categoria
stringclasses
9 values
titulo
stringlengths
18
146
texto
stringlengths
0
41.7k
data
stringlengths
10
10
link
stringlengths
39
53
sociedade
Quem realmente descobriu o Polo Norte?
No condado de Montgomery — no Estado americano de Maryland, perto da capital, Washington D.C. — fica um parque de 47 hectares chamado Matthew Henson State Park Stream Valley Park. É um oásis florestal arborizado, rodeado pela expansão metropolitana. Assim que você entra, o ruído do tráfego desaparece. O gramado e as árvores são tudo o que os seus frequentadores conseguem ver, seja caminhando, correndo ou andando de bicicleta. Uma trilha pavimentada de quase 7 km serpenteia suavemente pela floresta, até chegar a uma passarela de madeira elevada sobre um terreno pantanoso. Pássaros cantam sobre nossas cabeças, e é possível observar os cervos e perus selvagens. Você pode andar por essa trilha todos os dias sem nunca saber quem foi Matthew Henson, que dá nome ao parque — a menos que você tenha parado para ler uma placa ao longo da trilha que apresenta uma breve cronologia da vida dele: Fim do Matérias recomendadas 1866: nasceu no condado de Charles, em Maryland. 1879-1884: integra a tripulação do navio Katie Hines como grumete e sai para explorar o mundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast 1887: auxilia Robert E. Peary na pesquisa para a possível construção de um canal na Nicarágua. Até que, no meio da linha do tempo, surge um detalhe surpreendente: 1909: chega com Peary ao Polo Norte, onde hasteia a bandeira americana. No alto da placa, há uma fotografia de Henson envolto em peles e coberto com capuz. Ele tem um bigode espesso, e sua testa está um pouco franzida. A aparência dele se encaixa no arquétipo do explorador polar em todos os aspectos, exceto um: Henson era negro. "Quando criança, no meu tempo de escola, nunca ouvi falar de Matthew Henson", afirma J. R. Harris, que também é cidadão afro-americano e integra o conselho de administração do Clube dos Exploradores de Nova York, que inspirou alguns dos maiores aventureiros do mundo. "Muita gente acha que Matthew Henson era alguém que eu admirava no passado, mas não é verdade", ele conta. "Tudo o que eu aprendi foi que o Polo Norte foi descoberto por Robert Peary." A vida de Henson parece um romance de aventuras da era vitoriana. Ele nasceu em uma família de meeiros e teve diversos empregos, até que entrou para a tripulação de um navio mercante e viajou para outros continentes. Seu primeiro mentor foi o Capitão Childs, que treinou o adolescente Henson para a vida no mar e o ensinou a ler. Quando Childs morreu, em 1883, Henson voltou a enfrentar dificuldades para ganhar a vida, até que conheceu Robert Peary, em 1887. Os caminhos deles se cruzaram pela primeira vez em um armarinho em Washington D.C. , onde Henson trabalhava. O comandante Peary, engenheiro da Marinha americana, ficou impressionado com o jovem estoquista e convidou Henson a ser seu assistente em uma missão de pesquisa na Nicarágua, naquele mesmo ano. A fase crucial da carreira de Henson começou em 1891, quando ele acompanhou Peary ao Círculo Polar Ártico em busca do Polo Norte, e duraria 18 anos. A missão para alcançar fisicamente o ponto mais ao norte da Terra atraiu exploradores por séculos, muitos deles cultivando a fantasia de ficar de pé no topo do planeta. Mas o clima rigoroso do Polo e os blocos de gelo que destruíam os navios afugentavam os visitantes humanos — até os povos do Ártico. Peary se firmou como o principal líder dessas expedições, arrecadando dinheiro e formando equipes. E Henson acompanhou Peary em todas as viagens, exceto uma, passando anos da sua vida em campo. Na Groenlândia, Henson ficou próximo dos inughuits, a população que mora mais ao norte do continente americano — e que faz parte do povo inuit. Ele aprendeu a construir iglus e trenós, além de ter ficado fluente no seu idioma, o inuktun. Henson caçava animais polares com espingarda — uma técnica que podia salvar vidas quando os mantimentos ficavam escassos. E, o mais impressionante, ele aprendeu a dirigir trenós puxados por cães. "Ele dirige as matilhas e conduz os trenós melhor do que qualquer homem vivo, exceto alguns dos melhores caçadores [inuits]", escreveu Peary sobre Henson. "Eu não conseguiria me manter sem ele." Ao longo de sete tentativas entre 1891 e 1909, Henson foi o colaborador mais próximo de Peary. O Ártico era implacável. Os dois quase congelaram ou morreram de fome em várias ocasiões. Peary perdeu vários dedos dos pés devido ao frostbite (congelamento de tecido do corpo). E, certa vez, Henson caiu em uma fratura no gelo e teria se afogado, caso seu amigo inuit Ootah não o puxasse para fora da água congelante. Eles enfrentaram tempestades catastróficas e problemas técnicos intermináveis. Os dois aprimoraram o processo de trabalho repetidamente até a última expedição, em 1909. A cerca de 215 km do Polo e com poucos suprimentos, Peary ordenou que todo o grupo de 50 pessoas voltasse para o navio, exceto Henson e quatro inuits. Um artigo do Instituto Smithsoniano afirma que, vários dias depois, em 6 de abril de 1909, depois de uma árdua jornada pela tundra, Henson teria dito a Peary que sua "sensação" era de que estavam no Polo. Henson contou que Peary vasculhou o casaco, puxou uma bandeira americana dobrada costurada pela esposa e a prendeu em uma vara que ele havia fincado em cima de um iglu. No dia seguinte, segundo Henson, Peary determinou sua localização com um sextante, colocou um bilhete e a bandeira americana em uma lata vazia e a enterrou no gelo. Os homens voltaram então para o navio e seguiram para casa. "Mais uma conquista do mundo foi realizada e encerrada", escreveu Henson nas suas memórias, A Negro Explorer at the North Pole ("Um explorador negro no Polo Norte", em tradução livre), em 1912. "E, como no passado, desde o início da História, sempre que o trabalho do mundo era feito por um homem branco, ele havia sido acompanhado por um homem de cor", acrescentou Henson. Mas seu momento de glória durou pouco. Henson voltou para os Estados Unidos no auge das hostilidades causadas pelas leis racistas de Jim Crow no país. E, no século seguinte, os historiadores ficariam céticos a seu respeito. Peary escreveu um efusivo prefácio para o livro de Henson, argumentando que "a raça, a cor, a criação ou o ambiente nada valem contra um coração determinado, se ele for apoiado e ajudado pela inteligência". Ainda assim, Peary recebeu de bom grado a maioria dos elogios por chegar ao Polo, enquanto o nome de Henson desaparecia da opinião pública. Os historiadores discutem se a avaliação de Peary estava correta— e até se realmente ele foi o primeiro explorador a chegar lá. Mas a maioria concorda que ele não teria se aventurado tão ao norte sem Henson, que adotou completamente o modo de vida dos inuits e estudou técnicas de sobrevivência que datavam de milênios atrás. Henson chegou a adaptar utensílios dos inuits, como roupas de pele e trenós puxados por cães. "O povo [inuit] realmente gostava dele", diz Harris, que se aventurou em diversas caminhadas solitárias em regiões selvagens no mundo todo. Assim como Henson, Harris cultivou uma relação com povos nativos em locais remotos e reconhece essa tentativa precoce de antropologia cultural. "Peary era do tipo reservado e apreciava que alguém da sua equipe pudesse lidar com o povo inuit e estabelecer boas relações", afirma Harris. Mas foi apenas em 1937 que Henson foi aceito como membro do Clube dos Exploradores. Ele chegou a receber homenagens dos presidentes americanos Harry S. Truman e Dwight D. Eisenhower, mas só mais para o fim da sua vida. Henson foi enterrado no Cemitério Nacional de Arlington, onde um monumento foi construído em sua homenagem — mas somente em 1988, 33 anos depois da sua morte. Atualmente, há diversos lugares que receberam seu nome: o Parque Estadual Matthew Henson, diversas escolas públicas de Maryland e o USNS Henson, um navio de pesquisa de 3 mil toneladas que realiza estudos oceanográficos. Por décadas, defensores de Henson mantiveram acesa a memória da sua conquista — e tentaram rastrear toda a extensão do seu legado. Seu defensor mais apaixonado foi S. Allen Counter, neurologista de Boston, nos Estados Unidos, e membro do Clube dos Exploradores. Counter não só apresentou ao Cemitério Nacional de Arlington uma petição para a construção do monumento, como também descobriu ramos desconhecidos da árvore genealógica de Henson na Groenlândia. Diversos dos seus descendentes inuits estão vivos até hoje. Counter documentou a linhagem no livro North Pole Legacy ("O legado no Polo Norte", em tradução livre). "Meu pai se identificava com a história por motivos óbvios", afirma Philippa Counter, filha de Allen. "Os dois eram exploradores. Henson era esse herói anônimo que não foi reconhecido por viajar ao Polo Norte. Ele pensou: 'Esta é uma história que eu definitivamente tenho que contar'." Counter morreu em 2017, mas outras pessoas assumiram sua função. O Clube dos Exploradores formou um Comitê de Diversidade, Igualdade e Inclusão, com J. R. Harris na presidência. E, em 2022, o Clube aceitou quatro novos membros póstumos: Seegloo, Egingwah, Ooqueah e Ootah, os homens inuits que acompanharam Henson e Peary em sua última expedição ao Polo Norte. "Na minha opinião, todos eles são codescobridores do Polo Norte, todos os seis", afirma Harris. "Esses quatro homens estão finalmente recebendo o reconhecimento que merecem." Já em Brunswick, no Estado americano do Maine, o Museu do Ártico Peary-MacMillan está mudando de endereço. O museu pertence ao Bowdoin College, onde estudaram Peary e outro explorador do Ártico, Donald Baxter MacMillan. Desde sua abertura, em 1967, o museu exibe artefatos de Henson, incluindo fotos de arquivo, um trenó que ele próprio construiu e uma rara entrevista de televisão nos anos 1950. Os visitantes sempre foram recebidos por retratos pintados de Peary e MacMillan, colocados lado a lado, na entrada do museu. Mas quando o novo espaço for aberto em maio de 2023, haverá um importante adendo: uma fotografia ampliada de Matthew Henson, usando suas peles características, ao lado deles.
2023-04-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cn07l1zlwwro
sociedade
3 seitas 'apocalípticas' que levaram seus membros a suicídio em massa
Infelizmente, essa é uma história que se repetiu inúmeras vezes nas últimas décadas com desfechos assustadores. A seguir, apresentamos três casos em que pregadores com teorias absurdas do fim do mundo e promessas de salvação levaram seus seguidores ao suicídio coletivo. O Templo do Povo foi um grupo religioso fundado nos anos 1950, envolto em mistério e liderado por uma figura marcante: o americano Jim Jones. O ideal de Jones era criar "um paraíso socialista" no qual não haveria fronteiras de raça ou nacionalidade. Mas esse sonho não se encaixava muito bem em seu país. Fim do Matérias recomendadas Em 1975, Jones convenceu cerca de 900 seguidores a se mudarem para a Guiana, ex-colônia britânica vizinha à Venezuela, onde fundou uma comunidade utópica conhecida como Jonestown. Os membros do templo foram em grande parte atraídos pelo discurso sedutor de Jones. Esse fascínio logo se transformou em lealdade, que mais tarde se converteu em fanatismo. E terminou em idolatria. Pouco a pouco, a personalidade de Jones começou a se tornar errática e paranoica. Em seus longos discursos, ele falava sobre supostas ameaças contra seu "paraíso" por parte da CIA, a agência de inteligência americana, cujos agentes ele acusava de serem "traidores" e "porcos capitalistas". Também houve relatos de abusos contra membros da seita. Nas chamadas "noites brancas", eles simulavam suicídios coletivos. A informação chegou aos ouvidos do deputado pela Califórnia Leo Ryan, que organizou uma viagem a Jonestown para investigar a situação. Mas a missão terminou tragicamente quando membros do Templo do Povo atiraram em Ryan e em vários de seus acompanhantes. Foi então que Jones mandou reunir todos os membros da comunidade, a quem pediu uma "noite branca" final. "Vamos acabar com isso já. Vamos acabar com esta agonia", é possível ouvir ele anunciando em gravações obtidas por uma investigação do FBI, a polícia federal americana. Os membros da congregação, alguns voluntariamente e outros forçados —incluindo 300 crianças e bebês — tomaram um refresco adulterado com cianeto. No total, mais de 900 pessoas morreram. Algumas pessoas que haviam se escondido sobreviveram. Jones foi encontrado morto com um tiro na cabeça. O Ramo Davidiano era uma seita com sede perto de Waco, no estado americano do Texas, fundada em 1955 e derivada do grupo religioso davidiano da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Em 1981, Vernon Howell, um jovem que vinha de uma família disfuncional e tinha antecedentes criminais por relações sexuais com uma menor de idade, entrou para a seita davidiana. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Após uma disputa pelo domínio da seita, Howell emergiu como o líder supremo dos davidianos e mudou seu nome para David Koresh, na tentativa de reivindicar sua conexão divina com David, o rei dos judeus, e com Ciro, o Grande, da Pérsia (Koresh significa Ciro em hebraico). Ele assumiu um papel messiânico, se autodeclarando como o último profeta e afirmando ter recebido o mesmo nível de inspiração de Jesus quando foi batizado. Seus ensinamentos apocalípticos da Bíblia, incluindo suas interpretações do Livro do Apocalipse e dos Sete Selos, em que previa os eventos que anunciavam o Apocalipse, atraíram muitos seguidores. Para se preparar para esse apocalipse, Koresh estabeleceu um "Exército de Deus" e começou a acumular um arsenal de armas no complexo davidiano conhecido como Mount Carmel. Ele também introduziu a ideia de praticar "casamentos espirituais" com inúmeras mulheres da seita de todas as idades. Acredita-se que ele teve mais de dez filhos com elas. As acusações de abusos sexuais e tráfico de armas levaram o Departamento de Justiça dos EUA a cercar o complexo com 76 agentes com treinamento militar e mandados de busca e prisão. Eles lançaram gás lacrimogêneo, houve troca de tiros e, algumas horas depois, começou um grande incêndio. Em questão de minutos, o Mount Carmel foi reduzido a cinzas, e os 79 davidianos que estavam dentro do complexo morreram. Não foi possível estabelecer a origem do incêndio. Koresh havia morrido antes com um tiro na cabeça, mas tampouco se sabe se foi suicídio ou se alguém o matou. Embora um relatório oficial tenha concluído que a responsabilidade em última análise pela tragédia era de Koresh e seus seguidores por iniciar o incêndio, as decisões e ações tomadas pelas agências governamentais envolvidas no cerco foram duramente criticadas. Heaven's Gate (que pode ser traduzido como "Portão dos Céus") é considerada uma das primeiras seitas religiosas da era da internet. Eles usavam a tecnologia digital para difundir suas crenças para um público mais amplo e também como forma de gerar renda. Foi fundada no início dos anos 1970 por Marshall Applewhite e sua esposa Bonnie Nettles, uma enfermeira que ele conheceu enquanto estava em uma instituição psiquiátrica. Eles viajaram pelos Estados Unidos recrutando um grupo de seguidores que chamaram de "a tripulação" e acabaram se estabelecendo no sul da Califórnia. Quando Nettles morreu em 1985, Applewhite continuou à frente da congregação. A filosofia do grupo era uma mistura de princípios da Igreja Presbiteriana e crenças sobre óvnis (sigla usada para designar "objetos voadores não identificados"). Applewhite pregava que ele era o Advento de Cristo, que Deus era um alienígena e que o fim do mundo estava próximo. Em seus sermões, ele combinava ficção científica com o Antigo Testamento para incitar seus seguidores a "superar suas vibrações genéticas como uma forma de sair de seus veículos para que seus espíritos pudessem ressurgir a bordo de uma nave espacial e alcançar o próximo nível evolutivo acima do ser humano". Foi assim que os convenceu a consumir purê de maçã e barbitúricos, acompanhados de doses de vodca. Desta maneira, suas almas liberadas ascenderiam a uma nave espacial que viajava no rastro do cometa Hale-Bopp, que estava passando pela Terra na época, e que os levaria ao seu novo lar no espaço. Em 26 de março de 1997, a polícia encontrou os corpos de 39 pessoas — incluindo o de Applewhite — cobertos com mantos de cor púrpura, com sacos plásticos na cabeça e vestidos com moletons preto e branco e tênis Nike.
2023-04-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cndgy8zggdlo
sociedade
Os alisadores de cabelo que levaram consumidores a processar empresas nos EUA
O relaxamento capilar existe há mais de 100 anos. Em questão de minutos, produtos químicos são capazes de alisar cabelos crespos ou cacheados. Mas agora mais de 100 processos judiciais foram abertos nos Estados Unidos contra empresas que fabricam alguns desses produtos. A filial americana da L'Oréal e os proprietários de outros relaxantes capilares são citados nos processos — as marcas incluem Dark & ​​Lovely, ORS Olive Oil e Motions. As ações alegam que os produtos contêm substâncias químicas perigosas que podem causar câncer e outros problemas de saúde. Também afirmam que as empresas sabiam disso, mas comercializaram e venderam os produtos mesmo assim. Fim do Matérias recomendadas Eles investigaram uma possível ligação entre o uso de relaxantes capilares e o câncer de útero. Quase 34 mil participantes foram acompanhadas por mais de 10 anos. Nesse período, foram diagnosticados 378 casos de câncer de útero. O estudo concluiu que pessoas que usaram os alisadores mais de quatro vezes em um ano apresentaram um risco ligeiramente maior de desenvolver a doença. A principal autora do estudo, Alexandra White, explica que os pesquisadores "estimaram que 1,64% das mulheres que nunca usaram alisante capilar desenvolveria câncer de útero aos 70 anos". "Mas para usuárias frequentes, esse risco sobe para 4,05%", ela acrescenta. No entanto, Karis Betts, gerente sênior de informações de saúde da organização Cancer Research UK, diz que, embora o estudo sugira uma ligação, não oferece evidências claras sobre se os produtos para alisamento de cabelo podem realmente aumentar o risco de uma pessoa desenvolver câncer de útero ou, se for este o caso, quão maior pode ser o risco. "No momento, não há evidências científicas suficientes de qualidade para mostrar que esses produtos causam câncer", afirma. "São necessárias mais pesquisas em estudos maiores e de maior qualidade para confirmar se existe uma ligação. É importante lembrar que, mesmo que houvesse um maior risco de câncer devido ao alisamento capilar, provavelmente seria menor do que as causas conhecidas de câncer, como idade, tabagismo e obesidade." Karis acrescenta que o câncer de útero é relativamente raro — portanto, mesmo com um risco ligeiramente maior, ainda não seria comum. - Os relaxantes são cremes ou loções formulados com produtos químicos para alisar cabelos crespos e cacheados; - Eles quebram as pontes de dissulfeto — um tipo de ligação química encontrada no interior das fibras capilares — reestruturando os padrões do cabelo crespo ou cacheado; - Há diferentes tipos de relaxamento: os relaxantes de lixívia usam hidróxido de sódio, os sem lixívia utilizam outros ingredientes ativos, como hidróxido de cálcio ou hidróxido de guanidina; e há ainda aqueles que usam tioglicolato de amônia; - Eles são permanentes, mas o cabelo novo que nasce e cresce vai continuar em sua textura natural; - Algumas empresas oferecem produtos alternativos para mulheres com cabelos texturizados. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os cientistas não conseguiram identificar um produto químico ou ingrediente específico nas fórmulas dos relaxantes capilares que poderia ser perigoso — e disseram que mais pesquisas são necessárias. Mas os processos judiciais também alegam que outros problemas de saúde, como miomas, foram causados ​​pelos produtos. Esses tumores benignos no útero podem causar um fluxo menstrual forte e cólicas intensas. Uma mulher citada nos processos judiciais afirma que foi submetida a uma histerectomia (retirada total ou parcial do útero) como resultado da condição. Ela é uma das pelo menos 20 clientes representadas pelo advogado especializado em danos pessoais James Foster e sua firma. "Ela acabou sendo uma das modelos na capa da embalagem de um dos produtos que usava", diz ele. "Ela realmente acreditava nesses produtos e estava disposta a se colocar na embalagem deles." "E agora que isso veio à tona, tem sido bastante devastador para essa cliente em particular. Ela é muito jovem e, obviamente, foi muito difícil para ela." Alguns acreditam que as substâncias químicas encontradas em certos produtos para relaxamento capilar podem interferir na produção de hormônios no corpo. Alguns tipos de câncer são sensíveis a hormônios, como o câncer de ovário, de mama e de útero. No entanto, o estudo afirmava que mais pesquisas precisariam ser feitas para ter certeza se é realmente o caso. O estudo inspirou o grupo ativista Level Up a lançar a petição #NoMoreLyes em 2021, pedindo a grandes marcas como a L'Oreal que parassem de usar o ingrediente. A Level Up afirma que ainda não obteve resposta da empresa a um pedido de informações mais detalhadas sobre a segurança dos produtos químicos em seus relaxantes capilares. O grupo divulgou agora uma carta aberta à L'Oréal, pedindo à companhia que retire de venda os produtos contendo lixívia e invista mais em pesquisas. Também foi assinada por 10 parlamentares. "Sinto que estamos sendo deliberadamente ignorados", diz a ativista Ikamara Larasi. "Com uma carta aberta, espero que eles dediquem tempo para responder." "Isso me deixa frustrada", acrescenta. "Acho que as pessoas têm uma atitude de 'tudo bem, não use [relaxantes] então', mas há tantas razões pelas quais as pessoas optam por alisar o cabelo que simplesmente não é um argumento útil." Um porta-voz da L'Oreal no Reino Unido disse à BBC que, embora não importe ou venda produtos Dark & ​​Lovely no país, respondeu a todas as solicitações de consumidores do Reino Unido que recebeu, "confirmando que mantemos os mais altos padrões de segurança para todos os nossos produtos". Eles acrescentaram que a maior prioridade da L'Oréal é a "saúde, bem-estar e segurança" de todos os seus consumidores e que seus produtos foram submetidos a uma rigorosa avaliação científica de sua segurança por especialistas que também garantem que eles sigam rigorosamente todos os regulamentos em todos os mercados em que operam. E acredita que as ações movidas contra a empresa "não têm mérito legal". O podcast If You Don't Know, da BBC, também entrou em contato com a Godrej SON Holdings Inc e a Dabur International Ltd. Essas empresas também fabricam produtos químicos para relaxamento capilar e foram citadas nos processos judiciais — mas não responderam aos nossos pedidos de comentários. Alisantes sem registro estão irregulares, segundo a Anvisa, já que todos os alisantes capilares, inclusive os importados, devem ser registrados.
2023-04-27
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp6ykn9dyppo
sociedade
Tiktoker é acusada de montar 'armadilha mortal' para homem que chantageou sua mãe
Uma influenciadora do TikTok está sendo julgada por ter "montado uma armadilha" que levou à morte do homem que estava chantageando sua mãe com um vídeo íntimo — e de um amigo dele — em um acidente de carro. Saqib Hussain e Mohammed Hashim Ijazuddin, ambos de 21 anos, morreram em uma colisão após supostamente terem sido perseguidos e jogados para fora da pista na rodovia A46, perto da cidade de Leicester, na Inglaterra, em fevereiro de 2022. A tiktoker Mahek Bukhari, de 23 anos, a mãe dela, Ansreen Bukhari, de 45, e outras seis pessoas são acusadas de assassinato. Todas negam o crime. A promotoria disse ao Tribunal de Leicester, na segunda-feira (24/04), que foi um caso de "amor, obsessão, extorsão e, finalmente, de assassinato a sangue frio". Hussain e Ansreen teriam começado um caso amoroso em 2019, que ela terminou em janeiro de 2022. Fim do Matérias recomendadas O promotor Collingwood Thompson afirmou perante o tribunal que Hussain tinha em sua posse vídeos e imagens íntimas de Ansreen e havia feito repetidas tentativas de contatá-la após o término do caso. Segundo ele, Hussain estava se tornando "cada vez mais obsessivo" enquanto "declarava seu amor por ela" e "implorava a ela" para continuar o relacionamento. "Essa raiva se manifestou em uma tentativa de chantagear Ansreen Bukhari para convencê-la a entrar em contato com ele", declarou o advogado. "As mensagens mostram o material sexualmente explícito dela, que obviamente havia sido gravado algum tempo antes, que ele ameaçou enviar para o marido e o filho dela." A filha dela — que estava ciente do caso — teria sido informada sobre a chantagem e, com medo do impacto na família, assim como em seus seguidores nas redes sociais, enviou uma mensagem ameaçadora a Hussain. Ela também enviou uma mensagem de WhatsApp para a mãe dizendo que "em breve, vou fazer com que uns caras peguem ele". O júri foi informado de que Hussain estava exigindo o pagamento de até £ 3 mil (cerca de R$ 19 mil) que ele havia gasto em encontros com Ansreen Bukhari durante o namoro — e um encontro foi marcado em Leicester para entregar o dinheiro. Mas, em vez de entregar o dinheiro, a mãe e a filha planejavam pegar o telefone de Hussain contendo o material explícito. O advogado contou como "outros réus se envolveram no que aconteceu", alegando que ficou claro que as Bukharis precisavam "calar" Hussain. "A ideia era atrair Hussain para um encontro, prometendo pagar o dinheiro", disse Thompson. Segundo ele, o grupo "sem dúvida esperava que, quando confrontado, ele simplesmente entregaria o telefone". Hussain e o amigo Ijazuddin, que havia concordado em levá-lo de carro ao encontro, morreram no acidente pouco depois da meia-noite de 11 de fevereiro. O tribunal ouviu a ligação aflita feita por Hussain para o 999 (número de emergência) enquanto ele viajava no banco do carona. Na ligação, Hussain disse: "Tem uns caras me seguindo, eles estão usando balaclavas… eles estão tentando me tirar da estrada". "Eles estão tentando me matar, eu vou morrer... por favor, eu preciso de ajuda." "Eles estão batendo na traseira do carro, muito rápido... por favor, eu imploro. Vou morrer." Ouve-se um grito antes da ligação terminar abruptamente. "Isso explica por que a polícia sabia que não era um acidente de carro comum, mas um assassinato a sangue frio e levou, é claro, a uma grande investigação", afirmou Thompson. "Essa investigação revelou uma história de amor, obsessão, extorsão e, finalmente, assassinato a sangue frio", acrescentou o promotor perante o tribunal. Imagens de vídeo da polícia da cena do acidente foram apresentadas ao júri, mostrando o carro em chamas contra uma árvore no canteiro central da rodovia A46, perto do entroncamento de Six Hills, próximo a Leicester. A polícia e os bombeiros descobriram os dois corpos após apagar o incêndio. Os demais réus são: Rekan Karwan, de 29 anos; Raees Jamal, de 22 anos; Mohammed Patel, de 22 anos; Natasha Akhtar, de 23 anos; Sanaf Gulammustafa, de 23 anos; e Ameer Jamal, de 28 anos. O julgamento está em andamento.
2023-04-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c883lz5r00mo
sociedade
Os segredos de família que são guardados por gerações
Em 2022, minha amiga Alex, dos Estados Unidos, veio me visitar em Londres. Nós nos conhecemos há mais de 10 anos em Nova York. Sou cidadão londrino negro, britânico, e Alex é originalmente do Estado americano de Michigan. Durante sua visita, nós conversamos sobre nossas carreiras, nossas famílias – e sobre segredos familiares. Descobri que a família de Alex mantinha um importante segredo do passado, relacionado à raça, identidade e pertencimento. Sua revelação nos levou a pesquisar, antes de tudo, por que algumas famílias são forçadas a manter segredos – e o que os psicólogos podem nos dizer sobre o impacto desses segredos sobre a nossa saúde física e mental. Mas vamos primeiro conhecer a história de Alex, nas suas próprias palavras. Fim do Matérias recomendadas Minha avó me contava com frequência a história da avó dela, chamada Lulu May. Ela nasceu no século 19 em uma plantação em Newberry, na Carolina do Sul (EUA), onde seus pais haviam sido escravizados. Quando jovem, Lulu May foi estuprada pelo dono da plantação, um homem branco. O estupro levou ao nascimento do pai da minha avó, meu bisavô Walter, na virada do século 20. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A escravidão terminou oficialmente nos Estados Unidos em 1865. Mas, para as pessoas negras em muitos Estados do sul dos Estados Unidos, como a Carolina do Sul, a emancipação não significou o fim da subserviência. Aspectos fundamentais da escravidão eram mantidos em leis que foram aprovadas para que os cidadãos negros assinassem contratos de trabalho ou de serviço com seus antigos escravizadores brancos, que continuariam a ser conhecidos como seus “senhores”. A segregação e a discriminação foram reforçadas pelos chamados sistemas de leis racistas de Jim Crow até bem depois da virada do século 20. Mas, ao contrário da maioria dos bebês nascidos nessas circunstâncias, meu bisavô de pele clara cresceu sabendo exatamente quem era o seu pai. Ele passou a maior parte da juventude com seus meios-irmãos brancos na “casa grande”, onde morava o dono da plantação com sua família, enquanto os trabalhadores e os antigos escravos viviam em cabanas. “Eu simplesmente sabia que ele não precisava trabalhar nos campos de algodão e fazer todo aquele trabalho pesado, porque ele ficava na casa do seu senhor, que, na verdade, era seu pai, porque ele foi o primeiro filho de Lulu May, uma jovem donzela”, segundo minha avó, Recalia Ruth Davis Childress. Lulu May casou-se depois com um homem negro e teve outros filhos, irmãos mais novos de Walter, que moravam em uma cabana na plantação. Quando Walter ficou adolescente, ele entrou nas forças armadas americanas e, mais tarde, serviu na Primeira Guerra Mundial. E, talvez naquela época, ou até um pouco antes, ele tomou a decisão de viver pelo mundo passando como homem branco. A história da “passagem” racial nos Estados Unidos – a decisão de passar como branco, em resposta à forte discriminação e ao violento racismo – é documentada em fragmentos isolados. Ela costuma ser preservada pelas famílias, sem registros oficiais. Uma razão, é claro, é que a decisão era um segredo. E, além disso, as famílias afro-americanas, de forma geral, podem ter dificuldade para rastrear sua própria história, devido à escravidão (até 1865) e à forma em que foram mantidos os registros dos censos ao longo do tempo. Em alguns casos, a passagem não incluía a reivindicação ativa da condição de branco, mas simplesmente não corrigir outras pessoas quando elas faziam essa avaliação. Em outros casos, ela envolvia esquemas elaborados, em uma tentativa desesperada de obter liberdade e segurança. Foi o caso de Ellen e William Craft, um casal que escapou do sul da Geórgia para o norte dos Estados Unidos, em meados dos anos 1800. Ellen passou como homem branco e William, como seu servo pessoal. Brian Lowery é psicólogo social da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, e autor do livro Selfless: The Social Creation of You (“Sem identidade: a criação social de você”, em tradução livre), sobre a identidade e como o nosso mundo social nos molda enquanto pessoas. Ele define a passagem social como um conceito um tanto fluido. “[Ela pode descrever] quando as pessoas saem para o mundo e permitem que os demais o considerem racialmente diferente do que você é”, explica Lowery. “Pode também significar a raça que você acredita que seja a sua.” A passagem oferecia benefícios concretos em uma época em que as famílias afro-americanas enfrentavam muitas barreiras, incluindo a disparidade de oportunidades codificada no sistema legal. “Por isso, se alguém pudesse ter acesso a esses benefícios, ele teria, se houvesse mais a ganhar”, afirma Lowery. “A necessidade de fazê-lo se devia principalmente à natureza do sistema.” Mas “a passagem era algo muito perigoso naquela época”. Havia também o custo psicológico de deixar para trás sua velha identidade e comunidade. No livro The Chosen Exile of Racial Passing (“O exílio voluntário da passagem racial”, em tradução livre), a autora Alysson Hobbs conta sobre uma mulher jovem e ambiciosa chamada Elsie Roxborough. Ela decidiu passar racialmente como branca e rompeu todos os laços com sua família, na esperança de conquistar seus sonhos com mais facilidade. Em muitos casos, esses sonhos poderiam significar um trabalho melhor, o direito ao voto e a oportunidade de morar em um bairro melhor. Posteriormente, Elsie, já com o nome de Mona Monet, pediu auxílio financeiro ao seu pai biológico, que se recusou a ajudá-la. Alguns dias depois, ela tirou sua própria vida. “Acho que, para as pessoas que faziam a ‘passagem’, devia ser devastador para elas e para a sua família”, afirma Lowery. “Imagine o que seria cortar todos os laços com a sua família e os seus amigos. O custo psicológico para a família e para a pessoa que precisava fazê-lo seria imenso.” Para ele, a passagem diz muito sobre a sociedade da época e a brutalidade infligida sobre os afro-americanos, que levava as pessoas a carregar esse fardo. Meu bisavô não cortou laços com seus entes queridos. Na verdade, sua passagem foi pública, não em segredo. Sua aparência deu a ele a oportunidade de comprar terras em Michigan quando voltou da guerra. Isso moldou a trajetória de toda a minha linhagem. “[O homem que vendeu a fazenda] era alguém meio preconceituoso e [não iria] vender aquela fazenda de 16 hectares para uma pessoa negra”, conta minha avó. Por isso, Walter “disse que não era negro, que era indígena ou algo assim, qualquer coisa menos negro, é como eram as pessoas preconceituosas”. Na sua vida privada, meu bisavô viveu com orgulho, como um homem negro. Ele se casou, criou sua família naquela terra e, depois, passou a fazenda para os seus filhos. A terra sustentou diversas gerações e é a mesma onde minha mãe foi criada. Na minha família, a história de Walter é contada com afeto. Ele fez o que precisava fazer para sobreviver e prosperar contra todas as adversidades. Na verdade, ele também ajudou os seus irmãos a sair da Carolina do Sul. “Ele chamou seus irmãos do sul para virem para o norte. E foi assim que muitas pessoas negras saíram do sul – um familiar os retirava do sul para longe dali”, conta minha avó. Embora a escravidão tivesse terminado há muito tempo, “eles precisavam sair à noite para fugir”, de forma que o dono da plantação não soubesse que eles estavam indo embora. “Você não saía, você ficava naquela plantação, isso é o que realmente acontecia.” Na minha família, é difícil dizer qual foi o verdadeiro impacto da passagem de Walter e quanto segredo ela envolveu. Pelo menos, Walter não precisou mentir para sua esposa e seus filhos – ao contrário de outros, quando se casavam com mulheres brancas. Seus entes queridos sempre souberam. Mas e a comunidade como um todo? Houve momentos em que ele esteve em perigo, em que teve medo de ter analisado mal a situação e pudesse ser descoberto a qualquer momento? Como acontece com muitas histórias de família, existem aspectos que nunca saberemos. Quando falei com minha avó para esta reportagem, descobri que ela se identifica como mestiça, o que eu nunca havia percebido antes. “Nunca me considerei de uma raça específica, eu sou mestiça”, afirma ela. “Nós somos chamados de americanos, um pouco de cada coisa.” Não sei ao certo quem foi a primeira pessoa a contar o segredo de Walter para alguém fora da família. Mas quem quer que tenha feito devia ter a certeza de que as circunstâncias já haviam mudado o suficiente e que já era seguro contar a história. Será que este orgulho pela vontade de sobreviver do meu ancestral afeta o impacto do segredo sobre a minha família, talvez se tornando uma fonte de força e não de dor e trauma? Cagney Roberts perguntou a renomados especialistas em segredos sobre o impacto de guardar um segredo a longo prazo e suas respostas foram surpreendentes. Os pesquisadores descobriram que os segredos são surpreendentemente comuns. Na verdade, muitos de nós chegamos a manter uma coleção inteira de segredos. O psicólogo Michael Slepian é um dos principais especialistas na psicologia dos segredos e autor do livro The Secret Life of Secrets (“A vida secreta dos segredos”, em tradução livre). Outros segredos podem ser mantidos em confidencialidade, mas revelados para algumas pessoas, dependendo do tipo de segredo. Os estudos indicam que experiências como o uso de drogas ou a insatisfação com o emprego são compartilhados com mais frequência, pelo menos com algumas pessoas, enquanto experiências e sentimentos como o desejo romântico ou o comportamento sexual são “certamente os principais segredos que não são compartilhados com ninguém”. Slepian e seus colaboradores desenvolveram uma lista de 38 categorias comuns, nas quais se enquadram os segredos. Elas cobrem uma ampla variedade de assuntos: crenças, família, finanças, ambições, hábitos, hobbies, uso de drogas, dificuldades de saúde mental, mentiras, trabalho, relacionamentos, sexo e muito mais. Os mais comuns, pela ordem, estão relacionados a ouvir uma mentira significativa (e manter o segredo); ter um desejo romântico enquanto solteiro; e segredos referentes ao dinheiro e finanças pessoais. Em casos como o da passagem de Walter, que era conhecida da família, mas não do mundo exterior, a distinção entre a privacidade e o segredo nem sempre é tão perceptível. “Pode haver algumas áreas cinza entre a privacidade e o segredo”, afirma Slepian. Algumas pessoas podem não querer falar sobre sexo e dinheiro, por exemplo, por motivos de privacidade. “Mas, quando se torna um segredo, não é apenas porque ninguém sabe daquilo sobre você, mas porque você pretende que as pessoas não fiquem sabendo daquela informação”, explica ele. Apesar de serem tão comuns, os segredos podem trazer um custo. “As pessoas mantêm segredos por todo tipo de motivos, mas principalmente para proteger relacionamentos, a si próprios ou a outras pessoas. Os segredos causam prejuízo quando um relacionamento é afetado ou quando ele assombra o dono do segredo”, afirma Evan Imber-Black, professora de casamento e terapia familiar do Mercy College, em Nova York, nos Estados Unidos. As evidências dos estudos de Slepian também indicam que os segredos podem prejudicar seus donos. Manter um segredo foi associado a menor satisfação na vida, redução da qualidade dos relacionamentos e sintomas de problemas de saúde física e psicológica. Pode-se pensar que isso se deve ao estresse e à ansiedade de precisar esconder algo das pessoas, mas Slepian afirma que as razões reais são mais complexas. “A ideia de que os nossos segredos nos prejudicam porque é difícil e estressante escondê-los, na verdade, está errada”, afirma ele. “Nossos segredos realmente nos machucam, mas, muitas vezes, por outros motivos, associados à sensação de vergonha, isolamento e inautenticidade.” “Estas experiências podem nos causar sensação de impotência e manter um segredo durante uma conversa é apenas uma pequena parte da dor e do estresse causados pelos segredos”, afirma Slepian. No caso da família de Alex, deve ter havido ocasiões em que manter o segredo realmente causou dor e estresse. Mas o impacto terá sido diferente porque era um mecanismo de sobrevivência? Lowery sugere que o impacto da passagem pode atravessar gerações, mas o contexto mais amplo da opressão pode ter um impacto ainda maior. “Existem boas possibilidades de que haja algum trauma agudo ou que tenha acontecido alguma tragédia que molde os indivíduos de famílias que sofreram a passagem racial, afetando como as pessoas se comportam hoje em dia”, afirma ele. “Pode causar falta de identidade entre diversas gerações que não pode ser rastreada.” “Mas esse trauma, na verdade, é reflexo das incríveis degradações de todo o sistema estatal a que toda a comunidade negra foi submetida de alguma forma”, ressalta Lowery. E o impacto individual de um segredo pode variar. Alex conta que se sente empoderada pela história oculta da sua família e pela coragem do seu ancestral. A história faz com que ela se sinta corajosa e segura, por ela própria e pela sua linhagem. Para aqueles que têm sentimentos menos positivos sobre o segredo da sua família, Slepian tem um conselho: pensar em como manter o segredo faz você se sentir. Se a resposta for “culpado”, pode estar na hora de aprender com o passado e tomar decisões diferentes no presente – incluindo, talvez, uma maior abertura. “Quando as pessoas se sentem culpadas, elas ficam motivadas a fazer alguma coisa”, segundo Slepian. “Você não pode mudar o passado, não importa o quanto quiser que isso aconteça. Mas você pode tomar a direção correta hoje e continuar a fazer o mesmo amanhã.”
