrescenta. "Muita coisa aconteceu naqueles últimos dois anos e não queria saber de nada, descobrir nada. Não assisti ao noticiário por dois anos e meio". O que Piera - dedos entrelaçados, os olhos voltados à mesa de fórmica - chama de "metamorfose" durou até 1995. Durante esses dois anos e meio, ela deixou o isolamento apenas para participar de julgamentos. Por outro lado, mesmo que quisesse, também não poderia ter ido a lugar algum, porque havia apagado sua identidade: Piera Aiello não podia mais existir, mas, ao mesmo tempo, não havia como substitui-la. "Como você explica às pessoas que você não existe?", pergunta Piera. "Não pude matricular minha filha de seis anos na escola. Se fosse ao médico, tinha que dar o nome de outra pessoa." *** O limbo em que Piera vive sua segunda vida durará seis anos. Fazia um ano que ela havia deixado o programa de proteção a testemunhas quando recebeu sua nova identidade, em 1997. É assim que sua terceira vida começa: com um novo nome que quase ninguém sabe, em uma cidade que quase ninguém sabe. A terceira vida de Piera é um jogo de "cara ou coroa" constante. Mas é ela, não o acaso, quem decide quando jogar a moeda e de que lado ela cai. Com um novo nome, Piera se muda para um local protegido, começa a trabalhar, conhece um homem, se apaixona. Dessa vez, não serão os pais dele que autorizarão o relacionamento, mas a polícia, encarregada de examinar suas novas interações sociais. Uma vez obtida a aprovação, ela lhe revela sua outra identidade, ele não se sente intimidado e, em 1999, eles se casam. Piera dá à luz a outra filha, a quem ela decide não contar sobre seu passado ou o nome com o qual viveu. Quando aquela garota descobrir quem era sua mãe, quem ela é ou quem será - e dessa vez, sim, será obra do acaso - ela estará prestes a completar a maioridade e Piera, a começar sua quarta vida. Mas, no momento, Piera é apenas sua mãe. Piera começa, então, a contar, agora com seu nome real, suas experiências em reuniões públicas cada vez mais frequentes. É o que ela define como sua "missão": visitar escolas em todas as regiões da Itália para explicar aos alunos como é a cara da máfia. Ironicamente, contudo, ela não pode mostrar a sua. E, em 1995, Piera começou a se envolver no movimento civil contra a máfia através da Associação Rita Atria, fundada um ano antes por Nadia Furnari, uma ativista política siciliana. *** Piera conheceu Furnari quando ainda estava "se livrando do mofo no convento", confessa. "Imagine que naqueles anos eu não sabia quem era Berlusconi. Eu o vi na TV e ele parecia um tipo até simpático", ela ri, já em sua quarta vida, a de deputada do Movimento 5 Estrelas. Esse movimento político, fundado em 2009, sempre criticou Berlusconi por sua proximidade pessoal e política com pessoas ligadas ao ambiente da máfia. "Isso mostra que naquela época eu ainda não entendia nada de política", diz ela, rindo. *** Nadia Furnari a acompanha em suas palestras, a apresenta ao mundo do ativismo antimáfia, a ajuda a terminar o Ensino Médio e atua como porta-voz quando Piera não pode se movimentar por razões de segurança. As duas mulheres também estão envolvidas em uma campanha para aprovar uma lei que protege testemunhas e que finalmente entrará em vigor em 2001. A cumplicidade das duas mulheres é tal que, em 2008, Piera chegou a presidir a Associação Rita Atria, instituição da qual acabará saindo três anos depois. Mesmo assim, em suas memórias, assinadas com seu primeiro nome e publicadas em 2012 junto com o jornalista Umberto Lucentini, ela se lembra desse episódio assim: "Nadia me devolveu o desejo de viver no sentido mais profundo da palavra. Isso me mostrou que há uma possibilidade de mudança na Sicília." *** "Caro Angelo," "Sou Nadia Furnari, a pessoa que acompanhou os passos de Piera Aiello por 17 anos... há nove anos, nossos caminhos divergiram, tanto pessoalmente quanto em relação à associação." Quando recebo esta resposta à minha solicitação de entrevista para essa reportagem, minha primeira reação é de espanto. Mas imediatamente surge a curiosidade de saber mais sobre os motivos dessa ruptura. "Caro Angelo", Furnari responde em um segundo e-mail: "Pessoalmente, decidi não falar mais sobre Piera Aiello. Se você quiser conhecer nossas atividades como associação e/ou nossa opinião sobre Rita Atria, explicarei com prazer, mas a conversa não será relacionada a Piera Aiello." Concordamos em conversar por telefone na semana seguinte. Sua voz é gentil e vibrante. Ela me explica as dificuldades envolvidas na luta contra a máfia em um país onde, por alguns anos, quem teve a coragem de fazê-lo era considerado uma pária e não um herói glamoroso da justiça. Ainda mais se tivessem rosto e voz femininos. Além disso, Furnari nem quer ouvir falar de heróis. "Não há heróis. Falcone, Borsellino, os policiais e jornalistas que a máfia matou não pensaram em ser heróis, eles só queriam fazer o seu trabalho." "Torná-los heróis faz com que o restante das pessoas não se sinta responsável. Em vez disso, queremos que cada um lute contra a máfia que está dentro de si, que cada um saiba de que lado ficar sem rupturas ou meias palavras", diz ela com firmeza. Nesse ponto, a conversa recai sobre Piera. Furnari, com sua voz gentil e vibrante, me garante que ela não despreza sua antiga amizade. Mas ela me deixa claro novamente: a única coisa que dirá sobre Piera é que discorda totalmente de suas decisões políticas no Movimento 5 Estrelas. Furnari não as considera consistentes com seu passado. Então ela se despede e nossa conversa chega ao fim. Dias depois de conversar com ela, entrevisto Anna Puglisi, presidente da histórica Associação das Mulheres da Sicília que lutam contra a máfia. Ela também me avisa que não vai falar sobre Piera. Puglisi reconhece sua coragem em denunciar a máfia - "Ela foi a primeira a fazê-lo!" - mas acredita que o que Piera busca agora explorar seu passado em troca de visibilidade. "Nem a Associação Rita Atria", diz ela sem rodeios, "nem Nadia Furnari lhe daria o que ela aspirava ter". *** Naquele escritório repleto de fumaça de cigarro onde Piera me conta a história - a história dela - que ela contou inúmeras vezes, a conversa recai sobre seu relacionamento com Furnari. "O que aconteceu?", pergunto a ela. Piera estende as mãos sobre a mesa. Com uma delas, pega o maço de cigarros e, com a outra, leva um à boca. "Sempre serei grata a Nadia", diz, "porque ela e a associação me tiraram do limbo", acrescenta, batendo o cigarro no cinzeiro para livrar-se das cinzas. "Só que", ela dá uma tragada, "sou um espírito livre e, quando você faz parte de uma associação, precisa seguir algumas regras". Piera dá uma baforada em direção à janela. "Me sentia oprimida, digamos... controlada", ela se recosta sobre sua poltrona. "E nesse período, o que queria era abrir minhas asas, decolar", dá mais uma tragada, "e queria fazer isso sozinha." "Sou assim", Piera faz uma pausa, "um cavalo sem freio." Piera ainda não sabe, mas o acaso decidiu que esse jogo de cara e coroa de 20 anos está prestes a terminar. "Era uma tarde de verão em 2017", ela começa a me dizer, sem esconder certo alívio em suas palavras. "Tínhamos acabado de reformar o apartamento protegido onde morava com minha família e queria decorar algumas paredes." Um dia, meu marido e eu estávamos arrumando o ático e, encostados na parede, havia alguns quadros que ele havia me trazido da casa dos meus pais na Sicília. Eram quadros que eu pintava quando jovem, quando ainda me chamava Piera Aiello. De repente, minha filha aparece e começa a dizer: 'Por que você quer comprar quadros se há tantos aqui?' E rasga o invólucro de um deles. Imediatamente, vê uma assinatura. "Você quer me contar algo?", minha filha me perguntou. "Ela estava prestes a completar 18 anos e decidi que havia chegado a hora de dizer a verdade." "'Como você fez isso? Como você conseguiu manter esse segredo por tanto tempo?', minha filha me pergunta. 'De repente, tenho uma mãe que todo mundo conhece e outra que eu conheço, completamente diferente', acrescentou ela." Nesse escritório onde passa várias horas de sua quarta vida, não há foto de ninguém: nem de suas filhas, nem de seu marido, nem dela. "Como a Sra. conseguiu manter um segredo tão bem guardado por tanto tempo?", pergunto-lhe novamente. "É como se eu desligasse um interruptor", responde ela. "Não sou mais essa pessoa, mas a outra", explica. Depois de alguns meses, começará a quarta vida de Piera. No início de 2018, o Movimento 5 Estrelas quer que ela se candidate nas eleições para o Parlamento italiano, que seriam realizadas em março daquele ano. Sua resposta é positiva, mas com duas condições: "A primeira é que eu seja candidata com meu nome verdadeiro, Piera Aiello", diz ela categoricamente. A segunda é que ela se lance candidata por Marsala, a mesma província da Sicília onde nasceu Matteo Messina Denaro, considerado pelas autoridades italianas o atual chefe da máfia siciliana e um fugitivo da justiça desde 1993. Mas nessa corrida, ela corre uma desvantagem significativa: Piera não pode fazer campanha em locais abertos, nem ser fotografada. Para todos, ela é "a candidata sem rosto" e o lenço preto que cobre seu rosto sempre que faz um discurso se torna o símbolo de sua campanha eleitoral. "Muitas pessoas me olharam como se eu fosse uma alienígena", lembra ela, com um sorriso malicioso. Um mês e 77.950 votos depois, Piera Aiello inicia sua quarta vida, com seu nome e como deputada da República, a primeira testemunha de justiça a entrar no Parlamento italiano. Desde 5 de março de 2018, seu objetivo, explica ela, permanece o mesmo: trabalhar na Comissão Parlamentar contra a máfia para melhorar as condições das testemunhas de justiça e de suas famílias. "O Estado não está, por assim dizer, muito atento às suas necessidades. Porque quando o tempo das denúncias, dos julgamentos, do interesse da mídia passa, o nível de proteção cai", denuncia ela, enquanto sua voz se torna grave. "Por outro lado, a Cosa Nostra, a 'Ndrangheta, a Camorra, nunca esquecem você." De repente, o celular vibra na mesa de fórmica. É sua escolta, que pergunta quando ela estará livre. Enquanto conversam por alguns minutos, uma lembrança que Piera descreve em suas memórias vem à mente. É verão de 1991 e fazia algumas semanas que estava denunciando aos promotores os segredos da máfia que ouviu durante anos ao lado de seu marido. Durante esses dias, os companheiros de sua solidão são incerteza, angústia e medo. Um dia, ela começa a chorar na delegacia. Piera não quer continuar, quer rasgar os papeis de suas declarações, quer voltar para sua vida, seja ela o que for. O juiz Paolo Borsellino a abraça, a conforta e a empurra levemente em direção ao espelho. "O que você vê?", pergunta ele. "Eu vejo uma garota com um passado complicado, um presente inexistente e um enorme ponto de interrogação como futuro." "Em vez disso, vejo...", diz Borsellino, "vejo uma garota com um passado complicado que conseguiu se rebelar. E vejo um futuro de felicidade." Assim que acaba de falar com sua escolta, mencionei essa anedota e perguntei a ela como se vê diante do espelho: "Quem é Piera Aiello agora?", pergunto. "Piera Aiello é uma mulher que vem de 30 anos de luta contra a máfia, que fez isso do anonimato", responde ela. E Piera continua: "Piera Aiello ainda é a mesma mulher de sempre, mesmo que agora seja política". Mas o que ela vê naquele espelho já me foi explicado, entre lembranças e cigarros, entre depoimentos e olhares firmes. "Acima de tudo, sou Piera Aiello. Porque, embora você entre no sistema de proteção a testemunha e eles mudem seu nome, seu primeiro nome, o que seu pai lhe deu, ele nunca morre. Ninguém pode apagá-lo. E eu sou uma Aiello e, como Aiello, quero morrer." *Edição: Leire Ventas / Ilustrações: Kako Abraham
2020-07-18
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53342231
cultura
Por que os japoneses já usavam máscaras muito antes da covid-19
*Atualizada às 14h de 03/12/2020 A pandemia de covid-19, que infectou mais de 63 milhões de pessoas e causou mais de 1,4 milhão de mortes em todo o mundo, nos mudou de várias maneiras: como nos relacionamos com os outros, como usamos os espaços, a maneira como viajamos, a maneira como nos vestimos. E uma das "roupas" novas que agora fazem parte da paisagem cotidiana são as máscaras. Inicialmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou a máscara apenas para uso médico. Porém, à medida que o vírus se espalhou pelo mundo, seu uso se tornou popular como medida de proteção contra a covid-19. Enquanto pessoas de diferentes países se adaptam a esse novo hábito, o Japão já usa a máscara como elemento de sua vida cotidiana há décadas - ou mesmo séculos. "Quando alguém está doente, por respeito, usa a máscara para evitar infectar os outros", disse à BBC Mitsutoshi Horii, professor de sociologia da Universidade Shumei, no Japão. "Mas não é a única razão pela qual os japoneses têm esse hábito. Não é apenas uma prática coletiva desinteressada, mas um ritual autoprotetor", acrescenta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Vários analistas apontam que o uso generalizado da máscara, observado na sociedade japonesa há décadas, é uma das razões por trás da baixa taxa de infecções e mortes por covid-19 (até 1 de dezembro, Japão registrava cerca de 149,6 mil casos e um total de 2.082 mortes). O Japão tem a segunda taxa de mortalidade mais baixa (1,6 a cada 100 mil habitantes) entre os sete países considerados as maiores economias do planeta (EUA, China, Alemanha, França, Reino Unido e Canadá). Nesse quesito, fica atrás apenas da China, cuja taxa é de 0,3 — o país registrou, até 1 de dezembro, 92,9 mil casos de covid e 4,7 mil mortes. Mas como esse hábito surgiu na cultura japonesa? 'Hálito sujo' Há registros que mostram que, durante o período Edo (1603-1868), as pessoas cobriam o rosto com um pedaço de papel ou com um ramo de sakaki, uma planta considerada sagrada em algumas regiões do país, para impedir que seu "hálito sujo" saísse. "Existem algumas referências a esse tipo de prática nos livros, elas não eram tão comuns como são agora", explica Horii. "Naquela época, embora houvesse um conceito de limpeza, não havia tanta consciência dos efeitos que vírus e micróbios têm em nossa saúde como hoje", disse o sociólogo. A verdade é que, segundo Horii, há um momento claro na história em que as máscaras são incorporadas aos hábitos dos japoneses, e esse momento é a pandemia da chamada gripe espanhola do início do século 20. No Japão, essa pandemia causou cerca de 23 milhões de infecções e 390.000 mortes, em um país que naquela época tinha 57 milhões de habitantes. "O governo japonês montou uma estratégia de vacinação, isolamento e uso de máscaras cirúrgicas ou máscaras faciais para impedir a pandemia, o que acabou ajudando a controlar a crise", diz Horii. "O fato é que as pessoas assumiram isso como parte de seus costumes, apontando que as máscaras também eram uma barreira contra a poluição." No entanto, o uso dessa proteção durante a pandemia de gripe espanhola era uma prática generalizada em todo o mundo. Mas então, por que apenas os japoneses (e algumas sociedades asiáticas em menor grau) continuaram usando máscaras como parte de sua cultura? Para o professor de história japonesa George Sand, da Universidade Georgetown, existem vários fatores que influenciam a adoção pelo país dessa peça de proteção como parte de sua vida cotidiana. "Há uma crença falsa de que os japoneses adotaram essa medida porque seus governos são autoritários e há uma obediência cega aos regulamentos do governo, mas não é verdade", diz Sand. "Eles fizeram isso porque confiavam na ciência. O uso de máscaras era uma recomendação científica, vista pelos japoneses da época, em um país em processo de industrialização, como adaptação ao mundo moderno, como avanço tecnológico", acrescenta. Epidemia de Sars Após a pandemia, apontam Horii e Sand, o que aconteceu foi um fenômeno de "fazer o que os outros começaram a fazer" e que ajudou a popularizar a máscara. "No novo milênio, as máscaras no Japão se tornaram onipresentes, não tanto por causa de diretrizes estatais ou aspirações cosmopolitas, mas por causa do que é conhecido na psicologia como uma 'estratégia de enfrentamento' e uma escolha estética", diz Sand. A estratégia de enfrentamento, de acordo com a teoria, abrange os recursos externos e internos que uma pessoa usa para se adaptar a um ambiente estressante. Um dos maiores testes do hábito público de cobrir a boca na cultura japonesa foi a epidemia da Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), que atingiu o sudeste da Ásia em 2003. "Enquanto o vírus afetou fortemente os habitantes de outros países na região, no Japão não houve vítimas", diz Horii. Na China, a Sars causou mais de 5.000 infecções e quase 350 mortes. No Japão, houve apenas duas infecções e nenhum caso fatal. "E isso não apenas provou que os cientistas estavam certos quanto à eficácia das máscaras faciais para evitar o contágio, mas também reforçou seu uso", observa o acadêmico. Horii acrescenta que a emergência que o país sofreu em 2011, após o tsunami que destruiu a usina nuclear de Fukushima, também ajudou a disseminar ainda mais a necessidade da proteção pessoal. Com o surgimento do novo coronavírus, o Japão estabeleceu uma estratégia de combate diferente: não realizou confinamentos prolongados. "É uma questão cultural. Eles adotaram o uso de máscaras por vários motivos: para proteger os outros ou a si mesmos, esconder sua falta de maquiagem, preservar sua privacidade ou simplesmente porque pensavam que as máscaras pareciam boas, mas nunca por imposição do governo", conclui Sand. "Diante de uma pandemia da gravidade da que estamos vivendo, pode fazer a diferença", acrescenta.
2020-07-17
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53452695
cultura
120 anos de Anísio Teixeira: as ideias do criador da escola pública no Brasil
O debate a respeito da universalização de uma escola pública, laica, gratuita e obrigatória teve um de seus grandes momentos há mais de 80 anos no Brasil. Na década de 1930, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova vislumbrava um audacioso projeto de renovação educacional no país. Consolidando a visão de 26 educadores, de distintas posições ideológicas, o documento "A reconstrução educacional no Brasil: ao povo e ao governo" tratava de assuntos ainda atuais e amplamente discutidos na cena da educação brasileira: da autonomia moral do estudante à equiparação de mestres e professores em remuneração e trabalho. Um de seus mais notórios signatários, Anísio Teixeira, faria 120 anos neste mes de julho. Como personagem central na história da educação no país na primeira metade do século 20, os pensamentos do jurista e escritor sobreviveram às transformações sociais e à passagem do tempo. No entanto, embora empreste seu nome ao Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), órgão ligado ao Ministério da Educação que aplica exames como o Enem e realiza levantamentos estatísticos sobre o ensino, o intelectual ainda é pouco conhecido e comentado fora do âmbito educacional, a despeito da perenidade de suas ideias. Em uma época em que a educação era formulada e concebida para poucos, uma de suas maiores contribuições está no entendimento da necessidade de se democratizar o acesso ao ensino. Para Andrea Harada, professora e mestre em Educação pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), o educador via nesse processo um instrumento de "superação das contradições sociais que marcavam o Brasil no período". "A democratização poderia, pela ampliação da formação escolar, indicar um futuro marcado pelo desenvolvimento do Brasil e a consolidação do país como nação. Porém, um limite não fora considerado: as determinações políticas e econômicas", explica ela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Anísio Teixeira criou a Universidade do Distrito Federal (1935), quando o Rio de Janeiro ainda era capital do país; fundou o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, ou "Escola Parque", em 1950, em Salvador, durante sua passagem pela Secretaria de Educação da Bahia, e foi um dos mentores da UnB (Universidade de Brasília), da qual era reitor no ano de 1964, quando ocorreu o golpe militar no Brasil. "A construção da ideia, no Brasil, de uma escola pública, gratuita, laica e de qualidade passa, necessariamente, pelas contribuições dele. Outro aspecto importante a considerar é a formação docente e o reconhecimento do trabalho de professores, a necessidade de conhecimento científico para o desenvolvimento da educação, com ênfase para as séries iniciais, restringindo os espaços para amadorismo e enfatizando as particularidades de nossa cultura e história como meio de superação da mentalidade colonial que se reproduzia também nas escolas", diz Harada. Na visão de Ivan Russeff, doutor em educação e professor de Biblioteconomia da FESPSP (Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo), essas duas colocações de Anísio, em resposta a grupos que viam suas ideias "como inconvenientes e suspeitas", atestam a atualidade do pensamento do educador em um contexto que talvez tenha avançado pouco. "O foco é o ensino básico e o seu caráter excludente que continua atual e se constituindo em verdadeira barreira, com altos índices de repetência e abandono, principalmente no ensino médio. Para Anísio, essa elitização do ensino básico mantinha as classes populares em estado de ignorância, impedindo-as de ingressarem no ensino superior, grande instrumento, para ele, de civilizar e humanizar o povo brasileiro", explica o professor. Ainda que os índices levantados pelo educador não sejam mais tão catastróficos, o analfabetismo, principalmente o funcional, ainda é uma realidade da população brasileira. Para Russeff, o problema é fruto da desqualificação progressiva do ensino básico e do desprestígio em que se encontra, na nossa sociedade, a cultura letrada. "Esse cenário trágico da educação nacional é reiterado (...) na crítica ao poder público e a ausência de uma política de inclusão das massas." Diz Anísio: "Contrista-me verificar a falta de consciência pública para situação tão fundamente grave na formação nacional e o desembaraço com que os poderes públicos menosprezam a instituição básica de educação do povo, que é a escola primária". Como lembra Russeff, no tempo desse texto, Anísio já estava de volta de seu autoexílio no interior da Bahia, onde ficou de 1935 a 1945 após sua demissão da chefia do Departamento de Educação do Distrito Federal. Já havia sido também consultor geral da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), em 1946, diretor da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), em 1951, e do Inep, no ano seguinte. À época, vinha travando grandes debates públicos a favor de uma Lei de Diretrizes e Bases - a de 1961 - que consagrasse o princípio de uma escola pública gratuita, para todos e comum aos dois gêneros. "Meninos e meninas em classes mistas, o que já lhe havia provocado ásperas discussões com os setores conservadores, com destaque para a Igreja Católica. Uma lei que facultasse um ensino de qualidade, com professores das séries iniciais que tivessem formação superior em Educação", pontua Russeff. Liberal e opositor a todos os tipos de violência, nas palavras do historiador e político Luiz Vianna Filho, Anísio foi taxado de comunista por seu projeto progressista de ação no ensino, quando de sua demissão da diretoria do Distrito Federal no fim de 1935. "Sua iniciativa, de defender na implementação da sua reforma do ensino as classes mistas (masculina e feminina), rendeu-lhe a pecha de comunista e de atentar contra a moralidade pública. A Igreja Católica (...) taxou-o de antinacionalista, contra os princípios consagrados da família brasileira, contra a índole da educação nacional", afirma o professor. Na visão de Emerson Mathias, mestre em Educação e professor da Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) do CEU Paraisópolis, o intelectual também pode ser visto, extraoficialmente, como um segundo patrono de nosso ensino, ao lado de Paulo Freire. "Ele foi um defensor de uma educação construtivista, que pensava os alunos como agentes transformadores da sociedade. Ou seja, uma educação libertária. Naquele contexto da década de 1930, praticamente todos esses articuladores se inseriram na cena política e instituíram, pode-se dizer, embriões do que temos hoje. Isso transformou uma educação que até então era religiosa, tradicional e sem nenhum olhar para as minorias, os excluídos e os invisíveis", diz Mathias. Arte-educador desde 2015, com o projeto autoral "Nzinga Contos Ritmados D'África" sendo trabalhado em escolas públicas e particulares do estado de São Paulo, Mathias convive com a realidade da rede pública há seis anos. Antes de ser concursado, o educador fazia parte da categoria O, docentes que, apesar de realizarem as mesmas funções que outros colegas, não gozam dos mesmos direitos e nem possuem um vínculo empregatício duradouro. "Tenho quase sete anos no ensino público. E a verdade é que estamos engatinhando ainda hoje no que diz respeito às ideias de Anísio Teixeira, dessa forma ampla de olhar para o currículo como algo universal e inclusivo." Com problemas "acumulativos", como define Mathias, a escola em que trabalha vive uma tentativa de reinvenção, com a busca por novas formas didáticas e ferramentas estruturais durante a pandemia. Em março, por exemplo, já faltavam professores de matemática e de português, além de profissionais auxiliares essenciais para o dia a dia na instituição. "Esse caos se amplia quando temos de encarar a educação a distância. Com essas faltas, a comunidade e os alunos não se sentem acolhidos pela escola, não estabelecem uma identidade", afirma. Segundo estimativa do final de maio da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, metade dos alunos da rede estadual não conseguia acessar as aulas online no contexto da pandemia, evidenciando, por exemplo, as dificuldades de acesso a equipamentos e internet. Em uma escola "engessada, antiga e arcaica", a despeito de qualquer reforma, o professor Mathias diz encontrar esperança em cada retorno de aluno. "Os problemas são grandes, mas todos os dias estamos aqui, trabalhando com o que nós temos. Com garra, vontade e disposição, tentando criar novas metodologias e novas formas de trazer mais alunos. É desgastante e frustrante. Mas temos alguns momentos de esperança, com alunos retratando suas descobertas e tirando dúvidas. A escola é mais do que conteúdo: é vida e traz um sentido para as coisas." Ou como dito por Anísio em discurso feito na inauguração da Escola Parque há exatos 70 anos: "a escola tem de ganhar uma inevitável ênfase, pois se transforma na instituição primária e fundamental da sociedade em transformação".
2020-07-16
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53367233
cultura
Vídeo, Quem é o menino bailarino da Nigéria que viralizou nas redes sociaisDuration, 2,31
A história de Anthony começou a se espalhar quando seu vídeo dançando descalço na chuva foi visto por milhões de pessoas. Agora, ele conta à BBC como começou sua paixão pelo balé, como entrou em uma escola de dança e ouve sua mãe incentivar seu talento.
2020-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-53397600
cultura
'Ligue Djá': 5 revelações sobre Walter Mercado no novo documentário da Netflix
Seu bordão "Ligue Djá" imortalizou sua figura nas telas de TV do Brasil na década de 90. Agora, décadas depois de fazer sucesso por toda a América Latina e nos Estados Unidos, o astrólogo porto-riquenho Walter Mercado é tema de um novo documentário da Netflix. "Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado" narra a vida deste consultor esotérico de visual andrógino que alcançava diariamente uma audiência de "120 milhões de pessoas", diz o produtor Alex Fumero. "Crescemos assistindo Walter, como muitas crianças latinas que cresceram com as avós", diz. "Quando crescemos, imaginamos como esse homem se tornou tão famoso em um mundo tão machista e homofóbico", acrescenta. Tanto ele como os diretores do documentário, Cristina Constantini e Kareem Tabsch, nasceram nos Estados Unidos de famílias latino-americanas. Na produção, Walter Mercado é mostrado para além de suas extravagâncias e seu papel midiático. O documentário aborda controvérsias previsíveis, como sua identidade sexual enigmática, e outras pouco conhecidas, como a maneira como ele construiu e expandiu sua marca. "Entramos na gravação sabendo que ele era fabuloso, ótimo, mas não sabíamos com quem depararíamos. Admito que o subestimamos um pouco. Não percebemos o quão inteligente ele era ... ele era incrivelmente culto, instruído (...) um cérebro incrível", diz Constatini. As filmagens terminaram pouco antes de Mercado morrer aos 87 anos, em 2 de novembro de 2019. Confira cinco revelações do documentário. Atenção: a reportagem contém spoilers. Nascido em 1932 na cidade de Ponce, Porto Rico, Walter Mercado estudou para se tornar farmacêutico. Na infância, ele tinha mais afinidade com as atividades que sua mãe fazia, como descrito no documentário. "Meu irmão estava andando a cavalo, acompanhava meu pai ... fiquei com minha mãe , tocando piano, lendo livros. Tudo em mim era diferente." Os planos de abrir uma farmácia mudaram drasticamente quando ele encontrou vocações mais interessantes em dança e atuação. Depois de estudar dança na Universidade de Porto Rico, em 1950, ele começou uma carreira como ator de teatro e novela. "Estava vivendo 100 anos à frente do meu tempo", diz ele no documentário. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mercado se tornou um astrólogo televisivo por acidente. Durante uma gravação promocional de uma das novelas em que atuou e que foi transmitida pela Telemundo, emissora de TV hispânica com sede nos Estados Unidos, Mercado conta que estava vestido como "um príncipe hindu" e que usava maquiagem especial. Naquele momento, um executivo da rede de televisão o viu e se interessou pelo fato de Mercado "estar sempre falando sobre astrologia e lendo as palmas das mãos", recorda no filme seu assistente de décadas, Willie Acosta. O executivo pediu, então, que ele fizesse isso em frente às câmeras e "uma estrela nasceu". "Durante 15 minutos, estava fazendo um monólogo", contou Mercado sobre o episódio em que ele leu todos os signos do zodíaco. Segundo o depoimento de ambos, as linhas telefônicas do canal colapsaram e o executivo pediu a Mercado que retornasse no dia seguinte para repetir o segmento com o mesmo guarda-roupa. "Depois de três meses, ele já tinha o programa 'Walter, las estrellas y usted' (Walter, as estrelas e você, em tradução livre), um programa de uma hora por dia", explica Acosta. No início do filme, as câmeras entram na residência de Mercado em San Juan, Porto Rico, para descobrir que o astrólogo não morava sozinho. Willie Acosta, um homem alguns anos mais novo que ele, parece ajudá-lo e acompanhá-lo no café da manhã. "As pessoas pensam que sou amante dele ... mas é um relacionamento muito familiar. Nunca toquei Walter com um dedo, nunca na minha vida", diz Acosta no filme. "Eu protejo Walter de tudo, de qualquer coisa", acrescenta ele. O astrólogo, por sua vez, o descreve como uma pessoa que "pertence à sua família". "Eu amo minha família, mas Willie está sempre comigo, ele me ajuda com minhas roupas, meu guarda-roupa. Ele sabe tudo , todos os meus segredos." Listado como um ícone para a comunidade LGBT, Mercado aborda repetidamente a questão de sua imagem enigmática e sexualidade reservada. "Ele foi pioneiro, alguém que desafiou as noções de homem e mulher", diz Kareem Tabsch, um dos diretores do filme. "Embora ele tenha descartado rótulos, acho que foi uma decisão subversiva e, ao fazer isso, ele inspirou outros", diz ele. "No Brasil, ele não é conhecido como Walter Mercado, mas como 'Ligue Djá'", diz Bill Bakula , ex-empresário do astrólogo, no documentário . No auge de seu sucesso, com participações nos programas mais assistidos nos Estados Unidos, Mercado também entrou no mercado brasileiro com uma linha telefônica na qual vários "médiuns" davam conselhos baseados em astrologia. A linha telefônica também estava disponível na América Latina e nos Estados Unidos, e o documentário a aborda como uma prática questionável e controversa. Quando Mercado é questionado sobre as críticas de que essas linhas telefônicas "tiraram vantagem das pessoas pobres", ele responde: "Eu nunca digo 'você vai ganhar na loteria ou terá um marido em uma semana'... eu nunca... nunca tentei enganar as pessoas " "Elas sempre recebem palavras de inspiração, de motivação", argumenta. A premiada executiva de TV cubano-americana Maria Lopez Alvarez diz no documentário que pode "garantir" que Mercado "não ganhou milhões" com esse modelo de negócio, mas quem se beneficiou foi seu empresário, Bill Bakula, personagem controverso que aparece como uma espécie de figura antagônica no documentário. Uma das razões pelas quais os produtores pensaram em lançar um documentário sobre Walter Mercado foi porque eles não sabiam o que havia acontecido com ele. Apesar de não aparecer na televisão desde 2006, Mercado gerou simpatia e um culto pop entre jovens latinos nos Estados Unidos. O que o documentário revela é que o motivo de sua ausência na mídia foi parcialmente devido a uma batalha legal que ele travou por anos com seu empresário e que finalmente venceu. O processo surgiu como resultado de um contrato que o Mercado assinou, transferindo todos os direitos de seu trabalho passado e futuro para Bakula, de acordo com a produção. O astrólogo também renunciou aos direitos de seu próprio nome, que já era uma marca de sucesso. O documentário destaca a complexa disputa legal entre os dois. Tanto Mercado quanto seu ex-agente defendem suas posições. Mas, no mesmo período em que o Mercado recuperou os direitos de seu nome, sua saúde se deteriorou. Em novembro de 2019, ele faleceu em San Juan. Nos muitos momentos em que ele mostra sua graça durante o filme, há uma frase que permanece como uma espécie de anúncio místico de seu ocaso. "Walter costumava ser uma estrela, mas agora Walter é uma constelação", diz o ícone das gerações.
2020-07-13
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53383162
cultura
Da prisão a Hollywood, a incrível história de Danny Trejo, o ator que ganha a vida morrendo na tela
Danny Trejo foi baleado, esfaqueado, esmagado e torturado... inúmeras vezes. O Caçador de Zumbis, Con Air - A Rota da Fuga e O Ataque do Tubarão de 3 Cabeças são apenas três dos filmes em que ele acabou morto. E se você é fã da série Breaking Bad, ele é o cara cuja cabeça termina em cima de uma tartaruga. Este homem de 76 anos morreu na tela mais vezes do que qualquer outro ator. "Isso mostra que eu tenho trabalhado bastante", brinca Trejo, em entrevista à BBC. E mesmo que você não soubesse o nome dele antes de ler esta reportagem, não há dúvida de que você se lembrará de seu rosto nas centenas de filmes e programas de televisão em que ele apareceu. Nos filmes, Trejo geralmente exibe seus longos cabelos amarrados, a tatuagem que tem no peito e provavelmente carrega uma arma. "Quando estava começando a me tornar famoso, um amigo meu me disse: 'Todo mundo pode pensar que você é uma estrela de cinema, mas você não pode.' Eu não quero ser uma estrela de cinema. Quero ser um bom ator", diz ele. Ele brinca que quando começou a atuar, sempre recebeu o papel de "detento número um" devido à sua atitude e aparência física. Mas muitos não sabem que, antes de sua carreira cinematográfica ter início, Trejo passou um tempo na prisão. É isso que muitos de seus fãs vão descobrir agora em seu novo documentário Inmate #1: The Rise of Danny Trejo (" Inmate # 1: A Ascensão de Danny Trejo"). "É um milagre, porque não deveria viver além dos anos 1960", diz ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Trejo cresceu no Estado americano da Califórnia, onde começou a usar drogas pesadas na adolescência e entrou e saiu da prisão várias vezes na década de 1960, sob várias acusações, incluindo assalto à mão armada. Ele acabou conhecido dentro do sistema penitenciário ao se tornar campeão de boxe na famosa Cadeia Estadual de San Quentin, a mais antiga da Califórnia. No "Inmate #1", Trejo se lembra de como viu um companheiro de prisão sendo esfaqueado nas costas. "Ele estava andando pelo pátio superior, procurando a faca e tossindo sangue; e todos começaram a rir. Que lugar louco", diz ele. Trejo também passou um tempo em outras duas cadeias, Soledad e Folsom, e admite essa "viajar no tempo" para o documentário foi "doloroso". "Lembro-me de estar em um centro de detenção juvenil e pensando que minha vida havia terminado. Você fica internado ali. Tentei dizer a mim mesmo: 'Não, espere um minuto. Não acabou. Não acabou. Você está apenas começando'", diz ele. Ele decidiu mudar de vida, parar de se meter em problemas e deixar de usar drogas. Trejo acabou se tornando palestrante contra as drogas e decidiu usar sua experiência pessoal para ajudar os outros. Foi seu trabalho em um set de filmagem que o levou a atuar na década de 1980. Desde então, ele tenta "fazer o bem" porque mede o sucesso "acordando e se sentindo bem" em vez de contar prêmios e reconhecimentos. Ele sabe que sua fama influencia outros e espera que sua história inspire fãs mais jovens : "Não importa onde você começa, mas sim onde você termina". No documentário, Trejo é visto indo às prisões para contar aos presos sobre sua própria experiência. Ele afirma que sente um misto de "medo e ansiedade" toda vez que entra em uma penitenciária. "Eu saio e sonho que ainda estou na prisão. É um lembrete para você não sair do caminho certo", diz. Com a idade, o ator tem cada vez mais trabalho. Alguns anos atrás, enquanto estava no set do filme de Adam Sandler, The Ridiculous 6, alguém perguntou quando ele se aposentaria. "Estava fazendo o papel de cowboy. Não me vejo aposentado tão cedo. Estou me divertindo muito", conclui.
2020-07-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53381039
cultura
Racismo: como a ciência desmantelou a teoria de que existem diferentes raças humanas
Desde o seu surgimento no século 18, a antropologia física concentrou-se no estudo dos restos mortais de esqueletos humanos. Seu objetivo era observar os fenômenos evolutivos e a variabilidade humana. À medida que novos territórios e populações foram sendo descobertos, era necessário, de acordo com os naturalistas europeus, classificar os seres humanos de acordo com suas características. No reino animal, falar sobre raças geográficas consiste em definir grupos de indivíduos que se diferenciem por características adaptadas ao tipo de ambiente. No caso do ser humano, o conceito tinha uma conotação muito diferente. De fato, a diversidade humana não era percebida como uma seleção do ambiente (como acontece com a cor da pele e a forma dos olhos). Em vez disso, foi interpretada como se refletisse as características culturais das muitas populações do planeta. Por exemplo, os traços europeus eram considerados "superiores, equilibrados, bonitos" e eram o reflexo externo da "inteligência e educação" que caracterizavam todos os europeus. Eles se consideravam a raça "suprema". Já os traços africanos eram considerados "primitivos e pouco atraentes", símbolo de uma população "ignorante e incivilizada", segundo naturalistas e antropólogos do século 18. O contexto histórico favoreceu uma investigação dedicada à classificação dos tipos humanos. O colonialismo e a escravidão foram os motores que levaram os europeus a buscar apoio científico para justificar suas ações contra os povos indígenas. Uma das primeiras ferramentas usadas para discriminar as diferentes "raças humanas" foi a craniologia, o estudo das características métricas e morfológicas do crânio humano. Para isso, foram medidos os crânios dos principais grupos populacionais conhecidos. A cada um foi atribuído um padrão preciso de características (globular, crânio alongado etc.) que correspondiam a qualidades intelectuais mais ou menos desenvolvidas. Assim, uma hierarquia social e cultural foi estabelecida entre os grupos humanos. Foi por causa de Blumenbach (1752-1840) que a morfologia do crânio começou a ser usada sistematicamente como parâmetro para determinar a raça de origem de um indivíduo. Sua metodologia foi estendida a todas as coleções osteológicas europeias no século 18. Esse interesse pelas características cranianas foi cultivado sobretudo por Franz Joseph Gall (1758-1828), que defendia a hipótese de que a morfologia craniana específica correspondia a certas características intelectuais. Assim nasceu a frenologia, hoje considerada uma pseudociência. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Muitos antropólogos físicos e geneticistas se dissociaram da imagem que o totalitarismo e o colonialismo queriam dar sobre a variabilidade humana. Para isso, eles forneceram evidências e estudos científicos. A inconsistência do conceito de raça é perceptível, principalmente porque nunca houve uma classificação unívoca dos parâmetros utilizados. Ao longo da história, de duas a 63 raças humanas foram classificadas, um pesadelo para os estudantes de antropologia. Também é importante notar que os primeiros naturalistas e antropólogos que tentaram dividir a humanidade em raças usavam parâmetros sujeitos ao meio ambiente, resultado da evolução e seleção ambiental de características fisionômicas. Por exemplo, cor da pele, tamanho e morfologia do crânio. Em 1994, a Associação Antropológica Americana se distanciou desse conceito obsoleto e demonstrou sua falta de embasamento científico. É incorreto definir fenômenos tão dinâmicos quanto a imensa variabilidade humana e a história da evolução do homem com um conceito estático e estéril como o de "raça". No campo da antropologia forense, um ramo da antropologia física, quando restos são encontrados, é essencial estabelecer sexo, idade, altura e origem geográfica. Para se afastar da conotação social da palavra "raça", a ciência precisou modificar sua maneira de se referir às populações humanas e aceitar a existência de uma única espécie: o Homo sapiens. A terminologia mudou de raça para ancestralidade. Isso se refere a características herdadas dos pais e ancestrais de uma pessoa. Essa mudança também foi necessária porque não é verdade que um indivíduo pertença a uma área específica. A globalização mudou a distribuição de características fenotípicas (aquelas que vemos representadas em uma pessoa). A pesquisa não foi realizada apenas na parte morfológica do esqueleto humano. Testes genéticos e moleculares no campo da antropologia molecular também foram avaliados. Em um estudo de 1972 do professor Richard Lewontin, da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, foram analisadas proteínas no sangue de diferentes populações. Os resultados não mostraram diferenças significativas do ponto de vista molecular para separar raças humanas. Estudos subsequentes ajudaram a verificar que a sequência base (as unidades que compõem a informação genética) no DNA humano é 99,9% idêntica, o que esvaziou completamente o argumento de encontrar um parâmetro confiável para definir raças. Esses dados foram importantes para apoiar a igualdade dos seres humanos do ponto de vista científico, imparcial e rigoroso. Nos tempos modernos, ainda existe a derivada direta do conceito de raça: racismo. Sabemos as terríveis consequências que isso teve para os genocídios ferozes cometidos no século 20. Como o físico Albert Einstein dizia, "é mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito", uma afirmação ainda atual. Infelizmente, temos que admitir que ainda existem aqueles que pensam que existem "raças" humanas. Isso, apesar de a ciência provar que não há evidências suficientes ou bases rigorosas para defini-las no ser humano. Além disso, o mundo científico trabalha por unanimidade para defender a igualdade entre diferentes grupos humanos e retirar construções pseudocientíficas de uma realidade que é aceita biológica e legalmente. Sejam os restos mortais de um rei poderoso dos tempos medievais, um escravo egípcio, um migrante que morreu em nossas costas ou uma figura importante no mundo do entretenimento, a verdade universal que os ossos gritam é que somos humanos. Sob nossa pele, somos todos iguais. * Lorenza Coppola Bove é professora de Antropologia Física na Universidade Pontificia Comillas, na Espanha.
2020-07-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53325050
cultura
Qual é o futuro do sexo?
Por que fazemos sexo? Muitas respostas provavelmente vão mencionar a reprodução da espécie. O sexo é a principal forma de gerar um bebê. Mas e se deixarmos de lado a questão da procriação? Desde o nascimento do primeiro "bebê de proveta" do mundo em 1978, cerca de 8 milhões de pessoas nasceram de fertilização in vitro. E esse número pode aumentar muito no futuro, à medida que as ferramentas para identificar riscos genéticos em embriões se tornam mais sofisticadas. "Minha previsão mais consolidada é que, no futuro, as pessoas ainda farão sexo – mas não tanto com o objetivo de gerar bebês", diz Henry T. Greely, autor do livro The End of Sex and the Future of Human Reproduction (O Fim do Sexo e o Futuro da Reprodução Humana, em tradução livre). "Daqui a 20 a 40 anos, a maioria das pessoas com um bom plano de saúde no mundo todo escolherá engravidar em um laboratório." O livro de Greely analisa alguns desafios legais e éticos em que a ciência do diagnóstico genético pré-implantacional (PGD, na sigla em inglês) esbarra. "Como na maioria das coisas, haverá uma quantidade razoável de reações viscerais negativas inicialmente, mas com o passar do tempo, à medida que as crianças [nascidas via PGD] provarem não ter um rabo e duas cabeças", a população não apenas vai tolerar, como vai preferir se reproduzir não sexualmente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E nesse mundo – em que os bebês são criados em laboratórios; em que apenas uma minoria de mulheres escolhe engravidar por relação sexual; em que a ética sexual não tem nada a ver com a possibilidade de procriação –– qual o significado do sexo? "Para que serve o sexo”? Esta é uma pergunta que o pesquisador David Halperin faz em um artigo provocante de mesmo nome. O sexo, nós pensamos, deve sempre ter um propósito. E esse raciocínio não é necessariamente ruim. Afinal de contas, ser humano significa ser intelectualmente e emocionalmente curioso. Fazer sexo e teorizar sobre o que isso pode significar é muito natural, uma vez que somos animais que passam grande parte do tempo analisando e criticando tudo. Do ponto de vista biológico, há um motivo óbvio para o sexo entre seres humanos. Fazemos sexo porque isso satisfaz nossos impulsos biológicos, incluindo os impulsos necessários para procriar e se relacionar. Na verdade, essas são as duas razões que a tradição ocidental nos ensina, ambas organizadas em torno de um propósito ou objetivo final. Como escrevi em um artigo anterior, foram os estoicos que, na tentativa de coibir a autoindulgência, tentaram dar um significado ao sexo: ceder ao prazer sexual é legítimo desde que fosse com o objetivo de gerar bebês. Esse princípio ético foi levado para a tradição cristã, notoriamente por meio de Santo Agostinho, e continua a exercer enorme influência no Ocidente. E parte da premissa de que o sexo é ético quando praticado primeiramente para a procriação. (Para esclarecer, embora seja apresentada como uma ética cristã, sua origem está em outros lugares. Na verdade, o livro bíblico Cântico dos Cânticos de Salomão celebra o sexo apaixonado, erótico e selvagem em seus próprios termos, entre dois amantes – e não entre marido e mulher, como mais tarde os cristãos vieram a interpretar erroneamente o poema.) E, segundo Halperin, a outra razão importante para o sexo provém de Aristóteles. Na obra Primeiros Analíticos do século 4 a.C., o filósofo grego apresenta o seguinte silogismo: "Ser amado, então, é preferível à relação sexual, de acordo com a natureza do desejo erótico. O desejo erótico, então, é mais um desejo de amor do que de relações sexuais. Se é sobretudo por isso, esse também é o seu fim. Ou a relação sexual, então, não é absolutamente um fim ou é para o bem de ser amado." Para Aristóteles, como explica Halperin, "o amor é o propósito do desejo erótico". "Não é o amor que visa o sexo como objetivo, é o sexo que tem como objetivo o amor", completa. A verdadeira razão pela qual fazemos sexo, de acordo com Aristóteles, não é porque queremos fazer sexo, mas porque queremos amar e ser amados. O sexo é sobre algo superior, algo mais nobre. Como muitas pessoas, Aristóteles supõe que amor e sexo andam de mãos dadas – mas ele nunca procura demonstrar a solidez dessa suposição. O que ele demonstra, no entanto, pelo menos na interpretação de Halperin, é que "o sexo não é o objetivo final do desejo erótico". E se esse for o caso, Halperin acredita que a pergunta mais interessante a se fazer não é sobre a relação entre amor e sexo, mas a surpreendente relação entre sexo e desejo erótico. Se Aristóteles está correto, o sexo não tem propósito erótico – seu verdadeiro objetivo está em outro lugar. Em resumo, não fazemos sexo por causa do sexo propriamente dito. Por que fazemos sexo então? Para procriar, com certeza. Para se conectar com o outro, também. Mas essas são apenas duas de muitas respostas possíveis. Como muitos fenômenos culturais, o sexo ultrapassa seu porquê. Pense na comida. Do ponto de vista da sobrevivência, faz sentido que a gente coma e que comamos juntos – afinal, era vantajoso para nossos ancestrais juntar seus recursos (mais para o grupo significa mais para mim). Mas quando olhamos para a cultura gastronômica contemporânea – hambúrgueres folheados a ouro, perfis de comida no Instagram, canais de culinária, happy hours com colegas de trabalho, jantares comunitários promovidos por igrejas – fica cada vez mais difícil definir o objetivo exato do nosso relacionamento com a comida. A diferença entre nós e muitos animais não racionais é que regularmente temos prazer em fazer coisas inúteis. E nós fazemos simplesmente porque gostamos, porque participar de tais atividades nos dá prazer – do tipo que nos distrai de qualquer pergunta sobre porquês. É possível, escreve Halperin, que "o ato sexual faça sentido apenas quando não faz sentido". Talvez seja hora de admitir que o prazer é a principal razão pela qual a maioria de nós – incluindo os mais religiosos – faz sexo. Para ser honesto, há geralmente um sentido em fazer sexo, caso contrário estaríamos fazendo outra coisa. Mas, nas últimas décadas, desafiamos a ideia de que o sexo deveria ser feito apenas para fins específicos. A pílula anticoncepcional foi revolucionária nesse aspecto, mas deixou uma parcela da sociedade assustada. "Todo mundo sabe o que é a pílula. É um objeto pequeno – mas seu potencial efeito sobre a sociedade é muito mais devastador do que a bomba nuclear", escreveu a autora Pearl Buck em artigo publicado na revista Seleções (Readers Digest) de 1968. Como, aliás, muitas ideias conservadoras, o argumento de Buck parece ser baseado na histeria de que a atividade sexual sem propósito significaria o fim da civilização. Para essas pessoas, a chamada revolução sexual é responsável pelas visões modernas liberais sobre sexo. Embora a revolução sexual seja frequentemente usada como um bicho-papão para encerrar, em vez de contribuir para debates importantes, pesquisadores observaram mudanças radicais na forma que o sexo era visto pelas pessoas a partir dos anos 1960. Em uma pesquisa de 2015, Jean M Twenge, professor de psicologia da Universidade Estadual de San Diego, nos EUA, analisou o comportamento de americanos em relação ao sexo entre as décadas de 1970 e 2010. "Entre as décadas de 1970 e 2010, os americanos se tornaram mais receptivos ao sexo não conjugal”, concluiu ele. Em sintonia com pesquisas anteriores que mostraram um declínio na orientação religiosa e um aumento nos traços individualistas, um número maior de americanos acredita que a sexualidade não precisa ser restringida por convenções sociais. As novas gerações também estão agindo com base nessa crença – elas têm um número significativamente maior de parceiros sexuais e fazem mais sexo casual do que os nascidos no início do século 20. Twenge ressalta que, dentro de uma população, os comportamentos ainda podem variar por diversos motivos (dependendo da idade, raça, sexo, crenças religiosas etc.), mas a pesquisa mostra que “ocorreram mudanças geracionais significativas na atitude e no comportamento sexual” ao longo do tempo. Nossa visão sobre sexo é, portanto, em grande parte produto da nossa localização em determinado espaço e tempo. Nossa ética sexual não é atemporal: ela evoluiu, e vai continuar evoluindo. Talvez muito mais rápido do que estamos preparados. O que é natural? Como todo fenômeno humano, a atividade sexual veio de algum lugar. Chegamos às nossas práticas, comportamentos e éticas sexuais por meio de uma longa e tortuosa jornada desde os animais que nos precederam – uma jornada que remonta ao início da vida no universo. Mas, mesmo se nos concentrarmos em nossa espécie, vamos encontrar muitas evidências de que alguns conceitos tradicionais sobre sexo são menos naturais do que pensávamos. Uma vez, ouvi um pastor evangélico americano condenar a homossexualidade, o que para a congregação dele parecia uma piada engraçada. "Eu não deveria ter que lembrar a vocês que dois homens não deveriam ficar juntos. Até os animais do curral sabem disso!” O que o pastor estava argumentando era que a homossexualidade não é natural – e que, por isso, os animais não a praticavam. O que ele não sabe, no entanto, é que o comportamento homossexual é bastante comum no reino animal. O macaco-japonês, a mosca-das-frutas, o besouro-castanho, o albatroz-de-laysan, o golfinho-nariz-de-garrafa – são apenas algumas das mais de 500 espécies que desenvolvem relações homossexuais. Certamente, os animais não se identificam como gays, tampouco se identificam como não gays. O que nos leva a um fato extremamente óbvio, mas raramente contemplado – que os seres humanos, pelo menos no último século, se definiram com base no tipo de sexo que praticam. A heterossexualidade começou a ter um significado; e esse significado foi construído, especificamente, em oposição à homossexualidade. Se você quer entender que significado é esse, comece se fazendo a mesma pergunta que Jonathan Ned Katz levanta no livro A Invenção da Heterossexualidade: "Que interesses foram atendidos pela divisão do mundo em heterossexuais e homossexuais?" Qualquer pessoa que foi provocada na infância, como eu, por parecer gay sabe que essa distinção não foi feita com a melhor das intenções. O interessante é pensar por quanto tempo essa divisão hétero/homo vai continuar se perpetuando. Uma pesquisa do instituto YouGov de 2019 mostrou que quase quatro em cada dez millennials não se identificam como "completamente heterossexuais". Isso possivelmente tem menos a ver com mudanças na orientação sexual do que com mudanças no significado dessa orientação. Resumindo, definir a identidade de alguém com base na atividade sexual é provavelmente menos importante hoje do que há três décadas. Em um mundo em que a atividade sexual entre pessoas do mesmo sexo é amplamente aceita como uma variação natural e saudável da sexualidade humana, não é mais tão importante formar uma identidade pública baseada em práticas sexuais. Talvez, quanto mais separarmos o sexo do seu propósito, menos gente vai pensar sobre o que o ato sexual pode significar e como pode contribuir para a identidade de um indivíduo. O propósito do sexo não é uma questão para a cultura gay, assim como é para a cultura heterossexual. Parte disso é situacional: sem a perspectiva da gravidez biológica e (até recentemente) do casamento, os gays são livres para fazer sexo com o único objetivo de fazer sexo. Não estou sugerindo que o sexo gay não tenha um propósito: ele pode ter muitos propósitos, incluindo, é claro, o amor. Mas a cultura gay, historicamente, se mostrou mais aberta à ideia de que nem sempre precisa haver um propósito no sexo. Essa postura, é claro, parece se opor aos valores morais e concepções culturais sobre sexo há tanto tempo em voga, o que talvez possa explicar a discriminação histórica contra os gays. Como muitas crianças, fui ensinado a julgar a ética sexual sob uma única perspectiva – se a relação sexual tinha acontecido dentro de um relacionamento sério e monogâmico (geralmente, no casamento). Mas, finalmente, comecei a questionar esse padrão – principalmente porque as mesmas pessoas que me ensinaram isso também me ensinaram que os seres humanos foram criados por Deus alguns milhares de anos atrás. Se o conhecimento de biologia deles era tão fraco, então por que dar atenção ao que eles tinham a dizer sobre sexo, que é um fenômeno biológico? Percebi que o que eles acreditavam ser ético não fazia sentido para os gays, que não são capazes de conceber filhos por meio de uma união sexual. Parecia hipócrita, na melhor das hipóteses, e cruel, na pior das hipóteses, advogar por um padrão sexual que impeça uma parcela considerável da população de alcançá-lo. A maioria dos atos sexuais heterossexuais não resulta no nascimento de um bebê, e, por alguma razão, o sexo sem procriação nunca é classificado como antinatural, da maneira como o sexo homossexual sem procriação costuma ser condenado. Felizmente, a resistência à homossexualidade está em declínio. Um estudo conduzido pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), nos EUA, analisou a mudança de atitude das pessoas em 141 países – e constatou que em 80 países (57%) houve um aumento na aceitação de pessoas LGBT entre os anos de 1981 e 2014. Mas nem tudo são flores: enquanto os pesquisadores descobriram que os países tradicionalmente mais abertos (Islândia, Holanda, Suécia, Dinamarca, Andorra e Noruega) se tornaram mais tolerantes ao longo do tempo, os países mais fechados (Azerbaijão, Bangladesh, Geórgia e Gana) se tornaram ainda menos tolerantes. Embora essas atitudes antigays não devam ser ignoradas, é importante lembrar que a maioria dos países estudados apresentou uma tolerância maior à homossexualidade. Há muitas razões para crer em uma ampla aceitação da homossexualidade, incluindo a cobertura positiva da imprensa sobre questões LGBT, o apoio público a organizações médicas e psicológicas e o fato de que a maioria das pessoas conhece alguém LGBT (é mais difícil acreditar que os gays querem destruir a civilização quando eles são seu professor de piano, o florista, o padre ou o bombeiro local). É claro que os gays nem sempre são exemplos perfeitos de ética sexual – me refiro aqui aos homens, grupo com o qual estou mais familiarizado. Na comunidade masculina gay, há um culto a homens com tipos específicos de corpo (musculosos e magros, por exemplo), o que passa a mensagem de que aqueles que não atendem a esse padrão estético (a maioria de nós) são menos merecedores ou dignos do que aqueles que atendem. A tecnologia, por meio de aplicativos como o Grindr (plataforma que promove encontros gays), tornou esse padrão excludente ainda mais evidente – nesses aplicativos, os homens são reduzidos a imagens de partes do seu corpo, e os que não são considerados objeto de desejo são rapidamente bloqueados. “Nada de gordos ou afeminados” é, para nossa vergonha, um bordão que pode ser ouvido com bastante frequência nesses aplicativos, o que significa que ainda temos que refletir muito quando se trata da nossa ética sexual. Mas, apesar dessas lacunas, é a cultura gay que, durante todo esse tempo, tem oferecido ao mundo novas maneiras de pensar sobre ética sexual – maneiras que não envolvem procriação, casamento, amor ou sequer relacionamentos sérios e monogâmicos. Basta considerar uma pesquisa de 2005 que mostrou que 40% dos casais gays apoiam relacionamentos abertos, em comparação com 5% dos casais heterossexuais. Se esse tipo de experiência sexual realmente se tornar a norma – como algumas pessoas sugerem –, serão os gays que terão aberto essa porta. Suponho que alguns heterossexuais podem se ofender com essas ideias, mas é difícil fazer de conta que a cultura heterossexual tem o papel de paladino da moral em questões sexuais. A cultura popular está repleta de casos de relacionamentos heterossexuais problemáticos. A ética sexual heterossexual “tradicional” – que, como os historiadores sustentam, foi criada no século 19 – foi testada e considerada a desejar. Ao longo dos anos, vários futuristas previram como será o futuro do sexo. Da pornografia a encontros virtuais (em que, a distância, as pessoas chegam ao orgasmo por meio da tecnologia háptica, que permite transmitir sensações táteis), o futuro do sexo será mais digital, mais sintético e menos orgânico. Mas, embora o futuro traga, sem dúvida, grandes mudanças tecnológicas, também devemos considerar que algumas das principais mudanças vão envolver novas concepções. Haverá, por exemplo, novos conceitos sobre reprodução. Desde 1978, mais de oito milhões de bebês nasceram por meio de fertilização in vitro. A previsão é que esse número aumente drasticamente à medida que essa tecnologia se torna mais acessível e onipresente. O controle da natalidade e os métodos contraceptivos também ajudaram a separar o sexo da procriação em nosso imaginário cultural. Se as previsões de Greely sobre o diagnóstico genético pré-implantacional (PGD) estiverem corretas, em algum momento nas próximas quatro décadas, haverá uma mudança radical em relação a como nascem os bebês. O PGD se tornará acessível graças ao desenvolvimento da genética e das pesquisas com células-tronco. "Um casal que quer ter filhos visitará uma clínica – ele deixará uma amostra de esperma; ela deixará uma amostra de pele. Uma ou duas semanas depois, os futuros pais receberão informações sobre 100 embriões criados a partir de suas células, dizendo a eles o que os genomas dos embriões preveem para o futuro deles... Depois, selecionarão que embriões serão transferidos para o útero para uma possível gravidez e nascimento", resumiu Greely no jornal britânico The Guardian. As pessoas podem se incomodar com a ideia de "bebês projetados", mas quando lembramos que a maioria das pessoas que tem filhos escolheu uma a outra com base em certas características, sabendo muito bem que essas características provavelmente seriam transmitidas aos seus filhos, fica mais difícil fazer uma separação entre as tecnologias que Greely estuda e a reprodução padrão por sexo. Haverá novos conceitos sobre monogamia e relacionamento sério. Ter um parceiro sexual por toda a vida adulta parece uma perspectiva mais facilmente alcançada quando a expectativa de vida é menor. Mas a expectativa de vida da população tem aumentado. De 1960 a 2017, a média subiu 20 anos. E, até 2040, a previsão é que aumente mais quatro anos – número considerado conservador para alguns futuristas. Steven Austad, por exemplo, acredita que o primeiro homem a completar 150 anos nasceu antes de 2001. Diante desta perspectiva, quão realista é exigir que alguém fique restrito ao mesmo parceiro sexual por 130 anos? Mas nem precisaríamos olhar tão à frente. Mesmo agora, as taxas de divórcio e recasamento não param de crescer. De acordo com uma pesquisa do Pew Research Center, de 2013, quatro em cada dez casamentos americanos envolvem o recasamento de pelo menos um dos noivos. Talvez, com uma expectativa de vida maior, "até que a morte nos separe" simplesmente deixe de ser nosso objetivo. Haverá ainda novos conceitos sobre identidade sexual. Se o sexo deixa de significar algo além de sexo; se as crianças não são provocadas por terem uma orientação sexual “diferente”; se a reprodução acontece em um laboratório; pode ser que os futuros seres humanos se sintam à vontade para fazer sexo com homens e mulheres quando der vontade. Ou pode ser que se sintam confortáveis em cultivar seus próprios desejos sexuais. Será que o conceito de orientação e identidade sexual está vinculado a uma noção arcaica de reprodução? No futuro, palavras como "heterossexual" e "homossexual" serão ouvidas apenas na aula de história? Esses conceitos vão virar cada vez mais uma tendência – graças, em grande parte, à comunidade LGBT que, nas últimas décadas, tem convidado a cultura dominante a repensar sua ética sexual. Alguns anos atrás, em uma conferência, ouvi a filósofa Judith Butler, referência em estudos de gênero, dizer: "Talvez a coisa mais queer em relação ao sexo seja apenas desfrutá-lo". Eu não concordei na época, mas agora consigo entender. Talvez o sexo sirva sempre para algo – mas para alguém, e não para alguma coisa. E seu propósito seja servir às pessoas que fazem sexo por prazer. O significado do sexo não vai existir para além da empatia e o prazer que ele proporciona às pessoas – o prazer da sensação física, do vínculo social, da experimentação. No futuro, o significado do sexo será apenas sexo. Já assistiu aos nossos novos vídeos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!
2020-06-29
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-52971098
cultura
'Festival de Besteira que Assola o País', as crônicas que ironizavam a ditadura e que 'estão mais vivas que nunca'
O dia do jornalista carioca Sérgio Porto (1923-1968) começava cedo. Logo pela manhã, ele ia à Praia de Copacabana - bairro da Zona Sul do Rio onde nasceu, viveu e morreu -, levando as três filhas: Ângela, Solange e Gisela. Enquanto as meninas brincavam perto da água, o pai, sentado na areia, lia uma pilha de jornais e revistas. Com uma tesoura, ele recortava as notícias mais controversas do dia. Foi assim que, em junho de 1966, Porto tomou conhecimento da estreia do espetáculo Electra no Theatro Municipal de São Paulo. Agentes do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), órgão de repressão do regime militar, foram mandados ao local para prender o autor da peça, acusado de subversão. Ao chegarem lá, descobriram que o sujeito, um tal de Sófocles, tinha morrido em 406 a.C. A tentativa frustrada de prisão do subversivo dramaturgo grego é apenas uma das mais de 250 histórias que Stanislaw Ponte Preta, o 'alter-ego' de Sérgio Porto, publicou no extinto jornal Última Hora, de Samuel Wainer. Entre 1966 e 1968, essa e outras histórias foram reunidas em três volumes de uma antologia intitulada Festival de Besteira que Assola o País. Ou, simplesmente, Febeapá. "As crônicas do Stanislaw ironizavam a onda conservadora da ditadura militar. Naqueles anos de censura e repressão, ele registrava as situações absurdas e as declarações estapafúrdias das autoridades", afirma Cláudia Thomé, doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autora de O olhar crítico do cronismo do Febeapá contra a onda conservadora que levou ao AI-5 em 1968 (2018). O festival de despautérios incluía de capitães a prefeitos, de generais a delegados. Em São Paulo (SP), agentes do Dops invadiram a casa da escritora Jurema Finamour e, entre outros objetos considerados suspeitos, apreenderam um aparelho de liquidificador. Em Belo Horizonte (MG), policiais davam voz de prisão a torcedores que insistissem em soltar mais de três palavrões por jogo de futebol. Aliás, quase tudo era proibido na "Redentora" - apelido "carinhoso" dado por Stanislaw Ponte Preta ao golpe militar de 1964: de serenata, em Ouro Preto (MG), a vodca, em Brasília (DF), de namoro no jardim da praça, em Mariana (MG), a máscara em baile de carnaval, em São Luís (MA). No caso da vodca, a bebida destilada de origem russa foi proibida por um nobre "depufede" - neologismo criado pelo autor para designar "deputado federal" - para "combater o comunismo". "O que será que o Stanislaw diria hoje da descoberta de que nossos livros didáticos 'têm muita coisa escrita' (em referência a frase dita pelo presidente Jair Bolsonaro em janeiro), da defesa da abstinência sexual (campanha promovida pela ministra Damares Alves) como política pública ou, então, da afirmação de que o 'índio está evoluindo e, cada vez mais, é um ser humano igual a nós' (frase também dita por Bolsonaro)?", indaga a professora Cláudia Thomé, da UFJF. "Imagine isso tudo aos olhos do Stanislaw Ponte Preta. Penso que nossas prateleiras seriam pequenas para tantos volumes novos do Febeapá". Stanislaw não livrava a cara de ninguém. Nem mesmo de seus colegas jornalistas. Volta e meia, citava uma ou outra manchete, como "Todo fumante morre de câncer a não ser que outra doença o mate primeiro", do Correio do Ceará, de Fortaleza (CE), ou "É necessária muita cautela para revidarmos uma autocrítica", do Jornal da Cidade, de Gravatá (PE). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Antes de ganhar a vida como escritor, radialista e teatrólogo, entre outras profissões, Sérgio Marcos Rangel Porto trabalhou 23 anos no Banco do Brasil. Lá, conheceu e tornou-se amigo de outro Sérgio, o Jaguaribe - nome de batismo do cartunista Jaguar. "Sérgio não trabalhava menos que 15 horas por dia. A qualquer hora do dia ou da noite, quando ia visitá-lo em casa, lá estava ele batucando as teclas de sua Remington semiportátil. Numa dessas visitas, ao buscar os originais de um livro, soltou uma de suas muitas pérolas: 'Só levanto o olho da máquina para botar colírio'", diverte-se. Porto ainda batia ponto como bancário quando, em 1947, aos 24 anos, começou a trabalhar como jornalista no Folha do Povo, de Aparício Torelly (1895-1971), o irreverente Barão de Itararé. Não parou mais. Ao longo da carreira, deu expediente em uma infinidade de jornais (Diário Carioca, Tribuna da Imprensa e Última Hora) e revistas (Manchete, Senhor e O Cruzeiro). Por dois anos, chegou a produzir duas crônicas diárias: uma para o Tribuna da Imprensa e outra para o Última Hora. "À tarde, papai se recolhia em seu 'escritório', ou seja, a parte da sala dividida por uma estante de madeira. Ali, ficava até tarde na máquina de escrever, produzindo sua crônica diária para jornal. Aos de casa, era exigido fazer silêncio. Tinha o hábito de ouvir música e, enquanto trabalhava, tinha preferência por jazz. À noite, saía para entregar os textos no jornal, na rádio ou na TV, e íamos com ele, já de pijama no carro", relembra a historiadora Ângela Porto, uma das três filhas de Sérgio com Dirce Pimentel de Araújo, com quem ele se casou em 1952. Como escritor, Sérgio Porto lançou dez livros: sete como Stanislaw e três como Sérgio. "Não considero o Stanislaw Ponte Preta um pseudônimo do Sérgio Porto e, sim, um heterônimo", explica Raquel Solange Pinto, doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e autora de Espaços da crônica: espetáculo e bastidores do Febeapá (2003). "A personagem é construída com todo um histórico: tinha família, amigos e até data de nascimento: 22 de novembro de 1955". A "família" a que Raquel se refere era formada, entre outros membros, pela Tia Zulmira, uma senhora muito culta e inteligente; o Primo Altamirando, um típico mau-caráter, corrupto e autoritário; e Rosamundo das Mercês, um sujeito distraído, mas tão distraído que nasceu de dez meses. No livro Dupla Exposição: Stanislaw Sérgio Ponte Porto Preta (1998), o jornalista Renato Sérgio explica que a criação foi "coletiva". Participaram dela, além do próprio Porto, o ilustrador do jornal Diário Carioca, Tomás Santa Rosa, e o crítico musical Lúcio Rangel. Cada um deles sugeriu um nome tomando como referência o personagem-título de Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald de Andrade (1890-1954). Ao contrário do dramaturgo grego, Sérgio Porto nunca teve agentes do Dops batendo em sua porta. "Ele não chegou a sofrer censura e perseguição simplesmente porque morreu antes, em 30 de setembro de 1968", explica o jornalista Luís Pimentel, organizador de A Revista do Lalau (2008). "Foi a partir de 13 de dezembro de 1968, quando o AI-5 foi decretado, que as coisas pioraram". Censura ou perseguição, Sérgio Porto pode até não ter sofrido. Mas, tentativa de envenenamento, sim. Em julho de 1968, ele estava apresentando o Show do Crioulo Doido no Teatro Ginástico, no Rio, quando, no camarim, sentiu um gosto amargo no café. Na mesma hora, vieram à lembrança as ameaças que estava recebendo em represália ao espetáculo. "O show não tem nada demais, a não ser suas irreverências. E ninguém puxa irreverência e atira. É arma de humorista, não machuca tanto quanto cassetete na cabeça da Marília Pera ou pontapés na barriga de moça grávida, como fizeram lá em São Paulo", declarou em entrevista à revista Manchete, de 10 de agosto de 1968, referindo-se à invasão do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, em 18 de julho de 1968, quando integrantes de um grupo paramilitar chamado Comando de Caça aos Comunistas (CCC) agrediram o elenco da peça Roda Viva. Já em casa, Porto tomou um comprimido para dormir, mas, em vez de cair no sono, passou 30 horas acordado. Foi levado para um hospital. "Sérgio concedeu várias entrevistas, associando esse possível atentado a outros cometidos contra espetáculos teatrais no Rio e em São Paulo", relata a historiadora Dislane Zerbinatti Moraes, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de O trem tá atrasado ou já passou: A sátira e as formas do cômico em Stanislaw Ponte Preta (2003). "Esse atentado nunca foi devidamente investigado ou comprovado, mas podemos deduzir que houve, sim, uma reação dos militares à obra do Stanislaw como um todo". Sérgio Porto morreu em 1968, aos 45 anos, vítima de um terceiro infarto. Em 2005, o jornalista Clóvis Rossi (1943-2019) declarou, em uma de suas colunas, que "se vivo fosse, Stanislaw teria hoje material para uns 500 festivais por dia, tal o nível de besteiras que caracteriza a política brasileira". "O Febeapá continua mais vivo que nunca", endossa o historiador Hélio Dias da Costa, autor de Stanislaw Ponte Preta e a desconstrução da imagem da ditadura: uma análise da representação satírica do Febeapá (2008). "Stanislaw continua vivo nos espetáculos de 'stand up comedy', nos canais interativos de humor e até nos colunistas de jornal, rádio e TV que atuam na desconstrução de mitos. Era um mestre na arte de aliar informação e humor, e oferecer denúncia sob a forma de gracejo", diz. Quinze anos depois da declaração de Rossi, o ator e humorista Gregório Duvivier, apontado pelas filhas de Sérgio Porto como 'herdeiro literário' do pai, por fazer "uma crítica feroz da política e dos costumes", assina embaixo. "Sérgio Porto é um gigante. Foi com ele que entendi que humor político é redundância. Millôr Fernandes, que tive a sorte de conhecer, falava dele como de um irmão. Os dois, ao lado do Nelson Rodrigues, formam a santíssima trindade do humor brasileiro. Que sorte a nossa!".
2020-06-28
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53115143
cultura
Quem foi Felipa de Sousa, processada por lesbianismo pela Inquisição e hoje ícone do movimento LGBT
Aconteceu em 26 de janeiro de 1592 em Salvador aquele que é, por muitos, considerado o mais pungente caso de homofobia da história do Brasil: condenada pela Inquisição por ter se relacionado com seis mulheres, a portuguesa Felipa de Sousa foi açoitada publicamente, teve seus bens confiscados, foi obrigada a comparecer a auto de fé descalça e com vela acesa na mão, incumbiu-se de penitências espirituais e ainda precisou pagar as custas processuais. Por fim, acabou sentenciada com o "degredo para sempre para fora da capitania da Baía de Todos os Santos", conforme documento de 24 folhas manuscritas frente e verso — guardado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal —, em cuja capa se lê "Nº 1267: Processo de Felipa de Sousa cristã velha presa no cárcere do Sancto Officio". Primeiro padre visitador do Tribunal do Santo Ofício no Brasil, o português Heitor Furtado de Mendonça atuou no Nordeste brasileiro por quatro anos, de 1591 a 1595, conta o pesquisador Paulo Rezzutti. De acordo com os registros, Mendonça recebeu denúncias de 29 mulheres pelo mesmo "crime": os relacionamentos lésbicos. Sete acabaram julgadas pela Inquisição e punidas. Nenhuma de forma tão contundente quando Felipa de Sousa. "O caso da Felipa de Sousa é icônico porque ele é o primeiro registro de relacionamentos lésbicos ocorridos no Brasil, já que acabou documentado por meio do Tribunal do Santo Ofício. É simbólico", diz Rezzutti à BBC News Brasil. Em seu livro Mulheres do Brasil: A História Não Contada, há um capítulo dedicado a esse episódio e outras ocorrências correlatas. "Na maior parte dos casos, tudo não passava de experimentações sexuais em que as mulheres jovens acabavam por extravasar a sua energia sexual antes do casamento, sem perigo de romper com a sua virgindade, com amigas e mulheres escravizadas. Mas algumas mulheres casadas, ou não, preferiam efetivamente o contato com outras iguais", escreve. Foi numa dessas que o padre inquisidor soube da vida sexual de Felipa. Mulher de um homem influente da capitania, Paula de Siqueira andava comentando sobre relações entre duas mulheres para suas amigas e isso teria despertado o interesse do visitador. Ela confessou: estava tendo um caso com Felipa de Sousa. "Felipa mandou para Paula diversas cartas de teor amoroso, trocaram beijos e afagos lascivos por um ano, até que um dia finalmente houve a consumação do ato sexual entre elas", diz Rezzutti, em seu livro. Conforme o processo da Inquisição, Felipa tinha 35 anos, era casada com um pedreiro e ganhava a vida como costureira. "Paula não foi a primeira amante que arrumara", conta Rezzutti. "Na verdade, Felipa não perdia uma oportunidade de seduzir outras mulheres, chegando a confessar ao inquisidor ter tido seis parceiras em oito anos. Heitor Furtado de Mendonça julgou-a culpada e condenou-a a receber açoites públicos." Assim, a costureira portuguesa foi levada até a igreja da Sé, em Salvador, para ouvir sua sentença. No tal auto de fé, ela vestia um camisolão comprido de linho cru áspero. Segurava uma vela nas mãos. "Seus pecados foram enumerados publicamente na igreja lotada", narra o pesquisador. "Terminado o ato, foi levada ao Pelourinho, onde foi presa e açoitada diante de todos." Depois de seu degredo da capitania, nunca mais se soube notícias dela. No livro Lesbianismo no Brasil, o sociólogo e antropólogo Luiz Mott, professor da Universidade Federal da Bahia e fundador da organização não-governamental Grupo Gay da Bahia, dá mais detalhes sobre a sorte de Felipa. Ele ressalta que, fosse na Europa daquela época, o destino da mesma teria sido a fogueira — mas na colônia, longe dos olhares do Vaticano, as penas podiam ser aliviadas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com suas pesquisas, Paula de Siqueira, a denunciante de Felipa de Sousa, afirmou ao inquisidor que vinha há dois anos recebendo "cartas de amor" dela, "com a qual trocara alguns abraços e beijos, chegando a ter 'ajuntamento carnal uma com outra, por diante, ajuntando seus vasos naturais, tendo deleitação'". Paula ainda revelou ao padre que Felipa se portava "sempre do modo como se ela fora homem, pondo-se em cima". E confessou ela ainda que sabia não ter sido a primeira das mulheres seduzidas pela costureira. Mott detalha ainda outro dos depoimentos acusatórios, o feito por Maria Lourenço, uma mulher casada de 40 anos. "Disse que, estando na roça, a dita Felipa de Sousa 'se fechou em um quarto e lhe começou a falar muitos requebros e amores e palavras lascivas, melhor ainda do que se fora um rufião com sua amante", narra. "E lhe deu muitos abraços e beijos, e enfim a lançou sobre sua cama (…), se deitou sobre ela de bruços com as fraldas ambas arregaçadas e assim com os seus vasos dianteiros ajuntados se estiveram ambas deleitando até que a dita Felipa, que de cima estava, gozou'." Diante do padre inquisidor, Felipa não titubeou. Assumiu seus relacionamentos. Ao ouvir do padre o nome de suas amantes, enfatizou que "todas essas comunicações lhe causavam grande amor e afeição carnal", conforme Mott transcreve dos documentos oficiais. O antropólogo pontua que, condenada, ela foi conduzida descalça pelas ruas de Salvador, açoitada "certamente com todos os moradores espiando pelas janelas e sacadas das moradias: que servisse de lição às outras nefandistas pecadoras". "Como penas espirituais", descreve, "foi obrigada a jejuar a pão e água 15 sextas-feiras e nove sábados em honra da pureza da Virgem Maria, e a rezar 33 vezes um salmo." Mott escreve ainda que, além "de vergonha e humilhação pública pelo degredo, Felipa de Sousa teve de pagar as custas do processo", em montante equivalente a três meses de trabalho de um operário braçal, conforme pesquisas do autor. Mott foi o primeiro pesquisador a resgatar a história de Felipa de Sousa, nos arquivos da Torre do Tombo, ainda nos anos 1980. "Descobri Felipa no meio de 60 mil processos da Inquisição, arquivados em Lisboa", conta ele, à BBC News Brasil. "O processo e a história é particularmente interessante para o resgate da história da comunidade LGBT mundial na medida que é muito precoce, muito antes de qualquer documentação sobre lésbicas na América e com tantos detalhes." Uma vez descoberta a história, Felipa de Sousa acabou se tornando um ícone do movimento LGBT — cujo Dia do Orgulho é celebrado em 28 de junho. E não apenas no Brasil, mas mundialmente. Desde 1994, seu nome é emprestado a um prêmio mundial, concedido pela organização OutRight Action International, a Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas, em reconhecimento à coragem daqueles que lutam pelos direitos dos homossexuais, bissexuais e transgêneros em todo o mundo. Luiz Mott foi agraciado com o prêmio em 1995. Na última edição realizada, em 2019, a premiada foi a ativista trans Rikki Nathanson, do Zimbábue. Em nota enviada à BBC News Brasil, a porta-voz da organização, Daina Ruduša, afirma que Felipa de Sousa foi escolhida para nomear o prêmio em virtude de sua coragem. "Ela era uma mulher que foi perseguida e sofreu brutalidades depois de declarar, orgulhosamente, sua intimidade com outra mulher", diz Ruduša. No Rio de Janeiro, uma organização pelos direitos lésbicos, focado principalmente nas mulheres negras, se chama Grupo de Mulheres Felipa de Sousa. A entidade existe desde 2001. "Recebeu este nome por conta de Felipa ter sido o primeiro caso de lesbofobia de que se tem notícias no Brasil", explica à BBC News Brasil a diretora da organização, Rosangela Castro. Para o pesquisador Rezzutti, o caso de Felipa é um lembrete de que "o preconceito é uma questão muito antiga na história do Brasil". "Felipa foi demonizada por suas práticas sexuais, pela Igreja Católica daquela época. Mas hoje muitas religiões ainda praticam essa demonização, tentando promover uma 'cura' para essas pessoas. Isso é uma bobagem. Isso é preconceito arraigado", comenta ele. Mott ressalta que "a história das lésbicas é muito menos documentada do que a dos sodomitas masculinos". "Por isso, a vida dela é uma pedra preciosa para o resgate da história clandestina dos amores femininos", pontua. "Felipa foi modelo de mulher corajosa", acrescenta ele. "Ela teve todo um histórico de afirmação de sua homossexualidade, namorando e conquistando outras mulheres, escrevendo bilhetes, etc. E fez isso na capital da colônia, então um pequeno povoado em que as fofocas, as intrigas e os fuxicos eram muito fortes. As pessoas tinham muito medo da desonra. E ser afamada de namorar outras mulheres era um problema seríssimo de convivência social." Mott reservou um verbete a Felipa de Sousa em seu Dicionário Biográfico dos Homossexuais da Bahia (Séculos XVI-XIX). Nele, define a costureira como "a mais ousada, persistente e castigada de todas as lésbicas das colônias da América, razão pela qual seu nome foi atribuído ao principal prêmio internacional de direitos humanos dos homossexuais".
2020-06-27
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53190229
cultura
Vídeo, K-pop: como os fãs de música sul-coreana estão influenciando a políticaDuration, 1,49
A influência da comunidade de fãs da música pop coreana, o “k-pop”, parece ter saído da internet. Eles não formam um grupo uniforme, mas se unem em torno dos ídolos da indústria musical da Coreia do Sul. Recentemente, eles apoiaram o movimento “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam), que ganhou força após protestos pelo fim da violência policial nos EUA, com a morte de George Floyd, em Minneapolis. 
 A estratégia dos “k-poppers” foi bombardear hashtags racistas, como a “White Lives Matter” (vidas brancas importam), com vídeos, memes e imagens de seus ídolos. Mas o quão influentes eles são? 
Dados de 2019 da Korea Foundation apontam mais de 99 milhões de fãs no mundo que participam de fã-clubes destinados à cultura sul-coreana. 
O valor da indústria da música da Coreia do Sul é estimado em torno de 5 bilhões de dólares, de acordo com dados de 2017 da Korea Creative Content Agency. A influência do grupo na política deu as caras no último sábado, no comício do presidente dos EUA, Donald Trump, em Tulsa, Oklahoma. A campanha do republicano previa 1 milhão de pessoas no evento, mas menos de 19 mil apareceram. O fiasco pode, em parte, ser creditado ao fãs de k-pop. Eles disseram que incentivaram a reserva de ingressos por pessoas que não tinham a intenção de comparecer.