2023-04-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c51jyx1q471o
sociedade
O que pesquisadora aprendeu ao estudar o cérebro das mulheres por 20 anos
"As mulheres são obras de arte. Por fora e por dentro. Sou neurocientista e me concentro no interior, principalmente no cérebro das mulheres." Com essas palavras, Lisa Mosconi começou sua apresentação "Como a menopausa afeta o cérebro", no TedTalk. Mosconi é professora de neurociência e diretora do Programa de Prevenção de Alzheimer no Centro Médico Weill Cornell, da Universidade de Cornell, em Nova York. Durante anos, se concentrou em estudar os cérebros de pacientes vivos e investigou as diferenças entre os cérebros de mulheres e homens. "Posso garantir que não existe um cérebro de gênero. Rosa e azul, Barbie e Lego. São invenções que nada têm a ver com a forma como nossos cérebros estão formados", assegura. Fim do Matérias recomendadas A BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, conversou com a médica sobre as principais descobertas de sua pesquisa e sobre seu livro "The XX Brain" ("O cérebro XX", em uma referência aos pares de cromossomos sexuais XX, ligadas ao sexo feminino). Vejo a seguir os principais trechos da entrevista. BBC News Mundo - O que aprendeu em 20 anos estudando o cérebro das mulheres? Lisa Mosconi - Vários transtornos neurológicos e psiquiátricos afetam homens e mulheres em taxas e proporções diversas. Minha pesquisa indica que essa disparidade se deve em parte ao fato de que os cérebros de homens e mulheres envelhecem de maneira diferente e isso, consequentemente, afeta a saúde do cérebro. Por exemplo, as mulheres são duas vezes mais propensas que os homens a serem diagnosticadas com transtornos de ansiedade ou depressão e três vezes mais propensas a desenvolver doenças autoimunes que afetam o cérebro, como a esclerose múltipla. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Além disso, as mulheres têm quatro vezes mais chances de sentir dores de cabeça e enxaquecas. As mulheres também são mais propensas a desenvolver meningiomas, o tipo mais comum de tumor cerebral, e são mais propensas a acidentes vasculares cerebrais fatais. As mulheres são mais suscetíveis à doença de Alzheimer, a principal causa de demência em todo o mundo, afetando mais de 35 milhões de pessoas. Surpreendentemente, quase dois em cada três pacientes com Alzheimer são mulheres, o que significa que para cada homem com Alzheimer, há duas mulheres. Apesar dessas estatísticas, nenhuma dessas condições está classificada na área da "Saúde da Mulher". Atualmente, "Saúde da Mulher" concentra-se predominantemente na saúde reprodutiva. Para dar alguma perspectiva, uma mulher na faixa dos 60 anos tem quase duas vezes mais chances de desenvolver Alzheimer mais tarde na vida do que desenvolver câncer de mama. Enquanto o câncer de mama é legitimamente reconhecido como um problema de saúde da mulher, a doença de Alzheimer não é. Até hoje, a saúde cerebral das mulheres continua sendo uma das áreas da medicina menos pesquisadas, diagnosticadas, tratadas e financiadas. É crucial abordar essa disparidade e ampliar o alcance da saúde da mulher para incluir essas preocupações vitais. BBC News Mundo - Você pode nos dizer algo que acha fascinante ou bonito sobre como o cérebro feminino funciona? Mosconi - Muitos pensam no envelhecimento como um processo linear, mas esse não é o caso do cérebro das mulheres. Os cérebros das mulheres passam por mudanças significativas em pontos críticos específicos, aos quais me refiro como os "3 Ps": puberdade, gravidez (pregnancy, em inglês) e perimenopausa. Tanto a puberdade quanto a gravidez são acompanhadas por grandes flutuações hormonais e grandes mudanças corporais. Mas, embora os efeitos físicos desses estágios sejam óbvios, é fascinante notar que as mesmas mudanças hormonais também têm impacto em nossos cérebros. Surpreendentemente, tanto a puberdade quanto a gravidez fazem com que o cérebro da mulher encolha em certas regiões associadas à cognição e ao comportamento social. Mas, e aqui está o fato fascinante e bonito, os cientistas acreditam que esse encolhimento é a maneira do cérebro de remover neurônios desnecessários e criar espaço para novas conexões que suportam a transição para a idade adulta após a puberdade e a maternidade após a gravidez. Como resultado disso, os cérebros das mulheres se tornam menores, mas mais eficientes durante essas etapas fundamentais. Temos motivos para acreditar que uma melhora semelhante também ocorre na perimenopausa. BBC News Mundo - Em seu livro, você menciona que "embora os homens tenham cérebros maiores como consequência de terem corpos tipicamente maiores, as mulheres têm um córtex cerebral mais grosso que parece estar melhor interconectado". O que isso significa? Mosconi - Os cérebros das mulheres parecem ter uma "reserva cerebral" maior do que os cérebros dos homens. A reserva cerebral é a capacidade do cérebro de resistir a doenças, danos ou até mesmo ao envelhecimento. Quanto maior a capacidade de reserva do cérebro, menor a probabilidade de um indivíduo apresentar distúrbios cognitivos ou comportamentais associados ao envelhecimento ou doença. Por exemplo, as mulheres pontuam mais do que os homens em testes de memória em qualquer idade, mesmo depois de desenvolverem demência. Por outro lado, o aumento da reserva cerebral pode mascarar os sintomas iniciais da demência, fazendo com que algumas mulheres sejam diagnosticadas tarde demais para um tratamento eficaz. Muitos de nós estamos trabalhando para desenvolver ferramentas de detecção precoce que levem isso em consideração. Geralmente, o cérebro masculino produz mais serotonina, o neurotransmissor do 'sentir-se bem' que está envolvido no humor, no sono e até no apetite. Já as mulheres produzem mais dopamina (uma substância química presente no cérebro que regula nossa determinação e motivação para fazer coisas e obter recompensas). BBC News Mundo - Qual é o papel que os hormônios das mulheres desempenham na saúde do cérebro e como os dois cromossomos X que diferenciam as mulheres dos homens afetam a saúde do cérebro das mulheres? Mosconi - O cérebro das mulheres funciona com estrogênio. Dia após dia, as moléculas de estrogênio deslizam direto no cérebro, procurando por "receptores" especiais que tenham a forma certa para esse hormônio. Os receptores são como pequenas fechaduras esperando pela chave molecular correta (estrogênio) para que possam ser ativados. Essa é uma imagem vívida para uma ideia crucial: os cérebros das mulheres estão programados para receber estrogênio. Quando chega, ele se conecta a esses receptores e, no processo, ativa uma série de atividades celulares. Saber disso torna mais fácil entender como a menopausa pode desencadear uma cascata tão extrema de efeitos cerebrais. Os sintomas da menopausa são então as consequências desafiadoras de um cérebro cheio de receptores, que recebem cada vez menos o combustível de que necessitam para atuar. BBC News Mundo - Quanto dano a "medicina do biquíni" causou aos estudos do cérebro das mulheres e à saúde do cérebro das mulheres? Mosconi - Como explico no livro, mais e mais cientistas estão alertando para o fato de que não é apenas a segurança financeira, social e física das mulheres que permanece desigual: as mulheres também foram negligenciadas na área médica. Em parte, isso se deve ao fato de que ainda hoje ensinamos e praticamos o que chamo de "medicina do biquíni", que afirma que, do ponto de vista médico, o que faz uma mulher ser mulher é o nosso sistema reprodutivo. Historicamente, a maioria dos profissionais médicos acreditava que homens e mulheres eram essencialmente a mesma pessoa, apenas com diferentes órgãos reprodutivos e essas são as partes do corpo que um biquíni cobre. Dada a visão de mundo derivada desse modelo, a própria noção de saúde da mulher é problemática, pois a pesquisa e o cuidado permanecem confinados à saúde de nossos órgãos reprodutivos, o que é consequência direta de uma compreensão reducionista do que é ser mulher. BBC News Mundo - Uma das descobertas mais impressionantes de sua pesquisa é que "o declínio da fertilidade feminina com o início da menopausa tem um efeito enorme em nossos cérebros". Por que e como? Na verdade, você diz que os sintomas da menopausa começam no cérebro, não nos ovários. Mosconi - Durante a menopausa, os ovários param de produzir os hormônios estrogênio e progesterona, marcando o fim dos anos férteis de uma mulher. No entanto, esses hormônios também desempenham um papel na regulação da função cerebral. E o cérebro, por sua vez, controla sua liberação. Isso indica que a menopausa não é apenas um processo reprodutivo, mas também neurológico. Muitos sintomas da menopausa, como ondas de calor, suores noturnos, ansiedade, depressão, insônia, nevoeiro cerebral e episódios de perda de memória, se originam no cérebro e não nos ovários, tornando-os sintomas neurológicos. Mas essa perspectiva é frequentemente negligenciada. Quando comecei a pesquisar os efeitos da menopausa no cérebro, quase ninguém falava sobre isso. Poucas pessoas estavam cientes da conexão da menopausa com o cérebro, em vez de apenas com os ovários. Estou imensamente orgulhosa de que a ligação entre a menopausa e a saúde do cérebro das mulheres agora tenha passado a ser debatida. É gratificante saber que nosso trabalho está contribuindo para uma mudança na forma como percebemos e discutimos a saúde cerebral feminina. BBC News Brasil - Em seu TedTalk, quando menciona que parece que os cérebros das mulheres de meia-idade são mais sensíveis ao envelhecimento hormonal do que ao envelhecimento cronológico e que as mulheres sentem essas mudanças, mesmo que pensem que "suas mentes as estão enganando", você diz: "Realmente quero validar isso, porque é real. E só para esclarecer, se esse é o seu caso, você não está louca”. O que você diria para as mulheres que estão enfrentando dificuldades com a menopausa? Mosconi - Eu diria: "Eu te escuto. Você tem razão. Não está tudo na sua cabeça e você não está enlouquecendo". Eu também diria que ninguém precisa sofrer com a menopausa. Por mais alarmantes e desconcertantes que seus sintomas possam ser, é importante ter em mente que existem soluções. Há muitas ferramentas à nossa disposição que podem ser adaptadas às necessidades e preferências de cada mulher. Muitas de nossas pacientes estão interessadas na terapia de reposição hormonal da menopausa (também conhecida como TRH), outras em medicamentos não hormonais e outras ainda preferem remédios naturais e ajustes no estilo de vida. Tudo isso é útil, é só uma questão de encontrar a melhor estratégia para cada pessoa. BBC News Brasil - Em seu livro, você dá uma estatística assustadora: "Uma mulher de 45 anos tem uma chance de 1 em 5 de desenvolver Alzheimer durante o resto de sua vida, enquanto que em um homem da mesma idade, a chance é de 1 em 10”. É possível saber por que o cérebro das mulheres é mais vulnerável à doença? Mosconi - Há décadas, sabemos que depois que você envelhece, ser mulher é o principal fator de risco para a doença de Alzheimer. Até recentemente, isso era atribuído à maior expectativa de vida das mulheres em relação aos homens, já que a doença de Alzheimer geralmente afeta pessoas mais velhas. No entanto, uma explicação mais completa é que vários fatores contribuem para o aumento do risco de Alzheimer em mulheres, sendo o envelhecimento hormonal um elemento-chave. Recentemente propusemos "A Hipótese do Estrogênio sobre a doença de Alzheimer ", que se baseia em evidências de que os hormônios femininos, particularmente o estradiol, fornecem um efeito protetor no cérebro ao protegê-lo do envelhecimento e de doenças. A diminuição do estradiol após a menopausa pode ativar a predisposição genética de uma mulher para a doença de Alzheimer, ao mesmo tempo em que torna seu corpo e cérebro mais suscetíveis a influências médicas, ambientais e de estilo de vida negativas. Em outras palavras, nossa pesquisa sugere que a menopausa pode servir como um gatilho para a demência em algumas mulheres. Gostaria de esclarecer que a menopausa não 'causa' Alzheimer. Como um evento, a menopausa é mais como um gatilho pelo qual você anula o superpoder do estrogênio e seus hormônios que o acompanham, e o cérebro precisa encontrar novas maneiras de funcionar com eficiência. BBC News Mundo - O que você quer que as mulheres saibam sobre seus cérebros? Mosconi - Que a saúde na meia-idade é a melhor prevenção para a sua saúde na velhice e para o resto de suas vidas. Portanto, encorajo todas as mulheres que chegam à meia-idade a priorizar a saúde do cérebro e a lembrar que o autocuidado não é egoísta. Esperamos que nosso trabalho inspire vocês a cuidarem de seus belos cérebros durante a menopausa e além. A doença de Alzheimer começa com mudanças negativas no cérebro no início da meia-idade, quando estamos na casa dos quarenta e cinquenta... e não na velhice. Isso pode ser uma surpresa para alguns, então me deixe esclarecer: sempre associamos o Alzheimer à velhice porque é a idade em que a doença consegue causar danos suficientes para o aparecimento de sintomas cognitivos consistentes. Na realidade, a doença lança o seu ataque muitos anos antes. BBC News Mundo - Você escreveu: "À medida que as mulheres se aproximam da meia-idade, há uma janela crítica de oportunidade para detectar sinais de aumento do risco cerebral e intervir com estratégias para reduzir ou prevenir esse risco". Como nós, mulheres, podemos nos proteger da demência e de outras doenças? Mosconi - Há uma série de coisas que toda mulher, independentemente da idade, pode fazer para proteger a saúde do cérebro: abster-se de fumar, estar fisicamente ativa, ter uma dieta rica em plantas, reduzir o estresse, dormir o suficiente e evitar toxinas ambientais. Todas essas são ótimas maneiras de apoiar a saúde do cérebro e também reduzir o risco de demência no futuro. É preciso disciplina, mas os benefícios são para toda a vida. Com base em nossa pesquisa, também recomendaria fortemente exames médicos regulares que incluam avaliações e controles hormonais. Acredito fortemente que esses tipos de avaliações devem se tornar um importante foco das estratégias de prevenção da doença de Alzheimer em mulheres. O cérebro é afetado pela menopausa pelo menos tanto quanto os ovários. Meu lema é "A saúde do cérebro é a saúde da mulher". *Trechos do livro da editora Océano, traduzidos em espanhol por Wendolín Perla.
2023-04-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cp4v57yq028o
sociedade
Por que 'epidemia de demissões' está se espalhando entre empresas
Quando o professor de comportamento organizacional Anthony Klotz cunhou a expressão "Grande Renúncia" em 2021, sua única intenção era falar sobre a tendência que levou um grande número de trabalhadores norte-americanos a deixar seus empregos durante a pandemia de covid-19. Mas, agora, Klotz se pergunta se terá criado, até certo ponto e sem querer, uma profecia que acabou se concretizando. Pedir demissão viralizou — tanto online e como na vida real. Nos Estados Unidos, por exemplo, dados publicados em janeiro pelo Escritório Norte-Americano de Estatísticas Trabalhistas demonstram que cerca de 49 milhões de profissionais demitiram-se do emprego em 2021 e mais de 50 milhões, em 2022. E existem estudos que demonstram que muitos dos profissionais que se mantiveram no emprego ainda estão pensando em se demitir. Uma pesquisa do LinkedIn envolveu um conjunto de dois mil profissionais. Entre eles, cerca de três quartos dos jovens da Geração Z e dois terços dos millennials pensam em pedir demissão dos seus empregos este ano. E as gerações mais velhas ainda estão considerando possíveis demissões, incluindo 55% da Geração X e um terço dos Baby Boomers. Os profissionais que se demitem mencionam muitas razões para a decisão, como o desejo de maior flexibilidade, dinheiro ou benefícios, ou de abandonar culturas empresariais negativas. Mas existe também a noção de que demissões geram demissões. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os pesquisadores criaram a expressão "demissão por contágio" para descrever o fenômeno segundo o qual, quando uma pessoa pede demissão, a possibilidade de que ela seja acompanhada pelos seus colegas aumenta – segundo um estudo, em até 25%. Para Klotz, os números de pedidos de demissão que dominam as manchetes fizeram com que o efeito se espalhasse rapidamente pelo mundo profissional. Segundo ele, de certa forma, o "fator bem-estar" de deixar um emprego pode ser empoderador para os profissionais. "Muitos de nós nos sentimos um tanto impotentes ao longo dos anos de pandemia e até nos anos que a antecederam", afirma ele. "Pedir demissão do emprego pode ser um momento empoderador." Ele prossegue: "durante o relacionamento com o nosso empregador, ele detém o poder. Nós precisamos do salário e, por isso, fazemos o que o empregador quer que nós façamos, mesmo se não quisermos." "Quando você começa a pensar em demitir-se, essa dinâmica de poder começa a mudar. E isso realmente é tentador e inebriante." "Quando você começa a pensar 'não preciso mais disso, posso fazer o que o meu colega fez e ir trabalhar naquela outra empresa' surge um surto de poder", afirma Klotz. É tentador, segundo ele, porque "parece libertador". E, quando os profissionais leem constantemente as notícias sobre pessoas que se demitem ou até assistem a vídeos virais de pedidos de demissão, "pode ser difícil resistir". Klotz afirma que, antes de viralizar, "pedir demissão era uma espécie de tabu, algo que você enfrentava sozinho. Era uma espécie de processo secreto. Nos últimos anos, surgiu essa onda de pessoas que se sentiram mais confortáveis para falar a respeito." Mas nem tudo são flores. A tendência de pedir demissão pode ofuscar a dificuldade que muitas pessoas enfrentam ao sair do emprego. Para Klotz, por exemplo, uma das desvantagens da demissão ter se tornado algo tão público é a sensação de que seria uma decisão fácil e razoavelmente rápida. Isso pode levar as pessoas a fazer uma ligação precipitada e demitir-se, em vez de ponderar antes de tomar a decisão. Se todos estão fazendo, parece fácil, segundo Klotz, "mas é claro que é uma das maiores decisões de careira que alguém pode tomar". A professora de administração Caitlin Porter, da Universidade de Memphis, nos Estados Unidos, é uma das autoras de uma recente análise de pesquisas sobre a epidemia da rotatividade. Ela indica que o discurso do pedido de demissão como tendência raramente conta as reais dificuldades do processo. "Você sabe como é sair de uma empresa?", pergunta ela. "Se você morar em uma região metropolitana, talvez haja outro empregador que você possa visitar, mas, se não for o caso, você pode estar mudando sua família de lugar." Começar em um novo cargo também não é algo simples. "Normalmente, leva pelo menos seis meses a um ano para conseguir velocidade e construir os relacionamentos necessários para que você seja eficiente no novo cargo", prossegue Porter. "Toda a sua vida fica comprometida. O início de um novo emprego é realmente uma das épocas mais estressantes. É muito trabalho. É muito difícil." Porter acrescenta que o glamour recém-descoberto de pedir demissão também pode seduzir as pessoas erradas. Os profissionais mais susceptíveis à demissão por contágio são aqueles menos "incorporados" aos seus empregos – muitas vezes, funcionários mais jovens ou com "pouca estabilidade" em outros grupos demográficos, que podem, na verdade, não estar na melhor posição para demitir-se. E, mesmo se um novo emprego oferecer melhor salário, flexibilidade ou outros benefícios, mudar de empresa com frequência pode dificultar o progresso profissional. Especialistas afirmam que profissionais que se demitem antes do tempo "devido" – ou seja, antes que tenham realizações suficientes no emprego atual para beneficiar-se no seguinte, ou pelo menos que tenham ficado tempo suficiente para conseguir boas referências – podem ter suas carreiras prejudicadas. Isso pode ser especialmente negativo para grupos que já são naturalmente marginalizados, como as mulheres e os não brancos, que normalmente já "não ascendem aos mesmos níveis nas organizações que os membros de grupos privilegiados", segundo Porter. Para ela, isso se deve, em parte, ao fato de que aqueles mesmos grupos apresentam os índices de rotatividade mais altos. É uma questão que a tendência à demissão só exacerba. Mesmo tendo provavelmente ajudado a promover a tendência dos pedidos de demissão, Anthony Klotz aconselha aos profissionais que o melhor a fazer no momento é resistir à tentação. Ele afirma que uma possível transição profissional não deve ser tratada como uma mudança simples, mas como uma importante mudança de vida – simplesmente porque esta é a verdade. "De certa forma, existe um paralelo entre pedir demissão e romper um relacionamento longo na sua vida pessoal", afirma ele. "É complicado, é emocional e você realmente não sabe como irá se sentir até que aconteça. É difícil prever como as coisas irão sair."
2023-04-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2erelevymno
sociedade
Os gráficos que mostram os paradoxos da expectativa de vida no Brasil
A expectativa de vida do brasileiro cresceu 40% nos últimos 60 anos. Mesmo assim, o país tem o segundo pior índice entre as dez maiores economias do mundo. Em seis décadas, os brasileiros foram superados pelos chineses no tempo esperado de vida e seguem à frente apenas dos indianos — enquanto isso, a diferença em relação aos japoneses, líderes do ranking, supera os dez anos. Em comparação com os vizinhos da América do Sul, o Brasil historicamente só tinha índices melhores que Bolívia e Peru. Mas os números melhoraram a partir dos anos 1990 e se aproximam cada vez mais do que é observado em outras nações mais longevas da região, como Argentina, Chile e Uruguai. Em suma, a expectativa de vida é indicador que avalia quantos anos um indivíduo que acaba de nascer deve viver se as condições econômicas, sociais, políticas e de saúde público permanecerem as mesmas dali em diante. Ou seja: espera-se que um brasileiro que veio ao mundo no dia de hoje, diante de todos os fatores atuais, viva 74 anos, em média. Esse limite pode subir ou cair, a depender de como a realidade e as políticas públicas mudem — para melhor ou para pior. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Estados Unidos, China, Japão, Alemanha, Índia, Reino Unido, França, Itália, Brasil e Canadá formam hoje o grupo das dez maiores economias do mundo. Quando o assunto é expectativa de vida, há assimetrias gritantes entre essas nações. Segundo as estatísticas da ONU e do Banco Mundial, espera-se que um japonês viva em média 84,6 anos e um italiano chegue aos 82,3. Já um brasileiro alcança ao redor de 74 e um indiano os 70,1. Falamos, portanto, de diferenças que superam uma década de vida de acordo com a nação onde um indivíduo nasce. A figura se inverte quando analisamos a mudança relativa na expectativa de vida — ou quanto esses números subiram entre 1960 e 2020. Nas nações historicamente mais ricas (Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Alemanha, França e Itália), esse crescimento fica abaixo dos 20%. A única exceção é o Japão, que ampliou o índice em 25% nas últimas seis décadas. Já nos três países emergentes, essa aceleração é bem mais rápida: no Brasil, a expectativa de vida cresceu 40% nesse meio tempo. A porcentagem é ainda maior na Índia (55%) e na China (134%). Para ter ideia, um chinês vivia 33,2 anos em 1960. Em 2020, essa média estava em 78 anos. A demógrafa brasileira Márcia Castro, professora da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, explica que essas subidas aceleradas de Brasil, Índia e China podem ser explicadas pelo impacto que algumas medidas têm em regiões menos desenvolvidas. "Falamos de países em que a carga das doenças infecciosas e da mortalidade infantil era muito alta, o que impactava na expectativa de vida", contextualiza. "Portanto, quando você cria políticas de redução da mortalidade infantil, de vacinação, de saneamento e de atenção básica em saúde, o efeito é amplo e as pessoas acabam vivendo mais anos", ensina. E isso, por sua vez, faz a média da expectativa de vida da nação subir. Nos países mais ricos — Reino Unido, França, Itália, Japão… — problemas como as doenças infecciosas e a alta frequências de óbitos precoces de crianças já foram superados há tempos, bem antes dos anos 1960. O principal desafio deles, então, é lidar com os ajustes finos das doenças crônicas não transmissíveis, que são típicas do envelhecimento e do estilo de vida moderno, como a obesidade, o câncer, a hipertensão e o diabetes. E, mesmo se eles tiverem programas de diagnóstico e tratamento muito eficazes para essas enfermidades, o efeito dessa melhora no tempo de vida dos cidadãos será naturalmente mais tímido. "Afinal, há um limite de quanto tempo o ser humano consegue viver. Com isso, os países que já têm expectativas de vida maiores tendem a crescer menos na média em anos recentes", complementa a médica e epidemiologista Ligia Kerr, vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Ao longo das seis últimas décadas, Chile, Uruguai e Argentina mantiveram a dianteira da América do Sul quando o assunto é expectativa de vida. Apesar de ser a maior economia da região, o Brasil sempre esteve nas últimas posições desse ranking, ao lado de Bolívia e Peru. Para ter ideia, um argentino vivia uma média de 63,9 anos em 1960, enquanto o brasileiro só chegava até os 52,6 — uma diferença de 11 anos. A situação começou a mudar de figura a partir dos anos 1990, quando essa disparidade em relação a alguns vizinhos sul-americanos começou a ficar cada vez menor. Enquanto a expectativa de vida do Brasil subiu 5,3% na década de 1990, essa taxa se elevou em 2,7% na Argentina e 2,2% no Uruguai. Mesmo assim, esses países ainda têm índices superiores: hoje em dia, espera-se que um argentino viva por 75,8 anos, enquanto um brasileiro chegue aos 74. Mas o que explica essa retomada de nosso país nas últimas três décadas? "Os anos 1990 marcam a estabilização da economia, a criação de programas direcionados à população mais vulnerável e a implementação de um sistema de saúde público e universal", lista Castro. "O Sistema Único de Saúde (SUS) foi, e continua a ser, um dos maiores mecanismos de redução de desigualdade, acesso à saúde e diminuição da mortalidade já criados no Brasil", diz ela. A professora de demografia aponta que vários trabalhos científicos mostram exatamente isso: a construção de uma rede de saúde pública espalhada pelo país permitiu melhorar vários dos indicadores populacionais, como a própria expectativa de vida. O SUS se encaixa, portanto, numa daquelas intervenções universais que produzem um impacto gigantesco, como explicado no tópico anterior. "Antes do SUS, muitas pessoas dependiam quase exclusivamente da caridade das Santas Casas de Misericórdia", reforça Kerr, que também é professora da Universidade Federal do Ceará. A epidemiologista também chama a atenção para as políticas de transferência de renda nesse contexto. "Uma das coisas que mais impacta a qualidade e a expectativa de vida é a desigualdade", pontua. "Temos inúmeros estudos mostrando como programas no estilo Bolsa Família são capazes de reverter situações de pobreza e ameaças à saúde", complementa. Mas isso, claro, não quer dizer que todos os problemas do país estejam resolvidos e tenhamos atingido um teto na expectativa de vida. "Ainda temos os chamados bolsões de inequidade, que muitas vezes ficam mascarados numa grande média nacional", conta Castro. "Há municípios e regiões inteiras do Brasil com altos índices de mortalidade infantil ou doenças infecciosas que necessitam de políticas públicas voltadas aos mais vulneráveis", completa. Agir nesses locais específicos, portanto, é um dos caminhos para ampliar ainda mais a expectativa de vida do brasileiro — e se aproximar ou até superar o que é observado entre os vizinhos sul-americanos. Quando analisamos especificamente os Brics — o bloco composto pelas economias emergentes de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul — é possível ver como as curvas de expectativa de vida podem melhorar ou piorar com o passar do tempo. Neste grupo de nações, o Brasil é a que mantém uma trajetória ascendente, sem grandes subidas ou descidas. Mas repare bem o que acontece com os demais, especialmente com China e Rússia. Enquanto os chineses têm um salto de 134% na expectativa de vida em seis décadas, os russos chegam a ter um decréscimo de 4,2% neste indicador ao longo dos anos 1990. Isso faz com que a expectativa de vida da Rússia tenha uma janela de menos de quatro anos entre o que foi registrado em 1960 (67,4 anos) e 2020 (71,3). Nos demais integrantes do Brics, essa diferença é bem maior: aconteceram "pulos" de 12 anos na África do Sul, de 21 no Brasil, de 24 na Índia e de 44 na China. Segundo as especialistas ouvidas pela BBC News Brasil, esse fenômeno reflete todo o turbilhão político pelo qual este país passou no período, com o fim da União Soviética. "Os eventos de saúde estão diretamente relacionados com a situação social em que as pessoas vivem", contextualiza Kerr. "O fim da União Soviética representou a perda de empregos, de direitos e de toda uma organização social que eventualmente impactaram a expectativa de vida dos russos", complementa a médica. Castro concorda: "O colapso de todo um sistema político e econômico gerou rupturas em várias dimensões, que afetaram inclusive a saúde e o bem-estar das pessoas e causaram um choque de mortalidade." Esse tal choque de mortalidade, inclusive, também pode ser visto mais recentemente em escala global, com a pandemia de covid-19. Em todos os gráficos, é possível ver que vários países apresentaram uma queda na expectativa de vida em 2020, primeiro ano de espalhamento do coronavírus mundo afora. A tendência é que essa trajetória de descenso apareça também em 2021 e 2022, mas os dados ainda estão sendo compilados por Banco Mundial e ONU. "Mas é preciso destacar a carga de desigualdade, pois o choque de mortalidade foi diferente de acordo com o Estado ou o sexo", resume. "E essa foi uma mudança muito dramática e inesperada", conclui a professora.
2023-04-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1ekewggqwlo
sociedade
Como surgiu mito de que o Brasil foi descoberto sem querer
Qualquer um que tenha passado pelos bancos escolares brasileiros até meados dos anos 1980 certamente aprendeu uma floreada história sobre o episódio chamado de descobrimento do Brasil, o dia em que o navegador português Pedro Álvares Cabral (1467-1520) e sua comitiva avistaram as terras que depois se tornariam a maior colônia lusitana, em 22 de abril de 1500. Trata-se de uma narrativa épica, em que Cabral e seus comandados enfrentavam a fúria do Atlântico para consolidar a então nova rota comercial que ligava a Europa à Índia, contornando o continente africano e dobrando o Cabo da Boa Esperança. Mas então, nervosas que estavam as águas do oceano e sob intensa tempestade com forte ventania, as embarcações acabaram sendo obrigadas a ajustar a rota, “abrindo” cada vez mais para o oeste e distanciando-se da costa da África. Até que, acidentalmente, chegaram às tais novas terras, “descobrindo” o Brasil e tomando posse do território, com direito a celebração de missa e troca de presentes com os nativos. E assim, apregoavam os professores de história do ensino primário de antigamente, havia nascido o Brasil. Historiadores contemporâneos, contudo, colocam em xeque esta narrativa. Não há um consenso por que os documentos conhecidos são poucos e não explicam com clareza. Mas o que a grande maioria concorda é que Cabral ao menos sabia que encontraria alguma coisa indo por ali — não necessariamente um território tão grande. Fim do Matérias recomendadas E que parte de sua missão, além de consolidar a nova rota para a Índia, selando o sucesso empreendido anteriormente por Vasco da Gama (1469-1524), era estabelecer a conquista daquilo que havia sido garantido à coroa portuguesa pelo Tratado de Tordesilhas, firmado seis anos antes com a Espanha. Por que então foi criado o mito da descoberta por acaso? Quais eram os interesses dessa historiografia que foi tratada como verdadeira sobretudo do início do século 19 até a década de 1980? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pesquisador na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré, o historiador Victor Missiato explica à BBC News Brasil que essa versão “foi construída principalmente no século 19”. “O Brasil e o mundo passavam por um contexto de formação dos nacionalismos modernos, com o desenvolvimento de histórias teleológicas, com começo, meio e fim, muito lineares”, comenta ele. “Essa ideia de descobrimento é muito fortificada no século 19 pela monarquia brasileira e tem a intenção clara de criar um caminho reto, progressista, entre uma determinada ideia de descobrimento de um povo que está em busca de algo, juntamente com uma terra que necessita ser descoberta”, diz Missiato. Durante o período colonial, Portugal parece não ter feito questão de acentuar se a conquista do território brasileiro havia se dado de propósito ou não — a intencionalidade do feito não estava no centro das preocupações, a julgar pelos registros produzidos. “Se a descoberta foi acidental ou não, na época não havia problemas com isto”, afirma à BBC News Brasil o historiador André Figueiredo Rodrigues, professor da Unesp. “O que realmente interessava a Portugal era efetivar a posse do território que lhe pertencia pelo direito atribuído pelo Tratado de Tordesilhas.” Como enfatiza Rodrigues, “o importante foi a posse, mesmo que nosso processo de povoamento fosse tardio, uma vez que o interesse português naquela época estava no Oriente, por causa das riquezas proporcionadas pelo comércio das especiarias.” “A notícia do achamento de novas terras, a [então chamada de] Terra de Santa Cruz, pela expedição de Cabral ganhou a Europa rapidamente por cartas de mercadores radicados em Lisboa e pelo próprio rei, que espalhavam aos quatro cantos a descoberta de terra firme que lhe pertenciam no além-mar”, conta Rodrigues. “Se foi por acaso ou não, essa questão não interessava. O que valia era efetivar o direito de posse.” Para a historiadora Clarissa Sanfelice Rahmeier, professora na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), “toda a história do descobrimento ou achamento do Brasil deve ser entendida à luz de, no mínimo, dois elementos que caracterizavam o contexto em que se deu a vinda dos europeus para cá”. São eles os tratados de limites estabelecidos entre Portugal e Espanha “e a situação socioeconômica vivenciada pelos países ibéricos à época da chegada de Cabral”. “A narrativa que apresenta a versão da chegada por acaso deriva do primeiro elemento, referente à disputa, por Portugal e Espanha, das terras achadas ou por achar no processo de expansão marítima impulsionado pelos dois países”, pontua ela. Isso porque, como a linha estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas não era precisa, tanto o planejamento quanto a comunicação das viagens exploratórias eram impactados. “Havia várias interpretações a seu respeito e a falta de uma exata localização, bem como o desconhecimento do que seria encontrado nas terras do além-mar”, afirma Rahmeier. A historiadora ressalta que foi por conta disso que a coroa portuguesa financiou a viagem do explorador Duarte Pacheco Pereira (1460-1533) em 1498. Muitos acreditam que ele — e não Cabral — tenha sido o primeiro português a pisar nas terras que hoje são o Brasil. “A viagem foi mantida em segredo e os relatos advindos dela também”, destaca Rahmeier. “Se considerarmos a expansão marítima uma corrida por territórios, e pelas potenciais riquezas que eles teriam, entendemos melhor a não divulgação da viagem de Pacheco Pereira. Manter os planos da viagem em segredo não chamaria a atenção dos espanhóis para a região a que Portugal se destinava. Além disso, argumenta-se que Pacheco Perreira aportou em terras onde os limites do Tratado de Tordesilhas não eram claros, no norte do que hoje é o Brasil, na região onde [atualmente] se localizam os estados do Maranhão e do Pará.” Segundo ela, “a divulgação da viagem poderia despertar o interesse dos espanhóis para essa região fronteiriça”. Daí veio a viagem empreendida por Cabral. “A opção do rei Dom Manoel 1º, então rei de Portugal, foi organizar uma nova expedição com o intuito de tomar posse de uma área que seria certamente de domínio português de acordo com o Tratado de Tordesilhas”, explica ela. “Assim, a expedição de Cabral foi montada com o intuito de chegar a terras que com certeza pertencessem a Portugal e, assim, tomar posse do que fosse encontrado. Foi o que ocorreu.” Rahmeier acrescenta que como os documentos da viagem de Pacheco Pereira foram mantidos em sigilo, a expedição oficial de Cabral, “realizada em 1500 e com o intuito de tomar posse do que era português antes mesmo do achamento se tornou o centro das narrativas do descobrimento”. “O tamanho da expedição de Cabral e o fato de sua frota seguir para as Índias após a tomada de posse das terras além-mar acabaram por reforçar a versão da descoberta acidental do Brasil”, salienta. “Essa narrativa se perpetuou mesmo após os documentos relativos à viagem de Pereira serem divulgados, no século 19.” No caso, é o documento ‘Esmeraldo de Situ Orbis’, um manuscrito de autoria do próprio Pacheco Pereira, escrito no início do século 16 — mas que foi mantido como secreto por Portugal até ser reencontrado e publicado no fim do século 19. No documento, o explorador faz uma descrição que possibilita interpretar que ele esteve no território. Escreveu ele que, em 1498, “vossa Alteza mandou descobrir a parte ocidental, passando além da grandeza do mar Oceano, onde é achada e navegada uma tão grande terra firme, com muitas e grandes ilhas adjacentes a ela e é grandemente povoada”. “Tanto se dilata sua grandeza e corre com muita lonjura, que de uma parte nem da outra não foi visto nem sabido o fim e cabo dela”, relatou. “É achado nela muito e fino brasil com outras muitas cousas de que os navios nestes reinos vêm grandemente povoados.” De acordo com a historiadora Rahmeier, este documento costuma ser interpretado como registro da viagem de Pacheco Pereira ao Brasil — e confirmaria que a sua viagem teria fornecido as bases para a expedição de Cabral. “[Este documento vem à tona no fim do século 19] quando a narrativa do descobrimento acidental por Cabral já era amplamente consolidada na historiografia oficial, em currículos escolares e na imaginação sobre o descobrimento”, diz a professora. Para o historiador Victor Missiato, não há dúvidas de que quem consolidou essa ideia de “descobrimento por acaso” foi o império brasileiro, no contexto da pós-independência. É do período a construção do imaginário a respeito do episódio da chegada dos portugueses. “Se a gente pegar aquela obra do [pintor Victor] Meirelles [(1832-1903)], ‘Primeira Missa no Brasil’ [feita entre 1869 e 1861], há toda uma referência de um destino manifesto por parte da Igreja e de Portugal, no sentido de trazer a palavra, a verdade, o sentido de colonização para essas terras”, comenta ele. Foram assim erguidas as bases da narrativa. Segundo Missiato, “o descobrimento de um povo que vai construir sua história a partir das ideias do catolicismo e do nacionalismo”. “Essa versão [da descoberta ‘sem querer’] durou muito tempo porque primeiro ela se constituiu como uma história oficial no século 19 e essa ideia de história oficial que se utiliza apenas de fontes oficiais, durante muito tempo, foi considerada a história científica da modernidade”, aponta Missiato. Durante décadas, “toda a sociedade brasileira foi formada a partir dessa ideia oficial de descobrimento do Brasil”, ressalta o pesquisador. A partir dos anos 1930, ideias diferentes começaram a surgir no âmbito acadêmico. Mas ainda levaria muito tempo para serem adotadas essas versões pelos livros e apostilas escolares. “Havia interesses claros no sentido de perpetuar uma perspectiva redentora, salvadora e ao mesmo tempo uma perspectiva centralizadora da história do Brasil”, comenta ele. Afinal, uma chegada por acaso tira o peso da “conquista planejada”, que pode ser interpretada como nociva e dominadora. Uma descoberta acidental, fortuita, parece evocar um capricho do destino, facilitando a conexão mítica com ideias de salvação e redenção. O historiador André Figueiredo Rodrigues, contudo, recomenda cuidado antes de defender este ou aquele ponto de vista interpretativo. Ele enfatiza que “a documentação contemporânea da viagem de Cabral não permite estabelecer com precisão se a chegada portuguesa em terras nas Américas foi acaso ou intencionalidade”. Ele ressalta que o relato mais importante, a carta de Pero Vaz de Caminha (1450-1500), foi reconhecido como “o documento do descobrimento” apenas em 1817. “E somente após o fim da década de 1980, mais ou menos, é que outros 13 documentos coevos se juntaram ao rol do que chamamos de ‘documentos do descobrimento’”, comenta. “Dados constantes nesses novos documentos permitem acreditar que o território que mais tarde será chamado de Brasil foi pelo menos visitado por outros viajantes antes da chegada da esquadra de Cabral.” Rodrigues situa “a dúvida acerca do acaso ou intencionalidade do descobrimento” por conta da expedição realizada por Vasco da Gama à Índia em 1498. “Para formalizar acordos ali estabelecidos, o rei de Portugal armou a expedição de Cabral para atender aos requisitos do samarim, o senhor da cidade de Calicute, e de outros senhores do Oriente para trazer para a Europa as especiarias do Oriente”, contextualiza Rodrigues. “A expedição de Cabral tinha como objetivo retornar às Índias e estabelecer acordos comerciais locais. No trajeto e com receio de perder seus territórios nas Américas, a esquadra desembarca no Brasil, tomando posse oficial das terras nas Américas pertencentes a Portugal pelo Tratado de Tordesilhas.” “Nessa história, um dado se soma: esse tomar posse das terras pertencentes a Portugal nas Américas ocorreu por acaso. É isso que se acreditava, pois os fatos narrados acima não eram de conhecimento, e a carta de Caminha vislumbra-se pelo acaso e não pela intencionalidade”, aponta ele. Até 1817, quando o texto de Caminha foi descoberto e tornado público, nem a data era sabida. Acreditava-se que o Brasil havia sido descoberto pelos portugueses em 3 de maio de 1500, e não 22 de abril — daí o nome dado de Terra de Santa Cruz, já que celebra-se esse dia em tal data. E se a questão surgiu em 1817, isso acabou sendo incorporado como narrativa pelo Império Brasileiro, logo após a Independência de 1822 — e com os interesses em se criar uma identidade nacional. “O fato de inicialmente conhecermos apenas uma versão dos fatos levou-nos a acreditar na proposta do acaso, baseada apenas na versão dos documentos divulgadas pelos cronistas”, acrescenta Rodrigues. “Mas com a divulgação esporádica de documentos ao longo do século 19, questionamentos passaram a suscitar dúvidas sobre o achamento das terras do Brasil”, comenta. Possivelmente o primeiro a levantar essa lebre foi o historiador Joaquim Norberto de Sousa e Silva (1820-1891). Em 1852, ele publicou na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro um artigo chamado ‘O Descobrimento do Brasil por Pedro Álvares Cabral foi devido a um mero acaso ou teve ele alguns indícios para isto?”. “[Ali, ele] defendia a intencionalidade da descoberta efetuada por Cabral. É a partir de então que se inicia o debate, que se arrasta até hoje”, diz Rodrigues. “Joaquim Norberto de Sousa e Silva é quem revoluciona a interpretação [da chegada por acaso], trazendo à luz novos questionamentos como o que contesta o desembarque involuntário da esquadra de Cabral no litoral da Bahia, ocasionado pela corrente marítima equatoriana”, explica o historiador. “Se os ventos fossem os responsáveis pelo desvio da rota, a armada de Cabral deveria ter chegado ao litoral brasileiro mais ao norte e não na altura de [onde hoje fica] Porto Seguro.” O poeta Gonçalves Dias (1823-1864) usa a mesma revista para publicar um texto refutando Sousa e Silva. “[Ele indica] que o encontro do Brasil foi por acaso e que o ato da intencionalidade retiraria de Cabral o seu grandioso feito de nosso descobrimento”, analisa Rodrigues. De qualquer forma, esta não parecia ser uma questão que importava, naquele momento. A partir de 1861, o livro Lições de História do Brasil, do escritor, médico e professor Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) acabou se tornando um material didático amplamente difundido no Brasil. E suas ideias, conforme ressalta Rodrigues, “circulavam pelas escolas como reprodutora de nossa história nacional e promulgadora do patriotismo estimulado aos jovens”. “Foi o grande livro da época… Em suas páginas, quando se lê sobre o descobrimento, nada existe sobre a polêmica intencionalidade ou acaso”, frisa o historiador. “O que ele fez foi valorizar a presença portuguesa em terras americanas, nada mais.”
2023-04-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c04me811jmmo
sociedade
Como morte de Moonbin reascende debate da pressão sobre astros do K-pop
A morte da estrela do K-pop Moonbin chocou os fãs ao redor do mundo — e novamente destacou as pressões que esses artistas enfrentam. O jovem de 25 anos da boy band Astro era cantor, ator e modelo. A morte dele ocorreu no meio de uma turnê mundial em dupla com Sanha, também membro do Astro. Embora a causa exata da morte ainda esteja sendo investigada, a polícia disse que Moonbin "parece ter tirado a própria vida". É a última de uma série de mortes repentinas de jovens celebridades que atingiram a indústria de entretenimento sul-coreana. Jung Chae-yull, uma atriz de 26 anos, foi encontrada morta na casa dela no início deste mês. A atriz Yoo Joo-eun morreu aos 27 anos em agosto de 2022. Sulli, ex-integrante do grupo feminino f(x), morreu em 2019, aos 25 anos, após uma longa luta contra o bullying virtual. E a amiga dela Goo Hara, também estrela do K-pop, foi encontrada morta em casa um mês depois. Nem todas as mortes foram reconhecidas como suicídios. Mas a perda de Moonbin renovou o escrutínio no mundo altamente competitivo do show business coreano. Conhecida por sua cultura hipercompetitiva, a Coreia do Sul também tem a maior taxa de suicídio juvenil entre os países desenvolvidos. Enquanto sua taxa geral de suicídio está caindo, as mortes de pessoas na faixa dos 20 anos estão aumentando. E ser uma celebridade na Coreia do Sul significa estar sob uma pressão muito maior em comparação com as estrelas pop na América do Norte ou na Europa, de acordo com Rob Schwartz, correspondente da revista Billboard na Ásia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A competição é acirrada desde o início. Ser artista é uma escolha de carreira altamente popular para jovens coreanos. Uma pesquisa feita pelo ministério da educação sul-coreano em 2021 mostrou que atores, modelos e cantores estavam entre os 10 principais empregos dos sonhos para alunos do ensino fundamental. Mas para ser uma estrela do K-pop, a maioria das pessoas precisa passar por um período de treinamento exaustivo, o que significa que eles perderão conexões com amigos e colegas. Isso pode durar anos. Além do glamour - o outro lado do K-pop No caso de Moonbin, apesar de já ter sido um ator mirim na popular série de drama coreana Boys Over Flowers, aos 11 anos de idade, ele ainda precisou treinar por oito anos antes de fazer sua estreia como membro do grupo Astro. A irmã dele, Moon Sua, também cantora de K-pop da girl band Billlie, passou 12 anos se preparando. Após inúmeras rodadas intensas de seleção, apenas um pequeno número de trainees chega ao palco. E o que os espera é uma indústria que já está sobrecarregada de estrelas. O controle das agências de celebridades e a cultura de fãs são os dois principais fatores que contribuem para o enorme estresse que as estrelas coreanas enfrentam, apontou Schwartz. Costumava ser um caso comum que novas carreiras fossem vinculadas aos chamados contratos de escravos — longos acordos exclusivos com pouco controle de seu calendário ou recompensa financeira. Enquanto algumas estrelas do K-pop ganharam casos que os livraram de contratos irracionais nos últimos anos, ele não acha que o relacionamento entre as duas partes mudou fundamentalmente. "As estrelas do K-pop têm mais controle, no sentido de que não são tão controladas", diz Schwartz. "As coisas mudaram, mas eu não diria necessariamente que melhoraram." E o entusiasmo dos fãs, amplificado pelas redes sociais extremamente ativas do país, às vezes pode ser uma faca de dois gumes. "Eles prestam atenção em cada movimento, comentam sobre o cabelo", explica Schwartz. "É uma loucura como eles colocam esses caras sob um microscópio." Depois de estrearem, as celebridades não são apenas observadas de perto por seus fãs, mas por toda a sociedade. Em um país onde a disparidade tem sido um ponto de discussão, ser uma figura pública significa que o público vai exigir padrões mais altos . Dirigir embriagado, comumente considerado uma das piores ofensas que uma figura pública pode cometer na Coreia do Sul, poderia facilmente encerrar a carreira de um astro do K-pop. A proeminente atriz Kim Sae-ron, de 22 anos, enfrentou uma grande reação do público depois de bater o carro enquanto dirigia bêbada. "A Coreia tem um padrão moral muito rígido para as celebridades em comparação a outros países", diz o crítico de cultura pop coreana Ha Jae-kun. "Se uma estrela se comportar apenas um pouco diferente do que é considerado 'decente', o público irá atacá-la. E é difícil para um astro ignorar esse tipo de agressão por causa da alta pressão social de um forte coletivismo." Ser uma celebridade com problemas de saúde mental pode ser extremamente difícil, apontaram alguns especialistas. Em entrevista à BBC coreana em 2017, o astro do rap Swings, que foi diagnosticado com vários transtornos mentais, revelou o fardo que isso pode se tornar para eles. "É como andar nu", disse ele. “Eles dizem 'Achei que esse cara estava doente, sabe, como ele sobe no palco para se apresentar?' Eles obviamente não sabem o que está acontecendo." A indústria está ciente da pressão sobre a saúde mental de suas estrelas, e alguns ídolos do K-pop estão fazendo longas pausas para cuidar do seu bem-estar psicológico. Jeongyeon, membro do grupo Twice, fez quatro rodadas de pausas desde 2020 devido a problemas de saúde mental e uma lesão no pescoço. Ela a fez retorno aos palcos em março de 2023. Moonbin também fez um hiato em 2019 e 2020, alegando motivos de saúde. Diversas agências também introduziram sessões de terapia para estagiários e celebridades. O Naver, o maior site de busca da Coreia do Sul, fechou a seção de comentários nas notícias de entretenimento em 2020, reconhecendo o quão potencialmente tóxico o ambiente havia se tornado. Mas alguns ainda não veem um momento de mudança fundamental a curto prazo. "K-pop é algo próprio e todo mundo gostaria de torná-lo melhor para os ídolos do K-pop. Mas como você faz isso?", questiona Schwartz. "Os superfãs são tão obcecados por esses ídolos que parece um ciclo vicioso colocá-los sob um microscópio para atuarem em alto nível." Yuna Gu é repórter da BBC coreana com sede em Seul.
2023-04-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx70nqg5e07o
sociedade
Livro que ensina criança a se proteger de violência sexual é abraçado por conservadores e progressistas no Brasil dividido
Essa reportagem contém relatos que podem ser considerados perturbadores e causar gatilhos. CENA 1 Sentadas na cama, mãe e filha folheiam juntas um pequeno livro. Em uma das figuras, uma menina com rosto zangado cobre com as mãos a região das mamas e da vulva. Ela está vestida. Na mesma figura, também vestido, um menino cobre com as mãos a região do pênis. A legenda diz: "Pessoas em quem confio podem tocar em mim, mas não nas minhas partes íntimas". Fim do Matérias recomendadas Outra figura mostra uma mulher colocando uma toalha em volta do corpo de uma menina. Ao lado, vê-se uma banheira. A legenda diz: Posso precisar de ajuda para ir ao banheiro tomar banho e trocar de roupa. Mais adiante, outra figura mostra uma menina entrando por uma porta. Com ar ressabiado, ela olha para um homem atrás dela. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Perigo, diz a legenda. Tenho cuidado se alguém quer entrar no banheiro, me chama para brincar de médico ou passa a mão no meu corpo. Apontando para uma das figuras, a mãe diz: "Está vendo aqui, filha? Ninguém pode tocar nas suas partes íntimas." E virando a página: "E se alguém quiser entrar no banheiro, que nem está aqui nessa figura, você não deixa." A menina, uma adolescente com Síndrome de Down, tem dificuldade de fala. Com esforço, ela diz: "Não pode? Papai faz." "Faz o quê?", pergunta a mãe. "Mostra aqui no livro." Voltando para a primeira página, onde se vê uma menina de biquíni, com um "X" vermelho sobre a região genital, a menina aponta para a figura e diz: "Ele põe a mão aqui." Apreensiva, a mãe pede: "É mesmo, filha? Me mostra como ele faz." FIM DA CENA 1 Os nomes e outros dados pessoais foram omitidos, mas uma conversa muito parecida com essa realmente aconteceu. Foi assim que a mãe dessa adolescente descobriu que a filha estava sendo abusada sexualmente pelo padrasto. O abuso pôde ser identificado graças a um livro fininho, com muitas ilustrações e pouco texto, que está se tornando um poderoso instrumento de prevenção ou, onde ela já ocorre, de detecção da violência contra crianças, inclusive a sexual. Outro feito notável da revistinha, intitulada Eu Me Protejo, é sua aceitação por comunidades religiosas normalmente avessas a esse tipo de temática. E também por políticos conservadores e progressistas, entre eles, a ministra do Planejamento e Orçamento Simone Tebet, a deputada Celina Leão (PP), vice-governadora do Distrito Federal, o senador Romário (PL), a senadora Leila do Vôlei (PDT) e o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania Silvio Almeida. Em dezembro de 2022, Eu Me Protejo foi ganhador do prêmio Pátria Voluntária, concedido por Michele Bolsonaro e pelo antigo ministério da senadora Damares Alves (PR), o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Nessa reportagem, as autoras do livro, a jornalista Patrícia Almeida e a psicóloga Neusa Maria da Costa Ribeiro apresentam a cartilha e explicam como ela funciona. Com exemplos, também revelam como o abuso acontece - em segredo e, na maioria dos casos, dentro da família. Finalmente, fazem um apelo ao poder público: "Eu vou lá, descubro a violência, a cartilha tem meios de descobrir. Mas depois, o que vou fazer com essas crianças, com esses adolescentes, com essas famílias? Se não tenho uma rede de apoio para tirar a criança das garras do abusador?", pergunta Neusa Maria. O desenho dispensa explicações. Em primeiro plano, a palma de uma mão aberta, um gesto universal que quase grita: "Pare!". A mão, em primeiro plano, parece gigante em contraste com sua dona, parada logo atrás e olhando direto para você, as sobrancelhas arqueadas sobre os olhos zangados. A menina, com vestidinho curto e cabelo afro, não está para brincadeira. "Esse é o gesto que a gente ensina as crianças a fazerem, porque tem criança inclusive que não fala, então a gente ensina a botar a mão na frente - sai pra lá!", diz Patrícia Almeida à BBC News Brasil, comentando a ilustração na capa de Eu Me Protejo. "É inacreditável, mas 32 anos depois da publicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, a gente ainda não foi capaz de ensinar às crianças que o corpo é delas", diz Patrícia. Mãe de uma adolescente que tem Síndrome de Down, a jornalista há muito se perguntava como melhor preparar a filha para enfrentar os desafios que viriam com a puberdade e a se proteger dos riscos de abuso sexual e outras violências. "É um problema muito maior do que imaginamos", diz. "Se você é cega, surda, se você não fala, se você tem uma deficiência intelectual, você é muito mais vulnerável." "E se você precisa de ajuda para ir ao banheiro, até onde vai o cuidado e onde começa o abuso?" Quando a filha entrou na adolescência, Patrícia entendeu que precisava fazer alguma coisa. A menina era totalmente ingênua, despreparada para conviver com outros adolescentes, ela conta. "Tive a ideia de fazer o Eu Me Protejo." "Basicamente, são ilustrações e textos curtos dizendo, 'essas são as partes do seu corpo, o corpo tem partes que são íntimas, ninguém pode tocar nas suas partes íntimas, se alguém quiser tocar nas suas partes íntimas, fale com alguém de confiança'." Patrícia conta que, um dia, apresentou o livro em uma palestra no Distrito Federal para familiares de pessoas com deficiência. "Aí, uma psicóloga com mais de vinte anos de experiência trabalhando com violência doméstica me falou, 'nunca vi uma coisa tão fácil de entender'." A jornalista tinha feito o livro para a filha, mas se deu conta de que nenhuma criança estava tendo acesso àquele conteúdo. Começa, então, uma parceria entre Patrícia Almeida e a psicóloga especializada em atender crianças Neusa Maria. Neusa passa a utilizar a revistinha como ferramenta nos atendimentos e palestras que oferece a crianças e famílias em instituições de assistência, igrejas e escolas. Aos poucos, as próprias escolas começam a adotar a cartilha como instrumento didático. "É difícil para o professor falar sobre certos assuntos”, comenta Neusa em entrevista à BBC News Brasil. "Então, veio a cartilha Eu Me Protejo para instrumentalizar o professor para ensinar com livro, com música, com jogos", diz. "Ali tem uma forma lúdica de ensinar a criança a se proteger da violência." Mais adiante, veremos como a versão original da cartilha foi transformada com ajuda das próprias comunidades para que pudesse ser aceita em espaços onde, até então, esse assunto era proibido. Mas antes, Neusa mostra, com dois exemplos, como a cartilha trabalha para identificar o abuso. Segundo dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, 75,5% das vítimas de estupro no Brasil são vulneráveis (crianças, adolescentes, pessoas com deficiência ou incapazes de consentir). E 76,5% dos estupros acontecem dentro de casa. 82,5% dos abusadores são conhecidos da vítima (pais, padrastos, irmãos, primos, avós ou outros parentes). Um dado ainda mais preocupante, 10,5% dos vulneráveis estuprados eram crianças de 0 a 4 anos, 19,5% tinham entre cinco e nove anos e 31% tinham entre 10 e 13 anos. "Sabemos que isso acontece, mas até a gente ter o Eu Me Protejo, não tínhamos como chegar (ao problema)", diz Neusa. "A nossa sociedade vai legitimando a violência sexual como um carinho." O caso da adolescente cuja história abre essa reportagem ilustra bem esse ponto. Neusa conta que a mãe da criança veio conversar com ela após uma oficina. "Eu estava explicando como os pais devem ensinar a criança a tomar banho", lembra. Ela ressalta que um dos objetivos de Eu Me Protejo é incentivar a autonomia e dar protagonismo à criança. "EU me protejo", ela diz, enfatizando a palavra "eu". "Mas a mãe me relatou que o padrasto da criança era muito cuidadoso, tinha muito ciúme, amava muito a criança." "Ele dizia que a menina não conseguia se limpar direito e que podia pegar alguma infecção." Neusa conta que achou aquilo estranho. A menina tinha Síndrome de Down, mas já era uma adolescente. O natural seria que o padrasto encorajasse a menina a ser mais independente, aconselhou Neusa. "A mãe ficou atenta", lembra a psicóloga. "Ela levou o livro para casa para ler com a filha." E descobriu que o marido estava na verdade usando a deficiência da enteada como um subterfúgio. Seu objetivo era abusar dela. "Não era amor, era abuso", diz Neusa. A adolescente nessa história tinha dificuldade de fala por causa da Síndrome de Down. As ilustrações da cartilha permitiram que ela se comunicasse de outra maneira. No caso a seguir, veremos como o livro permitiu que uma criança pequena que não tinha deficiência pedisse socorro. CENA 2 Na sala de atendimento, psicóloga e menina de 4 anos folheiam juntas um livro. Apesar de saber falar, a criança se mantém calada há vários meses. A menina aponta para uma figura mostrando uma criança sentada no colo de um homem. "Quem é essa aqui?", pergunta a psicóloga. "E esse?" Mas a menina não responde, apenas aponta insistentemente. Intrigada, a psicóloga convida a criança a desenhar. Ela observa que, em todos os desenhos, figuras humanas, adultos e crianças, aparecem curvadas. Dias depois, a menina chega ao atendimento com febre e pequenas feridas na boca. Exames revelam que a criança tem uma doença sexualmente transmissível. FIM DA CENA 2 Novamente, dados pessoais foram omitidos ou alterados para proteger a privacidade da criança. Uma situação muito parecida com a descrita acima, no entanto, realmente aconteceu. "Ela falava pouco, não porque não conseguia falar. Havia se calado. Isso são aspectos psicológicos da violência pela qual passava", explica a psicóloga. A equipe demorou para entender o que a criança estava tentando dizer, mas depois tudo ficou claro. A criança no colo do homem era ela. E o homem, seu padrasto. "Ela contou que ele a colocava no colo e ela sentia algo duro, espetando." E as figuras curvadas nos desenhos também eram uma referência ao que ela vivia. "Ela fazia sexo oral (no padrasto) e achava que aquilo era normal, então desenhava todo mundo curvado porque achava que todo mundo fazia", relata a psicóloga. Quando trabalha a cartilha com famílias, Neusa explica que pais não devem forçar a criança a beijar, abraçar ou sentar no colo de adultos. "A criança é tão espontânea. Se ela quiser, vai cumprimentar esse adulto." Neusa ensina os pais a ficar atentos. "O abusador vai observar a criança para cometer a violência. Mas nós vamos, com a ajuda da cartilha, observar a criança para evitar a violência", diz. "Então, se eu observar, em uma festinha, que uma criança de cinco anos que normalmente não fica no colo está no colo desse adulto, eu vou dizer, 'olha, aqui é conversa de adulto, criança têm que ficar com criança, então vai brincar'." Especialistas ressaltam que o índice de subnotificação do abuso sexual de crianças é altíssimo. Somente os casos mais graves, onde médicos, policiais ou equipes de assistência são envolvidos, entram nas estatísticas. Dados sobre violência sexual contra crianças e adolescentes com deficiência são ainda mais escassos, diz Patrícia. "Na delegacia, se você sofre estupro, não tem lugar no boletim de ocorrência para você indicar que a pessoa tem deficiência." Mas um estudo global publicado em março de 2022 pela revista científica The Lancet Child and Adolescent Health nos oferece uma pista. A pesquisa, com 17 milhões de menores em 25 países, envolvendo equipes de universidades na Grã-Bretanha, Estados Unidos e China, concluiu que, no mundo, uma em cada três crianças (com idades entre 0 e 18 anos) com deficiência foram alvo de violência - física, sexual, emocional ou negligência - em suas vidas. Quando uniram forças em sua missão de prevenir e detectar o abuso sexual infantil no Brasil, Patrícia e Neusa sabiam que seu grande desafio era contar aos brasileiros uma história que ninguém quer ouvir. Então, pediram ajuda a diversos profissionais dentro e fora do Brasil. Entre eles, pediatras, psicólogos, assistentes sociais, policiais, uma delegada e advogados. Crucialmente, elas explicam, decidiram pedir ajuda também para a própria população. Neusa conta que quando viu pela primeira vez o livrinho que Patrícia tinha feito para a filha, percebeu imediatamente o potencial daquilo - mas sabia que seriam necessárias algumas mudanças. É que nas comunidades onde trabalha, falar de certos assuntos é proibido. E falar deles com crianças, impensável, explica. Então, nas mãos da psicóloga, a cartilha vai ter seu conteúdo transformado, delicadamente negociado em um processo de diálogo contínuo com a população que ela atende. Por exemplo, na versão original havia desenhos de crianças sem roupa. "Os pais ficaram indignados", ela lembra. "'Doutora Neusa, isso aqui não dá. Que absurdo é esse?', diziam." A terminologia também teve de ser alterada. Sai o termo "educação sexual". "Muita gente pensa que isso quer dizer ensinar a criança a fazer sexo", diz Neusa. "Ninguém aceitou. Os padres não aceitaram, as igrejas (evangélicas) não aceitaram. Então, a gente fala de violência sem falar em sexualidade, nem sexo, e sem mostrar corpos nus." Esse processo de consulta ao público chama-se validação. Para as autoras, a chave que permitiu a entrada de Eu Me Protejo nesses ambientes. "Na validação a gente pergunta, a pessoa conseguiu entender? A imagem está fácil de entender? Ou está ofensiva?", explica Patrícia. Muitos talvez se incomodem com a ideia de que a imagem de uma criança nua seja ofensiva. "É mais importante proteger as criancas do que botar a criança pelada na capa", pondera a jornalista. Em seus depoimentos, Patrícia e Neusa expressam total confiança na ferramenta que criaram. Mas também deixam claro que só isso não basta. "Não aguento mais sair com essa cartilha e descobrir coisas", diz Neusa. "Posso te falar da minha angústia porque estou na linha de frente. Vou para a periferia, faço o atendimento, identifico o abuso." "Em quatro anos do projeto, nunca vi ação efetiva e concreta onde, após identificarmos o abuso por meio da cartilha, a rede de apoio conseguiu proporcionar para essa criança uma garantia de direito", diz Neusa, a voz revelando grande emoção. "Sei o que precisa ser feito, mas sei que, na maioria dos casos, a criança vai continuar inserida na situação de violência." Diante desse cenário sem esperança, a repórter se desculpa, mas faz a pergunta que talvez esteja na mente de muitos leitores: Se a criança continua a sofrer nas garras do abusador, de que vale ela saber que está sendo abusada? "Você me pergunta, é melhor ela não saber? É melhor saber", responde. "Porque se eu sei, eu tenho de pensar em alguma estratégia para sair. E eu sei que aquela responsabilidade não é mais minha, aquela culpa eu não vou carregar sozinha." Ela prossegue: "Mesmo sendo crianca, ela começa a identificar esses processos. Porque até então, ela sofria duas vezes. Sofria a violência e sofria pela culpa da violência." "E quando ela tem alguém na escuta, você precisa ver a diferença que faz, poder falar sobre isso." "Saber, e falar, também é bom para a psicóloga, para a jornalista e a sociedade", diz Neusa Maria. "Ninguém vai passar incólume por essa entrevista." Se você precisar de suporte emocional, procure os serviços Disque Direitos Humanos - Disque 100, Centro de Valorização da Vida (CVV) - Ligue 188.
2023-04-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crg51jl2zngo
sociedade
Ataques a escolas: ameaças e boatos diminuem, mas pais continuam com medo
Diversas instâncias governamentais anunciaram ações de combate à violência e também afirmam que o número de ameaças caiu. Mas pais e mães continuam com medo e com dúvidas sobre enviar seus filhos à escola nesta quinta (20/4), data que havia sido citada nos boatos e ameaças por ser o dia em que aconteceu a tragédia em Columbine em 1999 - um dos primeiros e mais fatais ataques a escolas dos EUA. Há crianças e adolescentes pedindo para ficar em casa na data, assustadas com os boatos nas redes sociais. Cada escola tem lidado com a questão de um jeito diferente. Não é uma escolha fácil para os pais. Nesta semana, a filha de 11 anos da brasiliense Maria Lídia chegou em casa dizendo que não queria ir à escola na quinta, porque ouviu de colegas que poderia haver ataques à escola no dia. Fim do Matérias recomendadas Maria Lídia diz que ficou com dor uma no coração ao ouvir sobre o medo da menina. Ela conta à BBC que explicou à filha que “havia muitos boatos, que o receio de que aconteça algo tem a ver com o simbolismo da data, mas que a escola é um local seguro e a chance de acontecer algo é baixa”. Mas ela mesma ainda não decidiu se vai levar ou não a menina para a escola nesta quinta. “Por um lado eu não quero ser exagerada, ceder ao medo, alarmar demais minha filha. Por outro, a gente tem medo sim - por mais que racionalmente eu saiba que a probabilidade de algo acontecer é mínima”, diz à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ela conta que está discutindo a questão com o pai da filha, de quem é separada, e conversando com outras mães. “As coleguinhas dela vão e a escola mandou um comunicado avisando que amanhã haverá um evento em que cada aluno pode levar um símbolo de amizade, solidariedade e cuidado com o outro para a escola”, conta ela. “Estamos alinhando. Eu ainda não bati o martelo.” O Ministério da Justiça monitora ameaças e mensagens que falam sobre supostas ameaças de ataques no dia 20/4 desde o início do mês, quando o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB), falou que sua pasta estava trabalhando para evitar qualquer ocorrência na data. No dia 10, diversas ações de combate à violência foram anunciadas. Nesta quarta-feira (19), o ministério anunciou que, desde o início do monitoramento: Segundo o ministro, a demanda pelo canal de denúncias do Ministério da Justiça voltado para ameaças de ataques em escolas caiu bastante nos últimos dias. Logo após o ataque em Blumenau (SC), no início do mês, havia uma média de 400 denúncias por dia. O número chegou a 1700 por dia. Nos últimos dois dias, a média foi de 170 denúncias diárias. Pesquisadores que acompanham o tema nas redes sociais também afirmam que o pânico estava maior nas semanas que se seguiram aos ataques nas cidades de São Paulo e Blumenau. A diminuição da circulação de boatos, apontam, é um sinal positivo, porque o compartilhamento de ameaças de ataques que não são reais pode ter o efeito indesejado de incentivar uma agressão verdadeira. “Da mesma forma, percebe-se que a divulgação de ameaças (muitas das quais não passam de boatos) tem seguido o mesmo comportamento. Quanto mais se noticia, mais casos surgem.” Para os pais, no entanto, a decisão de mandar ou não os filhos para a escola continua sendo difícil. São considerados fatores como a segurança das crianças, o próprio medo, o sentimento das crianças, o clima da escola, a forma como a instituição tem lidado com o tema, entre outros, segundo explica Danielle Admoni, psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) especializada em infância e adolescência. O ideal, diz, é que os pais trabalhem para encontrar o ponto certo em que medo é útil - ou seja, quando ele nos faz ficar alerta para perigos e nos prepara para problemas - sem cair no medo paralisante, que atrapalha a vida. “Claro que os pais têm medo. O medo funciona quando nos leva a fazer alguma coisa produtiva, um alerta para ter cautela, ficar mais esperto, checar o que tem acontecido na vida dos nossos filhos”, diz Admoni. “Mas ele vira um problema quando se torna paralisante, começa a limitar demais a vida. Quando a pessoa não consegue dormir, comer, sair de casa.” “Precisamos lembrar as crianças e nos lembrar que, em geral, a escola é um lugar seguro, onde as pessoas estão para cuidar e proteger. A gente viu durante a pandemia os problemas que surgem quando as crianças ficam muito tempo ser ir à escola”, lembra ela. “Estamos vendo que as autoridades estão tomando atitudes. Os casos assustam justamente porque a gente espera que a escola seja um local seguro. Mas são situações pontuais, corremos riscos também fora da escola.” “É como um acidente de avião. Não acontece muito, mas quando acontece a questão fica tão em evidência que gera essa sensação enorme de insegurança. Ainda mais quando envolve os filhos”, diz ela. Conversar sobre o tema com as crianças é essencial, aponta a psiquiatra. “A pior coisa é os pais fingirem que não tem nada acontecendo”, afirma a psiquiatra. “A criança precisa sentir que pode procurar o pai, a mãe ou o responsável quando está com medo ou tem dúvidas. Porque mesmo que ela não veja notícias em casa, algum colega pode falar do assunto, aí a coisa chega sem filtro.” “A criança percebe que tem algo errado, e se você diz que não é nada, está desvalorizando a percepção que ela tem da realidade. Então é preciso explicar, dentro das possibilidades.” A postura da escola dos três filhos de Maria Victória, em Brasília, foi justamente a de trazer o tema para conversa - o que fez a mãe se sentir muito mais segura. A instituição percebeu que havia uma burburinho entre as crianças, com algumas assustadas e chorando, e chamou os alunos do sexto e sétimo ano para conversar e ouvir seus medos e preocupações. “Algumas crianças falaram do medo, outras falaram sobre o que fariam - uma disse que iria na turma da irmã mais nova buscá-la. Então foi muito legal essa troca, essa postura da escola de acolher qualquer tipo de resposta”, diz Maria Victória, que decidiu que vai levar os três filhos para a escola nesta quinta. “Nós temos sorte que é uma escola pequena, com crianças menores. Não tem ensino médio, não tem um clima escola de bullying, de problemas assim”, conta ela à BBC. “Minha filha tem uma amiga cuja mãe é do Corpo de Bombeiros, e ela também vai para a escola, então isso ajuda também a gente a confiar nas instituições e ficar convicta de que devemos mandar.” “Mas eu entendo totalmente os pais que não vão mandar. Porque é um medo mesmo, é algo que atinge um lugar para os pais... É um amor, um afeto muito grande que temos (pelos filhos).” Carla*, que participa do mesmo grupo de mães que Maria Victória no WhatsApp, ainda não decidiu se o filho vai ficar em casa ou se vai à escola amanhã. Ele estuda em uma escola diferente da filha de Maria Victória e Carla ficou com receio após receber o posicionamento da instituição. Embora a escola tenha feito treinamento com policiais e aumentado a segurança, diz ela, o principal problema não tem sido combatido, diz ela. “Infelizmente não estamos vendo muitas escolas adotarem medidas de combate ao bullying, com treinamento de professores sobre identificação, abordagem e intervenção em casos de discriminação, violência ou isolamento social. Essas sim seriam as medidas importantes para combater esse problema de violência nas escolas no médio e longo prazo”, diz Carla à BBC. Ela cita algo que também é apontado por pesquisadores - que a maioria dos ataques é feito por alunos e ex-alunos que têm ódio do ambiente escolar. “A escola do meu filho se considera inclusiva por ter uma metodologia de ensino inovadora, mas não contempla de maneira permanente o tema da inclusão de deficientes, não treina professores e só trabalha combate ao racismo na semana da consciência negra. De combate à homofobia não vi nada até hoje. Então, estou bem preocupada com o rumo que essas violências extremistas vão tomar no Brasil”, diz Carla. Danila Di Pietro, pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e parte de um grupo liderado pela professora Telma Vinha, que mapeou ataques a escolas nas últimas décadas, afirma que transformar os prédios das escolas em algo parecido com prisões não é a resposta. “É um problema complexo e duradouro”, diz ela. “Que esses dias sejam usados para fomentar debates sobre esses ocorridos, problematizar de fato, dar espaço para as pessoas expressarem seus sentimentos e serem acolhidas em suas angústias, além de pactuarem propostas para uma convivência cada vez mais ética e inclusiva.” Cada escola particular tem lidado com a questão do dia 20 de um jeito - algumas chamaram para a conversa, outras criaram eventos e atos com temas positivos, chamaram os pais para participar do dia, aumentaram a segurança e até mesmo cancelaram as aulas. Mesmo na rede pública, a postura varia muito. Em São Paulo, por exemplo, muitas escolas estaduais não terão aulas porque reuniões chamadas conselhos de classe já estava programadas para essa semana desde o início do ano. Para as escolas municipais, a prefeitura anunciou uma série de medidas de proteção e segurança, e unidades têm escolhido diferentes ações. Uma escola municipal no bairro de Higienópolis, por exemplo, convidou os pais para participarem de um evento em celebração da solidariedade e amizade. “Não existe uma resposta única sobre o dia 20, cada escola precisa avaliar o perfil dos pais e alunos e decidir como proceder”, diz Danielle Admoni. No entanto, diz ela, algo que todas as instituições precisam fazer, sem exceção, é o combate ao bullying e à discriminação. “Os casos de ataque são sempre de alunos e ex-alunos que recorrem à violência para se vingar. Claro que tem outros fatores, como disfunção familiar, questões de saúde mental não tratadas. Mas essa raiva do ambiente e das pessoas da escola é algo comum entre os agressores”, afirma. “Claro que isso não torna a instituição culpada, mas trabalhar esse tema do bullying, da agressão é algo que todas as escolas precisam fazer.” Entre as medidas adotadas pelo Ministério da Justiça para coibir a propagação do discurso de ódio que possa incitar ataques estão a exigência de fiscalização mais profunda das redes sociais — onde foram encontradas várias publicações de incentivo a massacres em escolas e até mesmo idolatria aos responsáveis por esse tipo de crime. A pasta também anunciou diversas investigações por meio das polícias civis de diferentes Estados e da Polícia Federal. Na terça-feira (18), o ministro Flávio Dino afirmou que 225 pessoas foram presas ou apreendidas (menores de 18 anos) na operação relacionada a planos ou ações de violência no ambiente escolar. “Dá uma média de mais de 20 por dia”, disse Dino. "Preocupante é que olhamos, do governo Fernando Henrique até o governo pretérito, uma ampliação ano a ano desses números, uma trajetória ascendente. E por isso estamos aqui, para cortar essa ascensão perigosa da violência e do ódio”, declarou Dino. Ao todo, diz Dino, foram feitas mais de 7,4 mil denúncias desde que o Ministério da Justiça iniciou a operação em todo o Brasil. Além disso, foram encaminhados mais de 100 pedidos às redes sociais para preservação de conteúdos nas plataformas para investigações policiais. Em nota, o TikTok afirma que "relatos de ameaças potenciais de violência nas escolas são abomináveis e tristes, e o conteúdo que estimula o pânico sobre isso não tem absolutamente nenhum lugar em nossa plataforma”. “Estamos trabalhando agressivamente para identificar e remover conteúdo que possa causar pânico ou validar farsas, incluindo a restrição de hashtags relacionadas. Onde encontramos ameaças iminentes de violência, trabalhamos com as autoridades policiais, de acordo com nossas políticas de relacionamento com as autoridades locais”, acrescenta o comunicado da plataforma. O Twitter não respondeu ao pedido de informações encaminhado pela reportagem. Mas segundo o colunista Guilherme Amado, do Metrópoles, a plataforma informou ao Ministério da Justiça em 11 de abril que derrubou 546 perfis com conteúdos ameaçadores ligados a ataques a escolas. O Instagram e o Facebook, ambos da Meta, informaram à reportagem que proíbem conteúdos que incitem ou promovam a violência. “E isso inclui contas ou conteúdos elogiando atos violentos e seus autores. Além disso, não permitimos a presença de pessoas ou organizações que anunciem uma missão violenta ou estejam envolvidas em atos de violência nas plataformas da Meta. Isso inclui atividade terrorista, atos organizados de ódio, assassinato em massa (incluindo tentativas) ou chacinas, tráfico humano e violência organizada ou atividade criminosa”, diz comunicado da empresa. “Removemos, ainda, conteúdo que expresse apoio ou exalte grupos, líderes ou pessoas envolvidas nessas atividades. Adicionalmente, colaboramos com autoridades respondendo prontamente às suas demandas”, acrescenta a nota do Instagram e do Facebook. O WhatsApp, também da Meta, reforçou em nota que "coopera ativamente com as autoridades locais" e fornece dados disponíveis em respostas às autoridades locais para ajudar em investigações policiais, "em conformidade com a legislação aplicável". “O WhatsApp encoraja que as pessoas reportem condutas inapropriadas diretamente nas conversas, por meio da opção “denunciar” disponível no menu do aplicativo (menu > mais > denunciar) ou simplesmente pressionando uma mensagem por mais tempo e acessando menu > denunciar. As pessoas também podem enviar denúncias para o e-mail support@whatsapp.com, detalhando o ocorrido com o máximo de informações possível e até anexando uma captura de tela”, diz a empresa. “O usuário ou grupo denunciado não recebe nenhuma notificação sobre essa ação. É importante ressaltar que conteúdos ilícitos também devem ser denunciados para as autoridades policiais competentes”, acrescenta a nota do WhatsApp. *A BBC News Brasil decidiu omitir sobrenomes ou alterar nomes de entrevistadas para preservar a privacidade das crianças
2023-04-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cx0n2154jp3o
sociedade
Ileísmo: a antiga técnica que nos ensina a pensar de forma mais sábia
Como alguém que escreve sobre psicologia, já me deparei com centenas de estratégias baseadas em evidências para pensar melhor. Poucas se mostraram tão úteis para mim quanto o ileísmo. De forma simplificada, o ileísmo é a prática de falar sobre si mesmo na terceira pessoa, em vez da primeira. É um recurso retórico frequentemente usado por políticos para tentar dar às suas palavras um ar de objetividade. Em seu relato da Guerra da Gália, por exemplo, o imperador Júlio César escreveu "César vingou o povo" em vez de "Eu vinguei o povo". A pequena mudança linguística parece colocada de modo a fazer com que a declaração se aproxime mais de um fato histórico, registrado por um observador imparcial. Para o ouvido moderno, o ileísmo pode soar um pouco bobo ou pomposo – a ponto de ridicularizarmos celebridades que optam por falar de si na terceira pessoa. Fim do Matérias recomendadas Pesquisas recentes na área de psicologia apontam, contudo, que ele pode trazer benefícios cognitivos concretos. Se estamos tentando tomar uma decisão difícil, falar de nós mesmos na terceira pessoa pode ajudar a neutralizar as emoções que podem desviar nosso pensamento, permitindo que encontremos uma solução mais sábia para o nosso problema. Para compreendermos esses benefícios, é preciso, primeiro, examinar as maneiras pelas quais os cientistas medem o grau de sabedoria do raciocínio de um indivíduo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Igor Grossmann, da Universidade de Waterloo, no Canadá, foi um dos pioneiros do estudo científico sobre a sabedoria. Grossmann se baseou no trabalho de numerosos filósofos para catalogar uma série de "componentes metacognitivos" – humildade intelectual, reconhecimento dos pontos de vista de outros e busca por resolução, por exemplo – que são comumente considerados essenciais para uma tomada de decisão sensata. Em um de seus primeiros estudos, o pesquisador pediu aos participantes que pensassem em voz alta sobre vários dilemas mundanos enquanto psicólogos independentes avaliavam suas respostas a partir desses critérios. Grossmann percebeu que esses testes de "raciocínio sábio" eram melhores do que os testes de QI para prever a satisfação geral das pessoas com a vida e a qualidade de seus relacionamentos. Isso indicava que a pesquisa estava capturando algo único sobre as habilidades de raciocínio humano. Os estudos posteriores de Grossmann revelaram que o nível de sabedoria do raciocínio das pessoas pode depender do contexto. Mais particularmente, ele descobriu que as pontuações que ele atribuía ao raciocínio sábio tendiam a ser muito mais altas ao considerar as situações das pessoas sobre terceiros do que em relação a seus próprios dilemas pessoais. O cientista chamou esse fenômeno de "paradoxo de Salomão", em referência ao rei bíblico que era famoso por aconselhar os outros com sabedoria, enquanto tomava uma série de decisões pessoais desastrosas que acabaram deixando seu reino no caos. O problema parece ser que, ao fazermos escolhas pessoais, ficamos muito imersos em nossas emoções, que obscurecem nosso pensamento e nos impedem de colocar nossos problemas em perspectiva. Se recebi feedback negativo de um colega, por exemplo, meu sentimento de constrangimento pode me levar a ficar excessivamente na defensiva. Isso poderia me induzir a descartar os conselhos que ele me deu sem mesmo avaliar se poderiam me ser úteis a longo prazo. O ileísmo poderia ajudar a resolver o paradoxo de Salomão? A ideia faz sentido intuitivamente: ao mudarmos a chave para a terceira pessoa, nossas descrições dos problemas começarão a soar como se estivéssemos falando de outra pessoa, e não de nós mesmos. Essa sensação de distanciamento nos permitiria analisar a situação em perspectiva mais ampla, em vez de ficarmos presos em nossos próprios sentimentos. E foi exatamente isso que Grossmann descobriu em um estudo com Ethan Kross na Universidade de Michigan. Eles observaram que as pessoas que empregam o ileísmo para falar sobre seus problemas mostraram maior humildade intelectual, capacidade de reconhecer a perspectiva dos outros e disposição para chegar a um acordo – aumentando suas pontuações gerais de raciocínio sábio. Os estudos mais recentes apontam que o uso regular do ileísmo pode trazer benefícios duradouros ao nosso pensamento. Em um experimento feito com Abigail Sholer, Anna Dorfman e outros pesquisadores, Grossmann pediu aos participantes que mantivessem durante um mês um diário no qual descrevessem situações que estavam vivenciando no momento. Metade do grupo foi instruída a escrever em terceira pessoa, enquanto a outra metade foi instruída a escrever na primeira pessoa. O raciocínio dos participantes foi avaliado no início e no final dos testes. Como esperado, os pesquisadores descobriram que, ao longo do processo, os participantes encorajados a usar o ileísmo em seus diários viram um aumento em suas pontuações de raciocínio sábio. Ao nos estimular a colocar nossos problemas em perspectiva, o uso do ileísmo também pode nos ajudar a chegar a respostas mais equilibradas para as tensões diárias. As pessoas que completaram o diário na terceira pessoa relataram emoções mais positivas após eventos desafiadores, em vez de se concentrarem apenas em sentimentos como tristeza, frustração ou desapontamento. Com base nessas descobertas, hoje aplico o ileísmo a todas as decisões, pequenas e grandes. Quer esteja enfrentando provações no trabalho, conflito com meus amigos ou com familiares, descubro que alguns momentos contemplando meus problemas a partir de uma perspectiva em terceira pessoa me ajudam a ver o problema com mais clareza.