2020-06-26
https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-53200786
cultura
Estupro coletivo de adolescente indígena por soldados choca Colômbia
"Sequestrada e abusada sexualmente por um grupo de soldados do Exército colombiano." É assim que Juan de Dios Queragama, líder dos índios embera descreve o que aconteceu com uma menor de 13 anos de sua comunidade. Segundo ele, o incidente aconteceu em Santa Cecília, um povoado no Departamento (Estado) de Risaralda, leste da Colômbia, no último domingo. O caso chocou o país, provocou forte reação do governo e fez com que o comandante do Exército Nacional viajasse à região onde o episódio ocorreu. Sete soldados se declararam culpados pelo estupro na quinta-feira e estão "atrás das grades", segundo o procurador-geral do país, Francisco Barbosa. "Não é exceção. Essa é a realidade de muitas meninas indígenas", disse Armando Valbuena, porta-voz da Organização Nacional Indígena da Colômbia, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. Valbuena destaca que os menores de comunidades como os embera, wayúu ou de afro-colombianos nas áreas rurais do país não sofrem apenas assédio de militares, mas também de grupos armados ilegais e "de paramilitares , que continuam a crescer". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Diferentes organizações indígenas expressaram repúdio ao que aconteceu e exigiram que os autores do estupro fossem "entregues e julgados" de acordo com sua legislação. Os embera são um povo nativo espalhado por diferentes partes da Colômbia. Frequentemente esses grupos são obrigados a se mudar devido à violência armada e à pobreza. De fato, não é incomum ver grupos deles nas ruas de Bogotá pedindo esmolas. Enquanto isso, o governo pediu que o Estado agisse de forma "implacável" caso a culpa dos acusados seja confirmada. Em uma declaração enviada à BBC News Mundo pelo Ministério da Igualdade das Mulheres, a vice-presidente da Colômbia, Martha Lucía Ramírez, afirmou que o abuso sexual de menores da comunidade embera chamí é "aberrante e inaceitável". "Solicitamos ao Ministério Público que acelere o processo de investigação para que a justiça seja feita. Este é um caso que merece condenação social; devemos agir de maneira rápida e consistente para defender os direitos de meninas, meninos, adolescentes e mulheres. É hora de aplicar prisão perpétua ", diz a autoridade. Por sua parte, na quinta-feira, o presidente do país, Iván Duque, telefonou a autoridades e moradores da região onde ocorreu o estupro para expressar sua solidariedade à família e à comunidade indígena. Foi o Gabinete de Controle Disciplinar Interno do Exército que iniciou a denúncia com base nas informações recebidas por um soldado. E na quinta-feira (25), o comandante do Exército Nacional, Eduardo Zapateiro, viajou a Risaralda e fez uma declaração pública com o prefeito da região e outros líderes sociais que se reuniram para avaliar o que aconteceu. "Para mim, esses sete soldados não são mais soldados", disse ele. Zapateiro reconheceu ter ficado "doído" pelo que aconteceu "como em todos os momentos de crise na instituição". "Conversei com todo o Exército sobre essa situação tão complexa, tão vergonhosa e tão repreensível que as tropas fizeram aos nossos guardiães da terra. Nosso povo indígena", acrescentou. O Instituto Colombiano de Bem-Estar Familiar anunciou que a vítima receberá apoio médico e psicológico. Além disso, o governo do país garantiu que a menor "não estará sozinha" em sua recuperação. Por meio de uma chamada pública que circula nas redes sociais e mensagens no telefone, solicita-se ajuda não apenas para ela, mas para as 15 famílias da comunidade que estão em "uma situação de falta de comida , fraldas, leite para crianças e panelas ". O episódio colocou novamente as Forças Armadas da Colômbia no centro das críticas. "Esses bandidos que mancharam seus uniformes e a dignidade das crianças na Colômbia tiveram que receber proteção extra em um centro prisional devido à gravidade dos eventos", disse o procurador geral do país, segundo o jornal colombiano El Clima. Por sua parte, o procurador-geral do país, Fernando Carrillo, expressou sua rejeição ao "crime hediondo". "A Colômbia sofre quando aqueles que precisam defender a vida e a dignidade de nossos filhos se tornam seus carrascos. Os violadores de meninas indígenas desonram a força pública e ferem um país que exige justiça", afirmou. E o líder indígena Armando Valbuena garante que o caso da menina é outro exemplo da "estratégia de guerra" dos militares contra os povoados rurais.
2020-06-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53192983
cultura
Como o debate sobre reparações pela escravidão voltou a ganhar força nos EUA
Desde que em 1865, ao fim da Guerra Civil americana, um general da União prometeu "40 acres e uma mula" às famílias negras que haviam sido escravizadas nos Estados Unidos, a questão de reparações financeiras pela escravidão é debatida no país. A ordem emitida pelo general William Sherman em janeiro daquele ano previa que 400 mil acres de terras confiscadas dos confederados fossem redistribuídos entre os ex-escravos, recém libertos, em lotes de 40 acres por família. Eles também teriam direito a uma mula. A promessa nunca foi cumprida, e o breve período da Reconstrução, em que houve iniciativas para garantir direitos iguais à população negra, fracassou e foi seguido por décadas de segregação e terror racial, que agravaram ainda mais a desigualdade econômica entre americanos negros e brancos. Nesses mais de 150 anos desde a promessa dos "40 acres e uma mula", a ideia de que o governo deveria pagar compensação financeira pelos dois séculos e meio de escravidão e pelas décadas de discriminação racial que se seguiram sempre esteve presente nos Estados Unidos, em alguns períodos com maior ênfase do que em outros. Mas, recentemente, há um novo interesse nesse debate, em um momento em que as disparidades raciais no país ficaram ainda mais claras em meio à pandemia de covid-19 (a doença causada pelo coronavírus) e a crise econômica, que afetam desproporcionalmente a população negra. Desde o final de maio, protestos contra o racismo e a brutalidade policial contra a população negra - desencadeados depois que George Floyd, um homem negro, foi morto sob custódia de um policial branco - levaram centenas de milhares de pessoas às ruas em todo o país e se espalharam pelo mundo. Nesse contexto, o tema das reparações tem aparecido nas plataformas de vários candidatos, tanto negros quanto brancos, que disputam vagas no Senado, na Câmara e outros cargos públicos nas eleições deste ano. Até mesmo Joe Biden, que deve ser o candidato democrata à Presidência, disse neste mês que apoia a realização de estudos sobre o assunto. "É o maior nível de debate nacional sobre reparações que já vi na minha vida. E talvez desde a Era da Reconstrução. Dos últimos 150 anos", diz à BBC News Brasil o economista William Darity, professor da Duke University, na Carolina do Norte, e coautor do livro "From Here to Equality: Reparations for Black Americans in the Twenty-First Century" ("Daqui à Igualdade: Reparações para Americanos Negros no Século 21", em tradução livre). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Darity ressalta que a "mudança de clima" em torno do debate sobre reparações começou já no ano passado, quando o tema foi citado por vários dos pré-candidatos que buscavam a indicação do Partido Democrata para concorrer à Presidência - entre eles Julián Castro, Beto O'Rourke e as senadoras Kamala Harris e Elizabeth Warren. "O fato de que havia candidatos presidenciais mencionando o termo 'reparações' era surpreendente", afirma o economista. Segundo Darity, até então essa discussão costumava ficar, na maior parte, restrita à comunidade negra. "O que é diferente agora é que se tornou um debate que foi aberto ao grande público", observa. O congressista democrata John Conyers, morto em 2019, foi o político negro que serviu durante mais tempo no Congresso americano. De 1989 a 2017 (quando renunciou), ele apresentou todos os anos um projeto de lei que previa um estudo sobre o legado da escravidão e propostas de reparação. Mas a possibilidade de uma lei do tipo ser aprovada sempre foi considerada remota. Recentemente, porém, iniciativas semelhantes vêm sendo adotadas por outros políticos. No ano passado, a congressista Sheila Jackson Lee reapresentou o projeto de Conyers, com o apoio da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi. Uma subcomissão da Casa realizou audiência histórica para discutir a proposta. O senador Cory Booker apresentou projeto semelhante no Senado. A questão também vem sendo debatida por vários governos municipais e estaduais e por instituições privadas - algumas das quais estão estabelecendo fundos de reparação para compensar descendentes dos escravizados. A historiadora Ana Lúcia Araujo, professora da Howard University, em Washington, e autora do livro "Reparations for Slavery and the Slave Trade: A Transnational and Comparative History" (ainda sem tradução no Brasil), que trata da história dos pedidos de reparações financeiras e materiais, observa que esses pedidos nos Estados Unidos são muito antigos e vêm desde o século 18. "De tempos em tempos essa questão volta à tona", diz Araujo à BBC News Brasil. Ela lembra que houve um movimento muito grande de libertos que, no final do século 19, pediram pensões ao governo como forma de reparação. Uma nova onda de discussões sobre o tema ocorreu nos anos 1960. "Nos períodos em que a questão dos direitos civis começa a declinar, os pedidos de reparação financeira têm tendência a reaparecer", afirma a historiadora. Pesquisas de opinião indicam que há um aumento recente no apoio da população ao movimento Black Lives Matter ('Vidas Negras Importam') e que 76% dos americanos consideram discriminação racial um "grande problema" no país. Mas o tema das reparações financeiras pela escravidão ainda é polêmico. Segundo pesquisa Gallup do ano passado, 67% dos americanos são contra a ideia de que o governo deveria fazer pagamentos em dinheiro a americanos negros descendentes de escravos. Em 2002, essa taxa era de 81%. Mesmo entre a população negra, 25% são contra. Entre os argumentos dos que se opõem às reparações estão os de que serviriam para dividir os americanos e de que a escravidão está em um passado remoto. Segundo Darity, na própria comunidade negra há quem considere que o recebimento de compensação resultaria em um tipo de "vitimização psicológica", colocando-os na posição de vítimas. O economista também observa que ainda há nos Estados Unidos a crença de que as desigualdades enfrentadas pela população negra são consequência "de seu próprio comportamento disfuncional" e não de questões estruturais. "Um dos primeiros passos no processo de consolidar apoio para reparações é estabelecer claramente que o motivo pelo qual americanos negros estão em uma posição marginalizada não é seu comportamento, e sim uma história de injustiça racial que se mantém até o momento atual", ressalta. Segundo defensores das reparações financeiras, os impactos da escravidão e, posteriormente, de quase um século de leis de segregação racial, ainda são sentidos e estão visíveis nas históricas desigualdades de renda e de riqueza entre os americanos negros e brancos. Ao contrário da população branca, os escravos não podiam ser proprietários de terras (e, assim, deixar essa herança aos descendentes). Após a abolição, as leis de segregação racial impediram ou dificultaram que americanos negros votassem, estudassem, tivessem acesso a bons empregos, a financiamento ou adquirissem propriedade, entre outros obstáculos que os colocavam em desvantagem em relação à população branca. Em diversas cidades, leis proibiam famílias negras de comprar casas em determinados bairros, fazendo com que tivessem de optar por áreas e propriedades menos valorizadas. Pesquisadores ressaltam que, quando americanos negros conseguiam adquirir algum tipo de propriedade, não era incomum que fosse roubada ou destruída. Sem proteção da lei, não tinham a quem recorrer. "Durante e depois da Reconstrução, frequentemente, quando descendentes negros dos escravizados conseguiam conquistar algum grau de prosperidade, suas comunidades eram destruídas por massacres (perpetrados por) brancos", observa Darity. Pesquisadores destacam o efeito cumulativo dessas desigualdades ao longo de gerações. Darity ressalta que, segundo os dados mais recentes do governo, de 2016, apesar de os americanos negros representarem 13% da população, eles detêm apenas 2,6% da riqueza no país. O patrimônio líquido das famílias negras nos Estados Unidos representa menos de 15% do patrimônio líquido das famílias brancas. Enquanto 73% das famílias brancas têm casa própria, essa taxa é de apenas 43% entre as famílias negras. Não há consenso sobre qual seria a melhor forma de levar adiante as reparações ou sobre como determinar quem teria direito, quanto e de que forma pagar. Alguns apontam como exemplo as reparações pagas pela Alemanha às vítimas do Holocausto e pelos Estados Unidos aos nipo-americanos enviados ilegalmente a campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Certas propostas envolvem pagamentos diretos aos beneficiados, enquanto outras priorizam investimentos em programas que reduzam as disparidades em áreas como saúde, educação, emprego e habitação. Há os que propõem cumprir a promessa dos "40 acres e uma mula" feita em 1865, o que, segundo alguns cálculos, custaria hoje em torno de US$ 160 bilhões (cerca de R$ 856 bilhões). Outros calculam o valor do trabalho feito pelos escravizados, sem remuneração, em comparação ao que empregados assalariados recebiam, o que somaria trilhões de dólares em valores atuais. Para Darity, o objetivo das reparações deve ser o de acabar com a desigualdade de riqueza entre a população negra e branca. Ele calcula que seriam necessários no mínimo US$ 10 trilhões (cerca de R$ 53 trilhões), distribuídos pelo governo federal em forma de pagamentos diretos de US$ 250 mil (cerca de R$ 1,3 milhão) a cada americano negro que seja descendente de pessoas escravizadas nos Estados Unidos. A historiadora Ana Lúcia Araujo observa que, no Brasil, apesar de a questão das reparações financeiras ter sido mencionada já no século 19 por abolicionistas como Luiz Gama, os debates sobre o tema ganharam força mais tarde do que nos Estados Unidos, principalmente a partir dos anos 1990. Desde então, foram adotadas medidas como as cotas em universidades ou a demarcação de territórios quilombolas. Mas, entre as iniciativas pedindo compensação financeira a descendentes de escravos no Brasil, nenhuma avançou. Em 2014, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) anunciou a criação da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, com o objetivo de fazer uma investigação sobre o período da escravidão e discutir formas de reparação. Seu presidente, o advogado Humberto Adami, diz à BBC News Brasil que a comissão vem avançando no trabalho de levantar pistas e provas sobre a escravidão, mas reconhece as dificuldades de debater reparações financeiras pela escravidão no Brasil e de ter uma proposta do tipo aprovada no Congresso. "Toda vez que se começou a falar em dinheiro, os exemplos anteriores é que a conversa acabava", afirma.
2020-06-26
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53190231
cultura
Vídeo, A propaganda pública sobre pornô para proteger crianças na Nova ZelândiaDuration, 1,47
Um homem e uma mulher, no papel de atores pornô, vão até a casa de uma criança para alertar a família de que ela está assistindo a esse tipo de conteúdo. É assim o vídeo do governo da Nova Zelândia que procura alertar a população sobre a necessidade de conversar com os jovens sobre o tema. A campanha viralizou. Pela internet, é comum que crianças se deparem com conteúdos pornográficos. Isso pode acontecer inclusive por acidente, já que muitos sites são gratuitos e não exigem uma verificação de idade, ou mesmo por curiosidade. O responsáveis pela propaganda apontam que é comum que crianças mais novas vejam esses conteúdos por acidente, e que adolescentes procurem ativamente por eles. “É normal que jovens estejam curiosos sobre sexo. A melhor forma de dar apoio a eles é estar aberto para conversas honestas sobre o que eles podem estar vendo e falar sobre como a pornografia é diferente dos relacionamentos na vida real”, apontam os responsáveis pela campanha.
2020-06-24
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53171634
cultura
Como discutir com um racista e ganhar o debate
Estereótipos e mitos sobre raça são abundantes, mas isso não os torna verdadeiros. Muitas vezes, eles nem são expressos por racistas declarados. Para muitas pessoas bem-intencionadas, a experiência e a história cultural as levaram a visões que não são sustentadas pela genética humana. Por exemplo: a suposição de que os estudantes do Leste Asiático são inerentemente melhores em matemática, os negros são melhores dançarinos ou os judeus são melhores com as finanças. Muitos de nós conhecemos alguém que pensa nesse sentido. Adam Rutherford, geneticista e apresentador da BBC, diz que "o racismo está sendo expresso em público mais abertamente hoje do que a qualquer momento de que me lembro, e é nosso dever contestá-lo com fatos". Por isso, diz ele, precisamos de um conjunto de ferramentas científicas para separar fatos de mitos. Confira como desmistificar cinco mitos racistas com ciência e dados: O pigmento primário na pele humana é a melanina. Essa substância nos protege do sol. Ela absorve os raios ultravioletas do sol antes que eles possam destruir o folato, uma das principais vitaminas do corpo. Muitos genes estão envolvidos nas vias bioquímicas que resultam na produção de melanina. A variação natural dentro desses genes é a principal causa da diferença dos tons de pele que os seres humanos possuem. Então, a maior diferença genética dentro da raça humana é entre brancos e negros, certo? Errado. Em primeiro lugar, todos os seres humanos compartilham quase o mesmo DNA. Em segundo lugar, há mais diversidade genética no continente africano do que no resto do mundo. Duas pessoas de tribos diferentes na África Austral serão mais geneticamente diferentes uma da outra do que um cingalês, um maori e um russo. Podemos categorizar as pessoas como brancas, pretas ou mestiças, mas essas variações visuais não refletem com precisão as diferenças genéticas — ou melhor, as semelhanças — entre nós. Pensamos em certas áreas, terras ou povos como isolados — fisicamente ou culturalmente — e esses limites como intransponíveis. Mas isso não é o que a história nem a genética nos contam. De fato, nenhuma nação é estática. "As pessoas se moveram ao redor do mundo ao longo da história e fizeram sexo sempre e onde puderam", diz Rutherford. Às vezes, são grandes movimentos em tempos curtos. Em alguns momentos, as pessoas permanecem estáticas ao longo de algumas gerações — e isso pode parecer uma âncora geográfica e cultural. "No entanto, todo nazista tem ancestrais judeus", diz Rutherford, "todo supremacista branco tem ancestrais do Oriente Médio. Todo racista tem ancestrais africanos, indianos, asiáticos, assim como todas as pessoas". "Pureza racial é pura fantasia. Para os humanos, não há sangue puro. Apenas vira-latas enriquecidos pelo sangue de multidões", diz ele. Algumas pessoas se irritam com a chegada de migrantes e refugiados em seu país, um fenômeno que tem sido experimentado em muitos lugares do mundo nos últimos tempos. Apoiadores de movimentos de extrema-direita costumam expressar essa raiva com lemas anti-imigração do tipo: "Alemanha para os alemães", "França para os franceses", "Turquia para os turcos" e "Itália para italianos". "Volte para onde você veio" é uma frase ofensiva que ressoa em todo o mundo. Na verdade, países como Alemanha, França, Turquia e Itália tiveram imigração ao longo de sua história. De fato, quase todo lugar tem. As Ilhas Britânicas, por exemplo, tornaram-se o lar de migrantes desde que se separaram do continente há cerca de 7,5 mil anos. Antes de os franceses assumirem o poder em 1066, essa parte do mundo havia sido invadida por vikings, anglos, saxões, hunos e dezenas de outras tribos e clãs menores. E mesmo antes disso, a região foi controlada pelos romanos, que por sua vez vieram de todo o império intercontinental, que alcançou a África subsaariana e o Oriente Médio. Antes disso, porém, há cerca de 4,5 mil anos, a Grã-Bretanha era habitada principalmente por agricultores, que haviam migrado da Europa através de um terreno contínuo entre a Holanda e a Anglia Oriental. Com base em evidências de DNA, acreditamos que eles eram morenos, com cabelos escuros e olhos castanhos. E diante deles havia caçadores-coletores, com pele ainda mais escura. Então, quando partidos políticos ou mesmo racistas dizem: "França para os franceses" ou "Itália para os italianos" e falam sobre povos "indígenas"... o que eles realmente querem dizer? A genealogia e a ancestralidade nos fascinam — e os racistas em particular. Sites como o Stormfront são frequentados por membros nacionalistas brancos, supremacistas brancos e antissemitas que divulgam teorias de negação do Holocausto e são obcecados pela genética populacional. Eles usam testes tradicionais de genealogia, como os oferecidos pelo DNA Ancestry, para "provar" que são 100% brancos ou não judeus. No entanto, a lógica é falha. O DNA pode contar algumas coisas interessantes sobre a história da família — e é muito útil para identificar famílias próximas, como irmãos perdidos ou pais biológicos —, mas seus poderes são profundamente limitados pela biologia fundamental. Com o tempo, os descendentes começam a compartilhar o DNA de seus ancestrais atuais, e a quantidade que desaparece se torna enorme. Em outras palavras, você carrega DNA de apenas metade de seus ancestrais de onze gerações atrás. Portanto, é possível que você não esteja geneticamente relacionado com pessoas de quem descende desde o século 18. "Você é descendente de multidões, de todo o mundo, de pessoas que pensa que conhece e de outras de quem nada sabe", diz Rutherford. O último homem branco a competir em uma final de 100m nas Olimpíadas foi em 1980. Desde então, os atletas negros dominam a era moderna da corrida. Isso alimentou uma crença comum de que as pessoas de ascendência africana têm uma vantagem no esporte por causa de sua genética. "Talvez haja previsões probabilísticas que se possa fazer sobre etnicidade e sucesso esportivo com base na genética", diz Rutherford, "mas elas seriam fracas na melhor das hipóteses". De fato, a genética por trás do sucesso esportivo é perversamente complexa. Há uma infinidade de fatores na fisiologia da fisicalidade, incluindo o tamanho do seu coração, a eficiência com a qual absorvemos oxigênio e a recuperação muscular, diz Rutherford. E esses são fenômenos relativamente bem compreendidos, que têm uma base genética. Mas existem outras características físicas (como flexibilidade e coordenação) que são menos bem compreendidas. Além disso, há a dimensão psicológica: determinação, concentração e tomada de riscos, por exemplo. Sabemos que as pessoas que são boas em esportes com energia explosiva tendem a ter uma proporção maior de células musculares de "contração rápida", que processam energia mais rapidamente. A genética subjacente a isso envolve um gene chamado ACTN3. Estudos mostraram que atletas de elite em esportes de força e explosão têm maior probabilidade de ter cópias do tipo R do ACTN3. A pesquisa indica que o gene ocorre em uma proporção maior de afro-americanos (96%) em comparação com os americanos brancos (80%). Isso dá uma pequena vantagem para os afro-americanos em esportes de energia explosiva — mas não chega nem perto de explicar a diferença entre o número de velocistas afro-americanos e seus adversários brancos. Caso a explicação fosse essa, poderíamos esperar seis velocistas de elite negra para cada cinco corredores brancos. Adam diz que esta é uma análise simplista, mas ainda é um bom exemplo de como a genética não se alinha com os estereótipos raciais nos esportes. Esta reportagem foi adaptada do programa de rádio da BBC 'Como argumentar com um racista', apresentado por Adam Rutherford.
2020-06-20
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53031415
cultura
Com apenas três falantes, língua indígena tem estudo recuperado pelo Museu Nacional
Nas terras dos indígenas Yawalapiti, no Alto Xingu, fala-se kalapalo, kamaiurá e kuikuro. O próprio yawalapiti, a língua original da etnia, sobrevive hoje na voz de apenas três homens, todos já em torno dos 70 anos. O mais velho, Aritana, 76, é o cacique da tribo. Quem trabalha para revitalizar o idioma é seu filho, Tapí Yawalapiti, 43, mestrando em linguística na Universidade de Brasília (UnB). Ele agora tem ao alcance o mais completo estudo descritivo já publicado sobre a língua, feito há mais de 40 anos e recuperado pelo Museu Nacional, no Rio de Janeiro. É o primeiro extenso trabalho de resgate e publicação de um arquivo linguístico indígena da instituição após o incêndio de setembro de 2018, que destruiu quase todo o seu acervo, então o quinto maior do mundo em número de peças. Estima-se que o museu guardasse 20 milhões de itens, entre diversas áreas. Escritos entre 1976 e 1977, os cadernos de campo, agora digitalizados, trazem a caligrafia original da época, fotografada e colorida. São 2.762 entradas, com vocabulários e expressões yawalapiti, transcritos em um sistema fonético, que abrangem temas como corpo, indumentária, animais, ambientes da casa, festas e rituais. O léxico traduz expressões que o português desconhece, como haka, o cheiro de alimento que está sendo feito. O contato com o branco fez com que novas expressões surgissem no vocabulário da língua. Os óculos são a "defesa do olho". Ferramenta do linguista, o gravador tem o nome de "pegador de palavra". Outros nomes são intraduzíveis e estão na raiz da cosmogonia yawalapiti. Na tradição da etnia, o sol (Kami) e a lua (Küri) são dois irmãos gêmeos. Para os xinguanos, eles são os arquétipos e criadores da humanidade. Não há como chamá-los em outra língua sem perda de sentido. "Quando se rompe a transmissão da língua, você rompe também a dos conhecimentos", afirma a linguista Ana Suelly Arruda Câmara Cabral, orientadora de Tapí no mestrado da UnB. "A perda de uma língua é a perda desse vínculo com a história, com a identidade." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A história do povo Yawalapiti é feita de crises e sobrevivências. Atingida por epidemias na década de 1940, a etnia chegou a contar com 25 indivíduos em 1954. Com a chegada dos irmãos Villas-Bôas - Orlando, Cláudio e Leonardo, sertanistas que idealizaram o Parque Indígena do Xingu, criado em 1961 -, casamentos interétnicos foram estimulados como estratégia de preservação do grupo. Os falantes da língua original foram desaparecendo à medida que os idiomas vizinhos eram incorporados à vida da aldeia. Quando Tapí nasceu, em 1977, havia 20 falantes de yawalapiti. "Está na minha responsabilidade revitalizar a língua materna do meu povo. Se ela desaparecer, a gente perde parte da cultura. A língua é identidade do povo", diz o linguista, que ainda não conhecia os cadernos guardados no Museu Nacional, escritos no ano do seu nascimento. Ele anota e estuda diariamente registros da língua com o pai. Sua pesquisa aponta processos de mudança que o idioma adotou para sobreviver, pressionado pelo contato com outras línguas. O yawalapiti reestruturou as formas de negação, as orações subordinadas, a concordância de gênero, a extensão das palavras. Mas, para além dos estudos de gramática, é a prática cotidiana da língua que Tapí quer estimular na aldeia, hoje com cerca de 120 pessoas na área principal. Com a instrução de Tapí, um professor do ensino médio já ensina a adolescentes palavras simples em yawalapiti, como nomes de animais, peixes e árvores. "Eles já estão me cobrando uma gramática", conta o pesquisador, que tem o projeto de criar livros didáticos e material audiovisual no idioma. "Meu pai e eu queremos ver os meninos falarem a língua. Os jovens estão interessados. Eles só precisam da gramática", diz Tapí, que, além do yawalapiti, fala português, kalapalo, kamaiurá e kuikuro. O papel de liderança na tribo não é gratuito: ele foi escolhido pelo pai, Aritana, e pelo cacique Raoni Metuktire como o próximo líder dos povos do Xingu. Segundo o Atlas de Línguas em Perigo da Unesco, o Brasil é o país com mais línguas sob risco de extinção no mundo: são 178 idiomas ameaçados e 12 já desaparecidos. No país, 45 línguas estão em situação crítica, em risco iminente de serem extintas. Essa condição ocorre quando os poucos falantes do idioma já estão em idade avançada e interagem apenas parcialmente na língua com os demais membros da comunidade. É o caso do yawalapiti. "Se essas três pessoas falecerem, e não registrarmos, a língua vai acabar, vai desaparecer", diz Tapí. Estudos indicam que, desde a colonização, o Brasil possa ter perdido ao menos mil línguas indígenas. A salvaguarda dos cadernos da década 1970 ocorreu por uma coincidência: no momento do incêndio, os originais estavam fora do arquivo, em processo de higienização junto de outros itens. Os documentos haviam sido doados pela linguista Charlotte Emmerich, professora aposentada da UFRJ que orientou os estudos à época e coordenou o trabalho de recuperação. Antes da tragédia, os arquivos do Museu Nacional guardavam, catalogados, cerca de 11 mil documentos relativos a mais de 190 línguas indígenas do Brasil, algumas já extintas. Somados aos não indexados, estima-se que fossem mais de 16 mil itens entre cartas, vocabulários, cadernos e diários de campo, anotações, telegramas e outros papéis, além de arquivos sonoros com discursos, narração de mitos e cantos rituais. "Comparado ao que se perdeu, é uma parte mínima", diz Marília Facó, diretora do Centro de Documentação de Línguas Indígenas (Celin), vinculado ao museu e responsável pela guarda e catalogação desses materiais. O incêndio consumiu arquivos históricos extensos, como o do povo Parkatêjê, do Pará, cujo idioma, o Timbira Oriental, é hoje falado apenas entre os mais velhos. Com uma equipe fixa de três pessoas (além de Marília, uma bibliotecária e uma arquivista), o Celin trabalha para indexar o material recuperado e as doações que chegam ao arquivo, hoje em número de 208 peças catalogadas, além de 6 mil livros. Uma outra estratégia de resgate é o que se chama de recuperação digital por circuito de usuários, quando os pesquisadores guardam em seu próprios arquivos cópias e fotografias do material consultado. Foi assim que o museu resgatou, por exemplo, o vocabulário da extinta língua Puri, coletado em 1885 pelo engenheiro Alberto de Noronha Torrezão. No último levantamento, em setembro de 2019, já haviam sido recuperados 690 itens de documentação de 77 línguas. Além dos materiais que escaparam ao incêndio por estarem momentaneamente fora do arquivo, outros foram preservados por digitalização prévia. O Museu Nacional guardava os originais dos arquivos do etnólogo alemão Curt Nimuendajú, responsável pelo maior número de expedições nas aldeias do país na primeira metade do século 20. Comprados após a morte do estudioso em uma aldeia Ticuna, em 1945, os documentos foram perdidos no incêndio. Mas um trabalho de digitalização, feito em 2016 com recursos do extinto Ministério da Cultura, permitiu que os documentos estivessem hoje preservados. Agora a ideia, segundo Marília, é tornar esses arquivos acessíveis a todos. "Não adianta passar a vida com os arquivos e achar que só os especialistas vão procurá-los", diz a linguista. "Esses materiais só tem seu valor pleno se divulgados. Não podem ficar como fruto de um colecionismo que acha que vai salvar línguas mantendo um arquivo protegido." A criação de arquivos públicos de línguas indígenas ainda é minoritária no Brasil. Linguista e professor da Universidade Federal do Amapá (Unifap), Fernando Orphão de Carvalho consultou as cópias dos cadernos Yawalapiti em 2016, quando estudava o desenvolvimento histórico do idioma, um dos três da família Aruak, a maior da América do Sul em número de línguas e extensão geográfica. Ele diz que apenas nas últimas duas décadas o país vem adotando modelos de documentação pública nos quais os dados são compartilhados. "A tradição no Brasil é a seguinte: o pesquisador vai a campo, coleta dados sobre a língua, mas ele meio que 'senta' sobre aqueles dados. Aquelas informações ficam sendo dele, privadas", diz o professor, que hoje pesquisa o idioma do povo Ikpeng, do Alto Xingu. Segundo Carvalho, nos Estados Unidos, a criação de bancos de dados extensos sobre documentação linguística permitiu que, hoje, populações remanescentes tentem revitalizar línguas já extintas. "Produziram-se arquivos de documentos enormes, com gravações de vídeo, de áudio, que ainda nem sequer foram analisadas." Não é raro, segundo Marília Facó, que pesquisadores mantenham seus arquivos sob guarda privada. "Alguns constituem dentro de casa, o que não é legal, porque as pessoas são pagas com verba pública", diz. Para Carvalho, o hábito de guardar, em coleção própria, material coletado em campo torna difícil a constituição de estudos mais densos. "Pesquisadores, propositadamente, boicotam ações por parte de outros linguistas que queiram trabalhar com aquela língua", afirma. No Brasil, trabalhos de ampla documentação ainda são tímidos. Em 2009, o Museu do Índio lançou um projeto linguístico de estudo sobre 13 línguas, com a produção de relatórios, estudos gramaticais e vocabulários. Aos poucos, a digitalização começa também a ser uma tática comum de preservação. O Museu Paraense Emílio Goeldi guarda 20 mil itens relativos a aproximadamente 80 línguas indígenas amazônicas, das quais 65 já digitalizadas. O alto custo, no entanto, ainda é uma barreira. A recuperação dos cadernos Yawalapiti custou cerca R$ 20 mil, obtidos em recurso de apoio emergencial da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Na área de criação de bancos arquivísticos, também há iniciativas de instituições e consórcios de pesquisadores internacionais, no campo da linguística de salvamento, que é a documentação de idiomas em estado crítico de existência. O programa alemão Dobes documentou, por exemplo, a língua kuikuro, falada no Xingu. A documentação esparsa resulta em trabalhos de pouco fôlego. Segundo a professora Ana Suelly, são poucos os dicionários indígenas na América do Sul, que não vão muito além de 4 mil palavras. Um dos mais completos trabalhos continua sendo o do padre jesuíta Antonio Ruiz de Montoya, que documentou a antiga língua Guarani no século 17. A língua do povo Wajãpi, do Amapá, tem descrição de léxico com 6 mil entradas. Para Carvalho, comparado ao estado de documentação de línguas da Europa e da América do Norte, o continente sul-americano continua sendo uma terra incógnita. "Há línguas que não têm mais documentação do que listas de palavras isoladas, registradas por indivíduos sem treinamento linguístico. São dados problemáticos", afirma. "A documentação das línguas no Brasil é muito fragmentária", diz Ana Suelly. "Alguém faz uma gramática e já chama de 'a gramática'. É preciso todo tipo de documentação, da flora, da fauna, dos fazeres, dos rituais, a fala das crianças, da mãe com as crianças. A língua é uma fonte de conhecimento inesgotável", afirma a professora, que trabalha para a criação de um atlas sonoro com 40 línguas indígenas no Laboratório de Línguas e Literaturas Indígenas (Lalli), que coordena na UnB. Para ela, a documentação feita pelo indígena, imerso na cultura que estuda, é incomparável. "Tapí sabe de coisas que linguista nenhum vai saber", diz. O protagonismo indígena na linguística é dado recente. Antes apenas objeto de observação e análise, o indígena passa a se tornar protagonista da própria língua. No Museu Nacional, o Mestrado Profissional em Linguística e Línguas Indígenas tem 70% das vagas destinadas a esse grupo. Na UnB, indígenas também ocupam os programas de pós-graduação e edições de revistas acadêmicas são dedicadas exclusivamente a esses pesquisadores. Pesquisador dessa geração, Tapí diz que o trabalho do pesquisador não indígena é importante, mas a interação com as aldeias é necessária. "Todos os trabalhos científicos precisam ter um retorno", diz. "Tem que levar esses trabalhos escritos aos caciques, à comunidade. Os professores indígenas podem trabalhar com a escrita e o registro da língua materna e paterna." A recuperação dos cadernos do Museu Nacional estão dentro dessa lógica, diz Marília Facó. "Os yawalapiti podem se apropriar do trabalho para corrigir, para mudar, comentar, discutir. É parte do processo de revitalização, de retomada." Tapí só aguarda o retorno das atividades da UnB, suspensas pela pandemia da covid-19, para defender a dissertação de mestrado e se preparar para o doutorado. Ele se mostra confiante na sobrevivência e revitalização da sua língua, que já pode ser ouvida, ainda que timidamente, entre os mais jovens pela aldeia. "Converso com os meninos e eles estão muito interessados. Acredito que vou conseguir realizar meu sonho de ver os jovens falarem na língua materna."
2020-06-19
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53114568
cultura
Bombril retira 'krespinha' do mercado: acusações de racismo fazem marcas reverem produtos
A fabricante de produtos de limpeza Bombril anunciou a retirada da marca de esponja de aço 'Krespinha' do mercado após ser acusada de racismo nas redes sociais. Usuários afirmaram que o nome do produto remetia aos cabelos crespos, o que levou a empresa a ficar entre os tópicos mais comentados de quarta-feira (17) no Twitter. Eles lembraram ainda que, na década de 1950, a publicidade de uma esponja de aço com o mesmo nome trazia a imagem de uma criança negra e fazia alusão a seu cabelo. Não se trata, no entanto, da primeira marca a ser alvo de escrutínio público e ceder a pressões das redes sociais. Ao redor do mundo, produtos acusados de racismo vêm sendo reformulados ou retirados do mercado, na esteira dos protestos antirracistas após a morte do americano George Floyd. Floyd, um homem negro de 46 anos, foi morto por um policial branco nos Estados Unidos que se ajoelhara sobre seu pescoço por mais de 8 minutos. Sua morte desencadeou protestos em todo o mundo contra o racismo e a violência policial. A decisão da Bombril acompanha, portanto, esse movimento internacional. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nos Estados Unidos, a fabricante de alimentos Quaker Oats Company anunciou, também na quarta-feira, que está aposentando a marca e o logotipo do xarope para panquecas Aunt Jemima (Tia Jemima, em português), com mais de 130 anos, reconhecendo que suas origens se baseiam em um estereótipo racial. "Enquanto trabalhamos para progredir em direção à igualdade racial por meio de várias iniciativas, também devemos examinar com atenção nosso portfólio de marcas e garantir que elas reflitam nossos valores e atendam às expectativas de nossos consumidores", disse a empresa de propriedade da Pepsi, em comunicado. A aparência da Aunt Jemima evoluiu com o tempo. A origem e o logotipo da marca são baseados na música Old Aunt Jemima, de um artista de show de variedades do século 19. O site da empresa diz que o logotipo foi criado em 1890 e se baseou em Nancy Green, uma "contadora de histórias, cozinheira e missionária". No entanto, não menciona que Green era uma escrava. Já a Mars, fabricante do arroz Uncle Ben, que retrata um homem negro em seu logotipo, disse que "agora é a hora certa de a marca do tio Bem evoluir, incluindo sua identidade visual, o que faremos", acrescentando que "ainda não sabemos quais serão as mudanças e o tempo exato, mas estamos avaliando todas as possibilidades". A B & G Foods Inc., dona da Cream of Wheat, disse ao jornal americano The Wall Street Journal que revisaria o logotipo de um chef negro de mais de um século do mingau de semolina "para garantir que nós e nossas marcas não contribuíssemos inadvertidamente para o racismo sistêmico". Por seu lado, a Conagra Brands Inc., que vende o xarope para panquecas Butterworth em uma garrafa em forma de mulher, disse que está revendo a marca e sua embalagem. No caso da esponja 'Krespinha', da Bombril, a polêmica teve início no início da quarta-feira (17) no Twitter, quando postagens afirmaram indevidamente que o produto havia sido lançado pela empresa. Além do nome associado ao racismo, muitos usuários destacaram estar chocados que o suposto lançamento aconteceu em meio ao momento em que o mundo debate o racismo estrutural. Alguns deles inclusive lembraram que a publicidade de uma esponja de aço com o mesmo nome, mas de outra fabricante (na verdade, uma loja, a Sabarco, no centro de São Paulo), que trazia a imagem de uma criança negra e fazia alusão a seu cabelo. Horas depois, em comunicado publicado em sua conta no Twitter, a Bombril disse que o produto já existia há 70 anos e, diferentemente "do que foi divulgado nas redes sociais ou na mídia em geral, não se tratava de lançamento ou reposicionamento". "A Bombril decidiu que vai retirar, a partir de hoje (17 de junho), a marca Krespinha do seu portfólio de produtos. Diferentemente do que foi divulgado nas redes sociais e na mídia em geral, não se tratava de lançamento ou reposicionamento do produto", informou a nota. "A marca estava no portfólio há 70 anos, sem nenhuma publicidade nos últimos anos, fato que não diminui nossa responsabilidade. Mesmo sem a intenção de ferir ou atingir qualquer pessoa, pedimos sinceras desculpas a toda a sociedade." "Cada vez mais, em todo o mundo, as pessoas corretamente cobram das empresas e das instituições o respeito e a valorização da diversidade. Não há mais espaço para manifestações de preconceitos, sejam elas explícitas ou implícitas. A Bombril compartilha desses valores". "Em função disso, vamos imediatamente rever toda a comunicação da companhia, além de identificar ações que possam gerar ainda mais compromisso com a diversidade", finalizou o comunicado.
2020-06-18
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cultura
Como um diplomata desobediente ajudou a salvar milhares de judeus do Holocausto
Oitenta anos atrás, um diplomata de meia-idade e de médio escalão caiu em uma profunda depressão. Seus cabelos embranqueceram em questão de dias, enquanto vias as ruas de Bordeaux, na França, se enchendo de refugiados judeus fugindo dos nazistas. Como cônsul de Portugal em Bordeaux, Aristides de Sousa Mendes enfrentou um dilema moral. Ele deveria obedecer às ordens do governo ou ouvir sua própria consciência e fornecer aos judeus os vistos que lhes permitiriam escapar do avanço das forças alemãs? Sousa Mendes optou pela vida em detrimento de sua carreira. Sua decisão lhe deu status de herói entre os sobreviventes e descendentes dos milhares que ajudou a fugir. Por causa dela, no entanto, ele perdeu o emprego e passou o resto de sua vida em penúria. Na época, Portugal vivia sob a mão de ferro do ditador António Salazar. No dia 9 de junho, Portugal finalmente concedeu reconhecimento oficial ao diplomata, e o Parlamento do país decidiu que um monumento no Panteão Nacional deveria levar seu nome. Em meados de junho de 1940, as forças de Hitler concluíam a vitória sobre a França. Paris caiu em 14 de junho e um armistício foi assinado pouco mais de uma semana depois. O corpo diplomático de Portugal seguia estrita orientação da ditadura de direita de Salazar: os vistos deveriam ser concedidos a judeus refugiados e apátridas somente com permissão expressa de Lisboa. Para aqueles que lotavam as ruas de Bordeaux na esperança de atravessar a Espanha e escapar da perseguição nazista, não havia tempo para esperar. "Ouvimos dizer que os franceses se renderam e os alemães estavam em movimento", diz à BBC Henri Dyner. Judeu, Dyner tinha três anos na época, mas guarda lembranças vívidas da fuga de sua família de sua casa em Antuérpia, quando a Alemanha nazista atacou a Bélgica e invadiu a França e a Holanda. "O que eu lembro é o som do bombardeio, que deve ter me acordado, e minha mãe me dizendo que era um trovão." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Meus pais ligaram o rádio e ouviram o rei Leopoldo dizer aos belgas que havíamos sido traídos e atacados pelos alemães. Meu pai suspeitava que poderia haver uma guerra desde 1938. Ele tinha um plano e um carro", lembra Dyner, agora um engenheiro aposentado que vive em Nova York. Eliezar Dyner, sua esposa Sprince e outros cinco parentes, incluindo um bebê de sete meses, fugiram do ataque e entraram na França. "Meu pai evitou grandes estradas, distanciou-se de Paris e ficamos presos à costa. Ele queria estar apenas 16 quilômetros à frente do front o tempo todo, porque achava que poderia ser uma guerra rápida. Qual seria a razão para ir longe demais se teríamos que voltar à nossa casa? " Depois de ver aviões de guerra alemães bombardeando trincheiras francesas e ouvir as notícias de sucessivas vitórias do Eixo, o pai de Henri percebeu que, quando chegaram a Bordeaux, não conseguiriam voltar à Antuérpia tão cedo. Em Bordeaux, o cônsul havia feito amizade com um rabino. Chaim Kruger também havia fugido da ofensiva nazista na Bélgica. O cônsul Sousa Mendes ofereceu ao rabino e sua família passagem imediata e segura pela fronteira espanhola, mas depois sofreu uma "crise moral", segundo o historiador Mordecai Paldiel. Kruger recusou a oferta, pois não podia abandonar os milhares de outros refugiados judeus em Bordeaux. Numa carta de 13 de junho de 1940, Sousa Mendes escreveu: "Aqui a situação é horrível, e eu estou de cama por causa de um forte colapso nervoso". "Ninguém realmente sabe o que passou por sua mente naqueles dois ou três dias", diz Paldiel, que dirigiu o departamento dos Justos entre as Nações no centro memorial do Holocausto Yad Vashem, em Israel, por 25 anos. Os Justos entre as Nações como o Estado de Israel classifica não judeus que arriscaram suas vidas durante o Holocausto para salvar vidas de judeus do extermínio pelo nazismo. "Alguns dizem que o dever de um diplomata é obedecer às ordens de cima, mesmo que essas determinações não sejam morais." "Mais tarde, em Lisboa, Sousa Mendes disse a um rabino: 'Se tantos judeus podem sofrer por causa de um católico, é certo que um católico sofra por muitos judeus.' Ele estava falando sobre Hitler, é claro." O que quer que tenha passado pela cabeça do diplomata, Sousa Mendes acordou na segunda-feira, 17 de junho, imbuído de um novo espírito. De acordo com o filho Pedro Nuno de Sousa Mendes, "ele saiu do quarto e anunciou em voz alta: 'De agora em diante, estou dando vistos a todos. Não haverá mais nacionalidades, raças ou religiões'." Para Henri Dyner e sua família, foi o que salvou sua vida. Coincidentemente, a mãe de Henri conhecia o cônsul português desde a época em que viviam em Antuérpia, onde ela era secretária no Consulado britânico. A família Dyner já havia tentado e não conseguiu obter vistos das autoridades americanas, britânicas e canadenses para deixar a França. Antes de seu colapso, Sousa Mendes os colocou em uma lista em um pedido enviado ao governo de Salazar. "Minha mãe lembra que ele desapareceu por alguns dias e, quando voltou, seu cabelo estava grisalho", diz Henri Dyner, que lembra filas de refugiados do lado de fora do consulado em Bordeaux e acampando em praças. "Minha mãe começou a trabalhar para Sousa Mendes naqueles dias, ajudando com esse tipo de linha de produção de vistos em uma longa mesa. Sousa Mendes salvou nossas vidas." Ninguém sabe ao certo quantos vistos de trânsito foram emitidos, permitindo que os refugiados passassem da França para a Espanha e viajassem para Portugal. Mas as estimativas variam entre 10 mil e 30 mil, e a maioria acabou atravessando o Atlântico rumo aos Estados Unidos. A Fundação Sousa Mendes, com sede nos EUA, identificou cerca de 3,8 mil beneficiários desses vistos. Como se estivesse possuído por uma missão, o cônsul chegou a assinar vistos em trânsito, enquanto multidões em Bordeaux começavam a marchar em direção ao sul, para a cidade fronteiriça de Hendaye. Ele parou no Consulado em Bayonne para emitir mais documentos. O Ministério das Relações Exteriores de Lisboa começou a enviar cabogramas (telegramas enviados por cabos submarinos) para Bordeaux, ordenando que Sousa Mendes parasse, em meio a relatos de colegas de que ele havia "perdido o juízo". Quando as autoridades espanholas começaram a considerar seus vistos inválidos, milhares já haviam atravessado o rio Bidasoa na região basca da Espanha. Eventualmente, Sousa Mendes se reportou a seus chefes em Lisboa no dia 8 de julho. Entre os que escaparam da França ocupada graças a seus vistos estavam o artista surrealista Salvador Dalí, o cineasta King Vidor, membros da família de banqueiros Rothschild e a maioria do futuro governo exilado da Bélgica. O país de Salazar mais tarde seria elogiado por seu papel em permitir que os refugiados escapassem da ocupação e repressão nazistas, mas Sousa Mendes acabou expulso do corpo diplomático e perdeu sua aposentadoria. A casa de sua família em Cabanas de Viriato acabou desmoronando e nunca foi reerguida. "Sousa Mendes foi maltratado por Salazar. Ele morreu na miséria como um pobre e seus filhos emigraram para tentar encontrar um futuro melhor em outro lugar", diz Henri Dyner. A família de Henri acabou no Brasil, antes de se mudar para os EUA por questões profissionais. Mas ele se lembra de um homem que teve coragem em suas convicções. "Do jeito que as coisas estão no mundo hoje, precisamos de mais pessoas preparadas para defender o que é certo e tomar uma posição".
2020-06-17
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cultura
O estrago da covid-19 em cidades do Nordeste que cancelaram festa de São João: 'É quando fazemos pé de meia para resto do ano'
"A festa de São João é a preservação da vida do nordestino. O que seria de um repórter sem a comunicação? O que é um médico sem paciente? O que seria de Caruaru sem o São João e sua cultura popular?". Quem questiona é Sebastião Alves Cordeiro Filho, o Mestre Sebá, ator e diretor do tradicional teatro de mamulengo (um tipo de fantoche). Mas neste ano, assim como outras cidades nordestinas, Caruaru não terá a tradicional festa anual de São João por causa das medidas de isolamento social que tentam conter a pandemia de covid-19 — a cidade já registrou 82 mortes pela doença. O evento cultural e religioso, que dura todo o mês de junho, apresenta atrações, movimenta o turismo e a rede hoteleira, gera milhares de empregos e sustenta centenas de artistas locais, além de aumentar a arrecadação de impostos em municípios do interior, como Caruaru, Campina Grande (PB) e Mossoró (RN). "Não ter São João é algo inédito na minha vida. Não poder me apresentar, depois de 40 anos atuando, causa uma grande angústia", diz Mestre Sebá, de 63 anos, coordenador de uma trupe teatral com 65 pessoas, entre atores, técnicos e manipuladores de bonecos. O ator tem sobrevivido com R$ 1 mil por mês, dinheiro de uma bolsa paga pela prefeitura da cidade do agreste pernambucano, que o reconheceu como patrimônio vivo. "Mas muitos outros artistas estão passando grandes dificuldades", diz. Além dos laços afetivos e culturais, o São João tem grande peso econômico para os municípios. Segundo a prefeitura de Caruaru, o evento gera 20 mil empregos e movimenta cerca de R$ 200 milhões na economia local. Só em impostos, o município estima que vai deixar de arrecadar R$ 2 milhões apenas em junho — verba que poderia ser usada em diversas áreas, como saúde e educação. "A festa movimenta todos os setores da nossa economia. Dos repentistas aos trios de forró, da gastronomia à rede hoteleira, todo mundo depende do São João", diz Raquel Lyra (PSDB), prefeita de Caruaru desde 2017. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De fato, em junho do ano passado, o setor hoteleiro de Caruaru tinha quase 100% das vagas ocupadas para turistas — a prefeitura calcula que dois milhões de pessoas de fora visitaram o município durante o evento do ano passado. Mas desta vez, com o cancelamento da festa, a rede praticamente não tem hóspedes, segundo a prefeita. No ano passado, organizar o São João custou R$ 12 milhões. Segundo Lyra, a maior parte desse dinheiro foi arrecadado por meio de patrocínios de empresas privadas. "Antes da pandemia, já tínhamos captado R$ 7 milhões para o evento deste ano. Nosso objetivo é tornar a festa autossustentável", diz. Para a prefeita, ficar sem São João é como se uma parte do ano não existisse. "Em Caruaru, nós dividimos o ano em antes e depois do São João. Não ter a festa deixa um vazio muito grande, porque ele faz parte da nossa identidade, tanto na questão cultural quanto religiosa", afirma. A cidade de Campina Grande, na Paraíba, disputa com Caruaru o título de maior São João do Nordeste — e, neste ponto, não há muito consenso. No quesito econômico, porém, o município também está sofrendo com um mês de junho sem a festa, embora a prefeitura ainda queira realizá-la em outubro. "A gente estima que o São João movimente cerca de R$ 200 milhões todos os anos. São 5 mil empregos. É uma cadeia produtiva enorme, que sustenta muita gente: dos vendedores ambulantes à gastronomia local", diz Romero Rodrigues (PSD), prefeito da cidade. Campina Grande, que já flexibilizou a quarentena, registrou 69 mortes por covid-19. Desde 2017, o município terceirizou a organização da festa. No ano passado, Campina Grande pagou, por meio de uma licitação, R$ 2,8 milhões para uma empresa organizar, contratar artistas e criar toda a estrutura do evento. Uma das recentes críticas ao São João é que prefeituras têm pagado altos cachês para artistas famosos que, muitas vezes, não têm grande relação com a cultura local, como nomes da música pop e do sertanejo. Por outro lado, há quem diga que a presença de celebridades nacionais leva mais turistas às cidades nordestinas. Em junho de 2016, por exemplo, o cantor Wesley Safadão recebeu R$ 575 mil para se apresentar no São João de Caruaru — o público foi de 100 mil pessoas. À época, a Justiça chegou a suspender o show depois de uma ação civil pública questionar o alto cachê, mas o concerto foi liberado. Dias depois, Safadão se apresentou em Campina Grande por um valor bem menor, R$ 195 mil. Diante das críticas, o músico afirmou que iria doar o dinheiro para a caridade. Um estudo da Universidade Potiguar apontou que, para cada R$ 1 que a cidade de Mossoró investiu no São João no ano passado, outros R$ 14 foram injetados na economia do município do semiárido do Rio Grande do Norte. Em Mossoró, 86 pessoas morreram de covid-19. Segundo Lahyre Neto, secretário municipal de desenvolvimento econômico e de turismo, o São João movimentou R$ 94 milhões em 2019. "Neste mês, com a pandemia e o cancelamento do evento, esperamos uma queda de 30% na arrecadação", diz. O São João de Mossoró é conhecido pela tradicional festa Pingo da Mei Dia, que reúne trios elétricos e dezenas de milhares de pessoas, e pela peça Chuva de Bala, que encena a tentativa frustrada do cangaceiro Lampião de invadir a cidade, em 1927. "É um baque enorme não ter a festa, um vazio no coração do mossoroense. Toda a rede hoteleira está paralisada e demitindo funcionários, além dos comerciantes e dos artistas locais que dependem do São João para sobreviver no restante do ano", afirma Neto. Sem a renda do São João, alguns artistas têm lutado para sobreviver. Mossoró, por exemplo, publicou um edital de R$ 242 mil para produções de artistas locais durante a pandemia. Já a prefeitura de Caruaru criou uma campanha de doação de cestas básicas a artistas, artesãos e comerciantes que agora estão parados. Conhecido trio de forró em Caruaru, a banda Fole de Ouro é um dos grupos locais que está lutando para sobreviver em tempos de covid-19. No São João do ano passado, o trio realizou 42 shows em apenas um mês, o que dificilmente deve ocorrer nesta temporada. "A gente vive de música. É no São João que fazemos o pé de meia para o restante do ano", explica Karla Danielly de Melo, de 37 anos, produtora do Fole de Ouro e mulher do sanfoneiro do grupo, José Antônio da Silva Junior. Nas últimas semanas, o trio tem conseguido ganhar algum dinheiro se apresentando em condomínios residenciais de Caruaru. O grupo toca o forró no térreo — às vezes ao lado da piscina —, e o público dança nas sacadas do prédio. "Um morador, que estava estressado com o home office e com a pandemia, nos ligou e deu a ideia. Fizemos o primeiro show, e foi um sucesso. Até fiz um grupo no WhatsApp para os moradores pedirem as músicas que gostam", explica Karla. "Depois, pessoas de outros condomínios ficaram sabendo. Estão fazendo vaquinhas para nos contratar para outros shows. Isso não substitui o calor do público próximo, não substitui o vazio do São João cancelado. Mas é uma experiência interessante, é o que temos para hoje", diz a produtora.
2020-06-16
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cultura
A estudante que em menos de uma semana resolveu um enigma matemático de meio século
Uma estudante universitária americana solucionou, em menos de uma semana, um enigma matemático que ficou sem resposta por meio século. Após deparar-se com o problema em um seminário, Lisa Piccirillo usou seu tempo livre para decifrar o chamado "nó de Conway", proposto pelo inglês John Horton Conway. Em 2018, Lisa estava cursando doutorado na Universidade do Texas, nos Estados Unidos. Ao conversar com o professor de matemática Cameron Gordon, ela comentou o que havia descoberto alguns dias antes. "Ele começou a gritar: 'Por que você não está mais animada?'", lembra ela ao site de notícias científicas Quanta ."Ele ficou louco", acrescenta. Assim como Gordon lhe adiantou naquele dia, a solução acabou sendo publicada em março pela prestigiada revista Annals of Mathematics. "O problema do nó de Conway ficou sem solução durante muito tempo e muitos matemáticos brilhantes se debruçaram sobre ele sem conseguir resolvê-lo", diz o matemático Javier Aramayona, pesquisador da Universidade Autônoma de Madri (UAM) e membro do Instituto de Ciências Matemáticas (ICMAT) da Espanha. O mais importante, segundo ele, foi que Lisa conseguiu que "o resultado fosse publicado em uma das melhores revistas de matemática e contribuiu significativamente para que ela conquistasse uma posição permanente no MIT pouco mais de um ano após a graduação". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para explicar o nó de Conway é necessário entender em que consiste a topologia, o ramo da matemática em que ele está enquadrado. "A topologia está interessada nas propriedades que persistem após deformar continuamente objetos geométricos (por exemplo, torcê-los ou esticá-los), mas sem quebrá-los", explica Aramayona, especialista nessa área. "Embora, do ponto de vista da geometria, um quadrado seja muito diferente de uma circunferência, do ponto de vista da topologia, ambos os objetos são indistinguíveis", acrescenta ele. "De fato, podemos ver facilmente como deformar um no outro se os imaginarmos feitos de argila de modelagem". Dentro da topologia está a chamada teoria do nó, onde o objeto de estudo, o nó, tem certas semelhanças com a vida real. "A ideia intuitiva que precisamos ter é imaginar uma corda que amarramos e da qual colamos as pontas", explica a matemática Marithania Silvero, do Instituto de Matemática da Universidade de Sevilha, Espanha, à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. "E o que estuda a teoria dos nós? As deformações que podemos fazer nessa corda. Ou seja, vemos como podemos torcer essa corda, envergá-la, esticá-la, comprimi-la... O que não podemos fazer é cortar a corda. Isso é proibido", acrescenta. O nó mais simples, o trivial, seria como uma corda com as pontas presas juntas e nenhum cruzamento. "Mas podemos imaginar nós com tantos cruzamentos e tão complicados quanto quisermos", diz Aramayona, da UAM. "Qualquer tabela de nós marítimos está cheia de exemplos de nós muito complicados", acrescenta ele. Parte da fama do nó de Conway se deve ao próprio autor, John Horton Conway. Morto em 19 de abril deste ano por covid-19, esse matemático prolífico, influente e carismático, que trabalhou em universidades prestigiadas como Cambridge (Reino Unido) e Princeton (Estados Unidos), era "o egomaníaco mais amado do mundo", segundo seu biógrafo, Siobhan Roberts. "Arquimedes, Mick Jagger, Salvador Dalí e Richard Feynman em uma pessoa", escreveu ele. Em 1970, Conway propôs um nó com 11 cruzamentos e, desde então, os matemáticos tentaram, sem sucesso, responder se era possível ou não fatiá-lo. Entretanto, ser fatiável não tem a ver com a possibilidade de cortar o nó ao meio, mas sim com suas "fatias" distribuídas pelas quatro dimensões do nosso mundo - na topologia, o tempo é considerado esta quarta parte do universo. "Nós matemáticos, quando temos que classificar nós, estudamos diferentes propriedades que os nós têm. Uma dessas propriedades é ser ou não ser fatia (slice)", explica Silvero. O pesquisador especializado em teoria dos nós reconhece que essa propriedade é difícil de explicar sem recorrer a detalhes técnicos, porque abrange o espaço de quarta dimensão (4D). "Por exemplo, uma esfera bidimensional é a borda de uma bola tridimensional", diz ele. "Da mesma forma", continua ele, "se subirmos mais uma dimensão, podemos imaginar que um espaço tridimensional seria a borda de um espaço quadridimensional". "Então, dizemos que um nó é um slice se preenche a propriedade de ser a borda de um disco quando o vemos dentro de um espaço de quatro dimensões". Nesse sentido, a importância do problema do nó de Conway assume outra perspectiva. "Existem 2.978 nós com menos de 13 cruzamentos e havia 2.977 dos quais se sabia se eram slices ou não", diz Silvero. "Qual era o único que não se sabia? Bem, o nó de Conway." A resposta à famosa pergunta, conforme explicado no título do artigo de Lisa na revista Annals of Mathematics, não deixa margem para dúvidas: "O nó de Conway não é um slice". Para encontrar a solução para esse problema antigo, Piccirillo substituiu o nó de Conway por outro que ela inventou, no qual a propriedade slice era mais fácil de estudar. Esse outro nó "de sua invenção", diz Aramayona, "tem a propriedade de ser cortado se e somente se o nó de Conway o for" . Depois, ela usou uma série de técnicas que acabaram provando que seu nó não era um slice e, portanto, não era o de Conway. "Com o resultado, encerramos a classificação dos nós com menos de 13 cruzamentos quanto a serem slice ou não", diz Silvero. E acrescenta que a engenhosidade da abordagem americana era "combinar a ideia de ela construir um nó com o uso de técnicas que já existiam na teoria dos nós". Parece simples, mas inventar esses nós relacionados é complicado. Embora não tenha sido para Lisa. "Não me foi permitido trabalhar no problema durante o dia, porque não considerava que era matemática de verdade. Pensei nisso como lição de casa", disse ela à revista Quanta . "É algo que, digamos, é familiar para mim", disse ela. "Então, fui para casa e fiz isso", acrescentou.
2020-06-15
https://www.bbc.com/portuguese/geral-53020787
cultura
Entre amor livre e fome, a vida na colônia Cecília, uma malsucedida experiência anarquista do Brasil
Há 130 anos, um grupo de imigrantes italianos chegou ao Brasil e fundou uma colônia agrícola no Paraná. Como todos os imigrantes, traziam sonhos e muita esperança na bagagem. Entretanto, estes também vinham movidos por uma ideologia: liderados por Giovanni Rossi (1856-1943), escritor, engenheiro agrônomo e médico veterinário de Pisa, na Toscana, queriam implementar no Brasil uma comunidade anarco-socialista, batizada de colônia Cecília. "A colônia Cecília, experiência que buscou pôr em prática os princípios anarquistas e que nasceu em 1890 no Estado do Paraná, é o aspecto mais conhecido do anarquismo italiano no Brasil e sua primeira manifestação. Todavia, existem muitas impressões falsas sobre essa experiência, uma vez que a imagem da Cecília, que transparece nas obras sobre o anarquismo e nas obras de ficção que lhe foram consagradas, deve-se mais à lenda do que à realidade", pontua a pesquisadora Isabelle Felici, professora de estudos italianos da Universidade de Montpellier, em artigo acadêmico sobre a empreitada intitulado A Verdadeira História da Colônia Cecília de Giovanni Rossi. "É muito provável que, se a lenda não se tivesse apoderado da história da Cecília, transmitindo uma versão desviada da verdade, a experiência comunitária não teria impressionado tanto as imaginações." "O século 19 é o século da ciência, em que os pensadores buscavam novas experimentações. Umas destas experimentações foi a Cecília", contextualiza à BBC News Brasil o escritor e professor universitário Miguel Sanches Neto, reitor da Universidade Estadual de Ponta Grossa e autor do romance Um Amor Anarquista, ambientado na Cecília. "O idealizador [Giovanni Rossi] era um intelectual com formação na área agrícola, que havia escrito um livro sobre uma experiência fictícia do anarquismo. Ele escolheu um grupo de jovens e resolveram testar as ideias na prática social. Não vieram para fazer a revolução." "Cecília era uma colônia anarquista socialista — o anarquismo pela destruição do poder central e o socialismo pelo compartilhamento dos recursos obtidos", acrescenta o escritor. "Seguindo teóricos da época, seriam mais das ciências aplicadas do que da teórica. O intelectual era Giovanni Rossi." De acordo com as pesquisas de Felici, o Brasil não foi a primeira escolha do grupo. Em dezembro de 1889, o jornal italiano L'Eco Del Popolo, de Cremona, publica artigo anunciando que Rossi e seus companheiros iriam testar suas ideias, na prática, no Uruguai. "Quanto a Rossi, ele não dá nenhuma explicação sobre essa mudança de destino, e sua partida para o Brasil é muito discreta", escreve a pesquisadora. A bordo do navio Città di Roma, Rossi e seus companheiros embarcaram no porto de Gênova em 20 de fevereiro de 1890. Aportaram no Rio de Janeiro em 18 de março. Ali se abrigaram em uma hospedaria de imigrantes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Nós pretendemos constituir aqui uma colônia anarquista, que possa dar à propaganda uma demonstração prática de que nossas ideias são justas e realizáveis, e à agitação revolucionária na Europa auxílios financeiros", escreveu ele, em carta enviada ao jornal anarquista francês La Révolte. "Já faz alguns anos que nós discutimos na Itália as vantagens e os perigos que uma tal empresa poderia apresentar; e após ter estudado a questão, nós nos decidimos. Nós partimos às oito do dia 20 de fevereiro, e em Gibraltar uma família de camponeses espanhóis se juntou a nós. Nós partiremos amanhã para Porto Alegre para procurar um terreno propício." No dia 26 de março, o grupo embarcou novamente no navio Desterro, com destino a Porto Alegre. Mas a viagem foi abortada em escala no porto de Paranaguá, no Paraná, dois dias depois — porque alguns deles não suportaram os enjoos a bordo. "Nós devíamos ir a Porto Alegre, mas o mal de mar fazia sofrer tanto dois dos nossos companheiros, que decidimos poupá-los de outros cinco ou seis dias de navegação e descer aqui, para fundar a nossa colônia social em alguma parte do Paraná, onde sabíamos que encontraríamos um clima ameno e saudável", escreve Rossi na edição de 1891 de seu livro Un Comune Socialista. Como os anarquistas italianos vieram parar no Brasil? Uma das mais saborosas histórias a esse respeito aponta um suposto apoiador inusitado: o próprio dom Pedro 2º (1825-1891), o segundo e último imperador do Brasil. No livro Anarquistas, Graças a Deus, a escritora e memorialista Zélia Gattai (1916-2008) recorda a imigração de sua família considerando essa ajudinha do monarca. "Meu avô [Francesco Gattai] tivera a oportunidade de ler um livreto intitulado: 'I Comune in Riva ai Mare', escrito por um certo Dr. Giovanni Rossi — que assinava com o pseudônimo de Cardias —, misto de cientista, botânico e músico. No folheto que tanto fascinara meu avô, Cardias idealizava a fundação de uma colônia socialista experimental, num país da América Latina — não especificava qual —, uma sociedade sem leis, sem religião, sem propriedade privada, onde a família fosse constituída de forma mais humana, assegurando às mulheres os mesmos direitos civis e políticos que aos homens", escreve ela. Gattai conta que "nas últimas páginas de seu estudo, de seu plano, fazia um apelo às pessoas que estivessem de acordo com suas teorias e quisessem acompanhá-lo a qualquer parte da Terra, por mais distante, desde que pudessem levar à prática todas as experiências e as ideias contidas no livro, para se apresentarem". Ela ressalta que o avô havia encontrado "alguém com dinamismo e inteligência, disposto a tornar realidade um sonho seu e de outros camaradas". E cita que eram discípulos dos ensinamentos dos teóricos anarquistas Mikhail Bakunin (1814-1876) e Piotr Kropotkin (1842-1921) "à procura de um caminho novo para a humanidade faminta, esfarrapada, ensanguentada, talvez esquecida de Deus". Assim, o italiano Gattai planejou embarcar. Compartilhou o desejo com a mulher e decidiram integrar a empreitada. Tinham cinco filhos pequenos, a mais nova ainda bebê. Em seu livro, Gattai define Rossi como um poeta que "herdara da família incontestável vocação musical" e "deixando de lado poesia e música, inquieto, preocupado com os problema sociais, preferiu os estudos práticos, formando-se em agronomia, dedicando-se ao jornalismo e aos problema sociais e filosóficos". "Em suas idas a Milão, costumava hospedar-se com um parente, músico, o maestro Rossi, cuja casa era frequentada por músicos de renome, entre eles um certo Carlos Gomes, brasileiro, autor de óperas", pontua a memorialista. "Encontraram-se os dois, Giovanni Rossi e Carlos Gomes, na ocasião em que o músico brasileiro se entregava com entusiasmo à partitura de mais uma ópera, 'Lo Schiavo', que pretendia tocar para o imperador do Brasil, cuja chegada a Milão estava sendo aguardada." Ela conta que Carlos Gomes (1836-1896) teria falado maravilhas do Brasil a Rossi. "Cardias o escutou fascinado! Essa era a terra que buscava, ideal para sua experiência", relata Gattai. "Não havia dúvidas. Pôs de lado imediatamente o projeto, ainda embrionário, de tentar o Uruguai. O Brasil o chamava. Entusiasmou-se ainda mais ao saber da próxima chegada de dom Pedro 2º a Milão." "Cheio de esperanças, Cardias resolveu escrever uma carta ao imperador do Brasil", narra a memorialista. "Na longa carta explicou com detalhes seus planos a dom Pedro 2º, pedindo que lhe permitisse provar a seriedade da experiência e solicitando terras e apoio para a ida dos idealistas para o Brasil." Ela conta que a missiva foi entregue por ele mesmo, em mãos, ao médico do imperador. E que, "algum tempo depois, já no Brasil", o monarca se interessou "pelas ideias e pelo arrojo" de Rossi. E "impressionado", dom Pedro "não teve dúvidas", segundo Gattai: "mandou que respondessem à sua carta: felicitava-o por seu trabalho e oferecia-lhe a terra solicitada para a colônia experimental". "Estabeleceu-se, então, uma correspondência entre o jovem idealista e o imperador", salienta a memorialista, dizendo que Pedro 2º deu aos italianos "a posse de 300 alqueires de terras, incultas e desertas, num local entre Palmeira e Santa Bárbara, no Paraná, e, ainda, a promessa de ajuda e apoio para o empreendimento". Segundo o relato de Gattai, seu pai dizia que a história era mostra de que eles eram "importantes", pois para que "estivessem aqui hoje, foi preciso a intervenção do filósofo Giovanni Rossi, do maestro Carlos Gomes e de dom Pedro 2º, imperador do Brasil." Conforme esclarece à BBC News Brasil o historiador Paulo Rezzutti, autor da biografia D. Pedro II: A História Não Contada, o monarca brasileiro esteva em longa viagem pela Europa em busca de tratamento de saúde, consultando-se com profissionais renomados como Louis Pasteur (1822-1895) e tratando-se com águas termais em spas famosos da época. "Foi uma de suas mais longas viagens. Ao longo de um ano, a partir de julho de 1887, ele esteve em Portugal, França, Alemanha e Itália", diz Rezzutti. No início de 1888, ele visitou Florença prestigiando a apresentação pública do quadro "Independência ou Morte", obra-prima de Pedro Américo (1843-1905), hoje integrante do acervo permanente do Museu Paulista. Em maio, passou o mês em Milão, onde teve uma execução privada de trecho de "Lo Schiavo", de Carlos Gomes. "Mas ele estava com a saúde bastante debilitada, ficou a maior parte do tempo acamado. Duvido que tenha recebido alguém para tratar de qualquer outro assunto", comenta Rezzutti, que assegura não haver nenhum indício de relação entre o imperador e os anarquistas que fundaram Cecília. Para Sanches Neto, essa história do imperador não passa de boataria. "Bobagem sem pé nem cabeça, nada a ver com dom Pedro", explica. "Rossi e o grupo de pioneiros iam para o Rio Grande do Sul com um dinheiro coletado na Itália para comprar a terra, mas um dos amigos passou mal, desceram no porto de Paranaguá. No Paraná, descobriram que havia colônias italianas e terras baratas, compradas a prazo. Adquiriram uma fazenda em Palmeira, e se mudaram para lá." "De fato, segundo uma versão muito propagada da história da Cecília, a colônia teria sido implantada no Brasil graças à doação das terras situadas no Estado do Paraná, pelo imperador dom Pedro 2º a Giovanni Rossi", afirma Felici. "Essa versão do nascimento da Cecília comporta numerosas inverossimilhanças, em particular no que se refere às datas." Conforme atesta a pesquisadora, a principal incoerência é o fato histórico de que os anarquistas chegaram ao Brasil com a República já proclamada, ou seja, sem que houvesse qualquer possibilidade de serem ajudados pelo imperador, deposto meses antes. Desembarcados em Paranaguá, Rossi e seus companheiros pararam por alguns dias no alojamento reservado aos imigrantes. Dali tomaram um trem até Curitiba. Na cidade havia um escritório, chamado de Inspetoria de Terra e Colonização, destinado a organizar as terras desocupadas, os loteamentos vendidos aos imigrantes. No dia 1º de abril, o grupo de Rossi fez o reconhecimento do terreno. De acordo com Felici, o italiano gostou muito de Palmeira, em cujo município a colônia se assentaria. Rossi "recenseou todas as vantagens que ela apresentava, da igreja à agência de correio e telégrafo, passando pelo clube literário e a sociedade de teatro". Ele também enalteceu o fato de que a cidade contava com "um grupo de pessoas notáveis", algumas delas tendo estudado nos Estados Unidos ou na Europa. O imigrante logo ficou amigo de um médico local, Franco Grillo, que acabou auxiliando os primeiros trabalhos. Não há um consenso sobre quantos foram os fundadores, mas provavelmente não chegavam a uma dezena. Com o passar dos meses, outros italianos se juntaram. "Havia um fluxo desorganizado de gente por causa da propaganda na Itália", afirma Sanches Neto, aludindo ao fato de que Rossi costumava escrever cartas sobre Cecília, publicadas em jornais italianos. "Havia época em que eram 50 moradores, outras com 250. Isso gerava problemas de manutenção. Foi uma zona do começo ao fim, pois assim que o imigrante percebia que podia comprar terras a prazo, [saía dali e] ia cuidar da própria vida." "O melhor experimento que eles fizeram foi o amor livre, o casamento poliândrico", comenta o escritor. A ideia era que uma mulher tivesse vários homens, "para que os filhos fossem da colônia, e não de um pai". Havia uma luta contra a ideia de paternidade conhecida. De acordo com Sanches Neto, acreditava-se que "este era o caminho para a vida coletiva: destruir a célula familiar tradicional". "Rossi dividiu abertamente uma mulher com dois outros homens", exemplifica. Essa questão tornava Cecília diferente da iniciativa anterior de Rossi, a associação agrícola cooperativa de Cittadella, implementada por ele anos antes em Cremona, na Itália. Cittadella também era anarquista e socialista — autogestionada, coletivizada e socializada —, contudo ali as relações pessoais eram como em qualquer outra sociedade contemporânea. Em Cecília, Rossi e seus companheiros vivenciaram o amor-livre. Nos relatos do italiano, os primeiros tempos da colônia são tratados de forma positiva. "Ele se refere com um tom alegre aos problemas administrativos da comunidade nascente; descreve com afeição os animais domésticos que compartilham a vida da colônia e evoca, mas sem se tornar pesado demais, os aspectos negativos da vida na Cecília: essencialmente a pouca variedade da alimentação e o excesso de trabalho", escreve Felici. "Ele não se detém sobre o fato de que a vida que ali se leva é muito rude, que as refeições são frugais, os cobertores sempre insuficientes, o trabalho difícil; ele fica feliz de anunciar que a vida comunitária, apesar de alguns 'incidentes desagradáveis', das querelas e do ciúme do marido da única mulher do grupo, desenvolve-se de maneira satisfatória, 'sem regulamentos nem chefes'." Entretanto, tudo isso era parte dos esforços de divulgação. "Contumaz missivista, Rossi usava as cartas para se comunicar com amigos e parentes e também para fazer propaganda, um pouco exagerada, dos sucessos da colônia", contextualiza Sanches Neto. "Por uma reação natural ao formalismo estéril e funesto do período passado, o grupo quis ser absolutamente inorganizado", escreveu o italiano, sobre a rotina da colônia. "Nenhum pacto, nem verbal, nem escrito, foi ali estabelecido. Nenhum regulamento, nenhum horário, nenhum cargo social, nenhuma delegação de poder, nenhuma regra fixa de vida ou de trabalho." Todo o dinheiro arrecadado pelo grupo ficava em uma lata, ao alcance de quem precisasse. A cozinha era comunitária e todos tinham de se encarregar das tarefas. Boa parte dos integrantes da comunidade não tinha nenhuma experiência prévia com trabalhos agrícolas — a inaptidão aos trabalhos rurais explica parte do insucesso futuro da empreitada. "Instrução, música, teatro, dança, ainda não foram possíveis", escreve Rossi, em carta da época. "O trabalho produtivo tem nos absorvido inteiramente." "A colônia Cecília é considerada a única experiência anarquista da América e a mais conhecida do mundo, uma vez que há registros feitos pela imprensa internacional à época, com base nas informações que o Rossi passava", comenta à BBC News Brasil o pesquisador e escritor Arnoldo Monteiro Bach, autor do livro Colônia Cecília e fundador de um memorial dedicado ao tema, no município de Palmeira. Rossi voltou ao seu país natal no fim de 1890 para recrutar mais colonos para sua experiência. Havia um esforço, da parte dele, para pintar uma imagem da comunidade melhor do que a realidade em si. Não só dele, aliás. No início de 1891, enquanto circulava pelo seu país natal propagandeando o "sucesso" da empreitada, ele recebeu uma carta de um companheiro que estava no Paraná. "Vocês não podem acreditar o quanto é boa a nossa situação, que vai melhorando sempre mais. Além do mais, temos uma água excelente (…). Quanto aos animais selvagens, nós ainda não vimos nenhum, exceto um pequeno macaco que foi morto por um dos nossos companheiros", escreve ele. "Por ora, os nossos alimentos são: arroz, feijão, polenta, porco, carne de vaca, salame, café, leite, tudo em grande abundância. O pão é pouco, porque é preciso comprá-lo, mas assim que nós encontrarmos o material e a cal para fazer um forno, então deixaremos de comer polenta e passaremos ao pão." O trabalho de divulgação deu certo. Segundo levantamento da pesquisadora Felici, em maio de 1891 a colônia teve a maior população de sua história, com cerca de 250 habitantes. Mas, ao contrário das expectativas, a superpopulação não resultou em sucesso — na verdade, condenou a experiência ao fracasso. Felici conta que nesse momento "a miséria se instala, as condições de vida são insuportáveis: os colonos se amontoam nas barracas construídas no início de 1891, a alimentação é insuficiente". Sanches Neto diz que muitas vezes, "para pagar as contas, os anarquistas passaram a trabalhar para o governo abrindo estradas". Em outubro de 1892, um dos moradores da colônia escreveu que os alimentos diminuíam a cada dia. "Chegou-se a passar fome, com as angústias associadas à luta pela existência", registrou ele. Comerciantes da cidade de Palmeira acabaram sendo fiadores dos colonos, vendendo para eles mantimentos a prazo. Mas todo esse cenário de dificuldades precipitou divergências e desentendimentos. Rossi afirmou que o anarquismo estava "intelectualmente prostituído", já que havia famílias que jejuavam para que outras comessem. A colônia Cecília terminou em 1894. Segundo Sanches Neto, "com a desorganização total dos grupos". "Muitos foram para a cidade, arrumaram emprego como jornalistas ou na rede ferroviária que começava no Paraná. Outros compraram terras. O avô da Zélia Gattai se envolveu em um assalto numa relojoaria em Curitiba e foi para São Paulo", enumera ele. "Eles se dispersaram pelo Brasil. Este foi o lado bom, pois melhoraram o material crítico do país." "O experimento da Colônia Cecília terminou por vários motivos", afirma texto descritivo do memorial mantido pela prefeitura de Palmeira. "O principal foi a pobreza material, chegando mesmo a condições de miséria. Em segundo lugar, a hostilidade da vizinha comunidade polonesa, fortemente católica. O próprio clero e as autoridades locais promoveram o ostracismo dos anarquistas. Enfim, havia as doenças, ligadas à desnutrição, à falta de condições de saneamento adequadas, além dos problemas internos ligados às dificuldades de adaptação ao estilo de convivência anarquista, particularmente no tocante ao amor livre, que, embora teoricamente fosse aprovado por todos, na prática, despertava temores, especialmente entre as camponesas." Cecília se tornou de um só dono. "Uma das famílias pagou as terras e ficou com ela", diz o escritor. Desiludido, o idealizador da empreitada decidiu ficar no Brasil. Morou em Taquari, no Rio Grande do Sul, e depois em Rio dos Cedros, Santa Catarina. Voltou para a Itália apenas em 1907. "Havia, no entanto, um fato imprevisível para a mente cartesiana de Rossi", escreve Sanches Neto no posfácio da quarta edição de Um Amor Anarquista, a ser publicada em breve. "Ele acabou se apaixonando pela mulher que serviu como experiência amorosa." "No final, quando a colônia se desfez, o ex-socialista estabeleceu uma relação burguesa com ela, voltando à Itália, depois de passagens, agora como um conceituado professor de disciplinas agrícolas, por dois Estados vizinhos: Rio Grande do Sul e Santa Catarina", prossegue Sanches Neto. "Rossi, o idealista, e a colônia Cecília, um verdadeiro laboratório social, cifravam a inviabilidade de uma sociedade construída ideologicamente, pois haveria sempre forças individuais se impondo, forças que poderiam ser justas (como o amor) ou injustas (como o egoísmo). Rossi sai da experiência desiludido com o socialismo, uma desilusão que se tornou tão frequente ao longo do século 20." Ficou a história dessa "experimentação de como o ser humano consegue conviver com as diferenças", comenta Bach. Para o pesquisador, este é o grande legado deixado pelos anarquistas italianos. "Isso é simplesmente extraordinário e tem despertado o interesse de pesquisadores e historiadores do mundo todo que buscam informações dessa história incrível da humanidade", afirma ele. "[A experiência] abarca ciências como antropologia, sociologia, filosofia, e pesquisadores se debruçam para compreender as complexas relações humanas." Sanches Neto esteve várias vezes no lugar onde funcionou a colônia. "É uma região hoje transformada em propriedade particular, circundada por campos de soja", explica. Havia ainda um "primeiro cemitério anarquista", já que "eles não podiam enterrar seus mortos no campo santo por serem ateus". Segundo o escritor, destas tumbas não há mais nenhum sinal: são somente terras onde é cultivada soja.