2023-04-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgrer8dr995o
sociedade
'Uso mesmo vestido para tudo': as pessoas com guarda-roupa minimalista
"Do Natal para cá, estive em quatro casamentos", escreve uma usuária do fórum online Mumsnet. "Vesti a mesma roupa em três deles... Minha prima disse que fui desrespeitosa, que foi grosseiro e que, se eu não quisesse ir, deveria ter recusado o convite, em vez de comparecer vestida de forma inadequada. Cometi uma grande gafe?" "[Entrei em um] desafio em que as pessoas vestem o [mesmo] vestido 100 dias seguidos", diz outra usuária, agora do site Ask a Manager, sobre aconselhamento profissional. "Fui chamada à sala do meu chefe e ele disse que precisava falar comigo sobre minha apresentação no trabalho... Posso realmente ter problemas se continuar usando meu vestido todos os dias?" No mundo ocidental, existe uma regra implícita, segundo a qual você não deve usar as mesmas roupas com muita frequência. Fim do Matérias recomendadas A convidada dos casamentos e a funcionária do escritório citadas acima foram tranquilizadas por outras pessoas, que disseram que elas não fizeram nada de errado. Mas o sentimento permanece. As pessoas esperam que troquemos de roupa todos os dias – ou pelo menos em intervalos de poucos dias. Mesmo se trabalharmos em um escritório e não em uma fábrica abafada ou uma plantação ensolarada. Mesmo depois da invenção da máquina de lavar. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E precisamos sempre atualizar o nosso guarda-roupa. Até as iniciativas verdes que tentam nos ajudar a ser sustentáveis, como as feiras de troca de roupas e aluguel de vestuário, trazem sempre a mesma noção: aquilo que já temos não é suficiente. A imensa oferta de roupas baratas fez com que muitos de nós passássemos a usar apenas 20% das roupas dos nossos armários. E, enquanto isso, a indústria de roupas prejudica o planeta e a nós, seres humanos. Mas não costumava ser assim. A alta velocidade de compra e descarte de hoje em dia é um fenômeno relativamente novo. E, com o aumento dos problemas de sustentabilidade causados pela indústria da moda, podemos precisar retornar em breve aos nossos antigos padrões. Uma forma de combater o excesso de consumo é reduzir o que você usa. Nos empregos que não exigem uniforme, a dispensa da necessidade de variar o visual é um luxo concedido principalmente aos homens. Eles são praticamente os únicos a adotar o hábito de usar roupas idênticas todos os dias – de Mark Zuckerberg e Steve Jobs a quase todos os profissionais que usam terno no escritório em todo o mundo. Jennifer Logan mora com o marido e dois filhos na Califórnia, nos Estados Unidos, onde trabalha como osteopata. Cerca de 10 anos atrás, ela e uma amiga conversaram sobre como seria ótimo ter um uniforme para não precisar pensar no que vestir. Ela então fez um vestido de lã com blusas de segunda mão e o usou quase todos os dias, até que ele encolheu na lavagem. Logan então voltou a escolher suas roupas da forma mais usual, até que se cansou de precisar sempre decidir o que vestir. Ela acabou comprando um vestido novo: preto, com comprimento na altura dos joelhos e sem mangas. E, três anos depois, ainda é praticamente a única roupa que ela usa. "Uso para tudo", conta Logan. "Encontros à noite... tudo o que eu faço. Estou usando o vestido para uma conferência no trabalho esta semana." Ela só veste roupas alternativas – como pijamas ou blusas e calças de moletom emprestadas da filha – para fazer faxina ou para sua aula de cerâmica. Logan construiu seu guarda-roupa em torno do vestido. Às vezes, ela acrescenta calças de lã ou uma blusa com mangas, se estiver frio. Antes, ela passava a maior parte dos dias usando jeans e camiseta, mas agora ela conta que se sente sempre bem vestida. E ninguém parece notar que é o mesmo vestido. Combater o consumo excessivo apenas reduzindo o que você veste traz algumas complicações. A moda tem uma função. O que decidimos usar em um dado dia conta algo sobre o mundo em que vivemos. Embora Logan acrescente acessórios à roupa para parecer mais ou menos bem vestida, ela também conta que, recentemente, começou a se sentir um pouco cansada de vestir preto todos os dias. Agora, ela está pensando em trocar seu vestido preto por um colorido. Existe também a questão da qualidade. Logan explica que sua prática pode ser adotada com qualquer orçamento. As pessoas podem usar roupas de segunda mão ou ter um pequeno guarda-roupa com algumas roupas para não desgastar todas. Mas permanece o fato de que muitas roupas modernas não são feitas para serem usadas todos os dias. Elas não são investimentos duráveis e, em muitos casos, precisamos comprar novas. "Nos séculos 17 e 18, as roupas eram alguns dos objetos mais caros que as famílias podiam ter", segundo a professora Beverly Lemire, da Universidade de Alberta, no Canadá. O valor do tecido era tão alto que, na Londres do século 18, um quarto dos roubos levados a julgamento envolvia tecidos e roupas. "[As roupas] poderiam durar décadas", afirma Lemire. "Elas eram usadas até que virassem trapos." Mas isso não impedia as pessoas de mudar seu visual. A variação e a individualidade surgiam nos detalhes. Para fazer ajustes personalizados, para adotar as lentas mudanças nas tendências da moda ou até dar alguns toques pessoais, as roupas eram alteradas. "As roupas eram feitas para serem desfeitas", explica Lemire. A expectativa era que as roupas fossem desmanchadas, montadas, desmontadas e alteradas. Todas as costuras eram feitas à mão e todas as roupas tinham reparos. As pessoas usavam fitas e botões para dar vida nova a roupas antigas. E existem registros de homens jovens que se identificavam com certos grupos que usavam cabelos com longos cachos ou meias com um certo tipo de listras. Mas o mundo já estava se acelerando. Nos séculos 17 e 18, as pessoas usavam muito tecido não tingido, como linho e lã, dentro de casa. Mas elas também desenvolveram o gosto por novos tecidos inspirados em originais da China e da Índia, segundo explica Marie Ulväng, professora de estudos da moda da Universidade de Estocolmo, na Suécia. E, com a revolução industrial, nossas roupas passaram a ser cada vez mais produzidas em fábricas, em tamanhos padronizados. O algodão e, eventualmente, a mão de obra terceirizada barata da Ásia e das Américas permitiram que os países ocidentais aumentassem sua produção e reduzissem os preços. Mas Ulväng afirma que a maior mudança da nossa visão de moda veio posteriormente, nos anos 1960. Foi quando surgiram as subculturas e a moda deixou de ser ditada de cima para baixo. "Antes, a mulher podia vestir uma saia e uma blusa, um casaco, roupas sob medida... mas as jovens estavam mais interessadas em acompanhar as rápidas mudanças da moda", explica Ulväng. "A moda mudava com rapidez... o importante eram os preços baixos, não a duração e a qualidade das roupas." Será que podemos voltar a olhar para as roupas como antigamente? Bem, talvez já tenhamos iniciado este processo. Durante a pandemia, a escritora e estrategista de sustentabilidade Tiffanie Darke teve uma ideia inovadora. Depois de trabalhar no mundo da moda de consumo, como editora em revistas de moda, ela decidiu fazer um curso no Instituto de Liderança para a Sustentabilidade em Cambridge, no Reino Unido. Em seguida, ela leu um relatório do centro de pesquisa e debates The Hot & Cool Institute, indicando que, para manter a sustentabilidade, os britânicos deveriam comprar apenas cinco roupas novas por ano. Darke então iniciou a campanha Regra das Cinco – e outras pessoas do mundo da moda começaram a seguir seu exemplo. "Existem diversas formas de entrar na moda: alugar, trocar, pegar emprestado dos amigos e – como as pessoas faziam quando éramos crianças – reformar”, ela conta. “Fico pensando todo o tempo em quais cinco peças de roupa devo comprar este ano. É divertido. Eu planejo tudo.” No ano passado, ela pediu ajuda a um estilista para avaliar seu guarda-roupa e reformar roupas que ela não usava, como um vestido de tafetá Prada que foi transformado em uma blusa. Este ano, uma das cinco compras de Darke será um casaco para usar em casa, produzido para ela pela designer Alice Temperley. Recentemente, empresas de moda como a Net-a-Porter, Ralph Lauren e Mulberry firmaram parcerias com serviços de alteração de roupas, oferecendo créditos de reciclagem e garantias de durabilidade, segundo Darke. E não precisa ser algo caro – você pode ter a satisfação de ver uma roupa reformada por baixo custo. "A empresa de alterações Sojo tem preços a partir de 10 libras (cerca de R$ 61) pela reforma mais barata", segundo ela. "E você recebe uma roupa totalmente nova para o seu guarda-roupa." Darke destaca que, nos tempos vitorianos, a moda era comprar uma nova fita para o chapéu. Existe também uma tendência de ciclos de moda mais lentos. Darke afirma que pessoas de marcas de alto luxo agora falam em "moda sem tendência" – peças de roupa atemporais e bem feitas, para durar. Espera-se que o próximo passo seja a produção de roupas de boa qualidade, como as que tínhamos na época pré-industrial e que usuárias minimalistas, como Jennifer Logan, procuram hoje em dia. A Lei da Moda (Fashion Act) proposta nos Estados Unidos, se for aprovada, irá tornar os varejistas responsáveis por todo o ciclo de vida dos seus produtos. E, embora a nova lei venha trazer aumento dos preços das marcas populares, Darke espera que os consumidores também mudem suas expectativas, buscando roupas de melhor qualidade, mesmo entre essas marcas mais baratas. "Talvez o fast fashion (moda rápida) seja um parêntese", pondera Marie Ulväng. "Talvez nós voltemos depois para a visão mais inteligente que tínhamos antes." E, talvez, nosso breve caso de amor com o fast fashion esteja no fim. Isso também significaria armários com menos roupas, mas de melhor qualidade, e ciclos de moda mais lentos, menos voltados à venda de novos produtos. Significaria um tipo diferente de marcas populares, com menos espaço nas lojas e menos compradores examinando pilhas de roupas baratas e idênticas nas prateleiras. Haveria mais conhecimento dos tecidos, mais costura, mais reformas de roupas e mais criatividade. E nos fóruns online, as discussões seriam sobre a compra ou não de uma nova fita para o chapéu.
2023-04-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd136qx6x20o
sociedade
O que um psicólogo descobriu estudando segredos das pessoas por uma década
"Nada pesa tanto quanto um segredo", escreveu o fabulista francês Jean de la Fontaine, já no século 17. Esta metáfora é repetida de diversas formas por muitos outros escritores. E foi o ponto de partida para uma pesquisa que levou uma década, realizada pelo psicólogo Michel Slepian, da Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos. Ele visualizou os aspectos mais profundos da vida de cerca de 50 mil pessoas de 26 países. "Meus estudos originais questionavam se as pessoas realmente pensavam desta forma", declarou Slepian à BBC News Mundo, o serviço de notícias em espanhol da BBC. "E, de fato, quando pensavam nos segredos, elas demonstravam uma sensação de carga. Davam o mesmo tipo de resposta de alguém que carrega peso físico." Fim do Matérias recomendadas Para se aprofundar no tema, o pesquisador procurou literatura científica sobre os segredos e percebeu "que, na realidade, não sabíamos nada". A questão não é que o assunto não tivesse sido abordado, mas sim que “os psicólogos simplesmente presumiram que sabiam como eram os segredos, e os recriaram em laboratório, em vez de olhar como eles eram no mundo real”. "Não tínhamos respostas satisfatórias para algumas das perguntas mais básicas, como quais segredos as pessoas guardam, com que frequência elas os conservam e o que acontece quando um segredo vem à mente", afirma Slepian. Ele se propôs então a encontrar essas respostas. Mas, para começar, havia uma pergunta básica que precisava ser respondida. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Parece fácil, mas não é. Existem muitas coisas sobre as quais não falamos, mas todas elas são segredos? "Existe todo tipo de pensamento e experiência que tivemos e que as pessoas não sabem, mas isso não significa que sejam segredos", diz o pesquisador. Há assuntos que você só confiaria ao círculo mais próximo ou que não discutiria em certos espaços, "mas isso tem mais a ver com a noção de privacidade". Para Slepian, que é autor do livro The Secret Life of Secrets ("A vida secreta dos segredos", em tradução livre), o que diferencia um segredo é a intenção. "Defino o segredo como a intenção de reter informações de uma ou mais pessoas", explica. "No momento em que você tem a intenção de não contar algo a uma pessoa, nasce um segredo." E não depende de ter havido uma situação em que você poderia ter contado o segredo, mas se calou. "O fato de você não ter precisado ocultar esse segredo em uma conversa não significa que não seja um segredo." "De fato, concluímos que não é muito frequente precisar guardar um segredo em uma conversa, mas é muito comum ficar pensando no segredo ou até ruminando a respeito', afirma o pesquisador. Slepian começou pedindo a mil pessoas que contassem um segredo que estavam guardando. "A partir desse conjunto de mil segredos, desenvolvemos uma lista de 38 categorias muito bem representadas pelos dados", revela. Depois de fazer a mesma pergunta para outro grupo de mil pessoas, ele e sua equipe comprovaram que a lista era válida. E continuaram confirmando. "Quando fazemos a pergunta aberta 'qual é o segredo que você está guardando?', 92% das respostas se enquadram em uma dentre 38 categorias." E não é só isso: ao apresentar a lista aos participantes, "mais de 97% das pessoas afirmaram que tinham um dos segredos da lista naquele momento e, em média, as pessoas dizem que tiveram 13 segredos da lista em um dado momento", afirma Slepian. Essa lista de 38 segredos inclui desde coisas como ferir outra pessoa, física ou emocionalmente, autolesões, uso de drogas ou qualquer tipo de roubo, até uma surpresa planejada para alguém ou um passatempo oculto. Para nossa sorte, nem todos os segredos pesam. "Os que chamo de 'segredos positivos' não prejudicam nossa saúde e bem-estar; na verdade, podem melhorá-los. Eles nos fazem sentir emocionados e energizados", destaca o psicólogo. "Estamos falando de segredos como um pedido de casamento ou uma gravidez. São coisas que nos deixam felizes." Também existem segredos que são mais como prazeres secretos — coisas que não contamos para as pessoas porque pensamos que elas não vão entender, nem compartilhar. "Talvez você goste de ver desenhos animados infantis ou novelas, ou use drogas recreativas", exemplifica Slepian. "Quando as pessoas guardam segredos com os quais se sentem bem e acreditam que não estão tomando decisões erradas, mesmo não querendo que os outros saibam, elas demonstram que existe um tipo de solidão que é feliz, autônoma e livre da influência dos demais." Mas há muitos segredos que causam ansiedade. O objetivo da missão de Slepian era não só saber que segredos as pessoas guardam, mas também entender por que eles pesam tanto — e, como psicólogo, como fazer para que eles fiquem mais leves. Com todas as informações reunidas, Slepian e sua equipe prosseguiram com as análises. O objetivo era encontrar uma ordem lógica para essas 38 categorias, criando um mapa 3D de todos os dados. Ao consultar o público para posicionar os dados no espaço, ele percebeu que havia três dimensões — e que "cada uma dessas dimensões descrevia uma das razões pelas quais pensar nos segredos é prejudicial". "Um segredo moral pode nos prejudicar, fazendo nos sentir envergonhados. Um segredo de relacionamento (que envolve outras pessoas) pode nos fazer sentir isolados. E pensar nos [segredos] relacionados às nossas metas ou aspirações pode nos prejudicar, fazendo nos sentir inseguros ou sem saber o que fazer." Segundo Slepian, 95% das pessoas pesquisadas destacaram que o simples fato de identificar como dói um segredo faz com que elas "se sintam mais capazes de lidar com ele e encontrar o caminho a seguir". Na primeira dimensão, compreender, por exemplo, que seus erros do passado não refletem quem você é hoje, nem o seu comportamento futuro, pode ajudar você a se sentir melhor. Na segunda dimensão, se a razão principal para não revelar o segredo é porque iria ferir alguém de quem você gosta, mesmo sendo difícil guardá-lo, alivia saber que é para o benefício de outra pessoa. Mas existe algo que ajuda ainda mais. No nosso ímpeto, costumamos pensar que, se temos segredos tóxicos, o melhor é confessar. E talvez seja, mas nem sempre. Há ocasiões em que ser honesto pode te libertar, mas afetar profundamente outras pessoas sem nenhum benefício, ou colocar você em evidência sem resolver nada. Mas isso também não significa que o melhor seja se calar. Slepian destaca que "o problema de não falar de um segredo com ninguém é que é muito fácil encontrar formas prejudiciais de pensar nele". O segredo para superar esta situação seria encontrar um bom confidente. "Uma forma mais saudável de lidar com os segredos é falar sobre eles com outras pessoas, pois elas podem questionar nossas linhas de pensamento improdutivas e oferecer apoio social e emocional, que você não consegue encontrar por conta própria." Mas como encontrar o confidente ideal? A pesquisa de Slepian destaca que o melhor é encontrar alguém que, além de discreto, você considere sensível, empático, afetuoso, amável, que não tenha preconceitos e que demonstre um sentido moral parecido com o seu. Se ele se escandalizar com o que você revelar, não vai ajudar em nada. E, antes de começar, lembre-se de não pensar só em você. É preciso analisar se você não vai colocar aquela pessoa dentro do seu problema. Você precisa garantir que vai compartilhar o segredo, e não a sobrecarga e a angústia que ele traz. "Encontrar alguém com quem falar sobre o seu segredo e escolher a pessoa adequada pode fazer toda a diferença", conclui o psicólogo.
2023-04-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv290lpqv90o
sociedade
O que faz da Finlândia o 'país mais feliz do mundo'?
Esta pesquisa é baseada na questão da avaliação da vida pela Escada de Cantril: Imagine uma escada com degraus numerados de zero a 10, de baixo para cima. O topo da escada representa a melhor vida possível para você e a parte de baixo representa a pior vida possível para você. Em qual degrau da escada você diria que se sente pessoalmente no momento? A Finlândia vem em primeiro lugar, seguida pela Dinamarca e pela Islândia. Os motivos exatos por que os finlandeses são mais felizes do que os outros incluem uma série de fatores, como a menor desigualdade de renda (basicamente, a diferença entre o maior e o menor salário do país), altos níveis de assistência social, liberdade para tomar decisões e baixos níveis de corrupção. Fim do Matérias recomendadas O gráfico abaixo (de elaboração dos autores deste texto) mostra todos os 44 países que dispõem de dados sobre felicidade e desigualdade de renda, indicados como pontos coloridos. O eixo vertical mostra a felicidade média, enquanto o eixo horizontal indica a desigualdade de renda. A medida de desigualdade de renda utilizada no gráfico é o coeficiente Gini, calculado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Incluímos o índice mais alto registrado em cada país em qualquer ano, desde 2010 até o ano dos dados mais recentes disponíveis. O gráfico demonstra a forte correlação entre essas duas medidas. De forma geral, quando a desigualdade de renda é maior, o dinheiro tem mais importância e as pessoas são menos felizes. A Finlândia também tem outros atributos que podem ajudar as pessoas a se sentirem mais felizes. Seu sistema público de saúde é altamente descentralizado e o setor de saúde privado é muito pequeno. Esta é uma alternativa muito mais eficaz e eficiente do que as adotadas em outros países. O transporte público da Finlândia é barato e confiável e o aeroporto da capital, Helsinque, é considerado o melhor do norte da Europa. Existe um provérbio finlandês que parece relevante neste ponto: Onnellisuus on se paikka puuttuvaisuuden ja yltälkylläisyyden välillä — a felicidade é um lugar que fica entre o pouco e o demasiado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Finlândia, Noruega e Hungria apresentam níveis similares de desigualdade de renda, mas os finlandeses, em média, são mais felizes. Por que isso acontece? Segundo o Banco de Dados da Desigualdade Mundial, os 10% das pessoas mais bem pagas da Finlândia levam para casa um terço (33%) de toda a renda do país. No Reino Unido, o mesmo grupo ganha 36% e, nos Estados Unidos, 46%. Pode não parecer muita diferença, mas o seu efeito sobre a felicidade geral é imenso. Nos países mais desiguais, sobra muito menos para o restante das pessoas — e os ricos ficam mais temerosos. Quando um número menor de pessoas fica muito mais rica, o temor é compreensível. Em 2021, um professor de sociologia sugeriu que as pessoas nos países nórdicos parecem mais felizes simplesmente por terem expectativas mais razoáveis. Mas isso não consegue explicar por que a Finlândia é tão diferente da Noruega na escala da felicidade. Todos os tipos de explicações são possíveis, incluindo pequenas nuances de linguagem, além da cultura. Existe até a questão de se a pesquisa global está começando a introduzir seu próprio viés, já que os finlandeses agora sabem por que estão respondendo à pergunta (eles deixaram a Dinamarca, segunda colocada, ainda mais para trás na pesquisa mais recente). Mas é muito provável que as escolas mais igualitárias da Finlândia — que permitem obter boa educação em qualquer área de estudo — e sua política escolar mais justa que a da Noruega — quase todos os finlandeses frequentam a escola mais próxima — também tenham importância. Da mesma forma, a melhor política habitacional do país, que oferece uma ampla variedade de moradias sociais e permite que o índice de pessoas sem teto seja menor, seu serviço de saúde com tempos de espera de fazer inveja ao resto do mundo (às vezes, apenas questão de dias, mesmo durante os piores momentos da pandemia) e diversas outras distinções também fazem a diferença. A Finlândia ocupa a primeira, segunda ou terceira posição em mais de 100 índices globais de sucesso social e econômico — acima da Noruega — com muito menos dinheiro e quase nenhum petróleo. Por tudo isso, é possível perdoar os finlandeses por sentirem um pouco de vaidade (omahyväisyys). Mas o que faz com que a Hungria se saia tão mal, se a diferença de renda no país é tão próxima da Finlândia e da Noruega? Pode-se argumentar que uma das causas seja sua divisão política. Em 2022, o parlamento europeu indicou que "a Hungria não pode mais ser considerada uma democracia plena". A liberdade tem muita importância para as pessoas, da mesma forma que a ausência do medo. Isso também pode explicar por que a Turquia e a Índia apresentam níveis de felicidade abaixo do que se poderia prever com seus níveis de desigualdade econômica. Por outro lado, a China e a África do Sul podem ser um pouco mais felizes do que o indicado pelos seus níveis de desigualdade. A África do Sul tornou-se uma democracia em 1994, pouco depois da libertação de Nelson Mandela. Muitas pessoas ainda se lembram do período anterior. E, na China, as pessoas não são tão temerosas quanto a sua imagem frequentemente exibida no Ocidente. A maioria dos países exibe níveis de felicidade (e muitos outros índices) muito previsíveis a partir dos seus níveis de desigualdade. O Reino Unido, por exemplo, fica dentro do esperado para um dos países economicamente mais desiguais da Europa. O gráfico acima também demonstra que Israel, que tem quase a mesma desigualdade, é um pouco mais feliz do que deveria ser pela métrica do cálculo da felicidade. Mas não está claro se a amostra considerada no país incluiu todos os grupos que vivem atualmente no Estado de Israel. Além disso, a amostra utilizada é de 2022, antes dos amplos protestos ocorridos recentemente no país. Outra nação atípica no gráfico é a Costa Rica. Em 2019, o então presidente do país, Carlos Alvarado Quesada, declarou o seguinte: "Setenta anos atrás, a Costa Rica eliminou o seu exército. Isso permite fazer muitas coisas. Oito por cento do nosso PIB são investidos na educação porque não precisamos gastar com o exército. Por isso, a nossa força é o talento humano, o bem-estar humano." O que as pessoas de um país podem fazer se quiserem ser mais felizes? O mais importante é eleger governos que garantam a redução da desigualdade de renda do país. O segundo ponto é garantir que seus serviços sociais — educação, habitação e assistência médica — sejam eficientes e igualitários. E, por fim, analise seu grau de liberdade, se você realmente está incluindo todas as pessoas na sua pesquisa e o grau de receio da sua população. *Danny Dorling é professor de geografia da cadeira Halford Mackinder da Universidade de Oxford, no Reino Unido.
2023-04-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cndr7n6xgljo
sociedade
Quão capitalista era Adam Smith, o 'pai do capitalismo'?
"Isso quase soa como Marx", diz Glory Liu, professora de estudos sociais na Universidade de Harvard. São, contudo, palavras do chamado "pai do capitalismo". "Há trechos de A Riqueza das Nações em que Adam Smith fala sobre sociedades nas quais a divisão do trabalho cresceu e se tornou altamente especializada, a ponto de os trabalhadores fazerem a mesma coisa repetidamente - ele diz que isso tende a degradar a mente e o corpo (...) Que você perde sua humanidade no excesso de trabalho." Liu resume assim algumas das preocupações sentidas pelo filósofo escocês do século 18, considerado por muitos como um pioneiro do pensamento político-econômico. E embora só a tenha usado três vezes – em dois de seus livros e em um ensaio – sua expressão icônica sobre uma "mão invisível" tem sido repetidamente usada como sinônimo dos benefícios do livre mercado. Mas o que ele realmente quis dizer? Fim do Matérias recomendadas Segundo Liu, a explicação do que Smith quis dizer ao usar a expressão "mão invisível" é uma teoria de consequências involuntárias: independentemente das minhas intenções ao realizar uma ação, com ela posso promover o bem-estar comum. "Por exemplo, quando ele usa a frase em A Riqueza das Nações, na verdade está falando sobre por que os investidores optam por investir mais perto de 'casa' em vez de ir para o exterior", diz à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "E explica que é porque eles têm uma compreensão melhor do ambiente, conhecem as leis, têm uma ideia mais clara de onde seus investimentos podem render." "No fundo, há menos incerteza do que se investissem em países que não conhecem, com regras e cultura diferentes." "Não se trata, todavia, de capitalismo de livre mercado", adverte a especialista. Smith está apenas abordando o tema "investir em casa ou fora" e diz que, ao optar pelo primeiro, você acaba promovendo algo que não era a sua intenção. "Digamos que eu resolva investir em um negócio de esquina e mesmo que minha intenção não seja revitalizar o bairro, isso acaba abrindo espaço para a participação popular, abrindo novos empregos, e isso ajuda as pessoas a ganharem mais e a gastarem mais em outros estabelecimentos." "Esta é uma forma de ilustrar o tipo de percepção social que Smith tem de que, sob certas circunstâncias, as ações de um indivíduo, guiadas puramente pelo interesse próprio, podem ter consequências socialmente benéficas." "E isso é bonito, é uma ideia poderosa", destaca a professora. "Mas também não significa que todas as ações individuais acabarão promovendo o bem-estar comum." De fato, segundo alguns pesquisadores, Smith reconhecia os perigos da sociedade mercantilista e como ela poderia gerar grandes desigualdades. Nesse sentido, é preciso localizar sua obra no tempo: A Riqueza das Nações foi publicado em 1776, em Londres. "Os tipos de desigualdades nas que ele pensava eram tanto econômicas quanto políticas", diz Liu. Ele viu como as empresas de sua época eram motivadas pelo interesse próprio para aumentar seus lucros. "E o caminho para alcançar esses objetivos passava por convencer os legisladores, o Estado, usando o poder da lei e os aparatos do governo para lhes assegurar privilégios monopolistas que lhes permitissem ir para a Índia e outros países do sul da Ásia para explorar uma nação inteira em benefício próprio." "Smith não está apenas preocupado com o que acontece com as pessoas na Índia que vivem sob o domínio britânico, ele também está preocupado com o fato de o poder mercantil ter se tornado poder político na Grã-Bretanha, e com o fato de isso criar uma desigualdade política que reforça essa dinâmica de que as pessoas que têm mais riqueza têm mais poder político para ganhar mais riqueza." "Acredito que quando os acadêmicos dizem que Smith estava preocupado com o tipo de desigualdade que pode surgir na sociedade mercantilista, eles se referem precisamente a uma tendência a esse ciclo vicioso no qual pessoas ricas podem de alguma forma reforçar suas próprias posições de poder por meio do Estado." Eamonn Butler, diretor do Instituto Adam Smith de Londres, também tem uma leitura sobre o que preocupava Smith. "Ele pensou que uma das maiores causas da grande desigualdade que existia em sua época eram os controles que se impunham sobre os processos dos mercados." "Notou que os ricos e os que estavam em posições de poder, que as grandes empresas e corporações e os políticos, se uniram para fazer regulamentações e leis que os beneficiavam e que não favoreciam outras pessoas, principalmente os mais pobres", completa. Sua avaliação era de que, se "removidos os obstáculos do caminho" para que todos pudessem negociar como quisessem, essas pessoas prejudicadas pelo sistema "estariam muito melhor", observa o pesquisador. "Adam Smith é um personagem complexo, e acho que alguns poderiam dizer que 'ele realmente era um socialista', à medida em que falava com frequência sobre os trabalhadores pobres e sobre como o sistema os tratava mal. Estava preocupado com eles." "Mas, ao mesmo tempo, ele acreditava que a melhor maneira de ajudá-los, de melhorar suas condições, era por meio do livre mercado." "Smith não deveria ser visto como alguém que acreditava no livre mercado porque ajudava os ricos, ele acreditava no livre mercado porque ajudava os pobres." A "mão invisível" de Smith foi usada para disseminar a ideia de que os mercados funcionariam melhor sem intervenções. Era isso que ele pensavam quando escreveu a expressão? "Sim", responde Butler. "Ele falou sobre o sistema de justiça natural, o que significa que, ao permitir que as pessoas façam suas próprias atividades, você ajudaria a construir um mercado que é benéfico para todos." "Ninguém sabe, ninguém planeja que o mercado vai surgir, ele só aparece", resume. Smith deu como exemplo um casaco de lã e quantas pessoas trabalharam para chegar ao produto final: desde aquele que cuidava das ovelhas até aquele que vendia a peça. "Todo mundo faz parte de um sistema que funciona, que trabalha em conjunto e produz bens a baixo custo e em abundância." Mas nem todos estão convencidos de que, com a "mão invisível", Smith sugeriu que os mercados fossem milagrosamente operados por conta própria. Essa ideia foi justamente o motor que levou Liu a escrever seu livro: Adam Smith's America: How a Scottish Philosopher Became an Icon of American Capitalism ("Os Estados Unidos de Adam Smith: como um filósofo escocês se tornou um ícone do capitalismo americano", em tradução literal). "Por que Smith se importa com o tipo de desigualdade que se enraíza no Estado e nas sociedades empresariais, com essa dinâmica entre riqueza e poder?" "Smith não costuma ser associado a isso, as pessoas o associam à magia do livre mercado, a uma espécie de hostilidade a qualquer tipo de intervenção do governo na economia." "Essa, sem dúvida, é a ideia mais popular sobre Adam Smith. Mas como chegamos a ela?" Uma parte da explicação deve ser buscada longe do local onde o filósofo nasceu e desenvolveu grande parte de sua vida acadêmica, a Escócia. É necessário cruzar o Atlântico, defende Liu, que investigou "como gerações de americanos leram, reinterpretaram e transformaram em arma as ideias de Smith, revelando como sua imagem popular como defensor do capitalismo de estilo americano e dos mercados livres é uma invenção histórica". A Escola de Economia de Chicago, que nasceu em meados do século 20 na Universidade de Chicago, é uma escola de pensamento que defende o livre mercado, a desregulamentação e a privatização. "A razão pela qual a versão deles de Smith se tornou tão poderosa se deve à reinterpretação que fizeram da ideia de interesse próprio e da 'mão invisível' dentro da estrutura metodológica da teoria dos preços", explica Liu. "Assim, Milton Friedman ou George Stigler, ambos ganhadores do Prêmio Nobel e, portanto, altamente reconhecidos como nomes de destaque no campo econômico, pegam os trabalhos de Smith e dizem: 'Smith viu como o mecanismo de preços poderia coordenar a atividade de milhões de pessoas sem a necessidade de central direção ou intervenção." "E eles o usam não apenas como um tipo de descrição científica objetiva de como os mercados funcionam, mas também para defender sua posição política: não precisamos de intervenção do governo. Na verdade, muitas vezes isso faz mais mal do que bem." Outro aspecto que Liu destaca é como, nessa releitura de Smith, a liberdade econômica é percebida. "É vista como um pré-requisito para a liberdade política, e quando o governo tenta interferir na economia, está interferindo na sua liberdade." Há muita distância entre essa interpretação e o que preocupava Smith, afirma a professora. "Smith certamente acreditava que a liberdade individual era uma coisa boa, (...) mas ele não escreveu A Riqueza das Nações para defender a todo custo a liberdade econômica do indivíduo." "Ele estava realmente preocupado com a forma como os grupos privados poderiam dominar e oprimir outros grupos, inibindo assim o crescimento econômico e novamente criando uma disparidade de riqueza e poder na economia mais ampla." Uma "mão invisível" é sem dúvida uma imagem poderosa. "Uma mão agarra, guia, mas esta não podemos ver", diz Liu. "Ninguém vê um mercado livre, mas sabemos quais são seus resultados." E o impacto que essa frase teve ao longo dos anos se deve em grande parte a Friedman, "um mestre da retórica". "Ele não é a única pessoa que faz isso, mas acho que ele deixa claro que a 'mão invisível' é a ideia-chave”. Para Friedman, essa frase mostrava que Smith, em sua genialidade, entendeu no início da ciência da economia "como funcionam os preços, os mercados livres" - uma importância transcendental atribuída a uma única ideia. "Foi necessário alguém como Friedman não apenas para dar essa interpretação, mas também para defendê-la publicamente de maneira tão contundente." Para Butler, a Escola de Chicago é apenas uma das muitas instituições que podem ser associadas a Smith. Ele cita o prêmio Nobel austríaco Friedrich Hayek, o grande pensador do livre mercado que discutiu com John Maynard Keynes na década de 1930 sobre a intervenção do governo na economia. "Sua metáfora da 'mão invisível' foi citada ad nauseam para apoiar a ortodoxia que hoje afirma que os mercados, deixados sozinhos, podem levar a um resultado socialmente ótimo; de fato, isso seria mais benéfico do que se o Estado interviesse. Na realidade, o livro de Smith é uma coleção de receitas para políticos e legisladores. Longe de deixar tudo nas mãos do mercado, o autor pensou estar oferecendo um guia aos 'estadistas' sobre como se comportar para 'enriquecer o povo e o soberano ao mesmo tempo', ou seja, sobre como aumentar a riqueza das nações”. Mariana Mazzucato em O Valor das Coisas Smith também está associado à expressão francesa laissez faire: deixar fazer, da filosofia do capitalismo de livre mercado. No entanto, esclarece Liu, ele não a usou, mas, ainda assim, no século 19 laissez faire e o livre comércio se tornaram as lentes pelas quais Smith foi interpretado. O economista canadense Jacob Viner, que foi um dos professores de Friedman e Stigler na Universidade de Chicago, escreveu em 1927 o famoso artigo Adam Smith e Laissez Faire, no qual deixou claro que Smith não era um defensor doutrinário do laissez faire. "Viner tenta enterrar essa ideia", diz Liu, mas, como ficou evidente mais tarde, o sucesso de sua missão foi parcial. "Adam Smith opinava que os mercados devem se conformar. Ao contrário da interpretação moderna de seu trabalho como laissez faire (deixar o mercado por conta própria), ele acreditava que a liberdade adequada não consiste na ausência de políticas governamentais, mas na ausência de extração de rendas." Mariana Mazzucato em O Valor das Coisas Depois de escrever A Riqueza das Nações, Smith revisou várias vezes o seu livro A Teoria dos Sentimentos Morais, de 1759. "Em sua última edição, publicada pouco antes de sua morte em 1790, ele acrescentou, entre várias ideias, um capítulo impressionante sobre o que chamou de corrupção de nossos sentimentos morais", observa Liu. "Ele diz que nossa tendência psicológica de admirar a riqueza e negligenciar os pobres é a maior e mais universal causa da corrupção de nossos sentimentos morais." "Para quem pensa em Smith como laissez faire, livre mercado, um apologista do crescimento, não importa o que aconteça, neste capítulo se encontrará com alguém completamente diferente." "É quase inevitável que não se perceba o quanto ele estava preocupado com a desigualdade", conclui Liu. Estas são as três ocasiões em que Smith se referiu à "mão invisível": "O fogo queima e a água refresca; os corpos pesados ​​descem e as substâncias mais leves se elevam necessariamente por sua própria natureza; nunca se pensou em empregar a mão invisível de Júpiter para esses assuntos. Mas o trovão e o relâmpago, as tempestades e a luz do sol, esses eventos mais irregulares, foram atribuídos ao seu favor ou à sua ira." Adam Smith em História da Astronomia. "Os ricos escolhem da pilha apenas o mais precioso e agradável. Eles consomem pouco mais do que os pobres e, apesar de seu egoísmo e ganância natural (...) dividem com o pobre o produto de todos os seus progressos. São conduzidos por uma mão que faz com que as necessidades da vida sejam distribuídas quase da mesma maneira que seriam distribuídas se a terra tivesse sido dividida igualmente entre todos os seus habitantes; e, assim, sem pretender, inadvertidamente, promover o interesse de sociedade e fornecer meios para a multiplicação da espécie." Em A Teoria dos Sentimentos Morais. "Quando (cada indivíduo) prefere a atividade econômica de seu país à estrangeira, ele só pensa em sua segurança, e quando dirige a primeira de forma que seu produto represente o maior valor possível, ele só pensa em seu próprio lucro; mas neste, como em muitos outros casos, ele é conduzido por uma mão invisível a promover um fim que não fazia parte de suas intenções." Em A Riqueza das Nações.
2023-04-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz90z7dwl4no
sociedade
'Divórcio grisalho': o crescente fenômeno das separações após décadas de casamento
A mexicana Aída Sedano virou celebridade no TikTok. Esta mulher de 76 anos não faz dancinhas da moda nem canta, mas seus vídeos — nos quais conta, por exemplo, como é fazer compras sem o marido — ultrapassaram 3,5 milhões de visualizações. Mãe de três filhas e avó de seis netos, Sedano se separou do marido americano há nove anos, após quatro décadas de casamento. "Quando o relacionamento não estiver funcionando mais, deixe o vento soprar e levar os restos do seu caminho. E viva. E comece a viver", disse à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC, a dona da conta @aidasedanolaabuela, que tem mais de 115 mil seguidores na rede social. A frase dela resume o pensamento de muita gente em um momento em que, de uma maneira geral, as pessoas vivem mais e chegam em melhores condições de saúde física e mental a idades que anos atrás eram vistas como avançadas. A tendência é tão popular que levou pesquisadores americanos como Susan L. Brown a cunhar um termo para o fenômeno: "divórcio grisalho". Fim do Matérias recomendadas O termo costuma se referir ao divórcio de pessoas com 50 anos ou mais que decidem deixar seus parceiros após muitos anos de casamento. "O divórcio não é mais visto como algo tão estigmatizado como poderia ser no início, parece muito mais normal", explica a psicóloga e escritora Silvia Congost. "Como o divórcio é mais normalizado, ele também está mais presente nessas idades." "Além disso, a expectativa de vida está aumentando. Quando chegamos aos 65 anos, temos em média duas décadas de vida pela frente, e se alguém não está feliz, não quer mais se contentar com isso. Sabe que tem mais opções." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast De acordo com um estudo de Susan L. Brown, que codirige um centro de pesquisas sobre casamentos e famílias na Universidade Estadual de Bowling Green, nos EUA, o número de divórcios grisalhos dobrou entre 1990 e 2010 no país. Há uma geração, menos de 10% dos divórcios envolviam cônjuges com mais de 50 anos. Hoje, mais de 25% dos divorciados têm mais de 50 anos. No Brasil, em 2021, 25,9% das pessoas que tiveram divórcio confirmado na primeira instância da Justiça ou via escritura tinham mais de 50 anos, segundo levantamento da BBC a partir de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2019, o percentual foi ligeiramente menor — 25,2%. A reportagem não conseguiu acesso a dados de anos anteriores com a mesma metodologia. Enquanto isso, em 2010, o tempo médio entre a data do casamento e a data da sentença ou escritura do divórcio era de cerca 16 anos. Em 2021, esse intervalo diminuiu para 13,6 anos. No México, o número de pessoas que se divorciaram com mais de 50 anos aumentou em dez anos, passando dos 10.531 divórcios registrados em 2011 para 28.272 em 2021, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística e Geografia (INEGI). Na Espanha, outro exemplo dessa tendência, 34.449 pessoas com mais de 50 anos se divorciaram em 2021, em comparação com as 24.894 registradas em 2013, segundo dados oficiais. "Quando chega a aposentadoria, cada vez mais casais não querem mais ficar juntos", analisa Sacramento Barbas, mediadora e psicóloga da fundação ATYME, pioneira na implementação de técnicas de mediação na Espanha. Algumas frases que ela e seus colegas mais ouvem incluem: "no tempo que me resta de vida, não quero ter problemas" e "não reconheço meu companheiro, é como se fosse outra pessoa". Mas, segundo a psicóloga, "às vezes são os filhos adultos que colocam impedimentos, porque não querem que os pais se separem". A psicóloga argentina Beatriz Goldberg, especialista em crises individuais, diz que pessoas que passam por divórcios grisalhos muitas vezes entram em novos relacionamentos com expectativas diferentes. "Tem gente que sente que o novo parceiro é mais para curtir, e o outro era para construir uma família", diz Goldberg, autora do livro Me separé y ahora qué ("Me separei, e agora?", em tradução livre). A meia-idade é marcada por importantes transições na vida. Os filhos crescem e saem de casa, enquanto as carreiras podem ficar para trás com a aposentadoria. Sem a rotina diária de cuidar dos filhos e as longas jornadas de trabalho, os cônjuges podem descobrir que têm pouco em comum. O divórcio grisalho não costuma ocorrer por conta de um acontecimento específico, mas é fruto de um distanciamento, explicam os especialistas. Além da normalização do divórcio, temos hoje também a valorização da independência das mulheres. "Nós, mulheres, percebemos que não temos que tolerar certas coisas que nossas avós toleravam. Aquele modelo de família em que um sustenta o outro não é mais tão necessário", explica Silvia Congost. "Se você não está feliz, sabe que não precisa aguentar mais. O nível de tolerância em alguns casos é menor." Aída Sedano se casou aos 24 anos, mas logo percebeu que casamento não era o que ela pensava. Trancada em sua casa em Tijuana o dia todo com as filhas e obrigada a parar de trabalhar como professora rural, profissão que amava, ela viu os anos passarem. "Eu conversava com minhas tias e dizia que não gostava daquele relacionamento, que ele não vinha para casa, que bebia, que gastava muito. E todo mundo me dizia: Você tem uma casa boa, você tem bons móveis, você se veste bem. Não falta nada", conta ela à BBC News Mundo. Quando Sedano finalmente se mudou para San Diego com o marido, ela conseguiu voltar para a universidade para estudar pedagogia, aos 45 anos. "Quando voltei para a universidade foi que comecei a aprender que nós, mulheres, tínhamos direitos, que o mundo havia mudado." Finalmente, aos 65 anos, ela decidiu deixar o marido — o que ela reconhece ser um caminho "muito difícil". "A dor chega até à medula óssea." “Sou uma senhora normal que sofreu e que encontrou nos vídeos uma forma de se conectar, de ter amigos”, diz ela sobre sua conta no TikTok.
2023-04-15
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2ln72zg5x2o
sociedade
Sony World Photography Awards 2023: os vencedores do renomado prêmio de fotografia
Os vencedores do Sony World Photography Awards 2023, um dos mais prestigiados prêmios de fotografia do mundo, já foram anunciados. O concurso premiou fotografias de diferentes estilos, com conteúdos muito diversos. Edgar Martins foi nomeado Fotógrafo do Ano pela sua série Our War. O projeto é uma homenagem ao amigo de Martins, o fotojornalista Anton Hammerl, morto a tiros durante a Guerra Civil da Líbia em 2011. Martins optou por refletir sobre a questão: como contar uma história quando não há testemunhas, depoimentos, provas ou mesmo um cadáver? Fim do Matérias recomendadas “É uma grande honra ser reconhecido com este prêmio e, embora esteja tranquilo quanto a prêmios e à natureza subjetiva da escolha de alguém, saber que houve mais de 180 mil inscrições para a competição profissional deste ano é muito emocionante”, diz Martins. "Neste caso, também é uma experiência bastante emotiva porque posso homenagear meu amigo em um cenário mundial e chamar a atenção para a situação da família para encontrar seus restos mortais." O trabalho de Martins triunfou na categoria "Retrato" do Concurso Profissional. Aqui estão os vencedores de outras categorias, juntamente com os comentários dos fotógrafos. Fábrica de cimento por Fan Li A fábrica de cimento Tieshan está localizada na cidade de Guilin em Guangxi, no sul da China. "A fábrica foi construída em 1996 e teve um papel importante no desenvolvimento econômico e na construção da cidade". "No entanto, como estava originalmente localizada na área do rio Li, a fábrica de cimento foi realocada, deixando para trás os prédios antigos, torres de água, piscinas e os trilhos de trem." O Direito de Jogar de Lee-Ann Olwage "The Right to Play cria um mundo lúdico onde as meninas são empoderadas." "Para este projeto, trabalhei com meninas do Kakenya's Dream em Enoosaen, Quênia, que evitaram a mutilação genital feminina [MGF] e o casamento infantil, mostrando como o mundo pode ser quando as meninas têm a chance de continuar aprendendo em um ambiente que as apoia e apoia os seus sonhos. O Movimento das Mulheres pela Paz no Congo por Hugh Kinsella Cunningham "Quase 20 anos após um conflito que matou cinco milhões de pessoas e destruiu dez vezes mais vidas, a República Democrática do Congo está mais uma vez mergulhando no caos." "Combinando imagens raras das linhas de frente com retratos e histórias profundas de mulheres, este projeto de longo prazo segue ativistas em suas mobilizações." "Enquanto equipes de mídia vêm brevemente para filmar cenas de guerra e deslocamento, passei muitos meses em áreas de difícil acesso, cobrindo conflitos e documentando o lento trabalho de paz por uma perspectiva única." Miruku de Marisol Mendez e Federico Kaplan "Miruku se concentra nos Wayuus, uma comunidade indígena em La Guajira, deserto costeiro da Colômbia." "Encomendado pelo 1854/British Journal of Photography e WaterAid, o projeto examina como uma combinação de questões de mudança climática e negligência humana levou a uma escassez de água incapacitante." “Estruturamos a história de uma perspectiva feminina para entender melhor como a desigualdade de gênero e a vulnerabilidade climática se entrelaçam”. Horizonte de eventos de Kacper Kowalski "No início do inverno, parti em uma jornada em busca da harmonia." "Quando podia, voava sobre corpos de água congelados, fascinado por suas formas geladas." "Entre janeiro e março fiz 76 voos solo em um girocóptero ou parapente motorizado, percorrendo aproximadamente 10.000 quilômetros (6.200 milhas) e passando mais de 200 horas no ar." "Minhas fotos foram tiradas sobre corpos d'água perto de Tricity, no norte da Polônia." James Devin "Esta coleção foi filmada no primeiro semestre de 2022 na Arábia Saudita, onde eu residia na época." “Com mais tempo, acho que essas imagens teriam caído em projetos ou narrativas mais definidos, talvez relacionados à grande população de trabalhadores imigrantes e expatriados (da qual eu fazia parte) ou à cultura automobilística saudita”. "Do jeito que está, acho que esta coleção mostra meu estilo e técnica como fotógrafo - não há nenhuma conexão deliberada entre as imagens, a não ser que eu estava procurando por fotografias especiais que poderiam eventualmente se tornar projetos." O jardim do céu de Kechun Zhang "Três anos atrás eu me mudei para Wenjiang. A uma curta distância da minha casa há um viveiro de árvores." "Lá você pode ver árvores e rochas exóticas de todo o mundo, incluindo pinheiros negros japoneses e bordos." “Existem trabalhadores que todos os dias levantam essas árvores e pedras com guindastes móveis, transportam e plantam em parques, bairros ou ruas recém-construídas na cidade”. "Eu ando pela floresta e tiro fotos enquanto as árvores e as rochas se elevam no ar. Juntas, essas imagens criam a série Sky Garden." Uma jogadora de baseball profissional triunfa na All Male Pro League (Liga Masculina Profissional) por Al Bello "Kelsie Whitmore é a primeira jogadora profissional de beisebol a jogar em uma liga profissional exclusivamente masculina" "Ela joga no campo externo e lança para o Staten Island Ferryhawks na Liga Atlântica de Baseball Profissional." "Sua estreia na Atlantic League foi como pinch runner e ela se tornou a primeira mulher a iniciar um jogo da Atlantic League, jogando como outfield esquerda." "Mais tarde, ela foi a primeira mulher a lançar em um jogo da Liga Atlântica e, em 3 de setembro de 2022, Kelsie se tornou a primeira mulher a registrar um hit na Grande Liga.” Cidades Enlouquecidas de Corey Arnold "Cities Gone Wild é uma exploração de três animais inteligentes: ursos negros, coiotes e guaxinins, sobrevivendo e até prosperando na paisagem feita pelo homem enquanto outros animais desaparecem." “Eu rastreei esses animais em cidades dos Estados Unidos para revelar uma visão mais íntima de como a vida selvagem está se adaptando a cidades cada vez mais urbanizadas”. Jáa categoria Open celebra o poder das imagens individuais. Dinorah Graue Obscura foi nomeada Open Photographer of the Year 2023 por sua fotografia intitulada Mighty Pair, na categoria Mundo Natural e Vida Selvagem. A imagem mostra dois pássaros carcarás com crista, em um galho de árvore no sul do Texas, EUA. Long Jing, da Universidade de Artes de Yunnan, foi premiado com o Student Photographer of the Year de 2023 por sua série intitulada "Keep the Yunnan Opera". Jing foi aos bastidores para mostrar os grupos cada vez menores de artistas e espectadores em apresentações no sudoeste da China. Hai Wang, também da China, ganhou o prêmio de Fotógrafo Jovem do Ano de 2023 por uma imagem sobre o tema "Seu Cotidiano". A fotografia mostra fileiras de cadeiras vazias de cores vivas montadas para uma cerimônia escolar que foi cancelada devido à pandemia de Covid. Alessandro Cinque é o vencedor do Prêmio Sustentabilidade, que foi concedido pela primeira vez. Esse novo prêmio, desenvolvido em colaboração com a Fundação das Nações Unidas e a iniciativa Picture This da Sony Pictures, reconhece histórias, pessoas e organizações cujas ações destacam um dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Cinque venceu por sua série Atrapanieblas, que documenta uma solução inovadora que ajuda a lidar com a escassez crônica de água em Lima, no Peru. Uma exposição dos vencedores e das imagens pré-selecionadas acontecerá na Somerset House, Londres, de 14 de abril a 1º de maio de 2023.
2023-04-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0wq6y54yxeo
sociedade
Por que Tupperware corre risco de falir e viu ações despencarem na bolsa
A Tupperware, fabricante americana de recipientes para armazenamento de alimentos, alertou que pode quebrar a menos que consiga rapidamente acesso a novas linhas de crédito. A empresa de 77 anos disse que havia "dúvidas substanciais sobre sua capacidade de continuar operando". A Tupperware tem tentado se reposicionar para um público mais jovem, mas não conseguiu impedir uma queda em suas vendas. Suas ações caíram quase 50% na segunda-feira (10/4), antes de se recuperarem ligeiramente nesta terça-feira (11/4). A empresa tornou-se conhecida nas décadas de 1950 e 1960, quando as pessoas nos EUA realizavam "festas Tupperware" em suas casas para vender recipientes de plástico para armazenamento de alimentos. Fim do Matérias recomendadas A Tupperware ainda emprega uma equipe de vendas diretas — que ganha uma porcentagem de todos os produtos que vendem — além de vender produtos em seu site. Recentemente, começou a vender seus produtos na rede de varejo americana Target, em uma tentativa de atrair compradores mais jovens, bem como para outros varejistas em todo o mundo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Também ampliou sua linha para produtos culinários, como um grill que funciona em micro-ondas. Na época, Miguel Fernandez, presidente-executivo da Tupperware — o terceiro em cinco anos — disse que imaginou a churrasqueira "para alguém que mora em um apartamento na cidade de Nova York e não pode fazer churrasco ao ar livre, mas pode usar isso". No entanto, Neil Saunders, diretor-gerente de varejo da consultoria GlobalData, disse que a Tupperware "não conseguiu mudar com o tempo em termos de produtos e distribuição". Ele disse que o método de venda direta para clientes mais jovens por meio de festas da Tupperware "não estava funcionando" e que mesmo os clientes mais velhos que "se lembravam da Tupperware em seu apogeu" seguiram em frente — eles agora podem comprar recipientes mais baratos ou mais elegantes em lojas físicas ou online. Enquanto isso, a Tupperware disse em março que sua força de trabalho de vendedores diretos encolheu 18% em 2022 em comparação com o ano anterior. A empresa também foi impactada pelos lockdowns da pandemia de covid-19 na China, que afetaram o acesso do consumidor aos produtos. Saunders também disse que a Tupperware — embora considerada inovadora há muitos anos — talvez não seja hoje tão inventiva e estilosa quanto outras marcas, como a Joseph Joseph, a empresa de design de artigos para casa fundada pelos irmãos gêmeos Antony e Richard Joseph. Os clientes mais jovens também adotaram produtos mais ecológicos, como papel de cera de abelha para manter os alimentos frescos, que podem ser usados repetidamente, disse ele. Em comunicado, a Tupperware disse que suas ações corriam o risco de serem retiradas da Bolsa de Valores de Nova York porque a empresa ainda não havia apresentado seu relatório anual, um dos pré-requisitos para a listagem. Também alertou que teve que renegociar seus empréstimos depois de já alterar seus contratos de empréstimo três vezes desde agosto de 2022. A Tupperware informou ainda que está tendo dificuldades com os custos de juros mais altos em seus empréstimos enquanto tenta recuperar o negócio. A empresa disse que "prevê atualmente que pode não ter liquidez adequada no curto prazo" e acrescentou que "concluiu, portanto, que há dúvidas substanciais sobre sua capacidade de continuar operando". Há apenas um mês, a diretora financeira da Tupperware, Mariela Matute, que ingressou na empresa em maio do ano passado, disse a investidores: "Estamos confiantes de que seremos capazes de operar sem dúvidas substanciais em 2023". Além disso, a Tupperware disse que seus resultados financeiros para 2021 e 2022, bem como seus números intermediários em 2021 e nos primeiros três meses de 2022, foram "incorretos" devido à forma como a empresa contabilizava impostos e aluguéis. O preço das ações da Tupperware subiu 5,6% na terça-feira, após cair quase 50% na segunda-feira. A empresa disse que está trabalhando com consultores financeiros para garantir mais liquidez. Também está examinando se pode vender propriedades e cortar empregos. No entanto, para Saunders, da consultoria GlobalData, isso já não é mais possível. Em sua visão, se a empresa tivesse feito mudanças há 10 anos, como vender em lojas ou no atacado, poderia estar em uma posição diferente agora. Ele ressalva, contudo, que o nome da marca ainda é bem conhecido, e a empresa poderia apelar para um gigante do varejo como o Walmart — que era dono da Asda — ou até mesmo a Amazon, para manter-se operante. A Tupperware foi fundada por Earl Tupper, um químico americano, em 1946. Os produtos de polietileno hermético e à prova d'água — com tampa de dupla vedação — eram vendidos em lojas de departamento, mas não tiveram sucesso imediato porque os clientes em potencial não sabiam como usá-los — estavam acostumados com produtos de vidro e cerâmica. Foi então que uma vendedora chamada Brownie Wise — que já vendia produtos de limpeza de porta em porta ou festas em casa — passou a vender ela mesma Tupperware. Ela usou demonstrações caseiras para encontrar clientes e recrutou outros vendedores para vender os produtos. Wise acabou contratada como vice-presidente de marketing da Tupperware pelo próprio Tupper, ajudando a impulsionar o crescimento do negócio por meio de festas que também permitiam que as mulheres ganhassem uma renda. No entanto, Tupper e Wise teriam entrado em conflito sobre a estratégia da empresa e, em 1958, Tupper demitiu Wise. Ela processou a empresa e ganhou um ano de salário. Tupper acabou vendendo o negócio.
2023-04-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqqz1nzvr54o
sociedade
Por que ter baixa expectativa para evitar frustração não nos faz mais felizes
A Finlândia foi recentemente reconhecida como o país mais feliz do mundo, pelo sexto ano consecutivo. Diversas teorias já foram apresentadas para explicar por que o país nórdico continua a figurar no topo do ranking da felicidade. Elas vão da maior igualdade de renda até o tempo passado em meio à natureza. Devemos, então, reduzir nossas expectativas para ser mais feliz? Eu defenderia que as pesquisas na área da psicologia indicam o oposto. Altas expectativas são importantes porque nos permitem sonhar e criar objetivos. O processo conhecido como contraste mental faz com que nós criemos julgamentos sobre as nossas expectativas de futuro para decidir quais sonhos são realistas e podemos buscar - e quais deveríamos abandonar. Fim do Matérias recomendadas Imagine-se, por exemplo, vivendo uma vida com muitos amigos à sua volta. Se você estiver sentado sozinho em casa tendo esse sonho e se sentir triste com a sua realidade solitária, o contraste mental ajuda você a identificar o seu sonho, antecipar possíveis obstáculos, planejar as ações a serem tomadas para superá-los e buscar um objetivo que o ajude a fazer amigos, como filiar-se a um clube, por exemplo. Por isso, as altas expectativas, quando são realistas, podem servir de força motivadora rumo a uma mudança. E as altas expectativas também nos mantêm otimistas, para continuarmos avançando frente às adversidades. Quando algo de ruim acontece com alguém que desenvolve a expectativa de que tudo sairá bem — apesar da adversidade e mesmo que não pareça realista naquele momento —, isso pode fazer com que essa pessoa tome medidas positivas para seguir adiante. Digamos, por exemplo, que tenha passado pelo término de um relacionamento e a sua expectativa de encontrar um parceiro de vida diminua. Se você continuar a ter altas expectativas de que irá encontrar a pessoa certa, terá mais possibilidade de entrar em um site de namoro e buscar oportunidades de encontrar novas pessoas. As baixas expectativas limitam nossa capacidade de desenvolvimento e de crescimento. Ter baixas expectativas de conseguir realizar o que esperamos não é uma boa forma de adaptação às mudanças da vida e pode gerar sentimentos de impotência e desespero. Quando temos baixas expectativas de sucesso após uma adversidade, nossa propensão a desistir é maior — não tentar um aplicativo de namoro, por exemplo. E, mesmo quando nossas possibilidades de sucesso são objetivamente altas, nós deixamos passar oportunidades — de encontrar novas pessoas, talvez — devido às nossas baixas expectativas de que as coisas funcionem bem para nós. Por isso, com altas expectativas, podemos nos adaptar às mudanças de circunstâncias e seguir adiante. É um sinal de resiliência, adaptabilidade e bem-estar. Embora seja útil definir altas expectativas para nós mesmos, também costumamos atingir melhores resultados quando outras pessoas têm altas expectativas de nós. É o chamado efeito Pigmaleão. Quando sabemos que as outras pessoas nos consideram capazes e acreditam que podemos realizar mais do que pensamos, isso nos incentiva a buscar melhor desempenho. E, da mesma forma, quando os demais têm baixas expectativas sobre nós, geralmente nossos resultados diminuem. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Definir expectativas altas demais pode ter efeitos negativos. Imagine que você tenha superestimado seus conhecimentos e definido desafios grandes demais para você mesmo. Você pode ter começado a jogar Candy Crush no celular do seu parceiro e o nível dele é muito mais alto do que o seu. O descompasso de competência entre você e o novo nível do jogo pode gerar frustração e até ansiedade. Para neutralizar esta situação, tudo o que você precisa é voltar para um nível mais adequado para a sua experiência — um nível que seja um desafio, mas que permita que você atinja altos resultados para progredir no jogo. Nossa tendência é fazer o mesmo na vida real para manter o equilíbrio. Digamos que você esteja organizando um jantar para os seus amigos. Se você se comprometer com uma refeição sofisticada, que apresente grandes dificuldades, sua ansiedade pode atingir níveis tão altos que você não conseguirá desfrutar do seu próprio jantar. Mas você pode reduzir suas expectativas, preparando uma refeição que não exija tantos conhecimentos, mas ainda seja um desafio (e que seus amigos, sem dúvida, ainda irão aproveitar). Todos nós temos anseios — o desejo de uma versão ideal das nossas vidas. Alguns dos nossos anseios tornam-se objetivos (ter filhos, por exemplo), enquanto outros se tornam desejos de toda a vida que provavelmente nunca irão se realizar (como vencer em um programa de televisão). Um dos motivos que levam as pessoas a não querer ter altas expectativas é se proteger da desilusão quando suas esperanças não se realizarem. A preocupação é válida. Mas aprender a controlar as emoções na hora da tristeza e da frustração nos ajuda a lidar com as adversidades de forma mais efetiva. Os prós da alta expectativa quando ela nos motiva a definir e atingir objetivos superam os contras e qualquer tipo de "proteção" que possamos ter com baixas expectativas. Considerando tudo isso, acho simplista demais acreditar que este seja o motivo da felicidade dos finlandeses. *Jolanta Burke é professora do Centro de Ciências da Saúde Positivas da Universidade de Medicina e Ciências da Saúde do Colégio Real de Cirurgiões da Irlanda.
2023-04-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckry8eg9rzpo
sociedade
O que é a 'síndrome da filha mais velha', que sobrecarrega meninas pelo mundo
Você já ouviu falar da “síndrome da filha mais velha”? É a carga emocional que as filhas mais velhas tendem (e são incentivadas) a assumir em muitas famílias, desde muito jovens. Cuidar dos irmãos mais novos, ajudar com as tarefas do dia a dia, cuidar de pais doentes, administrar as compras da casa, pessoalmente e online – as filhas mais velhas costumam tomar para si desde cedo um fardo pesado, mas invisível, de responsabilidades domésticas. Mas há algo de errado com isso? Não faz sentido que os irmãos mais velhos, supostamente mais maduros, cuidem dos mais novos? E as meninas não são “naturalmente” melhores para cuidar dos outros? Esses conceitos populares são tão enraizados que podem dificultar nossa visão do problema. A síndrome da filha mais velha recentemente virou tendência no TikTok (#EldestDaughterSyndrome). Meninas adolescentes veem isso como uma injustiça e reclamam da carga não remunerada e pouco apreciada de trabalho que recebem nas suas famílias. E também discutem os efeitos prejudiciais disso sobre sua vida, saúde e bem-estar. Fim do Matérias recomendadas É claro que essa “síndrome” existe há séculos em muitas partes do mundo. Por que só agora ela é considerada uma questão tão importante? Mesmo com os progressos das mulheres na educação e no emprego, elas ainda assumem a maior parte do trabalho doméstico. De fato, o progresso rumo à igualdade de gênero no ambiente de trabalho não se traduziu em igualdade de gênero em casa. E a síndrome da filha mais velha pode ajudar a explicar por que isso acontece. Seguindo uma espécie de hierarquia patriarcal, é a filha mais velha que acaba sendo apontada na maioria das vezes para lidar com tarefas desse tipo. Pelo que ficou aparente nas reclamações postadas no TikTok, a síndrome pode prejudicar o bem-estar das filhas mais velhas e “roubar” sua infância, já que elas são rapidamente levadas a assumir responsabilidades dos adultos em níveis desproporcionais – o que também é conhecido como “parentalização”. Assim, esse processo acaba permitindo que a desigualdade de gênero no trabalho doméstico se reproduza nas gerações seguintes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Existem pelo menos três teorias comportamentais por trás da síndrome da filha mais velha. Muitas vezes, elas ocorrem ao mesmo tempo e se reforçam mutuamente. Em segundo lugar, vem a teoria da tipificação sexual. Ela propõe que os pais, muitas vezes, atribuem tarefas diferentes a meninas e meninos, com base no gênero. A tipificação sexual brota do entendimento de pais que veem trabalho doméstico com uma coisa "feminina". E, mesmo quando os pais procuram conscientemente incutir a igualdade de gênero nos seus filhos, a tipificação sexual pode ocorrer quando as filhas mais velhas, mesmo que inconscientemente, acompanham suas mães em atividades consideradas de gênero, como cozinhar, limpar a casa e fazer compras. Por isso, muitos avanços conquistados por mães em termos de igualdade de gênero no trabalho vieram às custas do esforço de filhas mais velhas que tiveram de lidar, desde cedo, com tarefas domésticas. Em uma análise mais ampla, é possível observar implicações que a síndrome da filha mais velha traz para a desigualdade de gênero global e para a atual crise mundial no setor de assistência. Nas Filipinas, por exemplo, muitas mães migram para a Europa, Estados Unidos e Oriente Médio para trabalhar como empregadas domésticas. O trabalho delas libera as famílias para as quais trabalham, até certo ponto, da desigualdade de gênero em casa. Mas, nas Filipinas, as filhas mais velhas daquelas mães, muitas vezes, precisam assumir o papel de mães “substitutas” e administrar a casa. Neste processo, além de reproduzir a desigualdade de gênero doméstica por gerações, a síndrome da filha mais velha ainda transfere essa desigualdade de uma parte do mundo para outra. A “cura” pode parecer simples – é preciso que as famílias reconheçam a sobrecarga injusta que está sendo colocada sobre os ombros das filhas mais velhas e redistribuam as responsabilidades domésticas de forma mais igualitária. Mas esta não é uma tarefa fácil. É preciso que os homens da família, particularmente, aumentem sua contribuição para o trabalho doméstico. Ou seja, é preciso desfazer séculos de mentalidade de que o cuidado e o trabalho doméstico seriam ligados ao gênero “feminino”. Também é preciso aceitar que o trabalho doméstico, principalmente o trabalho realizado pelas crianças e pelas filhas mais velhas, é basicamente ignorado, não remunerado e subvalorizado. O orçamento britânico de 2023 prevê um investimento de 4 bilhões de libras (cerca de R$ 25 bilhões) para ampliar a rede de creches no país, um valor considerável mas que representa apenas uma pequena fração das responsabilidades domésticas assumidas desproporcionalmente pelas mulheres e, muitas vezes, pelas filhas mais velhas. Mas não podemos mudar aquilo que não conseguimos ver. Por isso, aumentar a conscientização sobre a síndrome da filha mais velha, não só como uma luta individual, mas também como uma questão de desigualdade de gênero, é um bom começo. *Yang Hu é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Lancaster, no Reino Unido.
2023-04-11
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz90qw72214o
sociedade
Por que 'Bolsonaro do Paraguai' tem dificuldade para crescer na disputa pela Presidência
O vídeo no Instagram mostra a imagem de um senador paraguaio arremessando água no rosto de um colega no meio de uma sessão da chamada Cámara Alta, o Senado do país. No fundo toca a música Rockstar, do fenômeno do trap argentino Duki: "¿Qué quién me creo que soy? / El mejor al menos en estos días / Cada liga tiene su Jordan" ("Quem acho que sou? / O melhor, pelo menos nesses dias / Cada liga tem seu [Michael] Jordan", em tradução literal). É assim que Paraguayo Cubas - ou Payo Cubas, como é conhecido -, de 61 anos, apresenta-se como candidato na disputa pela Presidência do Paraguai. A eleição acontece no próximo dia 30 de abril. Político veterano, Cubas se apresenta como candidato antissistema, rejeita as instituições tradicionais da política, tem um discurso centrado na intolerância, uma retórica de combate à corrupção e se comunica com seus eleitores principalmente por meio das redes sociais. Fim do Matérias recomendadas Características como essas o aproximam de figuras como o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro - mas ele possui uma série de particularidades, pontua Andrei Roman, do instituto de pesquisas Atlas Intel. "Existe uma certa ambiguidade em seu posicionamento político. Assim como, historicamente, o populismo latino-americano se vestiu de diversas formas, ele também tem essa tradição de ambiguidade do populismo do nosso continente", avalia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar de ter um discurso mais alinhado com a direita, o ex-senador já falou em legalizar a maconha no Paraguai e defendeu a reforma agrária, ainda que em uma versão bastante "desconexa e heterogênea", na definição de Pedro Feliú Ribeiro, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP). "Ele também não tem um vínculo com os militares, uma diferença central em relação a Bolsonaro. As Forças Armadas no Paraguai, aliás, têm um vínculo enorme com os colorados", diz ele, referindo-se ao Partido Colorado, que há anos governa o país de forma quase ininterrupta. O ditador Alfredo Stroessner, no poder entre 1954 e 1989, era filiado ao partido. Ao lado do Partido Liberal, o Colorado (conhecido também pela sigla ANR, de Asociación Nacional Republicana) está há mais de um século no centro da política paraguaia. E esta é, de certa forma, uma particularidade do país. Ao contrário do que acontece no Brasil - e em vários dos países da América do Sul -, no Paraguai há uma identificação forte da população com partidos políticos. Os filiados aos dois partidos, segundo ele, somam cerca de 75% dos quase 5 milhões de eleitores do país. "Quando você faz 16, 17 anos, a família inscreve no seu partido. É uma filiação afetiva." Não por acaso, os dois candidatos à frente nas pesquisas de intenção de voto são das duas legendas. Santiago Peña concorre pelo Colorado e Efraín Alegre, pelo Liberal. Cubas aparece com 14,5% no mais recente levantamento do Atlas, de 5 de abril, em terceiro lugar. Um desempenho que, na avaliação de cientistas políticos ouvidos pela reportagem, de um lado reflete as particularidades da estrutura político-partidária do Paraguai e, de outro, pode ser sintoma de crise no sistema político e da influência cada vez maior das redes sociais na comunicação e articulação política. Um cenário acompanhado de perto por observadores brasileiros, dada a importância crescente da relação entre os dois vizinhos. O próximo presidente paraguaio terá de lidar com a renegociação do acordo da hidrelétrica de Itaipu com o Brasil e com os problemas trazidos pela atuação de grupos brasileiros do crime organizado no país. "Ainda que jogue sozinho, Payo Cubas não é um outsider na política", diz o cientista político Marcos Pérez Talia, referindo-se ao currículo do candidato. Cubas foi deputado entre 1993 e 1998 e desde então se candidatou a diversos cargos políticos, de prefeito (intendente) de Ciudad del Este a governador do departamento de Alto Paraná - até conseguir se eleger senador em 2017 pelo recém-criado Movimento Cruzada Nacional (hoje Partido Cruzada Nacional). A essa altura, já era uma figura polêmica. Em 2016, fora detido depois de pichar a sede da promotoria de Justiça em Ciudad del Este em uma manifestação contra a corrupção e chegou a defecar na sala do juiz encarregado do caso em uma audiência. Nos meses seguintes, empreendeu o que chamou de “rallys de grafite”, em que pichava os muros das casas de autoridades supostamente envolvidas em corrupção. Uma vez eleito, não abandonou o estilo. Com frequência tirava o cinto da calça para batê-lo no chão como um chicote ou empunhá-lo como símbolo de uma suposta luta contra corruptos e bandidos. Ele também agredia verbalmente os colegas no Congresso. "No Senado, ele tentou fazer alguns acordos, mas logo quebrou com todo mundo, numa lógica absolutamente conflitiva", diz Pedro Feliú Ribeiro, do Instituto de Relações Internacionais da USP. "Ele não quis ou não soube construir pontes no Senado e, depois de algumas escaramuças, foi expulso do Congresso e perdeu o mandato", acrescenta Talia. Apesar de isolado politicamente e de não ter efetivamente um programa de governo, Cubas aparece em terceiro lugar na pesquisa da Atlas, com 14,5% da preferência dos eleitores. Essa parcela, segundo Roman, concentra homens jovens e com renda abaixo da média, público que se demonstra mais receptivo à retórica do candidato - um "discurso improvisado", mas que muitas vezes acaba entrando "em sintonia com um desejo de mudança entre setores da sociedade que se sentem marginalizados, que sentem que o sistema político no país favorece os segmentos mais privilegiados". Dentro do universo de insatisfeitos que o candidato parece aglutinar, o cientista político Marcos Pérez Talia destaca dois grupos: aqueles decepcionados com as legendas nas quais tradicionalmente votavam e os desencantados com a política. Ainda que a identificação com os partidos políticos permaneça como um traço da sociedade paraguaia, há um descontentamento crescente em relação à política tradicional, sentimento que é alimentado por denúncias de corrupção em diversas esferas da política, inclusive no alto escalão do governo. O atual presidente, Mario Abdo Benítez, que é do Partido Colorado, tem um nível de rejeição alto e quase sofreu impeachment em 2021. Seu antecessor e correligionário, Horácio Cartes, foi colocado em uma lista de corruptos elaborada pelo governo americano e virou réu em um dos desdobramentos da Operação Lava Jato no Brasil por suspeita de ter ajudado na fuga do doleiro Darío Messer. "Segundo a pesquisa da Atlas, o Partido Colorado tem por volta de 36% [das intenções de voto], quando em 2013 e 2018 superou 45%. Com a feroz crise interna e externa da qual padece a sigla, Payo Cubas também pode estar capitalizando o descontente colorado que não quer votar em Santiago Peña", diz Talia. Em outra frente, acrescenta, ele "também pode estar ativando melhor o eleitorado antissistema e o voto de protesto". "Nas últimas eleições gerais, em 2018, apenas 62% dos eleitores compareceram às urnas. Talvez [sua intenção de voto] se alimente daí", conclui. "Há um enorme descontentamento social", comenta. Alijado da estrutura político-partidária, Payo Cubas usa as redes sociais como instrumento preferencial para se comunicar com seu eleitorado. "Por uma questão de radicalismo, por ter chegado em situações muito extremas em alguns casos, com instalação de discursos de ódio, ataque político, nos últimos tempos ele foi marginalizado do debate público midiático e acabou encontrando uma via bastante livre nas redes sociais", diz Leonardo Gómez Berniga, advogado e membro da Tedic, organização dedicada a defender e promover direitos humanos nos meios digitais. Ele acrescenta que o discurso mais radical, os conteúdos que despertam polarização, os ataques de ódio e as informações tendenciosas - que por uma série de razões acabam gerando engajamento e tendo grande alcance nas redes sociais - têm estado mais presente nas plataformas de diversos candidatos paraguaios, mas particularmente de Cubas. E, ainda que o acesso à internet seja limitado no país, que tem uma grande parcela da população entre pobres e vulneráveis, redes como WhatsApp e Facebook acabam tendo uma grande penetração porque têm muitas vezes o uso gratuito dentro dos pacotes de dados vendidos pelas operadoras de celular. Nesse contexto, para Berniga, há hoje uma lacuna da legislação eleitoral paraguaia em relação às redes sociais e uma grande necessidade de discussão sobre gastos de políticos nas plataformas, mecanismos de controle e de transparência. Ainda que Cubas, segundo indicam as pesquisas, possa estar capitalizando parte da insatisfação do eleitorado, seu desempenho ainda é muito modesto quando comparado aos líderes Santiago Peña e Efraín Alegre, que têm 36,4% e 38,1% das intenções de voto, respectivamente, conforme o levantamento do Atlas Intel, empatados dentro da margem de erro que é de dois pontos percentuais. Uma das razões colocadas pelos especialistas é o fenômeno da identificação partidária, que é muito forte no Paraguai. E a maneira como o Partido Colorado se estruturou e cresceu com o passar das décadas, aglutinando grupos de diferentes matizes ideológicas, contribui para a manutenção, em alguma medida, dessa identificação, afirma Andrei Roman. Um exemplo ilustrativo, ele diz, aconteceu durante as eleições primárias da sigla, quando os políticos que postularam a vaga de candidato à presidência pelo partido tentaram se posicionar como alternativas de mudança ao atual presidente, Mario Abdo Benítez. Santiago Peña é aliado de Horacio Cartes, que, apesar de ser correligionário de Benítez, se tornou uma espécie de desafeto político do atual presidente. "Existe um discurso de renovação política por dentro do Partido Colorado." "Mesmo que isso tenha certos limites no quanto você consegue articular um discurso de mudança sendo do mesmo partido que o atual mandatário", ressalva. Outro fator relevante que limita o potencial de crescimento do candidato, e que pode reduzir significativamente seus votos nas urnas no dia 30, é o fato de que não há segundo turno na disputa para presidente no Paraguai - quem tem o maior número de votos vence o pleito, independentemente do percentual. Nesse contexto, o voto útil pode mudar muito o retrato trazido pelas pesquisas no decorrer da disputa. Caso os eleitores descontentes com o Partido Colorado, que governa o país, acreditem que o opositor Efraín Alegre tem chances reais de derrotá-lo, por exemplo, podem migrar seus votos para o candidato, ainda que não tivessem preferência por ele inicialmente. Na visão de Lachi, é muito difícil quebrar a hegemonia dos dois principais partidos do país - o que torna as chances de qualquer candidato fora desse eixo ganhar as eleições algo muito pouco provável. Talia concorda. Ele afirma que os partidos tradicionais paraguaios não estão em crise como outras siglas na região e ainda têm um enraizamento forte no eleitorado. "Por isso, uma candidatura fora das organizações partidárias, como a de Payo, não tem chance de competir com sucesso diante das de Santiago Peña e Efraín Alegre."