2020-06-14
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52973847
cultura
Em meio a polêmica sobre estátuas de escravagistas, busto de ator negro é vandalizado com alvejante na Inglaterra
Uma estátua do poeta, dramaturgo e ator jamaicano Alfred Fagon foi vandalizada com uma substância semelhante à água sanitária. O monumento, localizado no subúrbio de St. Pauls, na cidade de Bristol, foi erguido em 1987, no primeiro aniversário de sua morte. Fagon foi a primeira pessoa negra a ter uma estátua erguida em sua homenagem na cidade. O ataque teria acontecido entre a noite de terça e a madrugada de quarta-feira e foi denunciado à polícia na quinta-feira. Nas redes sociais, usuários viram o ato como um episódio de racismo, após manifestantes antirracismo terem danificado ou derrubado estátuas de figuras históricas polêmicas. Alguns destacaram ainda o fato de que o busto de Fagon ter sido depredado com uma substância semelhante à água sanitária, com o intuito de "embranquecê-lo". "O ataque à estátua de Alfred Fagon em Bristol, com 'alvejantes', está ligado ao branqueamento histórico de estátuas / esculturas antigas para apagar da história pessoas não brancas. Grupos de extrema direita costumam usar mármore branco como símbolo do nacionalismo e supremacia brancos", disse um usuário. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A polícia informou que está investigando o caso. Estátuas de figuras históricas polêmicas vêm sendo alvo de protestos ao redor do mundo, na esteira das manifestações antirracistas decorrentes do assassinato do americano George Floyd. Floyd, um homem negro de 46 anos, foi morto por um policial branco que por quase nove minutos se manteve ajoelhado em seu pescoço, mantendo-o preso no chão enquanto ele suplicava: "não consigo respirar". No último domingo, manifestantes antirracismo em Bristol derrubaram e jogaram no rio uma estátua de Edward Colston, um filantropo que acumulou fortuna como mercador de escravos no século 18. Já uma estátua de Winston Churchill na Praça do Parlamento, em Londres, foi desfigurada por manifestantes antirracismo. Churchill é elogiado por levar a Grã-Bretanha à vitória na Segunda Guerra Mundial, mas para alguns ele continua sendo uma figura controversa, em parte por causa de seus pontos de vista sobre raça. Quem foi Alfred Fagon? Fagon nasceu na Jamaica em 1937, o terceiro de nove irmãos e duas irmãs. Aos 18 anos, ele veio para a Inglaterra para trabalhar nas ferrovias antes de ingressar no Exército. Em seguida, mudou-se para Bristol para trabalhar como soldador na década de 1960. Uma de suas primeiras peças, "Nenhum soldado em St Pauls", explorou a tensão social entre a polícia e a comunidade negra em Bristol dos anos 70. Seu último papel foi na série Fighting Back, da BBC, em St. Pauls, em Bristol. Ele morreu repentinamente de um ataque cardíaco em 28 de agosto de 1986, do lado de fora de seu apartamento no bairro de Camberwell, em Londres. Na ocasião, a polícia alegou não ter conseguido identificá-lo e ele foi enterrado sem honras. Foi criado um prêmio anual em sua homenagem, Alfred Fagon Award, dedicado a destacar dramaturgos de ascendência caribenha ou africana, residentes no Reino Unido.
2020-06-12
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53025156
cultura
Imagens de indígenas ameaçados da Amazônia vencem prêmio de fotografia da Sony
O fotógrafo uruguaio Pablo Albarenga ganhou o prêmio principal da edição deste ano do Sony World Photography por retratar comunidades indígenas sob risco na Amazônia. Os vencedores da categoria profissional da premiação foram anunciados nesta segunda-feira (8 de junho). Albarenga, especializado em fotografia documental, foi nomeado 'Fotógrafo do Ano' por sua série Seeds of Resistance (Sementes da Resistência), que destaca a situação das comunidades indígenas da América Latina, que lutam para preservar seus territórios do agronegócio e do desmatamento. O trabalho de Albarenga combina imagens aéreas de alguns locais em perigo com retratos de ativistas que lutam para salvá-los. O projeto retrata as pessoas e suas terras - áreas sagradas onde estão enterradas gerações de seus ancestrais. Fotografados de cima, os personagens principais são mostrados como se estivessem dando suas vidas por seu território. Os vencedores das categorias 'Aberta', 'Estudante' e 'Juventude' também foram anunciados juntamente com os vencedores gerais em cada uma das categorias profissionais. A categoria 'Aberta' celebra o poder das imagens individuais e o vencedor deste ano é Tom Oldham por seu retrato de Black Francis, líder da banda de rock Pixies, originalmente registrado para a revista MOJO. Ioanna Skellaraki, representando o Royal College of Art, venceu o prêmio máximo na categoria Estudante por sua série Aeiforia, que aborda a questão da sustentabilidade através de uma série de fotografias noturnas de painéis solares, turbinas eólicas e fazendas de baterias na ilha de Tilos, na Grécia. O prêmio de Fotógrafo de Juventude do Ano foi para Hsien-Pang Hsieh, de 19 anos, de Taiwan por sua imagem intitulada Hurry (Pressa), com um artista de rua que parece estar andando rápido, mas na verdade está parado. Sandra Herber foi a vencedora na categoria 'Arquitetura' por sua série Ice Fishing Huts, Lake Winnipeg (Cabanas de pesca no gelo, Lago Winnipeg). "Essas cabanas, barracos ou permies (como são chamadas em Manitoba) devem ser móveis, proteger seus ocupantes das condições atmosféricas e permitir o acesso ao gelo abaixo delas para a pesca." O vencedor da categoria 'Documentário' foi Chung Ming Ho, que se concentrou nos manifestantes em sua série Wounds of Hong Kong (Feridas de Hong Kong). "Relatos indicam que, desde o início das manifestações, os casos de depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) aumentaram entre a população." O primeiro lugar na categoria 'Meio Ambiente' foi para Robin Hinsch por sua série Wahala, que analisa os efeitos da indústria do petróleo nas comunidades e no ecossistema do Delta do Níger. "Cobrindo 70 mil km² de pântanos, o Delta do Níger foi formado principalmente pela deposição de sedimentos. A região abriga mais de 30 milhões de pessoas e 40 grupos étnicos diferentes, representando 7,5% do total de terras da Nigéria. Costumava exibir um ecossistema incrivelmente rico, contendo uma das mais altas concentrações de biodiversidade do planeta, antes da chegada da indústria do petróleo." Ronny Behnert venceu a categoria 'Paisagem' com uma série intitulada Torii - portões japoneses tradicionais comumente encontrados na entrada dos santuários xintoístas. "Na maioria das vezes, uso filtros de densidade neutra para forçar exposições longas e manter meu trabalho minimalista em estilo. Algumas de minhas exposições duram cinco minutos ou mais, o que faz desaparecer qualquer elemento de distração na água ou no céu - quanto maior a exposição, mais nítida é a fotografia." Pangolins in Crisis (Pangolins em Crise) por Brent Stirton arrebatou o prêmio na categoria 'Mundo Natural e Vida Selvagem'. "Os pangolins são os mamíferos mais traficados do mundo. Nos últimos dez anos, estima-se que 1 milhão foram levados ilegalmente para a Ásia. Meu trabalho lança luz sobre esse comércio, enquanto explora aspectos da ilegalidade e celebra as pessoas que estão tentando salvar esses animais." O vencedor da categoria 'Retrato', Cesar Dezfuli, fotografou pessoas resgatadas de um bote inflável à deriva no Mar Mediterrâneo para a série Passengers (Passageiros). "O barco partiu algumas horas antes da Líbia. Na tentativa de dar um rosto humano a esse evento, fotografei os passageiros minutos após o resgate. Os rostos, a aparência e as marcas em seus corpos refletiam o humor e o estado físico. eles estavam em uma jornada que já havia marcado suas vidas para sempre." Os lutadores senegaleses deram a Angel Lopez Soto o prêmio principal na categoria 'Esporte'. "As lutas são conhecidas por atrair um público de cerca de 50 mil pessoas em um estádio. Para muitos, faz parte da vida, tradição e cultura africanas, na qual há uma mistura de crenças animistas e muçulmanas". O vencedor da categoria 'Natureza Morta' foi Alessandro Gandolfi com sua série Immortality Inc. (Imortalidade Inc.). "O homem pode realmente se tornar imortal? Poucos realmente acreditam nisso, e, portanto, a pesquisa se concentrou na conservação de criogenia, hibridização homem-máquina e downloads de mentes", diz Gandolfi. Todas as fotografias são cortesia do Sony World Photography Awards 2020.
2020-06-10
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52997347
cultura
De Stonehenge à morte de Cleópatra, as pistas sobre os maiores mistérios da história
A Guerra de Troia ocorreu de fato ou é uma ficção? O que aconteceu com o corpo de Jesus? Onde a pioneira da aviação Amelia Earhart passou seus últimos e trágicos momentos? Estes são alguns dos muitos mistérios da história, perguntas que herdamos de geração em geração, e que nunca deixaram de nos intrigar. Para comemorar seus 20 anos de existência, a revista BBC HistoryExtra convidou 20 especialistas para escrever sobre alguns dos maiores mistérios da história. Confira o resultado de alguns deles abaixo. A trágica história de amor entre Marco Antonio e Cleópatra cativou o mundo por séculos. O general romano, devastado pela dor e vergonha após sua derrota na Batalha de Actium (31 a.C.) pelas mãos de seu inimigo Augusto, acabou se jogando sobre a própria espada ao receber falsas informações de que a rainha do Egito também havia morrido. No entanto, Cleópatra ainda estava viva: ela se escondera em seu túmulo, para onde Antonio foi levado após se ferir com a espada — ele finalmente teria sucumbido aos ferimentos abraçado nos braços da amante. Em vez de cair sob o domínio romano, Cleópatra, cercada por suntuosas pérolas, ouro, prata e inúmeros tesouros egípcios, cometeu suicídio em 12 de agosto de 30 a.C., possivelmente pela picada de uma cobra. Cleópatra tinha 39 anos. Seu corpo foi mumificado e, por ordem do imperador Augusto, enterrado ao lado de Antonio. Cerca de 16 séculos depois, William Shakespeare escreveu na peça Antonio e Cleopatra: "Nenhuma sepultura na Terra trará um casal tão famoso". No entanto, a localização do túmulo de Cleópatra é um enigma há centenas de anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Se fosse tão grandioso como dizem os romanos, o túmulo deveria ter deixado sua marca na arqueologia de Alexandria, a grande capital de Cleópatra. Mas nenhum rastro dele foi encontrado. Alexandria e seus arredores geralmente atraíram menos atenção do que os locais mais antigos ao longo do rio Nilo, e a própria cidade se tornou cada vez mais difícil de escavar. Hoje, a maior parte da antiga Alexandria está submersa em cerca de 6 metros de água. No entanto, em 2006, Zahi Hawass, então secretário-geral do Conselho Supremo de Antiguidades do Egito, anunciou que o túmulo de Cleópatra havia sido localizado em um templo em ruínas dedicado a Osíris (a divindade da morte e da ressurreição), próximo à cidade de Taposiris Magna, a 48 quilômetros a oeste de Alexandria. Mais tarde, Hawass negou ter feito o anúncio. A arqueóloga Kathleen Martínez recebeu permissão para escavar o templo antigo, mas, após uma década de escavações e centenas de achados menores, um túmulo secreto não foi encontrado. Martínez, no entanto, continua convencida de que o corpo de Cleópatra está lá. Se a tumba de Cleópatra for descoberta, o mundo da arqueologia vai tremer. O achado seria mais importante do que a descoberta dos restos mortais de Tutankamon (ocorrida no início do século 20). O problema é que, quando os arqueólogos depositam suas esperanças em referências textuais fugazes, criadas por historiadores romanos hostis a Cleópatra, os resultados têm sido inevitavelmente decepcionantes. Por Lloyd Llewellyn-Jone, que é professor de História Antiga na Universidade de Cardiff. Na ausência das multidões de turistas, posso apreciar a majestade tranquila de Stonehenge, monumento pré-histórico encontrado na Inglaterra. Faz 40 anos desde que eu executei uma escavação por lá. Nesse período, aprendemos mais sobre o monumento e as pessoas que o construíram do que eu imaginava ser possível. Mas podemos finalmente dizer por que Stonehenge foi construído? Eu diria que não. Quanto mais aprendemos, maior o mistério. Construímos nossa imagem do passado antigo a partir de coisas que descobrimos e de coisas que imaginamos. A pesquisa histórica, que não encontrou nenhum registro da construção de Stonehenge, procurou fixar a construção em povos antigos conhecidos de outros países — gregos, romanos e dinamarqueses do início da Idade Média. Tal especulação foi dinamitada em 1901, quando a primeira escavação científica no local não mostrou nada que não fosse reconhecido como ferramentas e escombros de britânicos pré-históricos. Stonehenge foi uma criação dos povos indígenas neolíticos. A discussão passou então de quem a construiu a que tipo de sociedade era responsável por ela. Stonehenge era o símbolo supremo de uma cultura já sofisticada, talvez, onde os grandes monumentos eram expressões de status, poder e meios de controle? Ou era um ponto focal em um mundo igualitário que precisava de lugares espaçosos para as pessoas se reunirem para trocar, socializar e participar de rituais e cerimônias comunitárias? Os avanços na arqueologia mudaram o equilíbrio da pesquisa em grande parte a favor da evidência das coisas que descobrimos. Com novas tecnologias científicas, mais escavações e mais arqueólogos fazendo mais perguntas, agora temos significativamente mais dados do que poderíamos imaginar 40 anos atrás. No entanto, ainda não podemos responder à pergunta: por que Stonehenge existe? De fato, muito pelo contrário. Quanto mais descobrimos, mais percebemos que o monumento é uma incrível execução técnica, mas é francamente estranho. "Que ótimo!", escreveu Richard Colt Hoare, antiquário e arqueólogo britânico, quando estava olhando para Stonehenge em 1810. "Que maravilha! Que incompreensibilidade!" Uma das grandes realizações da arqueologia nos últimos dois séculos foi provar que Hoare estava certo: Stonehenge é verdadeiramente incompreensível. Por Mike Pitts, arqueólogo e escritor. Eles são o equivalente japonês das pirâmides do Egito: enormes "túmulos antigos", ou kofun em japonês, construídos por centenas de trabalhadores. Os primeiros pequenos exemplares começaram a aparecer em todo o Japão por volta de 250 d.C. As câmaras eram enterradas no chão, depois cercadas com pedra e, finalmente, o topo era fechado para criar um grande monte. No século 5, foram construídos kofun com centenas de metros de largura e comprimento. Mas nós não sabemos muito sobre o kofun. O design básico veio da península coreana, assim como de muitos outros elementos da cultura japonesa que têm raízes na Ásia continental, desde o cultivo de arroz e o trabalho em bronze até um sistema de escrita, música, dança, budismo e roupas finas. Dentro de cada um dos kofun que foram escavados até agora, os arqueólogos geralmente encontraram um caixão de madeira enterrado ao lado de objetos preciosos, variando de espelhos de bronze a armaduras de ferro e espadas finamente forjadas. Do lado de fora, nas encostas dos montes, as pessoas às vezes colocavam figuras de terracota como marcadores de limites. Conhecida como haniwa, seus projetos podem ser incrivelmente complexos, incluindo dançarinos, xamãs, guerreiros, cavalos, navios e pássaros. No entanto, o que não sabemos sobre o maior desses túmulos, o Daisen Kofun, é a resposta para a pergunta mais importante de todas: quem está dentro dos túmulos? Este kofun, localizado na atual Osaka, foi construído no século 5. Incorporando três fossos, tem quase meio quilômetro de comprimento, 300 metros de largura e mais de 30 metros de altura; de fato, esse kofun em particular é tão grande que sua forma de buraco da fechadura só pode ser totalmente apreciadas do alto. Diante de tudo isso, podemos ter muita certeza de que quem foi sepultado ali não era uma pessoa comum. Mas no Japão é proibido escavar qualquer kofun de um certo tamanho e criado na forma de um buraco de fechadura, pois acredita-se que esses são os locais de descanso não apenas dos grandes reis, mas também dos imperadores divinos. Se aventurar nessas câmaras funerárias seria um sacrilégio, não? Esses kofun espetaculares são, talvez, mistérios necessários: abri-los significa o risco de encontrar algo interior que questione a história da monarquia mais antiga do mundo. É também um risco que os supervisores de tumbas, a Imperial Household Agency, simplesmente não conseguem se dar ao luxo de assumir. Por Christopher Harding, professor sênior de história asiática na Universidade de Edimburgo. Se folheasse o antigo pergaminho do manuscrito Voynich, você leria página após página de um texto incompreensível. O volume é escrito inteiramente em um idioma ou código que ninguém ainda conseguiu identificar, acompanhado por uma série de ilustrações vívidas e sedutoras. Além de não decodificar o conteúdo do manuscrito, os estudiosos também não sabem quem o criou, ou por que escolheram torná-lo aparentemente indecifrável. O pergaminho que compõe o manuscrito data do século 15 e provavelmente foi produzido na Europa central no final do século 15 ou 16. Como não conseguimos entender o texto, as ilustrações são a melhor indicação do conteúdo do manuscrito. Aparentemente, inclui material médico e científico, com páginas dedicadas às propriedades medicinais das plantas, bem como às substâncias farmacêuticas que podem ser derivadas delas, uma seção sobre astrologia e astronomia e um segmento que pode (ou não) listar receitas. No entanto, parte do material visual é muito difícil de interpretar. Uma sequência de ilustrações mostra figuras femininas nuas reclinadas em água ou outro fluido, cercadas por sistemas de tubulação. Será que eles literalmente mostram os benefícios terapêuticos do banho ou serão alegóricos? À luz das ilustrações, o próprio texto pode estar relacionado ao aproveitamento dos poderes da natureza e do cosmos, potencialmente por meio de processos mágicos e alquímicos: essas ideias ganharam grande fama na Europa naquele era, mas as experiências eram realizadas clandestinamente. O compilador de manuscritos provavelmente queria manter esse conhecimento em segredo, tanto para impedir que outros se apropriassem do material quanto porque a igreja e as autoridades seculares desaprovavam a alquimia e a magia. O manuscrito estava na corte de uma pessoa fascinada por alquimia e magia, Rodolfo II do Sacro Império Romano-Germânico (1552-1612). Rodolfo pode muito bem ter adquirido o manuscrito do astrólogo inglês John Dee (1527-1608), que compartilhava seu interesse pelo ocultismo. Ainda que os historiadores tenham descoberto muitas das complexidades do fascínio furtivo das pessoas por magia durante os séculos 15 e 16, o conteúdo do manuscrito de Voynich permanece um enigma. O texto provavelmente está escrito em código, com palavras em um idioma ainda não identificado reconfigurado em um único alfabeto, com complexidades adicionais para tornar o quebra-cabeça ainda mais difícil de decifrar. Ao longo dos anos, muitos pesquisadores tentaram decifrar o texto. O trabalho da equipe americana de criptoanalistas William e Elizabeth Friedman é particularmente notável. Junto com seu trabalho vital de quebra de código durante a Segunda Guerra Mundial, os Friedmans aplicaram sua experiência ao manuscrito de Voynich e continuaram a estudá-lo na década de 1950. No entanto, nem suas mentes brilhantes conseguiram decifrar o código. Esperamos que chegue o dia em que um dos pesquisadores que estudam cuidadosamente o manuscrito finalmente descubra seus segredos. Por Elma Brenner, especialista medieval na Coleção Wellcome. No final da Idade Média, o Mali se tornou o mais formidável império da África Subsaariana que o continente já havia visto. Ele era mais rico do que qualquer outro Estado africano, e com ligações comerciais e culturais que o conectava a muitos dos principais centros do mundo medieval. Foi realmente incrível. O império atingiu seu auge no século 14. Foi durante essa época que Abu Bakr Keita, o último imperador da dinastia fundadora, subiu ao trono do Mali. No entanto, o novo imperador enfrentou um desafio sem precedentes: ele era tão ambicioso quanto seus ancestrais, mas seu reino era limitado pelo implacável deserto do Saara de um lado e pelo Oceano Atlântico do outro, deixando poucas oportunidades de expansão. Mansa Musa, que serviu como conselheiro e aparente herdeiro de Abu Bakr, observou que o desejo do imperador de expandir seu reino cresceu com o tempo, até que se tornou uma obsessão. No início de seu reinado, Abu Bakr patrocinou uma tentativa ousada de atravessar o Oceano Atlântico, financiando a construção de uma grande marinha, com centenas de barcos. Quando a frota ficou completa, ele se despediu de seus almirantes, dizendo a seus capitães para não voltarem para a costa do Mali até que tivessem navegado com sucesso até os confins do Atlântico. Quando apenas um barco conseguiu voltar para casa, ele se arrependeu do que foi dito. Mas não desistiu. Deixando seu tenente de confiança, Mansa Musa, encarregado da administração de seu império, em 1312, ele tentou novamente. Dessa vez, ele liderou pessoalmente a expedição e partiu com uma armada ainda maior de milhares de barcos totalmente carregados. Nem o imperador nem seus navios foram vistos novamente. Muitos ainda acreditam que ele cruzou o Atlântico com sucesso para fundar um novo Estado do Mali, mas, além de um punhado de belas canções que lembram a jornada, não há evidências concretas de que isso ocorreu de fato. Embora possamos não saber definitivamente o que aconteceu com a frota de Abu Bakr, o legado de sua ambição desenfreada mudou a natureza do projeto imperial do Mali. Mansa Musa, que o sucedeu, não compartilhou a fixação de Abu Bakr com o crescimento do império adquirindo novas terras, construindo um forte exército e fortalecendo associações comerciais. Seu tempo foi gasto superando um tipo diferente de limite. Na cidade de Timbuktu, no Mali, Mansa Musa defendeu um projeto inspirado no espírito empreendedor de seu antecessor: decidiu construir o maior centro de pesquisa intelectual que o mundo já havia visto. Os dois homens tentaram alterar o senso de identidade do Mali, mas a resposta quanto a se Abu Bakr teve sucesso é, sem dúvida, encontrar sua frota perdida. Por Gus Casely-Hayford, historiador cultural e diretor do museu V&A East, com abertura prevista para 2023.
2020-06-07
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-52929748
cultura
Quanto vale Carmen Miranda? Leilão com raridades da estrela tem lances baixos e domínio de estrangeiros
*Atualização (23h14 de 03/06): a versão original do texto foi alterada para incluir novo título e trecho com a informação de que houve participação de um empresário brasileiro. "Estou sem fôlego", disse Carmen Miranda após ajoelhar-se por um segundo enquanto dançava com Jimmy Durante no programa da NBC 'The Jimmy Durante Show', em 4 de agosto de 1955. Ela ergueu-se sorrindo, mas poucas horas depois, em sua casa em Beverly Hills, a famosa estrela da música brasileira morreu, aos 46 anos, de um ataque cardíaco. O robe de seda cor de rosa que ela vestia em sua última noite foi leiloado na terça-feira (02/6), pelo equivalente a R$ 3 mil reais. O primeiro contrato que a levou aos Estados Unidos, assinado a bordo do navio Normandie pelo produtor da Broadway Lee Schubert, em 27 de março de 1939, também foi arrematado: R$ 5 mil. A venda de maior valor foi uma foto com dedicatória da cantora tirada em 1930. Custou R$ 12,7 mil. Mais curioso do que o investidor Haroldo Coronel leiloar 419 itens de sua coleção é o fato de os órgãos de cultura brasileiros nunca terem se interessado em adquirir os objetos pessoais, chapéus, vestidos, joias, correspondências, documentos e fotos da brasileira mais famosa do mundo no século passado. Nenhuma instituição nacional participou do leilão online, realizado pelo Soraia Cals Escritório de Arte. Um dos principais compradores foi o Academy Museum, de Los Angeles, museu da Academy Awards que obteve US$ 388 milhões em doações e terá seis andares dedicados à história do cinema. Tom Hanks anunciou, durante a última cerimônia do Oscar, que ele será aberto ao público no dia 14 de dezembro: "Há muita cultura na Cidade dos Anjos, mas nunca houve um museu sobre a arte e a ciência dos filmes", disse o ator, um dos curadores. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com 10 milhões de discos vendidos, Miranda gravou quase 300 músicas no Brasil e foi a mulher mais bem remunerada dos Estados Unidos nos anos 1940. Tem uma estrela na Calçada da Fama e seu autógrafo, pés e mãos gravados no Pátio das Estrelas, em Hollywood. Símbolo de carisma e alegria, a superstar de 14 filmes americanos tornou-se a imagem mais poderosa do Brasil no exterior. Nascida em Portugal e criada no Brasil desde os 10 meses, a "Pequena Notável" de 1,52m de altura - conhecida no exterior como "Brazilian bombshell" - tem sua memória mais bem preservada na pequena cidade natal, para onde nunca voltou, do que no Rio de Janeiro, onde conquistou fama e fortuna na década de 1930. Enquanto em Marco de Canaveses, distrito do Porto onde vivem 10 mil pessoas, estão investindo 1,1 milhão de euros na expansão do Museu Municipal Carmen Miranda, o museu inaugurado no Rio em sua homenagem em 1976 - 20 anos após ser anunciado pelo então prefeito Francisco Negrão de Lima - está fechado. "Quando, em 1998, estive lá para coletar material para minha pesquisa, só existiam alguns de seus trajes e escassos recortes de jornais. Era melancólico o abandono em que se encontrava o acervo. O museu parece nunca ter existido de fato", disse Tânia da Costa Garcia, professora de História da América na Universidade Estadual Paulista, pós-doutora pelo King's College London e autora do livro O It Verde e Amarelo de Carmen Miranda. Uma parte do acervo do museu carioca desapareceu enquanto ficou guardado nos porões da rádio Roquette Pinto. E a construção da nova sede do Museu da Imagem e do Som (MIS), na praia de Copacabana, para onde mais de 3 mil itens devem ser transferidos, continua parada. O novo MIS deveria ter ficado pronto em 2012. A historiadora Clara Paulino, presidente do MIS, escreveu um e-mail para Coronel assim que soube do leilão online. Disse que a instituição estava interessada, mas que "não dispõe de recursos financeiros para arrematar tais itens". "Não se investe em cultura no Brasil, e os atuais governantes não sabem o que é a cultura brasileira. Essa coleção é o investimento de uma vida inteira, como eu poderia doá-la para que fique abandonada como todo o resto?", indaga Coronel, que vive em Buenos Aires e conta ter gastado pelo menos US$ 60 mil para adquirir as peças do viúvo de Miranda, o americano David Sebastian, nos anos 1980. Entre os itens vendidos no leilão, há relíquias da passagem de Miranda pela Inglaterra, quando fez temporada de sucesso no London Palladium após desembarcar no porto de South Hampton, em 21 de abril de 1948. Além do bracelete de cobre que ela usou em uma gravação na BBC, arrematado por R$ 1,5 mil, foram vendidas imagens raras na igreja de Weston Turville, do dia 1 de maio daquele ano, durante a celebração do May Day - a cantora foi coroada May Queen e brincou de Maypole com crianças. Em duas apresentações diárias durante um mês, Miranda encantou os ingleses. Nos arquivos da British Pathé há uma entrevista gravada no camarim do Palladium. Ela conta que a inspiração para os chapéus de bananas, principal marca do seu figurino tropical, veio das baianas que carregam cestas de frutas na cabeça. O repórter John Parsons perguntou o que ela guardava sob o turbante. "Você não acredita que eu tenho cabelo, acredita?", responde, sorrindo como sempre, antes de tirar o adereço. "É o meu próprio cabelo. Gosto muito dele. Mas esta não é minha cor natural, eles o descoloriram em Hollywood", disse com sua habitual sinceridade. Nos Estados Unidos, Miranda fez sucesso interpretando personagens que representavam estereótipos da mulher latino-americana - o que fez a estrela receber uma infinidade de críticas severas no Brasil. Ruy Castro lembra na biografia Carmen, publicada pela Companhia das Letras em 2005, que Antonio Moniz Vianna chegou a definir a cantora, no jornal Correio da Manhã, como "acafajestada, que já não sabe cantar, falar ou andar", após assistir a Se eu fosse feliz (1946). O Globo a desqualificou pelo que chamou de "macaquices". Ela passou 14 anos sem pôr os pés no Brasil. "Apesar da Carmen Miranda made in Hollywood ser muito diferente da intérprete dos anos de 1930 - quando ainda não vestia o traje da baiana e cantava com picardia sambas e marchinhas de grandes compositores como Ary Barroso e Assis Valente -, foi a baiana estilizada que interpreta um mix de samba com rumba, mais ao gosto do público estrangeiro, que permaneceu no imaginário nacional e internacional. Contraditoriamente, Carmen deve a Hollywood sua imortalidade", afirma a historiadora Tânia da Costa Garcia. Longe de seus súditos e de seus críticos brasileiros, viciou-se em pílulas para dormir e mais pílulas para se manter acordada, até que seu corpo entrou em colapso naquela noite de agosto de 1955. O corpo de Miranda foi velado na Cinelândia, no palácio Pedro Ernesto. O velório e o enterro foram vistos por cerca de 500 mil pessoas - quase 25% dos 2,3 milhões de moradores da cidade à época. Até hoje, mulheres e homens se fantasiam de Carmen Miranda no Carnaval. Sem interesse do governo federal na coleção de Coronel - a extinção do Ministério da Cultura foi uma das primeiras medidas do presidente Jair Bolsonaro -, e tampouco do governo estadual do Rio, muitos itens da coleção sairão do país para sempre. "Estamos vivendo uma demolição cultural do país. O descaso é total", afirma Coronel. Além do Academy Museum, o museu dedicado a Carmen Miranda em Portugal também foi um dos compradores. Fã da cantora, o bilionário brasileiro Lírio Parisotto anunciou em sua página no Instagram que comprou 40 itens, entre fotos autografadas, uma bolsa e um sapato de couro. Tudo irá para um centro de memória na sede de sua empresa, em Barueri, na região metropolitana de São Paulo. Especialistas em leilões de arte, Soraia Cals e sua filha, Marcella Cals, não divulgam os compradores por sigilo contratual. "Vendemos 80% dos lotes. É uma grande homenagem a Carmen Miranda. São muitos itens raros e inéditos, dignos de estarem nos melhores museus do mundo", diz Marcella Cals. Coronel ficou amigo do viúvo de Miranda quando morou em Los Angeles, onde estudou cinema na juventude. "Eu pagava a Universidade da Califórnia mês sim e mês não", diverte-se. Ficava devendo a mensalidade para comprar novas peças de Sebastian, um americano mal visto pela família e pelos amigos de Miranda. Coronel o defende: "Ninguém ouviu a versão dele. Diziam que casou com Carmen por interesse na fortuna, que ela se perdeu por ser infeliz no casamento. Chegaram a culpá-lo pela morte dela. Quando o conheci, ele ainda sofria por isso". Ele se diz satisfeito por vender cerca de metade de sua coleção. "Tenho sido o guardião do tesouro da Carmen, mas já tenho 62 anos, não sei o que pode acontecer amanhã", afirma. "Chegou a hora de passar isso adiante para preservar a memória da estrela mais brilhante do Brasil."
2020-06-03
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52914685
cultura
Os truques do entretenimento - e do nosso corpo - que nos fazem maratonar séries na quarentena
Você já assistiu ao documentário Tiger King na Netflix? Sacrificou seu sono só para descobrir quem era o culpado na sua série de assassinato favorita? Ficou sentado no sofá o dia todo, sem se mexer, completamente sugado pelo programa de TV de que todo o mundo está falando? Bem, você não está sozinho, especialmente agora, com milhões de pessoas em todo o mundo confinadas por causa da pandemia de covid-19. Os gigantes de streaming estão recebendo um número recorde de novos assinantes. A Netflix registrou 16 milhões de assinantes no primeiro trimestre de 2020. E, mesmo antes disso, maratonar já era comum. Por exemplo, no Reino Unido, metade da população admitiu assistir a oito horas de um programa de TV de uma só vez, de acordo com uma pesquisa do The Radio Times. Se isso soa familiar, é possível que você também sinta culpa. Se for o caso, continue lendo: isso pode fazer você se sentir um pouco melhor com seus hábitos de maratonar programas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Assistir compulsivamente não é só culpa sua. Muitas das nossas plataformas de streaming favoritas adotam técnicas sutis para te manter assistindo sem parar. "Posso assistir facilmente a uma série inteira em um único dia", confessa o crítico e radialista Scott Bryan. Mas ele diz que a tendência de maratonar começou por acaso e nasceu dos consumidores. "A Netflix percebeu que muitas pessoas estavam vendo programas a granel, mesmo programas que elas já tinham visto, como Friends... A maneira como a Netflix tenta te incentivar a assistir em maratona é muito sutil e eles usam truques. Eles trabalham muito rapidamente para identificar quando um programa é lançado se ele está tendo sucesso e por quê. Além disso, no final de um episódio, eles deixam os créditos no cantinho e logo carregam automaticamente o próximo episódio. É assim que às vezes você é sugado para assistir a um programa por três horas sem nem perceber." Você percebe que a maioria das grandes empresas está criando programas pensados para serem vistos compulsivamente? Scott diz que a Netflix se destaca porque "testam muitas possibilidades de número de personagens e de números de arcos da história". Ele usa a popular série da empresa Orange is the New Black como exemplo. Eles sabem que "você nunca vai pegar um programa no meio do caminho, você começará do começo, por isso tem um elenco de cerca de 40 personagens. É possível ter esse nível de profundidade em uma série de oito horas, mais do que seria se tudo fosse separado em pedaços de 60 minutos transmitidos em uma emissora comum". Alguns especialistas dizem que assistir muita TV pode causar ansiedade e aumentar a depressão. Em 2016, cientistas do Japão chegaram ao ponto de dizer que isso poderia matar, alegando que ficar sentado por longos períodos de tempo poderia levar a coágulos sanguíneos. A psicoterapeuta Hamira Riaz diz que assistir a programas consecutivos pode afetar nosso sistema nervoso, com um impacto negativo no sono. "Assistir compulsivamente significa que você está se mantendo ativo por períodos muito longos. Levará mais tempo para você se livrar disso", diz ela. Portanto, conteúdos fortes, como um assassinato horrível, especialmente se envolver a morte de seu personagem favorito, "podem acionar o sistema nervoso simpático", o que Riaz conclui que "não seria propício para uma boa noite de sono". Então, o que nos faz voltar a esse comportamento repetidamente? "Quando nos identificamos com um personagem, isso leva à liberação do hormônio do amor oxitocina, cria um vínculo", explica Riaz. "Há tanto conteúdo agora que você poderá encontrar pelo menos um personagem em uma série de TV ou filme com a qual possa se conectar". Tomemos, por exemplo, Love Island, uma série imensamente popular sobre jovens solteiros e bonitos tentando encontrar "a pessoa certa" enquanto passam por uma série de testes. Depois que o programa começou a ser exibido, em 2019, houve um salto de 41% no número de casais no Reino Unido que procuravam aconselhamento. Riaz acha que tem coisa aí. "Se estamos assistindo a uma série de ponta a ponta, estamos potencialmente criando horas de espaço para trabalhar nossas emoções e relacionamentos", diz ela. Muitas pessoas têm fortes reações emocionais aos programas que amam, especialmente se algo chocante acontecer com o seu personagem favorito. "Nossos cérebros não discriminam entre ativação real e ativação devido a eventos imaginados", explica Riaz. Outro motivo para maratonar é a sensação de estarmos participando de uma conversa, especialmente durante a quarentena,quando há muito pouca coisa para fazer. "Assisti a dez horas de televisão em um dia e nem gostei", confessa Brian Lobel, criador do programa de arte interativo Binge. "Queremos fazer parte de conversas públicas", diz ele. "Compulsão é uma palavra que tem conotações muito negativas, não é?", diz Brian. "Descobri que as pessoas ficam profundamente envergonhadas com o quanto assistem TV. Sentimos vergonha de não ser produtivos e tirar uma folga e dizer: 'Na verdade, vi seis horas de televisão hoje porque precisava não olhar para cinco abas diferentes no computador do trabalho, precisava parar". Portanto, se você é uma das milhões de pessoas que assistirão a uma série inteira logo após ler isso, Brian o incentiva a não se sentir culpado. "Não dizemos 'maratonei um livro'. Mas a realidade é que alguns dos maiores escritores de nossa geração estão escrevendo para a televisão. Eu seria a última pessoa a dizer para você parar de maratonar", proclama com um sorriso largo e amplo. Então, se você quiser, saboreie cada minuto... hora... ou dia. Aproveite!
2020-05-31
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52748213
cultura
Picasso por 100 euros: a mulher que ganhou quadro de R$ 6,1 milhões em rifa
Uma italiana ganhou uma pintura de Pablo Picasso avaliada em US$ 1,1 milhão (R$ 6,1 milhões) depois de receber o bilhete premiado de uma rifa de presente. O bilhete foi sorteado durante uma transmissão ao vivo na quarta-feira (20/5), na casa de leilões Christie's, em Paris. O evento, cujo objetivo era arrecadar fundos para a organização Care, já tinha sido adiado duas vezes. Na primeira, para vender mais bilhetes, e depois devido a restrições por conta da pandemia de covid-19. O quadro sorteado, Natureza morta, foi pintado por Pablo Picasso em 1921. É uma obra de arte relativamente pequena — com medidas 23x46 cm — que mostra um copo de absinto e um jornal sobre uma mesa. No total, foram arrecadados cerca de US$ 5,6 milhões (R$ 31,3 milhões) com a venda de 51 mil bilhetes, a US$ 109 cada (R$ 610). Cerca de 29% das rifas foram vendidas na França, seguida por Estados Unidos e Suíça na lista de países com mais participantes. Os organizadores dizem que US$ 4,6 milhões (R$ 25,7 milhões) do dinheiro arrecadado serão destinados a projetos para levar água potável a escolas e cidades de Madagascar, Marrocos e Camarões. David Nahmad, o bilionário que cedeu a pintura de Picasso, receberá cerca de US$ 980 mil (R$ 5,5 milhões). O colecionador de Mônaco, dono de 300 obras do artista espanhol, também doou US$ 109 mil (R$ 610 mil) à Care. "Picasso teria adorado uma operação como essa porque era alguém com grande interesse em causas sociais e humanitárias", disse à agência Reuters Peri Cochin, organizadora do sorteio. "A crise do coronavírus deixou claro o quanto é importante lavar as mãos, e isso só pode ser feito com água limpa".
2020-05-25
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52762015
cultura
Os 13 livros e as séries que Bill Gates recomenda para 'escapar' de realidade da pandemia
"Um bom livro é a minha maneira favorita de desconectar no final do dia, e eu sei que não estou sozinho." A declaração é de Bill Gates, em sua já clássica lista anual de cinco recomendações de leitura para o início do verão no hemisfério norte. "A maioria das minhas conversas e reuniões nos dias de hoje é sobre a covid-19 e como podemos conter a pandemia", escreveu o co-fundador da Microsoft em seu blog, Gates Notes. "Mas também me perguntam frequentemente o que estou lendo e vendo, seja porque as pessoas querem aprender mais sobre pandemias ou porque procuram uma distração", acrescentou ele. Gates é considerado a segunda pessoa mais rica do mundo, com uma fortuna estimada de cerca de US$ 106 bilhões, segundo a revista americana Forbes. Jeff Bezos, fundador e CEO da Amazon, encabeça a lista. Dessa vez, o bilionário decidiu expandir a lista para 13 títulos, além de recomendações de séries de televisão, incluindo uma da BBC, um filme e até um jogo de cartas pelo qual é apaixonado, "seja porque você está procurando uma distração ou simplesmente porque passa muito mais tempo em casa" , disse. A seguir, as sugestões de Gates: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Livros: 1. The Choice (lançado no Brasil como A Bailarina de Auschwitz, pela editora Sextante), de Edith Eger: "Trata-se, em parte, de um livro de memórias da autora e um guia para processar o trauma" , diz Gates. 2. Cloud Atlas ( Atlas de Nuvens, ed. Companhia das Letras), de David Mitchell: é um romance do "melhor e ao pior da humanidade". 3. The Ride of a Lifetime, de Bob Iger, com "as lições aprendidas em 15 anos como CEO da The Walt Disney Company" (Iger passou o cargo para Bob Chapek em fevereiro passado), é o "melhor livro de negócios" que Gates leu nos últimos anos. 4. The Great Influenza, (A Grande Gripe, ed. Intrínseca) de John M. Barry: é um livro de história da pandemia da gripe espanhola de 1918. Apesar de transcorridos mais de 100 anos, "é um bom lembrete de que ainda estamos enfrentando muitos dos mesmos desafios ", diz Gates. 5. Good Economics for Hard Times, de Abhijit V. Banerjee e Esther Duflo: Os autores são, juntamente com Michael Kremer, os vencedores do Prêmio Nobel de Economia de 2019, e o livro trata de desigualdade e divisões políticas. 6. The Headspace Guide to Meditation and Mindfulness (O Guia Headspace para Meditação e Mindfulness, ed. BestSeller)de Andy Puddicombe: "Durante anos, eu era cético em relação à meditação. Agora faço sempre que posso", diz Gates em seu blog. 7. Moonwalking with Einstein (A Arte E A Ciência De Memorizar Tudo, ed. Nova Fronteira), de Joshua Foer: é um livro sobre como a memória funciona e técnicas para otimizá-la. 8. The Martian (Perdido em Marte, ed. Arqueiro), de Andy Weir: um romance que virou filme, estrelado pelo ator americano Matt Damon. Sua trama tem semelhanças com o tratamento do novo coronavírus, analisa Gates. 9. A Gentleman in Moscow (Um Cavalheiro em Moscou, ed. Intrínseca), de Amor Towles: romance sobre um homem que está trancado em seu prédio, "uma situação que agora parece muito parecida à que estamos vivendo", diz Gates. 10. The Rosie Trilogy, (dois livros da trilogia foram lançados no Brasil pela editora Record: O Projeto Rosie, O Efeito Rosie) de Graeme Simsion: Trilogia "para rir alto", descreve Gates. "O protagonista descobre que ele não é tão diferente dos outros. Melinda (Gates, mulher de Bill Gates) me recomendou, sou grato a ela por isso", assinala. 11. The Best We Could Do (O Melhor que Podíamos Fazer, ed. Nemo), de Thi Bui: é um "romance profundamente pessoal que explora o que significa ser pai e refugiado", diz Gates. 12. Hyperbole and a Half: Unfortunate Situations, Flawed Coping Mechanisms, Mayhem, and Other Things that Happened (Hyperbole and a half: Situações Lamentáveis, Caos e Outras Coisas que Me Aconteceram, ed. Planeta), de Allie Brosh: Esse é outro livro para rir muito. "Divertido e tremendamente inteligente", diz Gates sobre a obra, que destaca os contratempos da vida cotidiana. 13. What If?: Serious Scientific Answers to Absurd Hypothetical Questions (E Se? - Respostas científicas para perguntas absurdas, ed. Companhia das Letras) e XKCD Volume 0, ambos de Randall Munroe: "Este ex-engenheiro da Nasa transforma lições de ciência não convencionais em quadrinhos super atraentes", diz Gates. Embora a série de documentários tenha sido gravada antes do atual surto de coronavírus, Pandemic, da Netflix, dá "uma ideia do trabalho inspirador que médicos, pesquisadores e trabalhadores humanitários estão fazendo para evitar o que estamos passando no momento", diz Gates. Entre as séries de televisão, ele recomenda A Million Little Things (Um Milhão de Coisas), um drama familiar americano, This Is Us, sobre a vida familiar e as conexões de várias pessoas que compartilham o mesmo aniversário, e Ozark, outro drama americano sobre um esquema de lavagem de dinheiro. E entre as recomendações de Gates está uma série da BBC da década de 1970: I, Claudius, sobre o Império Romano. "Eu li muito sobre a Roma antiga, mas essa série parece uma representação interessante na época", acrescenta. E "na frente mais escapista" da realidade da pandemia, o filantropo recomenda um filme que diz ter visto mais de dez vezes: Spy Game (Jogo de Espiões), estrelado por Robert Redford e Brad Pitt. "Tem muitas boas surpresas", destaca. Por último, mas não menos importante, estão as dicas sobre passatempos favoritos. Bill Gates confessou várias vezes que seu jogo de cartas favorito é o bridge, que geralmente joga com seu amigo Warren Buffett, outra das pessoas mais ricas do mundo. Mas, como não podem se encontrar por causa da pandemia, os dois jogam por meio de uma plataforma online. Obviamente, Gates disse que não revelaria seus pseudônimos para manter a privacidade.
2020-05-22
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52758035
cultura
Cinemateca, para onde Bolsonaro quer enviar Regina Duarte, teve 113 mil DVDs danificados em enchente neste ano
A Cinemateca Brasileira, para onde o presidente Jair Bolsonaro quer enviar a atriz Regina Duarte, teve ao menos 113 mil cópias de DVDs danificadas em uma enchente que atingiu uma unidade da instituição em fevereiro deste ano. A BBC News Brasil pediu via Lei de Acesso à Informação a quantidade de itens danificados pela enchente que em 9 e 10 de fevereiro deste ano atingiu um galpão da Cinemateca na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo. Ali, há salas com parte do acervo da instituição, como cópias de longas e curtas-metragens de várias épocas. A Cinemateca é responsável por guardar, preservar e difundir a produção audiovisual brasileira. A Secretaria do Audiovisual respondeu que 113.917 DVDs da Programadora Brasil sofreram danos. A coleção foi criada entre 2007 e 2013 para difundir o cinema brasileiro em pontos de exibição fora do circuito comercial, como escolas e cineclubes. Na época, em 2007, custou R$ 1,2 milhão para ser implantada, com orçamento de R$ 1,5 milhão no ano seguinte. Foram danificados, por exemplo, 382 cópias de São Paulo, S/A (1965), de Luis Sérgio Person, 270 cópias de Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, 198 DVDs contendo O Homem do Sputnik (1959) e 250 cópias de Assim era a Atlântida (1975), ambos de Carlos Manga. Também foram danificadas 396 cópias de Os Óculos do Vovô, um filme mudo e o mais antigo de ficção brasileiro ainda preservado, de 1913. Cópias de obras mais recentes também sofreram danos: 178 DVDs de Durval Discos (2002), de Anna Muylaert, 50 de Houve uma Vez Dois Verões (2002), de Jorge Furtado, 98 de Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes, entre outros. A secretaria afirmou que, devido à pandemia do coronavírus, o processo de avaliação dos materiais danificados ainda estava em curso, "e mais detalhes dos materiais deteriorados demanda mais tempo e condições de trabalho que não coloquem em risco a saúde dos profissionais envolvidos". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na época da enchente, a Secretaria do Audiovisual não divulgou quais e quantos itens haviam sido danificados. Na resposta agora à BBC News Brasil, informa que a água com esgoto do rio Pinheiros atingiu cerca de "1,08 metros de altura no primeiro galpão e salas, afetando várias áreas". Essa unidade afetada pela enchente, na Vila Leopoldina, é um anexo da instituição. A sede principal da Cinemateca fica na Vila Clementino, zona sul de São Paulo. "O investimento do dinheiro público foi para a enchente", diz Ricardo Ohtake, diretor do Instituto Tomie Ohtake que dirigiu a instituição de 1992 a 1993, ao ser informado sobre os danos. "É uma bruta perda, perdemos cópias de 100 mil filmes que o público poderia estar vendo. Um produto pronto, na caixa, dentro de uma Cinemateca, sem ser usado para um trabalho de difusão do cinema brasileiro. É jogar comida fora." Nesta quarta (20/05), Bolsonaro anunciou o afastamento da atriz Regina Duarte do comando da Secretaria Especial de Cultura, e os dois comunicaram juntos que ela iria para a Cinemateca Brasileira. Questionada via assessoria de imprensa pela BBC News Brasil, a Secretaria Especial da Cultura afirmou que os materiais atingidos na enchentes "não danificaram os originais, apenas cópias, não causando prejuízo dos acervos". A Programadora Brasil é um catálogo que foi produzido pela Secretaria do Audiovisual, a Cinemateca e o Centro Técnico Audiovisual entre 2006 e 2013 para ser distribuído pelo país, criando uma espécie de rede alternativa de cinema. Consiste em um conjunto de 970 títulos de todas as regiões do Brasil, organizados em 295 DVDs com encartes. Alguns desses DVDs tiveram até quase mil cópias feitas. O objetivo do projeto era difundir o cinema brasileiro, distribuindo os DVDs desses filmes - documentários, animações, filmes experimentais e de ficção - a centros culturais, escolas, universidades, cineclubes, espaços administrados por prefeituras, entre outras. Segundo um relatório da Cinemateca de 2012, o projeto reuniu ao menos meio milhão de espectadores em sessões com títulos do seu catálogo. No final daquele ano, a Programadora Brasil contava com 1.848 pontos de exibição em mais de 850 municípios do país. O projeto, no entanto, foi interrompido em 2013. Segundo a resposta da Secretaria do Audiovisual ao pedido da BBC News Brasil via Lei de Acesso à Informação, todo o catálogo da Programadora Brasil guardado na unidade da Vila Leopoldina pela Cinemateca foi comprometido na enchente. Apesar de afirmar que 113 mil cópias de DVDs foram danificadas, os números na planilha enviada como resposta ao pedido somam, na verdade, 120.012 DVDs afetados. Os danos aos DVDs da Cinemateca em fevereiro deste ano ilustram o sucateamento da instituição para onde Regina Duarte será enviada. A Cinemateca sofre um desmonte desde 2013, quando a então ministra da Cultura, Marta Suplicy, exonerou Carlos Magalhães, que dirigia a instituição. Na época, uma auditoria fez paralisar os repasses à SAC (Sociedade Amigos da Cinemateca), organização que recebia repasses do governo por um convênio que previa gestão conjunta. Neste meio tempo, a Cinemateca passou meses sem diretor, funcionou em épocas com um quinto do número original de funcionários, teve o laboratório de imagem e som (que faz preservação e restauração) parado, funcionários sem salário e uma gestão organizada a partir de remendos. Quando ainda havia Ministério da Cultura, por exemplo, a pasta recorreu a convênios com organizações sociais ligadas a outros ministérios para gerir a Cinemateca, como a RNP (Rede Nacional de Ensino e Pesquisa), que tinha parcerias com o Ministério de Ciência e Tecnologia. No meio disso tudo, a Cinemateca foi alvo de um incêndio, em fevereiro de 2016. Segundo o site da instituição, o fogo destruiu 731 dos 44 mil títulos guardados na Cinemateca. Então, em 2018, durante a gestão de Sérgio Sá Leitão, ministro da Cultura do governo Michel Temer (PMDB), a administração da Cinemateca foi totalmente transferida para a Acerp (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto, que geriu a emissora pública TVE no Rio de Janeiro), em um ato que rompeu o vínculo direto com o governo federal. Em dezembro do ano passado, no entanto, o contrato da Acerp com o Ministério da Educação foi interrompido, deixando a Cinemateca gerida por uma organização social ligada ao governo apenas por meio de um contrato emergencial. Os signatários também reclamam da enchente que deteriorou o acervo da Cinemateca: "A Secretaria do Audiovisual se absteve de suas responsabilidades, não esclareceu eventuais perdas, nem adotou medidas para proteger as coleções em perigo". Quando anunciou a ida de Regina à Cinemateca nesta quarta, Bolsonaro disse que a instituição era ao lado do apartamento da atriz, em São Paulo, e que lá ela seria feliz. "Acabo de ganhar um presente, que é um sonho de qualquer pessoa de comunicação, de audiovisual, de cinema, de teatro… Um convite para fazer Cinemateca", disse Regina. "Ficar ali secretariando o governo dentro da Cultura na Cinemateca. Pode um presente melhor que esse? Obrigada, presidente", afirmou, dizendo que sentia falta da família, em São Paulo. Não está claro como será a ida de Regina Duarte à Cinemateca - se ela será indicada a um cargo de confiança ou se será contratada pela OS para gerir a Cinemateca. Organizações sociais são entidades privadas com autonomia administrativa que fazem acordos de gestão com governos, então a OS que gere a Cinemateca não precisaria contratar Regina, em teoria. "A saída da Secretária Especial da Cultura do cargo se dará em Diário Oficial da União. No momento ainda não há confirmação oficial de que posição ela irá assumir, na possível ida à Cinematéca (sic)", respondeu a Secretaria Especial da Cultura por meio de sua assessoria de imprensa. A pasta também informou que o processo de chamamento público que irá selecionar uma OS para manter e gerir a Cinemateca "encontra-se em andamento, finalizando a fase interna para publicação em breve" e que "ações nesse período serão atendimentos, no que couber, via contratos emergenciais, sem prejuízo ao acervo, bem como a continuidade de trabalho". A secretaria não respondeu sobre os prazos para tanto. A notícia da ida de Regina Duarte à Cinemateca pegou contratados e antigos gestores da instituição de surpresa. "Sem pensar muito, minha ideia inicial é que uma gestão de Regina Duarte à frente da Cinemateca não vai ser boa", diz Ohtake. "Eu não sei como vai ser com a Regina, mas se depender do Bolsonaro, vai ser absolutamente horroroso." Para o cineasta João Batista de Andrade, que assumiu interinamente a pasta da Cultura durante o governo Temer, Regina "não tem nada a ver com a Cinemateca". "Ela não entende nada do que é cinema, do que a Cinemateca faz, e não tem prestígio do próprio governo que ela representa", diz. "Vai fazer o que na Cinemateca, que está precisando de força? Ela não tem a menor força, nem perante o próprio governo. Regina e todos vão ser responsabilizados pelas perdas da Cinemateca nesse período. Por essa falência a que estão levando a Cinemateca."
2020-05-21
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52762444
cultura
De 'Malhação' à militância bolsonarista: quem é Mario Frias, cotado para substituir Regina Duarte no governo
Nome mais cotado para ser o novo secretário de Cultura do governo de Jair Bolsonaro após a saída de Regina Duarte, o ator Mario Frias ficou conhecido nos anos 1990 no seriado adolescente 'Malhação', da Rede Globo. Regina deixou o cargo na quarta (20/05), menos de três meses após ser nomeada. Ela saiu sob pressão da chamada "ala ideológica" do governo e após desgastes envolvendo nomes que escolheu para a pasta. Oficialmente, disse que pediu exoneração por sentir falta da família, que mora em São Paulo. Sem experiência política prévia, Frias entrou no radar bolsonarista quando foi um dos poucos ex-globais a defender Regina Duarte na época de sua nomeação - ele, inclusive, esteve na posse da atriz. Depois, em 6 de maio, em uma entrevista à CNN Brasil, o ator voltou a defender a atriz, mas se disse disponível para o cargo. "Olha só, para ser bem direto para o Jair: para o que ele precisar, estou aqui", afirmou. Na mesma entrevista o ator disse que quem assumisse teria que seguir a linha adotada pelo governo. "Se eu entrar numa novela e achar que tenho que fazer personagem engraçado, mas ele é dramático, alguém vai me corrigir. (Bolsonaro) quer ver a pasta numa direção e até agora não conseguiu." A entrevista rendeu um convite para um encontro com o presidente. Os dois se encontraram em um almoço em que também estavam presentes empresários do ramo esportivo, um dia antes do anúncio da saída da então secretária. Em suas redes sociais, o ator deixa bem claro que tem total afiliação a Bolsonaro. Seu perfil no Instagram, por exemplo, é cheio de postagens falando de política, que tiveram um aumento considerável nos últimos tempos. Antes cheia de fotos do ator trabalhando ou com a família, a página foi gradualmente sendo tomada por mensagens com defesa do governo, o que coincidiu com um aumento no número de seguidores - ele atingiu 200 mil em 5 de maio. Frias usa a hashtag #fechadocombolsonaro, compartilha vídeos do presidente falando e critica nomes que abandonaram o governo, como o ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro. "O ego está falando mais alto do que o próprio cargo", disse, sobre Moro. Em seu Instagram, também fez postagens defendendo o uso da cloroquina - remédio cuja eficácia contra o coronavírus não é comprovada - na epidemia de covid-19. Também já criticou a imprensa. Após sua entrevista à CNN Brasil, criticou o que chamou de "jornalismo sujo". Frias foi casado, de 2003 a 2005, com a atriz Nívea Stelmann, com quem teve um filho. Atualmente, está casado com Juliana Camatti, com quem também tem uma filha. Começou sua carreira na Rede Globo, em um seriado estrelado por Angélica. Logo depois, fez um de seus papéis papel mais conhecidos, como galã da novela adolescente Malhação entre 1999 e 2001. Na época, contou depois à Rede TV!, recebeu convites para posar nu, mas afirmou não ter cogitado "nem por um segundo". Na mesma entrevista afirmou que o dinheiro ganho com o sucesso naquela época foi a base de sua vida financeira durante muito tempo. Depois disso continuou atuando em outras produções da emissora. Teve papeis pequenos na minissérie O Quinto dos Infernos e nas novelas As Filhas da Mãe e Senhora do Destino - na qual interpretou um deputado corrupto. Faz também outras três participações em Malhação. Sem contrato de exclusividade com a Globo, também participou de novelas na TV Bandeirantes e na Record. Nos anos 2010, se tornou apresentador na RedeTV!, depois teve um programa no SBT. Seu último trabalho na televisão foi no ano passado, apresentando o programa A Melhor Viagem, na RedeTV!.
2020-05-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52748340
cultura
Noivado, casamento e divórcio: a curta trajetória de Regina Duarte na secretaria da Cultura
Regina Duarte anunciou a saída do cargo de secretária especial de Cultura no governo Bolsonaro nesta quarta-feira (20/05). Em vídeo publicado nas redes sociais do presidente, em que aparece ao lado da atriz, ela afirma que vai assumir a Cinemateca, em São Paulo. "A família está querendo minha proximidade, eu estou sentindo muita falta dos meus netos, dos meus filhos", justificou. "Ir pra Cinemateca, do lado do teu apartamento, ali em São Paulo, se você vai ser feliz e produzir muito mais, eu fico feliz com isso. Chateado porque você se afasta um pouco do convívio nosso em Brasília", afirmou o presidente. Os rumores de que Regina poderia sair do ministério se arrastavam desde o início do mês. O anúncio vem depois de uma série de desencontros: a atriz fez nomeações consideradas inadequadas ao perfil ideológico do governo e foi criticada pelo presidente pelos períodos que passou longe de Brasília. Sua ausência no discurso em que Bolsonaro se defendeu das acusações de Moro — e que teve a presença de quase todo o primeiro escalão do governo — foi muito notada. A BBC News Brasil relembra a curta trajetória da atriz na secretaria de Cultura. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Conhecida por sua carreira na televisão, Regina Duarte também começou a chamar atenção nas últimas décadas por seu posicionamento político de direita. Sua propaganda contra Lula na campanha de 2002 em que dizia "tenho medo" é lembrada até hoje. Ela também apoiou o impeachment de Dilma Rousseff em 2016. Casada durante anos com o pecuarista Eduardo Lippincott, com quem tem uma fazenda de criação de gado da raça Brahman no interior de São Paulo, a atriz também sempre foi próxima ao setor ruralista, um dos que apoiaram Bolsonaro durante a campanha de 2018. Ela inclusive já foi convidada para falar na ExpoAgro, um dos grandes eventos do setor, e demonstrou posições parecidas com as de Bolsonaro quanto à questão indígena, por exemplo, dizendo ser contrária à demarcação de terras. Nas eleições de 2018, a atriz começou a demonstrar simpatia à figura de Bolsonaro, citando-o diretamente. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em 2018, ela disse que Bolsonaro era um "cara doce". "Quando conheci o Bolsonaro pessoalmente, encontrei um cara doce, um homem dos anos 1950, como meu pai, e que faz brincadeiras homofóbicas, mas é da boca pra fora, um jeito masculino que vem desde Monteiro Lobato, que chamava o brasileiro de preguiçoso e que dizia que lugar de negro é na cozinha", disse. Na mesma entrevista, ela afirmou que a imagem de Bolsonaro como uma pessoa "truculenta" foi construída por seus opositores. "São imagens montadas, pois mostram a reação dele, mas não a de quem provocou a reação. É unilateral. Quando souberam que ele ia se candidatar, começaram a editar todas as gravações e também a provocá-lo para que reagisse a seu estilo, que é brincalhão, machão." A atriz também demonstrava afinidade ideológica com o governo. Em uma entrevista ao programa Conversa com Bial, da Rede Globo, por exemplo, ela afirmou nunca ter se declarado feminista, mesmo que entre suas interpretações mais famosas esteja a protagonista de Malu Mulher. A série da TV Globo, de 1980, contava a história de Malu, uma mulher essencialmente feminista e que se posicionava contra os valores morais da época. "Eu nunca me declarei feminista, mesmo fazendo a Malu. Eu não acho que as coisas são por aí. Acredito que há caminhos intermediários. Eu fui e continuo conservadora", disse. Em 2019, primeiro ano de governo do presidente, a atriz postou várias imagens no Instagram mostrando não só Bolsonaro, mas também o então ministro da Justiça Sergio Moro; e o ministro da Economia, Paulo Guedes; frases defendendo a Operação Lava Jato e ações do governo na segurança, economia e combate à corrupção; além de convocações para manifestações pró-governo. Regina Duarte foi nomeada para a secretaria de Cultura em março, após a queda do ex-secretário, Roberto Alvim, que havia feito diversas referências ao nazismo em um discurso — repetindo, inclusive, frases de Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda na Alemanha nazista. Embora se dissesse conservadora e de direita muito tempo antes de entrar para o governo, a atriz foi acusada por alguns bolsonaristas nas redes sociais de ser uma "espiã comunista" — eles não aprovavam seus laços com a Rede Globo (com a qual teve contrato por anos) e sua proximidade com a classe artística. Seu início não foi imediato — antes de assumir oficialmente como secretária especial de Cultura, passou por um período de "testes" que o presidente chamou de "noivado" com o governo. Durante o "noivado", Regina esteve acompanhada em Brasília do filho mais velho, André Duarte Franco, que se declarava bolsonarista convicto nas redes sociais e inclusive acompanhou a mãe em reuniões no Planalto. Na posse, Regina fez um discurso que falou em "carta branca" do governo para escolher equipe e diálogo. "Meu propósito aqui é de pacificação, diálogo permanente com o setor cultural, Estados e municípios, Parlamento e com os órgãos de controle", afirmou. A parte que mais repercutiu de seu discurso de 15 minutos foi o momento em que ela comparou a cultura ao "pum do palhaço". "[Cultura é] chimarrão, culto, missa das dez, desafio repentista, forró...E aquele pum produzido com talco espirrando do traseiro do palhaço... Fazendo a risadaria feliz da criançada? Cultura é assim, é feita de palhaçada!", disse ela. Apesar da promessa de carta branca, a secretária teve desgastes com o governo por nomeações que fez, com nomes que foram vistos com desconfiança por não se alinharem ideologicamente ao governo. A dificuldade em exonerar certos nomes também gerou atritos. Um deles foi o do maestro Flávio Mantovani, que presidia a Funarte, e que havia feito declarações ligando o rock ao aborto e ao satanismo. Ele foi exonerado no mesmo dia em que Regina tomou posse, mas foi reconduzido ao cargo no último dia 5 de maio, por decreto publicado do Diário Oficial. Sua renomeação, no entanto, não durou 24 horas: no mesmo dia, em edição extra do DO, ele foi novamente demitido. Outro nome foi do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, cujos posicionamentos como o de que "não existe racismo no Brasil" revoltaram o movimento negro. A Fundação Palmares tem como objetivo promover a cultura negra no país. Regina havia defendido, na posse, a demissão de Camargo. No entanto, ele continuou à frente da fundação, inclusive fazendo críticas públicas à Regina, a quem é subordinado, nas redes sociais. Chamou atenção a ausência da secretária em reunião onde Bolsonaro rebateu acusações feitas pelo ex-ministro Sergio Moro (e onde estava todo o primeiro escalão do governo). Regina Duarte fez vários elogios públicos a Moro desde o ápice da operação Lava Jato e era declaradamente apoiadora do ministro. "Juntos pelo Brasil", escreveu ela, em uma postagem que depois foi escondida de seus seguidores. Logo após o "iô-iô" com Mantovani gerar rumores de saída da secretária do governo, Bolsonaro convidou Regina para um encontro. A reunião, que deu certa sobrevida à permanência da atriz na secretaria, teve também a presença do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, ao qual a secretaria de cultura é subordinada — a pasta perdeu o status de ministério no governo Bolsonaro. No encontro também esteve presente Sergio Camargo, que depois disse à revista Veja que "se sentiu prestigiado". "Todo mundo sabe que a situação dela é delicada, mas nada disso passa por mim", afirmou ele à revista. Sua presença na reunião aumentou a percepção de que Camargo poderia ser um dos nomes cotados para substituir Regina na secretaria de Cultura, no entanto pouco tempo depois surgiu um novo candidato: o ator Mario Frias. Ex-galã da novela Malhação, Frias é atualmente o mais cotado para a vaga. Pouco tempo após o episódio, Regina deu uma entrevista para o canal CNN em que falou sobre a ditadura militar, minimizando os assassinatos e mortes que aconteceram durante o período e chegando a dar risada o falar sobre o assunto. "Cara, desculpa, eu vou falar uma coisa assim: na humanidade, não para de morrer. Você fala vida, do lado tem morte", disse ela. Quando o apresentou lembrou que houve tortura no período, ela respondeu: "tá bom, mas sempre houve tortura". Regina ainda cantou a marchinha "Pra Frente Brasil", símbolo do período, e disse "não era bom quando a gente cantava isso". Depois a secretária saiu no meio da entrevista, que era ao vivo. O episódio gerou uma enorme repercussão negativa, com artistas se posicionando contra ela nas redes sociais e uma assessora de imprensa da secretaria pedindo demissão. Menos de dez dias depois a atriz pediu demissão do cargo, dizendo que estava com saudade da família.
2020-05-20
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52568937
cultura
Vídeo, Ubuntu: o que significa essa filosofia africana e como pode nos ajudar nos desafios do hojeDuration, 6,04
Neste vídeo, Malu Cursino explica a origem da filosofia, que ganhou admiradores e adeptos nos quatro cantos do mundo, e o que ela tem a nos ensinar.
2020-05-19
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52721502
cultura
Ascensão da lenda Michael Jordan e bastidores do basquete dão popularidade a documentário The Last Dance
O mundo parece ter uma nova obsessão. Num flashback aos anos 90, o documentário da ESPN e da Netflix The Last Dance conta a história do Chicago Bulls e sua estrela Michael Jordan na busca pelo sexto título da NBA na temporada 1997-98, com imagens inéditas. A obsessão pode ser em parte sintomática da triste ausência de esportes reais em nossas vidas agora. Mas provavelmente também tem algo a ver com o fato de que esta série oferece uma visão fascinante de uma das maiores equipes esportivas de elite do mundo e, na figura de Jordan, um dos atletas mais emblemáticos. Aqui estão apenas algumas coisas que aprendemos. Seis títulos da NBA, All-Star 14 vezes, MVP da NBA cinco vezes (ambos são premiações por desempenho no time), medalhista de ouro olímpico duas vezes, criador da linha de tênis Air Jordan e do filme Space Jam. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Conhecemos Jordan agora como o rei do basquete, mas ele teve que trabalhar para isso. No início, ele não era nem o melhor jogador de sua família quando criança - na infância competia com seu irmão Larry. Foi também a rigidez de seu pai que o motivou a trabalhar duro. "Se você quiser fazer o Michael dar seu melhor por alguma coisa, diga que ele não pode fazer algo", diz o pai, James. Na Universidade da Carolina do Norte, ele não fez parte da equipe da faculdade em seu segundo ano, mas isso só o fez buscar mais. O ex-assistente de técnico da Universidade da Carolina do Norte, Roy Williams, diz que Jordan disse a ele: "Eu vou lhe mostrar - ninguém nunca vai se esforçar tanto quanto eu". Uma história de sua segunda temporada no Bulls ilustra sua ética de trabalho. Depois de ser nomeado Novato do Ano da NBA pela temporada 1984-85, Jordan quebrou o pé. Frustrado por ter sido deixado de lado, ele conseguiu voltar para a faculdade e lá, sem o conhecimento da gerência da equipe, começou a praticar sozinho. "Quando voltei ao Bulls, meus músculos da panturrilha na perna machucada estavam mais fortes do que os músculos da perna não lesionada", diz ele. O médico da equipe disse a ele que ele tinha 10% de chance de encerrar ali sua carreira se jogasse, mas Jordan pediu tanto que, eventualmente, a administração permitiu que ele jogasse por sete minutos por jogo, nos quais ele arrastava uma equipe bastante medíocre até que ela chegou aos play-offs. Em 1991, finalmente venceu seu inimigo, o Detroit Pistons, e levou o campeonato da NBA naquele ano contra o LA Lakers, de Johnson. Johnson diz que Jordan "me abraçou e começou a chorar". Scottie Pippen era o melhor número dois do mundo no basquete, um gigante do jogo e orgulhoso dono de uma voz de barítono extremamente suave. "Sempre que as pessoas falam Michael Jordan, também devem falar do Pippen", diz Jordan. "Eu o considero meu melhor companheiro de equipe de todos os tempos." Uma subtrama da série é como ele foi maltradado em seu contrato, em comparação com outros jogadores. No episódio dois, ficamos sabendo que, durante a temporada 1997-98, ele foi classificado em segundo lugar no Bulls em pontuações, rebotes e minutos jogados e primeiro em assistências, mas estava apenas em sexto em termos de salário. Ele também era o 122º na lista de salários da NBA na época. Vindo de uma família pobre de 12 filhos de Hamburgo, no Estado do Arkansas, ele diz que assinou um contrato de longo prazo de US $ 18 milhões em 1991 por segurança. "Eu senti que não podia me dar ao luxo de não conseguir um contrato", diz ele. "Eu precisava ter certeza de que as pessoas na minha família seriam atendidas". Inevitavelmente, isso levou a um pouco de conflito em 1997-98 com o então gerente geral do Bulls, Jerry Krause, quando Pippen fez uma cirurgia e disse que nunca mais jogaria no Bulls. No final das contas, ele voltou. Você deve lembrar de Dennis Rodman mais recentemente por seu trabalho com, sim, a Coreia do Norte. Nos anos 90, ele era o 'bad boy' do basquete, famoso por seus penteados coloridos, roupas malucas e relacionamento com Madonna, além de suas habilidades de recuperação na quadra. E, como aprendemos em The Last Dance, às vezes ele só precisava de umas férias. Provavelmente também é melhor ter um plano de contingência porque ele pode não voltar quando você pedir. Há uma parte incrível do episódio três, em que Rodman pede férias, no meio da temporada. Pippen esteve fora por um pedaço da temporada e Rodman foi preencher a vaga. Jordan diz: "Enquanto Scottie estava fora, Dennis fez tudo certinho, até o ponto em que começou a ficar louco, então, quando Scottie voltou, Dennis quis tirar férias". O técnico Phil Jackson autoriza um descanso de 48 horas. Em Las Vegas. Jordan não leva fé. "Phil, você deixou esse cara sair de férias, não vamos vê-lo de novo; você o largou em Las Vegas, definitivamente não o veremos mais", diz ele. E de fato ele não voltou em 48 horas. "Ele tinha necessidade de escapar, gostava de sair, gostava de ir a boates. Não parava", diz Carmen Electra, sua namorada na época. Seus ex-companheiros de equipe e treinador parecem concordar que, para tirar o melhor proveito de Rodman, você tinha que deixar ele livre. Como o ex-técnico Chuck Daly diz, "você não põe uma sela num Mustang (tipo de cavalo selvagem)". Rodman, campeão por cinco vezes, certamente sabia de sua importância para o Bulls: "Eu amo Michael Jordan até a morte. Eu amo Scottie Pippen, todos esses caras. Mas eles realmente não fazem as coisas que eu faço". O técnico Phil Jackson, que conduziu o Bulls por todos esses sucessos, é, como Rodman, um pouco independente. Ele inclusive escreveu um livro sobre ser um rebelde. Maverick (dissidente ou rebelde, em inglês), livro de Jackson e Charles Rosen, lançado em 1975, descreve, entre outras coisas, a experiência de um jovem Jackson ao tomar ácido e pensar que era um leão, "rugindo pela praia em Los Angeles". Ele integra técnicas Zen budistas e história dos americanos nativos no treinamento. Jackson enxerga Rodman como um "Heyoka" ou "pessoa que anda para trás", descrito na cultura americana nativa como alguém que se move e reage de maneira oposta às pessoas ao seu redor.
2020-05-16
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52656766
cultura
Odeia liderar? A resposta pode estar na sua infância
Você talvez tenha percebido que alguns dos seus colegas assumem naturalmente papéis de liderança. Com autoconfiança, dizem aos demais o que fazer e parecem satisfeitos em assumir um número crescente de responsabilidades. Para algumas pessoas, é completamente diferente: dar ordens causa uma sensação estranha, e a insegurança marca cada decisão. Se você está nesse segundo grupo, talvez se pergunte por que a ideia de ser líder é repleta de temor, e por que é tão difícil ver a si próprio como gerente. Assim como em qualquer aspecto da natureza humana, algumas respostas vêm de nossa predisposição genética. Se seus pais eram bastante tímidos e modestos, aumentam as chances de você também ser. Mas isso está longe de contar a história completa. Cada vez mais, psicólogos têm percebido como importam as experiências iniciais da vida. E a chave, aqui, é a forma como seus pais se comportavam em relação a você. Em particular, se eles foram superprotetores, podem ter diminuído suas chances futuras de se tornar um líder. Coloquialmente, essa abordagem parental é conhecida como "pais-helicóptero", em referência à ideia de pairar por perto constantemente, sendo necessário ou não. Seus pais provavelmente tinham as melhores das intenções, como evitar que você se deparasse com desafios incômodos. Infelizmente, isso pode ter desencadeado efeitos colaterais indesejados, incluindo fazê-lo "menos confiante e menos capaz de encarar dificuldades, desenvolvendo habilidades de liderança piores", afirma Judith Locke, psicóloga clínica e fellow na Universidade de Tecnologia de Queensland. A pesquisa de Locke envolve questionários a profissionais de parentalidade, incluindo psicólogos e conselheiros escolares, para estabelecer exatamente o que eles querem dizer com "pais-helicóptero" e superproteção parental. As descobertas dela sugerem que isso é uma abordagem caracterizada por uma mistura de três fatores: ser extremamente responsivo à criança, exigir pouco dela em alguns contextos e, ao mesmo tempo, ser excessivamente exigente em outros. Por exemplo, um pai ou mãe-helicóptero costuma ser superprotetor, dar excesso de atenção e achar que seu filho está sempre certo. Ele (ou ela) tentará fazer tudo pelo filho (em vez de esperar que ele gerencie a questão por si próprio) e talvez espere que amigos e professores façam o possível para também acomodar as exigências da criança. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ao mesmo tempo, esse pai ou mãe pode ter altas expectativas acerca das conquistas de seus filhos, sobrecarregando sua agenda com atividades e esperando que eles sejam sempre seus confidentes. Yufang Bian, da Universidade Normal de Pequim, e seus colegas avaliaram as capacidades de liderança desses adolescentes, primeiro perguntando a respeito deles para amigos, professores e pais, para ver se eles eram vistos como bons líderes. Depois, checaram se os adolescentes tinham, de fato, algum papel de liderança, por exemplo como líder de equipe de um grupo escolar de ciências ou presidente de algum grupo estudantil. Enquanto isso, os adolescentes estudados ranquearam o quanto haviam sido superprotegidos por seus pais. Responderam, por exemplo, se "seus pais supervisionaram cada um de seus movimentos e frequentemente solucionavam problemas da sua vida". Os adolescentes também responderam questionários sobre sua autoestima e autoconfiança como líderes. Depois de controlada a influência de diversos outros fatores, como o histórico socioeconômico das famílias e o desempenho acadêmico, Bian e sua equipe encontraram um padrão claro: quanto mais superprotetores eram os pais, menos as crianças eram vistas como potenciais líderes pelos demais, e era menor a probabilidade de que eles de fato assumissem papéis de liderança. Estatisticamente, esse elo era explicado pelo fato de que os adolescentes com pais-helicóptero tendiam a ter menor autoestima, o que, por sua vez, foi associado a uma menor autoconfiança como líder. Bian afirma que isso sustenta a ideia de que algo bom (a proteção paterna) em excesso pode ser prejudicial: "Da mesma forma como a ausência de uma boa parentalidade prejudica o desenvolvimento infantil, o excesso de parentalidade, com suas restrições ao desenvolvimento da autonomia e de habilidades de resolução de problemas, também tem um impacto negativo no desenvolvimento psicossocial", diz o estudo. A superproteção também cria essa sensação porque sinaliza à criança que ela não é capaz de ser independente e que seus pais não confiam nela para cuidar de si própria. Vale mencionar que essas novas descobertas devem ser interpretadas com cautela, porque o modelo do estudo não permite concluir que a parentalidade-helicóptero causa diretamente a ausência de potencial de liderança. A pesquisa se baseia nas memórias dos adolescentes sobre o modo como foram criados, e é possível que jovens com baixa autoestima fiquem tentados a qualificar desfavoravelmente seus pais de forma a explicar seus próprios sentimentos. De qualquer modo, os resultados da pesquisa chinesa são consistentes com uma interpretação causal, e os pesquisadores se basearam em um grande número de estudos prévios, que consistentemente mostraram os aparentes efeitos negativos da superproteção parental - embora esses estudos também tenham um caráter observacional. Por exemplo, psicólogos da Universidade Estadual da Flórida questionaram quase 500 estudantes e ouviram que os que tinham tido "pais-helicóptero" também tinham menos confiança nas próprias habilidades. Uma equipe diferente na Universidade de Miami também chegou a resultados similares: jovens com "pais-helicóptero" tendiam a ter mais problemas emocionais, dificuldades em tomar decisões e desempenho pior nas provas. Se você se vê fugindo das oportunidades de liderança e acha que teve pais superprotetores, não precisa simplesmente aceitar que nunca vai ser líder ou exibir as qualidades de um. Primeiro, lembre-se de que a intenção de seus pais provavelmente era a melhor possível, e não há benefícios em sentir remorso deles. Você está no controle agora e, com dedicação e esforço, é possível moldar seus próprios traços e atitudes, em qualquer época da vida. Locke, que também é autor de The Bonsai Child (A criança bonsai, em tradução livre, com propostas para ajudar pais a desenvolver o potencial das crianças sem superprotegê-las), recomenda que as pessoas reivindiquem sua autonomia na vida adulta, tentando ser mais independente (por exemplo financeiramente) dentro do possível e evitando ligar aos pais a cada desafio na vida. "Muitos leitores terão pais que ainda querem estar altamente envolvidos em suas vidas. Busque forma de gerenciar sua vida mais e deixe de depender muito dos pais", ela sugere. Claro que essas mudanças não vão transformá-lo em um líder, mas ajudarão você a se enxergar como independente e mais confortável em tomar decisões autônomas, o que vai te ajudar quando oportunidades de liderança surgirem em sua carreira. Você também pode fazer mudanças no trabalho, inclusive tentando ser mais aberto a críticas e proativamente buscar feedback dos demais. "Meu trabalho mostra que pessoas que foram superprotegidas muitas vezes foram elogiadas em excesso comumente e não lidam bem com críticas construtivas", diz Locke. "Para que você melhore, precisa estar aberto às sugestões de o que precisa fazer para progredir." Não vai ser da noite para o dia, mas pela prática da independência e de fazer esforço ativo para construir habilidades emocionais e de tomada de decisões, você descobrirá que pode lentamente fomentar sua confiança - e ver a si mesmo como um chefe em potencial. *Christian Jarrett é editor sênior na revista Aeon. Seu próximo livro, sobre mudança de personalidade, será publicado em 2021.
2020-05-11
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-52223898
cultura
Família de Aldir Blanc desmente Regina Duarte e diz que recebeu condolências de assessor
Segundo uma porta-voz da família, a nota de pesar foi enviada por Milton da Luz Filho, assessor da Secretaria Especial da Cultura em Brasília, a uma das filhas de Blanc por mensagem privada no Twitter. A comunicação, que não leva a assinatura de Regina Duarte, mas apenas do órgão, surpreendeu pelo tom "institucional", "apesar das palavras bonitas", disse ela à BBC News Brasil. "A família ficou estarrecida com as declarações dela (Regina Duarte) na entrevista", disse a porta-voz. Antes mesmo da entrevista à CNN, Regina já havia sido cobrada pelo silêncio não só sobre a morte de Blanc, mas também de outros nomes da cultura brasileira, como Moreira, Fonseca e Flavio Migliaccio. Na ocasião, ela argumentou que, em vez de homenagens públicas, optou por enviar mensagens privadas às famílias. A BBC News Brasil não teve acesso ao conteúdo da nota e a família de Blanc afirmou que não vai divulgá-la à imprensa, por ora. Ainda muito abalada com a morte do pai, uma das filhas de Blanc, Patricia, disse à BBC News Brasil que assistiu a trechos da entrevista de Regina Duarte à CNN Brasil e ficou "enojada". Blanc foi autor de mais de 500 canções, entre elas O Bêbado e a Equilibrista, que compôs com João Bosco e que ficou famosa na voz da cantora Elis Regina. A canção atingiu o topo das paradas da época e foi apelidada de Hino da Anistia, em um momento em que o Brasil caminhava para pôr fim à ditadura militar. Repleta de referências metafóricas, é considerada um clássico da música brasileira até hoje. Ele morreu de covid-19 na última segunda-feira, aos 73 anos. Uma de suas filhas, Isabel, teve que fazer um apelo às redes sociais para que o pai pudesse ser transferido para uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Na entrevista concedida à CNN Brasil de seu gabinete em Brasília, Regina minimizou a ditadura militar brasileira, a tortura praticada no período e as mortes recentes de grandes nomes da cultura brasileira. Ela acabou interrompendo a conversa quando a emissora mostrou um vídeo enviado pela atriz Maitê Proença pedindo soluções para a classe artística em meio à pandemia do novo coronavírus. "O que você ganha com isso? Quem é você que está desenterrando uma fala da Maitê [Proença] de dois meses atrás? Eu não quero ouvir, ela tem o meu telefone. Eu tinha tanta coisa para falar, vocês estão desenterrando mortos", disse Regina, pondo fim à entrevista. A CNN esclareceu, então, que o vídeo não era de "dois meses atrás", mas havia sido gravado no mesmo dia da entrevista. Nas redes sociais, vários artistas, alguns ex-colegas de Regina, criticaram fortemente suas declarações. Quando questionada sobre seu silêncio sobre as mortes de nomes importantes da cultura do país, Regina afirmou que optou por "mandar uma mensagem como secretária para as famílias que fomos perdendo nos últimos tempos". "Será que eu vou ter que virar um obituário? Quantas pessoas a gente está perdendo? (...) O reconhecimento ele existe ou não existe. Tem pessoas que não conheço. O Aldir Blanc, por exemplo, eu admiro muito, mas eu nunca estive (com ele). O país está cultuando a memória deles, não precisa da secretária de Cultura", disse Regina. "Agora, se eu, amanhã ou depois, conseguir amadurecer a possibilidade de que isso é importante para as pessoas, eu posso ter no site da comunicação, da Secult (Secretaria de Cultura) o obituário (...) eu tenho mandado para as famílias", acrescentou. "Não fiz por mal, peço desculpas, falei com as famílias, lamentei a perda, porque acho que nessa hora, a pessoa que está mais constrangida pela perda é a família e eu queria falar com elas diretamente, papel timbrado, secretária de cultura, obrigado pela contribuição à cultura brasileira". No Twitter, o ex-comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas, defendeu Regina Duarte. "Fiquei encantado com a Regina pela demonstração de humanismo, grandeza, perspicácia, inteligência, humildade, segurança, doçura e autoconfiança que nos transmitiu", escreveu Villas Bôas.
2020-05-08
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52594696
cultura
A trágica história dos alemães que tentaram derrubar Hitler e foram executados dias antes do fim da 2ª Guerra
Menos de duas semanas antes da rendição incondicional da Alemanha nazista aos Aliados em 8 de maio de 1945, um grupo de militares opositores tentou derrubar o regime de Adolf Hitler, em um trágico e quase esquecido episódio da Segunda Guerra Mundial. Na madrugada de 27 de abril, a Freiheitsaktion Bayern (FAB), ou Ação para a Liberdade da Bavária, tomou duas rádios nos arredores de Munique e emitiu um chamado popular contra o regime. A ação, liderada por cerca de 440 soldados, mobilizou rapidamente cerca de 990 civis, em um total de 1,430 envolvidos. Sob grande risco pessoal, 78 grupos agiram em diversas partes do Estado do sul da Alemanha para derrubar autoridades nazistas locais. O levante, contudo, falhou. E as consequências foram pesadas: ao menos 57 execuções e perseguição aos sobreviventes. "Os integrantes do levante não sabiam que a Alemanha se renderia. Todos dependiam muito da propaganda do regime. Não se recebia nenhuma informação valiosa. Apenas rumores. Se você não estava muito perto de posições mais altas do Exército, não sabia o que acontecia à sua volta", diz à BBC News Brasil a historiadora Veronika Diem, autora de uma premiada tese de doutorado sobre o tema que deu origem ao livro "A Campanha da Liberdade da Baviera: um levante na fase final do regime nazista". Neste contexto, em abril, membros de unidades militares na Bavária, em especial nos arredores de Munique, se uniram para formar a FAB. Tratava-se um grupo bem heterogêneo - ou melhor, diversos grupos - que mantinha tendências católicas conservadoras. Muitos se conheciam desde os anos 1930 e tinham conflitos com nazistas. "O major Alois Braun, por exemplo, teve uma briga com membros da SS (grupo paramilitar nazista) em sua pequena cidade. Ele entrou na Wehrmacht (as forças armadas unificadas nazistas) para se proteger", revela Diem. Os integrantes da FAB estavam presentes em diversos setores do Estado e da Wehrmacht e sua ligação ocorria por meio de figuras centrais de cada sub-grupo. Havia um grupo que trabalhava no escritório do governador do Reich na Baviera, liderado pelo major Günther Caracciola-Delbrück. Outra parcela atuava como tradutores da Wehrmacht no 7º Distrito Militar, com a figura principal de Ruprecht Gerngross. Mais um grupo de intérpretes, atuante no Süddeutsche Freiheitsbewegung (Movimento de Liberdade do Sul da Alemanha), ficava em um campo de prisioneiros de guerra em Moosburg. "Eles se conectaram a prisioneiros de guerra americanos, britânicos e franceses e, através de um círculo de amigos que antecederam a guerra, foram capazes de ativar pessoas em vilas e cidades em todo o sul da Alemanha", explica Sven Keller, do Instituto de História Contemporânea Munique-Berlim. Naquele mesmo campo de prisioneiros, afirma o historiador, atuava o Bayerische Heimatbewegung, um grupo liderado pelo ex-prefeito de Regensburg. Havia ainda integrantes militares da FAB em Freising, perto de Munique. Chamava a atenção a quantidade de jovens intérpretes no grupo. Eles tinham visões de mundo em comum, perfil acadêmico e intelectual e eram viajados. Essas características, acredita Keller, os manteve longe da ideologia nazista e do ambiente militar. "Esses intérpretes tiveram contato com outros países e com estrangeiros. Eles tinham outro ponto de vista sobre a Alemanha e o Reich. Conheceram pessoas que sofrem com o regime e trabalhadores forçados do exterior", completa Diem. A FAB chegou a abordar o serviço secreto dos EUA e os aliados para falar sobre seu plano, mas não foi percebida de maneira séria. O plano do grupo contava com um programa de 10 pontos, que incluía a rendição do Estado bávaro aos aliados e um governo transitório sob o controle da FAB até a aprovação popular de uma nova Constituição bávara. Entre os objetivos estavam o "extermínio" do Nacional Socialismo, que violava "as leis da moral e da ética de tal maneira que todo alemão decente precisa se afastar dele com repugnância". A FAB se reservou o direito de exterminar "sem piedade" até a menor das células nazistas. O grupo também pregava o fim do militarismo, o retorno da ordem por meio da reintrodução de direitos fundamentais, incluindo a liberdade de imprensa e de reunião. Além disso, o cristianismo aparece como fator importante nessa reconstrução - sem prejuízo à liberdade religiosa - e a restauração da dignidade humana para cada indivíduo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O início da tentativa de levante foi calculado para que ocorresse quando as tropas aliadas estivessem próximas o bastante de Munique - àquela altura, elas já haviam cruzado o rio Lech, afluente do Danúbio. O plano deveria durar até 28 de abril. A organização do ato aconteceu apenas em abril, mas a possibilidade de insurgência contra o regime foi discutida por anos. "Os membros eram claramente anti-nazistas e mantinham distância do regime. Quando agiram, o fizeram com o risco de suas vidas e muitos pagaram um preço terrível. Isso exige o maior respeito. No entanto, eles entraram em ação quando já era tarde demais", argumenta Keller. Na madruga de 27 de abril, oito grupos de soldados tentaram executar o plano. Mas diversas partes falharam: entre outros problemas, não foi possível prender Paul Giesler, o Gauleiter em Munique (uma espécie de líder do partido nazista na região). A FAB também não conseguiu persuadir o governador do Reich, Franz Ritter von Epp, a negociar um armistício com os aliados. O grupo conseguiu, contudo, ocupar a prefeitura de Munique e duas estações de rádio, de onde transmitiu convocações "multilíngue" sobre a uma suposta tomada do governo local. Foi pedindo que o povo se juntasse para "se livrar dos funcionários" do partido nazista entre 6h e 11h. O chamado foi recebido por diferentes grupos civis, que conduziram iniciativas semelhantes mesmo sob o risco de confrontos graves com apoiadores nazistas. Segundo Diem, 58 destas ações não se escalaram e os respondentes conseguiram fugir. Em outras 20, houve fatalidades. Os civis estavam mais preocupados em proteger suas respectivas comunidades de maiores destruições que o prolongamento da guerra poderia causar. "Houve uma grande variedade de ações - desde indivíduos sozinhos tentando convencer as tropas da Wehrmacht a depor suas armas até a tentativa de insurgência em Munique. Não existia a FAB no sentido de uma organização rígida e eficaz que poderia ter oferecido assistência. Muitos agiram espontaneamente", diz Keller. Pouco após a transmissão de rádio, as autoridades nazistas já haviam desmentido a "tomada do poder", o que levou muitos membros da FAB a fugirem e se esconderem. Também ficou claro aos civis que participaram do ato que o levante havia fracassado. Embora a liderança da FAB fosse composta por militares, o grupo não tinha poderio militar suficiente para enfrentar as forças nazistas. A esperança era que o chamado obteria suporte amplo, o que não ocorreu. "O consenso é que o levante foi mal preparado e apressado nas últimas semanas da guerra. Mais importante ainda, Gerngross e Caracciola-Dellbrück não conseguiram o apoio de von Epp. Gerngross pensou que seria capaz de aguentar até a chegada das tropas americanas - um erro de cálculo trágico", explica o historiador André Postert, do Instituto Hannah Arendt, em Dresden. Caracciola-Dellbrück foi assassinado devido ao seu envolvimento, como muitos outros, e Gerngross conseguiu fugir e se esconder. A perseguição aos sobreviventes começou em 28 de abril, por ordem do Gauleitung. Dezenas foram presas e execuções sumárias ocorreram. Moradores leais ao regime denunciaram integrantes do levante, que acabaram cassados por soldados e membros da Volkssturm (milícia com jovens e homens velhos montada no fim da guerra). "Em uma pequena cidade ao sul de Munique, um grupo prendeu o prefeito. E depois, ao saber que o levante falhou, o soltou. Moradores descobriam quem eles eram e foram até pessoal militar que estava por perto só por acaso. Os integrantes do levante foram assassinados imediatamente, sem nenhum processo legal", afirma Diem. As forças nazistas foram rigorosas e cruéis contra revoltas até o fim do regime. Isso ocorreu, em parte, pelo fanatismo e cegueira ideológica, acredita Postert. Por outro lado, continua o historiador, muitos atores nazistas centrais sabiam que seriam condenados e enforcados após a guerra. "Isso explica a sua brutalidade. Giesler mandou que se executasse os envolvidos. [Dias da rendição] Giesler se matou e atirou em sua esposa. Homens como ele não tinham nada a perder." Após a guerra, a memória da FAB foi preservada na Bavária. No centro de Munique, há a praça "Münchner Freiheit" (Liberdade de Munique) e um café com o mesmo nome. Existe ainda uma famosa banda pop homônima.
2020-05-08
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52587282
cultura
Vídeo, Fazer 'home office' e outras expressões que não fazem sentido em inglêsDuration, 3,36
Se você está trabalhando de casa em meio à pandemia do coronavírus, provavelmente já deve ter falado que "está fazendo home office". Mas, apesar de recorrente em português, o uso dessa expressão em inglês não faz sentido para um falante nativo, como explica Fábio Emerim. "Algumas expressões que estamos acostumados a falar em português podem ter uma colocação não muito apropriada. É o caso do home office, por exemplo", diz ele à BBC News Brasil. "Home office existe, mas como o lugar na casa da pessoa onde ela trabalha, onde estuda, onde reservou um espaço para fazer algum trabalho. No caso, estou em meu home office ou 'I am in my home office'. Como lugar, pode-se usar sem problema nenhum. A questão é transformar no ato, fazer home office, ou 'I am doing home office'. É uma frase que não existe", explica Emerim. "O adequado é usar como verbo, 'I am working from home', ou 'I work from home''. Mas será que existem outras expressões que usamos em português e que não fazem muito sentido para um nativo? Emerim explica: "Por exemplo, shopping center. Muita gente fala: 'Eu vou para o shopping'". Quando querem passar essa frase para o inglês, falam: 'I want to go to the shopping'. Não se fala assim." “Deve-se falar ‘I want to go to the shopping mall’. ‘Shopping mall’ é o que chamamos de ‘shopping center’ no Brasil. ‘Shopping center’ seria um distrito, um centro, um lugar de uma cidade onde estão muitas lojas”, conclui Emerim.
2020-05-03
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52520807
cultura
Final do BBB: vitória de Thelma é 'simbólica', mas não 'desestabiliza' racismo estrutural, diz Djamila Ribeiro
A vitória da médica anestesiologista Thelma Assis na final do reality show Big Brother Brasil, veiculado pela TV Globo, tem "peso simbólico" e deve ser "comemorada", mas "não desestabiliza" o racismo estrutural do Brasil. A opinião é da filósofa e escritora Djamila Ribeiro, uma das principais vozes do ativismo negro no país. "Claro que é simbólico (vitória de Thelma), mas a grande mídia do país ainda não representa a diversidade do povo brasileiro. Precisamos refletir e ter uma discussão séria sobre isso. Há uma reivindicação histórica para que mais pessoas negras ocupem lugar de destaque na mídia, e não só reproduzindo estereótipos", diz Ribeiro à BBC News Brasil, lembrando que Thelma era a única mulher negra no programa (o outro participante negro era o ator Babu Santana. Havia 20 participantes no total). Mais de 50% da população brasileira se declara negra, de acordo com dados do IBGE. Segundo Ribeiro, "comemoramos porque são tão poucas as vezes que isso acontece que entendo a euforia das pessoas. A massa assiste à TV e milhares de meninas negras podem se inspirar em Thelma. Isso é inegável". "Mas muito poucas mulheres negras conseguem chegar ao lugar aonde Thelma chegou. E não deveria ser assim." "Se, de fato, não houver pressão para que isso mude, tudo vai continuar do jeito que está. Precisamos mudar essas estruturas de poder para não ter que ficar comemorando uma no meio de várias. Não vejo a vitória dela desestabilizando isso (racismo estrutural). Só vamos poder dizer isso quando tivermos mais inclusão dentro desses espaços". Ribeiro ressalva ainda que "no ano passado uma participante declaradamente racista ganhou o programa", aludindo a Paula Von Sperling. Ela foi indiciada por intolerância religiosa, mas o processo foi arquivado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ribeiro também chama atenção para o fato de que, durante sua passagem pelo programa, Thelma sofreu ataques racistas dentro e fora da casa. Um dos casos mais emblemáticos foi o do empresário e guia turístico nos Estados Unidos Rodrigo Branco, que, durante uma live no Instagram, declarou que "torcer por Thelma é racismo". Além disso, afirmou que a torcida dela só existia porque "ela é negra, coitada". O empresário também atacou a apresentadora do Jornal Hoje, da Globo, Maju Coutinho. "É a mesma coisa que falo da Maju. Ela é péssima, é horrível. Ela fala tudo errado e só está lá por causa da cor", afirmou o empresário. Após a repercussão negativa, ele pediu desculpas nas redes sociais. Ribeiro também critica a descrição, por parte da audiência, de que Thelma era uma "planta", ou seja, parada na casa. "Há um estereótipo que pesa sobre a mulher negra de que ela tem que ser raivosa ou arruaceira. Ou então, uma superativista da causa. A sociedade lhe nega, portanto, o direito à individualidade. Ela é um ser humano. Ninguém cobrou que a Rafa (Rafa Kalimann) fosse igual a Manu (Manu Gavassi), mas a mulher negra tem que ser como o Babu." Apesar disso, Ribeiro diz que a vitória de Thelma aumenta a conscientização sobre a discussão do racismo no Brasil e sobre a representatividade étnica na mídia. Ela destaca ainda que as mulheres negras continuam ser as principais vítimas de violência contra a mulher. Segundo dados da Anistia Internacional, enquanto o homicídio de mulheres negras aumentou 54,2% entre 2003 e 2013, no mesmo período, o de mulheres brancas caiu 9,8%. "É importante lembarmos que Thelmas do Brasil ainda estão morrendo assassinadas, vítimas de violência sem o apoio do Estado", conclui Ribeiro.
2020-04-28
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52465593
cultura
Coronavírus: o que podemos aprender com as pandemias da ficção?
Em tempos incertos e estranhos como estes, em que cumprimos nosso isolamento social para achatar a curva de contágio, a literatura fornece escapismo, alívio, conforto e companhia. Porém, o apelo da ficção pandêmica também aumentou. Muitos títulos pandêmicos parecem guias para a situação de hoje. E muitos desses romances descrevem epidemias numa progressão cronológica realista, dos primeiros sinais de problema aos piores momentos, e o retorno à "normalidade". Eles nos mostram que já passamos por isso antes. Um Diário Do Ano Da Peste, de Daniel Defoe, publicado em 1772, que narra a peste bubônica de 1665 em Londres, conta uma série de eventos sinistros que lembram nossas próprias respostas ao choque inicial e à propagação voraz do novo vírus. Defoe começa sua história em setembro de 1664, quando circulam rumores sobre o retorno da 'pestilência' à Holanda. Em seguida, vem a primeira morte suspeita em Londres, em dezembro, e depois, na primavera, Defoe descreve como os avisos de morte publicados nas paróquias locais tiveram um aumento sinistro. Em julho, a cidade de Londres impõe novas regras - regras que estão se tornando rotineiras em 2020, como "que todas as festas públicas, jantares em tabernas, cervejarias e outros locais de entretenimento comum sejam suspensos até novas ordens". Em agosto, Defoe escreve, a peste estava "muito violenta e terrível"; no início de setembro, atingiu o seu pior, com "famílias inteiras, ruas inteiras de famílias... desaparecendo juntas". Em dezembro, "o contágio estava esgotado, e também o clima do inverno acelerava, e o ar estava limpo e frio, com geadas fortes... a maioria dos que haviam adoecido se recuperou e a saúde da cidade começou a voltar". Quando finalmente as ruas foram retomadas, "as pessoas andavam dando graças a Deus por sua libertação". O que poderia ser mais dramático do que um retrato de uma peste em andamento, quando as tensões e emoções são intensificadas e os instintos de sobrevivência surgem? A narrativa pandêmica é natural para romancistas realistas como Defoe e, mais tarde, Albert Camus. A Peste, de Camus, em que a cidade de Oran, na Argélia, fica fechada por meses enquanto uma doença dizima seu povo (como de fato aconteceu em Oran no século 19), é um livro também repleto de paralelos com a crise de hoje. Os líderes locais relutam a princípio em reconhecer os sinais precoces que vêm dos ratos morrendo pela doença. "Os pais de nossa cidade estão cientes de que os corpos em decomposição desses roedores constituem um grave perigo para a população?", pergunta um colunista no jornal local. O narrador do livro, Dr. Bernard Rieux, reflete o heroísmo silencioso dos trabalhadores médicos. "Não faço ideia de o que me espera ou do que acontecerá quando tudo acabar. No momento eu sei disso: há pessoas doentes e elas precisam de cura", diz ele. No final, há a lição aprendida pelos sobreviventes da peste: "Eles sabiam agora que, se há uma coisa que sempre se pode desejar e, às vezes, alcançar, é o amor humano". A gripe espanhola de 1918 reformulou o mundo, levando à morte de 50 milhões de pessoas, após 10 milhões de mortos na Primeira Guerra Mundial. Ironicamente, o dramático impacto global da gripe foi ofuscado pelos eventos ainda mais dramáticos da guerra, que inspiraram inúmeros romances. Enquanto as pessoas praticam agora o 'distanciamento social' e as comunidades ao redor do mundo se retêm, a descrição de Katherine Anne Porter da devastação criada pela gripe espanhola em seu romance Cavalo Pálido, Pálido Cavaleiro, de 1939, soa familiar: "É terrível... Todos os teatros e quase todas as lojas e restaurantes estão fechados, e as ruas estão cheias de funerais o dia todo e ambulâncias soam a noite toda", diz o amigo da heroína Miranda, Adam, logo após ela ser diagnosticada com a influenza. Porter retrata a febre e os tratamentos de Miranda, e semanas de doença e recuperação, até o despertar para um novo mundo remodelado pelas perdas da gripe e da guerra. Porter quase morreu da gripe. "Eu mudei de uma forma estranha", ela disse à revista literária The Paris Review em uma entrevista de 1963. "Levei muito tempo para sair e viver no mundo novamente. Eu estava realmente 'alienada' no sentido puro." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast As epidemias do século 21 - a síndrome respiratória aguda grave (Sars, na sigla em inglês), em 2002, a síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers, em inglês), em 2012 e o ebola, em 2014 - inspiraram romances sobre desolação e colapso pós-peste, cidades desertas e paisagens devastadas. O Ano do Dilúvio (2009), de Margaret Atwood, mostra-nos um mundo pós-pandêmico com humanos quase extintos, após a maioria da população ter sido exterminada 25 anos antes pelo 'Dilúvio sem Água', uma peste virulenta que "viajava pelo ar como se tivesse asas, queimando cidades como fogo". Atwood captura o extremo isolamento sentido pelos poucos sobreviventes. Toby, uma jardineira, olha o horizonte do jardim da cobertura de um spa deserto. "Deve haver mais alguém ... ela não pode ser a única no planeta. Deve haver outros. Mas amigos ou inimigos? Se ela vir um, como vai saber?". Ren, que foi dançarina de trapézio e "uma das mais limpas entre as sujas da cidade" está viva porque estava em quarentena por uma possível doença transmitida por um cliente. Ela escreve seu nome repetidamente. "Você pode esquecer quem você é se estiver sozinho demais", diz. Por meio de flashbacks, Atwood explica como o equilíbrio entre os mundos natural e humano foi destruído pela bioengenharia patrocinada por grandes empresas e como ativistas como Toby reagiram. Sempre atenta aos problemas que tecnologia pode trazer, Atwood baseia seu trabalho em premissas plausíveis, tornando o Ano do Dilúvio terrivelmente presciente. O que torna a ficção pandêmica tão envolvente é que os humanos se unem na luta contra um inimigo que não é um inimigo humano. Não existem 'mocinhos' ou 'bandidos'; a situação é mais sutil. Cada personagem tem uma chance igual de sobreviver ou não. A variedade de respostas de cada personagem às circunstâncias terríveis torna a história interessante para quem escreve - e para quem lê. Severance (A Separação, em tradução livre - livro indisponível no Brasil), de Ling Ma (2018), que o autor descreveu como um "romance apocalíptico de escritório" com uma história de imigração, é narrada por Candace Chen, uma moça que trabalha em uma empresa de publicação da Bíblia e tem seu próprio blog. Ela é uma das nove sobreviventes que fogem da cidade de Nova York durante a pandemia fictícia da febre de Shen em 2011. Ma descreve a cidade depois que "a infraestrutura ... entrou em colapso, a internet caiu em um buraco, a rede elétrica foi fechada". Candace se junta a um grupo numa viagem em direção a um shopping em um subúrbio de Chicago, onde o grupo planeja se estabelecer. Eles viajam por uma paisagem habitada pelos "febris", que são "criaturas de hábitos, imitando velhas rotinas e gestos" até morrerem. Os sobreviventes são imunes aleatoriamente? Ou "selecionados" pela orientação divina? Candace logo descobre que em troca da segurança de estar em grupo precisa demonstrar uma estrita lealdade às regras religiosas estabelecidas pelo líder do grupo Bob, um ex-técnico de TI autoritário. É apenas uma questão de tempo até que ela se rebele. Nossa própria situação atual é, obviamente, nem de longe tão extrema quanto a prevista em Severance. Ling Ma explora o pior cenário que, felizmente, não estamos enfrentando. Em seu romance, ela analisa o que acontece em seu mundo imaginário após a pandemia desaparecer. Depois do pior, quem está encarregado de reconstruir uma comunidade, uma cultura? Entre um grupo aleatório de sobreviventes, o romance pergunta: quem decide quem tem poder? Quem define as diretrizes para a prática religiosa? Como os indivíduos retêm poder de agência? As vertentes narrativas do romance Estação Onze, de Emily St John Mandel, de 2014, ocorrem antes, durante e depois de uma gripe ferozmente contagiosa originária da República da Geórgia "explodir como uma bomba de nêutrons na superfície da terra", destruindo 99% da população da população global. A pandemia começa na noite em que um ator que interpreta o rei Lear, personagem de Shakespeare, sofre um ataque cardíaco no palco. Sua esposa é autora de histórias em quadrinhos de ficção científica ambientadas em um planeta chamado Estação Onze. O livro tem ecos dos Contos de Canterbury, clássico da literatura inglesa, escrito por Chaucer, o prototípico e irreverente ciclo de histórias do século 14, que tem como pano de fundo a peste negra. Quem e o que determina a arte, pergunta Mandel? A cultura de celebridades importa? Como vamos reconstruir as coisas depois que o vírus invisível nos sitiar? Como a arte e a cultura mudarão? Sem dúvida, existem romances sobre nossas circunstâncias atuais em andamento. Como os contadores de histórias nos próximos anos retratarão essa pandemia? Como eles irão narrar a onda de espírito solidário, os inúmeros heróis entre nós? Essas são questões a serem ponderadas à medida que aumentamos o tempo de leitura e preparamos o surgimento do novo mundo.
2020-04-27
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-52332892
cultura
Os segredos de Notre Dame revelados após incêndio que destruiu a catedral
No dia 15 de abril de 2019, a Catedral de Notre Dame, um dos templos católicos mais famosos do mundo, pegou fogo. Por horas, a catedral de 850 anos ficou em chamas até o teto e sua torre central icônica desabarem. "Como todos os nossos compatriotas, estou triste ao ver que esta parte de nós está pegando fogo", lamentou o presidente Emmanuel Macron na época. As chamas entristeceram não apenas a França, mas todos que veem esse templo gótico como uma obra-prima da arte e da arquitetura. Todos os anos, Notre Dame recebia 13 milhões de visitantes. Construída entre 1163 e 1345 na Île de la Cité, a Notre Dame de Paris é uma das mais antigas catedrais góticas e a terceira maior do mundo, depois das de Colônia (Alemanha) e Milão (Itália). No meio da tragédia, no entanto, uma equipe de cientistas está ao menos tentando tirar algo positivo do carvão e das cinzas. Em decorrência do incêndio, as áreas da igreja que nunca eram acessadas foram expostas. Especialistas em estruturas, materiais e produtos químicos, por exemplo, terão acesso a cofres que antes não podiam explorar, disse à BBC News Mundo Aline Magnien, diretora do Laboratório de Pesquisa em Monumentos Históricos (LRMH, por sua sigla em francês) — a entidade do governo francês que lidera a reconstrução de Notre Dame. Eles também poderão conhecer mais detalhes sobre o sistema de construção usado há mais de 800 anos, além de pedras e metais expostos após as chamas e que até agora não tinham sido analisados. "Vamos entender melhor como (a catedral) foi construída e também como foi destruída", diz Magnien. Essa oportunidade inesperada permitirá que os pesquisadores revelem mistérios sobre a origem da catedral, a evolução das mudanças climáticas na região e até o impacto psicológico que o evento causou entre os parisienses. Quais são essas investigações e quais segredos estão sendo revelados? Um dos maiores tesouros arquitetônicos consumidos pelo incêndio de Notre Dame foi a chamada "floresta" no telhado da igreja. Essa "floresta" era uma imensa estrutura de 100 metros de comprimento, 13 de largura e 10 de altura, que formava uma espécie de sótão. Cerca de 1.300 vigas de madeira foram usadas em sua construção, cada uma proveniente de uma árvore diferente. Estima-se que algumas dessas árvores tivessem entre 300 e 400 anos. Parte desse sótão virou cinzas e o outro está carbonizado no chão, mas ainda é um tesouro de informações para os pesquisadores. Até agora, com a ajuda de robôs, quase mil peças de madeira em estados diferentes de carbonização já foram coletadas e catalogadas. De acordo com um artigo da revista Nature, as primeiras observações já confirmaram que a "floresta" era feita de carvalhos, mas estudos futuros mostrarão de onde vieram essas árvores. Isso, por sua vez, nos permitirá aprender mais sobre a silvicultura e a atividade econômica na região na Idade Média. A madeira também funciona como um "arquivo climático", diz a arqueóloga biomolecular Martine Regert àNature. Com esses dados, os cientistas poderão comparar o clima medieval da região de Paris com o aquecimento causado pela atividade humana que vivenciamos hoje. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O teto da catedral que cobria a "floresta" foi construído no século 19 e tinha uma película protetora feita de chumbo, um material altamente tóxico. Após o incêndio, surgiram temores entre os parisienses de que o vapor de chumbo se espalharia e poluiria o ar em bairros próximos, onde existem várias escolas. Em estudos posteriores, os pesquisadores da LRMH concluíram que as chamas não atingiram 1.700° C, que é a temperatura na qual o chumbo evapora. "A análise de oxigênio e carbono nos anéis (dos troncos) nos permite determinar a temperatura e a quantidade de chuva ao longo do tempo", diz Regert. A maior parte do chumbo derreteu a uma temperatura mais baixa — cerca de 300°C — e escorreu por canaletas, formando estalactites que agora são vistas penduradas nos cofres, disse Aurélia Azéma, química metalúrgica do LRMH, à revista Science. Mas Azéma e seus colegas também afirmam que em algumas áreas a temperatura do incêndio passou de 600°C, um ponto em que o chumbo se oxida em uma espécie de aerossol. "É como se fosse um spray de cabelo", diz Azéma. Uma nuvem amarela vista sobre a catedral durante o incêndio levou à conclusão de que pelo menos parte do chumbo havia se misturado ao ar. É isso que os especialistas sabem até agora, mas querem ir além. Por um lado, eles investigarão se os vazamentos de chumbo no teto da catedral poderiam estar chegando e contaminando as águas do rio Sena, que atravessa Paris. Eles farão algo semelhante com as amostras encontradas nos bairros próximos, para determinar se esse chumbo vem da catedral ou de outras fontes de contaminação. O estudo do chumbo de Notre Dame também fornecerá pistas a respeito das minas de onde ele foi extraído. Para Magnien, a presença de chumbo é um dos maiores desafios que eles enfrentam na restauração de Notre Dame. "Temos que limpar as paredes e os objetos da catedral antes que possamos reabri-la ao público", diz Magnien. "É um desafio interessante." A restauração da catedral não ficou livre de polêmicas. Notre Dame está intimamente ligada aos sentimentos dos franceses, então houve controvérsias sobre a melhor maneira de reconstruí-la. Esse debate técnico altamente carregado de emoções se tornou uma oportunidade para etnólogos e antropólogos estudarem as consequências menos tangíveis do incêndio. Um grupo de pesquisadores do Instituto Interdisciplinar de Antropologia Contemporânea de Paris (IIAC), por exemplo, recebeu a tarefa de entrevistar turistas, vizinhos, doadores, guias, músicos que tocavam na catedral e membros da igreja para aprender mais sobre o efeito psicológico que o incêndio poderia ter causado. Como a atitude deles em relação à catedral mudou e como eles se organizam para cuidar de seu futuro. "Notre Dame não é apenas um monumento", disse Sylvie Sagnes, etnóloga do IIAC, à revista Science. "Depois do incêndio, as pessoas continuam emocionalmente envolvidas". Os planos do governo e da LRMH era para reabrir Notre Dame em 2021. Mas esses planos foram mudados desde a chegada da pandemia do coronavírus. Seguindo as medidas preventivas, o trabalho foi suspenso. "Não sabemos quando voltaremos", diz Magnien. Isso, no entanto, não diminui o entusiasmo dos pesquisadores, que acreditam que, ao final do trabalho de reconstrução, a igreja poderá ficar mais bonita e imponente do que antes do incêndio. Ao limpar o chumbo, por exemplo, eles também removeriam a sujeira causada por anos de poluição de carros e de visitas das pessoas. Nenhuma das pinturas foi danificada, mas, segundo Magnien, elas serão limpas e restauradas, assim como seus famosos vitrais. Sobre o futuro da torre, que entrou em colapso no incêndio, há incerteza. "Ainda não sabemos (o que acontecerá com a agulha)", diz Magnien. "Tudo dependerá das opções de restauração." Magnien, no entanto, é otimista. "Notre Dame será tão bonita quanto antes, talvez mais!", Diz ele. "Será mais limpa e brilhante."
2020-04-25
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cultura
O dia em que um ex-Beatle tocou pela primeira vez no Brasil
No dia 27 de setembro de 1989, o empresário carioca Luiz Oscar Niemeyer, de 33 anos, recebeu uma proposta irrecusável do agente britânico Gerald "Gerry" Stickells: encarar 17 horas de voo até a Suécia para conferir de perto a The Paul McCartney World Tour, a primeira turnê mundial que o ex-Beatle fazia desde 1976, quando ainda era o líder dos Wings. "No dia seguinte, peguei um avião para Estocolmo e assisti, pela primeira vez, a um show do Paul. Voltei para o Brasil com o acordo fechado", recorda Niemeyer, que conhecia Stickells, empresário de pesos-pesados do rock, como Jimi Hendrix, Queen e Elton John, de outros festivais, como o Rock in Rio e o Hollywood Rock. A turnê de Flowers in the Dirt (1989), o oitavo álbum de estúdio da carreira de Paul McCartney, começou no dia 26 de setembro de 1989, em Londres, na Inglaterra, e terminou no dia 29 de julho de 1990, em Chicago, nos EUA. Ao todo, Paul e sua banda - os guitarristas Hamish Stuart e Robbie McIntosh, o tecladista Paul "Wix" Wickens e o baterista Chris Whitten - percorreram 13 países e fizeram 103 shows, dois deles no Rio de Janeiro. Pela primeira vez, um dos quatro rapazes de Liverpool tocaria no Brasil. Não seria exatamente a primeira vez que um ex-Beatle visitaria o país. Fã de Fórmula 1, George Harrison, então com 36 anos, assistira ao Grande Prêmio de 1979, no autódromo de Interlagos, em São Paulo, a convite do piloto Émerson Fittipaldi. Mas não passou disso. Show que é bom, diriam os fãs, o autor de Something, Here Comes the Sun e While My Guitar Gently Weeps não fez. "O Paul é um 'workaholic'. Ele continua viajando, gravando e fazendo shows, tanto quanto na época dos Beatles. Por isso, acho que, hoje, é o beatle que faz mais sucesso", declarou Harrison, em entrevista ao Fantástico, da TV Globo. Convencer Paul McCartney a tocar no Rio não foi difícil. Se Harrison era fanático por automobilismo, Paul era apaixonado por futebol. Bastou um argumento infalível: os shows seriam realizados no Maracanã, o maior estádio do mundo. Provável torcedor do Everton, time da primeira divisão do campeonato inglês e um dos clubes de Liverpool, Paul não titubeou. "Eu me senti o próprio Pelé em campo", comparou o cantor, em entrevista à edição do dia 3 de outubro de 1999 do jornal O Globo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para tocar no Brasil, Paul McCartney teria feito apenas duas exigências: "trazer todo o aparato de produção, que incluía som, luz e vídeos" e "não ter seu nome associado a marcas de cigarro, carne ou bebida alcoólica", revela Niemeyer. Vegetarianos, Paul e Linda pediram, entre outros pratos, canelone com recheio de espinafre e nozes de pinho, pão de alho com salada de espinafre e abacate, lasanha recheada com queijo de soja e cenoura, curry de legumes com tofu e molho de amendoim, arroz de amêndoas com passas e espaguete ao molho de legumes e lentilhas. O anúncio da vinda de Paul McCartney ao Rio deixou uma legião de fãs enlouquecidos. Muitos se viram obrigados a faltar a compromissos importantes. O produtor musical Marcelo Fróes, de 53 anos, foi um deles. "Meu irmão, Fábio, ia se casar na quinta. Quando os shows foram anunciados, avisei que não iria. Ninguém se surpreendeu", conta. Na noite de quarta-feira, depois do anúncio de que o show de quinta tinha sido adiado por causa do mau tempo, Fróes resolveu dar um pulinho no Rio Palace. Não havia uma vivalma na portaria, ele lembra. Tanto que fez menção de entrar e ninguém o impediu. Já no saguão, sentiu o coração disparar ao ver os músicos da banda. "Não demorou muito e vi, sentado numa poltrona do bar do lobby, o próprio Paul. Fiquei muito nervoso. Não havia levado câmera, nem disco para autografar. Então, ficaram na memória a emoção e um aperto de mão. Trinta anos depois, nem lembro o que lhe falei", recorda o dono do Selo Discobertas e da Sonora Editora. Em tempo: com o adiamento do show do dia 19, Marcelo pode, sem dor na consciência, ir ao casamento do irmão. Menos mal. O escritor Ricardo Pugialli, de 59 anos, não tinha casamento ou aniversário marcado. Em compensação, sua filha, Camila, tinha apenas quatro meses. Se ele chegou a cogitar a hipótese de faltar ao show para ficar em casa? De jeito nenhum! Foi aos dois shows, com o coração apertado. "Não perderia a chance de ver o Paul por nada neste mundo. Antes de o show começar, a galera nas arquibancadas começou a fazer a 'ola'. O pessoal no gramado viu e fez também. Os técnicos do Paul, que estavam na mesa de PA, começaram a tirar fotos. Quando o show começou, toda vez que o Paul tocava uma canção dos Beatles, o Maracanã vinha abaixo. Foi emocionante do começo ao fim", recorda o autor de Os Anos da Beatlemania (1992), em parceria com Marcelo Fróes; e The Beatles — 1970–1980 (2019), entre outros. Paul McCartney chegou ao Rio às 6h15 do dia 18 de abril, no voo 811 da Varig, vindo de Miami, nos EUA. "Em todas as viagens posteriores, ele veio em seu jato particular", conta Fróes. Paul veio acompanhado da mulher, Linda, tecladista de sua banda; de dois dos quatro filhos do casal, Stella e James, de 19 e 13 anos, e de uma trupe de 50 pessoas, entre músicos e técnicos. Do Galeão, ele e a família seguiram, de helicóptero, para o Rio Palace, em Copacabana, o mesmo hotel que, 10 anos antes, hospedara Frank Sinatra. Naquele mesma tarde, um Boeing 747 pousou na cidade, com 150 toneladas de luz e som. Paul faria um show na quinta-feira, dia 19, e outro no sábado, dia 21. Mas o primeiro show teve de ser adiado para sexta-feira, dia 20, por causa do temporal que impediu a montagem dos sistemas de luz e som. "Tivemos uma semana ininterrupta de chuva", relembra Niemeyer. "Paul teria que viajar no domingo, dia 22. Felizmente, conseguimos fazer o show na sexta, ainda com chuva. No sábado, São Pedro ajudou e foi uma noite histórica". Tão histórica que entrou para o Guinness, o livro dos recordes, como o show pago de um único artista que registrou o maior público até então: naquela noite, 184.368 espectadores assistiram ao Paul in Rio, no Maracanã. Por ser o primeiro show de um ex-Beatle não só no Brasil, mas em toda a América do Sul, vieram fãs de outros países, como Chile, Argentina e Uruguai, entre outros. Na tarde do dia 20, Paul concedeu uma coletiva de imprensa, às 18h. Chegou escoltado por três seguranças ao salão do Parque Aquático Júlio Delamare, no Maracanã. Durante o bate-papo, explicou por que voltara a tocar o contrabaixo Hoffner, contou ter passado três horas velejando debaixo de chuva na Baía de Guanabara e disse que considerou um erro não ter arrematado, em leilão, o catálogo das canções dos Beatles. No dia 10 de agosto de 1985, quem desembolsou US$ 47,5 milhões (o equivalente hoje a R$ 247,9 milhões) foi seu parceiro nas músicas Say Say Say, The Girl is Mine e The Man. "Volta e meia, o nome do Michael Jackson vinha à tona e era um assunto que o deixava bastante aborrecido", relata a antropóloga May Waddington que, durante a estada carioca do ex-Beatle, trabalhou como sua intérprete. "Paul era gentil, educado, mas muito perfeccionista. Queria fazer o melhor show possível e, por essa razão, prestava atenção a tudo o que sua equipe estava fazendo". Ao término da entrevista, todos foram embora. Todos, menos Marco Antônio Mallagoli, de 68 anos. O presidente do fã-clube Revolution já tinha combinado com o empresário do cantor que gostaria de conhecê-lo pessoalmente. Dali a pouco, Mallagoli entrou no camarim de Paul. Além de presenteá-lo com um contrabaixo da marca Dolphin, tirou fotos e, esbanjando corujice, falou dos filhos: Janaína, de quatro anos, que cantava Yesterday como ninguém, e João Paulo, de dois, que ganhou esse nome graças à dupla Lennon & McCartney. Na hora da despedida, Paul pediu a Mallagoli que voltasse no dia seguinte e, se possível, levasse os filhos. No sábado, Mallagoli quase caiu para trás ao ouvir Paul entoar os primeiros versos de Yesterday para Janaína. "Emocionante? Fantástico? Maravilhoso? Não tenho palavras para descrever o que senti ao ver meu ídolo brincando com meus filhos. Foi uma emoção sem igual", afirma. Naquela noite, Paul realizou o primeiro de seus dois shows no Maracanã para um público estimado de 60 mil pessoas. A Polícia Militar montou um esquema de segurança com 1,3 mil homens. Além de cambistas e penetras, a PM deteve dois homens armados com pistolas automáticas. "Nos arredores do Maracanã, havia uma quantidade enorme de produtos à venda por camelôs e ambulantes: fotos, camisas, bonés. Lá pelas tantas, passou um gaiato, gritando: 'Olha o biscoito do Paul!'. Biscoito do Paul? Que história é essa?", quis saber. "É biscoito de 'Paulvilho', respondeu o sujeito", diverte-se o jornalista Leandro Souto Maior, de 47 anos, dono da Casa Beatles, um misto de bar e museu do quarteto de Liverpool em Visconde de Mauá, no município de Resende, a 164 quilômetros da capital. A montagem do palco, de 600 metros quadrados e 12 metros de altura, mobilizou 400 homens, entre técnicos e operários. O gramado foi protegido por placas de madeira. "Temiam que o espetáculo estragasse o futebol de seus craques. Não deve ter atrapalhado muito. O Brasil foi campeão do mundo quatro anos depois", brincou o cantor, em entrevista ao jornal O Globo, de 22 de maio de 2011. Antes do início do show, um vídeo dirigido pelo cineasta Richard Lester, o mesmo de A Hard Day's Night (1964) e Help! (1965), compilou diversas fases da carreira do cantor. "O momento mais marcante da apresentação foi a abertura. Eram três telões, de altíssima definição, contando a história da banda, desde o auge da Beatlemania até a carreira solo do Paul. Foi impactante", aponta Leandro Souto Maior. Ao longo de duas horas e meia, Paul e sua banda tocaram 30 canções. Havia músicas de todas as fases, desde os clássicos dos Beatles, como Yesterday, Let it Be e Hey Jude, até canções do mais recente álbum, como My Brave Face, Figure of Eight e We Got Married, passando por "hits" dos Wings, como Jet, Band on the Run e Live and Let Die. Durante as apresentações, Paul dedicou The Fool on The Hill a John, George e Ringo, e My Love à mulher, fotógrafa e tecladista, Linda: "Minha gatinha linda!", arriscou, ao microfone. Roqueiros de diferentes gerações, como Erasmo Carlos, Rita Lee e Evandro Mesquita, assistiram aos shows. "O Paul não precisava mais fazer shows. Faz porque gosta. Ainda hoje, o cara faz shows de quase três horas, com uma pujança invejável", elogia o baterista João Barone, do grupo Os Paralamas do Sucesso, que cresceu ouvindo os LPs dos Beatles que os irmãos compravam. Para o cantor Léo Jaime, o ponto alto da apresentação foi a canção I Saw Her Standing There, que abre o primeiro álbum dos Beatles, Please Please Me (1963). "Nunca foi uma das minhas canções prediletas, mas quando ouvi ali, tocada ao vivo, senti uma energia mágica, que transcende melodia e letra, e contagia a todos. Foi quase uma epifania, difícil de explicar. Coisas do rock", arrisca o roqueiro. Entre um show e outro, Paul e a família ficaram hospedados na suíte presidencial do Rio Palace. Em uma das vezes em que apareceu na janela, o cantor vestia a camisa 10 da seleção brasileira. Segundo seu assessor de imprensa, Jeff Baker, Paul trouxera o uniforme de casa, na bagagem. Os integrantes da banda até que tentaram jogar uma pelada nas areias de Copacabana, mas a chuva, teimosa, não deixou. No domingo, por volta das 18h30, Paul e sua trupe seguiram rumo ao Galeão. Desde então, voltaram oito vezes ao Brasil — a última delas em 2019, com a turnê Freshen Up. Ao todo, foram 27 shows em 11 Estados e no DF. "Já assisti a mais de 130 shows do Paul e, se pudesse, assistiria a mais uns 300. Um é sempre melhor que o outro e o último é sempre o mais emocionante de todos. O mais curioso é que eu sempre prometo a mim mesmo que, dessa vez, não vou chorar e, logo aos primeiros acordes, já estou me debulhando em lágrimas", emociona-se Mallagoli.
2020-04-21
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cultura
A praça e o poeta: o último Carnaval de Moraes Moreira
"Lá onde está tua estátua / O nosso amor se completa / Dor e prazer tem de sobra / Poeta. A luz pela praça se espalha / E a sombra da mão se projeta / Dar e receber é tua obra / Poeta." Este é um trecho da canção Monumento Vivo, uma das tantas em que Moraes Moreira faz referência a um local específico de Salvador (e do Carnaval): a Praça Castro Alves. Fincada no Centro Histórico da capital baiana, a estátua do poeta Castro Alves (1847-1871) repousa na "côncava praça", como Moraes também cantou na música Cidadão. Pois foi bem ali, "aos pés do poeta", que o também poeta Moraes Moreira entrou para a História em 1975 como primeiro cantor de trio elétrico - uma invenção baiana - e, no dia 22 de fevereiro deste ano, realizou sua última apresentação de Carnaval. O local não poderia ser mais adequado para o que, agora se sabe, era uma despedida. Nesta segunda-feira (13/04), Moraes foi encontrado morto em seu apartamento no Rio de Janeiro, vítima de infarto, de acordo com sua assessoria de imprensa. Ele tinha 72 anos. "Eu tava lá. Aliás, todo ano, desde que me recordo por gente, sempre estive com Moraes em todas as vezes que ele tocou na Castro Alves. E esse show, por incrível que pareça, parecia uma despedida mesmo", afirma o jornalista e escritor Franciel Cruz. Ele lembra que, diferentemente de apresentações anteriores, Moraes não tinha ao seu lado o filho Davi, com quem vinha dividindo o comando dos shows. Entretanto, na percepção de Franciel, aquela ausência fez com que o artista mostrasse mais vigor. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Ele estava com a voz melhor do que nos últimos shows. Talvez tenha sido o show mais energético dele desde que a voz ficou fugidia. Como não havia Davi, ele teve que tirar força e voz num sei de onde para segurar a praça", diz. Franciel conta que, com a notícia da morte de Moraes Moreira, um amigo seu afirmou que Moraes fora o principal inventor do Carnaval de Salvador, mais até do que Osmar Macedo e Dodô Nascimento, que criaram o trio elétrico em 1950. Poeticamente, Franciel discorda: "Moraes não inventou o Carnaval. Ele é o Carnaval". De fato, Moraes Moreira assim definiu a si mesmo na música Eu sou o Carnaval, cantada em coro pelos foliões naquele último show da Praça Castro Alves. Coro que se repetiu em canções suas que, nas ruas da Bahia, são tidas como hinos, a exemplo de Chão da Praça (sempre a Castro Alves), Chame Gente, Vassourinha Elétrica e Pombo Correio. "Foi uma energia massa esse show. Moraes na Castro Alves faz levitar os deuses do Carnaval", diz o cineasta Mateus Damasceno. De antemão, ele nem tinha planos de curtir aquele sábado de Carnaval, mas foi chamado por amigos para acompanhar um trio elétrico que desfilaria à noite. Então, colocou uma condição: "Só vou se formos mais cedo pegar o pôr-do-sol na Castro Alves com Moraes Moreira". "Abrir o Carnaval daquele jeito foi lindo. E as pessoas que fomos encontrando na praça tornaram aquele momento muito íntimo e particular, mesmo sendo no meio do Carnaval." O jornalista André Uzêda também estava lá e lembra-se de um Moraes "muito bem-humorado". "Era até comum ele dar esporro por alguma coisa no Carnaval, mas naquele dia ele levou tudo muito de boa. A praça não tava muito cheia, mas ele brincou muito com quem tava ali e se mostrou feliz por ter tanto jovem", conta. O desfecho do show, no entanto, foi estranho, nas palavras de Uzêda. Ele diz que um trio elétrico precisou cruzar a Castro Alves e Moraes interrompeu sua apresentação, pedindo para o público abrir espaço. "Nessa hora, eu fui pegar uma cerveja. Quando voltei, tinha acabado tudo. Acho que tinha estourado a hora e a produção pediu pra recolher. Foi um término do nada. Uma despedida sem despedida." No dia anterior, 21 de fevereiro, Moraes Moreira fez seu penúltimo show de Carnaval, desta vez no Largo do Pelourinho. Ali, a voz já não exibia a mesma potência e limpidez do auge da carreira, o que não foi suficiente para desanimar o público. "Na sexta-feira de Carnaval, ele parecia mais disposto que no show anterior, que eu vi no Pelourinho também, em janeiro. E por um momento me senti no melhor do Carnaval, com todos dançando, cantando, muitos fantasiados, inclusive eu. Pra mim, foi uma linda despedida. A música de Moraes Moreira me acompanha em todas as fases da minha vida, desde a infância, herança de meu pai, fã dos Novos Baianos", diz a jornalista Mara Rocha. Naquele dia, ela tinha a seu lado a amiga Sintia Cardoso. Cientista social e professora, Sintia se diz orgulhosa por ter nomes como Moraes Moreira como representantes da cultura baiana e brasileira. "São artistas como ele que mantém viva a essência do Carnaval, da festa sem separação, sem bloco. Estou muito triste com essa notícia, mas Moraes é um clássico. E clássico é pra sempre". Os blocos citados por Sintia sempre foram, inclusive, alvo de críticas de Moraes Moreira, que chegou a se afastar da folia de Salvador durante cerca de 20 anos, entre as décadas de 1990 e 2000, atribuindo sua decisão à discordância com o que, segundo ele, seria a lógica mercantilista que se espalhou pelo Carnaval. Em meados da década de 2000, ele voltou à festa que ajudou a popularizar, puxando ao lado do filho Davi Moraes os chamados trios independentes, que desfilam sem cordas, para o folião "pipoca". "Nossas canções resistiram a tudo e a todos, dando mostras de que vieram para ficar. Passada a euforia dos sucessos imediatos, elas ressurgem gloriosas, no gogó dos foliões, inteiras e renovadas pela juventude. Reforçam assim um conceito que tenho: um bom Carnaval se faz com passado, presente e futuro", disse Moraes em uma entrevista ao Jornal Correio, de Salvador, em 2017. "Ali, no palco do Pelourinho, foi a última vez que vi e ouvi Moraes cantar. Antes disso, muita gente já vinha falando que ele estava sem voz, mas a voz estava lá, rouca e desgastada por décadas de cantoria, mas estava lá, cheia de histórias e história, plena de força e poesia", observa o produtor cultural Alan Lobo. Ele define Moraes como "parte viva da história da música brasileira" e "motor criativo" de um dos grupos mais emblemáticos de nossa música, os Novos Baianos. "No Pelourinho, naquela noite, Moraes parecia cansado, a voz parecia cansada, mas o caso é que não sabemos perceber quando a voz de nossos mestres precisa calar pra ser reconhecida." Naquela sexta-feira de Carnaval, o show que antecedeu a apresentação de Moraes Moreira no Pelourinho foi do grupo Trio Elétrico Armandinho, Dodô e Osmar, formado pelos quatro filhos de Osmar Macedo, um dos inventores do trio elétrico. Integrante do grupo, o guitarrista Armadinho foi surpreendido pela morte inesperada de um parceiro que o acompanhou em tantos palcos e carnavais. "Acabo de perder um amigo-irmão. A gente brinca sempre que somos quatro irmãos do Trio Elétrico e Moraes é o quinto", disse, em depoimento emocionado enviado pela assessoria de imprensa à BBC. "A história do trio elétrico está nas músicas de Moraes. E quando a gente só fazia som instrumental em cima do trio, ele surpreendeu e mostrou que dava pra cantar, mesmo com o som meio precário. Aquilo mudou a história, todo mundo foi atrás", comenta Armandinho. "Ele me ligou sexta-feira (10), conversamos mais de uma hora. E eu sonhei com ele essa noite. No sonho, a gente tava saindo de um show juntos e parava pra tomar uma saideira, ele todo animado. Acho que o sonho foi isso: ele veio me visitar pra se despedir". Para a cantora Daniela Mercury, a morte repentina de Moraes Moreira representa a partida de um "artista seminal, que traduziu como poucos a essência do que somos". "Ele é uma referência para as músicas de trio elétrico, para frevos, sambas, para a MPB. Um compositor incrível, que fez muitas obras-primas, e ainda me deu de presente o Monumento Vivo, que eu gravei e todo mundo canta no Carnaval aquele refrão pedindo paz", observa Daniela, citando a canção que abre esta reportagem. "Toda vez que passo pela estátua de Castro Alves eu só lembro dele. É muito triste essa morte no meio dessa pandemia, em que estamos todos preocupados com o Brasil e o mundo. Nem poderemos homenageá-lo da forma que ele merece", disse ela à BBC News Brasil. Justamente para evitar aglomeração, a família de Moraes Moreira não divulgou informações sobre o sepultamento. Também lamentando o impedimento da homenagem causado pela pandemia do novo coronavírus, o músico e produtor José Enrique Iglesias deixa no ar uma sugestão. "Num conto que algum escritor ainda vai escrever, Moraes poderia ser cremado e, no próximo Carnaval, fazemos uma celebração na quarta-feira de cinzas, em plena Praça Castro Alves. É muito triste isso. Moraes merece um Carnaval inteiro de despedidas". Nascido na cidade baiana de Ituaçu, Antônio Carlos Moreira Pires, o Moraes Moreira, iniciou a carreira tocando sanfona. Já morando em Salvador, juntou-se a Baby Consuelo, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor e Luiz Galvão para formar os Novos Baianos, integrando a banda entre 1969 e 1975. Ao lado de Luiz Galvão, compôs boa parte das canções dos Novos Baianos, incluindo clássicos como Preta Pretinha e Mistério do Planeta, do icônico álbum Acabou Chorare, de 1972. Em 1975, Moraes deu início a uma vitoriosa carreira solo, lançando mais de 20 discos em que exibe sua versatilidade de compositor, mesclando influências que vão do samba ao baião, passando por ijexás. Em 2016, reencontrou os parceiros dos Novos Baianos para uma turnê comemorativa que esgotou ingressos por todo o país. Além dos discos, Moraes lançou os livros Sonhos Elétricos, Poeta não tem idade e A História dos Novos Baianos e Outros Versos, em que narra, por meio da poesia, a trajetória do grupo. Sua morte deixa vaga ainda a cadeira de número 38 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel.
2020-04-13
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cultura
7 músicas para conhecer melhor a carreira de Moraes Moreira
Baiano da pequena Ituaçu, Antonio Carlos Moreira Pires — ou apenas Moraes Moreira — embalou as festas de um Brasil inteiro. Do rock ao samba, passando pelo forró, axé ou frevos, o cantor e compositor deixou sua marca na MPB durante mais de 50 anos de carreira. Aos 72 anos, Moraes Moreira foi encontrado morto em sua casa, no Rio de Janeiro, nesta segunda-feira, 13, após sofrer um infarto, segundo sua assessoria. "Deixa saudade e uma grande obra", escreveu Gilberto Gil, em homenagem ao amigo e conterrâneo. Para relembrar a carreira desse artista que fez história com o grupo Novos Baianos e em carreira solo, a BBC News Brasil selecionou sete músicas para conhecê-lo melhor. Confira: "Assim eu ia lhe chamar, enquanto corria a barca". Com letra de Luiz Galvão, Moreira musicou aquele que seria um dos maiores sucessos dos Novos Baianos. A canção faz parte do álbum Acabou Chorare, de 1972, e não demorou muito para virar febre nas rádios pelo país. O grupo foi formado em 1969, em Salvador, do encontro de Luiz Galvão, Moreira, Paulinho Boca de Cantor e Baby Consuelo, hoje conhecida como Baby do Brasil. Em 1970, lançaram o primeiro LP, É Ferro na Boneca, com rock e inspirações psicodélicas e da Jovem Guarda. A letra de Preta Pretinha, repetitiva, vem de um romance frustrado de Galvão com uma jovem de Niterói (RJ), como ele contou no livro Anos 70: novos e baianos — daí a referência à barca, que liga o Rio de Janeiro à cidade do outro lado da Baía de Guanabara. Não é exagero dizer que o carnaval brasileiro tem uma mão de Moraes Moreira. Foi com a marchinha Pombo Correio, em 1978, que a arte de Moreira ganhou as ruas em fevereiro. Até então, os trios elétricos de Salvador, criados por Dodô e Osmar, tocavam apenas música instrumental. Por isso, Moreira é considerado o primeiro cantor de trio elétrico do Brasil, abrindo o caminho para uma geração de artistas da Bahia. Moraes Moreira contava que a ideia dessa canção surgiu após uma noitada no Rio de Janeiro, junto ao seu amigo João Gilberto. A presença do cantor na comunidade dos Novos Baianos, que passaram a morar no Rio, é considerada essencial para o caráter múltiplo do grupo, fundindo samba, frevo, baião, rock, etc. "Numa daquelas ladeiras maravilhosas do Rio, João viu uma mulata descendo de manhã com todo o suingue, toda energia, partindo pra vida, mas sem se queixar de nada. Ele olhou e disse: 'Olha lá o Brasil descendo a ladeira'. E daí nasceu essa música", declarou Moreira na gravação do acústico MTV, em 1995. O sucesso está no disco solo homônimo, lançado em 1979 e que consolidou a carreira de Moreira nos anos seguintes. Do mesmo disco Lá vem o Brasil descendo a ladeira, veio outro hit de Moreira: Chão da Praça. A canção é considerada uma das antecessoras do que viria a ser rotulado como axé music na década de 1980. A música é uma composição de Moreira com o cearense Fausto Nilo. No livro Sonhos Elétricos, Moreira contou qual foi a ideia para a composição: " Era na verdade uma grande homenagem à praça do Poeta, que já vinha sendo referenciada também por outros artistas." A praça em questão é a Castro Alves, no coração do centro de Salvador, em homenagem ao autor de O Navio Negreiro. A canção segue sendo um dos hinos do carnaval da Bahia. Com composição conjunta com Luiz Galvão e Pepeu Gomes, Besta é Tu ficou imortalizada na voz de Moraes Moreira. A canção também faz parte do Acabou Chorare, o álbum mais emblemático dos Novos Baianos. "Besta é tu" é, na verdade, uma forma de aprendizado de violão, chamada assim no interior da Bahia onde Moreira nasceu. "É no tom de Lá menor, que é o primeiro tom que a pessoa aprende. Quando consegue fazer o besta-é-tu, é uma felicidade", demonstrava Moreira em seus shows. Em 1980, Moares Moreira lançou o LP Bazar brasileiro, em carreira solo. Em parceria com Jorge Mautner, um dos grandes nomes da MPB, compôs a música de Lenda do Pégaso, uma fábula em forma de canção, comprovando o teor criativo e inovador do trabalho de Moreira. A canção quase infantil é sobre um passarinho tido como feio que queria ser outras aves, enxergando nelas qualidades que não possuía. "Aí então Deus chegou e disse: pegue as mágoas, pegue as mágoas e apague-as. Tenha o orgulho das águias. Deus disse ainda: é tudo azul, e o passarinho feio virou o cavalo voador, esse tal de Pégaso", encerra a música. Também parte de Acabou Chorare e também da parceria entre Moreira e Luiz Galvão, Mistério do Planeta é um dos sucessos que permanecem na boca dos brasileiros até hoje. "Vou mostrando como sou. E vou sendo como posso. Jogando meu corpo no mundo. Andando por todos os cantos", começa a canção. É uma das músicas que mostra um dos aspectos importantes da música dos Novos Baianos e Moraes Moreira, que é a incorporação de diversas vertentes musicais e a ode à liberdade artística. Em 17 de março, Moreira publicou o seu último post no Instagram, com um cordel sobre a quarentena, onde escreveu: Vivemos num mundo insano. Queremos mais liberdade. Pra que tudo isso mude. Certeza, ninguém se ilude. Não tem tempo, nem idade".
2020-04-13
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cultura
Como adaptar os finais de semana à vida em quarentena
"O que é um fim de semana?" Uma das frases mais marcantes da personagem Violet Crawley na série de TV Downton Abbey, uma fala exclamada com surpresa pela aristocrata quando escuta em um jantar um hóspede falar de seu emprego, pode estar começando a fazer mais sentido para muita gente isolada socialmente por conta da pandemia de coronavírus. Se você ainda estiver de pijama e a TV e o computador do trabalho estiverem ligados, importa mesmo que horas são? Se é preciso jogar uma espécie de pingue-pongue para realizar as tarefas do trabalho e atender à fome das crianças, é relevante saber que dia da semana é? O que é realmente um fim de semana em um mundo em quarentena? "Um dos desafios da crise atual é que muitos de nossos horários estão completamente desarrumados", diz Laurie Santos, professora de psicologia da Universidade de Yale, que ministra o popular curso "A ciência do bem-estar". "Os seres humanos são criaturas de hábitos, portanto, ter um horário regular para quando trabalhamos e quando temos lazer pode nos ajudar a reduzir a incerteza, especialmente em um período como o atual, ainda mais incerto." Em condições normais, essa regularidade é determinada por forças externas a nós: horários da escola e do metrô, reuniões de trabalho e compromissos médicos. Sem esta agenda externa, pessoas em todo o mundo estão precisando usar a criatividade para gerar suas próprias maneiras de distinguir o tempo de ócio do tempo normal. Chaney Kourouniotis é diretora de marketing de uma empresa de viagens em Seattle, EUA. Embora esteja trabalhando em casa agora, ela continuou a acionar o despertador para acordar e estar em sua mesa no horário normal de expediente. Dormir é um prazer que ela reserva para os fins de semana. Para também garantir algum tempo de diversão para ambos no sagrado fim de semana, eles instituíram uma regra compartilhada: no sábado e no domingo, cada um deles tem três horas sozinho, em qualquer espaço que possam encontrar no apartamento. "Os outros membros da família fingem que a pessoa descansando não está por perto", diz Seftel. "Alternamos manhãs e tardes. No último fim de semana, consegui o sábado de manhã e domingo à tarde para ler na varanda ao sol, me trancar no quarto para assistir Netflix, para fazer o que quisesse." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por que os fins de semana são importantes? Diferentemente da rotação diária de 24 horas da Terra ou de sua jornada de um ano ao redor do Sol, a semana de sete dias é uma construção puramente social, como observa a jornalista Katrina Onstad em seu livro The weekend effect: the life-changing benefits of taking time off and challenging the cult of overwork ("O efeito fim de semana: os benefícios arrebatadores de tirar um tempo de descanso e desafiar o culto ao trabalho excessivo", em tradução livre). Na verdade, o fim de semana de dois dias nasceu de uma outra crise, uma econômica, lembra Onstad. Na Grande Depressão da década de 1930, muitos setores que ainda não haviam adotado a semana de 40 horas de trabalho concentraram o expediente dos funcionários para cinco dias por semana, com o objetivo de que menos horas de trabalho pudessem ser distribuídas entre mais pessoas. Em 1938, a semana de trabalho de 40 horas foi consagrada na lei americana com o Fair Labor Standards Act; no Brasil, a Constituição de 1934 passou a prever oito horas de trabalho diário. Para alguns, a atual pandemia também levará a mudanças de longo prazo. "Mesmo antes da pandemia de coronavírus, a semana de trabalho tradicional já estava mudando", diz Brad Beaven, professor de História da Universidade de Portsmouth, citando o aumento do trabalho remoto e autônomo. "Estranhamente, o isolamento social está permitindo ao trabalhador determinar seu próprio ciclo de produtividade, seus intervalos e sua própria rotina de trabalho." Como a atual crise mudará definitivamente os hábitos da sociedade será algo a ser respondido nas cenas dos próximos capítulos. Para algumas pessoas, porém, estabelecer algum tipo de agenda para os dias e semanas é algo crucial para sobreviver à incerteza e à tensão das próximas semanas. "Se você não se importar com que as coisas continuem caminhando, isso (controlar o tempo) não tem importância", diz Nir Eyal, consultor de produtividade e autor de Indistraível: como dominar sua atenção e assumir o controle de sua vida. "Agora, se você precisa realizar as coisas, não é opcional. Precisamos de estrutura em nossos dias e sabemos que, sem ela, as pessoas enlouquecem. Literalmente. As taxas de depressão e ansiedade aumentam [em situações] quando há baixo controle e altas expectativas." Eyal se refere precisamente a um estudo de 2006 que mostrou que pessoas em empregos onde tinham pouco controle sobre suas condições de trabalho, altas demandas psicológicas e assistência social mínima eram mais propensas a ter distúrbios de saúde mental, como depressão e ansiedade. Traga isso à nossa situação atual, onde estamos a maioria confinados, sem poder encontrar parentes e amigos, e equilibrando as demandas simultâneas de trabalho, família e educação em meio a uma pandemia. Há muita coisa fora do nosso controle. Manter algum tipo de estrutura diária nos ajuda a focar no que podemos. "Sugiro que as pessoas encontrem maneiras de replicar o que faziam nos finais de semana, por exemplo, de forma criativa. Você tomava um bom café da manhã aos domingos com as amigas? Faça algumas panquecas em casa e encontre-as no Zoom (plataforma de reuniões online). Sábado era seu dia de correr? Faça uma corrida ao ar livre, mantendo distâncias seguras, ou se exercite em casa", diz Laurie Santos. "A ideia é encontrar maneiras de simular as rotinas que tínhamos anteriormente, tanto quanto possível, para trazer alguma normalidade de volta à situação estranha em que estamos." O conteúdo da sua rotina não é tão importante quanto o fato de você ter uma, acrescenta Eyal. A crise atual pode ser uma oportunidade de mudar as coisas e criar um cronograma que acomode seus ritmos, em vez dos do empregador. E você também pode descobrir o que gosta ou não nisso. Carol Horne, que trabalha para uma instituição de caridade para idosos em Londres, ofereceu aos filhos, de nove e sete anos, a opção de estudar de quarta a domingo, para que ela pudesse ter mais tempo para ajudá-los nos trabalhos escolares durante os fins de semana. Mas sua filha mais velha não se adaptou muito. "Ela disse que gosta do fim de semana com um sábado e um domingo", conta Horne. "E como a normalidade fugiu pela janela, eu queria dar a ela um pouco de rotina regular para se sentir mais firme."
2020-04-13
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-52235527
cultura
'Se morre sua mãe, é 100%. A perda é absoluta', diz médica paliativista sobre ameaça do coronavírus
Lidar com doenças dolorosas e incuráveis faz parte do cotidiano da médica Ana Claudia Quintana Arantes há anos. Na verdade, esta é sua especialidade. Mas uma doença nova e desconhecida como a causada pelo novo coronavírus traz um cenário "inimaginável" e "traumático" para etapas da vida que já são naturalmente desafiadoras, como a consciência da finitude e o luto, diz Arantes, autora dos livros A morte é um dia que vale a pena viver e Histórias lindas de morrer — lançado no final de março, virtualmente por conta da pandemia. "É traumático porque foge de todos os parâmetros de organização da perda: não tem acesso ao remédio, não tem acesso ao teste, não tem acesso à entubação, não tem acesso à família", explica Arantes, formada em medicina pela Universidade de São Paulo, com residência em geriatria e gerontologia e especialização em cuidados paliativos pelo Instituto Pallium e pela Universidade de Oxford. A médica aponta para o bloqueio ao acesso da família a pacientes internados em UTIs e das restrições a velórios, por riscos de contaminação, como medidas inescapáveis hoje para o controle da pandemia — mas que terão consequências altamente complexas para o processo de despedida de pacientes e de luto para suas pessoas queridas. "Se você pensa mais ou menos dez enlutados para cada morte, imagina os milhões de pessoas que ficarão inviáveis ou terão dificuldade de reabilitação para sua própria vida (por ter perdido alguém para a covid-19)." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sobre o percentual de letalidade do coronavírus, Arantes reconhece que ele é menor do que o de outras doenças, mas critica que considerar estatísticas na saúde é se distanciar "da experiência humana". "Se morre sua mãe, é 100%. Você pode pensar: 1% das mães morreram, 99% delas estão vivas. Acontece que para você é 100%. A experiência da perda é concreta e absoluta", define a médica, diretora da Casa Humana, que presta cuidados paliativos em domicílio para pacientes com diagnósticos como câncer e sequelas de AVC. Confira os principais trechos da entrevista. BBC News Brasil - A atual pandemia de coronavírus está impactando a relação das pessoas com a saúde e a morte? Ana Claudia Quintana Arantes - É como se o mundo todo estivesse com o resultado de uma biópsia na mão, para abri-lo, com um possível diagnóstico de uma doença que ameaça a continuidade da vida. Com o coronavírus, está todo mundo com a possibilidade de se contaminar e, se contaminando, a possibilidade de perder sua vida. Ou alguém da sua família. A questão de risco de vida está batendo na porta de todo mundo ao mesmo tempo. É o mundo inteiro na mesma página agora, pode ser americano, canadense, sul-americano... Quando você tem a consciência de que está em risco, muitos sentimentos vêm. O medo é o principal deles; mas também a urgência pela vida. Quando você tem essa percepção, você pensa: por que eu não disse que amava? Por que eu não dei valor a essa vida quando ela era acessível? Quem nunca pensou nesse assunto antes, está agora vivendo um sofrimento muito intenso. Além da questão de ficar em isolamento. Quando havia problemas de ansiedade, uma crise dentro de si mesmo, você podia fugir para fora. Agora, tem que ficar dentro de casa. Ficar em casa para muita gente significa ficar em si mesmo. Só que muita gente habita um mundo interno muito hostil. Além das questões da convivência, das pessoas entrando em contato com uma realidade afetiva que nunca foi de fato enfrentada, como os casais. Agora é a hora da verdade. BBC News Brasil - Você lida em seu trabalho com pessoas diagnosticadas com doenças difíceis, incuráveis. Mas agora estamos falando de uma doença nova e desconhecida. Isso traz implicações diferentes? Ana Claudia Quintana Arantes - Sim, porque não haverá a oportunidade de um paciente grave ter tempo com as pessoas. No meu livro A morte é um dia que vale a pena viver, eu fiz um convite às pessas refletirem sobre sua finitude, tornando a vida digna, para que não se precise pensar em uma morte digna, e sim na vida. Para que pessoas, mesmo gravemente enfermas, possam estar presentes no encontro com as outras. Mas agora, a gente vive um momento em que isso não é possível. Por isso, a reflexão é muito mais urgente, porque ela diz respeito a uma vida que não está acessível agora. Nós vamos passar por um processo de reabilitação da vida. Para ninguém a vida será a mesma depois disso. Mesmo quem não perder ninguém, que tiver só perdas econômicas, vai ter uma experiência de olhar para as condições dela, materiais, profissionais, de outro jeito. No mundo médico, até outro dia era uma crise absurda contra a telemedicina, "que absurdo os profissionais não terem contato com o paciente". Uma epopeia. E aí, do dia pra noite, a telemedicina é liberada, publicada no Diário Oficial. É uma quebra — uma quebra não, uma dissolução de paradigmas. Eles de repente desapareceram por conta das necessidades. BBC News Brasil - Para algumas pessoas, essa pandemia ampliou a possibilidade do teletrabalho, mas pra outras, tornou ainda mais urgente questões sociais como condições precárias de moradia. Ana Claudia Quintana Arantes - Também é uma realidade que ninguém se importava antes e estamos falando dela agora. Vou te falar minha opinião, que não sei se vale muita coisa, mas sobre essa demanda dos empresários para que se volte a trabalhar logo. Se as pessoas voltam a trabalhar, vai ter morte aos milhares. E essas pessoas em subcondição de vida vão morrer em maior número. Essas pessoas (empresários que adotam esse tipo de discurso priorizando a economia) não entendem que não vai ter chão de fábrica, porque as pessoas vão morrer. Estão lutando pela retomada de economia em cima de cadáveres. Podem falar: mas é pior para as pessoas pobres ficarem em casa. Na verdade, o pior já aconteceu: um total descaso da sociedade em viabilizar uma vida digna para essas pessoas. De ter um lugar habitável, estrutura de saneamento básico, escolas, segurança, saúde. As pessoas destruíram o sistema de saúde, inviabilizaram a ciência e agora a única forma de sobreviver é retornando a condições de acesso à saúde que estavam sendo destruídas. De repente, em poucas semanas, tem que reconstruir toda a assistência de saúde e o investimento na ciência porque existe uma necessidade de resposta que as grandes corporações não trazem. São os cientistas que têm que decidir sobre a dosagem de anticorpos, ou a produção de uma vacina. Quem estava dedicado a isso, perdeu sua bolsa de pesquisa. BBC News Brasil - Principalmente no início dos casos de covid-19, políticos e até médicos minimizaram o perigo desta doença, posição que foi mantida mais recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro, que falou de uma "gripezinha". Sabemos das inúmeras perdas que essa doença já causou pelo mundo, mas também é um fato que a mortalidade dela é diferente de outras doenças infecciosas, por exemplo. Por que a reação a essa doença é diferente? Ana Claudia Quintana Arantes - Esse papo furado de estatística só pertence a quem está interessado no resultado da estatística. Sou médica, e no nosso meio, quando falamos de estatísticas em congressos, mestrados, doutorados, estamos nos distanciando da experiência humana do processo. Estatisticamente, o percentual de morte é baixo. Concordo. A questão é: é um vírus que contamina muito rápido. Então, percentualmente, a letalidade é baixa, mas em números absolutos, é indecente. É inimaginável pensar que pode haver 200 mil mortes em uma semana. Aí vem o papo: ah, a dengue mata também, o H1N1 mata também. Mata, mas a proporção está diluída ao longo do tempo. E o serviços de saúde bem o mal se acomodam em viabilizar os cuidados. O que está acontecendo é inviável. Então, a estatística é linda para publicar artigo, para palanque político. Mas se morre sua mãe, é 100%. Você pode pensar: 1% das mães morreram, 99% delas estão vivas. Acontece que para você é 100%. A experiência da perda é concreta e absoluta. (Nota da redação: Hoje, a estimativa da OMS é que 3,4% das pessoas infectadas pelo vírus morrem, mas alguns cientistas estimam que esse índice gire em torno de 1%.) BBC News Brasil - O luto já é difícil, e o coronavírus está mudando algumas partes do processo. Ana Claudia Quintana Arantes - Para cada pessoa que morre, a gente estima dez enlutados. O processo de luto é de altíssima complexidade quando você tem um adoecimento traumático como é o coronavírus. Uma pessoa pode estar bem, até ter doenças crônicas, é infectada e em três semanas morre. E sem poder ter contato com a família. É traumático porque foge de todos os parâmetros de organização da perda: não tem acesso ao remédio, não tem acesso ao teste, não tem acesso à entubação, não tem acesso à família. É uma desorganização diante do que antes era considerado normal, esperado. E pra quem fica, o processo de luto pode inviabilizar uma vida — por meses, anos, afetando no trabalho, os relacionamentos... Então, se você pensa mais ou menos dez enlutados para cada morte, imagina os milhões de pessoas que ficarão inviáveis ou terão dificuldade de reabilitação para sua própria vida (por ter perdido alguém para a covid-19). Essa é a complexidade da situação. BBC News Brasil - Por que fazer velórios normalmente, ou ter contato com o corpo, coisas inviabilizadas agora pela covid-19, podem fazer falta no processo de luto? Ana Claudia Quintana Arantes - A ritualização, como o funeral, faz parte de uma elaboração da nova etapa da pessoa que fica. Cada cultura vai ter seu ritual. Quando você vê o corpo, enterra, chora, faz a missa de sétimo diz, faz as rezas, isso estrutura o processo. É como se você fosse fazer uma trilha, e tem uma sinalização. A ritualização dá seguranças. Sem essa ritualização, a emoção da perda é arrebatadora. BBC News Brasil - Nas situações em que um paciente internado não pode receber visitas, o profissional de saúde que estará ao lado dele terá ainda mais importância, certo? Ana Claudia Quintana Arantes - Ainda mais importância, porque possivelmente será a única forma de conexão humana ainda disponível. BBC News Brasil - Para profissionais como esses e que nunca tiveram muito contato com as noções dos cuidados paliativos, o que você daria como orientação? Ana Claudia Quintana Arantes - Quando elas verem que uma pessoa está morrendo, idealmente antes de entubar o paciente, eu diria: farei o melhor que eu puder para a sua vida. Se eu falo isso na hora de entubar uma pessoa, cria-se uma conexão muito forte, de confiança. Se a última coisa que você ouvir na sua vida for isso, vai ter valido à pena. No momento que você estava na sua maior fragilidade, teve alguém que falou: farei o possível pela sua vida. Não é nem para salvar sua vida, mas o possível pela sua vida. Se o paciente realmente estiver morrendo, já foram tomadas todas as medidas e ele não está respondendo, você fala para ele: você é muito corajoso. São duas coisas que acredito precisarem fazer parte da experiência humana. Uma delas é saber que você é importante para alguém; e outra é se ver como alguém de valor. Ana Claudia Quintana Arantes - Nenhum preparo. Tem muitos jovens que estão sendo nomeados chefes de UTI e não têm condições de saber escolher; vão fazer escolhas com bases intuitivas, ou minimamente qualificadas... E vão sofrer muito por isso. Mesmo as pessoas mais experientes, ninguém está preparado. BBC News Brasil - No ramo dos cuidados paliativos, tem iniciativas pelo mundo na atual pandemia que têm te chamado a atenção? Ana Claudia Quintana Arantes - Existe um movimento mundial em cima dessas prerrogativas de paliativos de emergência. Centros de referência de cuidados paliativos estão promovendo documentação, treinamentos, para que agir no meio desta emergência. Está tendo também uma campanha de doação de tablets em Portugal para uso em despedidas (entre pacientes e pessoas queridas). Aqui no Brasil, estamos orientando profissionais de saúde que podem oferecer cuidados paliativos via Casa do Cuidar, Associação Nacional de Cuidados Paliativos, várias Unimeds que têm a rede de cuidados paliativos... Estamos formalizando treinamentos para manejo de sintomas respiratórios, como tosse e falta de ar. O acesso a medicações como morfina, a midazolam, que é um ansiolítico para controlar a falta de ar... Mas o Brasil já tinha muito pouco perto da necessidade que já tínhamos. Havia a estimativa de só 0,3% dos pacientes que precisariam de cuidados paliativos tinham acesso. Então estamos muito atrasados em números de equipes, mas a qualidade delas costuma ser muito boa. (Nota da redação: A médica menciona também que colaborou com a criação de uma guia para despedidas à distância, que está sendo desenvolvida por Tom Almeida, fundador do movimento inFinito. Procurado depois da entrevista, Almeida contou que o Guia de Rituais de Despedidas Virtuais será lançado em 15 de abril na internet, oferecendo orientações e dicas de plataformas que permitem, por exemplo, chamadas de vídeo para conectar pacientes internados e familiares). BBC News Brasil - Sendo geriatra, como você vê o tratamento, cultural mesmo, aos idosos nessa pandemia? Ana Claudia Quintana Arantes - Penso que a forma com a gente lida com os idosos no Brasil é bastante... imatura. A gente olha para o idoso como uma pessoa incapaz de compreender e como alguém que precisa obedecer um adulto jovem. Só que esse idoso é capaz e começa a se revoltar com isso (a tutela). O idoso, que está sendo muito agredido, tratado de forma pejorativa sobre o isolamento social, quando exige um espaço de escuta, está sendo massacrado. Eu não tive problemas com os idosos que cuido. Eu conversei com cada um deles, fiz consultas por vídeo (a médica diz que seus pacientes já eram atendidos por conta de outras condições de saúde, mas alguns têm suspeita de coronavírus; estes casos estão sendo monitorados). Também precisamos entender que alguns idosos também têm seu processo de negação, assim como os adultos.
2020-04-12
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52238892
cultura
'Tiger King': o que explica o sucesso de série da Netflix durante a quarentena
Intensa. Insana. Viciante. Não faltam adjetivos para descrever Tiger King, a série da Netflix que se tornou em um fenômeno no atual cenário de confinamento global. O documentário de sete episódios, cujo título completo é Tiger King: Murder, Mayhem and Madness ("A Máfia dos Tigres", na versão em português), está a caminho de desbancar a série Stranger Things como o maior sucesso da plataforma. Somente nos Estados Unidos, nos 10 primeiros dias após a estreia, havia 34,3 milhões de espectadores. No mesmo período após a estreia, Stranger Things teve 31,2 milhões, segundo dados da consultoria Nielsen. O novo sucesso da plataforma é centrado na grande rivalidade entre o comerciante de grandes felinos Joe Exotic, também conhecido como Tiger King, e a proprietária de uma reserva para esses animais, Carole Baskin. Mas a história vai muito além disso. Aviso: a partir de agora, esta matéria pode revelar detalhes da trama. Joseph Maldonado-Passage é um criador de grandes felinos que até poucos anos atrás era o dono e responsável por dirigir um parque de animais exóticos na cidade de Wynnewood, no estado de Oklahoma, nos Estados Unidos. Com camisas de cores chamativas, um corte de cabelo peculiar e sua propensão a provocar e se exibir, Joe Exotic se apresenta diante dos olhos dos espectadores como um excêntrico personagem, que se define como "um gay provinciano amante dos grandes felinos". É possível vê-lo conduzir tranquilamente sua caminhonete com um tigre enorme no assento do copiloto, entoar músicas country, participar de um reality show produzido por ele mesmo ou se casar com dois homens de uma vez em uma cerimônia cheia de convidados. A outra protagonista da série é a eterna inimiga de Joe, Carole Baskin, proprietária do Big Cat Rescue, um santuário que resgata grandes felinos em Tampa, na Flórida. No local, também conhecemos luzes, sombras e esquisitices ao longo do documentário. A grande disputa entre eles acaba com Joe Exotic preso, ao ser condenado a 22 anos de cadeia por crimes que incluem a intenção de contratar alguém para matar Baskin e outros delitos relacionados com riscos a espécies em perigo e conservacionismo. Até aqui, poderíamos pensar que a série é um simples relato do enfrentamento entre duas pessoas que atuam no mesmo negócio e, portanto, são adversárias. Um negócio em que se destaca uma reveladora cifra: nos Estados Unidos há cerca de 7 mil tigres em em cativeiro, enquanto apenas 4 mil vivem em liberdade em todo o mundo. Mas o sucesso do documentário está nas reviravoltas da trama, nas surpresas escondidas em cada episódio, na sucessão de entrevistados, que são estranhos e deixam o espectador com uma sensação de incredulidade e curiosidade para saber o que acontecerá depois. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Assim, se misturam espetáculos de animais com incêndios intencionais, alianças que se transformam em traições, um desaparecimento sem solução, parques semelhantes a seitas, relacionamentos polígamos, transações ilegais de felinos e animais exóticos e investigações secretas do governo federal dos Estados Unidos. Não há descanso nesta série. Ela combina combina o estranho com o cômico e, em alguns momentos, produz vergonha e desconforto, ao mesmo tempo em que deixa um pouco de tristeza pelo destino de seus verdadeiros protagonistas: os grandes felinos. Decepção com o resultado Várias pessoas que participaram da série protestaram pelo resultado final que aparece nas telas. É o caso de Mahamayavi Bhagavan "Doc" Antle, dono de um safári de grandes felinos em Myrtle Beach, na Carolina do Sul, que afirma que quando concordou em colaborar com a série, acreditava que seria um documentário sobre seu trabalho em defesa desses animais. Ele diz que não imaginava que os detalhes mais íntimos de seu estilo de vida apareceriam. No documentário, é possível vê-lo com várias mulheres, que ele parece controlar como se fosse o líder de uma seita. Mas sem dúvidas, a situação mais complicada para os produtores da Netflix é relacionada à própria Carole Baskin. Ela participa voluntariamente de entrevistas individuais e com o atual marido, Howard Baskin. 'Sem respeito à verdade' O problema é que o documentário chama a atenção para o caso do marido anterior de Baskin, Don Lewis, que desapareceu misteriosamente em agosto de 1997. Algumas das pessoas que aparecem na série apontam que a mulher o assassinou. Inclusive, algumas dizem que Baskin deu os restos do cadáver aos felinos ou o dissolveu em um ácido. Ela se defende das acusações, diz que as considera absurdas e argumenta que nunca foi acusada formalmente. Em uma longa publicação compartilhada nas redes sociais, Baskin escreveu que a série "tem uma intenção de sugerir, com mentiras e insinuações que não são confiáveis, que ela teve participação no desaparecimento do esposo Don há 21 anos". "A série apresenta isso sem nenhum respeito à verdade ou, na maioria dos casos, sem me dar a oportunidade de rebater as acusações absurdas antes de divulgá-las", acrescenta. "As mentiras depreciativas funcionam melhor para conseguir audiência", finaliza. A Netflix afirmou à BBC que não tem nada a dizer sobre o assunto neste momento. Baskin nunca foi formalmente acusada pelo desaparecimento de Don Lewis. No entanto, com o sucesso da série da Netflix, a delegacia que esteve à frente das investigações anunciou que está aberta a novas informações. Do outro lado, o nome de Joe Exotic chegou a uma coletiva de imprensa diária que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, dá sobre o coronavírus. Um repórter perguntou se Trump consideraria conceder um perdão presencial ao rei dos tigres. O presidente respondeu, em tom de brincadeira: "Vou estudar o caso".