2023-04-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxep3nrj0m4o
sociedade
Empresários que se arrependem de ter deixado de ser empregados
Sam Schreim é seu próprio chefe há quase 20 anos. Ao longo de sua carreira, ele abriu uma empresa de consultoria, lançou várias start-ups e aconselhou clientes de alta renda como consultor independente. Mas se o empresário de 54 anos pudesse voltar no tempo, talvez nunca tivesse dado o passo para se tornar um empreendedor autônomo. "Se eu tivesse uma bola de cristal, nunca teria dado esse salto", diz Schreim, que mora em Boston. "Eu me arrependo o tempo todo. Eu olho para trás e agora eu teria um rendimento de sete dígitos como consultor de gestão, se estivesse trabalhando com as grandes empresas." Abandonar o trabalho para se tornar seu próprio patrão se tornou uma opção muito popular. Em 2022, por exemplo, as inscrições para abrir uma empresa nos Estados Unidos atingiram os níveis mais altos desde 2004, com mais de 5 milhões de novos negócios registrados. Mas, como demonstra o colapso do Silicon Valley Bank em março, que deixou muitas pequenas empresas sem acesso às suas contas, ser um empresário envolve grandes riscos e responsabilidades e faz com que alguns se arrependam de ter deixado seus empregos como funcionários de empresas. Schreim aprendeu isso da maneira mais difícil na Grande Recessão de 2008. Na época, ele foi forçado a pagar salários usando suas economias para uma equipe de 15 pessoas. Acumulou noites sem dormir e dívidas enormes. As últimas start-ups que ele lançou faliram e, mesmo agora, como um empresário que combina consultoria independente com redação de livros e desenvolvimento de produtos orientado a dados, ele frequentemente olha para trás com pesar por não ter continuado seu trabalho em uma grande consultoria de gestão em Beirute, no Líbano. "Meus amigos me invejam", diz ele. "Mas eles não sabem o que eu passei. Todo empreendedor corre riscos, e o mundo precisa deles. Mas não é um estilo de vida fácil." Não é incomum que a realidade de administrar seu próprio negócio conflite com as expectativas, diz Ayesha Murray, consultora de empregos do Reino Unido. "Como empresários, queremos ter sucesso. Mas muitas vezes temos expectativas irreais no início em termos de números de vendas, receita ou tempo gasto", diz ele. "Se você teve uma carreira de sucesso antes de iniciar um negócio por conta própria, pode pensar que qualquer coisa que tente depois também funcionará." Somado a essa crença, está o risco de comparar a dura realidade de sua própria experiência como empreendedor com aquelas aparentemente prósperas que vemos nas redes sociais. Esse foi o caso de Catherine Warrilow, que criou sua própria agência de relações públicas em 2006, depois de se desiludir com a hierarquia de um local de trabalho tradicional. Visto de fora, parecia um movimento na direção certa. A agência se tornou um negócio de sucesso, com sete funcionários, e grandes clientes. "Mas eu nunca desliguei", diz Warrilow, 43. "Eu me sentia sobrecarregada e ansiosa o tempo todo . Nunca senti que as coisas estavam boas o suficiente." O estresse a tornava "uma maníaca por controle total", sempre microgerenciando sua equipe. Não era o que ela havia imaginado. "Meu maior equívoco foi acreditar que ser minha própria patroa me daria liberdade, que eu poderia ir e vir quando quisesse e definir meu próprio horário", diz ela. A realidade era que a vida tinha que se adaptar ao trabalho, e os clientes esperavam que ela estivesse sempre disponível. Por isso, em 2015, após receber uma oferta de emprego de um de seus potenciais clientes, esta mãe de dois filhos decidiu deixar a empresa. "O dia em que decidi não trabalhar mais por conta própria foi provavelmente um dos melhores dias da minha vida profissional", diz ela. "Senti como se um peso enorme tivesse sido tirado dos meus ombros." Agora, diretora-gerente da empresa de viagens daysout.com, ela diz que desfruta de muitas das liberdades que esperava do empreendedorismo. Você pode administrar melhor seu tempo e terminar mais cedo alguns dias para encontrar um amigo para um café. Quanto a Schreim, ele continuará sendo seu próprio chefe por enquanto. Embora tenha tentado trabalhar em tempo integral para uma grande empresa em 2017, ele simplesmente não conseguiu fazer a transição. "De repente, percebi que detestava ter um chefe acima de mim, ter que me apresentar ao trabalho e lidar com tarefas administrativas", diz ele. No entanto, ele afirma que esses elementos poderiam nunca tê-lo incomodado se ele simplesmente nunca tivesse sido seu próprio chefe antes. Claro, existem muitas histórias de sucesso e muitas pessoas nunca olhariam para trás. Ainda assim, Schreim tem receio de encorajar qualquer pessoa a seguir seus passos: "Qualquer pessoa que queira dar esse salto para o empreendedorismo precisa estar ciente dos altos e baixos".
2023-04-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2ln2q91zq0o
sociedade
Por dentro da empresa de coaching que virou culto que controla a vida de seguidores
A Lighthouse é uma empresa do Reino Unido que oferece coaching para ajudar as pessoas a realizarem seus sonhos. No entanto, uma investigação de 18 meses da BBC descobriu que a organização assume o controle da vida das pessoas, as separa de seus entes queridos e persegue os críticos. Jeff Leigh-Jones fazia parte da Lighthouse havia apenas alguns meses quando sua namorada Dawn percebeu que algo estranho estava acontecendo. Jeff não parecia o mesmo. Ele havia se juntado ao grupo pioneiro de mentores e treinadores que o ajudavam a encontrar uma nova direção em sua vida. Ele planejava fazer uma jornada solo até o Pólo Sul e achou que um treinador poderia ajudá-lo a se tornar mais disciplinado. Mas logo Jeff começou a passar o dia todo em telefonemas secretos e evitando amigos e familiares. Ele até vendeu a própria casa para investir mais dinheiro no grupo. Um dia, Dawn ouviu uma das muitas ligações diárias supostamente encorajadoras de Jeff. Não era sobre o Pólo Sul, era sobre ela. Jeff foi informado de que ele tinha que escolher entre a Lighthouse e a sua família. Em novembro de 2021, Dawn contatou a BBC. "Recebemos relatórios de investidores particulares sobre a Lighthouse", disse. "Mas é o mais longe que a gente consegue chegar." Estava nervosa. A Lighthouse não é uma organização de coaching comum, explicou Dawn. "É um culto." Life coaching é uma indústria em expansão no Reino Unido. Estima-se que existam entre 80 mil a 100 mil pessoas trabalhando no setor. Ao contrário de muitos terapeutas ou conselheiros, que são treinados para ajudar as pessoas a lidar com passados ​​difíceis ou traumáticos, os mentores da Lighthouse dizem que se concentram mais no futuro dos clientes. Pelo menos em teoria, eles tentam ajudar as pessoas a descobrir o que realmente querem e como chegar lá. Nos últimos anos, a Lighthouse, formalmente conhecida como Lighthouse International Group e com sede em Midlands, no Reino Unido, recebeu centenas de milhares de dólares de aprendizes. A empresa se diz orgulhosa por ajudar milhares de pessoas. Criada em 2012 pelo empresário Paul Waugh, a organização afirma ser diferente da maioria dos grupos de coaching. Seu fundador, que cresceu na África do Sul e afirma ter se tornado bilionário aos 35 anos, diz ter desenvolvido uma abordagem revolucionária para promover o bem-estar espiritual das pessoas. Jeff encontrou o grupo por meio de um clube do livro online administrado por um devoto da Lighthouse chamado Jai Singh. Ele pensou que poderia ajudá-lo também. Jeff diz que estava procurando alguém de sucesso em busca de inspiração, e Jai, um ex-incorporador imobiliário bem-educado e encantador de quase 30 anos, parecia o cara perfeito. "Eu pensei que era inteligente", lembra Jeff. "Ele estava interessado nas mesmas ideias que eu." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Logo, Jeff e Jai começaram a conversar todos os dias, às vezes por horas. Gradualmente, a conversa focou na vida pessoal de Jeff. Problemas de relacionamento. Seu passado. Suas inseguranças. A honestidade pareceu ajudar Jeff a se concentrar. "Foi brilhante no começo", diz Jeff sobre essas primeiras sessões. Ele logo pagou mais de US$ 12 mil por um curso de tutoria de um ano para ajudar a melhorar sua disciplina. "Estava motivado. Estava inspirado." Depois de vários meses, Jai ofereceu a Jeff a chance de se envolver mais com a Lighthouse. Jeff ficou encantado, embora seu novo status lhe custasse mais de US$ 31 mil. Era muito dinheiro, mas Jai avisou que o preço subiria ainda mais se ele atrasasse sua decisão. Além disso, ele disse a Jeff que recuperaria seu dinheiro com todas as novas oportunidades de negócios que seguramente surgiriam. "Ele disse que seria a melhor oportunidade para que eu tivesse sucesso”, diz Jeff. Jeff se tornou algo chamado "Associado Eleito da Lighthouse". Isso significava que ele poderia explorar a rede de empresários brilhantes da organização, participando de suas reuniões diárias e até recebendo treinamento para ser um mentor. Ele também receberia orientação do chefe do Lighthouse, Paul Waugh. Jai disse que Paul contava com Bill Gates e Warren Buffett entre seus contatos. Jeff entregou o dinheiro e a Lighthouse começou a tomar o controle da sua vida. Todas as manhãs, às 5h, Jeff se preparava para uma ligação diária para discutir os negócios da Lighthouse. Inicialmente, consistia apenas em ficar a par das novidades. No entanto, em seis meses, as ligações se estenderam para cinco ou seis horas com até 30 pessoas online. Jeff se trancava em uma sala profundamente concentrado, com os olhos fixos em seu laptop, seguindo um ritual peculiar de transcrever os pensamentos e ideias de Paul Waugh. O horário, muitas vezes das 05h00 às 22h00, era implacável, com pouco tempo livre. Mas essas ligações não eram para o que Jeff havia se inscrito. As transcrições das ligações vistas pela BBC revelam pouco do esperado sobre autoajuda, networking e sucesso nos negócios. Elas indicam algo muito diferente. Talvez a ideia mais importante do Lighthouse seja algo chamado "os níveis". Tomando emprestadas as idéias de um famoso psiquiatra americano chamado M. Scott Peck, Paul Waugh afirma que todos estão em um dos quatro níveis de desenvolvimento espiritual. O nível um é um estado "caótico e infantil", enquanto o nível quatro é uma pessoa consciente e presente, livre de restrições e medos. A chave para o sucesso, explicava Paul em suas ligações, era atingir o nível quatro. Jeff foi informado de que precisava de semanas de trabalho para chegar lá e atingir seus objetivos. Mas as semanas se transformaram em meses e os meses se transformaram em um ano. Quando Jeff ficou frustrado em uma ligação, Jai disse a ele para se esforçar mais e parar de ser emocionalmente "preguiçoso". Na verdade, apenas uma pessoa da Lighthouse estava no nível quatro: o próprio Paul Waugh. Todos os demais estavam presos no nível um. E a principal razão para isso, dizia o fundador da Lighthouse, eram as influências negativas que os rodeavam. (Desde então, Paul disse que um punhado de membros de alto escalão da Lighthouse finalmente alcançou o nível quatro depois de mais de uma década com o grupo.) A Lighthouse também promove a ideia de que o maior obstáculo para subir de nível geralmente é a família e os amigos de uma pessoa. "Todas as famílias têm dificuldades e a Lighthouse as encontra", diz Jeff. "Eles as encontram em seu diário ou em sua mentoria pessoal." As famílias são narcisistas e controladoras, diziam os mentores de Lighthouse. Elas não querem deixar seus entes queridos irem e sabotar o potencial dos trainees, disseram a Jeff. Eram perigosas. Erin, que se tornou Associada Eleita da Lighthouse ao mesmo tempo que Jeff, conta uma história semelhante. Ela ingressou após o divórcio, na esperança de iniciar uma nova carreira, e a princípio parecia um caminho decente a seguir. "Um investimento em si", o grupo descreveu. Mas falar sobre oportunidades de negócios tornou-se uma revisão de seu passado difícil. Erin, cujo nome mudamos, disse a seu mentor que quando ela tinha cerca de 13 anos, havia sido abusada sexualmente por alguém que conhecia em sua família. A Lighthouse queria que ela levasse seus pais ao tribunal e "os fizesse pagar por não cuidar melhor dela". Erin agora acredita que foi para conseguir mais dinheiro, para que investisse na Lighthouse. “Por que você não desconta deles?” Paul Waugh disse a Erin em uma ligação. "Por que você não está tentando fazer justiça?" Conversamos com 20 pessoas que abandonaram a Lighthouse e elas relatam um padrão semelhante. As pessoas se juntam a um grupo de orientação, geralmente procurando uma mudança de carreira ou uma nova direção. As coisas começam bem e os aprendizes ficam felizes em investir mais dinheiro. Mas em pouco tempo, se transforma em uma revisão interminável de origens problemáticas e famílias incômodas, com os trainees encorajados a pensar em seus parentes como influências "tóxicas" a serem evitadas. O coaching não é uma indústria regulamentada com códigos profissionais rígidos como a psicoterapia. Qualquer um pode afirmar que é um coach. Milhares fazem assim. Paul Waugh disse: "É a experiência que nos qualifica. A tutoria não é uma qualificação, é algo que se experimenta." Mas cair em mãos erradas pode ser perigoso. Antes de ingressar na Lighthouse, Anthony Church, de 30 anos, lutou contra a ansiedade e a depressão, sofreu uma crise nervosa e tentou o suicídio. As primeiras sessões de tutoria com Jai Singh pareceram ajudar, e ele acabou entregando US$ 6 mil, metade de suas economias de toda a vida, para receber mais treinamento. Depois de um tempo, Jai encorajou Anthony a reduzir sua medicação, até mesmo aconselhando-o sobre o que dizer a seus médicos para convencê-los de que sua saúde mental havia melhorado. Nas gravações das ligações fornecidas à BBC, Jai diz a Anthony que a medicação “não é uma solução de longo prazo porque não estimula a pessoa a tomar decisões conscientes para controlar e reprogramar a mente subconsciente”. Quando um médico concordou em diminuir sua dose, Anthony começou a reclamar de sintomas de abstinência. Jai disse que era "parte do processo". Caroline Jesper, chefe de padrões profissionais da Associação Britânica de Aconselhamento e Psicoterapia, ouviu horas de telefonemas entre Anthony e Jai e disse que se algum de seus membros se comportasse dessa maneira, a associação investigaria segundo o seu procedimento de conduta profissional. Aqueles que passaram a fazer parte da Lighthouse receberam argumentos ligeiramente diferentes sobre a finalidade do dinheiro que haviam pago. No entanto, todos foram informados de que seu "investimento" lhes trouxe a orientação inicial de que a Lighthouse transformaria suas vidas. Frequentemente, eles eram informados de que receberiam seu dinheiro de volta rapidamente por meio de oportunidades de networking, novas ideias de negócios ou de se tornarem eles próprios mentores. Eles também foram informados de que estavam ajudando a financiar o trabalho de caridade da Lighthouse na África. Os ex-aprendizes dizem que foram incentivados a pedir dinheiro emprestado para pagar os cursos. Erin diz que conseguiu um cartão de crédito por sugestão de Jai. Para se dedicar em tempo integral à Lighthouse, Jeff parou de trabalhar e vendeu sua casa, acabando por investir US$ 163.000 no grupo. Mas de acordo com as pessoas com quem falamos, não houve retorno financeiro. Depois de dois anos, as dúvidas começaram a surgir em Jeff. No entanto, ele sabia que a Lighthouse poderia ser implacável com os dissidentes. Quando Anthony começou a questionar se a Lighthouse o ajudava, Jai disse que ele estava paranóico devido aos sintomas de abstinência do medicamento. Quando ele decidiu sair e enviou informações sobre as seitas para outros aprendizes da Lighthouse, Jai ameaçou chamar a polícia. E quando outra ex-aprendiz, uma professora de 50 anos chamada Jo, falou sobre a sua experiência em um fórum online, um membro da Lighthouse contatou sua escola, dizendo que a mulher era um perigo para as crianças. Já Erin foi repreendida como uma "velha bruxa cínica" quando perguntou para onde tinha ido seu dinheiro. Paul lembrou a ela que eles tinham gravações de suas revelações sobre o abuso que ela havia sofrido quando criança. "Comecei a me sentir cada vez pior", lembra Erin. "Eu cheguei a vomitar." E quando ela finalmente saiu, Paul cumpriu suas ameaças em um vídeo do YouTube, onde falou sobre Erin. Mais tarde, ele removeu seu nome após ser avisado de que identificar uma vítima de um crime sexual sem o consentimento dela é um crime. O ponto de virada para Jeff foi quando ele tirou uma folga para visitar seu pai nos Estados Unidos. Longe da Lighthouse, ele começou a ver as coisas de maneira diferente. Ele se lembrou de jogar golfe com Paul Waugh e de ver um mentor correndo atrás dele carregando seu equipamento. A certa altura, o mentor principal se ajoelhou para amarrar o cadarço de Paul. "Pensei: 'É para isso que estou indo?'", diz Jeff. "Percebi o nível de controle que tinha sobre essas pessoas." Quando Jeff anunciou que sairia, Paul Waugh o bombardeou com mensagens, algumas amigáveis, outras hostis, tentando convencê-lo a ficar. Lighthouse disse a ele para esperar dois anos pelo retorno de seu dinheiro e alertou que criar polêmica poderia comprometer seu investimento. Jeff pediu um reembolso e o grupo respondeu dizendo que iria "intensificar" as investigações sobre Jeff e sua namorada Dawn. No final, a Lighthouse contatou os empregadores de Dawn e alegou que ela era uma perigosa perseguidora da Internet. Atacar os críticos parece fazer parte do modus operandi do grupo. Quando levamos nossas alegações para Paul Waugh e Lighthouse, o grupo argumentou que as regras de proteção de dados os impediam de responder adequadamente. Acusaram a BBC de fazer parte de uma campanha de difamação e atacou usuários online que suspeitavam que havíamos entrevistado, incluindo Jeff e Dawn. O Twitter encerrou sete contas relacionadas à Lighthouse por promover ódio logo após entrarmos em contato com Paul Waugh, incluindo uma conta chamada "Pais contra Trolls". Mais de 40 pessoas que deixaram a Lighthouse, ou têm entes queridos no grupo ou estiveram perto de seu líder, falaram com a BBC para esta investigação. Muitos outros estavam com muito medo de dizer algo. No entanto, ainda existem dezenas de pessoas que ainda fazem parte da Lighthouse. E para muitas delas, a vida elevada prometida por Paul Waugh permanece fora de alcance. "Consegui escapar, mas não acho que muitas pessoas lá tenham um destino para onde ir", diz Jeff. "Eles se comprometeram demais." Uma mulher que alugou uma casa de seis quartos de Paul Waugh disse que oito membros da equipe do Lighthouse acabaram morando lá. A casa ficou "absolutamente suja" e cada cômodo foi transformado em uma espécie de escritório. Por um tempo, depois que todos se mudaram, três ou quatro cartas sobre contas não pagas chegavam todos os dias. Outro ex-proprietário disse ter recebido cerca de 150 cartas de agências de cobrança de dívidas endereçadas a pessoas envolvidas na Lighthouse. A BBC pesquisou registros públicos e encontrou 17 decisões judiciais contra nove membros do Lighthouse. Jai Singh, o mentor de Jeff, tinha uma dívida de cerca de US$ 25 mil. Paul Waugh não teve julgamentos contra ele na corte do Reino Unido. Quase todo mundo que fez parte da Lighthouse nos disse que acha que é uma seita. Todos os parentes de pessoas envolvidas com a Lighthouse com quem conversamos sentem o mesmo. E a Lighthouse também é uma preocupação crescente para as pessoas que monitoram as seitas. Conversamos com 10 especialistas em cultos diferentes do Reino Unido, Estados Unidos e Canadá. Entre eles estão cinco doutores, dois vencedores do Margaret Singer Award por estudos de cultos e três terapeutas licenciados com vasta experiência em trabalhar com ex-membros de seitas. Sete desses especialistas nos disseram que acreditam que Lighthouse é uma seita. Dois preferiram uma terminologia diferente, embora ambos tenham dito que estavam preocupados com a Lighthouse. O último especialista disse que prefere não comentar. Uma instituição de caridade que ajuda as pessoas a se libertarem de grupos abusivos, a Catalyst, diz que agora recebe mais ligações sobre a Lighthouse do que qualquer outra organização do Reino Unido, com "mais de 30" pessoas pedindo ajuda. Se sentar para telefonemas de tutoria durante todo o dia parece estar muito longe da imagem popular de um culto, onde as representações tendem a ser sobre misticismo ou novas religiões. Mas especialistas dizem que as seitas são oportunistas e se apegam às novas tendências, mesmo que sejam de autoajuda para empreendedores. Elas são definidas pela forma como podem controlar o dinheiro, o tempo e até os pensamentos dos membros. "Existe um estereótipo tão forte de que os únicos cultos estão na Califórnia, onde as pessoas usam longas túnicas laranja. Há uma seita em sua vizinhança", diz Alexandra Stein, psicóloga social e especialista em cultos. Ela diz que para as pessoas com entes queridos dentro de um culto, "é como uma morte em vida", em parte porque as tentativas de criticar o grupo muitas vezes são contraproducentes, o que faz com que eles fiquem sem saber como agir. Os cultos querem que as famílias fiquem com raiva e reclamem, então as famílias devem evitar críticas, manter contato e estar disponíveis, aconselha Stein, embora reconheça que pode ser extremamente desafiador. Karina Deichler, cujo irmão Kris faz parte da Lighthouse há mais de uma década, diz que quando eram mais jovens, o relacionamento deles era mais como melhores amigos do que como irmãos. Mas no ano passado, quando Karina revelou suas preocupações sobre a Lighthouse, Kris a denunciou à polícia por ser um troll da internet. A polícia não tomou nenhuma medida. "É uma loucura", diz Karina. "Eu me sinto insensível agora. Eu adoraria tê-lo de volta." Em fevereiro deste ano, o governo do Reino Unido solicitou o fechamento da Lighthouse International Group Holdings Trading LLP, a empresa por trás da Lighthouse. Após investigá-la desde junho de 2022, o secretário de Comércio argumentou que a empresa estava agindo contra o interesse público. De acordo com documentos judiciais apresentados por investigadores do governo, a Lighthouse não mantinha registros adequados e não estava cooperando com a investigação, o que significava que era impossível determinar a "verdadeira natureza" do negócio. Paul Waugh não compareceu a pelo menos cinco entrevistas agendadas e até disse aos investigadores que não iria ajudá-los. Foi descoberto que entre março de 2018 e julho de 2022, Paul Waugh recebeu mais de US$ 1,4 milhão, cerca de metade da receita da empresa. A empresa também não pagou impostos ou despesas comerciais comuns, como aluguel ou serviços públicos. Paul Waugh argumenta que recebe mais da metade do dinheiro porque ele mesmo paga algumas das despesas da Lighthouse e é o maior investidor dela. Em 29 de março deste ano, houve uma audiência no Royal Courts of Justice em Londres com a presença de cerca de 20 associados e aprendizes da Lighthouse, incluindo Paul Waugh. Investigadores do governo disseram ao tribunal que não estava "totalmente claro" o que a Lighthouse faz. Apesar das alegações de uma investigação inicial, eles "só conseguiram identificar quantias significativas de dinheiro que passaram para Paul Waugh como seu principal motor". A juíza Cheryl Jones decidiu que era do interesse público fechar a Lighthouse International Group Holdings Trading LLP. Ao deixar o tribunal, Paul Waugh disse que queria fechar a Lighthouse por um tempo, mas o grupo não pararia de trabalhar. Agora, segundo ele, estava se tornando global. Quando perguntado por que tantas pessoas pensam que seu grupo é uma seita, ele disse: "Eles não sabem o que é uma seita ... estão nos difamando, estão nos difamando." Ele acrescentou que a maioria das acusações são "absolutamente absurdas". A Lighthouse argumenta que ajudou muitas pessoas a superar obstáculos por meio de orientação de seus mentores, treinamento, aconselhamento e apoio. Também diz que as pessoas que deram dinheiro estavam investindo em si mesmas e não têm direito a reembolso. Embora a Lighthouse International Group Holdings esteja suspensa atualmente, nada impede que as pessoas por trás da empresa continuem seu trabalho. O grupo está evoluindo. Desde que esteve sob escrutínio, começou a mudar de marca com uma nova ênfase no cristianismo em vez de autoajuda. Seu site diz agora é comercializado como "Lighthouse Global" e promete compartilhar "nossa jornada de 18 anos de autodesenvolvimento em direção a Cristo e à perseguição que sofremos ao longo do caminho". Jeff não espera que aqueles que continuam envolvidos com a Lighthouse pensem de forma diferente após o processo judicial. "Eles estão pensando: 'Tenho que proteger Lighthouse, tenho que proteger Paul Waugh'. A lógica desapareceu." Um dia depois que um juiz fechou a sua empresa, Paul Waugh recorreu ao seu perfil no Twitter. "Pedi ao juiz que fechasse nossa antiga empresa", escreveu ele triunfante. "Foi um golpe de mestre", respondeu um de seus seguidores. Equipe de reportagem: Osman Iqbal, Ed Main, Jo Adnitt, Aisha Doherty e Thanduxolo Jika.
2023-04-08
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czk8enk3d39o
sociedade
Por que os tênis Air Jordan são tão valiosos
Quando um par de tênis usados é colocado à venda por um valor na faixa de US$ 2 milhões a 4 milhões (cerca de R$ 10 milhões a 20 milhões), é porque deve ser algo muito especial. Neste mês de abril, um leilão da casa Sotheby’s oferece um par de tênis Air Jordan 13 da Nike, que foi usado por Michael Jordan no segundo jogo das finais da NBA de 1998, a temporada americana de basquete popularmente conhecida como "a última dança". São os tênis mais valiosos que já existiram. "Na época [do jogo], os Chicago Bulls sabiam que a equipe seria desmontada, eles sabiam que aquela era a sua última chance de ganhar um título da NBA juntos", afirma Brahm Wachter, chefe de artigos esportivos e colecionáveis modernos da Sotheby’s. "O par que temos realmente é o único reconhecido pela MeiGray [o autenticador oficial da NBA] de todas as finais da NBA que já surgiram para leilão", segundo ele. O recorde atual atingido por um par de tênis em leilão, segundo a Sotheby’s, é de US$ 1,472 milhões (cerca de R$ 7,43 milhões), em 2021. O par também foi calçado por Jordan. Fim do Matérias recomendadas O fato de que os Air Jordan 13 sendo leiloados este mês devem superar de longe esse recorde é um testemunho não só da sua raridade, mas também do legado incrivelmente duradouro do design de tênis que, com certeza, é o mais simbólico já criado até hoje. "É algo que atrai os colecionadores de tênis e de artigos usados por atletas", afirma Wachter, indicando que os tênis apresentam sinais de que foram calçados por Jordan na quadra. "Eles certamente parecem usados, mas estão em condições muito boas, considerando sua idade." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas, então, o que torna os tênis Air Jordan tão especiais? Os próprios bastidores do modelo não têm precedentes na história e são o tema de um novo filme – Air: A História por Trás do Logo – dirigido e estrelado por Ben Affleck, ao lado de Matt Damon e Viola Davis. Na época em que a Nike entrou em contato com Jordan, em 1984, ele ainda era iniciante e jogava pela Universidade da Califórnia. Mesmo assim, a empresa enfrentou dificuldades para convencê-lo a assinar o contrato com ela. Jordan estava disposto a assinar com a Adidas, já que a Nike, na época, era uma marca menor. Foi chamado o designer de calçados e lenda da Nike, Peter C. Moore. Conta-se que ele fez o rascunho do design no verso de um guardanapo e ali nasceu o tênis Air Jordan. Foi o primeiro dos 35 designs diferentes do Air Jordan lançados nos anos que se seguiram. As conquistas de Michael Jordan no esporte são claramente um fator importante para a sólida reputação do calçado. "A marca cultural de Jordan continua a aumentar, mesmo depois que ele parou de jogar", afirma Drew Haines, diretor de merchandising de tênis e colecionáveis da StockX, uma loja online e site de revenda de tênis e artigos esportivos. "Tanto tempo depois e, realmente, ninguém chegou ao nível que ele conseguiu atingir na carreira." O mito que se desenvolveu em torno do próprio ser humano e da forma como ele conseguiu sair das quadras e entrar na cultura popular também é algo único. "Para muitas pessoas, não foi Christopher Reeve quem fez você pensar que o homem pudesse voar, mas Michael Jordan – e ele não tinha cordas para ajudá-lo", afirma Jian DeLeon, ex-diretor editorial da revista Highsnobiety, especializada em tênis e artigos esportivos. "Ele realmente fez isso, na vida real, muitas e muitas vezes, e estes foram os calçados que ele usava para isso." E os tênis Air Jordan "claramente podem ser usados, mais do que a capa do Super-Homem ou suas roupas de baixo fora das calças", segundo DeLeon. Para ele, os tênis eram "uma representação de uma manifestação de grandeza humana que podia ser calçada nos pés". DeLeon não sabe ao certo quantos pares de Air Jordan ele tem – em março, ele comprou mais cinco ou seis e, ao todo, estão na casa dos 100 pares. Ele afirma que grande parte do marketing em torno dos calçados parecia mais um anúncio de carros. Em 1989, foram publicados anúncios "bem no estilo de Spike Lee", segundo DeLeon. Lee aparece nos anúncios como seu personagem Mars Blackmon, do filme Ela Quer Tudo (1986). No anúncio, ele pergunta a Jordan o que faz com que ele seja o melhor jogador do Universo. E ele diz repetidamente "tem que ser os tênis!" Fazer os anúncios com Lee foi uma decisão genial. DeLeon afirma que entrar no zeitgeist cultural daquela forma foi algo sem precedentes para qualquer marca. "Acho que aquele foi o momento em que pensei 'OK, eles são símbolos de status'." O calçado foi inicialmente proibido pela NBA devido ao seu padrão vermelho e preto. Na época, a organização determinava que os calçados dos jogadores deveriam ser predominantemente brancos. A decisão inevitavelmente serviu para criar uma mística de revolta em torno dos tênis. E a possibilidade do calçado colorido também pode ter ajudado a criar sua longa popularidade. "Seja pelo bico ou pelo contraste do logotipo, a forma do design para fazer as cores se sobressaírem era extremamente notável e relativamente nova para os tênis", afirma DeLeon. "Acho que era parte do calçado." Apesar de não possuir nenhum modelo Air Jordan – "sou mais do Nike Airforce" – Haines também aprova o design. "O modelo é 'clean', a forma em que os painéis são construídos e como eles podem aplicar centenas ou milhares de cores diferentes, diferentes materiais, e permanecer novo, acho que é um tênis versátil, para os homens, as mulheres, as crianças", segundo ele. É claro que houve linhas de calçados assinadas por outros atletas antes de Michael Jordan. DeLeon relembra a linha da Adidas assinada pelo lendário jogador de tênis norte-americano Stan Smith e os tênis de basquete Converse Chuck Taylor que, segundo DeLeon, eram a "arma escolhida pelos atletas da NBA" na época em que foram lançados os primeiros Air Jordans. "Mas o que fez com que a linha Jordan fosse particularmente interessante foi que o atleta sempre conseguia ficar à frente e ter mais importância do que o próprio calçado", ressalta ele. Muitas vezes, depois que um jogador deixa de competir, sua memória é ofuscada pela do tênis. O tenista Stan Smith colaborou com a Adidas e a então influente boutique parisiense Colette durante a reintrodução do calçado com seu nome, que se tornaria o tênis padrão para os tipos da moda nos anos 2010. Certa vez, Smith aparentemente abriu a porta da Colette e um grupo de crianças passou correndo por ele. Elas não o reconheceram. E existe um livro sobre Stan Smith – o homem e o tênis – que se chama, literalmente, Some People Think I’m a Shoe ("Algumas pessoas pensam que sou um calçado", em tradução livre). "Não acho que isso tenha acontecido com Jordan", afirma DeLeon. E tanto é verdade que, três anos atrás, a série O Arremesso Final, da Netflix, fez com que iniciantes no basquete, que mal sabiam o que era uma enterrada, ficassem totalmente envolvidos pelos 10 episódios do documentário que mostrou o progresso dos Chicago Bulls, liderados por Michael Jordan. A StockX teve um pico inacreditável de interesse na época da série, em 2020. Os tênis Air Jordan também causam controvérsias. O documentário One Man and His Shoes ("Um homem e seus calçados", em tradução livre), de 2020, aprofundou-se na forma agressiva de marketing usada pela Nike junto às crianças que tinham menos condições de comprá-los – como escreveu um crítico, "controlando o fornecimento dos Air Jordans com o mesmo cuidado que [a joalheria] De Beers controlava o fornecimento de diamantes, atribuindo artificialmente valores extremamente altos e fomentando o desejo pelos calçados". Não surpreende que o Air Jordan tenha sido o tênis que seguramente impulsionou, pela primeira vez, a cultura dos tênis que conhecemos hoje. "É muito claro para mim que pelo menos o primeiro tênis Jordan é provavelmente o modelo que começou tudo", afirma Drew Haines. "É o tênis que deu início a essa febre da cultura do tênis presente provavelmente na maior parte dos últimos 20 anos." Para Jian DeLeon, eles também "revolucionaram a moda de rua. Foi um calçado que tinha um apelo cult, você os via na rua e, se fosse parte da tribo, identificava facilmente o que eles eram e podia conectar-se com as pessoas em torno deles." "Foi o começo da cultura de rua, conhecer os códigos, poder conectar-se em torno deles", afirma DeLeon. Os calçados representavam alguma coisa. "Nos anos 1980 ou 90, se você visse os tênis Jordan nos pés de alguém, havia grande chance de que você pudesse conversar começando com os calçados e caminhando para outros interesses similares, seja hip hop, esportes ou as bandas de rap de rua florescentes como [as da gravadora de hip hop] QC", relembra ele. "[Os tênis Jordan] eram como parte de um uniforme secreto dessa tribo crescente." Os tênis Air Jordan podem ter sido um artigo de vanguarda, mas, agora, parte do seu apelo é pura nostalgia. Para DeLeon, "tenho uma antiga camiseta [da banda] Blur ou uma camiseta de Anime de que nunca vou me desfazer, [é] a mesma coisa com os tênis Jordan".
2023-04-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1r5n1nxl6o
sociedade
A ilha que mais de 10 mil pessoas morreram tentando alcançar
Christian Ally Moussa, de 42 anos, estava se preparando para a audiência do seu processo para obter cidadania francesa. Depois de anos economizando para pagar as taxas do processo, ele seria finalmente capaz de reivindicar o passaporte europeu que era seu direito de nascença. O pai dele era um cidadão francês da ilha de Mayotte, no Oceano Índico, um território francês. Mas como Christian nasceu e foi criado na ilha de Madagascar, a cerca de 350 km de distância, ele teve dificuldade de ser reconhecido como cidadão francês. Christian estava vivendo e trabalhando informalmente há anos no território francês. Faltando apenas algumas semanas para sua audiência no processo de cidadania, ele foi inesperadamente preso pela polícia de fronteira francesa e deportado de volta para Madagascar. Fim do Matérias recomendadas Christian fez então uma tentativa desesperada de voltar a tempo para sua audiência - de barco. A ilha de Mayotte tem uma população de 300 mil pessoas, além de ser mundialmente famosa por seus recifes de coral e laguna. É a parte mais pobre da França, mas "rica" em comparação com as ilhas vizinhas de Madagascar e Comores, situadas na costa sudeste da África. Assim como tantos outros trabalhadores não registrados, Christian sustentava sua esposa e filhos em Madagascar. Um parente retoma sua história. Não vamos identificá-lo para sua segurança. "Eles [a polícia de fronteira] invadiram e queriam levar Christian embora", diz o familiar. "Ele me pediu para ir buscar os sapatos dele, mas quando voltei, já haviam levado ele embora." O parente conseguiu localizar Christian no único centro de detenção da capital. "Falamos por telefone. Ele estava chorando muito e disse que não queria voltar para Madagascar", recorda. O parente fez contato com um advogado que entrou com um recurso de emergência para impedir sua deportação. Christian deveria comparecer perante um juiz às 11h do dia seguinte, mas a essa altura ele já estava em um voo de volta para Madagascar, menos de 48 horas depois de ser detido. Embora a esposa e os filhos de Christian estivessem em Madagascar, ele sabia que não conseguiria ganhar dinheiro suficiente para sustentá-los. Os dados mais recentes do Banco Mundial mostram que quatro em cada cinco pessoas em Madagascar vivem com menos de US$ 2,15 por dia (pouco menos de 2 euros). Enquanto isso, 42% dos moradores de Mayotte vivem com menos de 160 euros por mês, segundo dados oficiais franceses. Christian sabia que um passaporte francês permitiria a ele se tornar um residente legal e usufruir de mais oportunidades, então ele decidiu voltar para a audiência, sem contar a ninguém. "Eu não sabia que ele queria fazer a viagem de volta para Mayotte", diz o parente. "Ele não falou nada para mim, nem para os amigos dele. Ele só pediu dinheiro porque disse que estava doente e precisava de remédio porque não havia água potável no vilarejo." "Então, quando as autoridades me ligaram para dizer que ele havia sido encontrado morto, eu disse a eles: 'Não, não é ele. Não pode ser ele'. Eles então enviaram fotos, e eu reconheci seu rosto." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Christian foi uma das pelo menos 34 pessoas encontradas afogadas na costa de Madagascar em 12 de março. Era a terceira vez que fazia esta viagem num pequeno barco de pesca conhecido localmente como kwassa kwassa. "A laguna ao redor da ilha é um cemitério a céu aberto", diz Daniel Gros, da ONG Human Rights League, de Mayotte. "Quando cheguei, em 2012, as autoridades costumavam dizer que estimava-se que cerca de 10 mil pessoas haviam morrido ali. E hoje dão o mesmo número. Ninguém tentou nem sequer contar quantas pessoas podem ter morrido atravessando a laguna." Mayotte tem ganhado espaço no noticiário devido a rebeliões e distúrbios causados por um aumento na imigração, proveniente principalmente da ilha vizinha de Comores, que está sobrecarregando os serviços públicos. O governo francês diz que uma em cada duas pessoas que vivem na ilha é "estrangeira" e prometeu medidas de repressão. Atualmente, 24 mil pessoas são deportadas por ano. A deputada francesa por Mayotte, Estelle Youssouffa, pediu a Paris que adote uma postura mais rígida em relação a Comores. "Pedimos a instalação na ilha de uma base permanente da Marinha nacional dedicada ao combate à migração clandestina", declarou a parlamentar de centro-direita ao canal de TV francês BFMTV em janeiro. Mas grupos de direitos humanos temem que as crianças estejam sofrendo as consequências. Um jovem pai que prefere não se identificar anda de um lado para o outro do lado de fora de um centro de detenção na capital, Mamoudzou. Ele diz que a filha de 13 anos está lá dentro, presa com um membro da família. "Ela é menor de idade, não é normal que ela acabe presa, em vez de estar na escola", diz ele. "Estamos fazendo tudo o que podemos para dar um futuro melhor a ela." O governo francês está planejando uma grande demolição do que considera moradias ilegais na ilha de maioria muçulmana após o Ramadã. E aumentou a presença de efetivo policial e paramilitar na ilha para 1,3 mil agentes como parte da Operação Wuambushu. Ao norte da capital, em uma comunidade chamada Majikavo, as autoridades locais já estão marcando algumas das moradias de chapa de ferro ondulada. "Vivemos sob constante ameaça", diz Fátima, que mora lá há 15 anos. "Eles disseram: 'Quer você aceite ou não, este lugar será destruído'." Fátima possui um visto de residência que permite a ela permanecer na ilha, mas não viajar para a França continental. De acordo com a lei francesa, o governo precisa oferecer "acomodação alternativa adequada" para aqueles cujas casas serão destruídas. Mas até agora, não havia nenhum plano claro de realocação publicado, embora tenha sido oferecido a alguns residentes acomodação emergencial por seis meses. O governo francês recusou o pedido de comentário para esta reportagem. Ativista de direitos humanos, Daniel Gros é altamente crítico do que ele descreve como "mão pesada" do Estado francês. "Se você expulsar as pessoas, não deve se surpreender que elas voltem. Deportamos centenas de pessoas por dia, mas temos barcos chegando com um número semelhante de pessoas ao mesmo tempo. O Estado quer mostrar ao povo francês que está fazendo algo em relação à imigração."