2020-04-11
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52247779
cultura
6 ilustrações para ensinar as crianças a se protegerem do coronavírus (e para elas se divertirem colorindo)
Milhões de crianças ao redor do mundo estão em isolamento com suas famílias, sem poder ir à escola, nem fazer atividades fora de casa por causa da pandemia da covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus. Para essas meninas e meninos, assim como para os adultos, trata-se de uma situação excepcional que, a depender da idade, pode ser difícil de compreender. Especialistas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) recomendam falar com crianças sobre o coronavírus "de maneira simples, clara e tranquilizadora, abordando as emoções que eles possam estar sentindo". Entre as medidas que a Unicef destaca está proporcionar a eles informações sobre como se proteger do vírus, ensinando, por exemplo, a melhor técnica para lavar as mãos. Elas podem ser baixadas em versão preto e branco pelo link abaixo. Aí é só chamar a criançada para colorir. 'Fique em casa tranquilo' De acordo com a Unicef, por causa do isolamento, meninos e meninas "sentirão falta de suas rotinas e, por isso, podem se sentir frustrados, angustiados, irritáveis". Um dos guias para pais e educadores publicado pela organização sugere que, "sabendo que mais cedo ou mais tarde a maioria de nossas vidas podem voltar ao normal, tente criar novas rotinas, hábitos e atividades que estruturem esse período enquanto ele durar". A Unicef explica às crianças que o coronavírus "aproveita para pular de mão em mão quando elas se cumprimentam ou tocam as pessoas". "Por isso, é importante lavar as mãos com água e sabão, o que dura o tempo de uma canção", diz o material educativo do órgão. "Lave as mãos com frequência, especialmente antes de comer, depois de assoar o nariz, de tossir ou de espirrar e depois de ir ao banheiro. Os pais também devem ensinar as crianças a cuidar de sua higiene respiratória. Por isso, eles precisam aprender a cobrir a boca e o nariz com a dobra do cotovelo ou com um lenço descartável ao tossir ou espirrar. E, em seguida, devem descartar o lenço em um cesto de lixo fechado. 'Na hora de brincar, mantenha a distância' Para que as crianças aprendam a manter a distância social que as autoridades sanitárias recomendam, a Unicef indica, por exemplo, na hora de formar um círculo, "fazer com que os pequenos sentem-se mais longe uns dos outros pedindo que estiquem os braços". "Dessa maneira, o espaço entre eles deve ser suficientemente amplo para impedir o contato físico." Os especialistas do órgão também sugerem usar marionetes ou bonecas para mostrar a meninos e meninas os principais sintomas da covid-19, como tosse e febre, e para ensinar-lhes o que fazer caso tenham um mal-estar (por exemplo, se sentem dores de cabeça ou de estômago, se sentem muito calor ou um cansaço fora do comum). Mas, os bonecos também podem ser usados para ensinar como consolar alguém que está doente, cultivando comportamentos de empatia e de cuidado, ou mesmo para mostrar à criança como comunicar seus sentimentos de ansiedade e preocupação sobre a pandemia. *A BBC não se responsabiliza pelo conteúdo de páginas de terceiros. .
2020-04-05
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52160207
cultura
Coronavírus: dicas de como se distrair na quarentena
As medidas de quarentena adotadas para conter o novo coronavírus, como fechamento do comércio e estímulo ao home office, deixaram milhões de brasileiros em casa. A situação pode gerar muita ansiedade e é bom poder se distrair. A BBC lista aqui algumas coisas que você pode fazer para se divertir. Escolha coisas que vão te fazer sentir bem, recomenda Lotte Dyrbye, médica da Mayo Clinic, uma das maiores instituições de pesquisa médica dos Estados Unidos, que pesquisa esgotamento emocional e o bem-estar dos médicos. Ela diz que as pessoas precisam encontrar coisas que funcionem para elas, seja meditação, ler ou ver séries sem parar. "É algo muito pessoal, e não há necessariamente um certo ou errado." Uma grande parte da prevenção do esgotamento induzido pela pandemia, diz, é que essas atividades não sejam estressantes. Veja shows: Dezenas de artistas têm feito apresentações online ao vivo em suas contas em redes sociais, como Marília Mendonça, Alceu Valença e Chris Martin, do Coldplay, que fez um set improvisado no Instagram Live, respondendo a perguntas dos fãs e cantando Life On Mars, de David Bowie. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Cozinhe: Se você já cozinha bem, teste uma receita que sempre quis fazer e não teve tempo. Se não sabe, há muitas fontes para aprender. Veja filmes e séries: Além das plataformas de streaming mais conhecidas, como Netflix, HBO e Amazon, algumas plataformas menores e com bons acervos liberaram seus conteúdos gratuitamente online. Faça uma aula de dança: especialistas dizem que fazer exercícios físicos regularmente ajuda a manter o sistema imunológico funcionando bem.
2020-04-04
https://www.bbc.com/portuguese/geral-52129338
cultura
‘A Peste’, de Albert Camus, vira best-seller em meio à pandemia de coronavírus
Numa pequena cidade da costa argelina, na década de 1940, a vida dos habitantes segue sua rotina até que milhares de ratos começam a surgir do subterrâneo e morrer aos milhares. Logo as pessoas também começam a pegar a doença — e seu destino é, em muitos casos, o mesmo. Essa narrativa, escrita em 1947 pelo franco-argelino Albert Camus, tem atraído muitos leitores em diversos países da Europa, em meio à pandemia de coronavírus. Não só ela — livros de ficção que se passam em situações de epidemias ou pandemias, como Ensaio Sobre a Cegueira (1995), do português José Saramago, e de não-ficção que descrevem a disseminação de doenças no passado estão constantemente nas listas de mais vendidos. No Brasil, isso ainda não está acontecendo. A editora Record, que publica a versão brasileira mais recente de A Peste, diz que ainda não viu aumento na procura. A Livraria da Vila, uma das principais de São Paulo, informou à BBC que, por enquanto, não notou aumento nas vendas ou na procura por títulos do gênero. "Encaramos com naturalidade que os europeus estejam procurando se informar por meio de obras com a temática, uma vez que a Europa já passou por grandes epidemias ao longo dos séculos e é uma das regiões mais atingidas pelo coronavírus. No entanto, a situação no Brasil é distinta e não há como prever os próximos cenários", disse a administração da livraria, por e-mail. A livraria afirma que, por ser um fenômeno recente no Brasil, ainda não está preparando ações específicas, como pedidos às editoras de livros sobre o tema, mas pode recomendar alguns livros, como História da Humanidade Contada Pelo Vírus, de Stefan Cunha Ujvari; Cidade Febril- Cortiços e epidemias na corte imperial, de Sidney Chalahoub e Peste e Cólera, de Patrick Deville. A BBC procurou outras grandes livrarias, como Cultura, Travessa e Martins Fontes, mas não teve resposta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Se não no Brasil, esses livros estão vendendo mais? Do que tratam? O que têm a ver com a realidade do surto de coronavírus? Que lições nos oferecem sobre como lidar com o surto? Por que as pessoas buscam esses livros? Na opinião do pesquisador de Camus Raphael Luiz de Araújo, doutor em Letras pela USP e tradutor de Os Primeiros Cadernos de Albert Camus, "diante da doença precisamos nos repensar — quem somos, o que estamos enfrentando. Por falarem da condição humana, esses livros ganham interesse". Além disso, pensa ele, serve como um espelho e uma maneira de não nos sentirmos sozinhos em meio à incerteza da epidemia. "E é também uma forma de buscar esclarecimento, tem um potencial didático, que é pensar como foi para pessoas que viveram e pensaram nisso", palpita Araújo. "É uma busca por dar forma à experiência, o que o (crítico) Antonio Candido chamava de fabulação. A Peste e outros clássicos trazem explicações de princípios sem que a gente entre na religião, oferecem caminhos para a nossa busca ética", resume ele. O romance A Peste foi publicado em 1947, pouco após o fim da Segunda Guerra Mundial, e conta a história da chegada de uma epidemia à cidade argelina de Orã. O personagem principal é um médico, Rieux, que combate a doença até o momento em que ela se dissipa, depois de muitas mortes. O narrador descreve como a população reage, indo da apatia à ação, e como alguns se expõem a risco para enfrentar a disseminação da peste. Há aproveitadores, como um personagem que lucra com um mercado paralelo de produtos. Num primeiro momento, as autoridades hesitam em publicizar a doença, algo que Camus veria de forma crítica, diz Araújo — sua obra sempre volta ao tema da importância de nomear as coisas. Nos anos anteriores à publicação do livro, diz Araújo, Camus vinha pesquisando sobre como se deram algumas epidemias na Argélia e na Europa. Logo após sua publicação, o livro foi lido como uma analogia sobre a ocupação alemã em Paris durante a Segunda Guerra, em parte por causa da epígrafe do livro, uma frase do escritor Daniel Defoe: "É tão válido representar um modo de aprisionamento por outro quanto representar qualquer coisa que de fato existe por alguma coisa que não existe". Araújo aponta alguns paralelos com o momento atual: "a questão do conhecimento. Vivemos um momento em que há desinformação, fatos vêm sendo contestados. Em A Peste há um cuidado de mostrar as coisas como são de fato. O livro fala que existe (na história) um problema de abstração. A desinformação, a abstração, geram histeria, comportamentos levianos ou xenofóbicos, como temos visto", interpreta ele. Outra coincidência é a questão de burocratização das informações sobre as mortes, que pode gerar certa desumanização dos casos, opina ele. Na ficção, o número de mortes é anunciado diariamente numa rádio. Por outro lado, o narrador descreve algumas das mortes, o que faz o leitor senti-las de uma forma mais direta. Para Araújo, uma lição a ser tirada do romance é a ideia do coletivo. "A Peste pode ser um convite para se pensar como parte de um grupo. Neste momento em que temos divisões muito marcadas no Brasil, é um convite a pensar sobre nós como coletivo. O que atravessarmos vamos atravessar juntos. Não é 'cada um que se salve'. Como diz o Camus, a peste vira assunto de todos. Os problemas que nos atingem passam a ser de todos. Os sentimentos individuais dão lugar aos sentimentos coletivos no livro", diz o acadêmico. "A narrativa que se apoia nos feitos de um grande herói é substituída pela narrativa de um destino comum de uma cidade que alcança todas as classes, incluindo o filho do juiz Othon. Nesse sentido, apesar das diferenças sociais, A Peste nos recorda que somos todos naturalmente condenados à morte." Na França, as vendas de A Peste chegaram a mais que dobrar nas primeiras oito semanas de 2020, comparado ao mesmo período de 2019, segundo a publicação de estatísticas de mercado editorial Edistat. O país registrava 30 mortes pelo vírus até terça-feira. Na Itália, o segundo país mais impactado pelo vírus depois da China, o aumento de vendas colocou o romance na lista dos dez mais vendidos, segundo a revista literária francesa Actuallité. Todo o país está sob medidas de emergência, determinadas pelo governo, para conter a contaminação da população pelo vírus. A Amazon italiana tem entre seus 100 livros mais vendidos diversos exemplos de narrativas de ficção e não-ficção sobre epidemias, como Virus, La Grande Sfida (Vírus, o grande desafio, em tradução livre), do virologista Roberto Burioni. O livro, segundo a sinopse, "descreve a natureza e o funcionamento dos vírus, sua transmissão de animais para seres humanos, a evolução de nosso conhecimento científico sobre ele, os efeitos devastadores das epidemias na história da humanidade e as batalhas travadas no último século contra elas". Ensaio sobre a Cegueira, do romancista português José Saramago, também anda nos altos postos da lista. O livro conta a história de uma "treva branca" que vai deixando cegos, um a um, os habitantes de uma cidade. No Reino Unido, leitores também vêm procurando A Peste, que deve ser reimpresso pela editora Penguin, já que já quase não há mais exemplares em estoque na Amazon. O livro The Great Influenza: The Story of the Deadliest Pandemic in History (A grande gripe: a história da pandemia mais mortal da história, em tradução livre) estava entre os 100 mais lidos na versão britânica do site. A narrativa de não ficção fala sobre "o vírus da gripe mais letal da história", segundo a sinopse. "No auge da Primeira Guerra Mundial, irrompeu em um acampamento do exército no Kansas, expandiu para o leste com tropas americanas e depois explodiu, matando até 100 milhões de pessoas em todo o mundo. Matou mais pessoas em 24 meses do que a AIDS matou em 24 anos, mais em um ano do que a Peste Negra matou em um século." "Não costumo ler esse tipo de livro, mas tive que lê-lo porque estamos 2020 e no meio do avanço do coronavírus. Como o autor sabia?", se pergunta um leitor no site britânico da Amazon sobre o romance The Eyes of Darkness (Os olhos da escuridão, em tradução livre), de 1981, escrito pelo americano Dean Koontz. Assim como ele, muitos se perguntaram, em redes sociais, se o autor havia "previsto" a expansão da doença. Koontz de fato descreve no livro um vírus fictício que se chama "Wuhan-400" e cujo nome refere-se à cidade chinesa onde começou o surto de coronavírus. No entanto, o vírus, no romance fictício, é uma arma biológica da China, desenvolvida em laboratório, e não um micróbio que se espalha espontaneamente pelo mundo. Além disso, o vírus do livro é mais letal e se espalha mais rapidamente. Em sua primeira versão, publicada em 1981, o vírus fictício não vinha da China, mas sim da Rússia, e se chamava Gorki-400, segundo a agência de notícias Reuters. A segunda versão saiu em 1989. O filme Contágio esteve entre os mais vistos nas plataformas iTunes e Google Play, algo que pode ser considerado um marco para um filme que não é estreia. No enredo, Beth Emhoff (Gwyneth Paltrow) retorna ao Estado de Minnesota (Estados Unidos) após uma viagem de negócios em Hong Kong e começa a se sentir mal. Emhoff atribui seus sintomas ao fuso horário. No entanto, dois dias depois ela morre, sem que os médicos encontrem a causa. Logo depois, outras pessoas começam a manifestar os mesmos sintomas e, logo, é desencadeada uma pandemia que as autoridades de saúde tentam conter. Em menos de um mês, o número de mortos na história chega a 2,5 milhões nos EUA e 26 milhões em todo o mundo. No momento de seu lançamento, alguns especialistas elogiaram a maneira como o filme refletia a situação de uma pandemia. Mas o que a realidade do coronavírus chinês realmente tem em comum com a ficção do filme de Soderbergh? Um tema comum é que ambos os vírus se originam na China e os morcegos parecem desempenhar um papel preponderante. Especialistas da Organização Mundial da Saúde apontam que é muito provável que o novo coronavírus venha de morcegos. Eles estimam que ele teve que pular primeiro para um grupo de animais não identificado antes de poder infectar humanos. O filme mostra imagens de cidades em quarentena, aeroportos fechados, profissionais de saúde com trajes especiais, pessoas com máscaras, cidades vazias, lojas fechadas… Essas cenas vêm se tornando mais comuns, com China e Itália sob medidas de emergência para conter a disseminação do vírus. No filme, entretanto, a doença tem contágio mais rápido e é mais letal. Na história, pesquisadores conseguem produzir e distribuir uma quantidade limitada de vacinas em apenas 90 dias. A realidade do coronavírus é diferente, ainda que, diferentemente dos surtos de vírus anteriores em que as vacinas para proteger a população levavam anos para serem desenvolvidas, a busca por um medicamento para controlar a disseminação da pneumonia de Wuhan tenha começado poucas horas após a identificação do vírus.
2020-03-12
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-51843967
cultura
'Espero que governo brasileiro apoie mais o cinema', diz diretor de 'Parasita' depois de ver 'Bacurau' em Londres
Sentado entre os espectadores de uma sessão do filme brasileiro Bacurau em Londres está o ganhador do Oscar de melhor filme, direção e roteiro deste ano, o sul-coreano Bong Joon-ho. O diretor de Parasita comprou um ingresso para o longa brasileiro e foi assistir ao filme nesta sexta-feira (6) como qualquer outro espectador (lugar escolhido: fundo à direita, olhando para a tela). Minutos depois, diz à BBC News Brasil que gostou muito do filme e da experiência proporcionada por Bacurau. "É muito bonito. Tem uma energia única, traz uma força enigmática e primitiva", diz. "Eu espero que o governo brasileiro apoie mais a indústria de cinema brasileira e seus incríveis cineastas, como Kleber Mendonça e Juliano Dornelles. A indústria cinematográfica é arriscada e precisa de segurança e estabilidade." Seu Parasita, sobre uma família de classe baixa que se infiltra na casa de uma família rica em Seul, tem muitos paralelos com Bacurau, afirma ele. O filme brasileiro mostra um povoado no sertão nordestino que pega em armas contra invasores. "São pessoas e lugares diferentes, mas há uma conexão, da luta dos oprimidos", diz o sul-coreano. Bong e o diretor Kleber Mendonça conversam no canto de uma espécie de camarim após a exibição do filme. Cotas para telas estabelecem um número mínimo de filmes nacionais exibidos em salas de cinema com o objetivo de proteger o cinema nacional. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro renovou a cota de tela, mas no ano passado questionou a qualidade da atual produção audiovisual brasileira e disse que as cotas poderiam ser zeradas com a melhora dos filmes nacionais. "Obviamente que, fazendo bons filmes, não vamos precisar de cota mais. Há quanto tempo a gente não faz um bom filme, não é?", perguntou o presidente. Wong conta que na Coreia do Sul até meados dos anos 2000 havia cotas maiores, que foram diminuídas. "Houve dificuldades e uma grande luta. Agora, o público gosta e está acostumado com os atores e diretores coreanos", diz. As cotas na Coreia do Sul começaram no fim dos anos 1960. Questionado sobre paralelos entre a luta de classes em Parasita e Bacurau, Bong diz, brincando, que "o pessoal das classes mais baixas de Bacurau é muito mais legal que o de Parasita, que está muito mais bravo". E Kleber Mendonça ri: "Porque são só uma família, se fossem um grupo maior, talvez..." "Isso, a questão da comunidade é muito bonita em Bacurau. Só que infelizmente as pessoas das classes baixas em Parasita nunca ficam tão bravas quanto as de Bacurau, nunca pegam em armas! Tão triste (risos)!", brinca Bong. "Os meus só querem um pouco de dinheiro!"
2020-03-06
https://www.bbc.com/portuguese/geral-51777892
cultura
Como Regina Duarte e militares reduziram o poder da 'ala olavista' do governo Bolsonaro
A semana que passou foi de más notícias para a chamada "ala ideológica" do governo de Jair Bolsonaro (sem partido). Oficializada na chefia da Secretaria de Cultura, a atriz Regina Duarte destituiu ao menos seis pessoas do comando da pasta — alguns dos demitidos se identificavam como "bolsonaristas" ou eram alunos de Olavo de Carvalho. Na quarta-feira (4), Duarte demitiu do comando da Fundação Nacional de Artes (Funarte) o maestro Dante Mantovani — ele ficou no cargo por apenas 90 dias. O musicista seguia as ideias de Olavo de Carvalho e ficou conhecido ao associar o rock ao satanismo, em vídeos publicados nas suas redes sociais. As demissões na Secretaria de Cultura, no entanto, são apenas a última gota d'água numa sequência de acontecimentos. Desde o começo do ano, a ala do governo que segue as ideias do filósofo radicado no Estado americano da Virgínia vem perdendo força dentro da administração. Além da Secretaria de Cultura, é o aumento no protagonismo dos militares que está retirando espaço dos "olavistas" do governo — tanto no núcleo do Palácio do Planalto quanto nas relações exteriores. No começo de fevereiro, o ministro Onyx Lorenzoni deixou a Casa Civil em favor de outro militar, o general de Exército Walter Souza Braga Netto. Foi a primeira vez que um militar assumiu o posto, cujo titular despacha dentro do Palácio do Planalto, desde o governo do general Ernesto Geisel (1974-79). Onyx agora comanda o Ministério da Cidadania. Embora não seja considerado "olavista", Lorenzoni se encontrou com o filósofo no fim de janeiro, em uma viagem aos EUA — um vídeo da visita foi postado nas redes sociais pelo "filho 03" do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). Antes de se tornar ministro, Lorenzoni integrava a ala mais à direita de seu partido, o DEM. O mês de fevereiro também trouxe um revés para a ala olavista no 3º andar do Palácio do Planalto. É neste pavimento que fica o gabinete de Jair Bolsonaro, e também a sala de Filipe G. Martins, assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais — e também aluno de Olavo de Carvalho. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nos primeiros meses do governo, Martins gozou da proximidade do presidente, e até entrou em atrito com os militares. Mas, em meados de fevereiro, um despacho no Diário Oficial colocou o aluno de Olavo sob a tutela de um militar — o almirante Flávio Augusto Viana Rocha. O militar da Marinha responde diretamente a Bolsonaro, e é a ele que Filipe Martins passou a se reportar, embora tenha mantido sua sala no Planalto. A exceção foi uma conversa com o portal Brasil sem Medo, um veículo de comunicação lançado por Olavo de Carvalho. Além disso, Araújo vem adotando um tom mais sóbrio e pragmático em ocasiões públicas — a última delas foi a visita do chanceler argentino Felipe Solá a Brasília, em 12 de fevereiro. O ministro estrangeiro integra um governo de esquerda, comandado pelo presidente Alberto Fernández e pela vice, Christina Kirchner. Mesmo assim, Araújo focou sua intervenção na importância da colaboração entre os dois países. Para um observador da cena política em Brasília, a recente moderação de Araújo pode ser resultado de uma influência maior dos militares nos rumos da política externa — papel que eles exercem desde a época do governo de transição, no fim de 2018, diz o profissional. "Pelo menos durante a campanha, o general (Augusto) Heleno, hoje no GSI, trocava zaps e e-mails com o embaixador Rubens Barbosa (ex-representante do Brasil nos EUA), e advertia Bolsonaro sobre maluquices como levar a embaixada brasileira (em Israel) para Jerusalém; sobre afrontar desnecessariamente a China, tá certo? Então é uma postura (a defendida pelos militares) mais de acordo com a linha tradicional do Itamaraty", diz. Na manhã desta quarta-feira (04), o Diário Oficial trouxe as demissões de cinco dirigentes da pasta da Cultura. As demissões ocorreram a mando da atriz Regina Duarte, que tomou posse como titular da pasta no mesmo dia. Foram demitidos os dirigentes Camilo Calandrelli, ex-secretário de Fomento e Incentivo à Cultura; Ricardo Freire Vasconcellos, ex-diretor do Sistema Nacional de Cultura; Reynaldo Campanatti, ex-secretário de Economia Criativa; e Ednagela Santos, diretora do Departamento de Cultura. Além disso, também foram limadas as chefes de gabinete de Camilo e a de Reynaldo. Pouco depois de aceitar o convite de Bolsonaro para chefiar a Cultura, Regina Duarte também mandou embora a secretária interina da Cultura, a pastora evangélica Jane Silva. Ela chegou a ser cotada para permanecer como a número dois de Regina na pasta, mas acabou demitida depois de desentender-se com o produtor cultural Humberto Braga — um produtor cultural com trânsito nos meios de esquerda, e que será o adjunto da atriz na Secretaria de Cultura. Para Jane Silva, foi o alinhamento ideológico com a direita que fez com que ela e os demais fossem demitidos da secretaria. "O único problema meu, e de nós todos que fomos exonerados, é que nós somos de direita. Se não fôssemos, estaríamos lá até hoje", diz. Tanto Mantovani quanto os outros exonerados chegaram ao governo durante a gestão do dramaturgo, e seguidor de Olavo de Carvalho, Roberto Alvim. Este acabou demitido em janeiro, depois de postar um vídeo no qual faz uma alusão a um discurso do ideólogo nazista Joseph Goebbels (1897-1945). Nos últimos dias, Olavo de Carvalho tem usado sua conta no Facebook para reclamar da nomeação de Regina Duarte. A atriz, escreveu Olavo na noite desta quinta-feira (5), "não tem a menor ideia do que está fazendo". "Peço ao presidente da República que me perdoe por ter endossado o nome dessa senhora para um cargo que está infinitamente acima da capacidade dela", escreveu. "Agora está muito claro (o motivo da demissão). A maioria ali, a Regina não viu nem a cara deles. Ela conhecia o Camilo de conversar durante poucos minutos", diz Jane Silva. "Nunca viu o Dante (Mantovani, exonerado da Funarte), nunca viu a Ednagela. Nunca chamou para conversar essas pessoas que ela exonerou", diz a ex-secretária. Hoje, Jane trabalha como assessora da deputada federal Alê Silva (PSL-MG), na Câmara. "São pessoas da mais alta competência. A Ednagela é doutora em Orçamento, pediu exoneração de um gabinete na Câmara para vir trabalhar comigo", argumenta ela. Ao assumir o cargo, Regina Duarte também teria tido a intenção de demitir o presidente da Fundação Palmares, o jornalista Sérgio Camargo, segundo Jane Silva — a Palmares é subordinada à Secretaria de Cultura, e Camargo teria irritado Regina Duarte ao demitir os antigos dirigentes da Fundação sem avisá-la. Nesta semana, porém, Camargo posou para uma foto com Jair Bolsonaro na conta do presidente no Twitter. O próprio jornalista escreveu depois que está "confirmadíssimo" no cargo, "com respaldo do presidente e do ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio". Para o cientista político Cláudio Couto, a principal tendência em curso é um aumento do poder da ala militar do governo; mais até do que a decadência da "ala ideológica". "Se a gente for contabilizar em termos de cargos, é possível que tenham (os olavistas) perdido espaço. Mas, na verdade, o que se vê é um crescimento impressionante dos militares. A gente sempre lembra dos ministros, mas o verdadeiro aumento (no número de militares) se deu (em cargos comissionados) nos escalões mais baixos", diz ele. No fim de 2019, eram cerca de 1,2 mil militares cedidos para diversos órgãos do governo. "Mesmo assim, os olavistas permanecem em áreas estratégicas. O Ernesto Araújo permanece no MRE, assim como o Abraham Weintraub segue como ministro da Educação. E tem os próprios filhos (de Bolsonaro), que são como 'ministros sem pasta' do governo", argumenta Couto, que é professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da FGV. Para o cientista político Rafael Cortez, as mudanças em curso representam mais um rearranjo entre as diferentes alas governistas do que propriamente a derrocada do olavismo. "É mais um rearranjo, informado pela necessidade que existe hoje de mostrar força política em um cenário de turbulência econômica e de tensão entre os poderes. O momento de maior protagonismo tem a ver com essa necessidade de reforçar a legitimidade do mandato do presidente", argumenta ele, que é sócio da Tendências Consultoria. "Esta dimensão da guerra cultural, da agenda de valores, ela é formadora do que é o bolsonarismo. Foi uma das variáveis mais importantes para a vitória dele em 2018, ao ajudar na construção da imagem de outsider, de figura que mais se distanciava do PT. E por isso me parece que, a despeito da eventual troca de nomes, essa ala 'ideológica' vai permanecer como uma marca da gestão", diz ele.
2020-03-06
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51765995
cultura
O caso de Gabriel Fernandez, o menino de 8 anos torturado e morto pela mãe e o padrasto retratado em série da Netflix
"É normal que as mães batam nos filhos?" Com essa pergunta, Gabriel Fernandez, então com 7 anos, deixou sua professora, Jennifer Garcia, muito preocupada. Quando ela indagou a razão daquela estranha pergunta, Gabriel foi além: perguntou se era normal apanhar de cinto. "É normal sangrar?", também questionou o menino. Meses depois dessa conversa, Gabriel Fernandez, o Gabrielito, morreu depois de ser agredido em casa por sua mãe, Pearl Fernandez, e seu namorado, Isauro Aguirre. Mas eles não foram os únicos a serem julgados pelo crime. Em uma decisão sem precedentes, quatro assistentes sociais foram acusados de abuso infantil e falsificação de registros públicos. Em The Trials of Gabriel Fernandez ("Os Julgamentos de Gabriel Fernandez", em tradução livre), a Netflix apresenta um relato completo e documentado do que aconteceu com esse menino de origem latina que morava em Palmdale, norte de Los Angeles, EUA. A série de documentários de seis episódios não se limita a contemplar apenas os abusos sofridos pela criança, destacando as falhas de um sistema que não pôde evitar o pior resultado. Os parentes de Gabriel dizem que sua mãe não queria tê-lo. E embora ela tenha levado a gravidez adiante, abandonou o bebê no hospital quando ele nasceu. Foram os avós do menino que o acolheram. Gabriel cresceu em várias casas diferentes, sempre em meio a parentes. Segundo entrevistas com membros da família e relatos feitos após sua morte, Gabriel era um menino doce que buscava o amor de sua família. Imagens da época em que ele morava com seus tios ou avós mostram uma criança aparentemente feliz e saudável. Mas tudo mudou em 2012, quando Pearl Fernandez decidiu levá-lo para morar com ela e o namorado para poder receber benefícios sociais. No humilde apartamento, havia também os dois irmãos do pequeno: Ezequiel e Virgínia, ambos menores de idade. O destino de Gabriel estava a ponto de sofrer uma reviravolta. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Com a mudança de endereço, Gabriel também mudou de escola. Foi ali que Gabriel teve aulas com Jennifer Garcia, com quem falou sobre ter apanhado de cinto. Após a conversa alarmante, Garcia ligou para uma linha direta para denunciar situações de abuso infantil e relatou o que a criança lhe havia dito. O caso caiu nas mãos de Stefanie Rodriguez, uma assistente social que, segundo pessoas próximas, tinha pouca experiência para um trabalho tão exigente. A partir daí, ocorreram visitas, telefonemas e críticas, mas nada de fato mudou na vida de Gabriel. O abuso que o menino sofria estava piorando, segundo disse seu professor no documentário da Netflix. Ele começou a ir para a aula sem alguns fios de cabelo, com feridas no couro cabeludo, lábios inchados, hematomas no rosto ou ferimentos causados por tiros de uma pistola de ar comprimido. Garcia reforçou suas queixas junto aos serviços sociais e alguns membros da família, preocupados, também pediram ajuda. Policiais visitaram o apartamento várias vezes, um deles poucos dias antes da agressão que o vitimou, mas acreditavam no que a mãe lhes dizia e não verificavam o estado de saúde da criança. Assim, nenhuma das ações das autoridades resultou em uma decisão que salvaria a vida de Gabriel. Em 22 de maio de 2013, a mãe e o padrasto de Gabriel ligaram para o departamento de emergência para pedir ajuda, porque a criança não estava respirando. Fazia oito meses que ele havia ido morar com eles. Dois dias depois, Gabriel morreu. Tinha 8 anos. Pearl e Isauro foram presos e acusados de homicídio culposo em primeiro grau. A promotoria de Los Angeles anunciou que iria pedir a pena de morte para os dois. No início, apenas um julgamento seria realizado, mas depois foi decidido julgar o casal separadamente por temores de que as limitações intelectuais de Pearl, atestadas pelos especialistas que a examinaram, atrasassem o processo. O promotor responsável pelo caso foi Jon Hatami, que atua como o fio condutor do documentário da Netflix, que teve acesso exclusivo ao tribunal. Hatami mostra seu lado mais pessoal, abre sua casa para o espectador e conta como ele próprio foi vítima de abusos físicos por seu pai, o que faz com que a história de Gabriel tenha um significado especial para ele. O que as testemunhas da acusação contam é chocante. Alguns dos paramédicos que atenderam à chamada de emergência dizem que foi possível identificar imediatamente que Gabriel tinha diversas contusões na cabeça, várias costelas quebradas, partes da pele queimada e as mãos inchadas. O médico legista que realizou a autópsia relata que Gabriel estava com estômago cheio de fezes de gato. Os próprios irmãos de Gabriel, que testemunharam a portas fechadas no julgamento por serem menores de idade, confirmaram que o garoto era forçado a comer excrementos de gatos se não limpasse bem a bandeja do animal. Eles também explicaram que a mãe e o namorado costumavam trancá-lo em um móvel que tinham em seu quarto, sem dar comida ou deixá-lo ir ao banheiro, e que o padrasto o espancava bastante, chamando-o de homossexual. O advogado de Isauro, incapaz de negar as provas da causa da morte de Gabriel, baseou sua defesa em argumentar que o espancamento não foi premeditado, mas o resultado de um acesso de raiva. Ele pediu aos jurados que condenassem seu acusado por homicídio em segundo grau. Mas não conseguiu convencê-los. Isauro Aguirre foi condenado à morte e aguarda execução na prisão de San Quentin, na Califórnia. Depois de ouvir a condenação, Pearl decidiu se declarar culpada, evitando assim um julgamento e a pena de morte. Ela foi condenada à prisão perpétua sem a possibilidade de liberdade condicional. O processo legal não terminou aí. As assistentes sociais Stefanie Rodriguez e Patricia Clement e os supervisores Gregory Merritt e Kevin Bom foram formalmente acusados de abuso infantil e falsificação de registros públicos em 2017. Os quatro já haviam sido demitidos logo após a morte de Gabriel. Merritt concordou em participar do documentário para apresentar sua versão dos fatos. Ele relatou as dificuldades do serviço social e sobre como os assistentes estão sobrecarregados, frequentemente lidando com 25 a 30 casos de crianças cada um. Segundo ele, os casos de proteção infantil se concentram na preservação da unidade familiar e a separação ou retirada forçada de menores de uma família é um processo traumático. Finalmente, um tribunal de apelações na Califórnia determinou em janeiro passado que eles não deveriam enfrentar acusações criminais no caso de Gabriel. O documentário da Netflix é lançado em meio a um momento de sucesso de histórias sobre crimes reais, com grande audiência tanto no formato de podcast quanto em plataformas de streaming. Críticos apontam, contudo, para o perigo de cair no sensacionalismo da violência e na exploração das vítimas para fins de entretenimento. Em entrevista à revista americana Time, o diretor da série, o documentarista Brian Knappenberger, admitiu que esse trabalho faz parte desse fenômeno, embora tenha apontado que sua abordagem é diferente. Sem esquecer a importância de Gabriel e seu sofrimento, o significado central da série é descobrir o que falhou no sistema judiciário e se havia outros responsáveis pela morte da criança. "Ninguém ouviu Gabriel quando ele estava vivo", disse Knappenberger. "Muitas pessoas falharam e existem muitas razões pelas quais isso aconteceu. Mas quando você chega ao fim, a pergunta é: como queremos tratar as crianças?"
2020-03-04
https://www.bbc.com/portuguese/geral-51726098
cultura
A escritora que fugiu do comunismo na Rússia e hoje faz a cabeça da direita
O único objetivo do homem é o seu próprio interesse. Ninguém deve se sacrificar pelos outros, nem pedir que se sacrifiquem por você. O capitalismo de livre mercado é o sistema econômico ideal. Essas frases inspiram parlamentares conservadores britânicos, membros do partido republicano nos EUA, e, mais recentemente, conservadores e liberais brasileiros. Mas elas têm uma origem inusitada: personagens de ficção com nomes como John Galt, Dagny Taggart e Howard Roark. Todos eles criados pela filósofa Ayn Rand. Livros como A Nascente e A Revolta de Atlas, que já foram reverenciados por milhares de leitores - mas criticados por detratores - voltaram a fazer sucesso nos últimos anos entre políticos, educadores e universitários. O presidente americano, Donald Trump, e seu secretário de Estado, Rex Tillerson, também declaram sua admiração pela escritora. O presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Paul Ryan, teria distribuído cópias de A Revolta de Atlas, considerado a obra-prima de Rand, aos membros de sua equipe. O livro se passa num futuro em que empresários americanos sofrem com leis e regulações cada vez mais duras. A executiva Dagny Taggart luta contra o que a autora chama de "exploradores" - burocratas, sindicalistas e funcionários pouco qualificados - que se aproveitam de seu sucesso. Enquanto isso, um homem misterioso chamado John Galt convence inventores, empresários e executivos a entrarem em um tipo de greve contra o governo. Em meio à história, mas nem tão disfarçadamente assim, Rand prega os fundamentos da filosofia que ela chama de objetivismo, baseada na razão, no individualismo, no Estado mínimo e no capitalismo ultraliberal. Em 2009, após a crise financeira, Atlas voltou à lista dos livros mais vendidos nos Estados Unidos. Em 2011, teve seu segundo melhor ano de vendas desde que foi publicado, em 1957. No Brasil, em 2017, João Amoêdo, administrador de empresas fundador do Partido Novo, recomendou a leitura do romance no jornal Folha de S. Paulo, assim como o jurista conservador Ives Gandra. Em fevereiro, uma reedição da obra chegou à lista de mais vendidos no país. Rand é considerada um contraponto ultraliberal à ética socialista, e com uma credencial frequentemente mencionada por seus fãs: também é russa. Ela nasceu Alissa Zinovievna Rosenbaum, em uma família judia de classe média que empobreceu após a Revolução de 1917 - uma experiência que teria sido o embrião de seu desprezo pelas ideias de bem comum e de Estado como mecanismo para assegurar a igualdade. Em 1925, ela foi para os Estados Unidos sob o pretexto de visitar a família e nunca retornou. Lá, assumiu o nome de Ayn Rand e trabalhou como roteirista de cinema e teatro em Hollywood, enquanto escrevia seu primeiro romance, de memórias da Revolução Russa. Mas o reconhecimento do público veio somente com A Nascente (1943) - que o presidente americano Trump costuma citar como um de seus livros favoritos. Com Atlas, de 1957, Rand ganhou espaço entre os ambiciosos jovens americanos dos anos 1950, mesmo sem conquistar os críticos. Logo, ela tornou-se filósofa em tempo integral, e um grupo de seguidores do objetivismo passou a se reunir para debater suas ideias. Segundo Rand, "o homem existe para que seu maior propósito moral seja o alcance da sua própria felicidade". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ao contrário das ideias de Karl Marx, que ela considerava totalmente opostas às suas, a russa acredita que a mudança na sociedade deveria começar com uma revolução moral dentro de cada indivíduo, que deve espalhar os ideais "corretos", ela diz, por meio do discurso racional. Em seus ensaios, ela defende que os interesses humanos, se forem determinados pelo que chama de "virtude do egoísmo", sempre levam a trocas saudáveis e ao crescimento da sociedade. Para garantir que indivíduos que seriam, em sua opinião, "pouco racionais" não trapaceiem ou roubem os demais, o papel do Estado deveria ser limitado a fornecer o Exército - de adesão voluntária - a polícia e o sistema judiciário. Nada de saúde pública, ensino público ou programas sociais. "Ela defende que o que nos diferencia, nesse caso, são nossas capacidades, nossa motivação, nossa ambição, nossos valores, o sentimento de que eu sou responsável pelo destino da minha vida e ninguém mais", explica Eduardo Chaves, professor aposentado de filosofia da Unicamp e especialista na obra de Rand. "Não devemos esperar que venha de terceiros - seja de filantropos, seja de governos com vocação social - a solução dos nossos problemas. A esquerda diz que isso é culpar o pobre pela sua pobreza, mas, para Rand, simplesmente não há igualdade nos talentos naturais com os quais nascemos, nem nas circunstâncias ambientais, na família. E não vamos conseguir equalizar o ponto de partida com políticas públicas. Há elementos de sorte e de azar." A teoria, segundo seus críticos, reforçava a ideia de que os mais ricos possuem mais talento, e que os desprivilegiados não devem ser ajudados - o que ainda causa polêmica nos círculos acadêmicos. Segundo a Enciclopédia de Filosofia de Stanford, os ensaios de Rand "não têm autocrítica e nenhuma tentativa de considerar possíveis objeções a suas visões" e dizendo que "seus argumentos frequentemente não sustentam suas conclusões". Um dos principais seguidores de Rand nos anos 1960 era o jovem Alan Greenspan, que se tornaria presidente do Federal Reserve (FED, o banco central americano), de 1987 até 2006 - e seria apontado como um dos principais responsáveis pela grande crise econômica de 2008. Greenspan foi indicado pelo então presidente americano Ronald Reagan que, juntamente com a a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, levariam a todo o mundo ocidental o conceito de que as forças do mercado, livres, eram o melhor mecanismo de distribuição dos recursos da sociedade. Anos depois, o próprio Greenspan questionaria esse pensamento após os efeitos da crise de 2008 na economia dos EUA e de países europeus. Diante do Congresso americano, em 2009, ele disse que havia "percebido um erro" na sua confiança no capitalismo de livre mercado. Mas para o israelense radicado nos Estados Unidos Yaron Brook, atual diretor do Instituto Ayn Rand, que promove suas ideias, os problemas atuais ocorrem justamente porque não temos capitalismo o suficiente. Ao menos não como a filósofa gostaria. "A maior parte dos países do mundo hoje vive economias mistas, com algum grau de liberdade econômica, alguns elementos do capitalismo e muita intervenção do governo. Hoje há muita distribuição de riqueza e muita regulação, até nos EUA. E olhe que os EUA é uma das melhores economias", reclama. Mas sem leis para regular as transações econômicas, como garantir que não haverá exploração do trabalho? "Não vemos exploração nos lugares onde deixamos as pessoas e os negócios fazerem o que quiserem. Vemos pessoas produzindo, criando, negociando, fazendo suas vidas e melhorando." Brook, que é consultor de investimentos no mercado financeiro, admite que na sociedade atual há trabalho análogo à escravidão, "especialmente em países da África, por exemplo". "E eu condeno tudo isso, e acho que a solução para isso é capitalismo e propriedade privada, e um governo local que respeite os direitos de propriedade e a santidade da vida humana. Não dá para culpar o capitalismo automaticamente pelos problemas do mundo se ele nem existe", completa, dizendo que, em sua opinião, não vivemos numa sociedade realmente capitalista há pelo menos 100 anos. Eduardo Chaves, no entanto, diz ser adepto de uma abordagem menos "radical" às ideias da escritora, apesar de se considerar um verdadeiro "liberal randiano". "Estamos num mundo muito mais complexo, desigual e corrupto do que o que ela descreveu em A Revolta de Atlas. Então não dá para parar tudo e fazer do zero, como se faz no livro", afirma. "No Brasil, do governo Itamar até Lula, houve uma série de aplicações de ideias que ela defendia: por exemplo, a privatização de uma série de áreas da economia, como telefonia, estradas, etc. Essa ideia de diminuir o tamanho do governo é randiana. Se você perguntasse para ela se esse processo lento e gradual funciona ela diria que isso levaria mais de 100 anos e não iria realmente transformar a sociedade. Mas seriam mudanças no sentido das ideias dela." No ano passado, Rand foi incluída pela primeira vez no currículo de política do ensino secundário britânico, ao lado de grandes nomes do conservadorismo como Thomas Hobbes. Mas ela não ficaria satisfeita com isso, segundo os especialistas em sua obra. No livro Goddess of Market: Ayn Rand and the American Right (Deusa do Mercado: Ayn Rand e a Direita Americana, em tradução livre), a historiadora Jennifer Burns diz que Rand rejeitava os conservadores, porque sua teoria era contra a moral religiosa e defendia a separação completa entre Estado e Igreja, assim como entre Estado e economia. Para Burns, a vitória de Trump significou justamente "o fim do romance" dos republicanos com a obra e as ideias de Rand, que eles citavam nos comícios. "Ao eleger Trump, a base republicana rejeitou o capitalismo liberal em favor do nacionalismo econômico", disse, em artigo no jornal Washington Post. Yaron Brook, por sua vez, acha completamente equivocada a associação atual de Rand com a direita nos EUA. "As pessoas falam de Ayn Rand sem entender exatamente o que ela quis dizer. Donald Trump diz que leu A Nascente e gostou. Mas não sei nem se ele entendeu o livro, não sei nem se terminou", critica. "Posso dizer, como administrador do Instituto Ayn Rand, que esse governo não tem nada a ver com a filosofia de Ayn Rand. Ela odiaria Trump. Ele é tudo ao que ela se opunha em um homem de negócios: ele usa seu governo para conseguir favores, ele é um centralizador de planejamento que não confia no mercado." Outro ponto no qual Rand e a direita de hoje divergiriam seria direito da mulher de escolher o aborto, ao qual ela era favorável. Ela também se declarava contra as leis antidrogas e seu ateísmo fez com que ela afirmasse que o conservadorismo religioso era "o pior de todos". "Não dá para defender a filosofia de Ayn Rand e ser católico ao mesmo tempo", diz Brook. "Ela era pró-aborto, antirreligião, a favor da separação de Igreja e Estado, pró-liberdade sexual. Em diversos assuntos sociais, ela seria considerada de esquerda, e não de direita. Nos anos 1980, ela se recusou a votar em Ronald Reagan, que era liberal, por causa da sua posição antiaborto e a favor da religião." No Brasil, Eduardo Chaves diz que os admiradores de Rand "se distanciam" de suas ideias mais progressistas, contentando-se em apoiar sua defesa do liberalismo econômico total. Os fãs mais conhecidos e fiéis de Rand costumam ter algo mais em comum: são - ou pretendem ser - multimilionários. De preferência, por serem considerados mais inteligentes, mais trabalhadores ou à frente do seu tempo. "Por muito tempo, ela foi adorada por empreendedores, investidores de risco, pessoas que se veem moldando o futuro, indo à frente dos demais, apoiando-se somente em seus instintos, intuição e conhecimento, e indo contra a corrente", diz Jennifer Burns. Para além da política, revista americana Vanity Fair descobriu uma das principais áreas de influência de Rand nos dias atuais: o Vale do Silício. Executivos das start-ups mais importantes do momento como Travis Kalanick, CEO do Uber, Peter Thiel, cocriador do PayPal e investidor do Facebook, e até Steve Jobs e Steve Wozniak, criadores da Apple, citaram livros de Rand como seus "guias", segundo a revista. A admiração da russa pelos ricos tinha uma exceção, no entanto: aqueles que herdavam a riqueza também eram chamados de "nepotistas". Segundo a filósofa, a riqueza viria para os que se mostrassem mais dispostos a usar a razão e a energia no trabalho criativo. Para ela, era "imoral", por exemplo, "colocar coisas como amizade e laços familiares acima do próprio trabalho produtivo". "Amizade, vida familiar e relacionamentos humanos não são primordiais na vida de um homem. Um homem que coloca os outros acima de seu próprio trabalho criativo é um parasita emocional", disse em uma entrevista à Playboy em 1964. Críticos dizem que Rand apela aos milionários por causa do discurso que minimiza seus privilégios e os consideraria vítimas de uma sociedade que não os deixa completamente livres para crescerem. Mas para Yaron Brook, o diretor de seu instituto, ela estava certa. E isso não é um problema. "Sinto pena de Bill Gates, apesar de ele ser o homem mais rico do mundo. Eu acho que ele anda por aí com um sentimento de culpa desnecessário, e está fazendo filantropia hoje porque sente que precisa agradar as pessoas. Mas ele fez do mundo um lugar muito melhor ganhando bilhões na Microsoft do que com sua filantropia", afirma. "Os gênios, os empreendedores, os criativos - nem todos, porque alguns de fato são trapaceiros e ladrões - são forçados a se sentir culpados quando estão mudando o mundo para melhor. E isso é uma das grandes tragédias do nosso tempo. Tratamos mal os gigantes da sociedade", conclui.
2017-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41575532
cultura
O que explica o 'ódio irracional' aos veganos
Em julho de 2019, um homem vestindo uma camiseta com as palavras "Veganism = Malnutrition" ("Veganismo = Desnutrição") chocou pessoas em um mercado vegano em Londres ao comer um esquilo cru. Essa pergunta, aparentemente, é difícil de responder. Com o crescimento da popularidade do estilo de vida vegano (que não inclui o consumo de nenhum tipo de carne, nem produtos derivados de animais, como mel, leite, gelatina ou ovos), surgiu também uma onda de ódio contra ele. Comer carne ou não comer carne? O debate virou um campo de batalha. E, embora seja natural que as pessoas discordem, as paixões despertadas nessa discussão parecem desafiar a razoabilidade. Pesquisas mostram que apenas viciados em drogas enfrentam o mesmo grau de estigma que os veganos — e entre estes, os menos populares de todos são aqueles que citam a crueldade contra animais como argumento. Dado que a maioria de nós provavelmente gostaria de ver menos sofrimento no mundo, por que existe tanto ressentimento por aqueles que fazem algo a respeito? Se você se atreve a perguntar, os veganófobos têm muitas explicações razoáveis ​​(e outras nem tanto). Primeiro, há o argumento da hipocrisia: a ideia de que os veganos também têm sangue nas mãos, na forma de "massacres" de plantas, do custo ambiental dos abacates e de todos os animais impactados por plantações. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outros argumentos populares incluem a percepção dos veganos como excessivamente presunçosos e zelosos. É como diz a piada: "Como você reconhece um vegano em um jantar? Não se preocupe! Ele vai te contar!". Mas essas são realmente as razões pelas quais algumas pessoas não gostam dos veganos? Nem todo mundo está convencido. Alguns psicólogos têm outra teoria: a de que, longe de ser motivado por fatores ao alcance de nossa consciência, o ressentimento generalizado que temos pelos veganos se reduz a preconceitos profundamente arraigados em nossa psiquê. Hank Rothgerber, psicólogo social na Universidade de Bellarmine, nos EUA, acredita que tudo se resume à pergunta: como continuamos a comer carne? Ele ressalta que previsões iniciais para 2018 indicam que este terá sido o ano com o maior consumo de carne per capita na história dos Estados Unidos. "O que eu estou observando é: como as pessoas racionalizam isso e ainda se sentem boas pessoas?" Para continuar a comer carne, sugere Rothgerber, é necessária uma verdadeira ginástica mental. Felizmente, nossos cérebros são extremamente bons em nos proteger das realidades que não queremos enfrentar — e há uma série de truques psicológicos à nossa disposição. Por exemplo, há a "dissonância cognitiva", que ocorre quando uma pessoa tem dois pontos de vista incompatíveis e atua mais de acordo com um deles. Por exemplo, sua afeição por animais pode começar a colidir com a ideia de que não há problema em comê-los. Alguns psicólogos já têm até um nome para isso: o "paradoxo da carne". Alguns usam, no entanto, termos mais fortes, como "esquizofrenia moral". A tensão resultante disso pode nos fazer sentir estressados, irritados e infelizes. Mas, em vez de resolver a questão alterando nossas crenças ou comportamento, é bastante normal colocar a culpa em motivos ainda mais alheios. Por exemplo, quando corretores perdem certos investimentos, tendem a culpar seus gerentes. Isso permite que eles continuem acreditando que tomam excelentes decisões, enquanto enfrentam o fato de terem obtido exatamente o resultado oposto ao que deveriam (e pelo qual são pagos) e de que perderam dinheiro. No caso de comer carne, Rothgerber sugere que temos várias estratégias — cerca de 15 — que nos permitem evitar enfrentar o paradoxo da carne. Isso inclui estimar que comemos menos carne do que a realidade; ignorar a forma como ela foi produzida; ou se contentar com o consumo de animais de criação "humanitária". Mas, diante dessas estratégias, os veganos aparecem de novo como estraga-prazeres. Segundo Rothgerber, as pessoas tendem a não considerar o comer carne como uma ideologia. A hegemonia do consumo de carne em todo o mundo ajuda os onívoros entre nós a evitar a ideia de que isso é uma escolha — afinal, é exatamente o que todo mundo está fazendo. Mas quando um vegano aparece em um jantar, de repente, saímos desse ambiente confortável. Por sua mera existência, os veganos forçam as pessoas a confrontar sua dissonância cognitiva. E isso irrita. Décadas de pesquisas psicológicas mostraram que, na tomada de decisão, as pessoas tendem a se permitir chegar à sua conclusão preferida, desde que possam inventar uma justificativa racional sustentando-a. Por exemplo, um estudo descobriu que, quando os participantes queriam acreditar que seriam bem-sucedidos academicamente, eram mais propensos a recordar seus bons desempenhos no passado ​do que seus fracassos. No caso da carne, esse "raciocínio motivado" pode levar as pessoas a encontrar explicações sobre por que comer animais é a decisão correta. E uma delas é que os veganos são ruins. Em um estudo liderado por Julia Minson, psicóloga da Universidade da Pensilvânia (EUA), os participantes foram questionados sobre suas atitudes em relação aos veganos e, em seguida, solicitados a pensar em três palavras associadas a eles. Pouco menos da metade dos participantes tinha algo negativo a dizer e, curiosamente, 45% incluíam uma palavra que se referia às suas características sociais. Por exemplo, os veganos eram associados aos adjetivos "esquisito", "arrogante", "militante", "tenso", "estúpido" e — misteriosamente — "sádico". Não contribui para a popularidade dos veganos o fato de que eles realmente se consideram melhores do que aqueles que comem carne; os vegetarianos tendem a avaliar as virtudes de outros vegetarianos como maiores do que a dos não vegetarianos. Mas também é verdade que, no fundo, talvez a maioria de nós concorde com eles — e essa é uma das principais fontes de animosidade. Nesse sentido, quanto mais justos os participantes do estudo esperavam que os vegetarianos fossem, mais severas as palavras escolhidas para descrevê-los. "Há muita pesquisa sobre como não gostamos de membros de grupos que são potencialmente moralmente inferiores ou que a sociedade vê como errados", diz Benoit Monin, psicólogo da Universidade de Stanford que também esteve envolvido no estudo. "Mas é intrigante para mim que também rejeitemos membros de grupos que fizeram escolhas louváveis ​​deliberadamente." Há evidências crescentes de que somos particularmente ameaçados por pessoas que têm moral semelhante a nós, ainda mais se elas forem além do nosso desempenho. No final das contas, nosso medo de ser julgado ultrapassa em muito qualquer respeito que possamos ter por sua integridade superior. Para um segundo estudo, a equipe pediu a alguns participantes que pensassem em como os vegetarianos julgariam sua moralidade; e, depois, quais os traços de personalidade mais prováveis para os vegetarianos. Outro grupo passou pelos testes, mas na ordem contrária. No experimento, aqueles que pensaram em ser julgados primeiro por vegetarianos tenderam a associá-los mais fortemente a palavras negativas. De fato, Monin diz que esse medo de reprovação é tão potente que os vegetarianos (aqueles que consomem produtos derivados de animais, como leite e ovos, mas não carne) têm mais probabilidade de serem intimidados por veganos do que os carnívoros. Alguns estudos já indicaram que os veganos classificam os vegetarianos como hipócritas. De acordo com Rothgerber, a "difamação do benfeitor" pode ser uma maneira de desviar a atenção de nossas próprias decisões duvidosas — o que ajuda a acalmar os sentimentos desconfortáveis ​​que a dissonância cognitiva cria. A descoberta também explica por que veganos e vegetarianos por motivos éticos são mais irritantes para os onívoros do que aqueles que escolhem o estilo de vida por razões de saúde. Ironicamente, as mesmas indisposições psicológicas também sugerem que anúncios pró-veganismo que se concentrem no sofrimento dos animais podem ter efeito oposto do pretendido; enquanto algumas pessoas podem reagir comendo menos carne, as pessoas que não mudam seu comportamento precisam lidar com o desconforto de tentar justificar suas ações. Então, da próxima vez que um ativista comedor de esquilos chegar às manchetes, pense: no fundo, pessoas como ele podem realmente ser amantes de animais, fazendo esforços para encobrir isso.
2020-03-02
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-51424112
cultura
Vídeo, A jornada global da bicicletaDuration, 22,40
A produção de um dos mais humildes meios de transporte virou uma das indústrias mais complexas e integradas do mundo. Feito da Terra (Made on Earth no original em inglês) é uma série da BBC em oito episódios, explorando como oito produtos influenciaram a economia global. Clique abaixo para assistir aos outros sete episódios da série Feito da Terra:
2020-02-28
https://www.bbc.com/portuguese/media-49794324
cultura
As impressionantes imagens de concurso de fotos subaquáticas
A competição Underwater Photographer of the Year, que anualmente premia as melhores imagens feitas nas águas ou áreas adjacentes de oceanos, lagos e rios, anunciou os vencedores deste ano. Mais de 5.500 fotos subaquáticas foram escolhidas para 13 categorias. Elas foram feitas por fotógrafos de 70 países ao redor do mundo. A BBC News selecionou dez delas. Todas as imagens são de direitos autorais dos fotógrafos, conforme os créditos assinalados.
2020-02-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-51650397
cultura
'Por que me casei com minha mãe'
Em 1971, em meio ao nascimento do movimento de libertação das mulheres, Lillian Faderman, professora da Universidade Estadual da Califórnia, entrou em contato com uma das diretoras acadêmicas da instituição, Phyllis Irwin, para abrir um programa de estudos sobre mulheres. Foi o começo de um amor que durou quase meio século, mas repleto de obstáculos. Quando elas se conheceram, a homossexualidade era ilegal. "Éramos consideradas criminosas em quase todos os Estados do país", elas lembram. "A maioria das lésbicas permanecia escondida." Mas isso não as impediu de formar uma família juntas e de conseguir que fossem reconhecidas como grupo familiar perante a lei. Em entrevista à BBC, as mulheres contaram como encontraram uma maneira de usar as regras para que sua família tivesse o reconhecimento legal que a sociedade da época lhes negava. Quando começaram a namorar, Lillian e Phyllis não eram abertamente lésbicas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Naquela época, você sabia que deveria manter a boca fechada e continuar com a vida", diz Phyllis, hoje com 91 anos. Na década de 1970, as relações entre pessoas do mesmo eram punidas pela lei em muitos Estados dos EUA. No entanto, elas admitem que a direção da universidade sabia do relacionamento. "Eles nos chamavam de Phyllian e Lillis porque estávamos sempre juntas", ri Lillian. "Acho que nossos colegas deduziram isso e, quando comecei a publicar livros sobre a história do lesbianismo, parece-me que todos entendiam que éramos um casal". Três anos após a união, elas decidiram ter um filho. Lillian, 11 anos mais nova que Phyllis, foi ver um especialista em uma clínica de fertilidade. Fazer uma inseminação artificial era incomum. Ainda mais para uma mulher solteira. Mas Lillian conseguiu convencer o médico a ajudá-la, sem revelar as verdadeiras razões pelas quais queria ter um filho sem estar em um relacionamento com um homem. "O médico me perguntou por que eu não tinha me casado se queria ter um bebê", lembra. "Respondi: 'Tenho 34 anos, doutorado e sou vice-presidente de assuntos acadêmicos da universidade. Acho que isso espanta os homens.'" O médico simplesmente respondeu: "Entendo o que você diz". E realizou a inseminação, que foi bem-sucedida. Em 1975, Lillian deu à luz Avrom, o único filho do casal. Phyllis a levou para o hospital, mas, a pedido da Lillian, que temia que ela pudesse ter medo durante o parto e repassá-lo ao bebê, esperou do lado de fora. Tudo correu bem e as mulheres voltaram para casa, de repente convertidas em uma família de três. No entanto, logo começaram a perceber as limitações de seu arranjo familiar particular. Especialmente do ponto de vista jurídico. "Ficamos muito preocupadas, pois não havia laços legais entre nós", diz Lillian. "O que mais nos preocupou é que, todas as vezes que Avrom ficava doente e Phyllis tinha que levá-lo ao médico, ela não era legalmente sua progenitora, então eu tinha que dar um documento assinado por mim nomeando-a como responsável pela criança". "Mas o que mais me perturbava era que, se algo acontecesse comigo, ela não teria o direito legal de reivindicá-lo como filho. Do ponto de vista legal, ela era uma estranha para ele." Naquela época, duas pessoas do mesmo sexo não podiam ser pais do mesmo filho. Mas elas foram criativas e encontraram uma alternativa para formar um vínculo familiar reconhecido legalmente. "No Estado da Califórnia, se houver uma diferença de dez anos ou mais entre dois adultos, um pode adotar o outro", diz Lillian. Foi assim que Phyllis pode "adotá-la", tornando-se — de acordo com a lei — avó de Avrom. Mas, questionadas se não era estranho que se tornassem mãe e filha, Phyllis diz que "não pensei nisso nesses termos, vi isso simplesmente como a maneira de ter um vínculo legal com Avrom". Ela até ri que, como "mãe legal de Lillian", tinha "um relacionamento incestuoso". Brincadeiras à parte, Lillian explica: "Não consideramos estranho, porque nunca nos sentimos como mãe e filha, fizemos isso simplesmente como uma maneira de contornar as leis". "A lei dizia que duas mulheres não podiam se casar — teríamos ficado felizes em casar —, a lei dizia que não poderia haver um segundo pai do mesmo sexo e sabíamos que tínhamos que ter um vínculo legal, pelo bem de Avrom". "Então fizemos isso. Não parecia nada estranho", diz. As mulheres decidiram usar essa história fictícia não apenas por questões legais. "Uma vantagem da adoção é que Avrom, que nasceu em uma época em que não havia muitas outras crianças com duas mães lésbicas, quando ele era pequeno, pode apresentar Phyllis a seus amigos dizendo que ela era sua avó". "Acho que isso foi mais fácil para ele, embora ele soubesse bem que Phyllis era sua outra mãe. Ele sempre a chamava de Mama Phyllis. Hoje ele tem 45 anos e ainda a chama de Mama Phyllis", diz Lillian. Já Phyllis diz que não se importava em ser apresentada como a avó de seu filho. "Fiquei feliz por ele se sentir confortável em me apresentar como uma pessoa importante em sua vida , de modo que o termo não me incomodava em nada". "Certamente, tinha idade suficiente para ser avó dele!" Mas o tempo acabaria por permitir que ela se tornasse oficialmente "Mama Phyllis". Em 2008, a Califórnia permitiu o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Lillian e Phyllis se casaram no dia seguinte à legalização do casamento homossexual. Como não haviam dissolvido sua falsa adoção, eram de fato mãe e filha que agora estavam casadas. "Para nós, a adoção era algo apenas no papel, não nos importávamos", diz Lillian. No entanto, em 2015, quando o casamento igualitário foi aprovado nos Estados Unidos, uma advogada disse que elas poderiam ter problemas se não cancelassem a adoção e se casassem novamente. E foi isso que aconteceu: em 2015, elas já não eram mais "mãe e filha". "Acho que temos mais laços legais do que qualquer outro casal do planeta", brinca Lillian. Mas ainda havia a "cereja do bolo". "Quando Phyllis 'me desadotou', nosso filho percebeu que não tinha mais um vínculo legal com ela. Então pediu que ela o adotasse." Foi uma bela festa de família, da qual Avrom participou com sua esposa e filho. "Devo dizer que, de todas as coisas pelas quais passamos, a união civil, a cerimônia de casamento e tudo mais, foi isso o que mais me emocionou. Havia um homem crescido, sentado ao meu lado, e comecei a chorar. O juiz de paz também", lembra Phyllis. "Foi algo realmente especial. Que esse homem que eu carreguei quando era bebê, para quem cantei todas as noites quando ainda estava no útero, e lá estava ele, querendo que eu realmente fosse sua outra mãe legal". Em 2003, Lillian publicou suas memórias, nas quais conta sua incrível história de vida.
2020-02-25
https://www.bbc.com/portuguese/geral-51619285
cultura
Como as 'faixas da morte' que dividiram Europa na Guerra Fria se tornaram santuários de vida selvagem
Pássaros raros cantam à sombra das antigas torres da Alemanha Oriental. Renas selvagens percorrem a fronteira entre a Finlândia e a Rússia. Linces se esgueiram por bunkers comunistas nas montanhas da Albânia e norte da Macedônia. Em toda a Europa, espécies ameaçadas estão encontrando uma casa improvável nas terras onde a antiga Cortina de Ferro dividiu a região durante a Guerra Fria. Durante décadas, a fronteira que cortou a Europa foi um símbolo da hostilidade entre os blocos socialista e capitalista. Até a queda do Muro de Berlim, há 30 anos, que dividia a Alemanha, entre o lado Ocidental, da República Federal da Alemanha (RFA), e o Oriental, da República Democrática Alemã (RDA). Muitos perderam a vida tentando atravessar para o Ocidente, mortos por atiradores ou minas terrestres, na zona proibida entre as duas nações. Este corredor fortemente vigiado ficou conhecido como "faixa da morte". Mas nesta região onde nenhum homem podia pisar, plantas e animais prosperavam. Hoje, grande parte da faixa de terra ao longo da antiga Cortina de Ferro foi transformada em um "Cinturão Verde Europeu". Essa faixa de 12,5 mil km de extensão liga parques nacionais e santuários de vida selvagem do Oceano Ártico ao Mar Adriático, com um braço se conectando ao Mar Negro. Como a mudança climática afeta os padrões de migração de pássaros e outros animais, ela também se tornou uma rota de fuga vital para espécies que fogem para o norte — as áreas mais frias. E tudo começou com alguns intrépidos observadores de pássaros. "Quando eu tinha 14 anos, comecei a registrar as espécies de aves da região", diz Kai Frobel, ecologista que cresceu no lado ocidental da fronteira da Alemanha na década de 1970. "Percebi muito rapidamente que a maioria das espécies raras, como o cartaxo-nortenho, o noitibó-da-europa, e a estamenha-de-milho, estavam todos se reproduzindo na 'faixa da morte' da RDA, em todos os lugares". Frobel foi o primeiro a documentar publicamente este surpreendente refúgio de vida selvagem, o que o levou à carreira de conservacionista. Hoje, ele trabalha para uma organização ambiental alemã (Bund) que começou a comprar e proteger terras ao longo do lado ocidental da fronteira nos anos 1980. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Após a queda do Muro de Berlim em 1989, Frobel sugeriu transformar a faixa de fronteira interna da Alemanha em um "cinturão verde" de 1,4 mil km de comprimento. A Alemanha se reunificou em 1990, tornando isso possível. No centro do plano de Frobel estava esta faixa de terra, que antes pertencera oficialmente à RDA. Por estar no lado oriental das cercas e muros da fronteira, ela mal havia sido tocada durante os 40 anos em que leste e oeste ficaram divididos. "As patrulhas de fronteira só chegavam lá de poucos em poucos anos. Elas retiravam arbustos, limpavam um pouco a área, que não era usada de jeito nenhum", diz Melanie Kreutz, líder de projeto em Bund. "Portanto, sem agricultura, sem pesticidas, sem fertilizantes. E esta área, essa terra de ninguém, é realmente a espinha dorsal ecológica do cinturão verde (alemão) hoje. " Mais de 80% da antiga fronteira interna da Alemanha agora faz parte desse cinturão verde protegido. Seu legado histórico foi preservado junto com plantas e animais. Os visitantes podem avistar orquídeas, lontras e cegonhas, mas também explorar a história da Guerra Fria através de museus, exposições e caminhadas guiadas, além de passeios de bicicleta. Ao longo da antiga Cortina de Ferro, bolsões semelhantes de área selvagem foram mantidos intocados durante o impasse Leste-Oeste. No norte, as florestas da Noruega, Finlândia e Rússia abrigavam alces e ursos e, no extremo sul, nas montanhas e lagos dos Bálcãs, linces e pelicanos prosperavam. Após o fim da Guerra Fria, os países ao longo da fronteira gradualmente uniram forças para preservar esse corredor acidental e compartilhado de vida selvagem. O Cinturão Verde Europeu agora percorre 24 países, cobrindo uma enorme variedade de habitats, incluindo costas, lagos, florestas e montanhas. Embora ainda existam lacunas, o cinturão verde se tornou uma linha de salvação para muitas espécies ameaçadas de extinção. "Esses corredores são complexos ecossistemas que permitem que as espécies mantenham suas fortalezas, troquem genes e migrem", diz Aimo Saano, gerente de conservação da natureza da Metsähallitus, uma agência governamental que administra as principais áreas da parte finlandesa do Cinturão Verde da Europa. "Como sabemos da Europa densamente habitada, esse é o perigo óbvio: que os ecossistemas foram minimizados e cortados em pequenos pedaços, separados um do outro." A ligação por meio de fronteiras pode ajudar a combater essa tendência e apoiar espécies como as renas florestais, altamente ameaçadas de extinção. Na década de 1990, uma das poucas populações remanescentes de renas silvestres da floresta vivia na Carélia, uma região russa na fronteira com a Finlândia. Diferentemente da fronteira entre as Alemanhas, a divisa entre a Rússia e a Finlândia não desapareceu. Mas os conservacionistas russos e finlandeses transferiram algumas das renas da floresta selvagem russa para um parque nacional finlandês, estabelecendo uma segunda população menor a oeste do cinturão verde. As renas podem se mover para frente e para trás através da fronteira, e a troca genética resultante é vital para a saúde futura da espécie, diz Saano. Algumas espécies, como pássaros, borboletas e outros insetos, estão migrando para o norte ao longo do Cinturão Verde Europeu para escapar dos efeitos do aquecimento global. "Pelo menos aqui elas terão um corredor para se mover", diz Saano. No extremo sul do Cinturão Verde Europeu, nos Bálcãs, o fim da Guerra Fria foi seguido por uma série de guerras sangrentas. Quando a ex-Iugoslávia se desfez, poucas pessoas viram a proteção da vida selvagem como prioridade. Com a paz, no entanto, surgiu uma crescente conscientização sobre os tesouros naturais da região e uma vontade de cruzar as fronteiras para protegê-los. "Nosso foco principal é obviamente a proteção do meio ambiente, mas nos Bálcãs isso vai além", diz Sandra Wigger, gerente de projetos da EuroNatur, fundação ambiental que coordena organizações locais ao longo da seção balcânica do cinturão verde. "Trata-se também de intercâmbio transfronteiriço e desenvolvimento regional. É sobre deixar as pessoas verem que podem agir juntas. Porque elas passaram por aqueles anos de guerra que nem sequer faz tanto tempo." As condições naturais nesta área montanhosa e escassamente povoada, e sua história da Guerra Fria, resultaram em habitats selvagens intocados. A Albânia, por exemplo, ficou particularmente isolada durante o regime comunista. Suas fronteiras ainda estão pontilhadas de bunkers. Na Bulgária, uma zona de proibição de até 25 km de largura em alguns lugares delimitava a fronteira. "Ainda existem grandes áreas de natureza intocada, grandes áreas florestais que foram usadas apenas pelas poucas pessoas que vivem nessas regiões montanhosas", diz Wigger. "As cidades geralmente estão muito distantes. Isso significa que realmente temos uma enorme biodiversidade aqui que foi preservada." Pelicanos-dálmatas estão entre as espécies que prosperaram nesta região selvagem. A maior colônia do mundo se reproduz nos campos de junco dos lagos Prespa, entre Grécia, Albânia e Macedônia do Norte. Outra espécie da fronteira é o lince-dos-balcãs, ameaçado de extinção, que perambula entre diferentes áreas de caça dentro e ao longo do cinturão verde, como o Parque Nacional Mavrovo, no norte da Macedônia. Mas também nas montanhas da Albânia, Kosovo e Montenegro. Para os conservacionistas que trabalham ao longo do Cinturão Verde Europeu, a conexão com outros países também cria oportunidades para trocar informações e aprender uns com os outros. "Essa abordagem europeia dá uma dimensão tão grande, onde você realmente vê, OK, existem pessoas, organizações, agências governamentais em todo o continente que trabalham juntas além das fronteiras", diz Wigger. "Existe esse apoio, esse sentimento de fazer parte de uma comunidade em que você percebe que não está sozinho". Nem todo mundo é a favor do cinturão verde, no entanto. Na Alemanha, onde os conservacionistas gostariam de fechar as lacunas no cinturão, associações de agricultores têm protestado contra sua expansão. Eles temem a perda de terras agrícolas. O aumento do preço da terra, a demanda por culturas de biocombustíveis e a construção de estradas também estão pressionando o cinturão verde. Para Frobel, que passou a infância perto de uma fronteira que parecia ser impossível de cruzar na época, não se trata apenas de proteger o meio ambiente, como também de preservar uma memória. "É um monumento ecológico vivo para uma geração que não testemunhou a fronteira", diz ele. "Nossa expectativa básica era de que essa monstruosa fronteira interior da Alemanha fosse construída para a eternidade. Quase ninguém pensou que, um dia, não estaria mais lá." Como diz seu colega Kreutz: "Para as pessoas, era uma zona de morte. Mas a natureza conseguiu realmente florescer livremente lá."
2020-02-24
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50952906
cultura
Como pedir demissão quando a empresa é da família
Jordan Baker começou a trabalhar na empresa de tecnologia para logística 21st Century Transport aos 12 anos, varrendo o chão e atendendo telefonemas. Ele sempre quis fazer parte do negócio da família — e seu destino era assumir as operações quando o pai, Tony, se aposentasse. Em 2008, contudo, ele decidiu deixar a companhia, aos 20 anos. "É difícil quando seu pai não é apenas seu pai, mas também seu chefe", diz. "Eventuais decepções que ele tenha com você no âmbito pessoal podem ter repercussões no campo profissional e vice-versa. Pode virar uma dinâmica bem desconfortável." Família pode ser algo complicado — trabalhar com os parentes então, mais ainda. Não é difícil encontrar trajetórias bem-sucedidas de empresas familiares, com transições suaves entre as gerações e expansões que mantêm preservados os ideais dos fundadores. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o Hoshi Ryokan, tradicional hotel japonês que está sob o comando da mesma família há 46 gerações. A gigante do varejo Walmart pode ter seus problemas, mas metade do negócio ainda pertence aos descendentes do fundador, Sam Walton, e os atritos entre os parentes, se existem, raramente ganham as manchetes. Há, entretanto, uma grande variedade de exemplos no sentido oposto, envolvendo inclusive grandes empresas — do racha que deu origem a duas das maiores marcas de moda esportivas, Puma e Adidas, aos problemas de sucessão envolvendo a Samsung e à batalha legal que colocou a bilionária australiana da mineração Gina Rinehart contra seus familiares. A decisão do príncipe Harry e de sua mulher, Meghan Markle, de se afastarem das obrigações da família real britânica, ainda que tenha suas particularidades, também significa, de certa forma, deixar o "negócio da família" para tentar seguir seu próprio caminho. Histórias como essas não são difíceis de encontrar, já que as empresas familiares respondem por cerca de dois terços do total de companhias em atividade no mundo. O que motiva as pessoas a tomarem decisões como essas, e qual a melhor maneira de se desligar? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Trabalhar com alguém que se conhece bem pode ser uma vantagem, pondera Jennifer Pendergast, professora de inovação e empreendedorismo da Universidade Northwestern, em Chicago. Mas também abre uma janela para situações únicas de estresse. "Em uma discussão, parte dos familiares na sala pode decidir tomar partido", ela exemplifica. "Imagine ir para casa e dar de cara com seu chefe na mesa de jantar." A convivência com parentes no ambiente de trabalho pode significar, ao mesmo tempo, níveis muito mais altos de confiança e compromisso, como destacou a consultoria PricewaterhouseCoopers em 2014 em uma pesquisa sobre negócios familiares. Só que também tem potencial para "desencadear tensões, ressentimentos e ser um incentivo a conflitos, à medida que os envolvidos tentam separar 'cabeça' e 'coração' e manter o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional". Em uma pesquisa recente, a consultoria KPMG verificou que, na Austrália, onde 70% dos negócios são familiares, as fontes mais recorrentes de conflitos são a maneira dos gestores de se comunicarem, visão de futuro e estratégia, e o equilíbrio entre as necessidades da família e as da empresa. A percepção das dificuldades variava de acordo com as gerações: 21,8% dos futuros líderes afirmaram que o estilo de comunicação era a principal razão dos atritos, contra 13,3% entre os líderes naquele momento. Conflitos intergeracionais podem ter ainda outros impactos, como a perpetuação de estereótipos familiares. "É difícil esquecer quem você era quando criança e é difícil superar erros que as pessoas não esquecerão... irmãos serão sempre comparados uns aos outros", afirma Pendergast. Jeremy Waud trabalhou por 20 anos na empresa fundada pelo bisavô Frederick Goodliffe, o grupo OCS, antes de fundar uma empresa rival. "Estava farto. Eu era o diretor-geral da divisão de gerenciamento de instalações quando foi anunciado que a área passaria por uma reestruturação. Não parecia que o campo do qual eu era responsável se enquadrava na visão de futuro da companhia, então decidi que era hora de ir embora", ele diz. O grande número de parentes envolvidos no negócio fazia com que sempre houvesse algum tipo de tensão, mesmo nos períodos de aparente calmaria. "Em determinado momento, havia 15 pessoas da família trabalhando na empresa. Tios, primos, irmãos... Sempre há algum tipo rivalidade entre diferentes grupos, além das questões políticas envolvendo a participação acionária de cada um na companhia e o exercício do poder", acrescenta Waud, que hoje tem 58 anos. Quando ele pediu demissão, no ano 2000, para criar a empresa de gerenciamento de instalações Incentive FM, parentes insatisfeitos, preocupados com a possibilidade de ele levar clientes da antiga companhia, o levaram à Justiça. "Familiares podem levar para o lado pessoal o fato de alguém deixar a empresa, podem interpretar a saída como um julgamento de valor em relação ao negócio da família", afirma Pendergast. Apesar da experiência prévia, a evolução da Waud nesse novo ciclo foi lenta, já que ele teve que partir do zero. "Pensei que começar de novo seria fácil, mas então percebi que os credores não estão tão dispostos a emprestar às empresas que praticamente não têm patrimônio. Tomamos um empréstimo pequeno do banco e demos início ao negócio em 2002." Mauro Bruni precisou de anos para conseguir se desligar da empresa da família. O plano sempre tinha sido que ele assumiria a Bruni & Campisi, que faz instalação e manutenção de sistemas de aquecimento e presta serviços de encanamento em Bedford, Nova York. Ele trabalhou na área de marketing e design gráfico da companhia por 12 anos — mas tinha outra paixão, a patinação no gelo. Por muitos anos conciliou as duas atividades, chegando a trabalhar remotamente quando se apresentava em outros países com o espetáculo Holiday on Ice. Bruni cortou o cordão umbilical em 2019, depois de abrir uma empresa de eventos e patinação no gelo, a House of Mauro. "Meu pai sempre soube que minha paixão era a patinação. Ele me deu apoio quando pedi demissão e me ajudou a montar minha empresa", diz o empresário de 35 anos. Felizmente, o irmão aceitou assumir as funções deixadas pelo jovem na empresa da família. "Ele já vinha ganhando novas responsabilidades nos últimos anos, a ponto de já estar preparado inclusive para assumir o lugar do nosso pai", afirma Bruni. Muitas famílias, entretanto, não têm um planejamento sucessório e ficam perdidas com a saída repentina de um dos membros da família, pondera Kate Cooper, chefe de pesquisa do Institute of Leadership & Management, organização sem fins lucrativos que oferece treinamento na área de liderança. "As empresas precisam estar com o gerenciamento de risco em dia, precisam se planejar para o inesperado", ressalta. Questões legais podem ser outro problema dentro das empresas familiares. Karen Holden, presidente do escritório de advocacia A City, com sede em Londres, afirma que formalidades imprescindíveis podem ficar em segundo plano nessas companhias porque parte das relações se baseia na confiança. "Poucas pessoas pensam na parte legal quando todo mundo está feliz; muita coisa é na base do aperto de mão. E então as coisas dão errado e não existe qualquer documento com valor legal que prove o que foi acordado anteriormente." Para Jennifer Pendergast, a negociação é o melhor caminho para uma saída sem desgaste. "O melhor jeito de sair é sendo transparente sobre suas razões — mas isso precisa ser feito de forma cuidadosa e profissional." Também é recomendável agradecer pela oportunidade de ser parte do negócio da família, ela acrescenta. "Em qualquer situação, é bom sair sem fechar portas. Em uma empresa familiar isso é ainda mais importante, porque você provavelmente vai conviver com aquelas pessoas pelo resto da vida." A maioria das decisões, apesar de difícil, não é irrevogável. Um exemplo recente nesse sentido deu-se entre os Murdoch, uma das famílias mais ricas do mundo. O filho de Rupert Murdoch, Lachlan, deixou o negócio da família em 2006. Mas o que era para ser definitivo não durou mais que uma década. Em 2014, ele voltou para o conglomerado de mídia. Jeremy Waud, entretanto, diz não se arrepender da decisão. "O sacrifício valeu a pena e os ressentimentos ficaram para trás", diz. Já Jordan Baker diz que o pai ficou inicialmente decepcionado com a notícia de que ele deixaria a empresa, mas eventualmente superou o episódio e passou a apoiar sua decisão. Ele hoje tem a própria agência de marketing em Londres e valoriza a independência conquistada nos últimos anos.
2020-02-24
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cultura
Por que a Amazon entrou na mira de grupos judeus de preservação do Holocausto
Grupos ligados à preservação da memória do Holocausto lançaram críticas à Amazon, tanto por seu conteúdo próprio na plataforma de streaming Amazon Prime quanto por seu site de varejo online. As principais críticas estão direcionadas à série Hunters, recém-lançada pela Amazon, estrelando Al Pacino. A série, de dez episódios, gira em torno de um grupo de caçadores de nazistas nos EUA dos anos 1970. Críticos afirmam que a série incentiva o negacionismo do Holocausto ao inventar atrocidades ficcionais relacionadas àquele período — em referência específica a uma cena em que prisioneiros do campo de Auschwitz são forçados a matar uns aos outros em um jogo de xadrez humano. "Auschwitz foi repleto de terríveis dores e sofrimento humano, documentados nos relatos de sobreviventes. Inventar um falso jogo de xadrez humano para Hunters não é só uma bobagem perigosa e uma caricatura. É algo que incentiva futuros negacionistas. Nós honramos as vítimas ao preservar a precisão factual", escreveu no Twitter a organização Auschwitz Memorial, que preserva o antigo campo de concentração na forma de espaço histórico. O Holocausto foi o período em que cerca de 6 milhões de judeus foram mortos na Europa ocupada pelos nazistas, entre 1941 e 1945. Em Auschwitz, foram mortas 1,1 milhão de pessoas, a maioria delas judeus. O Auschwitz Memorial também criticou a Amazon pela venda de livros antissemitas, particularmente um escrito pelo oficial nazista Julius Streicher. "Quando você decide lucrar com a venda de perversos livros antissemitas de propaganda nazista publicados sem nenhum comentário ou contexto crítico, você precisa lembrar que essas palavras não levaram apenas ao Holocausto, mas a muitos outros crimes de ódio motivados pelo antissemitismo", disse a organização. Em resposta à agência Reuters, a Amazon afirmou que comentará sobre a série Hunters mais tarde. Sobre os livros, a empresa afirmou que "como vendedora de livros, somos cientes da censura de livros ao longo da história e levamos isso a sério. Acreditamos que oferecer acesso ao discurso escrito é importante, incluindo livros que possam ser considerados questionáveis". À BBC a empresa declarou que está "escutando o feedback" a respeito da venda de livros desse teor. Em dezembro, a Amazon retirou de seu catálogo produtos decorados com imagens de Auschwitz, incluindo produtos natalinos, depois de uma reclamação do Memorial. Ainda sobre a série Hunters, Karen Pollack, executiva-chefe da Fundação Educativa do Holocausto, afirmou à BBC que retratos fictícios como o feito pelo seriado dão um tom de "entretenimento superficial" ao tema. "Temos uma responsabilidade real de proteger a verdade sobre o Holocausto", ela declarou. "Particularmente à medida que estamos mais distantes da história viva, (uma vez que) os sobreviventes são em menor número e mais frágeis". "Não podemos fazer isso sozinhos", completou. "Precisamos depender das outras pessoas na sociedade que querem fazer o bem."