2023-04-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c721jndvy04o
sociedade
A atriz que gerou polêmica ao usar barriga de aluguel para gerar bebê do filho morto
Uma semana depois de a atriz Ana Obregón, de 68 anos, surpreender a Espanha ao revelar que teve um bebê por meio de uma barriga de aluguel nos Estados Unidos, ela agora explicou que a recém-nascida é filha do seu filho morto. "Esta menina não é minha filha, ela é minha neta", disse ela à revista ¡Hola! enquanto estava em Miami. Embora ter uma mulher dando à luz por você seja ilegal na Espanha, adotar uma criança nascida no exterior é permitido. O filho dela, Aless Lequio, morreu de câncer aos 27 anos, e Obregón vê a bebê como sua missão. "Este foi o último desejo de Aless, trazer um filho ao mundo", disse ela, descrevendo uma conversa que teve uma semana antes do filho morrer. Fim do Matérias recomendadas Antes da morte de Aless Lequio, em 2020, uma amostra do esperma dele foi congelada e armazenada em Nova York. A mulher que carregou o bebê seria de origem cubana e vive na Flórida. A revelação inicial de Obregón sobre a contratação de uma barriga de aluguel nos Estados Unidos provocou a ira dos ministros do governo de esquerda e gerou um debate nacional na Espanha. A ministra da Igualdade, Irene Montero, condenou a prática, classificando como "uma forma de violência contra as mulheres". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A atriz, conhecida por seus papéis em seriados e comédias, vê a polêmica sobre o nascimento do bebê como "absurda", argumentando que a barriga de aluguel é uma forma de reprodução assistida que é legal em grande parte do mundo. Barriga de aluguel é quando uma mulher concorda em carregar e dar à luz um bebê em nome de outra pessoa. Muitas vezes, mas nem sempre, isso é feito em troca de dinheiro. A recém-nascida, chamada Ana Sandra, será registrada no consulado espanhol antes de embarcar para Madri, explica Ana Obregón, que se recusa a descartar a possibilidade de dar um irmão ou irmã à neta. Enquanto a capa da revista ¡Hola! estampava uma foto da atriz com a neta, outra revista espanhola, a Lecturas, exibia a mãe de aluguel que deu à luz Ana Sandra. Eticamente, a adoção por uma avó poderia se tornar um problema sob o código civil da Espanha porque, de acordo com o artigo 175, você não tem o direito de adotar "um descendente". Mas Obregón argumenta que, legalmente, ela é a mãe da bebê, mesmo que seja biologicamente sua avó . Embora o sêmen de um homem morto seja usado com frequência na Espanha para inseminação em reprodução assistida, isso é permitido apenas 12 meses após a morte da pessoa e teria que envolver uma viúva. O analista de filosofia social Gonzalo Velasco disse que não havia nada de ilegal na prática, até onde ele sabe, mas acreditava que havia uma questão ética. "Ana Obregón assumiu a responsabilidade de interpretar os desejos do filho morto, e isso está indo longe demais", disse ele à rádio Cadena SER. "Nenhum filho é propriedade dos pais, tampouco um filho morto. Nenhuma mãe ou pai tem o poder de interpretar os desejos do filho." O pai de Aless Lequio e ex-companheiro da atriz, Alessandro Lequio, se recusou a comentar sobre o nascimento da bebê.
2023-04-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cnlxzvrknxyo
sociedade
'Fui pegar pipa e perdi braços e perna': choque elétrico mata 2 brasileiros por dia
Era fevereiro de 2020, Renato* estava ajudando o pedreiro nas obras de ampliação do seu imóvel em São José do Rio Preto (SP), quando levou um choque elétrico ao retirar a última camada de concreto da máquina betoneira. Apesar do socorro, o rapaz de 27 anos acabou não resistindo. Situação parecida aconteceu com Lucas Antônio Lacerda da Silva, que durante um pré-carnaval, no centro de São Paulo, em 2018, tocou em um poste energizado e morreu após sofrer um choque elétrico. "Até hoje a palavra choque me choca, pois é muito triste saber que seu filho saiu para se divertir e nunca mais voltou para casa por conta de um acidente que poderia ter sido evitado", diz Carla Maria Ramos de Lacerda, mãe do jovem que morreu aos 22 anos. Fios desencapados, uso constante de 'benjamins' ou 'Ts' por falta de tomadas elétricas, compra de equipamentos eletrônicos sem certificação do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) e manuseio incorreto da energia elétrica estão na lista das principais causas de acidentes envolvendo a eletricidade no Brasil. Dados da Associação Brasileira de Conscientização para os Perigos da Eletricidade (Abracopel) revela que em dez anos, 6.312 pessoas morreram por choque elétrico no país. Uma média de quase duas mortes por dia. Fim do Matérias recomendadas Para se ter uma ideia, apenas em 2022, 592 brasileiros morreram enquanto manuseavam um equipamento movido a eletricidade dentro de casa ou no trabalho. "Apesar do número já ser alarmante, estimamos que esses dados são até três vezes maior, pois o levantamento que realizamos é com base em pesquisas na internet. Ou seja, muitas mortes são subnotificadas. Assim, se tivemos 592 mortes por choque elétrico no Brasil, em 2022, provavelmente, estamos falando de aproximadamente 1,8 mil mortes", estima Edson Martinho, diretor executivo da Abracopel. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em média, 87% dos óbitos por choque elétrico no Brasil são de pessoas do gênero masculino e somente 13% de pessoas do gênero feminino. Isso ocorre, principalmente, pelo fato de os trabalhadores que atuam direta e indiretamente com a eletricidade serem em sua maior parte do gênero masculino e por homens - mesmo aqueles sem a devida formação - serem maioria dos que tentam solucionar problemas dentro de casa envolvendo eletricidade. No país, a região Nordeste é a que concentra a maior parte das mortes por choque elétrico. Em dez anos, a região registrou 2.631 óbitos nessa categoria, o que corresponde a 41,6% das mortes do país. "Ainda estamos tentando descobrir e comprovar as motivações para que todos os anos tanta gente morra de choque elétrico no Nordeste. Mas o que a gente observa é que a fiscalização é pequena, o conhecimento sobre os riscos da eletricidade não é eficiente e muitas pessoas em busca de mão de obra mais barata contratam profissionais que não são capacitados. Isso tudo, infelizmente, acaba resultando em morte", aponta Martinho. No ranking, a região Sudeste aparece na segunda posição (1.239 mortes), seguida pela região Sul (1.024 mortes), Centro-oeste (735 mortes) e Norte (683 mortes). Grande parte das mortes por choque elétrico no Brasil acontece dentro de casa e envolve pessoas comuns que, ao manusear equipamentos simples, cometem erros e sofrem acidentes, segundo os especialistas. As ocorrências geralmente são causadas pela energização acidental dos equipamentos elétricos que possuem envoltório metálico, falta de manutenção dos equipamentos e ausência de aterramento elétrico na residência. "Acidentes com extensão e benjamins ou ‘Ts’ também são significativamente elevados. É necessário observar que estes equipamentos não são regulares e, por esse motivo, não fazem parte de qualquer controle de qualidade - desta forma, precisam ser evitados pelos usuários", alerta Edson. Segundo o capitão André Elias, porta-voz do Corpo de Bombeiros de São Paulo, a falta de conhecimento sobre os perigos envolvendo a eletricidade é uma das principais barreiras no combate aos acidentes. "Muita gente ignora os riscos envolvendo a eletricidade e acaba por realizar procedimentos que teriam que ser feitos por um profissional especializado. Só que o barato pode sair caro", falou o capitão. Em casa, atitudes simples podem ser cruciais para evitar acidentes. É o caso, por exemplo, de nunca usar aparelhos elétricos em locais com água, ou com as mãos e os pés molhados. "Algumas pessoas adquiriram o hábito de levar equipamentos elétricos para o banheiro, como celular e o rádio portátil, e isso também representa um risco, principalmente, quando você toca nele com as mãos molhadas e com ele carregando", orienta Martinho. Outra causa recorrente de acidentes envolvendo a eletricidade ocorre com pedreiros e instaladores de TV a cabo, telefonia, toldos e calhas. Com eles, geralmente, os acidentes acontecem durante trabalho próximo à rede aérea de distribuição de energia. Foi o que ocorreu, por exemplo, com o instalador Manoel*. Durante a instalação de um painel luminoso em um estabelecimento comercial de São José do Rio Preto, em 2015, ele levou um choque elétrico que o derrubou de uma altura de cinco metros. Apesar dos graves ferimentos causados pela corrente elétrica e pela queda, Manoel sobreviveu. "Graças a Deus, não tive nenhuma sequela." Segundo Ricardo Sebba, médico do trabalho e membro da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), o choque elétrico está entre as quatro principais causas de acidente de trabalho no Brasil. "Mesmo com as normas regulamentadoras atualizadas e abrangentes, ainda enfrentamos muito desrespeito à legislação vigente, que abre caminho para ocorrências de acidente de trabalho", assinala. Sebba ressalta que, além da falta de conhecimento adequado, muitos acidentes de trabalho envolvendo eletricidade ocorrem por jornada de trabalho excessiva e falta de equipamentos de segurança. "No Brasil, profissionais da construção civil, distribuição e geração de energia são os que mais sofrem acidentes envolvendo a eletricidade no local de trabalho. Instalações provisórias sem o cumprimento de regras básicas e adversidade dos locais de prestação de serviço contribuem para essa estatística", explica. É o que revelam dados da Abracopel. Entre 2013 e 2022, 15% das mortes envolvendo eletricidade no país foram de pedreiros, instaladores ou pintores. O levantamento aponta 513 óbitos de pedreiros ou ajudantes; 207 de instaladores de TV a cabo, telefonia, placas solares, toldos e calhas; e 199 de pintores ou ajudantes. Foi o simples ato de pegar uma pipa ao lado da rede elétrica que deixou Gleisson Rodrigues Batista sem os dois braços e a perna direita, quando ainda tinha 11 anos. "Só lembro que sentia meu corpo duro e não conseguia falar com as pessoas ao meu redor. Nem abrir a boca eu conseguia", lembra. O acidente que aconteceu na favela Cabana Pai Tomás, em Belo Horizonte (MG) há 29 anos não apenas mudou a vida dele, como também o alertou sobre os perigos da eletricidade. "A gente, quando criança, não tem muita noção dos perigos. Na época, estava com meus primos e peguei uma barra de ferro para tirar a pipa enroscada dos fios. Levei uma descarga elétrica de 13,8 mil volts." Acidentes como o de Gleisson, envolvendo crianças e adolescentes, são mais comuns do que se imagina. Levantamento feito com base em dados da Abracopel aponta que choques elétricos mataram 688 brasileiros entre zero e 15 anos nos últimos dez anos. "Fora o tradicional acidente com pipa, temos muitos casos de acidente dentro de casa, quando a criança coloca objetos metálicos ou até a mão dentro da tomada. Ela não tem noção que aquilo é um perigo - por isso, a importância de os pais ficarem atentos", diz Martinho. Conscientização sobre os perigos da eletricidade que, hoje, Gleisson aplica dentro de casa com os dois filhos. "Eu não nasci deficiente, mas me tornei deficiente por conta de um choque elétrico. Por isso, sempre digo que todo cuidado com a eletricidade é importante", diz. Quando uma pessoa recebe um choque elétrico, várias são as lesões que ele pode causar no corpo da vítima. Por esse motivo, cada caso deve ser analisado individualmente por um médico. "O choque elétrico pode causar uma variedade de lesões, que podem ir desde queimaduras leves até a morte", explica Marcus Vinicius Viana da Silva Barroso, presidente da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ). Entre as lesões mais comuns estão queimaduras na pele, geralmente na entrada e saída da corrente elétrica; fibrilação ventricular (uma condição em que o coração bate de forma descoordenada, o que pode levar à parada cardíaca e à morte); e até lesão muscular e no sistema nervoso central. Estudos também mostram que vítimas de choque elétrico são mais suscetíveis a experimentar problemas psicológicos, como ansiedade e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT). "É importante lembrar que mesmo os choques elétricos aparentemente leves podem ter consequências graves e duradouras. Portanto, é fundamental seguir todas as precauções de segurança ao lidar com eletricidade e, quando sofrer um acidente, procurar ajuda", alerta Barroso. Estimativa da Sociedade Brasileira de Queimaduras (SBQ) aponta que choques elétricos correspondem a cerca de 3% a 5% do total de acidentes por queimaduras registradas anualmente no país. Contudo, quando analisado o número de óbitos, esse percentual sobe para 46%. "Existe uma diferença no tratamento da queimadura tradicional com fogo e a envolvendo choque elétrico. As queimaduras elétricas geralmente são mais graves e profundas do que as queimaduras térmicas, pois a eletricidade pode causar danos mais profundos nos tecidos do corpo. Além disso, as queimaduras elétricas podem ser acompanhadas de outras lesões, como fraturas, lesões musculares e lesões neurológicas", explica Barroso, da SBQ. Pedro Henrique Soubhia Sanches, cirurgião plástico da Unidade de Tratamento de Queimados (UTQ) do Hospital Padre Albino, em Catanduva (SP) — referência no interior de São Paulo em atendimento a vítimas de choque elétrico — ressalta que o primeiro ato ao socorrer uma vítima da eletricidade é o de desligar a energia elétrica. "É importante que nunca a pessoa toque na vítima enquanto a fonte de eletricidade estiver ativa. Pois ela também corre risco de sofrer um choque elétrico", alerta. Sanches ainda aponta que, normalmente, as pessoas acreditam que apenas o local de entrada e saída do choque elétrico pode apresentar lesões. Contudo, em muitos casos os danos da eletricidade estão invisíveis aos olhos das pessoas. "Por isso, sempre é importante a pessoa fazer um acompanhamento médico, pois o choque elétrico pode causar uma série de lesões. A lesão que pode estar pequena por fora pode ser grave por dentro", recomenda. A maioria dos incêndios que acontecem no Brasil ocorrem devido a curtos-circuitos ocasionados, principalmente, por fios e cabos de baixa qualidade. Ou seja, um simples carregador de celular pirata ou fios e cabos de baixa qualidade podem causar um incêndio em sua casa, segundo especialistas. Um estudo realizado pela Associação Brasileira pela Qualidade dos Fios e Cabos Elétricos (Qualifio), em parceria com o Sindicato da Indústria de Condutores Elétricos, Trefilação e Laminação de Metais Não-Ferrosos do Estado de São Paulo (Sindicel) aponta que 70% dos fios e cabos elétricos ensaiados produzidos no Brasil estão irregulares. "O que acontece é que muitas empresas fazem cabos que deveriam ter cobre e colocam alumínio cobreado, que é mais barato. Quando instalado na parede da residência, esse cabo vai virar uma bomba relógio. Isso porque a capa que deveria proteger de pegar fogo vai ajudar a propagar ainda mais o incêndio", explicou Ênio Rodrigues, diretor-executivo do Sindicel. Conhecidos como 'cabos desbitolados', esses cabos de baixa qualidade, além de provocar risco de curto-circuito e concomitantemente incêndio, podem provocar aumento no consumo de energia elétrica. "Os fios e cabos devem ser certificados pelo Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro), porém, existem fabricantes que desrespeitam as normas, mesmo tendo o selo do Inmetro e, ainda por cima, produzem cabos desbitolados com custos menores, pois utilizam menos cobre que o exigido e muito mais PVC, o que acaba colocando em risco a segurança do consumidor", alerta Rodrigues. Ao mesmo tempo, dados da Abracopel indicam que o número de incêndios provocados por curto-circuito cresceu assustadoramente nos últimos dez anos no Brasil: de 216, em 2013, para 874, em 2022. Um total de 5.315 incêndios de origem elétrica e 385 mortes. "Os acidentes ocorrem geralmente em ambientes residenciais, seguido de comércio. Mas, historicamente, os acidentes com hospitais vêm aumentando nos últimos três anos, chegando a números significativos (52) em 2022. O aumento indiscriminado de equipamentos para o controle da pandemia de covid-19 sem uma avaliação da instalação elétrica de forma adequada pode ter sido o motivo desse aumento", diz Martinho. No caso do carregador de celular, além de risco de incêndio, ele também pode causar choque elétrico. Entre 2017 e 2022, 84 brasileiros morreram após receberem uma corrente elétrica do aparelho celular. "Via de regra, o carregador de celular funciona como uma boia de caixa d’água. Quando ele atinge o nível máximo de bateria, ele para de enviar elétrons, tanto que você pode notar que, ao pegar a fonte, comumente ela está fria ao acabar de carregar e ficar conectada na tomada. No caso do carregador de má qualidade, não, ele continua mandando elétrons, podendo causar um sobreaquecimento", explica Martinho. O Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro) disse, por meio de nota, que hoje existem 205 empresas que produzem fios, cabos e cordões flexíveis elétricos com registro ativo na entidade e que os consumidores devem adquirir os cabos no mercado formal. Os Institutos de Pesos e Medidas (Ipem) são os órgãos delegados do Inmetro nos estados responsáveis pela fiscalização rotineira de fios e cabos. Segundo o órgão, práticas adotadas para coibir as irregularidades são a investigação prévia de estabelecimentos, a fim de identificar potenciais alvos de fiscalização, e a manutenção de contato próximo com associações e representantes setoriais. "Fios, cabos e cordões elétricos estão entre os produtos que sempre estiveram no radar do Inmetro, sendo objeto de programas de monitoramento constante como, a 'Operação Energia Segura'. Cabe destacar que no ano de 2022, o Inmetro empreendeu 4.083 operações de fiscalização nas quais foram encontradas 14.773 unidades de fios e cabos irregulares. O índice de irregularidade, no ano, foi de 10,17%", diz o comunicado. Além de comprar fios, cabos e produtos movidos a eletricidade no mercado formal, contratar profissionais qualificados e realizar manutenção periódica, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil ressaltam que a maioria dos acidentes internos nas edificações poderia ser evitado pela execução de um sistema de aterramento e o uso de dispositivos de proteção à fuga de corrente, como o Dispositivo Diferencial Residual (DR), que é obrigatório no Brasil. O Dispositivo Diferencial Residual, popular DR, é um interruptor que desliga automaticamente a corrente elétrica quando identifica fuga ou vazamento de energia elétrica dos condutores do imóvel. Além de evitar choques elétricos, ele também evita curto-circuito. Entretanto, segundo o estudo Raio-X das Instalações Elétricas Residenciais Brasileiras, feito pelo Instituto Brasileiro de Cobre (Procobre) e pela Abracopel, menos da metade do total de imóveis brasileiros contam com o DR. "Sempre digo que o primeiro passo é as pessoas lembrarem que a eletricidade não é uma brincadeira. Ela requer sempre um profissional habilitado e atualizado. Porque o que se fazia na eletricidade há 15 anos não se faz mais", diz Martinho. *Os nomes foram trocados para proteger a identidade dos entrevistados
2023-04-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72vrjv957lo
sociedade
7 obras de arte que causaram polêmica na história recente
Isso por si só é surpreendente. Praticamente desde o momento em que a estátua nua de mármore de 5 metros de altura foi esculpida, por volta de 1504, a obra-prima do mestre renascentista Michelangelo se manteve firme diante das acusações de indecência. Ainda no século 16, a escultura foi adornada com uma espécie de tanga de folhas de figueira de metal para mitigar sua suposta falta de pudor. Só em meados do século 20 que uma tanga de folhas semelhante foi finalmente retirada de uma réplica da célebre estátua em exibição no Victoria & Albert Museum, em Londres, que havia sido concedida à rainha Vitória em 1857. Fim do Matérias recomendadas A decisão controversa tomada recentemente pelo conselho da escola americana de pressionar a diretora Hope Carrasquilla a pedir demissão oferece uma oportunidade para refletir sobre como algumas obras de arte da história moderna — embora consideradas inaceitavelmente chocantes por alguns — mudaram a maneira como pensamos a arte. A seguir, estão sete obras de arte criadas desde que as folhas de figueira foram retiradas da escultura de Davi do Victoria & Albert Museum. São peças que chocaram a sensibilidade contemporânea e ajudaram a redefinir a própria essência da arte. A cada cinco anos, ao longo de cinco meses, o artista britânico Marc Quinn tira 5 litros do seu próprio sangue e os derrama em um molde translúcido e refrigerado do seu rosto. O resultado é uma série sempre emergente de autorretratos nos quais o artista pode afirmar de forma legítima ter dado mais de si do que qualquer artista que veio antes dele. Para alguns críticos, a série em andamento de Quinn, Self, nada mais é do que uma artimanha macabra própria de um vampiro. Para outros, a obra representa uma contribuição pungente e ousada para a tradição de autorretratos para a qual grandes artistas como Rembrandt, Van Gogh e Cindy Sherman contribuíram — que destaca profundamente a fragilidade do ser. Lançada em meio a acusações de que seu criador, o artista pop britânico Allen Jones, tratava objetos como mulheres e vice-versa, Chair (assim como as peças complementares Hatstand e Table) contorceu manequins femininos seminuas em um conjunto não ergonômico de móveis obscenos. No Dia Internacional da Mulher de 1986, a obra foi encharcada com removedor de tinta por uma dupla de ativistas chocadas com o senso chauvinista da escultura. O ácido corroeu o rosto e o pescoço da manequim. Composta por 39 lugares que celebram a contribuição das mulheres para a história cultural (de Safo a Virginia Woolf), a mesa de banquete triangular da artista americana Judy Chicago foi aclamada por sua perspectiva pioneira e ridicularizada pela suposta chocante vulgaridade. A obra é dominada por pratos de porcelana pintados à mão, muitos dos quais são decorados com o símbolo de uma borboleta desabrochando em forma de vulva. A artista britânica contemporânea Cornelia Parker menosprezou a instalação em artigo publicado no jornal britânico The Guardian. Segundo ela, a obra tem "vaginas demais" — e "se trata mais sobre o ego de Judy Chicago do que sobre as pobres mulheres que ela deveria estar enaltecendo". “Estamos todas reduzidas a vaginas, o que é um pouco deprimente.” Mais de um muro icônico caiu em 1989. Na calada da noite de 15 de março, oito meses antes do início das marretadas no Muro de Berlim, uma equipe de trabalhadores da construção civil chegou à Federal Plaza, na cidade de Nova York, para cortar em pedaços uma controversa barricada de aço de 36 metros de comprimento e 3,6 m de altura que havia sido erguida oito anos antes. Alegando que a obra, uma escultura inovadora do artista americano Richard Serra, fornecia abrigo para terroristas, vermes e vândalos, um júri concluiu que a escultura minimalista deveria ser removida e levada para um depósito. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Embora a cama, como objeto arquetípico, tenha servido como suporte indispensável para algumas das maiores obras de arte ocidentais — da Vênus de Urbino, de Ticiano, e o Quarto em Arles, de Van Gogh, até a Maja nua e a Maja vestida, de Goya, e o diabólico O Pesadelo, de Henry Fuseli —, a indignação do público com a instalação My Bed, da artista britânica Tracey Emin, para a exposição do Prêmio Turner de 1998 foi intensa e prolongada. A cama, que refletia um episódio de depressão na vida da artista, mostra os detritos materiais de uma psique bagunçada. E logo se tornou a amostra perfeita para aqueles que afirmavam que a arte contemporânea havia perdido o rumo. Os defensores da obra ficaram surpresos com o fato de que, mais de 80 anos depois do mictório de Marcel Duchamp, uma cama bagunçada pudesse provocar tamanha indignação — e se perguntaram se a verdadeira objeção era que uma mulher ocupasse descaradamente um lugar no museu de um homem. Partindo da audaciosa instalação do artista britânico Damien Hirst, The Physical Impossibility of Death in the Mind of Someone Living ("A Impossibilidade Física da Morte na Mente de Alguém Vivo"), de 1991, que apresentava um tubarão suspenso em uma solução de formol, o artista tcheco David Černý se atreveu a fazer flutuar diante dos visitantes uma escultura do ditador iraquiano deposto Saddam Hussein amarrado. Para alguns, a obra chegou muito perto de colocar Hussein no papel de vítima. Para outros, era gratuitamente explícita. A exibição da polêmica obra em um museu de Middelkerke, na Bélgica, no início de 2006, acabou sendo cancelada por decreto do prefeito da cidade, Michel Landuyt, por medo "de que certos grupos populacionais achariam a obra provocativa demais". Às vezes, a vontade de censurar uma obra de arte controversa parte de observadores ofendidos, em vez de curadores cautelosos. Foi o que aconteceu em outubro de 2014, quando a enorme escultura inflável Tree, do artista americano Paul McCarthy, erguida para uma exibição de Natal na Praça Vendôme, em Paris, foi fatalmente derrubada por vândalos e posteriormente esvaziada. Uma vez que observadores apontaram a grande semelhança da escultura com a forma de um acessório sexual, não houve como proteger a colossal obra de um ataque. Nem o próprio artista escapou ileso. Um visitante indignado com a instalação da escultura confrontou McCarthy e deu três tapas na cara dele antes de sair em disparada para o meio da multidão.
2023-04-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ckd2nw799rqo
sociedade
O segredo do 'remédio para a alma' da Groenlândia
Poucas coisas no mundo nos deixam mais impressionados com a natureza do que dormir em um bloco de gelo com 3 km de espessura, apoiado sobre uma camada de neve formada mais de um milhão de anos atrás. O Camp Ice Cap, perto da cidade de Kangerlussuaq, no oeste da Groenlândia, oferece a extraordinária oportunidade de acampar por uma noite sobre o manto de gelo que cobre cerca de 80% da ilha. Uma experiência que costuma ser reservada apenas para fins de pesquisa ou expedições. Mas esta não é a única experiência extraordinária de acampamento na Groenlândia. A maior ilha do mundo — com seu manto de gelo (inóspito, na maior parte), mar frequentemente revolto e o maior predador terrestre do mundo, o urso polar — foi recentemente incluída no mundo dos acampamentos de luxo. No acampamento Kiattua, a duas horas de barco da capital da Groenlândia, Nuuk, você pode entrar em uma banheira de água quente para apreciar a vista do segundo sistema de fiordes mais longo do mundo, antes de comer uma refeição preparada em uma cozinha ao ar livre e, por fim, repousar em sua confortável tenda de luxo. Já no sul da Groenlândia, você pode pescar, sair em busca de alimentos na natureza, andar de caiaque ou caminhar ao lado de um imenso fiorde com vista para as montanhas no acampamento Tasermiut. Ali, a ideia é exatamente usar a natureza da ilha como remédio para a alma, admirando as paisagens deslumbrantes da região. Fim do Matérias recomendadas Longe de ser apenas uma tendência da indústria de turismo, estas experiências são parte de uma compreensão maior que vem ocorrendo na Groenlândia, sobre a importância da sua natureza única — uma combinação de cenários montanhosos espetaculares, fiordes profundos repletos de gelo, áreas selvagens intocadas e extensas geleiras — para a saúde, particularmente a saúde mental. Muitas pesquisas mostram que a natureza melhora a nossa saúde mental e bem-estar, mas existe algo na Groenlândia que oferece uma perspectiva diferente. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A pesquisadora Naja Carina Steenholdt, da Universidade Syddansk, em Copenhague, na Dinamarca, pesquisou a relação entre os groenlandeses e o bem-estar para sua tese de doutorado. Ela se concentrou particularmente no que chama de "Paradoxo da Groenlândia". A Groenlândia registra regularmente o maior índice de suicídios per capita de todo o mundo. Também enfrenta problemas sociais bem documentados, muitos deles relativos ao legado pós-colonial. Mas, nesta ilha remota com apenas 56 mil habitantes, a maioria das pessoas pesquisadas por Steenholdt relatou ter níveis altos ou muito altos de satisfação na vida. A pesquisadora queria descobrir como, dadas as circunstâncias, as pessoas podiam se sentir tão felizes. E ficou curiosa para saber o que constitui uma vida boa na Groenlândia. Embora as conexões sociais nas minúsculas cidades e aldeias ao lado dos fiordes sejam muito valorizadas, a pesquisa de Steenholdt concluiu que, de todos os fatores fundamentais para a qualidade de vida na Groenlândia, a natureza vem em primeiro lugar. "Existe uma profunda compreensão de que a natureza vem antes de tudo", explica. "As pessoas respondem: 'Sem a natureza, eu não teria família. Não conseguiria viver minha vida. Consigo alimentos e energia da natureza'. Estas respostas foram comuns." "Realmente me surpreendi com a quantidade de pessoas que valoriza mais a natureza do que a família. Ela não é considerada apenas fonte de alimento; é tão fundamental que supera a família e o trabalho. É a pré-condição para uma boa vida", acrescenta Steenholdt. A compreensão e o respeito pela natureza são sentidos em todos os aspectos da vida na Groenlândia. Historicamente, as pessoas precisaram lutar pela própria existência, sobrevivendo a invernos sombrios em paisagens em que pouca coisa crescia, e onde os ursos polares atacavam os poucos rebanhos que sobreviviam. Hoje em dia, caçar, pescar e andar de barco são atividades comuns na ilha, e quase todas as pessoas têm um freezer lotado de carne de animais caçados na região. A cadeia local de abastecimento de alimentos possui apenas um ou dois elos — afinal, a natureza selvagem está a apenas um passo de distância. Para a pesquisadora de saúde pública Ingelise Olesen, do Centro de Pesquisas da Saúde da Groenlândia, em Nuuk, a complexidade da relação entre os groenlandeses e a natureza é o que a torna fundamental para a cultura, a comunidade e o estilo de vida. "Não é apenas questão de dizer que a natureza cura tudo, e certamente não é, diante dos grandes desafios que temos por aqui", afirma ela, se referindo aos problemas com suicídio e saúde mental que afligem o país. "Ter uma vista bonita não resolve nada. É mais sobre o significado da sua relação com a natureza. É como a natureza interage culturalmente, oferecendo uma sensação de orgulho nacional e independência", explica Olesen. "O valor está em como ela interage com a cultura, a comunidade e a história, como ela sustenta a alimentação, a caça e a sobrevivência." Um projeto-piloto recente levou um grupo de idosos e pessoas mais jovens para um acampamento remoto, para que eles se conectassem por meio da cultura, da natureza e das tradições. Nesse projeto, os jovens e os idosos trocaram conhecimentos, pescaram e prepararam peixes, acenderam fogueiras e cozinharam o jantar sobre rochas quentes. Olesen conta que foi um grande sucesso. Os grupos compartilharam conhecimento sobre tecnologia e tradições ancestrais, criando uma sensação de pertencimento que, antes, não existia. Experimentar o lado curativo da natureza da Groenlândia como visitante é fácil. Chegar de avião à ilha já é uma experiência deslumbrante. São quilômetros e quilômetros de montanhas recortadas que se estendem à distância. Um lugar tão extraordinário e, em grande parte, inexplorado e desabitado oferece uma mudança imediata de perspectiva, colocando você em um espaço em que seus problemas, sem dúvida, são minimizados por algo muito maior. A vastidão da natureza da Groenlândia faz você mudar imediatamente sua relação com o ambiente externo — e não é por opção. Você não consegue fugir, e é obrigado a se relacionar com ele. Outra mudança fundamental de perspectiva é que, como turista, você precisa aceitar que não está no controle. Voos são cancelados, barcos não conseguem navegar devido aos fortes ventos e, até quando há bom tempo, pode não haver guias disponíveis se for temporada de caça. Aqui, a natureza dita o comportamento, diferentemente da vida nas cidades modernas, onde a natureza é submetida às necessidades sociais. É uma experiência renovadora e faz você levar para casa algo interessante para pensar: quão diferente seria seu comportamento se você permitisse que a natureza ditasse as ações na sua casa? Você ficaria feliz com o resultado? Experiências extraordinárias ao ar livre podem ser encontradas em toda a Groenlândia, inspirando a admiração e o encanto pela natureza — e pela própria vida. Você pode fazer uma trilha até a ponta do manto de gelo, ao lado de um rio cinza-azulado glacial; mergulhar em uma antiga fonte de água quente com vista para pequenos icebergs em movimento; ou observar os ursos polares nadando no mar da Groenlândia —a uma distância segura —, apenas para citar algumas possibilidades. Mas você não precisa usar botas de trilha, nem traje de banho, para aproveitar o fascínio gerado pela natureza local. Ela se mostra a todo momento, seja quando você passa por uma mulher vestida com um belo casaco de pele de foca nas ruas de Nuuk ou contempla joias feitas de ossos de cervo e garras de urso polar na casa de um artesão em Qaqortoq, no sul da ilha. Até conversar com os moradores locais traz à tona temas fascinantes, que vão desde cidades onde uma patrulha inspeciona as ruas todas as manhãs em busca de ursos polares, de modo a garantir a segurança das crianças a caminho da escola, até o capitão de um barco que colidiu acidentalmente com uma baleia em um fiorde e foi lançado ao mar congelante. Vi pacotes de carne de baleia à venda em um supermercado local, barbatanas de foca em uma peixaria e boi-almiscarado ao curry no menu de um restaurante tailandês. São certamente sinais de uma relação diferente com o meio ambiente. Enquanto andava em Qaqortoq com o guia local Alibak Hard, ex-administrador de Kujataa — área no sul da Groenlândia que dá continuidade à cultura da criação de ovelhas que data da era viking, e hoje é Patrimônio Mundial da Unesco —, ficou claro que os groenlandeses veem a natureza com um olhar diferente. Hard me disse que sua atividade preferida para aliviar o estresse é sair para caçar em volta das ilhas e nos fiordes verdes além da cidade. "Para mim, sair para a natureza é como entrar na maior caverna humana do mundo", diz ele, com um sorriso. A diferença é que, em vez estar em um lugar onde você se desconecta de tudo, a Groenlândia é um local de conexão e reconexão, de observar o seu lugar no mundo natural e o papel que ele desempenha na cultura, na alimentação e na sobrevivência. O bem-estar, como mostrou a pesquisa de Steenholdt, está na natureza da Groenlândia.
2023-04-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c6pqn50n8rpo
sociedade
'Cidades foram feitas para homens adultos', diz pedagogo que defende comitês municipais de crianças
A qualidade de vida em uma cidade pode ser quantificada por vários índices e taxas. Mas, para o pedagogo italiano Francesco Tonucci, o parâmetro pode ser outro: as crianças. Se as cidades são amigáveis a elas, fornecendo espaços para que sejam escutadas e para que brinquem, é muito provável que sejam bons lugares para todo tipo de pessoa viver, segundo o pedagogo, criador da Rede Mundial de Cidade das Crianças, que reune 200 cidades no mundo que buscam debater e adotar iniciativas para integrar as crianças à vida urbana. "Acho que as cidades nunca serão das crianças, mas a 'cidade das crianças' é uma perspectiva, uma utopia. É um caminho a fazer", explicou Tonucci em entrevista à BBC News Brasil por vídeo, realizada enquanto esteve em Jundiaí (SP) para o 1º Encontro Brasileiro de Cidades das Crianças e o Fórum Internacional das Infâncias, realizados de 18 a 24 de março. "As cidades modernas foram feitas para os homens adultos e trabalhadores. E claro que uma sociedade pensada para eles é muito incômoda para aqueles que não são homens, adultos e trabalhadores. Estamos falando de crianças, idosos, pobres, pessoas com deficiência e imigrantes. A cidade foi feita para poucos, e esses poucos defendem seus privilégios." Pai de três filhos e avô de dois netos, Tonucci recebeu, em 2019, o prêmio Unicef Espanha Joaquín Ruiz-Giménez e já escreveu mais de 30 artigos científicos e livros — incluindo A solidão da criança (Autores Associados, 2008) e Com olhos de criança (Instituto Piaget, 2003). Fim do Matérias recomendadas Para participar da Rede Mundial de Cidade das Crianças, não é necessário um investimento financeiro direto, mas há alguns requisitos — como a criação de um comitê de crianças que proponha projetos para a cidade e o apontamento de uma pessoa responsável por coordenar diferentes áreas da Prefeitura para assuntos relativos à infância. Jundiaí passou a integrar a rede em 2018 e, em março, foi anunciada como a sede da Rede Brasileira das Cidades das Crianças. Há outras dez cidades do país que manifestaram a intenção de participar da rede, mas, por enquanto, a cidade paulista é única brasileira a integrar o grupo internacional. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Segundo a prefeitura de Jundiaí, comandada por Luiz Fernando Machado (PSDB), o comitê de crianças — composto anualmente por sorteio — já teve reivindicações atendidas na cidade, como a instalação de brinquedos para crianças com deficiência e a construção do parque Mundo das Crianças. O local foi um dos principais espaços para aulas ao ar livre da rede municipal durante a pandemia de covid-19. O fundador da rede é também cartunista, apresentando-se com o nome artístico Frato. Suas ilustrações também tratam da educação. Na entrevista, Tonucci defendeu que as crianças andem sozinhas na rua a partir dos 6 anos de idade e que o uso do celular por elas seja postergado o máximo possível. Confira abaixo os principais trechos. BBC News Brasil - Das cidades que você já conheceu no mundo, alguma se aproximou mais de uma cidade ideal para crianças? Francesco Tonucci - Acho que as cidades nunca serão das crianças, mas a "cidade das crianças" é uma perspectiva, uma utopia. É um caminho a fazer. Mas claro que há cidades que fizeram mais e cidades que fizeram menos. O projeto [Rede Mundial de Cidades das Crianças] começou em uma cidade pequena, a minha cidade natal na Itália, que se chama Fano. Há um conselho de crianças que trabalha lá há 30 anos. E tem cidades ainda maiores que fizeram projetos muito valiosos. Buenos Aires tem vários conselhos de crianças e criou iniciativas que gosto muito, como a noite das crianças. As crianças pediram para vivenciar a noite do seu ponto de vista, e os adultos escutaram. A cada ano, existe uma noite das crianças: até a meia-noite, elas têm experiências diferentes em museus, fazem outras atividades e terminam com um encontro das crianças em um estádio de futebol. E há cidades que se comprometeram muito com a mobilidade urbana. Pontevedra, uma cidade espanhola na Galícia, fez mudanças impressionantes, porque voltou a ser uma cidade de pessoas em vez de uma cidade de carros — como são as cidades modernas. É muito fácil se movimentar caminhando lá, então, há muita gente na rua. As crianças vão para a escola sem adultos. BBC News Brasil - Você costuma dizer que as cidades são feitas para os homens adultos. Pode explicar? Tonucci - A cidade se equivocou. Ela escolheu como parâmetro o cidadão homem, adulto e trabalhador. A cidade moderna foi feita para este cidadão produtivo. Claro que uma sociedade pensada para eles é muito incômoda para aqueles que não são homens, adultos e trabalhadores. Estamos falando de crianças, idosos, pobres, pessoas com deficiência e imigrantes. A cidade foi feita para poucos, e esses poucos defendem seus privilégios. A demonstração disso é o poder que tem o carro na cidade moderna. O carro é o verdadeiro cidadão privilegiado. Os carros têm direitos que nós, cidadãos, não temos: eles podem poluir, ocupar o espaço público, fazer barulhos, coisas que somos punidos se fizermos. No ponto mais dramático, os carros podem machucar e até matar pessoas, o que não é permitido para ninguém. Sempre digo que não é aceitável que os acidades com carros e motos na Itália sejam a primeira causa de morte dos 15 aos 26 anos. Não é possível aceitar que nossos filhos e netos morram desta maneira. Em Pontevedra, as mudanças começaram afastando os carros e privilegiando os pedestres. BBC News Brasil - Você disse que, nessa cidade espanhola, as crianças vão à escola à pé. Isso é algo a ser buscado pelas famílias e cidades? Tonucci - Sim. As crianças saírem de casa sem adultos é um ato de amor, não de abandono. O maior presente que podemos dar aos nossos filhos é dizer: amanhã você pode ir sozinho à escola. Hoje em dia, as crianças estão sempre sob o controle direto dos adultos, e desconhecem as normas. Elas chegam à adolescência sem a consciência e o costume de movimentar-se na vida. Isso é gravíssimo e em parte explica os traumas na adolescência. Por isso, no nosso projeto propomos que as crianças possam sair de casa sozinhas. BBC News Brasil - A partir de qual idade? Tonucci - Indicamos 6 anos porque somos prudentes [risos]. Uma criança de 6 anos se move tranquilamente. BBC News Brasil - Você recomenda isso em qualquer cidade, mesmo nas grandes? Tonucci - Em qualquer cidade. Já experimentamos isso em Buenos Aires, Roma, Rosário, Madri, e não acontece nada. As crianças sabem se cuidar. BBC News Brasil - Acredito que, no Brasil, muitas famílias temeriam fazer isso não por conta das crianças, mas pelo que os outros poderiam fazer com elas. Temos sérias questões de segurança pública... Tonucci - Não tenho dados sobre o Brasil, mas, geralmente, os perigos para as crianças estão mais em casa do que nas ruas. A violência contra as crianças ocorre em casa, assim como os acidentes domésticos. Claro que podem ocorrer problemas na rua. Mas, se as crianças estão na rua, se estão brincando, vivendo nelas, a rua fica muito mais segura. As crianças provocam o cuidado dos adultos, obrigam os vizinhos, comerciantes a tomarem conta. Um ambiente que tem cuidado é seguro, porque se torna incômodo para os deliquentes. BBC News Brasil - No Brasil, em muitas partes do país e em várias classes sociais, parece haver uma preferência das famílias pelo fechamento em condomínios. Esses espaços são confortáveis e desejáveis para as crianças? Tonucci - Deveria ser o contrário. As crianças são uma oportunidade para a abertura, não para o fechamento. Creio que esses lugares [condomínios fechados] são lugares estranhos, não são cidades. São a negação da cidade. Eles não têm uma praça, têm controles, guardas. Não se aprende a viver assim. Precisamos que as crianças lidem com os perigos, com os riscos, com os obstáculos. Claro que não queremos que as crianças se machuquem. Eu não quero que a minha netinha se machuque. Mas é muito importante que seja possível que ela se defenda do perigo, e não que eu a defenda sozinho. BBC News Brasil - Uma cidade melhor para as crianças é melhor também para os idosos? Tonucci - Claro que sim. Assumir as crianças como ponto de referência significa não esquecer de ninguém, nem mesmo dos animais e das plantas. BBC News Brasil - Você tem alguma opinião sobre a limitação ou não do uso de celulares por crianças? Tonucci - Em um domingo, visitamos uma rua de Jundiaí que estava fechada para carros [Nota da redação: a cidade tem um programa chamado Ruas de Brincar que estimula o fechamento de ruas em domingos e feriados, após abaixo-assinado de moradores]. A rua não tinha jogos, brinquedos, mas as crianças estavam encantadas em estar no meio dela. Brincar, para as crianças, não significa ter balanços e tobogãs. Significa liberdade. Havia também mães um pouco distantes, conversando entre elas, tendo uma vida social. Perguntei a uma senhora o que estava achando da experiência, e ela disse: "Estupenda. Antes, as crianças estariam separadas dentro de casa, cada uma com seu celular. Nós também." O celular isola as pessoas. E, nas mãos de uma criança, é perigoso. Isso não é um moralismo. Começam a aparecer estudos mostrando que a inteligência das novas gerações está sendo afetada negativamente, e uma das razões são esses aparelhos. Eles facilitam muito a vida, não há obstáculos. Temos problemas com crianças que aprendem a ter uma vida social online, que parece mais cômoda que a relação pessoal e física. Não acho que uma criança deva ter um celular antes dos 12, 13, 14 anos... Deveria ser o mais tarde possível e depois de anos de forte contato presencial com amigos. BBC News Brasil - Você acredita que as crianças terão um papel importante na resposta às mudanças climáticas? Tonucci - Não podemos pensar que as crianças resolvam os problemas que nós adultos criamos. Nós adultos que precisamos assumir a responsabilidade e encontrar soluções para assuntos como a paz, a ecologia e o lixo. Ao ouvir as crianças, provavelmente podemos aprender muito sobre essas questões, mas esse é um trabalho político. Ou seja, a política tem que ouvir as crianças porque o que falta a elas falta a todos. A política deve estar intessada em escutar.