2020-02-24
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cultura
Quando tocar samba dava cadeia no Brasil
Tocar samba já foi motivo para ser preso no Brasil. Ou seja, ser sambista era sinônimo de ser "vadio" e, por associação, "bandido". O pioneiro sambista João da Baiana (1887-1974), por exemplo, enfrentou frequentes problemas com a polícia quando andava com seu pandeiro pelas ruas do Rio de Janeiro. No início do século 20, ele foi parado por policiais porque estava com o instrumento musical na mão. Em uma das ocasiões, um agente resolveu apreender o pandeiro, visto como uma prova da "vadiagem" do compositor, segundo narrou o biógrafo Lira Neto em seu livro Uma História do Samba (Cia. das Letras). Naquele dia, sem o pandeiro, João decidiu faltar a uma roda de samba da qual fazia parte. O senador José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915), fã do ritmo e um dos políticos mais importantes da época, ficou sabendo da história e pediu que João fosse a seu gabinete. Membro do então Partido Republicano Conservador, Pinheiro Machado escreveu uma dedicatória assinada no novo pandeiro de João: "A minha admiração, João da Baiana — Senador Pinheiro Machado". A partir de então, quando era parado por policiais, o músico mostrava o instrumento com a assinatura do parlamentar. Funcionava como um salvo-conduto contra a repressão. O caso do compositor é ilustrativo de como o samba — hoje um dos ritmos mais ouvidos do país — foi um dos movimentos culturais da comunidade negra a sofrer perseguição da lei e de autoridades racistas. Ocorreu o mesmo com a capoeira e, décadas depois, com o rap e com o funk. Em 1890, dois anos depois da promulgação da Lei Áurea, foi estabelecida por legislação a definição do crime de "vadiagem". Ou seja, se uma pessoa andasse na rua e não comprovasse estar trabalhando, podia ser levada à delegacia. O "crime" rendia até 30 dias de prisão. O samba acabou sendo enquadrado como um dos símbolos da criminalidade. "A simples posse de um instrumento de percussão podia ser interpretada como indício de vagabundagem", diz Lira Neto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, antes de o ritmo surgir oficialmente em 1916 — com a gravação da música Pelo Telefone, de Donga —, as autoridades do Rio de Janeiro já vinham trabalhando em um processo de "embranquecimento" da cidade e de repressão à população negra e pobre. "Já no final do século 19, buscou-se acabar com os cortiços que existiam na cidade, em especial os do centro, pois já se havia percebido que não era esse o tipo de habitação que condizia com o novo tipo de organização social que o Rio de Janeiro deveria apresentar", escreveram os pesquisadores em Direito Rafaela Cardoso Bezerra Cunha e Ricardo Augusto de Araújo Teixeira, da Universidade Federal de Lavras (UFLA), em um ensaio sobre o tema. Na época, a prefeitura implantou a chamada Reforma Pereira Passos, cujo objetivo era melhorar o saneamento básico e as condições sanitárias do Rio. A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) resumiu o plano em um artigo publicado em seu site. "Em poucos anos, uma nova metrópole nasceria [...] Edifícios suntuosos e de arquitetura variada surgiram para ornamentar as novas avenidas; hábitos considerados incompatíveis com os preceitos da higiene pública foram proibidos; novas redes de esgoto e de abastecimento de água foram construídas, assim como novas linhas de bonde, agora eletrificadas; a iluminação pública, antes fornecida pelos lampiões a gás, começou a ser substituída por postes de eletricidade", diz o texto. Por outro lado, o projeto teve uma consequência ruim para a população mais pobre — e esses efeitos são sentidos até hoje. "Com as demolições, a população que tinha alguma fonte de renda deslocou-se do centro para o subúrbio, enquanto que os mais pobres foram habitar as encostas dos morros, engrossando o contingente populacional das favelas que começavam a surgir", resume a Fiocruz. Além de intervenções urbanísticas, a reforma buscou modificar também a cultura carioca, fomentando elementos europeus em contraponto às manifestações negras. "A intenção de Pereira Passos era 'civilizar' a cidade, e o que fez para isso foi um aburguesamento do Rio de Janeiro em detrimento de uma imensa população pobre", escrevem os pesquisadores da UFLA. A repressão à cultura negra se intensificou, então. "Dessa forma, muitos cidadãos mais pobres do Rio de Janeiro tiveram tanto suas moradias quanto seus hábitos e seus meios de sobrevivência tolhidos pelo ideal europeu de 'civilização' que se tentou implantar no Brasil naquela época", escreveram. Em entrevista recente à BBC News Brasil, Reinaldo Santos de Almeida, professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirmou ser "indissociável" a relação entre a perseguição ao samba e o racismo. "A perseguição no início do século passada é tão racista quanto o sistema de justiça criminal brasileiro, cujo critério determinante é a posição de classe do autor, ao lado da cor de pele e outros indicadores sociais negativos, tais como pobreza, desemprego, falta de moradia", disse ele, cujo doutorado abordou a criminalização do samba. Segundo Almeida, sambistas não eram enquadrados apenas quando portavam instrumentos, mas também quando tinham calos nos dedos ou fossem flagrados em rodas de capoeira. Essa criminalização durou até a Presidência de Getúlio Vargas, que passou a valorizar elementos da cultura brasileira para reforçar o nacionalismo, uma de suas bandeiras. Porém, alguns sambistas ainda sofreram com a censura estatal. Músicas que ironizavam o trabalhismo, um dos pilares do Estado Novo, sofreram intervenção. A letra de Bonde de São Januário, de Ataulfo Alves e Wilson Batista, por exemplo, teve um trecho alterado por ordem do governo. A letra ironizava: "O bonde São Januário/ leva mais um otário/ só eu não vou trabalhar". A palavra "otário" foi trocada por "operário" e o trecho seguinte, substituído por "sou eu que vou trabalhar". "Com o surgimento das escolas de samba, o Estado adotou uma postura paternalista de controle, com regras e regulamentos para o desfile em cortejo na Avenida, a fim de conter as classes perigosas e as massas populares nas ruas da cidade", afirmou Almeida. Essa tentativa de controlar manifestações populares é mais antiga que o samba. A festa conhecida como Entrudo, que ocupava as ruas já no século 17, era muito mal vista entre elite brasileira por sua característica "baderneira". "As classes mais ricas queriam disciplinar e confinar a festa em salões ou carros alegóricos, à moda europeia", explica Danilo Cymrot, doutor em criminologia pela USP. Séculos depois, ocorreu o mesmo com o Carnaval. Até 1967, blocos de rua eram reprimidos pela polícia paulistana — imagem que se repetiria no início dessa década, com a PM dispersando o público carnavalesco com bombas de efeito moral. Em 1967, o então prefeito de São Paulo, José Vicente Faria Lima, decidiu "disciplinar" a festa, editando um decreto que confinava os desfiles na avenida São João, no centro da cidade. Já em 1991, a prefeita Luiza Erundina (então no PT) inaugurou o Sambódromo do Anhembi, dedicado às escolas de samba. "Muitas vezes, a repressão vem com a cooptação. A ideia é colocar ordem na desordem. O poder público passou a injetar dinheiro nas escolas de samba se elas fizessem o que a prefeitura queria. Ou seja, desfilar em locais fechados com horário determinado", explica Cymrot, que pesquisa a criminalização de manifestações culturais. Para ele, o mesmo vem ocorrendo com chamados fluxos ou pancadões. Os eventos reúnem milhares de jovens em ruas de bairos periféricos, produzindo música alta e bagunça, o que incomoda moradores e comerciantes. Em São Paulo, vereadores e deputados apresentaram projetos que propunham "disciplinar" os pancadões, ou até confiná-los em áreas fechadas, como o Autódromo de Interlagos. "Como essas festas jovens são informais e improvisadas, o poder público não criminaliza diretamente por meio de leis. Mas ele cria uma série de regras e exigências que as pessoas não conseguem cumprir. Então, a repressão policial é justificada porque alguma norma não foi cumprida", diz Cymrot. Assim como o samba, a capoeira é hoje um dos símbolos da cultura brasileira, mas, nos séculos 19 e 20, ela também era considerada crime. Antes da Lei Áurea, de 1888, o medo dos governantes era de que a dança, misturada à luta, pudesse levar a uma revolta de escravizados. "Dessa forma, as autoridades, buscando conter a evolução da prática da capoeira, pelo medo de uma rebelião escravista e visando punir os praticantes, entenderam, de forma implícita, que a prática da capoeira podia ser tratada como vadiagem", escreveram as pesquisadoras Janine de Carvalho Ferreira Braga e Bianca de Souza Saldanha em estudo sobre a criminalização da modalidade. Mesmo depois da Lei Áurea, a luta continuou proibida. O Código Penal de 1890 avisava da possível punição: "Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação de capoeiragem: pena de prisão celular por dois a seis meses". A capoeira só deixou de ser crime também durante o governo Vargas, que enxergou na modalidade uma forma de valorizar a cultura brasileira. Mais tarde, e em menor proporção, o rap também teve problemas com a Justiça. Em novembro de 1997, os integrantes da banda Planet Hemp foram presos em Brasília por "apologia às drogas", em virtude de suas letras sobre consumo de maconha. No ano 2000, a polícia do Rio "investigou" o clipe Soldado do Morro, do rapper MV Bill, antes mesmo de ele ser lançado comercialmente. Segundo a polícia, o vídeo fazia "apologia ao crime".
2020-02-21
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cultura
Como os Beatles influenciaram diretamente o axé e o carnaval da Bahia
Um bater de asas em Liverpool provocou um tsunami no resto no mundo. A metáfora usada para exemplificar a teoria do caos molda-se na força e influência dos Beatles. Em abril de 2020, o mundo registra 50 anos do término da banda britânica. Nesse constante fluxo de inspiração dos anos 1960, a onda gigantesca produzida pelo Fab Four arrebentou nas águas mornas da baía de Todos os Santos. Em Salvador, onde as influências africanas sobressaem na música, no canto e na dança, as inovações técnicas e melódicas trazidas pelos Beatles modificaram os rumos do carnaval da Bahia. Ícone da Música Popular Brasileira, Gilberto Gil apazigua o que poderia ser um princípio de polêmica. Não há, segundo o artista de 77 anos, uma disputa de protagonismo com as raízes africanas ao admitir as contribuições indiretas de John, Paul, George e Ringo — um quarteto de homens brancos, do norte da Inglaterra, cantando músicas em inglês — na folia baiana, de formação afro-brasileira. Em entrevista à BBC Brasil, Gil destaca a força da música negra nos próprios Beatles. "Tudo que veio de música urbana, da música jovem e transformou o mundo tem uma forte influência dos Beatles. Os Beatles traziam um talento extraordinário para a reprodução da canção melodiosa, com o ritmo frenético do rock and roll. Eles traziam muito da coisa dos negros americanos, de B.B. King e Little Richard. Eles fizeram esse trânsito entre a música de raiz negra americana... Tinha tido o Elvis Presley como primeiro agente internacionalizante desse movimento. Mas são os Beatles os primeiros a fazer isso via Europa", diz. O compositor e pesquisador mineiro Tom Tavares enxerga na carga hereditária o mais destacado translado da sonoridade inglesa para o carnaval da Bahia. Em 2020, a fobica, que no futuro daria origem ao trio elétrico, completa 70 anos de existência. A invenção veio pelas mãos de Dodô Nascimento e Osmar Macedo, no carnaval de 1950. São eles os primeiros a eletrizar um carro (na época um Ford, 1929) e adaptá-lo para tocar música. Os filhos de Osmar, mais precisamente o guitarrista Armandinho, ainda bem rapazote no início dos anos 1970, iria aderir aos elementos vanguardistas içados por Lennon e McCartney. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É uma questão geracional. Armandinho era um jovem músico extremamente talentoso, que tocava o instrumento desenhado por ele e construído por Dodô: a guitarra baiana. Nesta época, no carnaval de Salvador, basicamente o que se tocavam eram sambas, as marchas juninas e os frevos pernambucanos. Armandinho começa a tocar os rocks que ele ouvia dos Beatles, dos Rolling Stones. Isso em cima do trio elétrico", argumenta Tavares. Hoje aos 66 anos, Armandinho ainda lembra a sensação despertada ao ouvir os primeiros acordes dos Beatles. "Tinha entre 12, 13, 14 anos. Aquilo foi me arrebatando. A sonoridade era muito forte. Meu pai, no entanto, dizia que aquelas músicas não nos representavam. Eu, então, incorporei a melodia deles, mas tentava trazer pra nossa realidade. Puxar para o frevo, para o ijexá direto na guitarra baiana", diz. Outra inovação potente viria na formação das bandas de apoio. Até então quem acompanhava os músicos em cima do trio — naquela época, por limitações técnicas, não havia cantores, apenas instrumentistas — eram tocadores de charanga e percussão. "Em 1974, comecei a substituir esse pessoal por guitarrista, baterista e contrabaixista. E essa era exatamente a formação dos Beatles. Nós estávamos revolucionando o carnaval, eletrizando ele, e os Beatles eram nossa referência maior de modernidade", pontua. Desde o ano passado, Armandinho apresenta no teatro o espetáculo Irmãos Macedo, Carnaval, Música e Revolução. Na peça, ele e os irmãos André, Aroldo e Betinho contam como o trio elétrico transformou o Carnaval da Bahia. Em uma das cenas, os quatro emendam clássicos dos Beatles em sequência e, ao fim do pot-pourri com uma contraluz ao fundo, emulam a capa de Help (lançado em agosto de 1965). Diretor do espetáculo e produtor musical, Andrezão Simões explica a opção pela cena. "Ali desenhamos uma homenagem desta influência da célula Beatles. Dodô e Osmar são responsáveis pela MTB: Música Trieletrizada Brasileira. As inovações técnicas que eles criaram permitiram abrir um elo com o que de mais moderno estava sendo feito no mundo. É nesse momento que o carnaval da Bahia encontra os Beatles, sinônimos de liberdade. Aqui em Salvador, a guitarra baiana é a antena que capta esta transformação", pontua. Os herdeiros de Macedo, no entanto, não são a única conexão entre Liverpool e Salvador — duas cidades famosas, além da música, por antigos portos comerciais. A Tropicália foi, em seus anos iniciais, fortemente influenciada pelos Beatles. Em 1966, o quarteto mudou a base musical com o lançamento do LP Revolver. O jornalista britânico Steve Turner, em seu livro Beatles 1966. O ano revolucionário (editora Benvirá, 2018) escreve que, depois daquele ano, eles "compunham músicas que exploravam sua psique e a natureza da sociedade, além de com frequência serem considerados uma ameaça à ordem estabelecida por governos ao redor do mundo". Depois de Revolver, em junho de 1967, viria o conceitual Sgt Pepper's Lonely Hearts Club Band. No fim de setembro e outubro daquele ano, Caetano e Gil se apresentavam no Festival de MPB, da TV Record, lançando as bases do Tropicalismo. Para a reportagem da BBC News Brasil, Gil contou como os tropicalistas beberam desta fonte e como isso foi respingar no carnaval de Salvador. "Muito do nosso trabalho na Tropicália era diretamente influenciado por discos como Revolver, como Sgt Peppers. Em 1969, fomos presos [pela Ditadura Militar] e depois exilados. Tínhamos que ir embora. Nossa primeira parada foi Portugal. Depois, fomos a Paris. Mas aí Paris era muito chato. Muito agressivo. Me lembro de uma noite, depois de sermos maltratados e recusados em duas ou três lanchonetes, a gente literalmente sentou na calçada e chorou. Aí, eu disse: 'Vamos pra Londres, Caetano. Lá é a terra dos Beatles'. E não deu outra. Aquele encontro psicodélico foi algo fantástico". A capital inglesa vivia o Swinging London, movimento efervescente nas artes visuais, música, moda e costumes. Antes de partir para o exílio, Caetano Veloso deixou gravadas as bases do seu segundo LP solo (o que tem Caetano Veloso escrito à mão sobre uma capa branca), que seria lançado em agosto de 1969. Entre as músicas estava Atrás do Trio Elétrico. "Atrás do Trio Elétrico é uma música inaugural dessa sonoridade moderna do trio. Você tem ali Lanny Gordin (guitarrista) fazendo aquele solo extraordinário, acompanhando Caetano. Ele, com todas as influências do rock, acabou influenciando toda a nova maneira de sonorizar a música baiana. Isso vai bater em Luiz Caldas, lá na axé music", diz Gil. Considerado pai da axé music, movimento iniciado em 1985 com o lançamento do seu LP Fricote, Luiz Caldas reconhece o tributo melodioso em Caetano, mas pontua as músicas de baile como vínculo mais direto com os britânicos. "Eu comecei a tocar aos sete anos de idade. Tocava violão e, naturalmente, migrei para a guitarra. Na música de baile você acaba tocando milhares de coisas. Ticket to Ride e Yesterday, por exemplo, sempre estavam em meu repertório", relembra. A partir dos anos 1990, a axé music se tornaria um filão extremamente lucrativo com cifras derramadas aos magotes no carnaval da Bahia. Viriam as estrelas: Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Cláudia Leitte, Chiclete com Banana, Asa de Águia, Carlinhos Brown. "Todo mundo que foi jovem nos anos 1960 e toca instrumento de corda tem nos dedos os caminhos harmônicos dos Beatles. Mesmo que inconscientemente. Eles trouxeram uma nova dimensão das músicas e essa linha melódica nunca foi quebrada", diz o cantor Gerônimo Santana, autor de hits de ixejá como É D'Oxum. "Luiz Caldas foi meu guitarrista. Ele tem Beatles no seu jeito extraordinário de tocar. A grande questão é que Beatles foi, para todos nós, um ponto de partida. Não de chegada. Dessa melodia avançamos para a música negra, para os atabaques, para os sons africanos, os ritmos caribenhos. Essas coisas foram se incorporando e fazendo crescer o carnaval da Bahia como sonoridade marcante. Mas bebemos, sim, nos Beatles. Todo mundo bebe do que é muito bom", reforça Gerônimo. Um exemplo claro de como a axé music incorpora a qualidade musical da banda mais famosa do mundo, revela o compositor Tom Tavares, é a inspiração da música Vai Rolar a Festa, de 2001. "A sequência harmônica dessa música é exatamente a mesma de Twist And Shout. Essa não é uma música dos Beatles, mas eles que a popularizaram quando lançaram no disco Please, Please Me (o primeiro deles, 1963). Vai Rolar a Festa consegue reproduzir essa mesma sequência harmônica. É um plágio? Claro que não. Mas é uma inspiração direta, sem dúvidas", afirma. A canção Twist and Shout alcançou novas gerações, ao figurar na trilha sonora de um clássico da década de 1980: Curtindo a Vida Adoidado. Por conta do filme estrelado por Matthew Broderick, a música voltou às paradas de sucesso 23 anos depois da primeira gravação dos Beatles. Já Vai rolar a festa, composta por Anderson Cunha e gravada por Ivete Sangalo, embalou a conquista do pentacampeonato da Seleção Brasileira em 2002. Na letra da música, uma estrofe entrega a relação direta do rock com o batuque negro, que sintetiza o carnaval da Bahia. "Pode vir, pode chegar. Misturando o mundo inteiro. Vamos ver no que é que dá. Tem gente de toda cor. Tem raça de toda fé. Tem guitarras de Rock 'n Roll. Batuque de Candomblé (...) Vai rolar a festa. Vai rolar..."
2020-02-21
https://www.bbc.com/portuguese/geral-51467319
cultura
Como surgiu, acidentalmente, a teoria da dominação universal pelos Illuminati
É a maior teoria da conspiração entre todas as teorias da conspiração. Ela diz que os Illuminati, uma sociedade secreta, seriam os supostos chefões que controlam tudo que acontece no mundo, operando secretamente para estabelecer uma Nova Ordem Mundial. Toda essa paranoia começou com uma divertida ficção nos anos 1960. Então, o que isso nos diz sobre nossa facilidade para acreditar no que lemos e ouvimos - e o que o mito dos Illuminati nos revela sobre as notícias falsas e as histórias que continuam a nos influenciar hoje? Ao tentar pesquisar sobre a história da "sociedade secreta", a maioria das pessoas acabam chegando à Alemanha com a Ordem dos Illuminat, que surgiu na época do Iluminismo. Era, de fato, uma sociedade secreta da Bavária, fundada em 1776 para reunir um grupo de intelectuais que se opunham à influência religiosa e elitista sobre a vida cotidiana. Ela incluía vários progressistas na época, mas, assim como ocorreu com a Maçonaria, eles foram sendo gradualmente transformados em foras-da-lei pelos conservadores e os críticos cristãos, e o grupo deixou de existir. Quer dizer, até os anos 1960. Os Illuminati de que ouvimos falar hoje não são influenciados pelos bávaros, segundo o escritor e apresentador David Bramwell, que se dedicou a documentar as origens do mito. Em vez disso, a era da contracultura, do LSD e do interesse na filosofia oriental é a maior responsável pela reencarnação moderna (e totalmente não embasada) do grupo. Tudo começou em meio ao chamado "Verão do Amor", em 1967 e oo fenômeno hippie, quando apareceu uma pequena publicação impressa chamada Principia Discordia. Resumidamente, o livro era uma paródia de religião - o Discordianismo - criada por entusiastas do anarquismo e pensadores que queriam influenciar seus leitores a reverenciar Eris, a deusa do caos. O movimento discordiano era um coletivo que queria provocar desobediência civil, pegadinhas e espalhar boatos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O texto em si nunca se tornou nada além de uma curiosidade da contracultura, mas um dos princípios desta fé - o de que estas atividades (desobediência civil, fazer pegadinhas, espalhar boatos) poderiam causar mudanças sociais e forçar as pessoas a questionar os parâmetros da realidade - foi imortalizado por um escritor, Robert Anton Wilson. Segundo David Bramwell, Wilson e um dos autores do Principia Discordia, Kerry Thornley, "decidiram que o mundo estava ficando muito autoritário, rígido, fechado e controlado". Eles queriam trazer o caos de volta à sociedade e sacudir as coisas, e acreditavam que "a melhor forma de fazer isso era espalhar a desinformação. Disseminar desinformação através de todos os portais - através da contracultura, da imprensa tradicional, do que quer que fosse. E eles decidiram que começariam contando histórias sobre os Illuminati". Naquela época, Wilson trabalhava para a revista masculina Playboy. Ele e Thornley começaram a enviar cartas falsas de leitores sobre esse "segredo" - uma organização de elite chamada Illuminati. Em seguida, enviavam mais cartas para contradizer as que haviam acabado de escrever. "O conceito por trás disso é que se você fornecer suficientes pontos de vista contrários sobre uma história, teoricamente - e idealmente - a população vai olhar para essas coisas e pensar 'espere um pouco'", diz Bramwell. "Elas vão se perguntar, 'posso mesmo confiar na maneira como uma informação é apresentada a mim?' É uma forma idealista de fazer as pessoas acordarem para as realidades sugestionadas em que habitam - só que, é claro, isso não aconteceu da maneira como eles esperavam." O caos do mito dos Illuminati viajou para muito longe - Wilson e outro jornalista da Playboy escreveram os livros Trilogia Illuminatus! que atribuía grandes casos "suspeitos" da época - como o assassinato do então presidente americano John F. Kennedy - aos Illuminati. Os livros se tornaram tamanho sucesso que eles até se transformaram em peça de teatro em Liverpool lançando as carreiras dos atores britânicos Bill Nighy e Jim Broadbent. Inspirada pela ideologia anárquica da religião discordianista, a banda eletrônica britânica The KLF também passou a se chamar The Justified Ancients of Mu Mu (Os Anciãos Justificados de Mu Mu, em tradução livre), nome de um grupo de discordianos que se infiltram nos Illuminati nos livros da trilogia. Em 1975, um jogo de cartas colecionáveis usado para jogar RPG surgiu com o nome de Illuminati, apresentando um mundo místico de sociedades secretas a toda uma geração. Hoje, a existência dos Illuminati é uma das mais conhecidas teorias da conspiração, até mesmo celebridades como Jay-Z e Beyoncé fizeram o símbolo do grupo com as mãos em shows. Raramente vem à tona a epifania que os proponentes do Discordianismo pretendiam originalmente - o entendimento de que é tudo falso. A cultura de minieditoras e fanzines dos anos 1960 pode parecer distante da internet hiperconectada de hoje, mas foi a propensão dos participantes da internet de compartilhar e propagar rumores sobre os Illuminati em fóruns como 4Chan e Reddit que deu a fama atual à ideia. Mas nós vivemos em um mundo cheio de teorias da conspiração e, mais importante que isso, que crê em teorias da conspiração. Em 2015, cientistas políticos descobriram que cerca da metade dos americanos apoia ao menos uma teoria da conspiração. Isso inclui desde os Illuminati até a conspiração sobre o local de nascimento do ex-presidente Barack Obama, ou a crença popular de que o 11 de Setembro foi um estratagema do serviço de inteligência dos EUA. "Não há um perfil único de um criador de teorias da conspiração", diz Viren Swami, professor de Psicologia Social da Universidade de Anglia Ruskin, na Inglaterra. "Há diferentes perspectivas sobre por que as pessoas acreditam nessas teorias, e elas não se excluem mutuamente. Então a maneira mais simples de explicar isso é que as pessoas que acreditam em teorias da conspiração sofrem de algum tipo de psicopatologia". Outra conclusão dos pesquisadores é que essas teorias poderiam oferecer formas racionais de entender situações que são confusas ou ameaçadoras para a autoestima. "Elas te dão uma explicação muito simples", diz Swami, que publicou uma pesquisa em 2016 concluindo que pessoas que acreditam em teorias da conspiração têm tendência maior a estar sofrendo com experiências estressantes do que aqueles que não acreditam. Outros psicólogos também descobriram no ano passado que as pessoas com níveis mais altos de educação tendem a acreditar menos em teorias da conspiração. A imagem que isso passa sobre os Estados Unidos de hoje é desoladora, especialmente para Swami, que tem visto uma mudança no perfil das pessoas que promovem material conspiratório. "Especialmente no Sul da Ásia, as teorias da conspiração têm sido um mecanismo do governo para controlar a população. No Ocidente, tipicamente aconteceu o oposto, elas pertencem às pessoas sem poder e sem agência e é sua falta de poder que dá origem a teorias da conspiração para desafiar o governo. Como o 11 de Setembro. Se as pessoas não têm poder, as teorias da conspiração podem plantar as sementes para protestos sociais e motivar as pessoas a fazer perguntas". "A grande mudança agora é que políticos, especialmente Donald Trump, estão começando a usar conspirações para ganhar mais apoio", afirma. O 45º presidente dos Estados Unidos levantou diversas vezes a teoria de que seu antecessor Barack Obama não seria americano. Ele também acusou vários estados americanos de fraude eleitoral após a eleição de 2016, e sua equipe de campanha foi responsável por propagar histórias que foram desmentidas, como a Pizzagate, uma teoria da conspiração que criava uma ligação entre membros do Partido Democrata e uma cadeia de abuso sexual infantil, e o massacre de Bowling Green, que nunca ocorreu, mas foi citado pela assessora de Trump, Kellyanne Conway, em um programa de TV. A BBC perguntou a Swami se ele acha que essa mudança no uso de teorias da conspiração pode afetar a política a longo prazo." As pessoas podem se envolver menos com a política tradicional se elas acreditam em teorias da conspiração", diz Swami. "É muito mais provável que elas se envolvam com conspirações e visões racistas, xenófobas e extremistas." A ideia de que existe um grupo de elite secreto e intocável pode ser popular entre aqueles que se sentem deixados para trás e desamparados. Trump disse que queria representar essas pessoas, especialmente as da região do chamado Cinturão da Ferrugem, outrora um centro industrial importante no país. Ainda assim, em vez de se sentirem melhor representados no centro do poder por alguém que não é um político, como eles - e teoricamente se tornarem menos vulneráveis a essas conspirações -, parece que muitos americanos tendem a acreditar cada vez mais em histórias como as dos Illuminati. "Se Robert Anton Wilson estivesse vivo hoje, ele estaria ao mesmo tempo encantado e chocado", diz David Bramwell. "Talvez tenhamos mais estabilidade na medida em que as pessoas combaterem notícias falsas e propaganda. Estamos começando a entender como as redes sociais estão nos enchendo de ideias em que queremos acreditar. São as câmaras de ressonância". Em meio aos fóruns na internet, às referências na cultura popular e à capacidade ilimitada da imaginação da espécie humana, aqueles que buscam a verdade tentam desmistificar o mito dos Illuminati para valer.
2017-08-27
https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-41038461
cultura
A empresa americana que defende ‘compostagem humana’ como alternativa ‘verde’ a enterro ou cremação
Uma empresa dos EUA divulgou detalhes científicos de seu processo de "compostagem humana" para funerais ambientalmente amigáveis. Um estudo piloto produzido com voluntários que morreram mostrou que os tecidos humanos se decompuseram de forma segura e completa em 30 dias. A empresa, Recompose, diz que esse processo economiza mais de uma tonelada de carbono em comparação com a cremação ou o enterro tradicional. Ela afirma que oferecerá o primeiro serviço de compostagem humana no Estado de Washington (EUA) a partir de fevereiro. A diretor executiva e fundadora da Recompose, Katrina Spade, disse à BBC que preocupações quanto às mudanças climáticas são um dos principais motivos que levam muitas pessoas a manifestar interesse no serviço. "Até agora 15 mil pessoas assinaram nossa newsletter. E a legislação para permitir isso no Estado recebeu apoio bipartidário, permitindo que ela fosse aprovada na primeira vez que foi protocolada", diz ela. "O projeto avançou tão rapidamente por causa da urgência da mudança climática e a consciência de que precisamos enfrentá-la". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Spade conversou comigo conforme os resultados de um estudo científico sobre o processo de compostagem, que a Recompose chama de redução orgânica natural, eram apresentados no encontro da American Association for the Advancement of Science (associação americana para o avanço da ciência) em Seattle. "Há uma praticidade amorosa nisso", ela disse em uma das raras entrevistas desde que anunciou os detalhes do projeto, há um ano. Ela me disse que teve a ideia há 13 anos, quando começou a pensar sobre sua própria mortalidade — à idade madura de 30 anos! "Quando eu morrer, este planeta, que me protegeu e sustentou por toda a minha vida, não deveria receber de volta o que me restou?" "É simplesmente lógico e também lindo." Spade faz uma distinção entre decomposição e recomposição. A primeira acontece quando um corpo está sobre o solo. A segunda envolve integrar-se com o solo. Ela diz que, em comparação com a cremação, a redução natural orgânica de um corpo impede que 1,4 tonelada de carbono seja lançado na atmosfera. E ela acredita que haja uma economia similar quando o método é comparado com o enterro tradicional se levados em conta o transporte e a fabricação de um caixão. "Para muitas pessoas, isso dialoga com a forma com que elas tentam conduzir suas vidas. Elas querem um plano de morte que dialogue com a forma como elas vivem." O processo envolve deixar o corpo num compartimento fechado com pedaços de madeira, alfafa e palha. O corpo é lentamente girado para permitir que micróbios o consumam." Trinta dias depois, os restos ficam disponíveis para que familiares os despejem em plantas. Embora o processo seja simples, o aprimoramento da técnica levou quatro anos de estudos científicos. Spade pediu à cientista do solo Lynne Carpenter Boggs que realizasse o trabalho. A compostagem de animais de rebanho é uma prática antiga no Estado de Washington. A missão de Carpenter Boggs era adaptá-la a humanos e garantir que os vestígios fossem ambientalmente seguros. Ela fez estudos-piloto com seis voluntários que deram consentimento antes de morrer. Ela me disse que o trabalho teve um peso emocional para ela e sua equipe. "Nós ficávamos conferindo uns aos outros. Minha fisiologia parecia diferente, eu não dormi bem algunas noites, não tive fome — foi uma resposta a um distúrbio". Carpenter-Boggs descobriu que o corpo em recomposição alcançava a temperatura de 55 graus Celsius durante um certo período. "Estamos certos de que ocorre uma destruição da ampla maioria de (organismos causadores de doenças) e remédios por causa das altas temperaturas que alcançamos." O negócio da recomposição começará no fim deste ano. Qualquer um poderá participar do processo, mas ele só é legal no Estado de Washington. No Colorado, discute-se a aprovação de uma lei sobre a redução orgânica natural. Spade acredita que é uma questão de tempo até que o método esteja disponível amplamente — nos EUA e em outros lugares. "Esperamos que outros Estados abracem a ideia depois que começarmos em Washington. Tivemos muito entusiasmo no Reino Unido e em outras partes do mundo, e esperamos abrir filias no exterior quando pudermos."
2020-02-19
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51538222
cultura
O chocante caso de canibalismo 'profetizado' por livro de Edgar Allan Poe
Um dos primeiros escritores americanos de contos, Edgar Allan Poe é considerado o inventor do gênero ficção policial. Também foi pioneiro em tentar ganhar a vida exclusivamente por meio da escrita e, por isso, passou por sérias dificuldades financeiras. Suas histórias versam sobre o mistério e o macabro, mas existem poucos capítulos tão arrepiantes quanto os de A Narrativa de Arthur Gordon Pym, seu único romance completo. Publicado em 1838, o livro traz inúmeras referências marítimas, como naufrágios, motins e navios-fantasmas repletos de cadáveres. A obra também fala sobre o canibalismo — e é isso que a torna especial. O personagem central da história de Poe é um homem que, 50 anos depois na vida real, acabaria se tornando um náufrago e — exatamente como havia sido descrito no livro — comido por seus companheiros que sobreviveram. O romance se parece a um livro de memórias, no qual o narrador homônimo Pym descreve uma viagem perigosa. Tudo começa quando, ainda em sua época de estudante, ele se torna amigo de Augustus Barnard, filho do capitão de um navio. As histórias de Augustus sobre o alto mar criam em Pym um desejo irresistível de zarpar. Augustus ajuda, então, Pym a esconder-se no baleeiro de seu pai, o Grampus. Depois de um motim e uma tempestade monstruosa, Augustus e Pym veem-se no comando do que sobrou da embarcação, acompanhados por apenas dois outros sobreviventes, Dirk Peters e Richard Parker. Ainda na metade da narrativa, os sobreviventes — que passaram dias se alimentando de restos racionados de uma tartaruga e se tornam quase delirantes de sede — se veem forçados a contemplar o inimaginável: sacrificar um deles para garantir a sobrevivência dos outros. Segundo reza a tradição do mar, eles fazem um sorteio para determinar a vítima: sobram Pym e Parker e, no final, é Parker quem perde a vida. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Poe ansiava pelo pagamento da obra. Recém-casado com sua noiva menor de idade (que também era sua prima em primeiro grau) e desesperado, ele havia recebido a certeza de sua editora de que seus leitores preferiam obras mais longas. No entanto, a resposta inicial a seu romance não foi favorável. Alguns críticos se opuseram às passagens de extrema violência, outros às imprecisões náuticas. O próprio Poe finalmente ecoou os críticos, chamando sua obra de "um livro muito bobo". Mas, nas décadas que se seguiram, a opinião pública começou a mudar. Júlio Verne, convencionalmente considerado o pai da ficção científica, gostou tanto que publicou uma sequência em 1897, intitulada Mistério Antártico. Diz-se também que o livro de Poe inspirou Moby Dick e também autores de Henry James a Arthur Conan Doyle. Baudelaire traduziu a obra e o grande escritor argentino de contos Jorge Luis Borges declarou que é simplesmente a maior obra de Poe. E Yann Martel batizou de Richard Parker o tigre de A Vida de Pi. Isso passou aparentemente despercebido até que um descendente em carne e osso de um homem chamado Richard Parker o trouxe à luz. Nigel Parker escreveu sobre as notáveis semelhanças entre o trabalho de Poe e o destino de um antepassado seu, morto pelos companheiros após ter sobrevivido a um naufrágio ocorrido após o lançamento do livro. Nigel contou como seu antepassado foi um dos quatro sobreviventes do naufrágio do barco Mignonette, que comeram uma tartaruga antes de recorrer ao canibalismo - sendo Parker a vítima. Tudo isso foi relatado em uma carta ao autor e fã de parapsicologia Arthur Koestler, que havia pedido ao público que enviasse histórias de "coincidências impressionantes". Koestler ficou tão deslumbrado com o paralelo que publicou a carta no jornal The Sunday Times em 1974. Racionalmente, sabemos que foi apenas uma coincidência assustadora, mas que, ainda assim, captura a imaginação de uma maneira particular. Há uma nostalgia humana por um tempo em que os contadores de histórias também eram "oráculos". Além disso, Poe teve outro momento "profético". Por exemplo, seu conto de 1840, O Homem de Negócios, apresenta um narrador que sobreviveu a um traumatismo craniano na infância e leva uma vida obsessiva interrompida por explosões de violência. Oito anos depois, o funcionário ferroviário Phineas Gage virou notícia ao aparecer com um grande pedaço de ferro enfiado em seu crânio. Ele sobreviveu, mas sua personalidade mudou radicalmente, dando aos médicos o primeiro vislumbre do papel que o lobo frontal desempenha na cognição social. O diagnóstico da síndrome do lobo frontal era muito semelhante ao imaginário de Poe. Da mesma forma, seu trabalho final, Eureka, um delirante poema de não ficção dedicado a Alexander von Humboldt, conseguiu antecipar várias teorias e descobertas científicas do século XX, incluindo o Big Bang. Em termos de antecipar o que aconteceria nas próximas décadas, Poe predisse a moderna história de terror, desvendando castelos e masmorras da ficção gótica e deixando seus terrores psicológicos percorrerem o mundo de seus leitores. É por uma boa razão que Stephen King chama seus colegas de gênero de " filhos de Poe", creditando ao autor a escrita do primeiro conto de terror com um sociopata, O Coração Revelador. Poe também avançou no gênero emergente da ficção científica, "enviando" um homem à Lua mais de 30 anos antes de Júlio Verne, e mais de meio século antes de HG Wells. Em 1926, quando o pioneiro excêntrico Hugo Gernsback tentou definir ficção científica — ou "cientificação", como ele a apelidou —, citou apenas três escritores: Verne, Wells e Poe. E, é claro, Poe inventou a história de detetive, uma conquista que deu grande fomento à literatura e à televisão. Em última análise, é a natureza de sua celebridade que parece tão preditiva do mundo em que vivemos hoje. Por ter ficado órfão aos três anos de idade e levado uma existência adulta abreviada e desoladora de pobreza, vício e relativa obscuridade, Poe alcançou fama pós-morte. O escritor se tornou uma marca enorme. Afinal, que outro autor tem um time de futebol da NFL — o Baltimore Ravens — em homenagem a seu trabalho? Suas obras não apenas continuam a inspirar séries de TV no horário nobre e romances best sellers, mas muitas delas apresentam o próprio autor como personagem. Isso sem falar na série de produtos em sua homenagem, como canecas ou camisetas. "Previsão é assunto de profetas, clarividentes e futurólogos. Não é da conta de romancistas. O negócio de um romancista é mentir", escreveu Ursula K. Le Guin. Poe era certamente um narrador talentoso de mentiras na vida e na literatura, mas, como mostra a terrível sina de Richard Parker, ele também tinha um quê de profeta, clarividente e futurólogo.
2020-02-17
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-51191869
cultura
O lado obscuro da Coreia do Sul, descrita como 'modelo' a ser seguido pelo Brasil
Na década de 1960, após o fim da guerra da Coreia (1950-1953), a economia da Coreia do Sul estava completamente arrasada. Seu PIB per capita (a riqueza produzida anualmente por um país dividido pelo seu número de habitantes) era a metade do brasileiro. Bastou menos de uma década para que a Coreia do Sul igualasse a marca do Brasil. E, meio século depois, o PIB per capita sul-coreano é três vezes superior ao brasileiro. Com investimentos maciços em educação e produtividade do trabalhador, a Coreia do Sul sempre foi considerada por muitos especialistas como um "modelo a ser seguido" pelo Brasil e outras nações em desenvolvimento. Um sinônimo de inovação tecnológica. Atualmente, o país figura entre as 15 maiores economias do mundo. Ali, a expectativa de vida, já bastante alta inclusive para os padrões dos países desenvolvidos, deve chegar a 90 anos em 2030, superando a do Japão, atual recordista mundial. Quase metade da população sul-coreana tem Ensino Superior. A taxa de desemprego também é baixa: 3,6%. No entanto, a jornada da Coreia do Sul rumo ao rol dos países mais ricos do mundo talvez não tivesse sido possível sem os bilhões de dólares injetados pelos Estados Unidos após o fim do conflito, em meio à Guerra Fria — a disputa com a extinta União Soviética por áreas de influência no mundo. Tampouco sem a mão-de-ferro do Estado. Alçado ao comando do país por meio de um golpe militar, o então presidente Park Chung-hee (1963-1979) decidiu descartar as orientações americanas e investir o dinheiro na formação de grandes conglomerados controlados por um grupo restrito de famílias - os chamados chaebols (ou campeões nacionais). Foram assim lançadas as bases para um amplo programa de desenvolvimento industrial, que tem em multinacionais como Samsung ou Hyundai alguns de seus principais expoentes - e que, segundo alguns especialistas, tem encorajado esquemas de corrupção. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Parasita, o primeiro longa falado em outro idioma que não o inglês a ganhar o Oscar de Melhor Filme, lança luz sobre o legado que décadas de desenvolvimento deixaram à sociedade sul-coreana, ao pintar um retrato ácido das relações entre pobres e ricos no país. O filme é uma crítica às nítidas diferenças de classe em uma sociedade capitalista e desigual, ainda que bem diferente do Brasil, onde mansões coexistem com favelas, e Estados Unidos, onde o 1% mais rico acumula 20,3% da riqueza do país, segundo dados da ONU. No Brasil essa relação mostra que o 1% mais rico detém 28,3% da riqueza total, a segunda maior concentração de renda, atrás apenas do Catar onde o 1% mais rico da população fica com 29% da riqueza nacional. Na Coreia do Sul, o 1% da população detém apenas 12,2% da riqueza do país. Apesar da menor desigualdade, muitos sul-coreanos não estão felizes com a situação atual: três em cada quatro jovens entre 19 e 34 anos querem deixar o país, de acordo com uma pesquisa publicada em dezembro pelo jornal The Hankyoreh. Shin Hyun Bang, professor de Estudos Urbanos da London School of Economics (LSE), especializado em Ásia, explica que o país passou por grandes mudanças nos últimos 20 anos que ainda não foram assimiladas. Depois de quase duas décadas crescendo anualmente em média 9% ao ano, a Coreia do Sul foi um dos países mais atingidos pela crise financeira asiática que eclodiu em 1997. No ano seguinte, seu PIB registrou uma queda de mais de 5%, segundo dados do Banco Mundial. "Como o desenvolvimento do país foi muito rápido durante o século 20, há uma memória vívida entre as gerações mais adultas de oportunidades a que tiveram acesso nos anos 1970 ou início dos anos 1990, quando a economia se expandiu e os empregos ofereciam segurança.", diz Shin à BBC Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. "Mas, desde então isso mudou, tornando o nível de desigualdade maior que a meta", acrescenta. O coeficiente de Gini é geralmente a medida mais usada para avaliar a desigualdade em uma sociedade e consiste em um escala de 0 a 1, em que os resultados mais próximos a 0 indicam maior igualdade do que aqueles próximos a 1. O da Coreia do Sul situa-se em 0,35, de acordo com a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Ou seja, abaixo de 0,53 do Brasil e 0,46 do Chile e do México ou mesmo de 0,39 dos Estados Unidos; embora ainda longe de 0,29 da França ou 0,26 da Dinamarca. Apesar de ser mais igualitária do que países como o Reino Unido ou os EUA, a percepção dos sul-coreanos é outra e parte da razão está no fato de que, embora sua economia esteja em expansão no momento, seu crescimento é muito menor do que antes. "Agora, a Coreia do Sul tem uma taxa de crescimento como a dos países desenvolvidos e isso significa que não está tirando as pessoas da pobreza da maneira que antes, então há um sentimento de que as pessoas estão imobilizadas", diz Owen Miller, professor de Estudos Coreanos na Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS) da Universidade de Londres. Após a crise, a Coreia do Sul experimentou uma flexibilidade trabalhista que, segundo Miller e Shin, levou a grandes diferenças de oportunidades entre gerações e a falta de estabilidade no emprego. O desemprego no país é baixo, mas, entre os países da OCDE, a Coreia do Sul tem uma das maiores taxas de tensão no ambiente de trabalho: 51% dos trabalhadores dizem que trabalham mais do que deveriam. "Eles passaram de uma situação em que a maioria tinha emprego estável em uma empresa para outra na qual todos trabalham com contratos temporários. Portanto, há mais insegurança, mais desigualdade e menor taxa de crescimento", explica Miller. "Outra coisa que os sul-coreanos falam muito é a competição intensa: todo mundo quer ir para as melhores universidades, todo mundo quer que seus filhos se saiam bem. Tudo isso é psicologicamente prejudicial." "Como o ingresso na universidade foi durante décadas objeto de desejo de muitos e a melhor maneira de conseguir um emprego estável, a Coreia do Sul tornou-se um dos países com as taxas mais altas de graduados em universidades do mundo", prossegue. Como resultado, mais de 30% dos sul-coreanos têm um emprego para o qual estão superqualificados, de acordo com um relatório do Banco Central da Coreia publicado em 2019, e se mantêm nesta situação há pelo menos três anos. A frustração gerada por essa falta de equilíbrio é sentida especialmente entre os jovens, como destacou Shin: "Há mais empregos cuja demanda cresce: aqueles com qualificações mais baixas, em fábricas, etc. E é por isso que vemos a imigração de trabalhadores estrangeiros na Coreia do Sul." "Mas acho que esses empregos não atendem às expectativas da geração mais jovem, que possui diploma universitário. Quem estudou na faculdade espera obter determinadas posições", pondera, O governo reagiu implementando programas para exportar profissionais como o K-move, uma iniciativa para ajudar jovens sul-coreanos a encontrar "empregos de qualidade" no exterior. No entanto, o número de funcionários que o programa envia ainda é baixo: menos de 6 mil em 2018. Como disse o vice-reitor do Instituto do Banco Asiático de Desenvolvimento Kim Chul-ju no ano passado à agência de notícias Reuters, "a fuga de cérebros não é uma preocupação imediata do governo. Em vez disso, é mais urgente evitar que eles caiam no pobreza ". 'Colheres de ouro, prata e barro' Dada a educação em excesso e as poucas oportunidades de emprego para os profissionais, outro problema bastante acentuado diz respeito à falta de mobilidade social: em uma sociedade extremamente estratificada, quem nasce em família com posses e recursos, já larga na frente. "Em outras palavras, ter uma "colher de ouro" (expressão equivalente a "berço de ouro") se refere a tudo que alguém pode disfrutar de seus pais, em termos de riqueza e capital social que podem herdar", diz Shin. "Por outro lado, ter 'colher de barro' refere-se à ausência dessa herança. Se você tiver uma colher de barro, não terá o tipo de rede social que teria se seus pais tivessem boas conexões", acrescenta o especialista. A ausência de oportunidades iguais para as gerações jovens é uma questão muito presente na Coreia do Sul, onde as pessoas dizem que a colher com que se nasce (prata para a classe média) influenciará seu progresso em suas carreiras ou sua capacidade de comprar o primeiro imóvel. Na pesquisa publicada pelo The Hankyoreh, 85% dos jovens concordaram com a seguinte declaração: "Pessoas que nasceram pobres nunca serão capazes de competir com pessoas que nasceram ricas". "Na Coreia do Sul, há um sentimento de que ou você é um vencedor ou um perdedor", diz Miller. "Se você estudar muito e ingressar em uma boa universidade, conseguirá um emprego decente e será um vencedor. Se não o fizer, ficará completamente marginalizado e será um perdedor". "Por isso, a Coreia do Sul é o país com os maiores gastos familiares em educação no mundo", acrescenta. "Enquanto a maioria estuda em escolas públicas, todos recebem educação fora do sistema escolar, quase sem exceção. Se você é de uma família pobre, pode dar-lhes algo, mas não será suficiente para que estejam no mesmo nível que o filho de uma família de classe média ou rica", diz. O esforço nos estudos não é mais visto como chave para ascensão social: "As pessoas sentem que isso não é mais possível, que a classe média e os ricos monopolizaram boas universidades, boas escolas e acesso a bons empregos". Até recentemente, acrescenta Miller, a Coreia do Sul era uma sociedade "relativamente plana": "Até a década de 1990, a percepção era de que todos estavam brigando juntos. Havia alguns ricos, mas não eram super-ricos ostentadores". Tal fenômeno é retratado, por exemplo, na canção Gangnam Style, que rodou o mundo e faz alusão a um bairro luxuoso da capital Seul. A OCDE, que reúne os países mais ricos, aponta a Coreia do Sul como um de seus membros com maior desigualdade de renda, onde os mais ricos ganham quatro ou cinco vezes mais do que os mais pobres. Trata-se de um patamar muito próximo ao do Reino Unido e da Dinamarca, mas com nível de desigualdade bem inferior ao de outros membros, como Chile (23,7%) e EUA (20,2%). A desigualdade é mais claramente notada na população acima de 65 anos. Segundo a OCDE, metade dos idosos vive na pobreza, o nível mais elevado de todos os países que formam a organização. Um dos aspectos que mais simbolizam as diferenças entre as classes no filme é a moradia. O longa chamou atenção para os banjiha, um tipo de porão inicialmente pensado como bunker para emergências e cujo uso para habitação foi legalizado pelo governo após a crise imobiliária dos anos 1980. Como explicou o diretor Bong Joon-ho em uma entrevista ao site Indiewire publicada em outubro: "Quanto mais pobre você é, menos acesso terá à luz do sol e é assim na vida real: eles têm acesso limitado às janelas". E aos quartos: a Coreia do Sul está entre os países da OCDE com o menor número médio de aposentos por pessoa (1,4). Mas em termos de acesso à moradia, a entidade posicionou o país em 2017 como um dos melhores. Por outro lado, um relatório sobre o país publicado no ano seguinte pela relatora especial das Nações Unidas sobre direito à moradia adequada, Leilani Farha, informou que: "a falta de moradia acessível é uma barreira substancial para se viver em uma propriedade adequada". Os aluguéis não abocanham apenas 50% dos salários sul-coreanos, mas muitas das casas são "tão pequenas que, mesmo com apenas um ou dois moradores, elas já estão superlotadas", disse o estudo. A isso se acrescenta que o tipo mais comum de aluguel na Coreia do Sul é o chonsei, pelo qual os inquilinos depositam de imediato uma quantia que varia de 50% ou 70% do valor total do aluguel, normalmente por um período de dois anos. O proprietário investe esse dinheiro e, no final do contrato, devolve a quantia inicial integralmente aos inquilinos, mas mantém para si o retorno sobre essa aplicação. Durante o período, o inquilino não precisa pagar aluguel mensal. Mas o que parece à primeira vista um ótimo negócio, pode trazer riscos. Como a grande maioria dos sul-coreanos não tem o dinheiro à vista, precisa tomar um empréstimo bancário. Ou seja, tem que pagar juros sobre o valor emprestado. Para se ter uma ideia, em 2014, o valor médio do chonsei chegou a US$ 300 mil (R$ 1,3 milhão em valores atuais). Os banjiha eram bunkers que começaram a ser alugados como apartamentos devido à falta de moradias. Por que, então, a OCDE coloca a Coreia do Sul em um bom lugar nesse sentido? No resto do mundo, a habitação também se tornou um problema. Os preços de venda e aluguel não param de subir em muitos países da Europa, onde adultos são obrigados a compartilhar um apartamento porque não podem pagar o valor integral do aluguel. Em cidades como Londres, alguns imóveis não têm sala de estar porque elas são transformadas em quartos. Os jovens com diploma universitário que acabam subempregados também são um perfil cada vez mais visto ao redor do planeta. Na Espanha, por exemplo, representam 37,6%, segundo dados do Eurostat, o órgão estatístico da União Europeia. A América Latina também experimentou um crescimento moderado nos últimos anos - o combate à crescente desigualdade social foi uma das bandeiras dos protestos que eclodiram no Chile no fim do ano passado. Shin, da LSE, diz acreditar que o segredo do sucesso do Parasita é retratar um problema "universal": "A popularidade do Parasita não tem a ver com a realidade da Coreia do Sul, mas com a realidade do mundo". Com reportagem de Stefania Gozzer, da BBC News Mundo
2020-02-16
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51450570
cultura
Como sobrevivem as últimas videolocadoras de São Paulo na era do streaming
O fotógrafo baiano João Alvarez passeava pelo centro de São Paulo há cerca de um ano quando se deparou com uma raridade: uma locadora de filmes, uma das últimas ainda existentes na capital paulista hoje. Localizada no edifício Copan, projetado por Oscar Niemayer e um dos cartões postais da cidade, a Vídeo Connection é uma prova de que ainda é possível alugar filmes em lojas físicas — especialmente os clássicos e os mais antigos, que de outra forma estariam perdidos para sempre para os amantes do cinema e para as novas gerações. A maioria deles, dizem donos de locadoras e aficionados, não está disponível nos serviços de streaming nem em outras plataformas. A videolocadora do Copan é uma das poucas sobreviventes entre as mais de 4 mil que já existiram na maior metrópole da América do Sul. Elas persistem e ocupam um nicho específico de mercado, atendendo clientes como Alvarez. "Eu sou um amante do cinema", diz ele. "Meu principal hobby é ver filmes. Eu e minha mulher assistimos a cinco por semana, em média. Acho que não podemos ficar reféns do streaming, pois os melhores filmes de arte e os clássicos não estão ali. Eles só são encontrados nas locadoras." A história das locadoras de filmes em São Paulo — e no Brasil — começou no final da década de 1970. A primeira da capital paulista surgiu em 1977. Inaugurada como Disk Filmes, tornou-se, um ano depois, a conhecida Omni Vídeo. "No mesmo ano e ao mesmo tempo surgiu o primeiro videoclube do país, chamado justamente Vídeo Clube do Brasil'", conta o cineasta Alan Oliveira, autor do documentário CineMagia: A História das Videolocadoras de São Paulo, lançado em 2017. As lojas ganharam destaque no início da década de 1980, momento em que o videocassete começou a se popularizar no país. As redes 2001, Real Vídeo e Vídeo Norte, por exemplo, surgiram em 1982. Daí para frente, começou o boom das videolocadoras em São Paulo e em todo o Brasil. "Nós mostramos esse processo no filme, que envolve a transformação do mercado de fitas alternativas (VHS gravadas) para as seladas (originais das distribuidoras), seguindo para a chegada do DVD em 1997", diz Oliveira. O auge das locadoras se deu exatamente nesse período de mudança de tecnologia, do analógico para o digital. De acordo com o autor de CineMagia, o avanço na qualidade de imagem e som trazido pela chegada do DVD fidelizou clientes de maneira inédita no mercado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Isso se seguiu até 2006, com a chegada do blu-ray, uma tecnologia ainda mais poderosa que o DVD, mas que não chegou a decolar no país. Prejudicadas pela popularização dos downloads de filmes e dos DVDs piratas, as locadoras começaram a fechar logo em seguida. A chegada das plataformas de streaming no país, a partir de 2011, só intensificou esse movimento, segundo Oliveira. "Vendo tudo isso acontecer, senti a necessidade de documentar essa história", revela. "Não o processo de fechamento delas, mas sim a magia que existia (e ainda existe) na experiência de entrar nesses maravilhosos espaços urbanos de cinefilia." "O documentário 'CineMagia' é uma homenagem a esses 40 anos do mercado de home video, começando em 1976 e seguindo até 2016", conta. "Mais do que falar sobre 'um suposto fim' [das locadoras], minha ideia sempre esteve voltada para o começo. Sempre tive fascínio em entender como a coisa toda nasceu e se transformou com os avanços da tecnologia ao longo dos anos. Está tudo lá no filme." É difícil saber exatamente o número de videolocadoras que existiram nesse período. "O cálculo que fizemos para o filme levou em consideração a listagem de lojas que realizavam compras de filmes (VHS e DVD) das principais distribuidoras do país, no período de dezembro de 1998 a fevereiro de 1999", diz o diretor. "A cidade de São Paulo tinha cerca de 4.000 listadas e, no país, cerca de 11.500, sendo mais de 900 cadastradas apenas em 1998. Isso dá uma dimensão da velocidade e do crescimento do negócio e das vendas naquele período." É claro que esse número oscilou muito até 2006, quando a maioria das lojas e algumas distribuidoras começaram a encerrar seus serviços. Nessa mesma época, o Rio de Janeiro tinha cerca de 1.600 estabelecimentos, praticamente a metade do número da capital paulista. Hoje, a Vídeo Connection é uma das raríssimas videolocadoras de São Paulo que vivem exclusivamente da locação de filmes e da conversão de fitas VHS para DVD. A história da loja começou em 1985, quando foi inaugurada na rua da Consolação, região central de São Paulo, com 120 títulos em VHS. "Nós pegávamos os filmes na Omni Vídeo, copiávamos e colocávamos para alugar", conta o dono da empresa, Paulo Sérgio Baptista Pereira. "Depois, começamos a trabalhar também com filmes pornôs, para atender os motéis." Em 1986, a empresa começou a atuar também como revendedora de filmes, adquiridos diretamente nas produtoras. "Fomos a primeira distribuidora do Brasil para outras empresas", diz. "Passamos a crescer muito e separamos a locadora, que instalamos aqui no Copan. Abrimos novas lojas, muitas delas dentro de grandes empresas, chegando a ter 15 no total. Isso foi até 1995, quando o cenário começou a mudar e o número de estabelecimentos passou a diminuir." O surgimento do DVD, porém, reverteu esse movimento e gerou nova disparada no número de lojas. O bom momento durou até cerca de 2010, quando começou a pior fase deste mercado. "A pirataria já estava pesada, mas não chegou a comprometer nosso negócio", diz Pereira. "O que atrapalhou mesmo foi o streaming, que chegou com força a partir de 2012. Cheguei até pensar em fechar a loja." Foi em 1995 que Gilberto Donizetti Petruche resolveu realizar o antigo sonho de montar uma videolocadora, no ano. Largou o emprego numa grande empresa, na qual era gerente administrativo, para fundar o Centro Cultural Videolocadora Charada, em Sapopemba, zona leste de São Paulo. Ele alugou uma sala perto de sua casa e inaugurou a loja, sob o nome provisório de Vídeo Clube Ação, com 294 títulos. "Meu grande objetivo era ser mais do que uma locadora, ou seja, ser um clube", conta Petruche. "A ideia era exibir filmes, fazer debates, conversar. Mas não deu certo, porque o movimento das locações foi tão grande que a ideia de clube ficou em segundo plano. Não dava tempo de conversar com os clientes. Tivemos que alugar um espaço maior. Atingimos o auge no dia 2 de janeiro de 2000, quando locamos, num único dia, 880 fitas VHS. Nessa época, a média era de 300 filmes por dia. Cheguei a comprar 55 cópias do filme Titanic." O DVD, que a Charada começou a disponibilizar a partir de 2001, deu sobrevida à loja. A queda começou há cerca de 10 anos, quando o número locações diminuiu para 1.000 por mês. "De 5 anos para cá, a redução foi ainda maior", diz Petruche. "Hoje, alugamos cerca de 100 fitas por mês. Então, voltamos à ideia inicial e a locadora virou um clube. Vendemos discos de vinil, oferecemos aulas de violão, guitarra, bateria e realizamos shows." Dez anos mais antiga, a Televideo, localizada no Belenzinho, também na zona leste de São Paulo, e inaugurada em 1985, tem uma história semelhante. No auge, chegou a alugar 3.000 filmes por mês. "Hoje, nosso movimento é insignificante perto do que já foi", conta o proprietário, Marcelo Martins. "Em um final de semana bom, locamos cerca de 25 filmes. Por isso, ao longo dos últimos anos, mudei o foco do meu ramo, passando a ser mais uma loja de conveniência do que uma simples videolocadora. Vendo sorvetes, doces, bolachas, presentes, bebidas, produtos para informática, acesso à internet, impressões de boletos, currículos, fotos. Só continuo comprando os lançamentos ainda pela paixão que tenho pelo cinema." Sorte de clientes fiéis, como a advogada Christina Fernanda Cobianchi Nobre, que há mais de 10 anos retira filmes semanalmente na Televideo. "Eu gosto de lojas físicas, porque posso ver as opções nas prateleiras, pegar a capa do vídeo e ler o resumo", diz. "Além disso, há títulos que a gente só encontra em locadoras, principalmente antigos, que a geração de hoje não conhece. Não podemos deixar isso morrer." Para Pereira, as videolocadoras experimentam, atualmente, um pequeno aumento do movimento e do interesse das pessoas. "Quando elas perceberam que nem tudo o que queriam estava disponível no streaming ou na internet, começaram a voltar às lojas", explica. "Como estou praticamente sozinho no mercado paulistano, meu movimento voltou a crescer a partir do final de 2017 e no início de 2018. No auge, por volta de 1995 e 1996, chegamos a ter 4.000 locações num mês, número que caiu para cerca de 300 ou 400, em 2016. Agora, chegam a 800 mensalmente. Estou sem funcionários, mas até estou pensando em contratar alguém."
2020-02-15
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51494540
cultura
Vídeo, A força da marca 'Made in Italy'Duration, 22,37
Há décadas, a bolsa de couro italiana é um ícone da moda — e não dá sinais de que deixará de ser. Feito da Terra (Made on Earth, no original em inglês) é uma série da BBC em oito episódios, explorando como oito produtos influenciaram a economia global. Clique abaixo para assistir aos outros sete episódios da série Feito da Terra:
2020-02-14
https://www.bbc.com/portuguese/media-49794318
cultura
Oscar: 'Parasita' e outras surpresas históricas da premiação
O filme de guerra 1917 era o grande favorito para vencer o Oscar na categoria de Melhor Filme na cerimônia de 2020. Mas o sul-coreano Parasita, um comédia com tom macabro e crítica social, foi o grande vencedor e se tornou a primeira produção em língua estrangeira a ganhar na categoria nas 92 edições do Oscar. O sucesso não surgiu do nada. O filme já havia ganhado uma série de reconhecimentos importantes. Ainda assim, surpreendeu de críticos de cinema a apostadores. E a vitória foi avassaladora. O filme levou estatuetas nas categorias de Melhor Diretor, Melhor Roteiro Original e Melhor Filme Estrangeiro. A história da premiação é, no entanto, marcada por surpresas. 'Moonlight: Sob a Luz do Luar' ganha após 'ser derrotado' (2017) Já foi surpreendente que Moonlight: Sob a Luz do Luar venceu o favorito La La Land - Cantando Estações. O filme havia sido lançado por uma produtora independente (A24) e contado com um diminuto orçamento, de US$ 1,5 milhão. O orçamento de La La Land - Cantando Estações havia sido 200 vezes maior: US$ 30 milhões. O filme vinha arrebatando corações propensos a doses de romance açucarado e uma série de premiações antes do Oscar. E o inesperado sucesso de Moonlight: Sob a Luz do Luar ganhou tons dramáticos com uma das maiores gafes da história do cinema. Uma troca na distribuição dos envelopes com o nome dos vencedores fez com que La La Land - Cantando Estações fosse erroneamente anunciado como vencedor. A correção do erro ao vivo diante do mundo foi desastrada e constrangedora. Não que a Academia não considere a qualidade de atuação dos muito jovens. Justin Henry foi indicado a Melhor Ator por Kramer vs Kramer em 1980, quando tinha apenas 8 anos. Mas levar a estatueta é outra história. E por isso poucos esperavam que Anna Paquin ganhasse o prêmio em 1994 quando foi indicada na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante pela atuação em O Piano. Ela competia com gigantes — Emma Thompson, Wynona Ryder e Holly Hunter também haviam sido indicadas. Mas a noite era da menina de 11 anos que se tornou a segunda mais jovem a receber um Oscar, atrás apenas de Tatum O'Neil, que tinha 10 anos quando ganhou na mesma categoria pela atuação em Lua de Papel (1973). O susto de Paquin, quando seu nome é anunciado, e os segundos que se passam antes que ela consiga dizer qualquer coisa, com a estatueta na mão e o microfone à sua frente, é uma das memórias incríveis da história da premiação. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de Woody Allen, concorria em 1978 com nada menos que Guerra nas Estrelas (mais tarde relançado como Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança), um filme que, entre seus créditos, está ter influenciado para sempre a cultura pop. O Oscar para Melhor Filme, no entanto, foi para a comédia romântica de Allen, uma decisão que até hoje, 40 anos depois, causa controvérsia. Muitos entenderam a decisão como um sinal de que a Academia não levava a sério filmes de ficção científica. Glenn Close chegou ao Oscar 2019 como a atriz viva com o maior número de indicações ao Oscar. As premiações anteriores ao Oscar indicavam que sua sétima indicação se converteria em uma estatueta com a sua atuação em A Esposa. Corta para o choque na plateia do Dolby Theatre, quando foi anunciado o prêmio para a atriz britânica Olivia Colman, deixando Close na fila. Taxi Driver - Motorista de Táxi e Todos os Homens do Presidente são alguns dos filmes mais celebrados de todos os tempos e estavam na lista de indicados ao Oscar em 1977. Mas o vencedor foi... Rocky, um Lutador, estrelado por Sylvester Stallone. Mas Rocky não teve exatamente uma trajetória de azarão. Chegou à cerimônia também tendo sido aclamado com outras premiações de prestígio. Tinha também sido o filme com maior bilheteria no ano anterior. Atuar é uma arte que requer sacrifícios. Por isso a vitória de Beatrice Straight em 1977 causou tanta surpresa. Ela ganhou o Oscar para Melhor Atriz Coadjuvante após uma atuação de apenas 5 minutos na tela no filme Network: Rede de Intrigas. Doze anos depois, Judy Dench também ganhou depressa. Sua atuação premiada como Melhor Atriz Coadjuvante em Shakespeare Apaixonado durou apenas oito minutos. Dança com Lobos era o favorito da noite na categoria Melhor Filme em 1991. Mas apesar da frequência com que a Academia concede Melhor Filme e Melhor Diretor em dobradinha, poucos esperavam o triunfo de Kevin Costner atrás das câmeras. Primeiro porque entre seus concorrentes estavam os pesos-pesados Martin Scorsese e Francis Ford Coppola. Segundo porque Dança com Lobos era o trabalho de estreia do também ator como diretor. Kostner saiu triunfante como diretor, mas perdeu na categoria Melhor Ator, na qual também concorria pelo mesmo filme, para Jeremy Irons. Shakespeare Apaixonado estava longe de ser um azarão em 1999 com suas 13 indicações. Mas poucos esperavam que pudesse derrubar O Resgate do Soldado Ryan, o dramático filme de Steven Spielberg sobre a Segunda Guerra Mundial. A expectativa continuou quando Spielberg levou o Oscar de Melhor Diretor, o penúltimo da noite antes do de Melhor Filme. Mas a comédia romântica foi quem riu por último. Em 1993, mais uma vez, a corrida na categoria Melhor Atriz Coadjuvante estava repleta de gigantes. Judy Davis, Miranda Richardson, Vanessa Redgrave e Joan Plowright, atrizes de formação clássica, disputavam com uma menos experiente e menos conhecida atriz de TV. A surpresa com a vitória de Marisa Tomei pela atuação em Meu Primo Vinny não poderia ter sido maior. Mesmo a indicação da atriz já havia sido alvo de questionamento por parte de críticos de cinema. O Poderoso Chefão é um dos mais admirados filmes da história do cinema. E o crédito vai quase todo para seu diretor, Francis Ford Coppola. O filme ganhou 3 Oscars em 1973, incluindo o de Melhor Filme. Mas o Oscar de Melhor Diretor foi para Bob Fosse, de Cabaret. Em 1975, quando ganhou o Oscar pela sequência de O Poderoso Chefão, Coppola fez um discurso sarcástico. "Quase ganhei isso (o Oscar) pela primeira parte deste mesmo filme", disse.
2020-02-10
https://www.bbc.com/portuguese/geral-51447195
cultura
Margaret Atwood, autora de ‘O Conto da Aia’: ‘Se os EUA tivessem uma ditadura, seria religiosa’
Margaret Atwood pega minha caneta e fica surpresa de ver como ela se move facilmente sobre a folha. "É por causa da umidade", explica. "Em climas secos, esse tipo de caneta não escreve tão bem." A escritora canadense de 80 anos está em Cartagena para o Hay Festival. Ainda que todos na cidade colombiana estejam sentindo o calor úmido, talvez ninguém preste atenção a detalhes tão insignificantes e, ao mesmo tempo, cotidianos. Mas Atwood não é como outras pessoas. Ela escreveu cerca de 60 livros traduzidos em mais de 20 idiomas, entre os quais o best-seller de 1985 O Conto da Aia, adaptado em 2017 para a televisão com uma série de mesmo nome que recebeu oito prêmios Emmy e dois Globos de Ouro. A protagonista da história, Offred, conta em primeira pessoa sua vida em Gilead, um governo totalitário teocrático instalado nos Estados Unidos em um futuro não especificado. Naquela sociedade com castas sociais estritas facilmente distinguíveis por suas roupas, ela é uma das mulheres que são forçadas a ter filhos para famílias de altos escalões de poder. Os característicos vestidos vermelhos e chapéus brancos tornaram-se um símbolo de manifestações pelos direitos das mulheres, particularmente a favor do aborto. A personagem escreve sem saber se alguém lerá sua história. Ela escreve, embora isso seja proibido. Portanto, quando Atwood fala de tinta, suas palavras ressoam além da perspicácia da observação. Foi ela quem criou Offred e, naquele momento, as duas estavam na minha frente, dedicando o livro para mim. No ano passado, 34 anos após O Conto da Aia, ela publicou a altamente aguardada sequência Os Testamentos. A BBC News Mundo teve uma hora de entrevista com Atwood, feita em conjunto com o jornal espanhol ABC. O que você lerá a seguir é um trecho dessa entrevista, em sua própria voz, sem as interrupções desnecessárias das perguntas. Os tempos mudaram. Nos anos 1970, houve muitas conquistas. Muitas leis foram alteradas, as mulheres ganharam mais direitos. Nos anos 80, quando eu escrevi O Conto da Aia, houve um momento de recuo. O direito religioso fazia parte desse revés nos Estados Unidos e conseguiu derrotar a Emenda dos Direitos Iguais (que busca incluir a igualdade de gênero na Constituição). Escrevi o livro para fazer várias perguntas, por exemplo: se os Estados Unidos tivessem um totalitarismo ou uma ditadura, de que tipo seria? Seria comunista? Seria chamada de fascista? Não, seria religiosa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Esse seria o conceito de organização nos Estados Unidos, diferente de outros países. A Europa teve suas guerras religiosas no século 17, portanto, não é provável que ela tenha uma guerra civil religiosa novamente. Ela teria outro tipo de guerra civil. Nos Estados Unidos, essa religião não seria a da Igreja Católica. Eles se livrariam dos católicos. A religião seria algo como um programa fundamentalista puritano. Quando há uma religião no governo, muitos se tornam hereges: católicos, batistas... todos que são concorrentes. Quando os bolcheviques venceram a revolução na Rússia, de quem eles se livraram primeiro? Dos mencheviques. E em seguida dos velhos bolcheviques. Portanto, a primeira pergunta é que tipo de ditadura seria e a próxima, como isso tomaria forma, como eles eliminariam a Constituição, que é algo que eles parecem estar fazendo agora de qualquer maneira. Em outras palavras, estou muito interessada em como as ditaduras e os totalitarismos evoluem. Por que estou interessada nisso? Porque tenho idade suficiente para lembrar das do século 20. Tenho idade suficiente para lembrar de (Adolf) Hitler, idade suficiente para lembrar de (Benito) Mussolini, de (Francisco) Franco, de (António de Oliveira) Salazar e todas aquelas pessoas. Eu estava viva quando eles estavam vivos. Não é assustador? Tivemos outros desde então, como os militares na Argentina e (o ditador) Pol Pot no Camboja. Todos eles tiraram direitos das mulheres. Não importa como as ditaduras se autodenominam: todas elas o fazem. A mulher é algo a ser resolvido. Então eu coloquei no livro coisas de todo o mundo, incluindo os Estados Unidos, que já haviam acontecido ou estavam acontecendo nos anos 80. Muitas ainda acontecem e ainda estamos sofrendo contratempos. O interessante deste livro é que, em qualquer país que você vá, encontrará mulheres que pensam que é sobre o país delas. Isso é bom porque é o que eu pretendia. Não queria que ele fosse muito específico sobre nenhum país. Não se trata apenas de escravidão nos Estados Unidos, embora haja elementos dela. Também existem elementos de outros países, como o roubo de bebês na Argentina. Durante o governo militar, quando as mulheres tinham um bebê na prisão, elas geralmente o davam a generais ou colaboradores. Então agora tem muitas pessoas aprendendo que elas não são quem elas pensavam que eram. Mas vamos voltar à história. Em 1991, a Guerra Fria acabou e todo mundo disse: "Problema resolvido! Vamos às compras! Não há com o que se preocupar". Depois vieram os ataques de 11 de setembro (de 2001), que mudaram toda a situação geopolítica, e a crise financeira de 2008 mudou ainda mais. Quando as pessoas têm medo e se sentem ameaçadas, tornam-se conservadoras e dispostas a renunciar aos direitos civis em troca de segurança. É nisso que eles acreditam. É sempre uma mentira. Pessoas como o presidente do Brasil (Jair Bolsonaro), que diz: "Eu sou um homem forte e vou resolver isso para você. Você tem que oprimir mulheres e grupos minoritários e tudo ficará ótimo". Gilead não é diferente disso. É por isso que devemos dizer repetidas vezes: isso não é verdade. Os Republicanos, durante as últimas três eleições presidenciais, disseram coisas muito peculiares sobre mulheres, coisas baseadas em ideologia e não em biologia. Eles fizeram declarações absurdas como que, se te estuprassem e você engravidasse, não foi estupro, porque o corpo feminino tem mecanismos para impedir gravidez em caso de estupro. Nas eleições de 2016, essas pessoas ganharam poder e se tornaram capazes de implementar sua agenda. Já tínhamos metade da série filmada em 2016, quando acordamos em 9 de novembro e dissemos: "Estamos diante de uma série diferente". Mas não porque mudamos alguma coisa, mas porque o quadro em torno da série mudou. A série ia parecer diferente. Em abril de 2017, estreamos e muitas pessoas pensaram: "É isso que vai acontecer, embora talvez sem as roupas". Seria outra roupa discreta, mas não exatamente essa. Comecei a escrever Os Testamentos depois dessas eleições porque você podia ver para onde as coisas estavam indo. Em fevereiro (de 2017), contei aos meus editores o que estava fazendo. Essa foi a ordem dos acontecimentos. Antes de escrever Os Testamentos, perguntaram-me o que aconteceu com Offred. "A escolha é sua!", respondia. Agora, as pessoas me perguntam qual é a ansiedade mais disseminada. E essa pergunta é se há esperança, referindo-se à raça humana. E é claro que há esperança! Isso não significa que é sempre justificada, mas nós temos. Caso contrário, não acordaríamos de manhã. Você deve agir com base nessa esperança.
2020-02-09
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-51365712
cultura
'Parasita': por que o filme sul-coreano está fazendo história em Hollywood
O texto abaixo contém detalhes da trama. "Vou beber até o amanhecer", disse Bong Joon Ho, diretor do filme Parasita, ganhador do Oscar para Melhor Filme no domingo (9), que homenageou o colega Martin Scorsese, que concorria com ele, em seu discurso de agradecimento. O filme sul-coreano ganhou em outras três categorias: diretor, roteiro original e filme estrangeiro. Foi a grande estrela da edição do Oscar deste ano, se tornando o primeiro longa não falado em inglês a ganhar a estatueta para Melhor Filme. E é a primeira vez desde os anos 1950 que a mesma obra ganha o Oscar e a Palma de Ouro de Cannes. O longa já tinha feito história em janeiro, ao se tornar o primeiro filme de língua estrangeira a vencer a principal categoria da premiação do SAG Awards, entregue pelo Sindicato dos Atores dos EUA — Melhor Elenco de Filme. Também, levou, no mesmo mês, o prêmio para melhor filme estrangeiro do Globo de Ouro. "Estou um pouco envergonhado de sentir que somos os parasitas de Hollywood agora!", disse o ator sul-coreano Lee Sun-kyun, estrela do filme Parasita, na cerimônia dos SAG Awards. O filme sul-coreano de humor ácido, que em alguns momentos flerta com o terror, tem conseguido um sucesso sem precedentes nas cerimônias de premiação de Hollywood. No SAG Awards, o elenco de Parasita sobressaiu entre outros grupos de atores já consolidados na indústria cinematográfica, que participaram de filmes como O Irlandês, Era Uma Vez em... Hollywood e O Escândalo. No Globo de Ouro, a produção sul-coreana ganhou a estatueta de melhor filme estrangeiro e foi indicada em duas outras categorias. No dia 09 de fevereiro, vai concorrer ao Oscar em seis categorias, incluindo melhor filme. Mas a que se deve o grande sucesso do filme nas premiações americanas? "Que tipo de filme é esse?", perguntou o crítico Anthony Lane, da revista The New Yorker, quando escreveu sua resenha sobre o longa. E não foi o único a se fazer essa pergunta. A premissa é simples. Os caminhos de duas famílias se cruzam — uma é muito rica e a outra muito pobre. As interações entre elas revelam as diferenças sociais e expõem problemas de classe. Mas Parasitas é um enredo coerente que combina sangue e humor, ternura e devastação em pouco mais de duas horas. "Com frequência, as pessoas me dizem que a história é muito estranha no melhor sentido possível", disse recentemente o diretor Bong Joon-ho em uma exibição do filme em Hollywood. "Acho que as pessoas gostaram do quão absurda é a história, dizem que é muito difícil de prever", acrescentou. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De fato, se a princípio parece que se trata apenas da história de um jovem proveniente de uma família desempregada (que vive em um porão) e chega à casa luxuosa de uma família rica para dar aulas de inglês, a trama se complica (e muito). O jovem acaba inventando maneiras de os novos chefes empregarem o resto da sua família, sem saber que são seus parentes. E uma noite eles fazem uma descoberta macabra no porão da mansão. Apesar do universo absurdo em que a história entra, as reflexões sobre a pobreza e a riqueza adquirem um tom universal. Um exemplo é a sequência do filme em que chuvas fortes provocam inundações que, para a família pobre, implicam na destruição de sua casa, enquanto para a outra representam apenas a interrupção de um acampamento. "Em qualquer sociedade, há pessoas que têm e pessoas que não têm bens materiais, e esses grupos coexistem", disse o ator Song Kang-ho a jornalistas na noite de premiação do SAG Awards. Quando perguntaram recentemente a Bong Joon-ho por que ele acreditava que seu filme ressoava em todo o mundo, ele respondeu que "todos os personagens vivem em uma área cinzenta. A família pobre comete erros, mas é adorável, ​​e a família (rica) é mesquinha, mas amigável ao mesmo tempo. Não há vilões". Quando estreou no festival de cinema de Cannes em maio do ano passado, os críticos aclamaram o filme como favorito para ganhar a Palma de Ouro, principal prêmio do evento. A partir dali, o filme ganhou um destaque intenso, arrecadando quase US$ 140 milhões em bilheteria no mundo todo e permanecendo por 18 semanas consecutivas em cartaz em Los Angeles. Joon-ho já contava com uma célebre trajetória cinematográfica, sendo considerado um dos melhores cineastas do século 21, de acordo com o site especializado Metacritic. Parasita ganhou ainda elogios da imprensa, que classificou o filme como "elegante e robusto". E não foram apenas os críticos que enalteceram o longa, mas também cineastas premiados, como o mexicano Guillermo del Toro. "Eu amo e admiro Bong Joon-ho desde Memórias de um Assassino (2003), ele me surpreende, me deleita e me emociona sempre. Então, dizer que este é o melhor filme dele significa muito para mim. E é. Um filme cheio de tristeza, inteligência e profundidade. Irreverente, mas sensível. Impressionante", escreveu em sua conta no Twitter. Em quase 20 anos de carreira, o cineasta sul-coreano explorou principalmente dois gêneros de filmes: ficção científica e policial, com um toque esporádico de humor, indica o site Metacritic.
2020-02-10
https://www.bbc.com/portuguese/geral-51188315
cultura
Oscar 2020: saiba todos os vencedores do prêmio e onde assisti-los
O filme sul-coreano Parasita foi o grande vencedor da edição do Oscar deste ano, se tornando o primeiro longa não falado em inglês a ganhar a estatueta de melhor filme. E é a primeira vez desde os anos 1950 que a mesma obra vence o Oscar e a Palma de Ouro de Cannes. Na cerimônia deste domingo (9), o longa de Bong Joon Ho venceu em outras três categorias: diretor, roteiro original e filme estrangeiro. "Vou beber até o amanhecer", disse o diretor, que homenageou o colega Martin Scorsese, que concorria com ele, em seu discurso de agradecimento. Favorito da noite, 1917 saiu com três estatuetas: fotografia, mixagem de som e efeitos especiais. Líder de indicações (11), o longa Coringa venceu em duas: ator (Joaquin Phoenix) e trilha sonora. Indicada à categoria de melhor documentário pelo filme Democracia em Vertigem, a diretora brasileira Petra Costa perdeu para Indústria Americana, longa produzido pelo casal Barack e Michelle Obama. Veja abaixo os vencedores.
2020-02-10
https://www.bbc.com/portuguese/geral-51442119
cultura
O que o dia dos namorados japonês diz sobre os valores do país
O Japão promove duas comemorações de Dia dos Namorados. A primeira segue relativamente a tradição ocidental, e a segunda é uma invenção do próprio país. No dia 14 fevereiro, as mulheres do Japão presenteiam os homens com o chamado giri choco — "giri" significa "obrigação" e "choco", "chocolate". Ou seja, elas dão chocolate a seus amados. Um mês depois, no dia 14 de março, celebra-se o Dia Branco, quando eles as presenteiam de volta com itens brancos, como marshmallows, bolos ou doces, lenços ou papel de carta e, às vezes, até mesmo joias cravejadas de pérolas. A festa reflete um valor cultural profundamente enraizado na sociedade japonesa, o de demonstrar gratidão. Mas a celebração dá sinais de declínio de popularidade em meio a mudanças mais amplas em curso no país asiático. A Ishimura Manseido, uma empresa de doces na província de Fukuoka, no sul do Japão, reivindica ter inventado o Dia Branco há 40 anos. Ela capitalizou a popularidade do Dia dos Namorados encorajando os homens a agradecer às mulheres com doces de marshmallow recheados com chocolate. Desde então, a festa se popularizou e chegou a cruzar as fronteiras para outros países do Leste Asiático, como China e Coreia do Sul. E o que começou como algo entre amantes se estendeu a um amplo grupo de destinatários: colegas de trabalho, chefes, familiares, amigos. Rapidamente a brincadeira ficou cara. "No final dos anos 1980, ganhei um lenço Hermès do amigo do meu pai, e essa pessoa estava dando lenço para todo mundo", diz Sawako Hidaka, diretor-executivo da empresa sem fins lucrativos Asia Society, sediada em Tóquio, no Japão. "Agora isso não acontece mais. Meu palpite é que se gaste algo entre 500 e 2 mil ienes (R$ 18 a R$ 70) na média por presente. Mas lembre-se que você não presenteia apenas uma pessoa, então isso se soma." Feriados criados por marcas existem em todo o mundo. Nos EUA, há os chamados "feriados da Hallmark", que inclui o "Dia Mais Doce", um Dia dos Namorados menos popular em outubro. E embora o Dia Branco exista com o fim de estimular as vendas no Japão, ele está surpreendentemente conectado aos valores da sociedade japonesa. À medida que o Dia Branco se aproxima, os pontos de venda anunciam seus produtos como okaeshi, que significa presente dado como agradecimento. Demonstrar apreço e amor é um símbolo de afeto e respeito em todo o mundo, mas a prática assume particular importância no Japão, um país que valoriza muito a harmonia do grupo e o bom relacionamento social e profissional. "A tradição japonesa de presentear indica que, se você receber um presente, você é obrigado a retribuir", diz Setsu Shigematsu, professor associado de mídia e estudos culturais da Universidade da Califórnia em Riverside. "Obviamente, os mal-entendidos que podem ocorrer por tais trocas são evidentes. As pessoas podem estar cansadas dos problemas que podem advir dessa troca de presentes, uma vez que ela borra a fronteira entre romance e obrigação", continua. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo a Associação de Aniversário do Japão, uma organização que registra e estuda os eventos e feriados do país, os gastos do Dia Branco no ano passado caíram cerca de 10% em comparação com 2017. Há uma razão simples para o declínio, diz a associação: os gastos do Dia dos Namorados no Japão também caíram — neste caso, 3%. Se há menos mulheres distribuindo chocolates, haverá menos homens ainda para agradecer um mês depois. Apesar do abalo, o Dia dos Namorados gerou mais de um US$ 1 bilhão (R$ 3,9 bilhões) no Japão — uma cifra nada irrelevante. "O evento de mais impacto nos negócios é o Natal, seguido pelo Dia dos Namorados; o Dia Branco é o terceiro mais importante", diz Mayumi Nagase, gerente de produtos da Puratos, uma empresa de chocolate e confeitaria sediada em Tóquio. "Nós vendemos muito chocolate e outros ingredientes para as confeitarias prepararem bolos frescos". Já o chef Mou Soejima, que vive em Kamakura, no Japão, pondera não perceber aumento dos negócios no Dia Branco. Isso porque se trata de um feriado menos voltado para sair e jantar e mais sobre dar e receber o okaeshi. Ele próprio questiona a relevância da data: "O Dia Branco é incompreensível. Onde você já viu marshmallows mais caros que chocolate?". Na mesma linha, há pessoas no Japão fartas da estranha dinâmica de poder posta em ação nessas datas festivas, especialmente no contexto do escritório. E, mais do que isso, incomodadas com a divisão de gênero promovida pelas festas. "Claramente esses feriados atribuem papéis específicos de gênero e orientação sexual", diz Tomomi Yamaguchi, professora de sociologia e antropologia da Universidade de Montana. "A heterossexualidade é obviamente a premissa da promoção desses feriados". Ela ressalta que entre os presenteados hoje estão parceiros do mesmo sexo, amigos e até a si próprio. Mas a tônica da celebração é, em sua origem, mulheres presenteando homens. Ela surgiu por volta de 1970, quando lojas de departamento começaram a encorajar as garotas a comprar chocolates para os meninos como forma de demonstrar seu interesse. "Naquela época, não era comum que as mulheres declarassem seu amor aos homens, e o Dia dos Namorados era o dia em que elas podiam fazê-lo", conta Mayumi Nagase. O feriado foi criado, portanto, para dar às mulheres a chance de demonstrar seus sentimentos. "Em uma era machista e dominada por homens, fazia sentido", completa. Um dos fatores contribuindo para o desgaste das festas não é apenas social. Shigematsu acredita que a queda da renda da população também tem acelerado esse declínio. Estimativas apontam que a renda média do trabalhador japonês é a menor em 30 anos. "A tradição de as mulheres presentearem no Dia dos Namorados, seguida por homens retribuindo-as no Dia Branco, simplesmente não se mantém no mesmo patamar de vendas por conta das mudanças econômicas e sociais em curso", defende. Yamaguchi, enquanto isso, acha que o fascínio pelo Dia dos Namorados está diminuindo e sendo substituído por outras celebrações importadas, como o Halloween. E Nagase, da Puratos, acrescenta que tanto o Dia dos Namorados quanto o Dia Branco estão ficando mais casuais e menos definidos pelo romance: "Os amantes do chocolate, não apenas mulheres, mas homens, gastam muito dinheiro para comprar chocolates premium para si próprios". Será que essas festas sobreviverão no Japão atual? Talvez elas possam ser reformuladas para as novas gerações. Em vez de ficarem presas a um ciclo caro e obrigatório de presentes, as festas se tornem um momento para cuidar de si próprio. "As pessoas já começaram a repensá-las", diz Hidaka.
2020-02-08
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cap-48044401
cultura
Oscar 2020: Como ganhar o prêmio de melhor filme? Veja o que a maioria dos vencedores tem em comum
Quem vai ganhar o Oscar de melhor filme? O resultado só será divulgado neste domingo (9) na cerimônia em Los Angeles, mas adivinhar qual filme vai levar o prêmio mais prestigiado da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas é um exercício para fãs de cinema, jornalistas, críticos, escritores e até matemáticos. Já foram até escritas pesquisas acadêmicas sobre previsões do Oscar, e — embora apostas perfeitas sejam impossíveis — o histórico de cerimônias passadas dá algumas dicas sobre que tipo de filme costuma agradar mais à Academia. Os vencedores são escolhidos entre os indicados por cerca de 8 mil membros da Academia. Para fazer parte dela, é preciso ter sido convidado por um membro votante da entidade e aprovado por um comitê ou já ter sido indicado ao Oscar. A Academia não revela quem são ou qual o perfil dos seus membros, mas uma pesquisa foi feita pelo jornal Los Angeles Times em 2014. Os números do jornal mostravam que, na época, os "eleitores" dos melhores filmes eram homens (76% dos votantes), brancos (94%) e tinham em média 63 anos. Nos últimos cinco anos, após campanhas por mais diversidade, a Academia convidou cerca de 300 personalidades negras para votar, mas não há números ou detalhes sobre a atual composição — em um universo de 8 mil eleitores, é improvável que o perfil tenha mudado muito. E o padrão dos filmes vencedores tem permanecido razoavelmente o mesmo. Veja abaixo o que faz com que um filme tenha mais chances de ganhar um Oscar. Tamanho importa para o Oscar. Produções indicadas e vencedoras na categoria de Melhor Filme tendem a ser mais longas. O site de entretenimento Collider compilou dados da Academia e descobriu que 59 dos 91 vencedores de Melhor Filme têm ao menos 120 minutos (duas horas). A pesquisa também revelou que o filme mais longo da lista de indicados de cada ano tem maior probabilidade de levar a estatueta. Drama é o gênero mais bem-sucedido na história dos Oscars. De acordo com uma análise da base de dados da Academia, 47 dos 91 vencedores da categoria até hoje eram dramas. Em segundo lugar fica a comédia, com 11 vitórias. As outras estão distribuídas entre diversos gêneros diferentes. A temporada dos Oscars é precedida por uma série de outras premiações, que muitos consideram "preliminares", como o Globo de Ouro e diversos prêmios de sindicatos da indústria. Todos eles são escolhidos por pessoas que também podem votar nos Oscars. Por isso, a vitória nessas cerimônias costuma ser considerada uma indicação de como o filme vai se sair no "evento principal". Neste ano, o filme 1917 ganhou o prêmio de melhor drama no Globo de Ouro e no prêmio do Sindicato dos Produtores da América. Dos 14 filmes que venceram essas duas premiações, 11 também levaram o Oscar de melhor filme. Outro indicador é o vencedor do prêmio Critics' Choice (escolha dos críticos, em inglês). Desde o ano 2000, o vencedor desta premiação e o vencedor de melhor filme no Oscar foi o mesmo em 13 das 20 cerimônias. Neste ano, o filme Era uma Vez em Hollywood, de Quentin Tarantino, venceu a categoria de melhor filme no Critics' Choice. Essa é uma infeliz verdade do Oscar: apenas 12 filmes dirigidos por mulheres foram indicados para o prêmio de melhor filme na história da cerimônia — de um total de mais de 560 indicações. E desses, apenas um — Guerra ao Terror, de Kathryn Bigelow — venceu, em 2010. O filme também rendeu o prêmio de melhor diretora para Kathryn Bigelow, a primeira vencedora na categoria na história. Em 2020, o filme Adoráveis Mulheres, de Greta Gerwig, foi indicado para melhor filme, mas nenhuma diretora foi escolhida para concorrer na categoria de direção. Casas de apostas dizem que a chance de Adoráveis Mulheres vencer é de 1 em 150. O filme sul-coreano Parasita está causando burburinho no Oscar deste ano porque, se ganhar, será o primeiro filme não falado em inglês a levar a estatueta de melhor filme. O longa recebeu críticas muito positivas e ganhou prêmios como a Palma de Ouro, do prestigiado Festival de Cinema de Cannes, na França. Parasita foi indicado a melhor filme e melhor diretor, e é considerado o segundo favorito nas casas de apostas, atrás apenas de 1917. A pedra no caminho é a indisposição da Academia de premiar um filme em uma língua que não seja o inglês. Até hoje, apenas outros dez filmes em língua estrangeira foram indicados para o prêmio de melhor filme — e nenhum ganhou. Em geral, filmes não-americanos são limitados à categoria melhor filme estrangeiro. Será que a regra será quebrada neste ano? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É uma brincadeira... mas com fundo de verdade. Ter um elenco famoso e premiado aumenta muito as chances de vencer a estatueta de melhor filme. A atriz Meryl Streep é parte de um grupo de elite de atores ainda vivos que estrelaram um grande número de vencedores do Oscar de melhor filme. Ela esteve em três deles, assim como os atores Morgan Freeman, Colin Firth, Ralph Fiennes, Dustin Hoffman, Jack Nicholson, Beth Grant, Bernard Hill, Diane Keaton, Shirley MacLaine e Talia Shire. Ou seja, ter uma dessas estrelas no elenco pode melhorar suas chances de sucesso. Isso acontece porque atores são o maior grupo de profissionais a votar para escolher os vencedores no Oscar, então grandes nomes e grandes performances importam muito. Outro fato interessante é que é muito raro que produções sejam escolhidas como melhor filme sem ter tido indicações para os prêmios de atuação. Apenas 11 filmes conseguiram isso na história, com o mais recente sendo Quem Quer Ser Milionário, em 2009. Um dos favoritos para este ano, 1917 poderia ser mais um nessa lista. Produções com grande orçamento podem ganhar muitos prêmios, mas hoje em dia isso já não acontece com tanta frequência. Em 1960, o filme Ben-Hur, o mais caro já produzido até então, levou 11 Oscars (incluindo o de melhor filme). Corrigido pela inflação, o orçamento de Ben-Hur seria hoje US$ 130 milhões (R$ 551 milhões), mais de 25 vezes o orçamento do filme Moonlight: Sob a Luz do Luar, que venceu em 2017. E filmes mais baratos têm sido privilegiados recentemente. Desde 1991, só em três anos o filme mais caro entre os indicados foi escolhido como melhor filme: em 1998, com Titanic; em 2001, com Gladiador e em 2007 com Os Infiltrados. Um bom desempenho nos cinemas não necessariamente significa elogios da crítica ou premiação com um Oscar. A diferença de gostos entre o público e a Academia pode ser resumida com uma simples estatística: nos últimos 30 anos, apenas três longas que venceram o prêmio de melhor filme também ficaram no topo das listas de maior bilheteria: Rain Man (1989), Titanic (1998) e Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (2004). Desde 2004, nenhum dos vencedores do prêmio de melhor filme estiveram na lista dos 10 primeiros filmes com maior bilheteria no ano em que foram lançados. Neste ano, o único filme na lista dos dez mais vistos no cinema e também indicado ao Oscar é Coringa, que teve a sétima maior bilheteria em 2019 nos EUA.
2020-02-08
https://www.bbc.com/portuguese/curiosidades-51390633
cultura
Os grupos marginalizados que difundiram a tatuagem no Brasil
Corria o ano de 1976. Em plena madrugada, dois jovens cariocas perambulavam pela zona portuária de Santos, no litoral paulista. Ainda sob efeito dos drinques consumidos nos bares da região, decidiram atravessar a porta da loja de tatuagens. O dono, sujeito forte e calvo, de cabelos louros e pele bem clara, puxou conversa. Chamava-se Knud Gregersen e era dinamarquês. Na pele de um daqueles rapazes, traçou um sol estilizado. Diversas solicitações interromperam o serviço: uma prostituta erguia a saia, exigindo que lhe fizesse um coração no traseiro; próximos à entrada, marujos filipinos iam se aglomerando em filas. Gregersen se exasperou. Temia passar o resto da noite desenhando baleias. O mamífero aquático, afinal de contas, era mascote do Santos Futebol Clube, time que revelou Pelé. De tempos em tempos, marinheiros das mais variadas nacionalidades davam as caras no estabelecimento, decididos a homenagear o jogador. Daquela vez, resmungou Gregersen, não seria diferente. Ele contava quase cinco décadas de vida e sabia do que estava falando. Com o pai, aprendera o básico do ofício. Terminada a Segunda Guerra, mudou-se para Hamburgo e teve aulas com Christian Warlich, um dos mais importantes tatuadores da Alemanha. Depois, na companhia de um cachorro, deu a volta ao mundo. Tatuou na Austrália e boa parte da Europa Ocidental. Atendeu marujos nas Ilhas Canárias e trabalhou em feiras do continente africano. Contornou a Argentina, o Uruguai, e acabou se apaixonando pelo Brasil. Em 1959, desembarcou no porto de Santos e logo abriu um ateliê. Trazia consigo um artefato até então desconhecido por aqui — uma máquina elétrica, própria para tatuagens. Tornava-se assim o primeiro (e, por muito tempo, o único) tatuador a possuir um estabelecimento do gênero no país. Sob o pseudônimo de Lucky Tattoo, angariou fama nacional nos anos 1960. Quando morreu, vitimado por um ataque cardíaco em 1983, já havia se convertido em figura de culto entre adeptos das artes corporais. Hoje, seu nome desponta como elo fundamental entre o passado e o presente da tatuagem brasileira. "A tatuagem se desenvolvia em lugares de confinamento, como navios, quartéis e prisões", explica Silvana Jeha, doutora em História Social pela PUC-Rio. "Por outro lado, ela também aparecia na praça pública, na rua, no bar. Não existiam estúdios de tatuagem. Até então, o tatuador era um cara qualquer, que desenhava ali na esquina." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O repertório iconográfico pouco diferia do atual. Há cem anos, a pele dos tatuados já ostentava âncoras, animais, mulheres nuas, símbolos políticos ou religiosos, personagens de histórias em quadrinhos, nomes e iniciais de pessoas queridas. Os traços, porém, evidenciavam certo amadorismo, ligado a uma prática quase ritualística, infinitamente mais bruta e perigosa que os procedimentos de hoje em dia. Agulhas, espinhos e cacos de vidro eram alguns dos apetrechos utilizados na feitura dos desenhos. Cinzas de cigarro, graxa de sapato, carvão vegetal, fuligem e nanquim compunham fórmulas de pigmentos improvisados. Aos arrependidos, sobravam métodos de remoção igualmente dolorosos, baseados em queimaduras de ácido ou de castanha de caju. "A tatuagem era uma prática horizontalizada e sofreu enorme discriminação. Perdemos o fio dessa meada e só retomamos muito tempo depois, via cultura pop", afirma Jeha, que pesquisou o tema por mais de cinco anos. No livro Uma História da Tatuagem no Brasil, publicado no final de 2019 pela editora Veneta, a historiadora compartilha suas descobertas e analisa as transformações sofridas por essa arte entre a primeira metade do século 19, período em que se firma como cultura popular urbana, e meados da década de 1970, quando cai no gosto da classe média. "O livro é filho do meu doutorado", diz. A tese que defendeu em 2011 versa sobre a Marinha Imperial brasileira e as contribuições de seus recrutas para o desenvolvimento de uma cultura cosmopolita no país. "Eu entrei nessa onda do marinheiro ser um tipo meio extraordinário e mítico", afirma. Um livro de registros da fragata de guerra Imperatriz, contendo informações sobre 900 marujos, ganhou espaço na tese. Trata-se do documento mais antigo que a autora já encontrou acerca da presença de tatuados no Brasil. Os tripulantes que embarcaram no navio entre 1833 e 1835 foram catalogados em função de seus atributos físicos — altura, cor dos olhos e da pele, cicatrizes, formato da cabeça e, vez ou outra, desenhos descritos como "marcas" ou "sinais". A palavra "tatuagem" surgiria apenas algumas décadas depois. Intrigada, a historiadora decidiu iniciar uma pesquisa sobre o tema. "Eu não sabia muito bem como isso funcionava socialmente. Aliás, acho que quase ninguém sabia", diz. "Há um imaginário de que tatuagem era apenas coisa de marinheiros, bandidos e putas. Mas não foi bem assim." A pesquisa, financiada pela Biblioteca Nacional, se apoiou em duas fontes principais: a coleção de jornais da instituição e o acervo do Museu Penitenciário Paulista, que abriga 2.600 fotografias de detentos do Carandiru, tiradas entre as décadas de 1920 e 1940. Muitos desses indivíduos, ressalta Jeha, já chegaram tatuados ao complexo penitenciário. "É preciso entender que essas pessoas tiveram uma existência anterior à cadeia", diz. "Elas trabalharam, andaram pelo mundo, e, depois de presas, reafirmaram seu domínio sobre a única coisa que ainda tinham — o corpo." Cruzando informações de seus prontuários com textos encontrados nas páginas dos jornais, a autora pôde mapear os principais grupos envolvidos na difusão da tatuagem no Brasil e entender como foram vistos pela sociedade da época. Os marinheiros, como esperado, marcavam forte presença. "Os marujos não são necessariamente os pioneiros da tatuagem dita ocidental", esclarece a historiadora. "Mas foram eles que espalharam essa cultura pelo mundo." Eram sujeitos como Joaquim, que, tentando driblar uma rotina de castigos físicos, tatuou um crucifixo nas costas e a imagem de Cristo no peito. Segundo relatos de 1904, os capatazes do navio temiam agredi-lo — acreditavam que os golpes feriam Jesus. Ou como o idoso que, à beira da morte num leito de hospital, narrou a Jeha a origem da frase "Amor à Cuba", que trazia inscrita na mão. Por dois meses, seu navio permanecera atracado na ilha. Enquanto a embarcação sofria reparos, o tripulante saiu, dançou salsa e conheceu Fidel Castro. A tatuagem, garantiu o marinheiro à pesquisadora, seria uma "lembrança daqueles dias maravilhosos". Já nas páginas dos tabloides, manchetes sanguinolentas davam testemunho dos supostos vínculos entre a tatuagem e a criminalidade: "Tatuado no assalto ao armazém"; "Dois tatuados e um bicheiro assassinados a bala e faca"; "Massacre do homem tatuado só poupou um bebê"; "Jovem tatuado agonizava na rua com três rombos de bala na cabeça". Tangenciando ambos os universos, reportagens sobre prostituição documentavam as trajetórias erráticas de mulheres que transgrediam as normas de seu tempo. A alagoana Beatriz Barbosa, por exemplo, pautou dezenas de textos jornalísticos entre 1919 e 1948. Suas andanças pelo Rio de Janeiro, então capital federal, costumavam terminar em delegacias e faziam as delícias do noticiário sensacionalista. Foi presa mais de vinte vezes, sempre por delitos menores: furtos, brigas, bebedeiras, vadiagem, meretrício. Viciada em cocaína, chegou a ser descrita como "recordista de entradas na detenção e campeã de tatuagens". Nem só de mar, crime e sexo pago viviam os tatuados nos grandes centros urbanos. Militares de baixa patente, trabalhadores braçais, artistas circenses, imigrantes e degredados também ostentavam desenhos no corpo. Muitos soldados se tatuavam com bandeiras nacionais, siglas de batalhões, slogans ufanistas e emblemas patrióticos em geral. Outros, porém, escolhiam símbolos e imagens não vinculadas às questões bélicas. O praça Marcelino Bispo de Mello era um deles: possuía estrelas de cinco pontas tatuadas no peito, cotovelo e braço. Em novembro de 1897, ele assassinou o marechal Carlos Machado de Bittencourt, ministro da Guerra, num atentado contra Prudente de Morais, presidente da República. Os desenhos foram constatados no exame de corpo de delito e citados pela imprensa em janeiro do ano seguinte, após Marcelino cometer suicídio na cadeia, enforcando-se com um lençol. Não foi o único momento de turbulência a contar com a participação de tatuados: os levantes tenentistas da década de 1920, bem como as revoluções de 1930 e 1932, estimularam diversos trabalhadores a expressarem na pele suas convicções políticas. Outros perderam a vida, tendo seus corpos reconhecidos a partir das tatuagens que carregavam. O marceneiro Manoel Moreira da Costa, vulgo Costeleta, foi preso, torturado e morto em outubro de 1931, ao se manifestar contra o governo que Getúlio Vargas instituira no ano anterior. Seu cadáver degolado, disposto numa linha de trem em Recife, foi identificado pela mãe e pela namorada graças a uma inscrição contendo o nome de uma terceira mulher — Adélia. Também movido pelo repúdio ao getulismo, o estivador José tatuaria no braço a frase "Tudo por São Paulo", lema do movimento constitucionalista de 1932. Na outra ponta, alheios ao caos social e imersos em exotismo escapista, profissionais de freak shows empreendiam turnês internacionais que incluíam os circos, cinemas e teatros das cidades brasileiras. Em 1890, o greco-albanês George Costentenus, um dos mais célebres artistas itinerantes do século 19, chegou a participar de espetáculos em São Paulo e no Rio de Janeiro. Às plateias, exibia seu corpo inteiramente tatuado e narrava as aventuras mirabolantes que teria vivido ao redor do globo. Trajetórias tão diversas, relata Jeha, transformaram radicalmente o seu olhar sobre o tema, culminando num processo de autoconhecimento. "Eu fiquei muito fascinada. Enquanto historiadora, sempre estive acostumada a estudar o outro", diz. "E, de repente, descobri que meus antepassados se tatuavam." A pesquisadora, descendente de libaneses, soube que o avô de um primo possuía uma cruz tatuada na mão. O desenho cumpria um objetivo específico, confirmado por fotografias e depoimentos de patrícios: impossibilitar a negação da fé cristã em eventuais embates contra muçulmanos. "Há algo de emotivo, um sentimento incrível de saber que essa cultura também pertence a mim", diz. "Depois, fui percebendo que ela pertence a todo mundo que vive aqui. Portugueses, italianos, japoneses, alemães, indígenas, africanos." Se existe algum vínculo a unir todas essas pessoas, afirma Jeha, trata-se do terreno por onde elas se movem — uma tênue e ambígua fronteira entre as dimensões do erótico e do sagrado. "Embora se mostre tão escancarada atualmente, a tatuagem sempre foi algo muito íntimo. As mulheres tatuavam muito os seios, alguns homens chegavam ao extremo de tatuar o pênis", explica. "É uma prática relacionada ao fervor e às paixões. O nome da pessoa que você ama, os símbolos da sua religião, o time para o qual você torce." Para além dos registros policiais e jornalísticos, o universo literário forneceu pistas igualmente valiosas à historiadora. Nos escritos de Jorge Amado, Mário de Andrade, Guimarães Rosa, Plínio Marcos e João do Rio, ou até mesmo do americano Herman Melville, Silvana Jeha encontrou dezenas de referências aos tatuados brasileiros. "A literatura é o retrato de uma época", diz. "Acredito que os escritores possuem uma sensibilidade maior. Boa parte deles via a tatuagem com muita curiosidade, como uma cultura dotada de beleza própria. Eram muito mais atentos às nuances, se comparados aos demais narradores." Machado de Assis, o mais antigo escritor brasileiro a ser analisado pela pesquisadora, já descrevia tatuagens na novela O Alienista, de 1882. Em certo trecho da obra, protagonizada por um médico que inaugura um manicômio e se afunda na própria insanidade, o romancista carioca menciona brevemente uma estrela de cinco pontas "impressa no braço" de um personagem secundário. Treze anos depois, Manuel de Souza, imigrante português preso sob acusação de homicídio, seria retirado da delegacia onde cumpria pena e utilizado como modelo vivo numa aula da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Na ocasião, o professor Souza Lima, precursor da medicina legal no Brasil, expôs aos alunos as tatuagens do acusado. Baseando-se nelas, emitiu seu veredicto: ainda que não tivesse cometido crime algum, Manuel deveria ser tratado como um suspeito em potencial. Machado de Assis, então, retornou ao tema. Em crônica publicada pela Gazeta de Notícias no dia 23 de julho de 1895, disse: "Foram as tatuagens do corpo do homem que me deslumbraram. As tatuagens são todas ou quase todas amorosas. Braços e peitos estão marcados de nomes de mulheres e de símbolos de amor". Por fim, o escritor lançava um questionamento: como poderia "um homem tão dado a amores, que os escrevia em si mesmo", ser também um assassino? Jeha explica: "Nosso país sempre esbarrou em questões de classe e raça. Os cidadãos são discriminados pela cor, pela aparência, pela posição social. E a tatuagem, no contexto daquela época, se destacava como um sinal de suspeição. Era algo literalmente marcado na pele." A sorte que o Brasil do século 20 reservou aos seus tatuados não foi muito melhor. Na década de 1930, um trabalhador rural baiano, identificado apenas pelas iniciais J.R.B., tentaria a todo custo remover os desenhos que carregava na pele. Alegava que teriam lhe trazido "pinta de malandro". O sambista carioca Guilherme de Brito, parceiro de Nélson Cavaquinho, também se arrependeria de uma tatuagem feita na juventude — um índio, traçado no braço por um morador da favela do Tuiuti. Pelo resto da vida, o músico esconderia o membro tatuado — temendo represálias, nunca mais vestiu uma camisa de manga curta. Feminicídios e execuções policiais foram o destino final de alguns tatuados, mas o livro nem sempre expõe as circunstâncias de suas mortes. "Tentei descriminalizar a tatuagem", explica a autora. "Se o cara pertencia a uma escola de samba e torcia para um time de futebol, por que me referir a ele como o sujeito assassinado pelo Esquadrão da Morte? Os jornais costumam criar admiração e fascínio mórbido por notícias de crime, quando isso não passa de uma doença social."
2020-02-08
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-51198299
cultura
Vídeo, Como as especiarias mudaram o mundoDuration, 22,56
O apetite insaciável por temperos de outras partes do mundo foi o pontapé inicial da globalização. Feito da Terra é uma série da BBC em oito episódios, explorando como oito produtos influenciaram a economia global. Clique abaixo para assistir aos outros sete episódios da série Feito da Terra:
2020-02-07
https://www.bbc.com/portuguese/media-49794317
sociedade
Dia de Finados: como celebração dos mortos, que nasceu entre pagãos, foi incorporada pela Igreja
"Do Senhor é a terra e a sua plenitude, o mundo e aqueles que nele habitam./ Porque ele a fundou sobre os mares, e a firmou sobre os rios./ Quem subirá ao monte do Senhor, ou quem estará no seu lugar santo?/ Aquele que é limpo de mãos e puro de coração, que não entrega a sua alma à vaidade, nem jura enganosamente./ Este receberá a bênção do Senhor e a justiça do Deus da sua salvação." Odon de Cluny (878-942) foi um abade francês, responsável por diversas reformas no sistema religioso da época. "É um dia de celebrar as vidas de todos os fiéis falecidos. No Brasil e em Portugal, o dia é reservado para visitar os túmulos", comenta Altemeyer. Fim do Matérias recomendadas "A Igreja toma a data e 'batiza' com significado próprio", diz Altemeyer. "Mas celebrar os mortos é algo antropológico. Desde o Cro-Magnon (ou seja, das primeiras populações de Homo sapiens) temos ritos funerários e de expectativa do além túmulo." O "Martirológio Romano", o calendário oficial da Igreja, explica ambas as datas. Sobre o Dia de Todos os Santos, ele diz: "Solenidade de todos os Santos que estão com Cristo na Glória. Na mesma celebração festiva, a santa Igreja ainda peregrina sobre a terra venera a memória daqueles cuja companhia alegra os Céus, para que se estimule com o seu exemplo, se conforte com a sua proteção e com eles receba a coroa do triunfo na visão eterna da divina majestade". E sobre o Dia de Fiados: "A Igreja, mãe piedosa, quer interceder diante de Deus pelas almas de todos os que nos precederam marcados com o sinal da fé e agora dormem na esperança da ressurreição, bem como por todos os defuntos desde o principio do mundo cuja fé só Deus conhece". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Muito antes de a Igreja Católica institucionalizar o Dia de Finados, um livro lançou as bases para como os cristãos acabam tratando os mortos. Trata-se de De Cura pro Mortuis Gerenda, texto do ano 421, atribuído ao teólogo Agostinho de Hipona (354-430), o Santo Agostinho. "A obra trata do culto devido aos mortos. É uma preciosidade, com verdadeiras pérolas do maior teólogo da Igreja", comenta Altemeyer. Conforme escreveu o estudioso da fé católica Carlos Martins Nabeto, especialista em Direito Canônico, na obra "Santo Agostinho aborda uma série de fatos importantes e interessantes a respeito dos mortos, que até hoje são conservados e respeitados pela Igreja". "Entre outras coisas, fala da utilidade da oração pelos mortos (antiquíssimo testemunho do Purgatório, ainda que tal palavra não apareça), a possibilidade da aparição dos mortos aos vivos (por meio do ministério dos anjos ou por permissão direta de Deus), a oração dos santos falecidos a nosso favor, o dia que a Igreja dedica a todos os falecidos (Dia de Finados)", exemplifica o estudioso. Uma celebração de Finados, de certa forma, está implícita no seguinte trecho do livro - o que sugere que, mesmo longe de ter sido formalizada e oficializada pelo rito católico, já se faziam as orações aos mortos em geral, em data específica. "A Igreja tomou para si o encargo de orar por todos aqueles que morreram dentro da comunhão cristã e católica. Ainda que não conheça todos os nomes, ela os inclui numa comemoração geral", diz a obra. Santo Agostinho também aborda questões referentes aos ritos fúnebres, ressaltando que "não deixa de ser marca dos bons sentimentos do coração humano escolher para seus entes queridos que serão sepultados um lugar próximo aos túmulos dos santos". "Já que o sepultamento é, por si só, uma obra religiosa, a escolha do local não poderia ser estranha ao ato religioso. É consolo para os vivos, uma forma de testemunhar sua ternura para com os familiares desaparecidos. Não enxergo, porém, como os mortos podem encontrar aí alguma ajuda, a não ser quando o lugar onde descansam é visitado e são encomendados, pela oração [dos visitantes], à proteção dos santos junto ao Senhor. Contudo, isso pode ser feito ainda quando não é possível sepultá-los em tais lugares santos", afirma. Sobre túmulos construídos como verdadeiros monumentos, o teólogo também faz considerações. "Isso é feito para que as pessoas continuem a se lembrar deles, para que não aconteça de, tendo sido retirados da presença dos vivos, também sejam retirados do coração pelo esquecimento", escreve. "Aliás, o termo 'memorial' indica claramente esse sentido de recordação, da mesma forma como 'monumento' significa 'o que traz à mente', ou seja, o que a faz recordar. Eis o motivo pelo qual os gregos chamam de mnemeion ao que chamamos de 'memória' ou 'monumento'. Na língua deles, 'mnème' significa 'memória', a faculdade com a qual recordamos." Agostinho trata da importância das orações aos mortos. "Assim, quando o pensamento de alguém se concentra sobre o lugar onde o corpo de um ente querido jaz e esse local esteja consagrado pelo nome de um mártir venerável, então a afeição amorosa recorda-se e reza, recomendando o falecido querido a esse mártir", pontua. "A morte é natural, é universal, e não pode ser tratada como um tabu", diz a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, estudiosa do luto e professora da PUC-SP. "As culturas e as sociedades vivem o luto de acordo com uma herança que vem há séculos e vai dando sentido a uma experiência importante como a morte, carregada de significados próprios que passam pela espiritualidade e pela religião." De acordo com a pesquisadora, para compreender essa questão cultural é preciso ter em mente que o homem não têm conhecimento definitivo do que acontece depois da morte. E, mesmo do ponto de vista biológico, entender a morte do corpo é uma consciência relativamente recente. "Na falta de explicações, o homem foi construindo significados. E esses significados, ao longo da história, foram pautando comportamentos", explica ela. Seja na maneira de realizar os procedimentos referentes ao velório, seja no Dia de Finados, variações desse comportamento são notados em diversas culturas. Sobretudo em cidades menores, no Brasil ainda é costume que um carro com alto-falantes percorra as ruas da cidade divulgando a "nota de falecimento" e convidando a todos para participarem do velório e do enterro. No interior da Itália, por exemplo, é comum que, quando um parente morre, familiares afixem no portão da casa um aviso fúnebre, muitas vezes decorado com fitas e ilustrado com uma fotografia do falecido, além de um texto semelhante aos anúncios de obituário de jornal. Já a celebração de Finados mais famosa, sem dúvida, é a que ocorre no México. "É uma cerimônia bastante conhecida. Eles promovem um momento de encontro entre os vivos, que vão celebrar, visitar e honrar seus mortos nos cemitérios", explica Franco. "Há varias comidas que são próprias dessa época, comportamentos que são esperados... É muito bonita como cerimônia." Alegria também está presente no rito fúnebre de Bali. Lá, o mais comum é que os mortos sejam cremados. E a cerimônia é acompanhada por uma grande festa em honra ao falecido. Conhecida por ser a capital do jazz, Nova Orleans, nos Estados Unidos, tem também um ritual fúnebre embalada pelo gênero musical. Trata-se de uma procissão fúnebre que mescla tradições africanas, francesas e afro-americanas. Conduzidos por uma banda, os enlutados alternam entre alegria e tristeza. É uma celebração catártica, que procura evocar bons momentos vividos pelo morto. Comunidades budistas da Mongólia e do Tibete acreditam ser necessário devolver o corpo à natureza, para que a alma siga em frente. Assim, têm o costume de cortar o defunto em pedaços e, então, depositá-lo no alto de uma montanha, para que abutres façam o trabalho. Nas Filipinas, diferentes grupos étnicos lidam de forma diferente com a morte e com as práticas funerárias. Os integrantes da cultura Itneg têm o hábito de vestir os defuntos com as melhores roupas, sentarem-no em uma cadeira e colocar um cigarro aceso em sua boca. Benguet, por sua vez, vendam os mortos e os velam ao lado da entrada principal da casa. Já os Caviteño sepultam os mortos fazendo de um tronco oco de árvore o caixão. Os Apayo enterram os mortos sob o chão da cozinha. Em Madagascar, por sua vez, persiste o costume de um ritual chamado farmadihana. Trata-se de uma celebração, que ocorre geralmente a cada sete anos, em que familiares exumam os restos mortais de seus entes queridos, pulverizando os ossos com vinho ou perfume. Uma banda acompanha a cerimônia, que ocorre de forma feliz. Em Gana, é costume que o morto seja enterrado em caixões que representem o que ele fazia em vida, do trabalho aos hobbies. Executivos, por exemplo, podem ser sepultados em sarcófagos em forma de carros de luxo; um fotógrafo pode ser enterrado em uma câmera fotográfica gigante; um pecuarista, em um caixão que represente uma vaca. * Texto publicado em 31 outubro 2018 e atualizado em 2 novembro de 2023.
2023-11-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1354g63mpeo
sociedade
Quem são as pessoas que permanecem sequestradas pelo Hamas
As IDF notificaram algumas famílias de que os seus entes queridos estão mantidos como reféns, enquanto outras famílias - cujos familiares permanecem desaparecidos - acreditam que foram levados. Estas são as histórias de reféns retirados de Israel em 7 de Outubro, que foram confirmadas pela BBC ou divulgadas de forma crível. Fim do Matérias recomendadas Esta lista é atualizada regularmente e os nomes podem mudar, uma vez que pode ser confirmado que algumas pessoas que se suspeita terem sido sequestradas foram mortas ou liberadas. Última atualização nesta quinta-feira (2/11). Doron, Raz e Aviv Asher foram capturadas enquanto estavam com parentes perto da fronteira de Gaza. Yoni, o marido, viu um vídeo de sua esposa e filhas, de 5 e 3 anos, sendo colocadas em um caminhão com outros reféns. Ele também rastreou o celular dela até Gaza. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Amiram Cooper, de 85 anos, foi levado junto com a esposa, Nurit Cooper, da casa deles em Nir Oz, segundo disse sua nora Noa à BBC. A família chegou a falar com o casal durante o ataque de 7 de outubro, e os idosos haviam dito que estavam em um cômodo de segurança na casa. Mais tarde, a família rastreou o telefone de Amiram até Gaza. Na segunda-feira (23), Nurit foi liberada pelo Hamas. Oded Lifshitz, 83 anos, e sua esposa Yocheved, 85 anos, foram feitos reféns no Kibutz Nir Oz. Na segunda (23/10), Yocheved foi uma das duas mulheres idosas libertadas. Depois de ouvir a notícia da libertação da sua mãe, a sua filha Sharone - uma artista radicada em Londres - disse: "Embora não consiga expressar em palavras o alívio por ela estar segura agora, continuarei concentrado em garantir a libertação do meu pai e de todos aqueles - cerca de 200 pessoas inocentes - que permanecem reféns em Gaza." Ohad Munder-Zichri, 9 anos, sua mãe, Keren Munder, 54 anos, e seus avós Ruthi e Avraham Munder, ambos 78 anos, foram sequestrados no Kibutz Nir Oz, dizem autoridades israelenses. A Associated Press informou que um sinal telefônico da família foi rastreado em Gaza. Clara Marman, 62 anos, seu parceiro Louis Har, seus irmãos Fernando Simon Marman e Gabriela Leimberg e a filha adolescente de Gabriela, Mia Leimberg, podem ter sido levados do Kibutz Nir Yitzhak. O grupo de cinco israelenses-argentinos estava escondido em seu quarto seguro, de acordo com a filha de Louis Har, que estava enviando mensagens de texto para ele. A última mensagem chegou às 11h04, informou o jornal Times of Israel. A filha de Clara, Maayan Sigal-Koren, disse que o exército israelense disse que seus telefones foram rastreados em Gaza, de acordo com o Vatican News. Sharon Alony Cunio, 34, seu marido David Cunio, 33, e suas filhas gêmeas de três anos, Emma e Julie; A irmã de Sharon, Daniele Alony Mevneh, e sua filha Amelia Mevneh, de cinco anos, foram sequestradas em um kibutz no sul de Israel, disseram Moran, irmão de Sharon e Daniele, à CNN. Moran disse que uma testemunha lhe disse que a família se abrigou em um quarto seguro, mas o Hamas ateou fogo à casa - eles foram feitos reféns depois de saírem para escapar das chamas. Dafna Garcovich e seu marido Ivan Illarramendi Saizar – que têm cidadania israelense-chilena e espanhola, respectivamente – foram sequestrados de suas casas, disse o pai de Dafna. Em 19 de outubro, o Ministério das Relações Exteriores de Israel afirmou que o casal estava mantido como refém em Gaza. Margalit Mozes, 78 anos, foi vista em uma gravação sendo levada de sua casa em Nir Oz, um kibutz no sul de Israel, perto de Gaza, pelo Hamas, disse seu irmão Chanon Cohen à CBS. Ela tem problemas de saúde que exigem cuidados médicos quase constantes, informou a família dela. Eitan Yahalomi, 12 anos, foi levado do Kibutz Nir Oz pelo Hamas em uma motocicleta, e sua mãe Bat-Sheva e duas irmãs em outra. Bat-Sheva, de nacionalidade francesa, disse em uma coletiva de imprensa que conseguiu escapar com as filhas, mas que perdeu Eitan de vista quando ele foi levado para Gaza. O marido de Bat-Sheva, Ohad, foi baleado e ferido antes, enquanto tentava defender a família em sua casa, e agora está desaparecido. Hagar Brodutch, 40, sua filha Ofri, 10, e os filhos Yuval, 8, e Oria, 4, estavam em Kfar Aza, um kibutz perto da fronteira com Gaza, quando o Hamas atacou, segundo Avichai Brodutch, marido de Hagar e pai das crianças. Ele disse à ABC News que inicialmente acreditava que eles estavam mortos – mas depois recebeu uma mensagem do kibutz informando que eles haviam sido vistos vivos, sendo levados embora. Meirav Tal, seu parceiro Yair Yaakov e os filhos dele Yagil, 12, e Or, 16, estão listados entre os reféns. A mãe das crianças, Ranana, estava ao telefone com elas quando o Hamas chegou e ouviu o filho mais novo gritar: “Não me levem, sou muito jovem!” Um vídeo também parece mostrar Yair e Meirav com seus sequestradores. Amit Shani, 16 anos, foi obrigado a entrar em um carro por homens armados do Hamas depois que eles invadiram o quarto seguro da família no Kibutz Be'eri, disse sua mãe ao New York Times. Tsachi Idan foi visto pela última vez por sua esposa, Gali, quando foi levado por homens armados do Hamas. A família deles foi localizada em um quarto seguro – cômodo feito de concreto reforçado com portas de aço herméticas e janelas projetadas para suportar ataques de mísseis – no Kibutz Nahal Oz. A captura dele foi transmitida ao vivo pelo Hamas. O filho mais velho, Maayan – que acabara de completar 18 anos – foi morto a tiros, disse Gali à BBC. Ron Scherman, um soldado israelense de 19 anos, foi sequestrado em uma passagem de fronteira, disse sua mãe Maayan ao canal de notícias i24 de Israel. Mais tarde, ela o identificou em um vídeo postado pelo Hamas. Judith Weinstein Haggai, 70, e seu marido Gad, 73, também desapareceram de Nir Oz após o ataque do Hamas. Dez dias depois, os militares israelenses confirmaram à família que haviam sido feitos reféns, informou a CTV News no Canadá. Adina Moshe, 72 anos, foi identificada pela sua família em um vídeo que a mostrava presa entre dois combatentes do Hamas numa moto, aparentemente ela estava sendo levada para Gaza. Ela também foi sequestrada em Nir Oz, disseram seus parentes à CNN. Yossi e Margit Silberman, os pais de Shiri, também estão desaparecidos e provavelmente foram capturados. Daphna Elyakim, de 15 anos, e sua irmã Ella, de 8, foram vistas em vídeo sendo detidas em casa, no kibutz Nahal Oz, disseram parentes. O pai das meninas, Noam Elyakim, a parceira de Noam, Dikla Arava, e seu filho Tomer, de 17 anos, foram mortos. Parentes disseram que Ella e Daphna apareceram em fotos postadas pelo Hamas. Karina Ariev, uma soldado de 19 anos, servia numa base militar perto de Gaza quando foi raptada. Sua irmã Alexandra disse à BBC que ouviu tiros quando Karina ligou para ela durante o ataque, e mais tarde viu um vídeo mostrando Karina sendo levada em um veículo. Alex Danzig, 75 anos, estudioso e historiador do Holocausto, estava em sua casa, também em Nir Oz, quando a residência foi atacada pelo Hamas, em 7 de outubro. “Temos certeza de que ele foi sequestrado”, disse seu filho Mati à BBC. Alex – cuja irmã mais velha, Edith, é uma sobrevivente do Holocausto – passou os últimos 30 anos trabalhando para o Yad Vashem, o centro de memória do Holocausto em Israel. O seu desaparecimento desencadeou uma campanha pela sua libertação, tanto em Israel como na Polónia, o seu país natal. Shiri, Yarden, Ariel e Kfir Bibas teriam sido sequestrados no kibutz no sul de Israel onde viviam e onde Shiri era professora de jardim de infância. Shiri foi fotografada segurando Ariel, de 3 anos, e Kfir, de 9 meses, cercada por homens armados do Hamas. Channah Peri, 79, e seu filho Nadav Popplewell, 51, foram feitos reféns pelo Hamas, disse a filha de Channah, Ayelet Svatitzky, que falava com eles ao telefone quando os homens armados invadiram a casa deles. Ela disse que os sequestradores enviaram fotos de seus dois parentes, ambos com diabetes, com homens armados ao fundo. Omri Miran, 46 anos, foi sequestrado depois que sua família abriu a porta de seu abrigo seguro para uma criança israelense, que disse que caso contrário ele seria morto. A esposa de Omri, Lishay Lavi, disse que o viu sendo levado algemado com outros três reféns do kibutz Nahal Oz. Ofer, Erez e Sahar Kalderon foram feitos prisioneiros no Kibutz Nir Oz. Um vídeo nas redes sociais parecia mostrar Erez, de 12 anos, sendo levado por homens armados em direção a Gaza, disse seu parente Ido Dan à BBC. A princípio, acreditava-se também que outros dois familiares deles, Carmela Dan, de 80 anos, e sua neta, Noya, de 12, também tinham sido levadas, mas as autoridades israelenses anunciaram mais tarde que elas haviam sido encontradas mortas. Liri Elbag, 18 anos, tinha acabado de iniciar o treinamento militar como vigia do Exército perto da fronteira de Gaza quando o Hamas atacou, disse seu pai, Eli, à Associated Press. Eli afirmou que a viu em um vídeo divulgado posteriormente pelo Hamas, lotado com outras pessoas na traseira de um caminhão militar que foi apreendido pelos homens armados. Aviv Atzili e seu marido Liat Beinin Atzili, ambos de 49 anos, desapareceram de sua casa no Kibutz Nir Oz no dia do ataque. A casa deles foi incendiada, mas não havia sinal de luta ou sangue e, de acordo com o The Times of Israel, o telefone de Aviv foi geolocalizado em Gaza um dia depois. Mia Shem, 21 anos, de Shoham, apareceu no primeiro vídeo de reféns divulgado pelo Hamas dizendo que havia sido sequestrada em uma festa. As Forças de Defesa de Israel confirmaram que ela foi feita refém e disseram que estavam em contato com sua família, que concordou que as imagens do vídeo pudessem ser mostradas. Muitas pessoas podem ter sido sequestradas no festival de música Supernova, no sul de Israel. Entre elas: Moran Stela Yanai, 40 anos, designer de joias que estava vendendo seu trabalho no festival quando o ataque aconteceu. Mais tarde, ela foi vista em um vídeo sentada no chão, cercada por um texto depreciativo em árabe sobre os judeus, disse seu irmão à Associated Press. Almog Meir Jan, 21 anos, tentou fugir do festival. Ele e um amigo chegaram ao carro do amigo, mas só conseguiram percorrer uma curta distância antes de serem forçados a parar. A família de Almog afirma ter visto um vídeo com reféns no qual ele aparece. Inbar Heiman, um estudante de 21 anos, foi visto por dois jovens israelenses sendo levado do festival em uma motocicleta. O Hamas divulgou um vídeo no qual Inbar é visto brevemente. Hersh Goldberg-Polin, 23 anos, da Califórnia, foi visto por testemunhas sendo carregado em um caminhão, disse sua família ao Los Angeles Times. Ele ficou gravemente ferido e inconsciente, disseram as testemunhas, e a última localização conhecida de seu telefone o mostrou na fronteira com Gaza. Maya Regev, 21, e seu irmão Itay, 18, de Herzliya, também teriam sido levados. Na manhã do ataque, o pai de Maya recebeu um telefonema da filha que gritava “Pai, estão atirando em mim, estou morta”. A família disse que mais tarde viu Itay algemado na traseira de um veículo em um vídeo divulgado pelo Hamas. Quase dois dias depois, o exército israelense informou à família que Maya e Itay haviam sido sequestrados. Noa Argamani, uma cidadã israelense nascida na China, também foi sequestrada no festival. Imagens de vídeo - verificadas por seu pai, Yaakov Argamani, no Canal 12 de Israel - mostram a jovem de 25 anos sendo levada na traseira de uma motocicleta gritando "Não me mate!". Bar Kuperstein, 21 anos, falou pela última vez com a sua família na manhã de 7 de Outubro, durante o desenrolar do ataque. Mais tarde, no mesmo dia, a sua família afirma tê-lo identificado em um vídeo de prisioneiros israelitas, publicado pelo Hamas. Desde então, eles dizem não ter tido mais informações. Eliya Cohen, 26 anos, estava se escondendo do ataque com sua namorada Ziv, quando Ziv o sentiu sendo puxado e expulso pelos homens armados, disse a mãe de Eliya à iniciativa de vídeo #BringThemHomeNow ("Os devolva para casa agora", em tradução literal). A família então encontrou uma foto de Eliya em Gaza, informou o Times of Israel. Amit Buskila, 28 anos, de Ashdod, foi ouvida pela última vez ligando para seu tio, Shimon, enquanto o Hamas invadia o festival. A sua família afirma ter sido informada pelo governo que ela está detida em Gaza. Evyatar David, 23 anos, estava no festival e, na manhã dos ataques, descreveu ter fugido dos tiros antes de perder contato com o mundo exterior, diz seu irmão. Mais tarde, segundo sua família, a irmã de Evyatar postou no Instagram pedindo informações sobre seu paradeiro - ela então recebeu uma mensagem de um número desconhecido, que continha imagens de vídeo de Evyatar algemado no chão de um quarto escuro. De acordo com o Ministério das Relações Exteriores de Israel, ele está sendo mantido em cativeiro pelo Hamas em Gaza. Vivian Silver, 74 anos, uma renomada defensora da paz. Sua última comunicação foi para dizer que sua casa no Kibutz Be'er estava sob ataque. Roni Eshel, 19 anos, estava em uma base militar na fronteira de Gaza. A família dela diz que a última vez que tiveram notícias dela foi na manhã do ataque do Hamas. Sua base estava sob ataque. Ela enviou uma mensagem de texto para a mãe por volta das 9h30, dizendo: “Mãe, estou bem, estou ocupada, te amo”. Jordan Roman-Gat, uma cidadã germano-israelense de 36 anos, foi sequestrada com o marido e o filho pequeno pelo Hamas no Kibutz Be'eri. Ela, seu marido Alon e Gefen, de três anos, escaparam quando o carro parou brevemente, mas Jordan se separou dos outros, disseram parentes à CNN, acrescentando que temem que ela possa ter sido recapturada. Camel Gat, 39 anos, é cunhada de Jordan e também foi vista por seu pai sendo levada por homens armados do Kibutz Be'eri, informou o jornal Haaretz. Ela não foi vista desde então. Ohad e Ethan Vahalomy foram sequestrados em seu kibutz, segundo a mãe de Ohad, Esther. Ela disse que sua nora e duas de suas netas conseguiram escapar quando cinco homens armados invadiram sua casa, mas Ohad e Ethan, de 12 anos, foram levados. Ditza Heiman, 84 anos, foi vista por um vizinho do Kibutz Nir Oz sendo levada por homens armados do Hamas, disse sua sobrinha. Ex-assistente social, ela é viúva de Zvi Shdaimah, que migrou para o Reino Unido no Kindertransport, o resgate organizado de crianças de áreas controladas pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Dror Or, sua esposa Yonat, seu filho Noam e sua filha Alma foram vistos por um vizinho sendo arrastados para fora de sua casa no Kibutz Be'eri, de acordo com seu sobrinho Emmanuel Besorai. Não houve contato desde então, disse ele. Noam tem 15 anos e Alma 13. Shoshan Haran, sua filha Adi Shoham, o parceiro de Adi, Tal Shoham, e seus filhos, Naveh e Yahel, foram sequestrados na casa da família no Kibutz Be'eri, de acordo com a organização sem fins lucrativos que ela fundou, Fair Planet. A Fair Planet disse que perdeu contato com Haran após o ataque do Hamas, mas um telefone do marido de Haran, Avshalom, foi rastreado até Gaza e eles acreditam que toda a família foi levada. Avshalom Haran – economista e dupla cidadania alemã/israelense – foi morto, confirmou a BBC. Ele tinha 66 anos. Shoshan tem 67 anos, Naveh tem oito e Yahel tem três. Sharon Avigdori, 52, e sua filha Noam, 12, são parentes de Haran e acredita-se que tenham sido sequestradas no mesmo momento. Eviatar Kipnis, 65 anos, e sua esposa Lilach Kipnis, 60 anos, foram mortos, disse a família. Yaffa Adar, 85 anos, foi sequestrada em um kibutz perto da fronteira com Gaza. A sua neta Adva encontrou um vídeo dela sendo levada para Gaza, cercada por quatro homens armados. Ada Sagi, 74 anos, também pode ter sido sequestrada de sua casa no Kibutz Nir Oz. Seu filho, Noam, disse que os soldados israelenses encontraram manchas de sangue, mas nenhum sinal de sua mãe e que ela não estava entre os mortos ou feridos na pequena comunidade. Efrat Katz e Gadi Mozes, mãe de Doron Asher (que foi sequestrada com as filhas) e seu parceiro respectivamente, também foram raptados durante o mesmo ataque ao kibutz de Nir Oz, segundo familiares e a agência de ajuda israelita onde Gadi Mozes trabalhava como especialista agrícola. Sagui Dekel-Chen, um cidadão americano-israelense, está desaparecido desde o ataque do Hamas ao kibutz Nir Oz, disse seu pai Jonathan à BBC. Jonathan disse que o seu filho não foi encontrado entre os mortos e que a “única explicação razoável” é que ele foi levado para Gaza. Anucha Angkaew, um cidadão tailandês que trabalhou numa fazenda de abacates durante quase dois anos, foi visto num vídeo publicado pelo Hamas. Sua esposa, Wanida Maarsa, o identificou para a BBC Thai. Boonthom Phankhong e Nattawaree “Yo” Moonkan, marido e mulher, trabalhavam numa fábrica de embalagem de cogumelos perto de Gaza quando homens armados do Hamas invadiram e começaram a disparar, segundo reportagens da televisão tailandesa. Yo, de 35 anos, gritou enquanto todos se escondiam e foi levada junto com o marido, de 45 anos. O-wat Suriyasri foi fotografado com as mãos amarradas nas costas enquanto homens armados o observavam, conforme mostrou uma foto enviada por um colega à sua família, segundo reportagens da TV tailandesa. Ele tem um filho com sua esposa na Tailândia. Manee Jirachat, que viajou para Israel a trabalho há quatro anos, foi capturado pelo Hamas com outros cinco trabalhadores que se protegeram juntos, de acordo com uma entrevista na TV tailandesa com seu pai, que conversou com sobreviventes. Natthaporn Onkaew, Komkrit Chombua, Parinya Taemklang, Pattanayuth Tonsokri, Kiattisak "Top" Patee e um homem não identificado foram divulgados pelo Ministério das Relações Exteriores tailandês como reféns. A Tailândia disse que 14 de seus cidadãos foram capturados.
2023-11-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czkey30g3xdo
sociedade
Áudio, Em áudio | Mães são acusadas de narcisismo quando fazem o que um pai comum faria, diz psicanalista Vera Iaconelli Duration, 19,12
Autora de 'Manifesto antimaternalista' critica 'discurso através do qual a sociedade justifica e reitera o lugar das mulheres — reduzidas à função de mães e trabalhadoras domésticas não remuneradas'.
2023-11-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1r0dygx59o
sociedade
'Esquerda identitária e extrema direita populista são responsáveis por polarizar a sociedade', diz cientista político Yascha Mounk
A história da tensão na escola de Atlanta é um dos vários exemplos que o cientista político alemão-americano Yascha Mounk usa para ilustrar o que chama de “armadilha identitária”. Mounk descreve como, segundo ele, uma parte da política progressista ou de esquerda atual passou a privilegiar a identidade sobre todas as outras coisas na hora de desenvolver políticas públicas e se posicionar no debate político. Conhecido por ser um pensador de esquerda, Mounk acaba de lançar, nos Estados Unidos, o livro “Identity Trap: a story of ideas and power in our time” (ou, em tradução livre, “A armadilha identitária: uma história de ideias e poder em nosso tempo”), ainda sem previsão de publicação no Brasil. Fim do Matérias recomendadas No Brasil, embora reconheça os limites da noção de “democracia racial”, Mounk afirma que os brasileiros não deveriam permitir que a luta contra a estratificação racial — que mantém os negros em patamares mais baixos de renda do que os brancos — provoque o aumento na segregação racial. Leia a seguir os principais trechos da entrevista de Yascha Mounk à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast BBC News Brasil - Por muito tempo, a esquerda perseguiu um certo universalismo, no sentido de mostrar que as diferenças de renda, raça, gênero não tornavam os direitos dos cidadãos diferentes, pelo contrário. Em que momento e por que isso começa a ser abandonado por grupos de esquerda em favor do que você chama de ‘síntese identitária’? Yascha Mounk - Eu sou alguém que sempre esteve à esquerda e permanece à esquerda. Entrei para o Partido Social Democrata Alemão aos 13 anos. Na verdade, tive que mentir para entrar no partido porque eu só poderia fazer isso aos 14 anos e alguém sugeriu que eu falsificasse meu aniversário para entrar. E o que me atraiu para a esquerda foram duas tradições que marcavam sensivelmente esse espectro político. A primeira é o reconhecimento de que na maioria das sociedades, historicamente, as pessoas são discriminadas com base na situação econômica, mas também com base nos tipos de grupos em que nasceram. Grande parte da direita e da extrema direita sempre quiseram manter hierarquias de dominação baseadas em religião, cor de pele, orientação sexual, gênero e assim por diante. E em segundo lugar, partimos da luta por uma sociedade na qual superássemos essas diferenças, insistindo que somos capazes de nos compreendermos para comunicarmos através das fronteiras de nação, classe, religião e raça. Queríamos construir um mundo onde pudéssemos nos ver como irmãos e onde seríamos tratados como iguais, tratados da mesma forma. O que me chama a atenção na nova ideologia relativa à raça, ao gênero e à orientação sexual, cuja ascensão narro no meu novo livro "A armadilha da identidade" é que a esquerda desistiu da segunda parte deste raciocínio. Agora está na moda dizer que se você e eu estamos em diferentes interseções de identidade - como nos Estados Unidos, em que você é uma mulher latina e eu sou um homem branco - então realmente não seremos capazes de nos comunicar e de nos entender. (Essa interpretação do mundo) argumenta que deveríamos estar muito preocupados com as formas de influência cultural mútua, mas se eu pertenço a um grupo e você pertence a outro grupo, seria problemático para mim inspirar-me na sua criação artística ou nas suas tradições históricas. E incentiva cada vez mais as pessoas a se conceberem, antes de mais nada, em virtude de um grupo no qual nasceram. Muitas escolas nos Estados Unidos agora dizem explicitamente que querem educar os alunos para que se concebam como seres raciais e coloquem a identidade racial acima de outras maneiras pelas quais eles poderiam pensar sobre si mesmos. E eu acho que isso é uma traição à missão histórica da esquerda e é um erro em termos de um tipo de sociedade que deveríamos querer construir e criar. BBC News Brasil - Parece que esta abordagem da esquerda agora poderia potencialmente abrir a porta para o ressurgimento de algo que historicamente foi combatido pela esquerda: a segregação social, o regime de apartheid. Concorda que parece haver uma contradição? Por que a esquerda está optando por essa abordagem? Em vez de reconhecer que as mudanças são lentas, mas podem ser reais, Bell exagerou as implicações desses resultados. Ele começou a dizer que a América no ano 2000 permanecia tão racista como tinha sido em 1950 ou 1850, que o progresso na questão racial não era possível, ele afirmava que o racismo é uma característica permanente dos Estados Unidos. E como resultado, acabou por rejeitar as partes fundamentais do Movimento dos Direitos Civis. Ele passou a pensar que Brown vs Board of Education (a decisão da Suprema Corte que acabou com a segregação racial nas escolas) era, em muitos aspectos, um erro, argumentando que escolas separadas, mas verdadeiramente iguais, poderiam ser melhores (do que escolas racialmente integradas mas com discriminação). E apelou aos seus seguidores para que rejeitassem o que chamou de defunta ideologia da igualdade racial do Movimento dos Direitos Civis. Então isso ajudou a estabelecer uma nova forma de política de esquerda que busca respostas ao fazer com que a forma como tratamos uns aos outros e como o Estado trata a todos nós dependa explicitamente do tipo de grupo racial do qual fazemos parte. O objetivo disto é ser libertador e não opressivo, que estas formas de consideração diferencial ajudem em vez de prejudicar os grupos que historicamente foram maltratados. Mas acho que é muito ingênuo presumir que é assim que as coisas vão acontecer. Se encorajarmos a sociedade a transformar-se num conflito de soma zero entre diferentes grupos étnicos, não há nenhuma razão específica para assumir que isso beneficiará sempre os grupos historicamente marginalizados. BBC News Brasil - Na sua avaliação, ao retirar a ênfase de princípios básicos como um homem um voto ou da liberdade de expressão e reforçar as diferenças entre diferentes grupos na sociedade, essa parte da esquerda fragiliza a democracia? Mounk - O livro é chamado de armadilha de identidade e acho que a metáfora da armadilha é muito útil aqui porque uma armadilha é uma isca, é algo que atrai você e, no caso desta ideologia, a isca é a afirmação, a promessa de que ela permitirá que as pessoas lutem contra as injustiças nos Estados Unidos, no Brasil e em muitas outras democracias do mundo da maneira mais intransigente possível. Mas é uma armadilha porque acaba por ser contraproducente. E é contraproducente de várias maneiras. Ao inspirar políticas públicas, por exemplo, ela na verdade prejudica, em vez de ajudar, grupos vulneráveis. Nos Estados Unidos, o Centro de Controle de Doenças (CDC) decidiu que não poderia priorizar os idosos. Quando finalmente obtivemos vacinas que salvam vidas durante a pandemia de covid-19, praticamente todos os países priorizaram os idosos para essas vacinas porque são o grupo com maior risco de mortalidade por covid. Nos Estados Unidos, nós decidimos que isso seria contra o novo valor da equidade, uma vez que os americanos mais velhos são desproporcionalmente brancos. Por isso, o CDC acabou priorizando um grupo muito mais amplo, de trabalhadores essenciais, como os primeiros a receber as doses. Mas isso levou a muitas injustiças porque acarretou em uma disputa política sobre quem seria considerado como trabalhador essencial - e aí os produtores de cinema em Los Angeles e os executivos financeiros em Nova York entraram nessa categoria. Acabamos com muitas pessoas elegíveis para poucas vacinas. Então as pessoas mais conectadas, com mais recursos, que tinham condições de dirigir por horas até uma farmácia remota para tomar uma vacina acabaram em primeiro lugar na fila. E, como resultado, provavelmente isso matou mais americanos não-brancos. Portanto, estas ideias são também uma armadilha política. A síntese identitária, como a chamo, e o populismo de extrema direita, são talvez opostos um ao outro ideologicamente, mas em termos práticos e políticos, cada um ajuda a polarizar a sociedade e acaba por reforçar a posição do outro. Nos Estados Unidos, uma das razões pelas quais estas ideias se tornaram tão influentes depois de 2016 é que, quando Donald Trump foi eleito, tornou-se muito difícil criticá-las pela esquerda sem ser acusado de querer ajudá-lo secretamente. Mas uma das razões pelas quais Donald Trump está agora competindo cabeça a cabeça com Joe Biden na eleição presidencial de 2024 é que uma enorme quantidade de americanos está desanimada com o papel que estas ideias passaram a ter sobre as instituições convencionais. Portanto, em termos práticos e políticos, um é a outra face do outro, para se opor a um de forma eficaz, é necessário opor-se a ambos. BBC News Brasil - Em que outros aspectos você vê semelhança entre essas duas forças políticas? O modo como atuam no poder é semelhante? Mounk - É até difícil para nós sabermos como seria um governo totalmente pautado pela síntese identitária, em parte porque ela é tão pouco atraente do ponto de vista eleitoral. Minha preocupação mais imediata não é o que acontecerá se essas ideias acabarem chegando ao poder, mas sim que, se essas ideias tomarem conta das instituições convencionais, as pessoas perderão a confiança nos jornais, nas universidades e em outras instituições das quais precisamos para que a sociedade funcione bem, e quando essas ideias dominam os partidos políticos de esquerda, isso torna muito mais fácil para os candidatos de extrema direita conquistarem o poder político. BBC News Brasil - Você é um pensador de esquerda fazendo uma crítica a um dos movimentos mais fortes surgidos na esquerda nos últimos tempos em um momento em que muitos veem as democracias fragilizadas por correntes populistas de direita. Há quem critique sua ênfase na crítica à esquerda dizendo que ela atua em favor da direita. Qual a sua resposta a isso? Mounk - Uma parte da resposta é que essas ideias são importantes por si mesmas, se os Centros de Controle de Doenças acabarem adotando um conjunto incorreto de diretrizes sobre como distribuir vacinas que salvam vidas (por causa da pauta identitária), isso pode levar a que pessoas de todas as raças e origens nacionais morram desnecessariamente, logo, os riscos são elevados por si só. Vimos que muitas instituições progressistas importantes que servem algumas das pessoas mais vulneráveis ​​nos Estados Unidos tiveram enormes colapsos internos e grandes disputas políticas que tornaram impossível servir eficazmente suas missões importantes nos últimos anos e essa é uma das razões pelas quais alguns as pessoas da esquerda estão começando a abrir os olhos sobre como estas ideias são equivocadas e falhas. E, finalmente, como eu estava argumentando, acho que a maneira certa de lutar contra os perigosos políticos de extrema direita não é fechando os olhos para os problemas do nosso próprio espectro político e fingindo que eles não existem. É chamar a atenção para esses problemas para que os políticos se distanciem destas ideias, porque é isso que é preciso para poder vencer a extrema direita nas urnas. BBC News Brasil - O Brasil sustenta há anos um mito de ser uma democracia racial, quando na verdade segue excluindo pessoas negras, indígenas e também mulheres do centro de poder. Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se recusou a indicar uma mulher negra ao Supremo Tribunal Federal ao dizer que o importante era nomear alguém que servisse bem ao Brasil, não escolher alguém a partir de um perfil socioeconômico e racial. Quão importante afinal é a representatividade de grupos na democracia e como ela deve ser garantida? Mounk - Eu certamente acho que a representação política é importante. Muito do meu trabalho, inclusive este livro, é motivado por essas injustiças, que realmente persistem. Certamente tanto o Brasil quanto os Estados Unidos têm origens como uma sociedade escravista e isso tem levado a injustiças persistentes, em particular contra aqueles que são descendentes de pessoas escravizadas. Precisamos lutar contra as formas atuais de discriminação de forma intransigente e precisamos criar muitas oportunidades para as pessoas que não têm recursos e acesso à mobilidade econômica. Também penso que os partidos políticos têm a responsabilidade moral de tentar recrutar candidatos provenientes de uma gama mais ampla de origens, sejam elas minorias étnicas ou mulheres. No entanto, não creio que as cotas explícitas sejam uma forma útil de fazê-lo, em parte porque retiram aos eleitores a capacidade de exercer a escolha livremente e em parte porque acabam por colocar um asterisco nas pessoas que são selecionadas desta forma. Nos Estados Unidos, por exemplo, temos visto repetidamente nos últimos anos que os democratas acabaram por desvalorizar aos olhos do público candidatos muito qualificados porque foram explicitamente selecionados com base no fato de serem negros. Foram os casos da última juíza da Suprema Corte nomeada por Joe Biden, Ketanji Brown Jackson, a KBJ, e a senadora pela Califórnia Laphonza Butler, escolhida pelo governador Gavin Newsom, e nomeada após a morte de Dianne Feinstein. Ambas são altamente qualificadas, tanto como juíza quanto como política, e teriam sido escolhas perfeitamente naturais para as posições. Mas como Biden e Newsom haviam anunciado com antecedência que escolheriam uma mulher negra, elas foram percebidas por grande parte da população como sendo apenas a pessoa mais qualificada dentro de uma pequena subcategoria de uma população. Acho que teria feito muito mais sentido para eles dizerem que escolheram a pessoa mais qualificada para o trabalho. E muito plausivelmente teria sido KBJ e Butler. Mas penso que há uma grande diferença entre garantir que se procura e recompensa talentos políticos em diferentes partes da população e dizer explicitamente que se está fazendo isto com base numa cota ou numa restrição do próprio processo de seleção. BBC News Brasil - Mas no caso de Lula, houve uma decepção de parte de sua base, que esperava por uma nomeação que corrigisse essa injustiça, e também parece ser parte da responsabilidade histórica da esquerda ajudar a aumentar a representatividade, não? Mounk - É um pouco difícil comentar sobre uma questão de política brasileira que não acompanhei de perto. Se houvesse um candidato natural altamente qualificado ao Supremo Tribunal Federal nesse grupo demográfico, então Lula certamente deveria ter considerado essa pessoa. E é perfeitamente possível que ele não o tenha feito devido a alguma forma de preconceito que é difícil para eu avaliar de fora, mas é certamente plausível. Mas o que estou dizendo é que se ele escolhesse um candidato qualificado desse subgrupo, ele deveria anunciá-la com base nas qualificações reais da candidata, em vez de apresentá-la como a candidata mais qualificada dentro de um subgrupo e dizer que a escolha foi motivada pela agenda racial. BBC News Brasil - Como você vê a evolução deste debate identitário nas próximas décadas? Mounk - O que veremos é uma contestação nos próximos 20 a 30 anos sobre o que significa ser de esquerda e sobre a natureza destas ideias, que se tornaram extremamente influentes nas principais instituições. Elas dominam grande parte dos padrões pedagógicos com os quais a próxima geração de pessoas está sendo criada. E algumas das deficiências dessas ideias estão se tornando mais evidentes a cada dia e a resistência a elas, em parte, por razões de reação da extrema direita, mas também de muitos liberais, de muitos moderados, muitas pessoas de esquerda que discordam da visão de sociedade futura que estas ideias implicam, está se formando uma resistência. Acho que será uma luta genuína na contestação dessas ideias que durará muito tempo. É importante que os críticos razoáveis ​​destas ideias vençam, que as pessoas que são capazes de reconhecer as profundas injustiças que continuam a formar a nossa sociedade, que defendem a tolerância e a verdadeira igualdade, que querem insistir na nossa capacidade de nos compreendermos através das linhas políticas, por pessoas que pensam que o que temos em comum pode ser e é mais importante do que aquilo que nos divide. Em vez de construir uma sociedade que encoraje a eliminação de alguns conflitos entre diferentes grupos de identidade, podemos construir uma sociedade com uma identidade partilhada como cidadãos de um país que trata todos os seus membros com igual respeito e merecimento e da forma justa que aspiramos.
2023-11-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjk7kyg6ryyo
sociedade
Áudio, Em áudio | Por que funcionários estão ficando egoístas e menos leais a empresasDuration, 6,51
Em um mundo de trabalho transformado, as pessoas estão menos propensas a colocar a empresa em 1º lugar ao pensar e falar sobre suas carreiras; em vez disso, estão destacando suas qualidades pessoais em seus currículos.
2023-11-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0x6xl86d73o
sociedade
Cerveja 'transgênica': a empresa que tenta 'melhorar sabor' da bebida com modificação genética
Charles Denby diz que seu trabalho consiste em simplesmente tentar melhorar o sabor da cerveja. "Queremos priorizar os melhores sabores, reduzir os que não são tão bons e criar novos." A proposta parece ótima para os milhões e milhões de consumidores de cerveja pelo mundo. Mas, quando se entende o que a empresa de Denby nos EUA realmente faz, as coisas ficam um pouco mais controversas. Ele é cofundador e executivo-chefe da Berkeley Yeast, um dos principais criadores de levedura geneticamente modificada (GM) para a indústria cervejeira. A levedura é fundamental para a fabricação da bebida, porque transforma em álcool os açúcares fornecidos pelo malte de cevada e outros grãos, ao mesmo tempo em que adiciona seus próprios sabores. Fim do Matérias recomendadas A Berkely Yeast edita o DNA de cepas de levedura para remover ou adicionar determinados genes. Um de seus produtos, a levedura Tropics, foi alterado para ter sabores de maracujá e goiaba. Denby diz que esta levedura faz mais sentido para os fabricantes de cerveja do que depender de um fornecimento dessas frutas, além de ser melhor do que usar sabores artificiais. "Faz mais sentido ter levedura produzida por bioengenharia, e isso reduz a dependência de ingredientes adicionais como, por exemplo, ter que ter um pomar de pêssegos florescendo mês após mês, ano após ano", diz. A Berkeley Yeast, com sede em Oakland, na Califórnia, não se dedica apenas a adicionar sabores - ela também pode retirá-los. Uma de suas cepas de levedura ajuda a eliminar o diacetil, substância que prejudica o sabor de algumas cervejas. Enquanto isso, ele diz que outra de suas leveduras é capaz de criar uma cerveja amarga ao estilo belga em uma fração do tempo que normalmente levaria. Quem mora nos EUA, onde as leis sobre alimentos geneticamente modificados são mais flexíveis do que na maioria dos países, talvez já tenha experimentado cervejas feitas com produtos da Berkeley Yeast, pois elas já estão sendo usadas por cervejarias artesanais em todo o país. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, no que diz respeito às vendas no exterior, Denby diz estar limitado pela legislação de outros países, que impede a utilização de modificações genéticas na indústria alimentar e de bebidas. O Brasil, por sua vez, é o segundo maior produtor de alimentos transgênicos do mundo, depois dos Estados Unidos. No Reino Unido, por exemplo, alimentos geneticamente modificados podem ser autorizados se forem considerados "sem risco para a saúde, não enganando os consumidores, [e] não tendo menos valor nutricional do que os seus homólogos não geneticamente modificados". E devem ser rotulados como provenientes de uma fonte geneticamente modificada. Outro fornecedor de leveduras geneticamente modificadas, o Omega Yeast Labs, de Chicago, anunciou ter descoberto o gene específico que ajuda a causar turvação (conhecida como "hazy") na cerveja. Usando uma tecnologia de edição genética chamada Crispr/Cas9, pesquisadores conseguiram excluir esse gene de cepas de levedura ligadas a turvação. Como resultado, as cervejas fermentadas com eles não ficaram mais turvas. Ian Godwin, professor de ciência agrícola e diretor da Aliança de Queensland para Agricultura e Inovação Alimentar, diz que os cervejeiros americanos que utilizam levedura geneticamente modificada nos seus produtos são "um segredo que todo mundo [na indústria] conhece". No entanto, ele diz que os fabricantes de cerveja raramente divulgam isso por conta da imagem negativa que essa tecnologia costuma ter. Enquanto isso, o especialista em levedura cervejeira Richard Preiss diz que "nos EUA, você pode realmente fazer o que quiser". Ele é diretor do laboratório Escarpment Labs em Ontário, Canadá, e fornece levedura para mais de 300 cervejarias, mas não usa modificações genéticas. "(Nos EUA,) Você pode pegar, por exemplo, o genoma do manjericão, inseri-lo no fermento, e trazer uma cerveja aromatizada ao mercado rapidamente." Na Lagunitas Brewing, uma empresa californiana de propriedade da gigante holandesa Heineken, o mestre cervejeiro Jeremy Marshall diz que, embora ainda não existam planos de usar levedura geneticamente modificada, estão realizando testes. "Pode haver hesitação ou medo para quem está preocupado com a associação entre alimentos geneticamente modificados e empresas como a Monsanto [a controversa empresa de cultivos geneticamente modificados, fechada em 2018], e isso pode ser assustador para muita gente", diz. "Mas elas precisam entender que o fermento é filtrado e nada geneticamente modificado entra no produto final, apenas compostos de sabor, que são pequenos sacos de enzimas." Outras cervejarias, no entanto, discordam da venda de bebidas "editadas" geneticamente. Notando que muitos consumidores se oporiam à tecnologia, elas encontram uma maneira de contornar isso. A Carlsberg, uma das maiores cervejarias do mundo, instituiu uma política anti-transgênicos no desenvolvimento dos seus ingredientes - cevada, lúpulo e levedura - e na forma como fabrica suas cervejas. Em vez disso, a gigante dinamarquesa trabalha para criar naturalmente novas variedades de cevada e lúpulo que, por exemplo, tolerem melhor o calor ou a estiagem. Isso é feito por meio do processos antigos e tradicionais. Birgitte Skadhauge, que lidera o Laboratório de Pesquisa da Carlsberg em Copenhague, capital da Dinamarca, aponta que a cerveja tipo lager da empresa usa agora um novo tipo de cevada que é mais fácil de cultivar e mantém o frescor por mais tempo. Já Marshall diz estar esperançoso sobre o que está por vir para as cervejas geneticamente modificadas. "O Santo Graal do que fabricantes de leveduras como Berkeley querem fazer é criar uma IPA que permaneça fresca para sempre, tenha um sabor consistente e um lúpulo que nunca envelheça", diz. "E acho que os fabricantes estão no caminho certo para atingir esse objetivo."
2023-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2303yvr37o
sociedade
Mais mulheres e idosos empregados: as estratégias do Japão para lidar com população mais velha do mundo
No Japão, uma em cada 10 pessoas tem 80 anos ou mais. E o índice de habitantes com 65 anos ou mais (29,1%) é o mais alto do mundo. Mas estes números são apenas a ponta do iceberg – os indícios de uma profunda crise nacional. "O envelhecimento da população japonesa, que os meios de comunicação costumam definir como uma 'bomba-relógio', representa um grave e urgente desafio", afirmou à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, a professora Hiroko Costantini, do Instituto de Iniciativas para o Futuro do Instituto de Gerontologia da Universidade de Tóquio, no Japão. Segundo a professora, "em 2021, o Japão registrou o menor nível histórico da sua taxa de natalidade, com apenas 811 mil nascimentos – o nível mais baixo desde 1899". Fim do Matérias recomendadas A taxa de nascimentos por mulher no Japão está muito abaixo dos 2,1 considerados necessários para manter uma população estável. No Peru, por exemplo, este número é de 2,1; na Argentina, de 1,9; e, no Brasil, cerca de 1,6. "A taxa de natalidade atual do Japão é de apenas 1,26 e o índice de envelhecimento da população disparou para 29,0%", afirma Costantini, "o que indica uma mudança demográfica sem precedentes." O governo japonês tem procurado aumentar a taxa de natalidade com incentivos econômicos, sem sucesso. E o que outros países podem aprender com essa crise, incluindo os latino-americanos? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O envelhecimento da população japonesa tem profundas implicações, segundo Costantini. Suas consequências vão da escassez de mão de obra até a queda do crescimento econômico. O Japão aprovou um orçamento recorde para o próximo ano fiscal, em parte, devido ao aumento dos custos da previdência social. "Ao longo dos anos, a taxa de envelhecimento do Japão aumentou significativamente, o que contribuiu para a estagnação econômica desde meados dos anos 1990", segundo a professora. "Além disso, o delicado equilíbrio entre as prestações e as contribuições para a previdência social, particularmente os gastos com assistência médica e atendimento de longo prazo, está se tornando cada vez mais precário. Estão surgindo dúvidas sobre a viabilidade do sistema de previdência social a longo prazo, com os gastos cada vez maiores com a assistência médica às pessoas mais idosas", explica Costantini. "As soluções futuras podem exigir consideráveis reduções de benefícios e reformas das pensões, incluindo o aumento da idade de aposentadoria para 70 anos, a fim de abordar esta questão multifacetária de forma eficaz." Para Costantini, os incentivos governamentais para promover o aumento da taxa de natalidade tiveram sucesso limitado. A professora destacou que, embora o alto custo de vida seja um fator que desencoraja algumas pessoas de terem filhos, o problema ultrapassa as preocupações financeiras. "A sociedade japonesa dá importância significativa ao casamento antes de ter filhos", segundo ela, "o que leva muitos casais a priorizar a procura do parceiro adequado antes de formarem família." "Pesquisas com mulheres solteiras entre 20 e 40 anos revelam diversas razões comuns para retardar ou renunciar ao casamento, que incluem a 'falta de oportunidades para conhecer possíveis parceiros', 'o desejo de manter o estilo de vida atual' e 'priorizar a realização pessoal'." "Além disso, a dependência social da família para assistência às pessoas idosas no Japão levou algumas mulheres a considerar a possível responsabilidade que elas poderiam representar para seus filhos no futuro", afirma a professora. Com tantos fatores complexos, combater a redução da taxa de natalidade no Japão exige uma abordagem integral, segundo a especialista. "Ela pode incluir políticas de redução dos encargos com assistência para as famílias e o oferecimento de incentivos financeiros, como salários para cuidadores familiares, a fim de criar um ambiente mais propício para a criação dos filhos." Outros países com baixas taxas de natalidade, como a Austrália e a Alemanha, optaram por facilitar a entrada de estrangeiros. A taxa de fertilidade da Austrália, por exemplo, é de 1,58, mas a sua população está crescendo graças à imigração. Por que o Japão não escolheu um caminho similar? "Historicamente, o Japão manteve uma posição passiva com respeito à imigração, que consiste em receber trabalhadores estrangeiros em vez de incentivar ativamente a imigração", explica Costantini. O resultado é que apenas cerca de 1,7% da população japonesa (ou cerca de 2,2 milhões de pessoas) é formada por pessoas nascidas no exterior ou cidadãos estrangeiros, segundo ela. "Este enfoque pode ser atribuído ao forte desejo japonês de preservar sua homogeneidade étnica. A relativa homogeneidade étnica do Japão costuma ser considerada um fator que colabora para a baixa incidência de conflitos abertos dentro da sociedade." "Para o governo, esta homogeneidade serve de ferramenta política valiosa para a unidade e a coesão nacional", explica a professora. A imigração poderia ser uma resposta parcial à falta de trabalhadores, mas o Japão pode priorizar o aumento da participação de mulheres e idosos no mercado de trabalho, segundo Costantini. "Considera-se que esta estratégia pode oferecer efeitos mais imediatos e substanciais, de forma alinhada ao contexto cultural e histórico do país", afirma a professora. Para Costantini, atrair mais mulheres para o mercado de trabalho com políticas favoráveis, como licenças-maternidade generosas, é uma parte fundamental da solução para a crise japonesa. Algumas empresas já adotaram este tipo de medidas. Mas a pesquisadora esclarece que "a questão do emprego feminino vai além das baixas taxas de participação no mercado de trabalho". "No Japão, aplica-se um incentivo fiscal para as pessoas com renda anual de menos de 1,03 milhão de ienes (cerca de US$ 7 mil ou R$ 35 mil). Isso faz com que uma quantidade considerável de mulheres tenha empregos não regulares – em meio período, por exemplo. Também é fundamental abordar esta situação." Por outro lado, as mudanças políticas, por si só, são insuficientes, segundo a professora. "É fundamental transformar a percepção social do Japão, de que a criação dos filhos é considerada responsabilidade principal das mulheres e os homens são vistos como 'ajudantes' e não cuidadores", explica Costantini. "É essencial mudar a mentalidade dos chefes e supervisores, especialmente dos homens de 50 a 60 anos, que talvez não tenham participado ativamente da criação dos filhos e subestimem sua importância." "Além disso, é preciso desenvolver políticas para apoiar as mulheres de 40 anos ou mais, que criaram seus filhos em uma época em que o apoio para a criação dos filhos era escasso. Por isso, elas interromperam suas carreiras e agora precisam de ajuda para formar modelos profissionais viáveis." Costantini acredita que o Japão poderia aprender com as medidas adotadas particularmente na França. "Durante minha estada em Paris, observei diversos casos de mulheres que conseguiram equilibrar as necessidades da criação de três filhos e dar continuidade às suas carreiras." "Na França, por exemplo, as famílias com crianças recebem, a partir do terceiro filho, benefícios consideráveis no imposto de renda, além de redução dos custos da merenda escolar e assistência às crianças fora do horário de trabalho nas escolas públicas." "Além disso, as famílias com três filhos ou mais têm acesso a uma série de outros benefícios, incluindo uma redução de 50% de quase todos os custos de transporte público e diversas outras regalias", segundo a professora. Costantini destaca que é fundamental reconhecer que nem todas as mulheres que desejam ser mães podem ter filhos e que é totalmente válido que algumas mulheres decidam não ser mães. "Mas, para aquelas mulheres que desejam ter filhos, fomentar uma norma cultural que incentive as famílias a terem três filhos e implementar políticas de apoio são considerações fundamentais." O Japão é um caso extremo, mas muitos outros países apresentam tendências similares. Depois do Japão, os países atualmente com maior índice de pessoas com 65 anos de idade ou mais são a Itália, com 24,5%, e a Finlândia, com 23,6%. E os percentuais aumentarão significativamente até 2050, segundo a ONU. Hong Kong e a Coreia do Sul irão superar o Japão, com cerca de 40% de pessoas com 65 anos ou mais. A Espanha irá ocupar o quinto lugar, com mais de 36%. "Em maior ou menor medida, a população de todos os países do mundo vive até idades mais avançadas e as mulheres e os casais estão tendo menos filhos. Portanto, o envelhecimento demográfico é um fenômeno mundial", afirma Jorge Bravo, especialista da Divisão de População do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais das Nações Unidas (DESA, na sigla em inglês). O relatório calcula que o número de pessoas com 65 anos ou mais em todo o mundo dobre nas próximas três décadas. Serão 1,6 bilhão de pessoas em 2050, quando os idosos representarão mais de 16% da população mundial. "O Japão, há décadas, é o país demograficamente mais envelhecido do mundo, mas muitos países da Europa, além de diversas nações da Ásia e das Américas, também detêm alto percentual da sua população na faixa de 65 anos ou mais", destaca Bravo. Nesta transição para sociedades mais envelhecidas, alguns países estão mais avançados do que outros. A América Latina, segundo o relatório da ONU, encontra-se em uma fase intermediária. "A América Latina tem níveis de fecundidade e mortalidade próximos da média mundial", afirma Bravo. "Por isso, o seu grau de envelhecimento, medido segundo a proporção de pessoas com 65 anos ou mais entre o total da população, é atualmente de 9,5%, muito próximo da média mundial de 10%." "Esta proporção se encontra em um nível intermediário entre os maiores índices do mundo (mais de 20% no Japão, na Coreia do Sul e em muitos países europeus) e os menores níveis da África subsaariana e partes da Ásia." Bravo destaca que, embora os países latino-americanos ainda estejam longe dos níveis de envelhecimento do Japão, é preciso prever esta possibilidade. Entre as medidas a serem adotadas, o especialista da ONU inclui as seguintes: a) ampliar a base de contribuição dos sistemas de previdência social, ajustando a idade de aposentadoria proporcionalmente ao aumento da expectativa de vida; b) investir em melhorar as condições de saúde ao longo da vida, sem se concentrar apenas em intervenções curativas; c) ampliar as oportunidades de emprego para as mulheres, que ainda enfrentam consideráveis desvantagens no mercado de trabalho em relação aos homens; e d) implementar medidas para facilitar a compatibilidade entre o trabalho e a criação dos filhos, com mais igualdade de gênero – ou seja, maior equilíbrio entre as mulheres e os homens no trabalho, dentro e fora de casa. Bravo cita os exemplos positivos de "países nórdicos e outros países europeus, que adotaram políticas mais generosas de apoio aos pais para que eles possam equilibrar a vida familiar e profissional." Estas políticas, segundo ele, "incluem programas para facilitar o emprego, licenças-maternidade e paternidade, horários de trabalho flexíveis, créditos fiscais e subsídios substanciais para assistência às crianças." O especialista da ONU menciona particularmente o exemplo da reforma do sistema de aposentadorias da Suécia. Aquele país "introduziu, nos anos 1990, um sistema de distribuição de contas virtuais, no qual as aposentadorias são concedidas proporcionalmente às contribuições individuais realizadas durante a vida profissional, ajustadas ao nível de expectativa de vida de cada grupo de aposentados". A América Latina também enfrenta o desafio de combater a desigualdade entre as pessoas desde o início da vida, para evitar o aprofundamento desse desequilíbrio, com muitas pessoas idosas vivendo na pobreza. Outro elemento importante, segundo Bravo, é a promoção da educação contínua. "A educação ao longo da vida, desde a idade pré-escolar até a capacitação contínua durante a vida profissional, é fundamental – especialmente nas sociedades modernas, caracterizadas pelo envelhecimento demográfico progressivo e pelo rápido progresso técnico e científico, que exige constante atualização de conhecimentos e habilidades, ao mesmo tempo em que permite que muitas pessoas trabalhem até idade avançada", destaca o especialista da ONU. "Entre os programas que tiveram certo grau de sucesso e podem ser de interesse geral, está, em primeiro lugar, o programa de capacitação e formação profissional do Instituto Nacional de Aprendizado da Costa Rica. Seu objetivo é melhorar as condições de trabalho de pessoas de diferentes idades que procuram emprego, ou que já trabalham em diferentes setores da economia, compatibilizando essa formação com as necessidades das empresas de produção e de serviços." O relatório das Nações Unidas indica que o envelhecimento da população não é apenas um desafio, mas também uma oportunidade para o bem-estar pessoal e o desenvolvimento socioeconômico. Bravo ressalta que o envelhecimento demográfico é produzido por duas tendências altamente positivas para a humanidade. Uma delas é a melhoria das condições de saúde e sobrevivência até idades cada vez mais avançadas; a outra é a ampliação do exercício dos direitos reprodutivos, para que as pessoas possam decidir quando devem ser pais e quantos filhos devem ter. O especialista acrescenta que a fase intermediária do processo de envelhecimento, que atravessam atualmente os países latino-americanos, pode durar várias décadas. E essa fase produz os chamados "dividendos demográficos". Em outras palavras, quando o número de pessoas jovens aumenta e a fecundidade se reduz, o país pode se beneficiar desse aumento da população ativa em relação ao número de pessoas com necessidade de assistência. E, nesta fase, é possível liberar recursos para investimentos em capital físico ou humano. Bravo destaca que, se os governos adotarem políticas de ampliação dos investimentos e das oportunidades de trabalho digno para homens e mulheres de todas as idades, "pode-se reduzir as desigualdades socioeconômicas e potencializar o impulso inicial do dividendo demográfico". Em nível global, o envelhecimento da população "em grande parte, é irreversível", segundo o relatório das Nações Unidas. Mas os seus impactos irão depender das ações tomadas pelos governos neste momento. A ONU destaca que, com planejamento adequado, os países podem enfrentar os desafios do envelhecimento e, ao mesmo tempo, melhorar as oportunidades de prosperidade para os seus habitantes. Mas postergar as medidas necessárias para adaptar-se ao envelhecimento da população "irá impor altos custos econômicos e prejuízos à saúde das gerações atuais e futuras".
2023-10-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqlwlzey2dgo
sociedade
Halloween: a curiosa origem do Dia das Bruxas
No entanto, sua origem pouco tem a ver com o significado moderno que essa festa adquiriu. O Halloween tem suas raízes não na cultura americana, mas no Reino Unido. Seu nome deriva de "All Hallows' Eve". Fim do Matérias recomendadas Mas uma coisa é a etimologia de seu nome, outra completamente diferente é a origem do Halloween moderno. Desde o século 18, historiadores apontam para um antigo festival pagão ao falar da origem do Halloween: o festival celta de Samhain (termo que significa "fim do verão"). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O Samhain durava três dias e começava em 31 de outubro. Segundo acadêmicos, era uma homenagem ao "Rei dos mortos". Estudos recentes destacam que o Samhain tinha entre suas maiores marcas a fogueira e celebrava a abundância de comida após a época de colheita. O problema com essa teoria é que ela se baseia em poucas evidências além da época do ano em que os festivais eram realizados. A comemoração, a linguagem e o significado do festival de outubro mudavam conforme a região. Os galeses celebravam, por exemplo, o "Calan Gaeaf". Há pontos em comum entre esse festival realizado no País de Gales e o Samhain, celebração predominantemente irlandesa e escocesa, mas há muitas diferenças também. Em meados do século 8, o papa Gregório 3º mudou a data do Dia de Todos os Santos de 13 de maio - a data do festival romano dos mortos - para 1º de novembro, a data do Samhain. Não se tem certeza se Gregório 3º ou seu sucessor, Gregório 4º, tornaram a celebração do Dia de Todos os Santos obrigatória na tentativa de "cristianizar" o Samhain. Mas, quaisquer que fossem seus motivos, a nova data para esse dia fez com que a celebração cristã dos santos e a do Samhain fossem unidas. Assim, tradições pagãs e cristãs acabaram se misturando. O Dia das Bruxas, o Halloween, que conhecemos hoje tomou forma entre 1500 e 1800. Fogueiras tornaram-se especialmente populares nessa festa. Elas eram usadas na queima do joio (que celebrava o fim da colheita no Samhain), como símbolo do rumo a ser seguido pelas almas cristãs no purgatório ou para repelir a bruxaria e a peste negra. Outro costume de Halloween era o de prever o futuro - previa-se a data da morte de uma pessoa ou o nome de seu futuro marido ou mulher. Em seu poema Halloween, escrito em 1786, o escocês Robert Burns descreve as formas pelas quais uma pessoa jovem podia descobrir quem seria seu grande amor. Muitos destes rituais de adivinhação envolviam a agricultura. Por exemplo, puxar uma couve ou um repolho do solo por acreditar que seu formato e sabor forneceriam pistas cruciais sobre a profissão e a personalidade do futuro cônjuge. Outros incluíam pescar com a boca maçãs marcadas com as iniciais de diversos candidatos e "ler" cascas de noz ou olhar um espelho e pedir ao diabo para revelar a face da pessoa amada. A comida era um componente importante do Halloween, assim como de muitos outros festivais. Um dos hábitos mais característicos envolvia crianças, que iam de casa em casa cantando rimas ou entoando orações para as almas dos mortos. Em troca, elas recebiam bolos de boa sorte que representavam o espírito de uma pessoa que havia sido liberada do purgatório. Durante o festival, as igrejas costumavam tocar seus sinos, às vezes por toda a noite. A prática era tão incômoda que o rei Henrique 3º e a rainha Elizabeth 1ª tentaram proibi-la, mas não conseguiram. Esse ritual prosseguiu, apesar das multas regularmente aplicadas a quem fizesse isso. Em 1845, durante o período conhecido na Irlanda como a "Grande Fome", 1 milhão de pessoas foram forçadas a imigrar para os Estados Unidos, levando junto sua história e tradições. Não é coincidência que as primeiras referências ao Halloween apareceram na América pouco depois disso. Em 1870, por exemplo, uma revista americana publicou uma reportagem em que o descrevia como feriado "inglês". A princípio, as tradições do Dia das Bruxas nos Estados Unidos uniam brincadeiras comuns no Reino Unido rural com rituais de colheita americanos. As maçãs usadas para prever o futuro pelos britânicos viraram cidra, servida junto com rosquinhas, ou doughnuts em inglês. O milho era um cultivo importante da agricultura americana — e acabou entrando com tudo na simbologia característica do Halloween americano. Tanto que, no início do século 20, espantalhos — típicos de colheitas de milho — eram muito usados em decorações do Dia das Bruxas. Foi nos EUA também que a abóbora passou a ser sinônimo de Halloween. No Reino Unido, o legume mais "entalhado" ou esculpido era o turnip, um tipo de nabo. Uma lenda sobre um ferreiro chamado Jack que conseguiu ser mais esperto do que o diabo e vagava como um morto-vivo deu origem às luminárias feitas com abóboras que se tornaram o principal símbolo do Halloween americano. A tradição moderna de "doces ou travessuras" também é americana. Há indícios disso em brincadeiras medievais que usavam repolhos, mas pregar peças tornou-se um hábito nessa época do ano entre os americanos a partir dos anos 1920. As brincadeiras podiam acabar ficando violentas, como ocorreu durante a Grande Depressão, e se popularizaram de vez após a 2ª Guerra Mundial, quando o racionamento de alimentos acabou e doces podiam ser comprados facilmente. Mas a tradição mais popular do Halloween, de usar fantasias e pregar sustos, não tem qualquer relação com os doces. Ela veio após a transmissão pelo rádio, nos Estados Unidos, de uma adaptação do livro Guerra dos Mundos, do escritor inglês H.G. Wells, que gerou uma grande confusão quando foi ao ar, em 30 de outubro de 1938. Ao concluí-la, o ator e diretor americano Orson Welles deixou de lado seu personagem para dizer aos ouvintes que tudo não passava de uma pegadinha de Halloween e comparou seu papel ao ato de se vestir com um lençol para imitar um fantasma e dar um susto nas pessoas. Mas a esta altura, muitos já pensavam que, assim como no livro, a terra estava realmente sendo invadida por marcianos. Hoje, o Halloween é o maior feriado não cristão dos Estados Unidos. Em 2010, superou tanto o Dia dos Namorados quanto a Páscoa como a data em que mais se vendem chocolates. Ao longo dos anos, foi "exportado" para outros países, entre eles o Brasil. Por aqui, desde 2003, também se celebra nesta mesma data o Dia do Saci, fruto de um projeto de lei que busca resgatar figuras do folclore brasileiro, em contraposição ao Dia das Bruxas. Em sua "era moderna", o Halloween continuou a criar sua própria mitologia. Em 1964, uma dona de casa de Nova York chamada Helen Pfeil decidiu distribuir palha de aço, biscoito para cachorro e inseticida contra formigas para crianças que ela considerava velhas demais para brincar de "doces ou travessuras". Logo, espalharam-se lendas urbanas de maçãs recheadas com lâminas de barbear e doces embebidos em arsênico ou drogas alucinógenas. Atualmente, o festival conserva pouco de sua origem, mas, apesar de ter ganhado nova roupagem, dá oportunidade para que adultos brinquem com seus medos e fantasias. Ele permite subverter normais sociais como evitar contato com estranhos ou explorar o lado sombrio do comportamento humano. Une religião, natureza, morte e romance. Talvez seja esse o motivo de sua grande popularidade.
2023-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn39d7d7dnlo
sociedade
Áudio, Em áudio | O suicídio de professora vítima de 'bullying de pais' na Coreia do SulDuration, 11,19
Episódio desencadeou onda de protestos de docentes; analistas dizem que cultura de reclamação dos pais é alimentada pela sociedade hipercompetitiva do país, onde quase tudo depende do sucesso acadêmico.
2023-10-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crg1y398mmdo
sociedade
Creatina: os efeitos reais do suplemento na performance e na saúde
Enquanto as tendências do mundo fitness mudam com frequência - e certas modalidades, técnicas e suplementos perdem o apelo em pouco tempo -, a creatina é uma das substâncias que permanecem firmemente recomendadas por profissionais de saúde devido aos seus benefícios amplamente estudados. A creatina é naturalmente produzida pelo corpo humano por meio de 3 aminoácidos (lisina, metionina, arginina) no fígado, rim e pâncreas - e a substância também chega em nosso organismo por meio de alimentos de origem animal, como carnes e leite. Uma parte da substância é excretada pela urina, e cerca de 60% a 80% é armazenada pelo organismo. "Ao usar a creatina na forma suplementar, esses estoques são preenchidos, o que ajuda na melhora do desempenho e força na realização de exercício físicos", explica Felipe Henning Gaia Duarte, presidente da SBEM-SP (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia – Regional São Paulo). A creatina aprimora a disponibilidade de energia necessária para manter a contração muscular durante atividades físicas exigentes. Fim do Matérias recomendadas Isso resulta em melhor desempenho físico, aumento da capacidade para realizar exercícios de resistência, aceleração da recuperação entre séries e contribuição para o desenvolvimento de força e massa muscular. A função primordial da creatina é sua conversão em fosfocreatina nas fibras musculares. A fosfocreatina atua como uma reserva imediata de energia, fornecendo grupos de fosfato que desempenham um papel chave na rápida regeneração do ATP, a principal fonte de energia nas atividades celulares. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Isso aumenta a capacidade de trabalho durante exercícios intensos, permitindo adiar a fadiga, o que se traduz em realizar mais repetições de exercícios ou séries com maior intensidade, fundamental para o ganho de massa muscular e força", descreve Fabrício Buzatto, médico do esporte e membro da SBMEE (Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte). O suplemento também aprimora a recuperação entre séries, permitindo treinar com maior intensidade e frequência, o que é essencial para o crescimento muscular. A necessidade de manter uma boa quantidade de massa muscular é essencial para a saúde e o bem-estar - e vai muito além da aparência física e do desempenho esportivo. Ela ajuda a controlar o peso, prevenir lesões, fortalecer ossos, regular os níveis de glicose e melhorar a saúde cardíaca. Além disso, contribui para o envelhecimento saudável, promove a função metabólica adequada [o equilíbrio saudável entre a energia que entra e sai, evitando problemas como obesidade ou desequilíbrios hormonais]. A creatina também pode atrair água para as células musculares, resultando em um ligeiro inchaço celular. É importante notar que esse aumento na retenção de água ocorre no interior das células musculares, não no tecido adiposo, portanto, a creatina não causa ganho de peso na forma de gordura. Após um período de 12 semanas, observou-se um aumento significativo na massa muscular e ganhos de força (medida pela carga dos exercícios supino, para peitoral, e agachamento, para membros inferiores). Alguns estudos sugerem ainda que a creatina pode ter benefícios para a função cerebral, ajudando a melhorar a cognição em situações de estresse, mas não existem comprovações que confirmem sua eficácia nesta aplicação específica. Alguns grupos específicos podem se beneficiar, como atletas de alto desempenho, pessoas que precisam ganhar massa muscular (incluindo idosos) e quem segue dietas específicas. No entanto, é sempre necessário consultar um profissional da saúde A creatina monoidratada é a forma mais comum e eficaz de suplemento. "A suplementação é particularmente interessante para vegetarianos e veganos, pois a creatina é encontrada principalmente em carnes e alimentos de origem animal", aponta Buzzato. A creatina é produzida sinteticamente em laboratórios. Substâncias como sarcosinato e cianamida sofrem reações químicas controladas que dão origem à molécula de creatina. Após as reações químicas, o produto final é submetido a procedimentos de purificação, destinados a eliminar subprodutos indesejados. Por fim, a creatina purificada é convertida em um pó seco por meio de um processo de secagem. Quanto às contraindicações, o médico afirma que a creatina é geralmente segura, com algumas restrições para pacientes com comprometimento renal. "Para aqueles com problemas hepáticos, a creatina pode ser usada com precaução, monitorando a função renal e hepática e sempre com acompanhamento médico." Se o objetivo é a melhora da performance, os médicos advertem que a creatina – sem a prática de exercício físico – não tem efeito. "Mesmo para quem recebe o diagnóstico de osteopenia [perda gradual de massa óssea] e faz a suplementação com creatina, mas não pratica exercício físico, a creatina não vai ter nenhuma função, nem na massa muscular e nem na saúde", aponta Duarte, presidente da SBEM-SP. O mesmo vale para quem sofre de sarcopenia, a perda de massa e força na musculatura esquelética. Nesses casos, o principal tratamento seria a prática de atividades físicas para fortalecer o corpo e uma dieta nutricionalmente rica - a creatina entraria apenas como uma ajuda extra para a construção de massa muscular. Em relação à dosagem, Fabrício Buzzato aponta que a prescrição pode variar a depender das características de cada pessoa, mas geralmente fica entre 3 a 5 gramas por dia. Seguindo a ingestão recomendada, o formato - cápsula ou pó - depende da escolha de cada um. As cápsulas podem ser uma alternativa mais prática, mas sua absorção é um pouco mais lenta, já que precisa se dissolver no estômago antes que o conteúdo seja absorvido. "Não é necessário exagerar na ingestão e não é preciso fazer ciclos de uso - o recomendado é usar continuamente conforme orientação médica", diz o médico. Há especialistas que advertem que o consumo em excesso, considerado como acima de 30 gramas por dia, a longo prazo, poderia resultar em disfunções hepáticas e renais, além de possíveis alterações no ritmo cardíaco. No entanto, evidências científicas sobre esse aspecto são escassas e não fornecem uma conclusão definitiva. Quanto à qualidade do produto, Buzatto adverte é essencial escolher marcas e laboratórios respeitáveis, com boas reputações e testes de pureza. De acordo com a regulamentação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), uma dose do suplemento deve fornecer de 1,5 gramas a 3 gramas de creatina. Ao contrário de alguns suplementos, como a vitamina C, em que não há necessidade de suplementação para a maioria das pessoas que tem uma dieta saudável, a creatina é um caso especial. "Para obter a quantidade recomendada de cinco gramas de creatina, você teria que consumir uma grande quantidade de carne [e ainda maior de outros alimentos, como leite]. A disponibilidade natural da creatina na natureza é limitada, o que torna a suplementação uma escolha sensata." Segundo Duarte, ao contrário de outros suplementos, a creatina tem uma ação contínua, então não há uma recomendação específica sobre consumi-la antes ou depois do treino. "O importante é tomar junto com alimentos que sejam fontes de carboidrato e de proteína, porque assim será mais retida pelo músculo."
2023-10-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxe36g83jl0o
sociedade
Região Norte é 8 anos mais 'jovem' que Sudeste: os achados do Censo 2022
A cada dez anos, o Brasil tem uma oportunidade inédita de olhar para a sua população com os censos demográficos. Nesta sexta-feira (27/10), chegou um novo capítulo do censo realizado entre agosto e outubro do ano passado e divulgado neste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): dados sobre a idade e o sexo dos brasileiros. Os novos dados confirmam tendências constatadas nos últimos Censos, como a de que a população brasileira está cada vez mais envelhecida. O Censo 2022 mostra que 10,9% da população é de idosos com mais de 65 anos (cerca de 22 milhões de pessoas) e 19,8% de crianças com até 14 anos (40 milhões). Fim do Matérias recomendadas Em 2010, o percentual e o número de idosos era menor, e o de crianças, maior. Naquele ano, 7,4% da população tinha mais de 65 anos (14 milhões) e 24% até 14 anos (45,9 milhões). A pirâmide etária do Brasil está cada vez mais diferente da pirâmide clássica, com uma grande base representando os mais novos. "A partir de 1940, tem início a transição demográfica do Brasil com a redução da mortalidade. Essa redução afeta a população de crianças primeiramente, e depois a queda da mortalidade segue em todos os grupos de idade", explicou à imprensa Izabel Marri, pesquisadora do IBGE e doutora em demografia. "A gente começa a ver o estreitamento da base da pirâmide no final da década de 1980 para 1990, como efeito da queda da fecundidade [número médio de filhos por mulher], iniciada em 1960 nas regiões mais industrializadas do país." "A estrutura populacional está em franco envelhecimento e tende a envelhecer mais." Outro dado que evidencia o envelhecimento do país é a chamada idade mediana, aquela que separa a metade mais jovem da metade mais velha da população. Essa idade no Brasil saltou de 29 anos em 2010 para 35 em 2022 — ou seja, aumentou seis anos de um Censo para o outro. A idade mediana também revela outra coisa: todas as regiões brasileiras estão envelhecendo, mas não na mesma medida. De 2010 para 2022, a idade aumentou em todas elas, mas elas têm valores diferentes. Em ordem crescente, a idade mediana no Norte é de 29 anos; no Centro-Oeste e Nordeste, 33 anos; no Sul, 36 anos; e no Sudeste, 37 anos. Os percentuais de crianças com até 14 anos e idosos com mais de 65 anos também colocam o Norte em uma ponta, e o Sudeste em outra. No Norte, as crianças são 25% da população, e os idosos, 7% Já no Sudeste, as crianças são 18% da população, e os idosos, 12%. Izabel Marri explica que as diferenças constatadas atualmente remontam, em parte, a tendências iniciadas nas décadas passadas. "A queda da fecundidade iniciada lá em 1960 se inicia nas regiões mais industrializadas do país, no Sudeste e Sul, entre as mulheres que residem nas áreas urbanas e que são mais escolarizadas", explica a demógrafa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Acompanhando esses padrões regionais, duas cidades no Rio Grande do Sul, Coqueiro Baixo e União da Serra, estão empatadas como as que têm a maior idade mediana do país: 53 anos. Já aquela com a idade mais jovem é Uiramutã, em Roraima, onde a mediana é de 15 anos. Mas olhando para os dados dos Estados e principalmente dos municípios, nota-se que há fatores particulares que influenciam na pirâmide etária da cidade, como a migração e a atividade econômica no local. O tamanho dos municípios também tende a fazer diferença, como mostra o chamado índice de envelhecimento — que é o número de idosos (com mais de 65 anos) para cada grupo de 100 crianças (de 0 a 14 anos). Considerando o tamanho das cidades, o índice mais alto está nos municípios com até 5 mil habitantes: 76,2 idosos por grupo de crianças. "O que acontece nos municípios muito pequenos é a saída da população em idade economicamente ativa, em idade reprodutiva, para cidades que oferecem maior chances de emprego e melhor as ofertas de serviço", explica a demógrafa do IBGE. Conforme o tamanho dos municípios aumenta a partir dos 5 mil habitantes, a proporção de idosos diminui — mas volta a aumentar nos municípios grandes, com mais de 100 mil habitantes. "Aí, a gente tem o efeito do número menor de crianças. São nessas regiões que o nível da fecundidade tende a ser mais baixo", diz Marri sobre as cidades grandes. Outra tendência que já vinha sendo observada em edições anteriores do Censo e que foi intensificada na edição atual é a da maior quantidade de mulheres em relação aos homens no Brasil. De acordo com o Censo 2022, 51,5% da população brasileira é formada por mulheres e 48,5% por homens. Há cerca de 104 milhões de mulheres no país — 6 milhões a mais do que homens. A pesquisa usa também um indicador chamado razão de sexo, que é o número de homens para cada 100 mulheres. Aliás, ao falar no "sexo" de uma pessoa, o IBGE considerou o sexo biológico no nascimento. Quando a razão de sexo fica abaixo de 100, quer dizer que há mais mulheres do que homens na população. Esse número caiu nas últimas décadas. Em 1980, eram 98,7 homens para cada 100 mulheres; em 2000, 96,9; e em 2022, 94,2. "Essa diminuição ao longo do tempo reflete a maior mortalidade dos homens em todos os grupos etários da população. Nascem mais meninos, mas morrem também mais meninos. E principalmente nas idades dos jovens adultos, o Brasil apresenta uma sobremortalidade masculina muito maior do que a população feminina", aponta Marri. "As causas de morte dessa população jovem adulta masculina estão relacionadas causas não naturais, que são as causas violentas", diz, referindo-se a mortes, por exemplo, por armas de fogo ou por acidentes de trânsito. "Embora a população apresente maior longevidade, as taxas de mortalidade dos homens são maiores do que das mulheres em todos os grupos, então quanto mais a gente envelhece, menor tenderá a ser a razão de sexo no país." Em todas as regiões, a razão de sexo é menor do que 100 — ou seja, há menos homens que mulheres. Por ser "uma das áreas mais envelhecidas do país", segundo a demógrafa, o Sudeste tem a menor razão de sexo: são 92,9 homens para cada 100 mulheres. Novamente, a nível mais "micro", importam as características dos municípios. Por exemplo, aqueles em que predominam atividades econômicas exercidas predominantemente por homens terão uma proporção maior deles. Isso acontece também em cidades que têm presídios, como Balbinos (SP), onde há 443 homens para cada 100 mulheres — a maior razão de sexo do país. No Brasil, há muito mais presos homens do que detentas mulheres. Dados de mortalidade, nascimentos, migração e fecundidade, apesar de estarem relacionados às informações divulgadas nessa sexta-feira, ainda não foram disponibilizados pelo Censo 2022. Espera-se que o efeito da pandemia de coronavírus se reflita nesses dados a serem publicados futuramente. Mas, por enquanto, as recém-divulgadas informações de idade e sexo da população — consideradas pelo IBGE o "cerne" do Censo — já poderão a ajudar no planejamento de políticas públicas fundamentais, como as que afetam escolas, hospitais e a previdência social.
2023-10-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72mg3j3x7eo
sociedade
Vídeo, O estudo que rebate ideia de que 'no passado, o mundo era melhor'Duration, 8,17
“A moral coletiva está em declínio.” Frases do tipo refletem um sentimento comum, de que valores sociais importantes se corromperam ao longo do tempo. No entanto, dois pesquisadores americanos acham que essa percepção parece ser, na verdade, uma ilusão coletiva, que acaba tendo efeitos nocivos para a sociedade e até para a política. A dupla começou analisando 177 pesquisas de opinião feitas entre 1949 e 2019, nos Estados Unidos, com uma amostra de 220 mil respondentes. A repórter Paula Adamo Idoeta conversou com um dos pesquisadores e explica os achados.
2023-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c519z7dq73do
sociedade
Vídeo, Deus na Constituição e religião na escola: a (lenta) separação entre Igreja e Estado no BrasilDuration, 8,26
Que atire a primeira hóstia quem nunca viu um crucifixo pendurado na parede em uma instituição pública no Brasil. Sim, em pleno século 21, mais de 130 anos depois de ser oficializada a separação entre Igreja e Estado, ainda há repartições e gabinetes da administração laica ostentando o símbolo do cristianismo. Para não dizer em políticos usando o nome de Deus em vão — no caso, para justificar suas decisões que deveriam se prezar pelo civil e não pelo religioso — e até cidades que afixam placas, em suas entradas, dizendo que "pertence ao Senhor Jesus" e outros que-tais. Mas como se deu a separação entre Igreja e Estado no Brasil? E por que essa ruptura foi tão gradual, a ponto de a religião ainda estar presente no dia a dia das instituições públicas? A repórter Letícia Mori conta sobre essa relação que permeia quase toda a história do Brasil.
2023-10-26
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0v7j944nx0o
sociedade
Os avós que não querem ser explorados: 'Cuidar dos netos ocasionalmente é diferente de virar cuidador principal'
Cayetana Campo deixou claro desde o início que não queria ser uma daquelas avós e comunicou isso aos quatro filhos, quando começaram a ter parceiros estáveis, ​​para evitar problemas futuros. "Eu fui clara sobre isso. Tenho quatro filhos e se você faz com um tem que fazer com todos", explica em conversa com a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Para essa mulher de 71 anos, que vive entre Benavente (no norte de Espanha) e Madrid, uma coisa é ajudar os filhos quando surge um problema específico e outra é estar sempre com os netos. Fim do Matérias recomendadas Embora admita que seus filhos gostariam de poder contar mais com ela, eles não reagiram mal. "Pra mim, essa de deixar o filho comigo e viver a vida, não é o certo. É por isso que eles têm filhos, certo? Para que eles possam cuidar deles." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Eu tinha quatro filhos e trabalhava, e eles (os avós) não cuidavam deles para mim. Eles cuidavam quando podiam." "Na minha época pode ter havido uma avó que poderia ter feito mais, mas em geral foi como o que aconteceu comigo: os avós não estavam lá o tempo todo como estão agora. Agora há avós que os estão criando." Cayetana teve o primeiro filho aos 23 anos e o quarto aos 41 anos. "Já fiquei ocupada por um bom tempo", diz ela, que tem seis netos. Longe do que muitos possam imaginar, ela tem um relacionamento muito bom com os netos, com quem passa bons momentos. "Temos uma relação avó-netos. Curtimos juntos, é para isso que servem os avós", afirma Cayetana ao contar como divide o seu tempo entre ajudar o filho na sua loja em Benavente, algo que adora, e passear com as amigas. "Em Madri faço ginástica de manhã no Parque do Retiro e à tarde ou fico em casa fazendo coisas ou encontro as amigas para ir ao teatro ou dar um passeio", detalha. Ela tem muitas amigas que, assim como ela, se recusam a cuidar dos netos o tempo todo, mas também conhece avós que cuidam dos netos em tempo integral, porque senão os filhos vão ficar bravos com eles. "Cuidam um pouco como uma obrigação e isso não pode acontecer", comenta. "Conversando com as pessoas você percebe que sempre tem alguém explorado." “Eles se sentem culpados por não quererem cuidar tanto dos netos”, explica à BBC News Mundo o psicólogo Ángel Rull sobre as pessoas que ele atende. “Eles chegam como se houvesse algo de errado com eles por não querer cuidar dos netos, por imporem limites, por precisarem de um pouco mais de espaço, de poder viajar”. “E é aí que a gente realmente se reestrutura para que eles saibam que o que eles sentem é normal, mas que socialmente não falamos tanto sobre isso, porque somos tradicionalmente obrigados a cuidar do silêncio, do ‘minha obrigação é cuidar de você e não posso reclamar disso’”, pontua, sobre um tema que continua tabu, como pôde constatar a BBC News Mundo ao procurar avós que decidiram estabelecer limites. Sempre houve avós que se recusaram a estar o tempo todo com os netos, mas quando questionados se estariam dispostos a contar isso publicamente, a maioria recusou. O medo do que as pessoas vão dizer continua a ter um grande peso. Uma coisa é comentar sobre o tema confidencialmente e outra é contar ao mundo. “É muito difícil para eles dizerem: ‘Bom, eu não cuido dos meus netos’, porque parece que dizer isso é como dizer que não quer contribuir com a família”, afirma José Augusto García Navarro, presidente da Sociedade Espanhola de Geriatria e Gerontologia. Manuel Sánchez Pérez, presidente da Sociedade Espanhola de Psicogeriatria, enxerga a situação da mesma forma: “O avô muito autônomo, que faz a vida, que viaja, que não quer começar a assumir aquela função de cuidar dos filhos, ainda é visto culturalmente como um avô, digamos, egoísta. Um avô que prioriza o próprio conforto, o próprio bem-estar e que, um pouco, deixa os filhos à margem. É uma avaliação injusta em muitos casos.” “As pessoas que optam por esse tipo de posição estão defendendo o seu direito a uma velhice digna e saudável, e a poder usufruir do tempo extra que o não ter de trabalhar lhes proporciona, e isso é perfeitamente legítimo”, acrescenta. Os especialistas insistem que a melhor alternativa é encontrar um meio caminho, em que as pessoas mais velhas possam desfrutar da autonomia, do seu tempo e da saúde que possuem e também possam, de forma razoável, ser um ponto de apoio para os seus filhos. Porém, em muitas situações não há esse equilíbrio. Na Europa, um em cada quatro avós cuida dos netos e faz isso, em média, sete horas por dia, porcentagem que aumenta nos períodos de férias, segundo a Pesquisa de Saúde, Envelhecimento e Aposentadoria realizada no continente. A dificuldade de conciliar vida profissional e familiar devido à escassez de creches públicas e aos longos horários, à precariedade laboral, bem como à falta de recursos econômicos de muitas famílias e ao aumento da esperança de vida, que em 2020 era de 82,2 anos em Espanha, segundo dados oficiais, fez dos avós um fator fundamental no cuidado das crianças, chegando ao extremo em alguns casos. “A síndrome do avô explorado é aquela obrigação moral, aquela pressão que os avós sentem para cuidar dos netos, que pode vir imposta diretamente pelos filhos ou porque enxergam que os filhos realmente precisam de ajuda, porque estão em situação de precariedade no trabalho. ou numa situação de necessidade de conciliação impossível com os empregos que ocupam”, explica García Navarro. Essa necessidade de as famílias contarem com os avós na criação dos filhos não é algo novo, mas, segundo Sánchez Pérez, é uma situação que “embora sempre tenha ocorrido, é cada vez mais observada.” “Constatou-se que uma percentagem significativa de idosos pode passar entre 6 ou 7 horas por dia, o que é quase um dia útil de qualquer outro trabalho, cuidando dos netos. E de fato a proporção, segundo diversos estudos realizados, de avós que fazem isso voluntariamente ou por prazer ou porque decidem, é muito pequena. Apenas 1 em cada 9 que fazem com essa intensidade faz por prazer, por decisão própria”, detalha. “Agora há mais casos, porque há mais jovens que têm empregos mais precários e com conciliação mais difícil, embora a lei tente garantir a conciliação, na prática nem sempre isso acontece. Além disso, o seu poder de compra é menor e isso os impede de receber apoio. Acho que isso acontece claramente por esses dois motivos”, explica García Navarro. Entretanto, Rull destaca que algo importante é que agora estamos conscientes do problema. “Nas últimas décadas nem sequer pensávamos que os avós pudessem estar sofrendo com isso. Agora vemos que existe sofrimento e é por isso que tentamos estabelecer limites.” Isso acontece, sobretudo, nos países mediterrânicos e na América Latina. “Nesses países existe mais o sentimento de que somos todos uma família e que todos devem contribuir em qualquer idade”, afirma García Navarro. “Essa obrigação moral de cuidar dos netos muitas vezes acaba resultando em uma situação de maior estresse do ponto de vista psicológico que pode ter repercussões reais como a ansiedade. Em alguns casos pode levar à insônia e, principalmente, àquela sensação de cansaço e sobrecarga”, acrescenta. A insônia e a fadiga intensa podem causar efeitos colaterais, como erros de direção ou falhas de memória devido ao estresse e à ansiedade. Além disso, se o idoso tiver doença cardíaca isquêmica, pode ter maior propensão a sofrer um ataque cardíaco. “A saúde física deles está sempre deteriorada porque uma pessoa de uma certa idade sofre mais cansaço, mais dores ou doenças, que pioram. E depois a nível psicológico aparece com muita frequência a frustração, a raiva, a culpa, a tristeza , ansiedade e o estresse. Normalmente são emoções que variam entre a tristeza e a raiva”, afirma o psicólogo Rull. “A nível psicológico seria próximo do que se conhece como síndrome de burnout, quando se fica sobrecarregado por uma tarefa com pouca gratificação”, explica Sánchez Pérez, ao mesmo tempo que insiste em ter em conta que existe uma grande diversidade de pessoas com mais de 65 anos de idade. A Sociedade Espanhola de Geriatria e Gerontologia (SEGG) recomenda cuidar da comunicação com os filhos para informá-los sobre quaisquer problemas que possam surgir, tendo espaço e tempo próprios, conhecendo as condições de saúde de cada um e até onde podem ir. E a SEGG ressalta que o mais importante é aprender a dizer “não” aos filhos. “É importante que você aponte seus limites desde o primeiro momento e os deixe claros desde o início. Diga: 'Vou poder ficar com os netos um dia por semana, que será terça-feira', por exemplo, ou 'todos os dias das 10 às 12, mas depois não', porque aí sempre virão exceções e você muitas vezes terá que cobrir essas exceções, mas faça um acordo muito bom com seus filhos. Diga: ‘Sim, quero ou não quero, mas se quero são nessas condições’”, explica o presidente da SEGG. “É importante também que você entenda que não está fazendo nada de errado ao fazer isso, mas sim está fazendo uma coisa muito boa para todos, porque quando estão sobrecarregados também cuidam mal do neto. Não há nada de negativo em estabelecer limites”, afirma.
2023-10-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72qynyn5n1o
sociedade
Áudio, Em áudio | As profundas e duradouras consequências de ter 'filho favorito' na famíliaDuration, 15,21
Favoritismo está presente em cerca de 65% das famílias e foi identificado e estudado em muitas culturas diferentes. É um fenômeno comum, que pode prejudicar bem-estar dos filhos ao longo de toda vida.
2023-10-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pj6dx9ejdo
sociedade
As profissões e empresas que não podem abrir mão do papel
Durante 400 anos, os hidrógrafos britânicos criaram mapas em papel dos mares e oceanos do mundo. Cada um captura detalhes de costas, baías, estreitos ou canais. Um documento como este é repleto de informações, onde é possível observar a profundidade do mar em vários locais, a posição das rochas ou locais onde as embarcações não podem lançar âncoras. “Eles fornecem uma imagem incrivelmente rica para o marinheiro, permitindo-lhe realizar seu trabalho”, diz Steven Bastable, gerente de produto do Escritório Hidrográfico do Reino Unido (UKHO, por sua sigla em inglês). As cartas náuticas no passado eram tão significativas que foram frequentemente reproduzidas em retratos dos maiores marinheiros, incluindo James Cook. Algumas das cartas do próprio Cook foram eventualmente publicadas pelo UKHO. Hoje, as cartas náuticas são mantidas escrupulosamente atualizadas. Todos os dias, a equipe do UKHO faz correções ou melhorias em algumas das 3.500 cartas que mantém, como adicionar a localização de novos naufrágios perigosos e cabos submarinos ou até mesmo alterações nas costas. Um boletim semanal comunica os ajustes aos navios de transporte em todo o mundo e os membros da tripulação devem então pegar uma caneta e corrigir manualmente quaisquer cópias em papel desatualizadas. Fim do Matérias recomendadas No entanto, a última dessas atualizações semanais está no horizonte. O UKHO está gradualmente se preparando para abandonar o seu serviço de cartas em papel e mudar para versões apenas digitais, que seriam acessadas por meio de sistemas de visualização de cartas eletrônicas nos navios. Anteriormente, o UKHO planejava fazer isso em 2026 – mas o prazo foi recentemente alterado. “Ficou claro que havia um problema e que, se agíssemos muito rápido, haveria um risco muito real de deixarmos marinheiros para trás”, diz Bastable. "Isso é simplesmente algo que não estamos preparados para fazer." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A transição para o digital porá fim à tradição de produção de cartas hidrográficas em papel, sob qualquer formato. Originalmente, elas eram desenhadas à mão até que as máquinas de impressão e, mais tarde, os softwares de computador assumissem o controle. No ano passado, o UKHO encerrou o seu próprio serviço de impressão de cartas em papel. Os gráficos em “papel” que ela produz hoje são, na verdade, arquivos digitais impressos pelos clientes. Acontece que muitos navios ainda precisam de cartas em papel. Devido às regulamentações marítimas, os navios devem possuir algum tipo de carta e, apesar da disponibilidade de versões eletrônicas — que não precisam ser atualizadas manualmente todas as semanas — as cartas em papel continuam sendo usadas como backups, ou, em alguns casos, como único recurso a bordo. A Royal Yachting Association também disse que, apesar da retirada das cartas em papel do UKHO, continuará ensinando técnicas de navegação que as utilizam. O papel, ao que parece, ainda domina as ondas. E isso não é tudo. Uma tradição de 2.000 anos, o papel feito de árvores ainda é considerado crucial para inúmeras empresas e sistemas governamentais em todo o mundo, apesar do impacto ambiental de sua produção. Durante décadas, computadores, smartphones e tablets forneceram uma alternativa. Seus displays iluminados podem ser virtualmente escritos ou apagados com o pressionar de alguns botões ou toques na tela. Mas nada como a flexibilidade nítida de uma folha esbranquiçada segurada na mão ou a forma como a tinta recém-depositada da caneta favorita penetra na superfície fibrosa — sem dúvida não há nada como o papel. É verdade que a utilização do chamado papel gráfico — isto é, papel utilizado principalmente para transmitir informação impressa — está em claro declínio há anos. As vendas de gráficos em papel no UKHO estão em 17% do que eram há apenas uma década, diz Bastable. Hoje, eles representam menos de 16% de todos os gráficos que a agência vende. No entanto, o papel é teimoso. Pode ser extraordinariamente difícil para muitas organizações ficar totalmente sem ele. Isso pode ser uma questão de hábito, mas em alguns casos há fortes razões para mantê-lo — incluindo estética, funcionalidade e até segurança. É estranhamente difícil abrir mão do papel. “Viu como essa fileira de caixas douradas nem é visível do outro lado da página? Isso é possível por causa da espessura do papel”, diz Erin Smith, uma popular youtuber que tem um canal sobre papelaria. Ela explica as virtudes do papel de boa qualidade em um de seus vídeos sobre bullet journaling — a prática de projetar e manter uma agenda pessoal ou diário em um caderno. Os diários com marcadores geralmente são criados com a ajuda de tintas pesadas e coloridas ou adesivos colados nas páginas do caderno. É apenas um exemplo de utilização especial do papel que surgiu num mundo cheio de alternativas digitais. Smith, que mora na Austrália, disse à BBC Future que existe uma indústria artesanal de fabricantes de artigos de papelaria de alta qualidade, que direcionam seus produtos para aqueles que desejam usar papel, lápis e canetas de verdade, ou até mesmo tinta aquarela em diários com marcadores para ajudá-los no dia a dia. Geralmente, o melhor papel para caderno tem uma gramatura de 160 gramas por metro quadrado, diz Smith — cerca de duas vezes a espessura do papel usado em uma impressora de escritório padrão. "Agora, quando eu pego um pedaço de papel de cópia impresso, eu meio que me encolho um pouco", confessa Smith. Mas essa fixação pelo papel físico não significa que ela evite tudo o que é digital. Afinal, Smith é uma youtuber e até prefere ler e-books a livros de papel. Mas fazer um diário é uma oportunidade de construir algo criativo longe da tela de um computador ou smartphone — e para isso ela quer os melhores materiais possíveis. Smith sugere que, além de ser uma experiência agradável e consciente, há um benefício real ao selecionar o papel para tarefas como essa. “Acho que se eu salvar algo na minha agenda do Google, vou me lembrar só se eu verificar”, diz ela. “Mas se eu anotar, não preciso checar.” Poderia haver algo na experiência de Smith com calendários de papel versus calendários digitais. Um estudo publicado em 2021 indicou que o aumento da atividade cerebral está associado à lembrança de informações depois de escritas à mão, em vez de registrá-las em um smartphone ou tablet. A pesquisa baseou-se em experiências que envolveram um pequeno grupo de estudantes e recém-formados no Japão, embora os autores não tenham explorado o impacto mais amplo ou a longo prazo que esta atividade cerebral adicional poderia ter na aprendizagem. Há uma grande diferença entre as informações apresentadas no papel e as apresentadas na tela, diz Richard Harper, especialista em interações entre humanos e computadores da Universidade de Lancaster. Em 2002, Harper e a sua coautora Abigail Sellen, uma cientista cognitiva e informática que agora trabalha na Microsoft, publicaram O Mito do Escritório Sem Papel, sobre a razão pela qual o papel continuava a ser tão vital em muitas empresas. “A mente compreende melhor argumentos elaborados, complexos e profundos que se estendem por várias páginas de papel”, diz Harper, observando que quando você tem algo particularmente matizado e elaborado para dizer, colocá-lo no papel pode ser uma boa ideia. Em muitos casos, porém, a confiança contínua no papel não tem necessariamente a ver com uma apreciação genuína de seus atributos. Assim como o UKHO, muitas empresas tentam tornar-se em grande parte ou exclusivamente digitais, mas encontram obstáculos. O governo dos EUA deverá deixar de usar papel, mas isso está demorando mais do que o esperado. No ano passado, a Administração Nacional de Arquivos e Registos descobriu que um terço do governo federal ainda não tinha adotado os registros eletrônicos e a administração foi forçada a prolongar o prazo em 18 meses, até 30 de Junho de 2024. O papel também desempenha uma função em setores mais clandestinos do governo. No Reino Unido, por exemplo, a Sede de Comunicações do Governo (GCHQ) mantém milhares de arquivos secretos em papel num cofre, enquanto o serviço de segurança do MI5 afirma no seu site: "Os arquivos em papel continuam a ser importantes para o MI5". O Serviço de Guarda Federal da Rússia (FSO), responsável pela segurança do Kremlin, voltou a usar máquinas de escrever em 2013, supostamente para evitar vazamentos de computadores. Separadamente, o setor de logística depende há muito tempo da papelada para documentar o trânsito de mercadorias, o que leva a pesados rastros de papel e, às vezes, a um processamento ineficiente. Embora isso esteja começando a mudar, é notoriamente difícil acabar com os registros em papel neste setor, dizem especialistas do setor. A área da saúde também depende historicamente do papel. Das prescrições à documentação hospitalar, o papel perseverou até o século 21. Para dar um exemplo, a maioria dos lares de idosos no sudeste da Escócia ainda utilizam sistemas de gestão baseados em papel, de acordo com um estudo publicado no ano passado. Mesmo quando os hospitais mudam para o digital, podem enfrentar o fardo de armazenar documentos históricos em papel relativos ao atendimento offline do paciente. Na União Europeia, existem 11 países que ainda utilizam papel para receitas médicas em vez de sistemas digitais. Nos EUA, o papel continua sendo usado em algumas partes do sistema de saúde, apesar das tentativas de modernização. Descobriu-se que 96% dos hospitais e 78% dos médicos americanos utilizavam registos de saúde eletrônicos em 2021. O papel ainda é considerado o meio de backup sempre que os sistemas eletrônicos falham — o que, naturalmente, acontece. Após um ataque cibernético a uma pequena comunidade do Alasca em 2018, os funcionários municipais mudaram rapidamente para formulários em papel e máquinas de escrever quando os computadores ficaram offline. Até a Wikipédia, um gigantesco recurso on-line continuamente atualizado e editado por pessoas de todo o mundo, tem um plano de emergência chamado “Política de Gerenciamento de Eventos de Terminal”. Durante alguma possível reviravolta apocalíptica futura, como um "colapso social iminente" ou "um evento iminente de nível de extinção", os milhões de editores da Wikipédia seriam encarregados de imprimir várias páginas da enciclopédia on-line para a posteridade — porque o papel, em última análise, é considerado confiável. Talvez não seja tão surpreendente, então, que no episódio "The Disease" de Star Trek: Voyager, a capitã Kathryn Janeway lembre a um de seus tripulantes que o manual da Frota Estelar sobre relacionamentos pessoais tem três centímetros de espessura. Esse comentário sugere fortemente que o manual, mesmo no ano de 2375, é impresso no papel. O papel parece ter o hábito de permanecer por perto. Oskar Lingqvist, líder global de papel e produtos florestais da consultoria de gestão McKinsey, lembra-se do maço de 100 páginas com materiais de apresentação que ele e seus colegas levavam para reuniões com clientes. Os gráficos, os dados, todos impressos e distribuídos nas mesas da sala de reuniões. “Esse é um segmento de uso de papel que eu diria que está quase acabando”, diz. Mas livrar-se do último recibo impresso ou formulário? "Isso vai levar muito tempo." O papel gráfico está encontrando nichos, como os mencionados neste texto, onde persiste. Mas a tendência geral é de um claro declínio, salienta Lingqvist. E esse declínio acelerou com a erupção da pandemia de covid-19. “Mesmo o nosso cenário mais negativo não foi suficientemente negativo em comparação com o que aconteceu no mercado”, afirma, acrescentando que a taxa de declínio está agora ficando mais branda novamente e provavelmente regressará a uma queda anual de cerca de 5%, a nível global. Hoje em dia são impressos muito menos jornais e revistas do que há apenas uma ou duas décadas, por exemplo, o que é um fator importante. O aumento do trabalho remoto e os esforços de sustentabilidade empresarial destinados a reduzir o consumo de papel também desempenham um papel importante. Mas a pesquisa da McKinsey também revela que outros tipos de papel não gráficos, especialmente embalagens de papelão, estão ganhando espaço. Dados da empresa sugerem que a produção deste tipo de papel quase duplicou entre 2000 e 2020 na Europa. Na China, no mesmo período, quase quadruplicou. O boom das compras online associadas aos bloqueios da covid-19 é um dos motivos. Embalagens para alimentos, embalagens para comércio eletrônico e papel de seda — todos esses tipos de papel são cada vez mais procurados, afirma Alice Palmer, consultora freelancer para a indústria florestal com sede no Canadá. O papel e o papelão são considerados mais sustentáveis, mas essa distinção não é tão clara como muitos pensam. O fato de muitos retalhistas estarem, no entanto, abandonando as embalagens de plástico representa um desafio industrial para a indústria do papel porque existem duas formas principais de fabricar papel, explica Palmer. Um envolve o uso de produtos químicos para digerir a madeira até transformá-la em polpa. Isso tende a produzir papel de alta qualidade cheio de fibras fortes. O outro método utiliza calor e ação de moagem para formar a polpa, sem auxílio de produtos químicos. O papel que você obtém desse tipo de polpa é um pouco menos robusto. Durante anos, porém, funcionou bem para jornais e brochuras. Embora a polpa mecânica seja menos procurada hoje em algumas regiões, as fábricas que a produzem não conseguem serem facilmente convertidas para a produção de pasta química, diz Palmer. “Você tem que reconstruir a fábrica”, diz ela. “São milhões ou até bilhões de dólares em investimento.” O papelão é muito procurado, mas requer fibras fortes, o que significa que os antigos produtores de jornais têm dificuldade em dominar o mercado de materiais de embalagem. Mas eles podem fornecer um componente-chave no papelão ondulado: “a camada ondulada no meio”, diz Palmer. A empresa papeleira canadiana Catalyst Paper, com quem Palmer trabalhou num projeto de investigação em 2015, é um exemplo de quem fez exatamente esta transição em algumas das suas fábricas. Se você expandir “papel” para todos os seus possíveis usos, desde cadernos sofisticados até embalagens da Amazon, fica claro que o material está mais popular do que nunca. Mas a nossa dependência do papel como meio descartável para transportar alimentos ou mercadorias é problemática, diz Sergio Baffoni, coordenador de campanha da Environmental Paper Network (EPN), uma rede mundial de organizações focadas em tornar a indústria de celulose e papel o mais sustentável possível. A EPN informa que 3 bilhões de árvores são cortadas todos os anos apenas para satisfazer a procura por embalagens. “Isso é uma loucura”, diz Baffoni. “Só jogar fora — não tem sentido.” No Reino Unido e nos EUA, cerca de um terço dos resíduos de embalagens de papel e papelão não é reciclado. Baffoni diz que o papelão é um material de embalagem barato apenas porque o seu verdadeiro custo — para os ecossistemas e para a capacidade do nosso planeta de sequestrar carbono através da fotossíntese das árvores — é “externalizado”. Seria melhor encontrar materiais de embalagem reutilizáveis e mantê-los, sugere ele. Mesmo os recipientes de plástico seriam preferíveis em relação ao papelão, argumenta ele, se pudessem ser usados repetidamente, do que os de papelão descartáveis. O papel provavelmente nunca sairá completamente de moda. Mas dado que em todo o mundo derrubamos uma área de floresta maior que três vezes o tamanho do Estado de São Paulo, 800.000 km2, em apenas 60 anos, há muitos que argumentam que cortamos árvores rápido demais por algumas folhas de papel. Outros poderiam contestar que, às vezes, vale a pena: pelo cheiro de um livro novo, pela carta manuscrita para um velho amigo ou pelos registros que devem sobreviver mesmo em um futuro apocalíptico, quando o último computador e banco de dados falharem.
2023-10-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv20ezxy552o
sociedade
Áudio, Em áudio | Como ‘ilusão do fim da história’ afeta nossas escolhas sociais e profissionaisDuration, 8,47
Quando olhamos para o futuro, é difícil imaginar transformações nas nossas características principais - é como se o sentido que temos de nós mesmos tivesse chegado a seu destino. Por quê?
2023-10-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3gljxjpd87o
sociedade
Coleção de arte 'imprestável' de Berlusconi vira dor de cabeça para herdeiros
Segundo Vittorio Sgarbi, as 25 mil pinturas são, em grande parte, obras de baixa qualidade e de pouco ou nenhum valor comercial. O ex-primeiro-ministro italiano comprou muitas de suas pinturas e esculturas em programas noturnos de televendas. Gerenciar a extensa coleção está sendo uma dor de cabeça para os herdeiros dele. As compras do bilionário estão guardadas em um armazém de 3.200 m² próximo à mansão dele, na região de Milão. Elas incluem pinturas de Madonas, imagens de mulheres nuas e paisagens urbanas de Paris, Nápoles e Veneza, entre outras, segundo o jornal La Repubblica. Fim do Matérias recomendadas Mas a coleção não impressionou Sgarbi. Ele disse a uma revista que “pessoas que sabem pouco sobre arte” poderiam gostar de visitar um museu que contenha as obras. Há talvez seis ou sete pinturas, entre essas 25 mil, com algum valor artístico, acrescentou ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Estima-se que a coleção inteira valha cerca de 20 milhões de euros (R$ 107 milhões), uma média de 800 euros (R$ 4.280) por pintura. Berlusconi, que dominou a política italiana desde o início da década de 1990, tinha um patrimônio líquido de cerca de 6 bilhões de euros (R$ 32 bilhões) no momento da sua morte. No entanto, ele também possuía pinturas de qualidade superior. A casa principal dele foi decorada com obras do pintor renascentista Ticiano e do holandês Rembrandt. Cesare Lampronti, um negociante de artes radicado em Londres que manteve uma relação estreita com Berlusconi durante três décadas, disse à BBC que o bilionário era um comprador compulsivo. “Ele gostava de comprar retratos de mulheres que dava de presente aos amigos. Quando era mais jovem, comprava em galerias e em revendedores, mas mais tarde passou a comprar em leilões de TV”, disse Lampronti. "Ele sabia que o que estava comprando não valia nada." Os herdeiros de Berlusconi estão descobrindo que a enorme coleção é um fardo pesado. O armazém que a abriga custa cerca de 800 mil euros (R$ 4,2 milhões) por ano para funcionar, disse o La Repubblica. Os cupins já destruíram parte da coleção. Em alguns casos, o custo para exterminar as pragas supera o valor das pinturas.
2023-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1wq94490v2o
sociedade
Quanto custa o 'uísque mais caro do mundo' que vai a leilão no Reino Unido
Uma garrafa de uísque single malt da destilaria The Macallan será leiloada em novembro e tem um preço estimado em até 1,2 milhão de libras esterlinas, o equivalente a R$ 7,3 milhões, segundo informou a casa de leilões Sotheby's. De acordo com especialistas, o Macallan 1926 era conhecido por ser o uísque escocês mais procurado. Isso foi confirmado quando uma garrafa semelhante foi vendida em 2019 pelo valor recorde de 1,5 milhão de libras (R$ 9,2 milhões). Essa venda será a primeira de uma garrafa desse barril desde então. O famoso barril foi destilado em 1926 e envelhecido em tonéis de xerez durante seis décadas antes de ser engarrafado em 1986. Apenas 40 garrafas foram produzidas e não foram disponibilizadas para compra — em vez disso, algumas foram oferecidas aos principais clientes da The Macallan. Fim do Matérias recomendadas Os valores arrecadados nos leilões dessas garrafas ao longo dos anos foram extraordinários. O Macallan Adami 1926 será vendido na Sotheby's, em Londres, no dia 18 de novembro, com uma estimativa de valor de 750 mil libras (R$ 4,6 milhões) a 1,2 milhão de libras (R$ 7,3 milhões). Jonny Fowle, chefe global de bebidas exóticas da Sotheby's, disse: “O Macallan 1926 é o uísque que todo leiloeiro deseja vender e que todo colecionador deseja possuir". “Estou entusiasmado por levar uma garrafa a um leilão da Sotheby’s pela primeira vez desde que estabelecemos o recorde desta série há quatro anos", disse. A Sotheby's disse que as 40 garrafas do barril de 1926 foram rotuladas de maneiras diferentes. Um número máximo de 14 foram decoradas com os rótulos icônicos Fine e Rare (Fino e Raro), um dos quais foi a garrafa recorde vendida em 2019. Duas garrafas foram lançadas sem nenhum rótulo. Destas, uma foi pintada à mão pelo artista irlandês Michael Dillon. Quando vendida em 2018, tornou-se a primeira garrafa de uísque a ultrapassar o valor de 1 milhão de libras (cerca de R$ 6 milhões). Das garrafas restantes, 12 foram rotuladas pelo artista pop Peter Blake e outras 12 foram desenhadas pelo pintor italiano Valerio Adami. Embora tenham sido produzidas 12 garrafas de The Macallan Adami 1926, não se sabe quantas delas ainda existem. Diz-se que uma delas foi destruída em um terremoto no Japão em 2011, e acredita-se que pelo menos uma tenha sido aberta e consumida.
2023-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckd9zyvxgwjo
sociedade
EUA retiram sanções ao petróleo da Venezuela: entenda acordo que levou à decisão
O governo dos Estados Unidos anunciou nesta quarta-feira (18/10) a suspensão temporária das sanções ao petróleo, gás e ouro venezuelanos. A medida, anunciada pelo Departamento do Tesouro americano, foi adotada em resposta ao acordo alcançado pelo governo de Nicolás Maduro com a oposição para estabelecer garantias eleitorais tendo em vista as eleições presidenciais de 2024. "Os Estados Unidos celebram a assinatura de um acordo na rota eleitoral entre a Plataforma Unitária e os representantes de Maduro. Dessa maneira, o Departamento do Tesouro dos EUA autoriza transações relacionadas ao setor de petróleo, gás e ouro da Venezuela, além de eliminar a proibição do comércio secundário desses recursos." Uma primeira licença autoriza transações relacionadas com o setor de petróleo e gás por um período de seis meses. A segunda dá luz verde às operações com a Minerven — empresa estatal venezuelana de mineração de ouro — que, segundo o Tesouro dos EUA, permitirá reduzir o mercado negro. Além disso, duas licenças foram modificadas para eliminar a proibição de negociar no mercado secundário de determinados títulos soberanos venezuelanos, assim como as dívidas e ações da PDVSA, a petroleira estatal venezuelana. Fim do Matérias recomendadas No entanto, a proibição para negociar no mercado primário de títulos venezuelanos permanece. O subsecretário do Tesouro para Terrorismo e Inteligência Financeira, Brian E. Nelson, esclareceu que as medidas poderão ser modificadas ou revogadas a qualquer momento, caso os representantes de Maduro não cumpram seus compromissos. "Todas as outras restrições impostas pelos Estados Unidos à Venezuela permanecem em vigor e continuaremos responsabilizando os maus atores. Apoiamos o povo venezuelano e apoiamos a democracia venezuelana." Vários senadores republicanos criticaram duramente a decisão do governo Biden. “Seu último truque é aliviar as sanções ao regime brutal de Nicolás Maduro na Venezuela. Os Estados Unidos nunca deveriam implorar por petróleo a ditadores socialistas ou terroristas”, disse o senador John Barrasso, do Estado de Wyoming. O secretário de Estado, Antony Blinken, emitiu um comunicado no qual destaca que os EUA esperam, antes do final de novembro, a definição de um calendário e um processo específico para a qualificação dos candidatos na Venezuela. “Todos aqueles que queiram concorrer às eleições presidenciais devem ter a oportunidade e direito à igualdade de condições eleitorais, à liberdade de circulação e a garantias da sua segurança física”, diz o texto. Disse também que os Estados Unidos esperam que o governo Maduro comece a libertar todos os cidadãos americanos e presos políticos venezuelanos detidos injustamente. “Os Estados Unidos continuam firmemente comprometidos com o povo venezuelano e continuaremos trabalhando com a comunidade internacional para apoiar a restauração da democracia e do Estado de direito para que os venezuelanos possam reconstruir as suas vidas e o seu país”. O governo e a oposição da Venezuela assinaram na quarta um acordo para a realização das eleições presidenciais no segundo semestre de 2024. Em Barbados, as partes chegaram a um consenso sobre uma série de acordos que incluem, entre outras garantias eleitorais, “a autorização de todos os candidatos presidenciais, desde que cumpram os requisitos estabelecidos pela lei”. Vários candidatos da oposição, que esperam se enfrentar nas primárias internas neste domingo (22/10), estão desclassificados por vários motivos, incluindo María Corina Machado, a favorita à vitória. O chefe da delegação do governo da Venezuela, Jorge Rodríguez, declarou que, se um candidato for desclassificado, não poderá ser candidato à presidência. Os analistas consideram que o acordo foi alcançado com a expectativa de que os Estados Unidos anunciassem a suspensão de algumas sanções, como aconteceu na quarta-feira. O pacto entre o governo e a oposição contempla também a observação internacional das eleições, a definição de um calendário eleitoral equitativo, a promoção de auditorias ao processo e a atualização do registro eleitoral para incluir os venezuelanos residentes no exterior, o que já representa um quarto da população.
2023-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51jr5pr9d1o
sociedade
Como o que pensamos antes de dormir afeta a qualidade do sono
Você está na cama, tentando dormir, mas seus pensamentos não param. Seu cérebro está ocupado fazendo planos detalhados para o dia seguinte, repetindo momentos vergonhosos (“por que eu disse isso ou aquilo?”) ou produzindo pensamentos aleatórios (“onde está minha certidão de nascimento?”). Muitas pessoas compartilharam vídeos nas redes sociais sobre como dormir mais rápido, evocando “cenários falsos”, como uma história romântica na qual você é o protagonista. Mas o que a ciência diz sobre isso? O que pensamos antes de dormir tem alguma influência nas nossas noites de sono? Acontece que pessoas que dormem bem e aquelas que têm sono de má qualidade têm diferentes tipos de pensamentos antes de dormir. Fim do Matérias recomendadas Pessoas que dormem bem dizem ter principalmente imagens sensoriais visuais ao adormecer (elas veem pessoas e objetos e têm experiências semelhantes às de um sonho). Elas podem ter menos pensamentos organizados e mais experiências alucinatórias, como imaginar que estão participando de eventos do mundo real. Para pessoas com insônia, os pensamentos antes de dormir tendem a ser menos visuais e mais focados no planejamento e na resolução de problemas reais. Esses pensamentos são geralmente menos agradáveis ​​e menos aleatórios em comparação com os de pessoas que dormem bem. Pessoas com insônia também têm maior probabilidade de ficar estressadas com o sono quando tentam dormir, o que leva a um ciclo vicioso, já que fazem um esforço para tentar dormir e ficam ainda mais acordadas. Quem tem insônia frequentemente relata preocupação, planejamento ou pensamento em coisas importantes na hora de dormir. Elas também se concentram em problemas ou ruídos no ambiente e têm uma preocupação geral por não dormir. Infelizmente, toda essa atividade mental prévia pode impedir que você adormeça. Um estudo revelou que pessoas que normalmente dormem bem podem ter problemas para cair no sono se estiverem estressadas com alguma coisa ao se deitar (como ter que fazer um discurso na manhã seguinte). Mesmo níveis moderados de estresse na hora de dormir podem afetar seu sono naquela noite. Outro estudo com 400 jovens adultos investigou como programas e séries de TV podem afetar o sono. Os pesquisadores descobriram que níveis mais elevados de compulsão alimentar estão associados a uma pior qualidade do sono, mais fadiga e um aumento nos sintomas de insônia. A “excitação cognitiva”, ou ativação mental, desencadeada por uma narrativa interessante e identificação com personagens, também podem desempenhar um papel nesse sentido. A boa notícia é que existem técnicas que você pode usar para mudar o estilo e o conteúdo dos seus pensamentos antes de dormir. Isso pode ajudá-lo a reduzir a excitação cognitiva noturna ou substituir pensamentos indesejados por outros mais agradáveis. Essas técnicas são chamadas de “reorientação cognitiva”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A reorientação cognitiva, desenvolvida pelo psicólogo e pesquisador americano Les A. Gellis, consiste em se distrair com pensamentos agradáveis ​​antes de dormir. São como os “cenários falsos” que as pessoas publicam nas redes sociais, mas o truque é pensar em uma situação que não seja tão interessante. Decida antes de ir para a cama o que você vai pensar quando estiver deitado, esperando dormir. Escolha uma tarefa cognitiva envolvente, com alcance e amplitude suficientes para manter seu interesse e atenção, sem causar excitação física ou emocional. Portanto, nada muito assustador, excitante ou estressante. Por exemplo, se você gosta de decoração de interiores, pode se imaginar redesenhando um cômodo da sua casa. Se você é um amante do futebol, pode repetir mentalmente uma parte do jogo ou planejar uma nova tática. Um fã de música pode recitar mentalmente as letras de seu álbum favorito. Quem gosta de tricotar pode se imaginar fazendo uma manta. Não importa o que você escolha, certifique-se de que é algo que se adapta a você e aos seus interesses. A tarefa precisa ser prazerosa, sem ser muito estimulante. A reorientação cognitiva não é a solução perfeita, mas pode ajudar. Outra técnica antiga é a meditação ou atenção plena. Praticar meditação pode aumentar nossa autoconsciência e nos tornar mais conscientes de nossas ideias. Isso pode nos ajudar com pensamentos ruminativos (repetitivos). Muitas vezes, quando tentamos bloquear ou interromper os pensamentos, a situação pode piorar. O treinamento nesta prática pode nos ajudar a reconhecer quando estamos entrando em uma espiral de pensamentos ruminantes e nos ajudam a dar um passo para trás, quase como se fôssemos um espectador passivo. Trata-se de observar seus pensamentos, sem julgá-los. Você pode até dizer “olá” aos seus pensamentos e deixá-los passar e ir embora. Deixe-os estarem lá e veja o que realmente são: apenas pensamentos, nada mais. A pesquisa do nosso grupo mostrou que as terapias baseadas na atenção plena podem ajudar no tratamento da insônia. Elas também podem ajudar no sono pessoas com problemas psiquiátricos, como transtorno bipolar, transtorno obsessivo-compulsivo e esquizofrenia. Um bom sono começa no momento em que você acorda. Para ter mais chances de ter uma boa noite de sono, comece levantando-se na mesma hora todos os dias e expondo-se ao sol da manhã (independentemente do quanto dormiu na noite anterior). Tenha um horário de dormir consistente, reduza o uso de tecnologia à noite e faça exercícios regularmente durante o dia. Se sua mente estiver ocupada quando você for dormir, tente praticar a reorientação cognitiva. Escolha um “cenário falso” que prenda sua atenção, mas que não seja assustador ou estimulante. Pratique esse cenário em sua mente quando for dormir e aproveite a experiência. Você também pode tentar: *Melinda Jackson é professora associada do Instituto Turner para a Saúde Mental e do Cérebro, da Escola de Ciências Psicológicas da Universidade de Monash, na Austrália. Hailey Meaklim é psicóloga e pesquisadora do sono na Universidade de Melbourne, também na Austrália.
2023-10-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgl3vpk2rdgo
sociedade
Como funcionará cobrança de entrada de turistas em Veneza
Todos os dias, Federica Chiuch, moradora de Veneza e guia turística profissional, leva os visitantes pelos pontos turísticos da cidade. Quando chega à Praça de São Marcos, onde fica a catedral de Veneza e antigo palácio do governo, ela acha difícil encontrar um lugar tranquilo para fazer uma parada. “Entre maio e outubro a praça fica sempre superlotada”, explica. "É difícil avançar e conversar em meio ao constante ruído de fundo." Nas últimas três décadas, Veneza tornou-se uma das vítimas mais notáveis do turismo excessivo. A cidade recebe atualmente cerca de 30 milhões de visitantes por ano, muito acima dos 50 mil residentes que realmente a chamam de lar. E mais de dois terços dos visitantes vão apenas para passar o dia. Este mês, as autoridades municipais de Veneza anunciaram planos para combater essas questões com uma medida controversa: cobrar dos turistas uma taxa de entrada de 5 euros (R$ 27). Isso fará de Veneza a primeira cidade do mundo a cobrar entrada dos visitantes. Fim do Matérias recomendadas As notícias sobre a taxa de entrada geraram controvérsias e, com os viajantes ansiosos para saber como a nova medida os afetará, a BBC Travel conversou com autoridades e moradores locais para entender quando começa, quem terá que pagar e como as pessoas podem visitar a cidade de uma forma mais sustentável. Além de tornar a vida desagradável tanto para os moradores quanto para os turistas, o turismo excessivo está pressionando a infraestrutura da cidade. E, assim como em Lisboa ou Barcelona, está levando os venezianos a se mudarem devido à falta de habitação a preços acessíveis, à medida que os proprietários redirecionam os aluguéis de longa duração para estadias curtas e altamente lucrativas. Mas Veneza, uma cidade construída sobre a água, enfrenta ainda mais riscos. A explosão turística aumentou o número de barcos nos canais da cidade, provocando ondas que estão corroendo as fundações dos edifícios centenários do local. Há dois anos, o governo italiano proibiu os navios de cruzeiro de atracar no centro da cidade, em parte devido aos danos que essas grandes embarcações causam aos edifícios e ao fundo do mar. Em agosto, a Unesco ameaçou colocar Veneza na sua lista de patrimônios mundiais que estão em risco devido a “esforços insuficientes” para preservar a cidade. Estava claro que algo precisava ser feito. Em 2019, o governo italiano aprovou uma proposta apresentada pelo governo municipal de Veneza para a introdução de uma “taxa de contribuição de entrada” de 5 euros para turistas. O objetivo era fazer com que alguns turistas reavaliassem seus planos de viagem, com a ideia parcialmente inspirada em pequenas ilhas italianas como Ponza, que cobram uma taxa de desembarque. A proposta foi deixada de lado durante a pandemia e retomada recentemente. A partir da primavera de 2024, o governo municipal de Veneza testará a nova taxa durante um período experimental. De acordo com a vereadora do turismo de Veneza, Simone Venturini, esse ensaio permitirá que os políticos testem o imposto, com o objetivo final de o tornar permanente. Veneza selecionará 30 datas, a partir da primavera de 2024, para aplicar a taxa. Eles ainda não foram anunciados, mas coincidirão com os períodos de pico do turismo para dissuadir as pessoas de visitarem durante dias especialmente movimentados. “Testaremos a taxa durante os dias de pico de viagens, como o fim de semana da Páscoa”, disse Venturini. A taxa de entrada será aplicada aos visitantes que forem à Veneza durante o dia e afetará apenas o centro (excluindo ilhas próximas como Murano). De acordo com uma lista de regras publicada pelo governo local, as categorias isentas incluem visitantes que pernoitam, residentes de Veneza e da região mais ampla de Vêneto, familiares de residentes locais, pessoas que chegam por motivos de trabalho ou voluntariado, estudantes matriculados nas universidades de Veneza, atletas que visitam Veneza para eventos esportivos e menores de 14 anos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os turistas terão que se registar num portal que será lançado em breve e pagar a taxa de 5 euros. O portal irá gerar um QR code para download que certificará que a taxa foi paga. Será fiscalizado pelas autoridades locais, que verificarão as pessoas aleatoriamente e pedirão para mostrar o código. Durante o teste, as pessoas também poderão pagar no local se forem paradas pelas autoridades sem o código. Mesmo as pessoas isentas da taxa, como os residentes da região do Vêneto, terão de se registrar. Dessa forma, diz Venturini, as autoridades poderão ter uma noção melhor de quantas pessoas virão num determinado dia e ajustar serviços como a coleta de lixo. Durante o primeiro ano, os fundos provenientes da taxa de entrada serão utilizados para financiar o sistema de informação e as verificações dos QR code pelas autoridades locais. “Nosso principal objetivo por enquanto é a criação de um sistema de reservas e um conjunto de incentivos para evitar que tantas pessoas venham nos dias de pico”, disse Venturini. Os turistas representam dois terços de todos os visitantes e são compostos principalmente por grandes grupos, como passageiros de navios de cruzeiro e excursões vindas da região de Vêneto. De acordo com Davide Bertocchi, professor de geografia do turismo na Universidade de Udine, os turistas não têm muito valor econômico para Veneza, mas exercem uma pressão significativa sobre a sua infraestrutura. Como explicou Bertocchi, esses grandes grupos geralmente seguem um itinerário padrão de três a quatro horas focado em pontos turísticos como a praça de São Marcos e a ponte Rialto, criando congestionamentos insustentáveis nas pequenas ruas da cidade e nas pontes com mil anos de idade. Na maioria das vezes, não gastam dinheiro para visitar igrejas ou museus, nem para fazer compras ou comer em instalações de propriedade local. Em contrapartida, os visitantes que pernoitam gastam mais dinheiro em hospedagem e refeições. Além disso, já estão sujeitos à taxa turística de Veneza, um valor pago diretamente em sua hospedagem e que é utilizado para financiar a manutenção do serviço turístico de Veneza e a preservação de seu patrimônio cultural. As taxas turísticas em Veneza (e em toda a Itália) estão incluídas na conta do hotel de uma pessoa e podem variar de 1 euro (R$ 5,50) a 5 euros (R$ 27,50) por noite, dependendo do tipo de acomodação. A taxa de entrada em Veneza, por outro lado, será exclusiva para visitantes que passam o dia e não a noite na cidade. O anúncio do valor da entrada provocou diversas reações. Há um ano, 1.000 cidadãos reuniram-se em torno da cidade para protestar contra o anúncio da taxa. Na semana passada, o anúncio do julgamento da taxa de entrada foi recebido com protestos acalorados durante uma reunião do conselho municipal. Anna Scovaricchi é uma tradicional artesã de encadernação que se mudou com a família de quatro pessoas para a cidade vizinha, Pádua, porque não tinha mais dinheiro para pagar o aluguel. Ela diz que a taxa de entrada “é uma piada”. “As pessoas certamente pagarão 5 euros para vir a Veneza”, disse ela. “O verdadeiro problema é a falta de moradia e o fato de a cidade ter se transformado em uma enorme pousada.” Venice Day Trips, uma operadora turística que oferece itinerários culturais em Veneza e região, pensa que uma taxa de entrada não é a maneira certa de gerir o excesso de turismo. “O que gostaríamos de ver é um número fechado (de turistas) com um processo de reserva claro”, disse a fundadora Rachel Erdman. Ela diz ainda que normalmente desaconselha os turistas a visitarem Veneza durante a alta temporada, como os meses de verão. “O que realmente não concordamos é com uma taxa para entrar na cidade”. No entanto, as associações comerciais parecem esperançosas quanto à taxa de entrada. Conforme noticiado pelo jornal italiano La Repubblica, a associação comercial de artesãos locais afirmou que os mecanismos de taxas de entrada "provavelmente precisarão de ser melhorados", mas é um bom começo para gerir o excesso de turismo. As autoridades municipais de Veneza responderam às críticas dizendo que, por enquanto, o regime de taxas de entrada está em fase experimental. “Queremos testar isso”, disse Venturini. "Queremos ver se cobrar 5 euros pode convencer algumas pessoas a escolher dias fora de pico para vir à Veneza." As taxas turísticas não são uma novidade. De acordo com Megan Epler Wood, diretora-gerente do Programa de Gestão de Ativos de Turismo Sustentável (Stamp, por sua sigla em inglês) da Universidade Cornell, outros destinos criaram impostos como forma de gerir o excesso de turismo. Por exemplo, em 2016, as Ilhas Baleares criaram uma “taxa ecológica” para financiar a preservação dos bens ambientais e culturais do arquipélago. Já Belize cobra dos visitantes desde a década de 1990 para financiar a preservação dos seus recifes de coral e de uma vasta biodiversidade. Outros destinos que cobram dos turistas incluem Bali, Barcelona, França, Áustria, Croácia, Costa Rica, Nova Zelândia e, mais recentemente, Islândia. No entanto, nenhum país criou uma taxa de entrada como Veneza. A maioria dos destinos inclui uma taxa turística como parte das contas de acomodação ou associada a uma passagem aérea ou visto de turista. Esta será a primeira vez que os turistas precisarão pagar para entrar em uma cidade. O objetivo final do imposto também é diferente. No caso das Ilhas Baleares ou de Belize, os impostos são cobrados especificamente para financiar projetos de turismo sustentável. Em vez disso, a taxa de entrada em Veneza não vai para um fundo específico. Venturini diz que o dinheiro arrecadado dos visitantes será usado apenas para cobrir os custos do sistema de reservas. Muitos destinos impactados pelo excesso de turismo, como Machu Picchu ou a Antártida, estabeleceram um limite diário para o número de pessoas autorizadas a entrar em um único dia. No entanto, Veneza, como explicou Venturini, é uma cidade e não um local turístico e impor um limite ao número de visitantes iria contra o direito constitucional italiano à livre circulação. Segundo Valetia Duflot, fundadora da Venezia Autentica, organização que promove o turismo sustentável em Veneza, basta um pouco de pesquisa. Ela sugere ficar por algumas noites – assim você poderá ver Veneza quando os turistas estiverem fora – e, se possível, procurar acomodações de propriedade local, gastar dinheiro em restaurantes e souvenirs de comerciantes locais e escolher guias totalmente licenciados. Chiuch acrescenta que parte da resposta está na criação de uma consciência. “Sempre conto aos visitantes sobre os desafios de Veneza, como o impacto negativo dos navios de cruzeiro”, disse ela, “e dou dicas sobre como sair dos caminhos tradicionais e evitar parar em áreas congestionadas”. Ela também acredita que a promoção de práticas sustentáveis pode conscientizar os turistas sobre o papel deles na preservação da cidade. “Sempre digo aos visitantes que Veneza faz parte da nossa herança humana coletiva”, disse ela, “por isso é nossa responsabilidade coletiva preservar a sua beleza”.
2023-10-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c9e5p8j2kkvo