2023-04-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g6zmmg0n8o
sociedade
As empresas que não aprovaram teste de semana de 4 dias de trabalho
Mais de 60 empresas participaram do teste, incluindo agências de publicidade, companhias do setor financeiro, de serviços educacionais e até estabelecimentos que vendem o tradicional fish and chips (peixe empanado com batata frita). Por fim, 92% dos empregadores afirmaram que manteriam a semana de trabalho mais curta após o término do programa — e 30% tornariam a mudança permanente. Já entre os cerca de 3 mil funcionários, 71% afirmaram que houve uma redução do nível de burnout — também foram registradas melhorias no bem-estar e na saúde física. Em muitos casos, as empresas que participaram do programa-piloto, promovido pela organização sem fins lucrativos 4 Day Week Global, informaram que seus funcionários conseguiram passar mais tempo com a família, se dedicar a hobbies e investir em cuidados pessoais. "A intensidade do trabalho da nossa equipe aumentou com a pandemia e a crise do custo de vida", afirma Alison Dunn, executiva-chefe do serviço de atendimento ao consumidor Citizens Advice em Gateshead, na Inglaterra. Fim do Matérias recomendadas "O burnout tem sido um problema, e a semana de quatro dias ofereceu a eles um espaço de descompressão: muita gente passou o dia extra de folga com os filhos, fazendo caminhadas na floresta e monetizando seus hobbies." Os empregadores que participaram do teste também observaram que a redução da semana de trabalho aumentou a produtividade e o rendimento. "Quando as pessoas dispõem de um dia a mais de descanso, isso cria um equilíbrio melhor entre a vida pessoal e o trabalho, o que, por sua vez, deixa as pessoas mais felizes e menos estressadas", afirma Claire Daniels, CEO da agência de marketing digital Trio Media, com sede em Leeds, na Inglaterra. "E pessoas mais felizes apresentam um melhor desempenho profissional." Mas, apesar desses resultados amplamente noticiados, o teste não funcionou para todas as empresas. Algumas abandonaram o experimento; outras ainda não decidiram tornar o esquema permanente. E mesmo as empresas que continuam com as jornadas reduzidas estão enfrentando novos desafios decorrentes das semanas de trabalho mais curtas. Embora represente uma pequena parte dos participantes do teste, isso significa que a semana de trabalho de quatro dias não é uma solução automática para todos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em junho de 2022, a empresa de insumos industriais e de engenharia Allcap, com sede em Gloucester, na Inglaterra, aderiu ao teste da semana de trabalho de quatro dias no Reino Unido. Depois de trabalhar a todo vapor durante a pandemia, o diretor da empresa, Mark Roderick, esperava que o programa-piloto de seis meses oferecesse a possibilidade de conceder dias de descanso adicionais à sua equipe de 40 pessoas. "Nós corremos com o processo na empresa", conta Roderick. "Entramos tarde no programa e sabíamos que iríamos enfrentar dificuldades para adotá-lo em cinco locais. Mas queríamos poder oferecer aos nossos funcionários o tempo de descanso no verão." Em vez de oferecer um fim de semana de três dias, como a maioria das 61 empresas do programa-piloto, os funcionários da Allcap teriam um dia de folga adicional quinzenalmente. "Somos uma empresa comercial — os clientes ligam o tempo todo pedindo componentes de fabricação e construção", afirma Roderick. "Já estávamos com uma equipe levemente reduzida, de forma que não tínhamos condições de dar um dia de descanso toda semana aos funcionários." Mas, mesmo com esse modelo de semana de quatro dias customizado, a companhia logo se deparou com problemas, segundo Roderick. "Em comparação com os 10 dias normais de trabalho, verificamos que os funcionários passavam nove dias sobrecarregados — quando eles chegavam ao seu dia programado de descanso, estavam exaustos", revela. "Quando considerávamos as férias, ausências por doenças e responsabilidades familiares, também tínhamos dificuldades para cobrir um funcionário no seu dia de descanso." O resultado foi que a Allcap abandonou o teste dois meses antes em três das suas principais bases (o depósito e os centros de fabricação têm recursos para lidar com a semana de quatro dias). Além dos problemas com os funcionários, Roderick acredita que a natureza do seu setor dificultou a adoção da semana de quatro dias. "Quando você está no setor de serviços profissionais, muitas vezes você tem o trabalho baseado em projetos, o que permite maior flexibilidade para cumprir os prazos", avalia. "Aqui, temos máquinas operando, um balcão de vendas e entregas 24 horas por dia. Trabalhar de casa é impossível, de forma que você precisa de uma quantidade mínima de funcionários no local ou não tem um negócio." O que a Allcap descobriu é que o preço do fim de semana de três dias é uma semana de trabalho de quatro dias mais intensa. "Sem um quinto dia para completar o trabalho, geralmente há mais estresse durante a semana para ter um fim de semana mais longo", afirma Laura White, gerente de projetos e pesquisa da organização Waterwise, com sede em Londres. E, para empresas que possuem um horário de abertura regular, o terceiro dia de descanso na semana normalmente exige que os profissionais cubram turnos — aumentando consequentemente sua carga de trabalho. "Concluímos que quando era a vez de alguém tirar seu dia de folga, o trabalho era repassado para um colega, e eles ficavam sob pressão", afirma Roderick. "A ausência de alguém chegava até a gerência, de forma que só dava essencialmente para fazer as tarefas diárias — nossos projetos de longo prazo e trabalho estratégico iam por água abaixo." Para algumas empresas, particularmente as que possuem atendimento a clientes, criar folga suficiente no cronograma de trabalho para uma semana de quatro dias significa aumentar a folha de pagamento. Com isso, mudar para o novo modelo pode ser proibitivo. Dunn afirma que o Citizens Advice em Gateshead investiu o equivalente a três novos funcionários em tempo integral, de forma que 45 profissionais do centro de atendimento pudessem participar do teste. "Não queríamos uma situação em que alguém fosse excluído da oportunidade." Essas empresas que atendem clientes muitas vezes enfrentam mais desafios para manter uma semana de trabalho de quatro dias. "Alguns funcionários podem trabalhar mais horas durante a semana para colocar o serviço em dia e ter o descanso adicional", afirma Dunn. "Mas isso não é possível para a nossa equipe do centro de atendimento, que tem horas de trabalho claramente definidas. O trabalho deles é rigidamente monitorado por indicadores de desempenho definidos pelo nosso financiador e que precisam ser atendidos — atualmente, eles só podem obter ganhos marginais." Da mesma forma, as exigências do trabalho significam que esses profissionais têm menos flexibilidade no seu terceiro dia de descanso, observa Dunn. "Os dias mais movimentados do centro de atendimento, normalmente, são as segundas e sextas-feiras, o que significa que não é possível emendar o dia de folga com o fim de semana", afirma. "Consequentemente, sobram apenas três dias para que os funcionários tirem seu dia de folga adicional." Por outro lado, Dunn afirma que os funcionários fora do centro de atendimento, que podem trabalhar de forma flexível, ultrapassaram as metas. "Nessas áreas da empresa, os funcionários se saíram extremamente bem, excedendo os indicadores e as projeções de receita", diz ela. Ou seja, "ficamos com uma situação que não é homogênea". Em vez de adotar ou rejeitar diretamente a semana de quatro dias, Dunn prorrogou a duração do teste no Citizens Advice até maio. Mas ela indica que, a menos que a equipe do centro de atendimento atinja os objetivos definidos, é improvável que a semana de trabalho mais curta se torne permanente em qualquer setor da empresa. "Temos 220 funcionários. Não posso imaginar oferecer quatro dias para alguns, e não para outros", afirma. "Vai além do tamanho, as dificuldades em relação à semana de quatro dias surgem com a complexidade da empresa — quando você tem diferentes formas de operar e oferece serviços variados." Assim como o Citizens Advice, a Waterwise e a Trio Media também estão prorrogando seus testes. "Seis meses não parecem ser suficientes para tomar uma decisão permanente", afirma Claire Daniels, da Trio. "Queremos sentir a situação ao longo de um ano inteiro e garantir que a produtividade permaneça alta." Outras empresas que participaram do programa-piloto decidiram eliminar a semana fixa de quatro dias e oferecer uma maior flexibilidade de forma geral. É o caso da agência de criação Amplitude, de Northampton, na Inglaterra. A CEO da empresa, Jo Burns-Russell, tornou a semana de quatro dias opcional: os funcionários agora cumprem uma jornada flexível e reduzida de 35 horas semanais, que pode ser dividida em quatro ou cinco dias. "Depois do teste, cada funcionário queria fazer a semana de trabalho mais curta de forma diferente", afirma. "Em vez de definir um dia de descanso, é melhor deixar que as pessoas escolham o que funciona melhor para elas. Somos uma empresa ágil com uma equipe de 12 pessoas, e funciona bem." Em vez de um esquema fixo de quatro dias, Abigail Marks, professora de futuro do mercado de trabalho na Escola de Negócios da Universidade de Newcastle, na Inglaterra, acredita que esse modelo de semana de trabalho reduzida e flexibilidade pode oferecer ganhos maiores aos funcionários. "Sem reduzir a intensidade das cargas de trabalho e combater o excesso de trabalho de forma mais abrangente, a semana de quatro dias em massa traz o risco de intensificar cargas de trabalho que já são excessivas", avalia. "O dia de trabalho de seis horas pode ser mais eficaz do que a semana de quatro dias entre as empresas que são capazes de adotá-lo." E, embora nem todas as empresas do teste tenham adotado o modelo de forma permanente, o sucesso geral do programa-piloto da semana de quatro dias indica que mais empregadores estão reconhecendo que a jornada de trabalho tradicional, das nove às cinco, não está funcionando, segundo Marks. "É outro experimento no mundo do trabalho pós-pandemia", diz ela. "Mostra que as pessoas estão percebendo que a cultura de longas jornadas de trabalho não é saudável, nem sustentável." No momento, embora a semana de quatro dias possa ser uma experiência que valha a pena ser mantida de forma permanente em algumas empresas, pode não se tornar realidade para todas. Mark Roderick, da Allcap, afirma que, se pudesse, reintroduziria a semana de quatro dias na sua empresa. Até os funcionários sobrecarregados aprovaram o dia a mais de descanso. "Embora todos (os funcionários) pudessem ver o que estava acontecendo e estivessem sempre ocupados, ainda assim eles ficaram desapontados quando suspendemos o teste", revela. "Se pudéssemos contratar mais funcionários sem um grande aumento da nossa folha de pagamento, faríamos amanhã mesmo. Estávamos simplesmente com poucos funcionários para fazer com que funcionasse."
2023-04-01
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c0j77w3q4z5o
sociedade
'Soube da morte da minha mãe ao receber um vídeo dela após ser esfaqueada'
Atenção: esta reportagem contém detalhes perturbadores Na tarde de 21 de junho de 2022, a vendedora Grasiela Ramalho, de 37 anos, estava no trabalho quando soube das primeiras informações sobre um ataque a facadas em um ônibus no centro de Piracicaba, em São Paulo, cidade em que mora com a família. A princípio, a vendedora não prestou atenção nas notícias sobre o caso, porque não acreditava que poderia conhecer alguma das vítimas. Ela não cogitava que a mãe, Roseli Ramalho Ferreira, de 55 anos, pudesse estar no ônibus. "Meu pai tinha mudado de horário no serviço e deu certo de os dois quase sempre voltarem para casa juntos. Então ela só pegava ônibus às vezes", diz à BBC News Brasil. Com a repercussão do caso, no entanto, ela começou a se questionar se a mãe estava no veículo. "Surgiu um pensamento: meu Deus, será que ela estava no ônibus? Aquele era justamente o horário em que ela saía do serviço." "Comecei a sentir um aperto no coração, mas na hora a gente nunca acha que pode ser. Entrei no Facebook e em várias páginas de jornais locais", diz Grasiela. Naquele dia, Roseli havia pegado o ônibus sentido Centro-Vila Sônia ao fim do expediente. Enquanto o veículo passava pela região central, um homem atacou alguns passageiros com uma faca. Grasiela mandou mensagens para a mãe, mas não obteve resposta. Também tentou contato com o pai, mas não conseguiu falar com ele, que estava no trabalho. "Começaram a chegar várias mensagens em grupos de WhatsApp e eu comecei a ver os vídeos. Até então, só mostravam o lugar em que o ônibus foi atacado." "Mas quando compartilharam um outro vídeo, eu abri e mostrava um menino que foi esfaqueado, aí a câmera virou e mostrou uma mulher caída no chão (na calçada). Eu reconheci que era a minha mãe principalmente por causa do tênis que ela usava, que a gente tinha dado para ela pouco antes, no Dia das Mães", conta. Grasiela começou a passar mal e a gritar desesperadamente. Os trabalhadores de comércios próximos correram para ajudá-la. "Me perguntaram o que tinha acontecido, mas eu não conseguia falar nada, só gritava 'a minha mãe, a minha mãe'", relembra. Hoje, além de lamentar a trágica morte da mãe, Grasiela também se revolta pela forma como descobriu o fato. "Foi uma situação horrível. Nunca imaginei descobrir a morte da minha mãe por uma filmagem do corpo dela ali. Nunca passou pela minha mente, isso não passa pela cabeça de ninguém", desabafa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Assim como no caso do crime em Piracicaba, é cada vez mais comum que acidentes, crimes ou desastres naturais sejam filmados ou fotografados e logo sejam compartilhados nas redes. Os registros dessas situações se tornaram comuns com a propagação dos smartphones e com o avanço das redes sociais e aplicativos de mensagens. Em razão disso, em alguns casos essas imagens podem chegar a parentes das vítimas. A psicóloga Maria Júlia Kovács, professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, destaca que uma das possibilidades é que a descoberta de uma morte por meio de uma foto ou um vídeo na rede torne o início do processo de luto ainda mais difícil. Ela aponta que o ideal em uma situação de perda de ente querido é que a notícia seja dada de forma "delicada e respeitosa" e pessoalmente. "Se a gente pensa em um ser humano que acabou de perder alguém, com quem tem um vínculo, é importante que haja uma dimensão humana nessa comunicação, um encontro, uma preocupação com essa pessoa, um acolhimento que nem sempre as redes sociais oferecem", pontua a especialista, que ajudou a fundar o Laboratório de Estudo Sobre a Morte na USP. "Evidentemente, o risco nas redes sociais é sempre muito grande de devassar uma intimidade, uma privacidade, de expor o sofrimento ou escancarar uma série de situações complicadas", diz a especialista. Ela aponta que o apoio é importante porque pode ser que a pessoa que recebeu a notícia se coloque em risco. "Principalmente quando é uma morte inesperada, como em um acidente. Ao dar a notícia, é preciso observar o que acontece com a pessoa e se oferecer para dar acolhimento, ver o que ela precisa, ter um copo d’água próximo e ir acompanhando a pessoa", diz. Ao mesmo tempo, a psicóloga comenta que as redes sociais também podem ter um papel positivo durante o período de luto. "Elas podem, em algum momento, dar essa possibilidade do acolhimento, da troca, de dizer sobre sentimentos compartilhados. Então não vamos só demonizar. Mas, certamente, no momento de dar a notícia na rede social não é o melhor caminho", diz. O tenente Gilberto Algarra, da Polícia Militar de Piracicaba, considera que esse comportamento de gravar e compartilhar situações que mostram vítimas de acidentes ou crimes "expõe um lado obscuro" das pessoas. "Outro dia, negociamos com um homem que queria pular da ponte. Enquanto isso, do outro lado passavam alguns veículos com pessoas gravando com o celular e gritando para ele pular. Perceba o nível da insanidade. Tivemos que interditar a ponte para facilitar a negociação com o homem, que por fim desistiu da ideia de saltar", comenta o militar. Algarra acompanhou o caso do ataque ao ônibus de Piracicaba e diz que outros familiares de vítimas do crime também souberam que elas haviam sido esfaqueadas ao ver alguns vídeos compartilhados na rede. "A sensação de exclusividade na divulgação de notícias de tragédias move um número cada vez maior de pessoas que perdem a sensibilidade e fazem de tudo para obter uma imagem para divulgar nas redes sociais ou aplicativos de mensagens. Elas não se preocupam se isso pode ferir alguém. Isso é um absurdo", diz o militar. Para Grasiela, o compartilhamento do vídeo da mãe após ser esfaqueada foi uma crueldade. "É preciso saber que a família daquela pessoa pode ver. O ser humano é curioso, vai abrir o vídeo, como aconteceu comigo, para ver o que estava acontecendo. Mas é cruel quando você vê que é um ente querido seu ali. É bem duro, não é fácil", diz. As famílias que tiveram vídeos ou fotos dos parentes mortos compartilhados nas redes podem buscar formas de denunciar o conteúdo na plataforma em que foi compartilhado e solicitar a retirada dele — ou até mesmo, caso necessário, buscar a Justiça para cobrar a exclusão dos registros. "É possível buscar na Justiça a retirada do conteúdo das redes sociais ou quaisquer outras mídias em que tenha sido divulgado. A retirada, no entanto, não é garantida. Tudo depende do contexto", comenta o advogado Marcelo Crespo, especialista em Direito Digital e coordenador de Direito na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). Segundo Crespo, se for um contexto "absolutamente exploratório da situação de vulnerabilidade da família ou para exposição do cadáver" pode ser mais fácil para conseguir deletar o conteúdo da rede. Em nota à BBC News Brasil, o WhatsApp informa que não faz moderação de conteúdo porque usa criptografia de ponta a ponta como padrão, o que, segundo a plataforma, impede que tenha acesso ao conteúdo de mensagens trocadas entre os usuários. "O WhatsApp incentiva os usuários a refletir cuidadosamente antes de compartilhar conteúdo com seus contatos. Além disso, nossos Termos de Serviço indicam atividades proibidas no uso do aplicativo e podemos banir usuários em caso de suspeita de violação desses termos", diz comunicado da empresa à reportagem. O aplicativo ainda ressalta na nota que incentiva que "comportamentos inapropriados, além de conteúdos ofensivos e ilegais, sejam denunciados às autoridades competentes e diretamente nas conversas no app, por meio da opção "denunciar” (menu > mais > denunciar) ou simplesmente pressionando uma mensagem por mais tempo e acessando menu > denunciar." Os parentes de Roseli optaram por não buscar formas para excluir ou impedir a propagação do vídeo na plataforma de mensagens. Isso porque afirmam que o material em que ela aparecia morta não teve grande divulgação nos dias seguintes. A filha conta que nunca mais assistiu ao vídeo, passou um período sem mexer no celular e logo depois trocou de aparelho. "Fiquei traumatizada", diz. "Se eu não tivesse visto o vídeo, nem saberia que era a minha mãe, talvez eu só soubesse quando a polícia ou algum familiar me procurasse. Eu poderia ter descoberto de outra forma", comenta. Mesmo após assistir ao vídeo, Grasiela ainda não queria acreditar que a mãe dela estava morta. "Eu não queria aceitar que era a minha mãe deitada no chão com sangue. Eu pedi a Deus para que não fosse a minha mãezinha ali, mas infelizmente era", diz. Quando chegou com o pai ao local do crime, Grasiela viu que diversas pessoas continuavam registrando a cena. "Um policial acompanhou a gente e disse que ia colocar a gente numa viatura, porque tinha muita gente filmando a nossa dor e ele disse que não achava isso legal". Além de Roseli, outras duas pessoas também foram esfaqueadas no ônibus e morreram. Outras três pessoas foram feridas. Segundo a Polícia Civil, o responsável pelo crime, identificado como José Antônio Santana Filho, de 52 anos, entrou no ônibus e escolheu as vítimas de modo aleatório. Conforme a investigação, não havia motivo para o ataque. O homem permanece preso desde a data do crime. A defesa do acusado apresentou à Justiça um laudo psiquiátrico que atesta a insanidade mental dele para solicitar que ele seja internado em um manicômio judiciário. O pedido ainda não foi avaliado pela Justiça. "Acredito que nos próximos dias teremos um posicionamento do judiciário", diz o advogado Gustavo Chacur, responsável pela defesa do acusado. A família de Roseli agora espera pelo julgamento do acusado – ainda sem previsão para ocorrer. "A gente entregou nas mãos de Deus, porque só ele faz Justiça. É muita maldade matar três pessoas e arrasar com três famílias. Mas a gente já entregou nas mãos de Deus, porque esse homem já tirou a nossa joia rara da gente e isso não tem como trazer de volta", diz Grasiela.
2023-03-31
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ce42y8w90gxo
sociedade
Guerra do Vietnã, 50 anos depois: 7 razões para a derrota dos EUA
Após a Segunda Guerra Mundial, os EUA eram indiscutivelmente a maior potência econômica do mundo e acreditavam que suas forças armadas eram igualmente poderosas. No entanto, após pelo menos oito anos de luta, apesar de comprometer vastos recursos em dinheiro e homens no conflito, os EUA foram derrotados pelas forças do Vietnã do Norte e seus aliados guerrilheiros, os vietcongues. No aniversário de 50 anos da retirada final das tropas de combate dos EUA (29 de março de 1973), perguntamos a três especialistas e acadêmicos como os EUA perderam a Guerra do Vietnã. Era o auge da Guerra Fria, e as potências comunistas e capitalistas mundiais se enfrentavam. A França, falida pela Segunda Guerra Mundial, tentou e falhou em manter sua colônia na Indochina, e uma conferência de paz dividiu o que hoje é o Vietnã em um norte comunista e um estado apoiado pelos Estados Unidos no sul. Mas a derrota dos franceses não acabou com o conflito no país e, movidos pelo medo de que, se todo o Vietnã se tornasse comunista, os países vizinhos também o fizessem, os EUA foram para uma guerra que duraria uma década e custaria milhões de vidas. Então, como a principal potência militar do mundo perdeu uma guerra para uma insurgência e um estado recém-formado no empobrecido sudeste da Ásia? Aqui está o que três especialistas, autores e acadêmicos têm a dizer sobre algumas das explicações mais comuns. Certamente, lutar uma guerra do outro lado do mundo foi um empreendimento verdadeiramente imenso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast No auge da guerra, os EUA tinham mais de meio milhão de soldados no Vietnã. Em 2008, um relatório do Congresso dos EUA estimou que o gasto total com a guerra foi de US$ 686 bilhões (mais de US$ 950 bilhões em valores atuais). Mas os EUA gastaram mais de quatro vezes isso na Segunda Guerra Mundial e prevaleceram, e travaram uma guerra de longa distância na Coreia, então não havia falta de confiança. Luke Middup, especialista em política externa e de defesa dos EUA na Universidade de St Andrews, no Reino Unido, diz que havia um sentimento geral de otimismo nos primeiros anos da guerra. "Esta é uma das coisas realmente estranhas que marcam toda a Guerra do Vietnã", disse ele à BBC. "Os EUA estão perfeitamente cientes dos muitos problemas - há muito ceticismo sobre se o exército dos EUA pode operar neste ambiente e, no entanto, o governo dos EUA até 1968 estava confiante de que acabará vencendo." Essa convicção diminuiria, no entanto - foi particularmente prejudicada pela ofensiva comunista do Tet em janeiro de 1968 - e acabaria sendo a falta de apoio do Congresso para pagar pela guerra que forçaria a retirada das tropas de combate dos EUA em 1973. No entanto, Middup questiona se as tropas de combate dos EUA deveriam ter estado no Vietnã, assim como uma segunda acadêmica, Nguyen Hoang Anh, professora universitária de Hanói. Ela cresceu no Vietnã do Norte durante a guerra e experimentou o bombardeio americano de áreas urbanas em primeira mão, e diz que é inequívoco que as tropas americanas não tinham nada a ver com o Vietnã. “Na minha opinião, os americanos fizeram muito pelo governo norte-vietnamita, porque todos os seus pecados e erros foram atribuídos à necessidade da guerra e foram facilmente perdoados - desde que vencessem”, diz ela. Os filmes de Hollywood frequentemente retratam jovens soldados americanos lutando para sobreviver em um ambiente de selva, enquanto insurgentes vietcongues navegam habilmente pela densa vegetação rasteira para lançar um ataque surpresa. "Qualquer exército de grande escala terá dificuldade em lutar em alguns dos ambientes em que os EUA foram solicitados a lutar", diz Middup. "Há partes do local que têm o tipo mais denso de selva que você pode encontrar no sudeste da Ásia." No entanto, diz ele, a diferença de competência entre os dois lados pode ser exagerada. "Há um mito que se forma durante a guerra de que o exército dos EUA não pode lidar com o meio ambiente, de alguma forma os norte-vietnamitas e vietcongues estão acostumados com isso - isso não é verdade", diz ele. "O exército norte-vietnamita e o vietcongue lutaram imensamente para navegar neste ambiente também." De acordo com Middup, é mais significativo que foram os insurgentes que escolheram a hora e o local da batalha, e eles foram capazes de recuar para portos seguros através da fronteira no Laos e no Camboja, onde as forças americanas em perseguição eram normalmente proibidas de seguir. O professor Tuong Vu, chefe do departamento de Ciência Política da Universidade de Oregon, nos Estados Unidos, disse que foi o foco dos Estados Unidos no combate aos guerrilheiros vietcongues que levou à derrota. "A insurgência do sul nunca teria sido capaz de derrotar Saigon", disse ele à BBC. Mas esse erro estratégico, diz ele, permitiu que tropas regulares do exército norte-vietnamita entrassem no sul, e seriam essas forças infiltradas que venceriam a guerra. Este conflito é frequentemente denominado "a primeira guerra televisiva" e o grau de cobertura da mídia que recebeu foi sem precedentes. Em 1966, os Arquivos Nacionais dos EUA estimam que 93% das famílias americanas tinham um aparelho de TV e as imagens que assistiam eram menos censuradas e mais imediatas do que em conflitos anteriores. É por isso que as cenas de combate ao redor do complexo da embaixada dos EUA em Saigon durante a ofensiva do Tet foram tão poderosas. O público viu quase em tempo real que os vietcongues foram capazes de levar o conflito diretamente ao coração do governo do sul - e às salas de estar do público americano. A partir de 1968, a cobertura foi amplamente desfavorável à guerra - imagens de civis inocentes sendo mortos, mutilados e torturados foram exibidas na TV e nos jornais e muitos americanos ficaram horrorizados e se voltaram contra a guerra. Um enorme movimento de protesto surgiu com grandes eventos em todo o país. Em uma dessas manifestações, em 4 de maio de 1970, quatro manifestantes estudantis pacíficos na Kent State University em Ohio (EUA) foram mortos a tiros por guardas nacionais. "O Massacre do Estado de Kent" apenas fez com que mais pessoas se voltassem contra a guerra. Um recrutamento extremamente impopular de jovens também teve um efeito desastroso na opinião pública, assim como as imagens dos caixões de soldados americanos voltando para casa - cerca de 58.000 soldados americanos morreram ou desapareceram na guerra. Para o professor Vu, esta foi uma grande vantagem para o norte: embora suas perdas fossem muito maiores, seu estado totalitário tinha controle absoluto sobre a mídia e o monopólio da informação. "Os EUA e o Vietnã do Sul não tinham a capacidade e a vontade de moldar a opinião pública na medida em que os comunistas podiam", diz ele. "Eles têm um sistema de propaganda massivo. Eles fecharam a fronteira e reprimiram a dissidência. Quem discordasse da guerra era mandado para a prisão." Nguyen, do Norte, concorda: “A América perdeu a guerra da mídia. O Vietnã do Norte estava completamente isolado do mundo, então os erros de seu governo não foram revelados, o mundo apenas os via como justos. Mas as imagens das atrocidades da América se espalharam por toda parte.” Este foi um conflito excepcionalmente brutal que viu os EUA utilizarem uma grande variedade de armas horríveis. O uso de napalm (um incendiário petroquímico que queima a 2.700°C e se apega a tudo o que toca) e o agente laranja (outro produto químico usado para prejudicar a cobertura florestal inimiga, mas que também matou plantações causando fome) teve efeitos particularmente adversos na percepção dos EUA entre as populações rurais. Missões de "busca e destruição" mataram inúmeros civis inocentes em eventos como o massacre de My Lai em 1968, em que soldados americanos assassinaram várias centenas de civis vietnamitas no incidente mais infame da Guerra do Vietnã. O número de civis mortos afastou uma população local que também não estava necessariamente inclinada a apoiar o vietcongue. "Não é como se a grande maioria dos sul-vietnamitas fossem comunistas comprometidos - a maioria das pessoas só queria seguir com suas vidas e evitar a guerra na medida do possível", diz Middup. Vu concorda que os EUA tiveram dificuldade para conquistar corações e mentes."É sempre difícil para um exército estrangeiro fazer as pessoas felizes - você sempre esperaria que não fosse especialmente amado", diz ele. Nguyen vai ainda mais longe. “Não eram apenas os nortistas que eram antiamericanos, mas também os sulistas. Quem trabalhava em agências americanas no sul, principalmente mulheres, era muito discriminado. O fato de os americanos estarem estacionados no Vietnã e comandarem o exército sul-vietnamita fez com que todos os vietnamitas odiassem os EUA e desconfiassem de suas ideias”. Middup acredita que, em geral, as pessoas que escolheram lutar no lado comunista estavam muito mais empenhadas em vencer do que as pessoas que foram convocadas para lutar no lado sul-vietnamita. "Existem estudos que os EUA fizeram durante a guerra que confirmam um grande número de interrogatórios de prisioneiros comunistas", diz ele. "Tanto o departamento de defesa dos EUA quanto a corporação Rand (um think-tank associado aos militares dos EUA) produziram esses estudos de motivação e moral que analisam por que os norte-vietnamitas e vietcongues lutaram, e a conclusão a que todos chegaram unanimemente é que eles estavam motivados porque veem o que estão fazendo como patriótico, ou seja, reunificar o país sob um único governo." A capacidade das forças comunistas de continuar, apesar do enorme número de baixas, talvez também seja uma evidência da força de seu moral. A liderança dos EUA estava obcecada com a ideia da contagem de corpos - se eles conseguissem matar o inimigo mais rápido do que aquelas tropas pudessem ser substituídas, os comunistas perderiam a vontade de lutar. Cerca de 1.100.000 combatentes norte-vietnamitas e vietcongues foram mortos durante a guerra, mas os comunistas pareceram capazes de repor seus números até o final da guerra. O professor Vu não tem certeza se o norte estava com o moral melhor, mas admite que a doutrinação pelas quais as tropas do norte foram submetidas os "armaram". "Eles conseguiram fazer as pessoas acreditarem na causa. Graças aos sistemas de propaganda e educação, conseguiram transformar as pessoas em balas." Nguyen não faz menção a doutrinação, mas descreve uma notável percepção de propósito no norte. Todos “estavam determinados a se opor ao exército dos EUA. Aceitamos todas as perdas, dores e até injustiças, acreditando que, com o fim da guerra, tudo ficaria melhor". Middup vê que um problema central que o sul enfrentou foi a falta de credibilidade e uma associação com o antigo poder colonial. “A divisão entre o Vietnã do Norte e do Sul sempre foi artificial, provocada pela Guerra Fria”, diz ele, “não há razão cultural, étnica ou linguística para dividir o Vietnã em dois países”. Ele acredita que o sul passou a ser dominado por uma minoria religiosa - os católicos. Embora esse grupo representasse talvez apenas 10 a 15% da população na época (o Vietnã é majoritariamente budista), muitos do norte fugiram para o sul com medo da perseguição, criando o que o Middup chama de "uma massa crítica" na política do sul. E esses políticos do sul, como o primeiro presidente do sul, Ngo Dinh Diem, tinham amigos católicos poderosos nos Estados Unidos - pessoas como o presidente John F. Kennedy. Mais tarde, Diem seria deposto e morto em um golpe apoiado pela CIA em 1963. Essa dominação por uma minoria religiosa "tornou o estado sul-vietnamita impopular para a grande maioria da população, que era budista", diz Middup. Isso, ele acredita, levou a uma crise de legitimidade e a um governo que era visto pela maioria dos vietnamitas como uma importação estrangeira, um legado do colonialismo francês, já que muitos católicos lutaram com os franceses. "A própria presença de meio milhão de soldados dos EUA sublinha o fato de que este governo está contando com estrangeiros em todos os sentidos concebíveis", acrescenta o Dr. Middup. "O Vietnã do Sul nunca foi um projeto político que pudesse convencer um grande número de pessoas de que valia a pena lutar e morrer por ele." Isso, diz ele, levanta a questão de saber se as tropas americanas deveriam ter sido enviadas para sustentar um estado que ele descreve como repleto de corrupção. "Desde o início até a destruição, [a República do Vietnã] é um estado incrivelmente corrupto, que piorou com a enorme infusão de ajuda dos EUA de 1960 a 1975 - isso distorce completamente a economia sul-vietnamita", diz ele. "Basicamente significa que ninguém pode obter qualquer cargo, seja civil ou militar, sem pagar propina." Isso, ele acredita, tem profundas ramificações para as forças armadas. "O que isso implica é que os EUA nunca poderão construir um exército sul-vietnamita confiável e competente", diz ele. "E assim sempre foi inevitável - e foi reconhecido como inevitável pelo (presidente dos EUA) Richard Nixon - que, quando as tropas dos EUA saíssem em algum ponto indeterminado no futuro, o estado sul-vietnamita entraria em colapso." Vu não concorda que a derrota para o sul era inevitável e sente que os estudos americanos sobre o Vietnã geralmente procuram desculpas sobre o tema. "Eles querem alguém para culpar pela perda, e os mais fáceis de culpar são os sul-vietnamitas", diz ele, acrescentando que as críticas à corrupção e ao favoritismo dos católicos são exageradas nos relatórios americanos. "Houve muita corrupção, mas não no nível que causou a perda da guerra. Criou muitas ineficiências e unidades militares ineficazes, mas no geral, os militares sul-vietnamitas lutaram muito bem", argumenta. Tão bem, acredita Vu, que teria sido melhor para o sul - que perdeu de 200.000 a 250.000 soldados durante a guerra - ter feito todo o combate, embora com armas e fundos americanos. No final, para Vu, o fator decisivo foi a capacidade do norte de permanecer em pé de guerra total por muito tempo - uma concentração de esforços que o sul mais liberal não conseguiu igualar. A natureza do sistema político significava que o público acreditava na guerra e sabia menos sobre as baixas. “Os EUA e o Vietnã do Sul simplesmente não foram capazes de moldar a opinião pública da maneira que os comunistas conseguiram”, diz o professor Vu. "Apesar da grande perda de mão de obra, eles ainda podiam se mobilizar", observa ele, o que significava que táticas militares envolvendo ataques suicidas estavam disponíveis ao norte, mas não ao sul." Crucialmente, acrescenta ele, o apoio financeiro e militar ao norte da União Soviética e da China não vacilou, como aconteceu com o apoio dos EUA ao sul. Para Nguyen, o Vietnã (assim como o Afeganistão) nos ensina uma lição valiosa. “Todos os países devem resolver seus próprios problemas - os de fora devem apenas apoiar”, diz ela. “Pensando pessoalmente, acho que se os americanos tivessem apoiado o presidente Diem em vez de derrubá-lo, a situação poderia ter sido diferente. O Vietnã poderia ter se tornado semelhante à Coreia? Mais tarde, quando tive mais informações, entendi que os americanos não estavam totalmente errados, mas a forma como conduziram a guerra fez com que a maioria dos vietnamitas não os aceitasse.”
2023-03-30
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxr005pz940o
sociedade
'Confundir arte com pornografia é ridículo': a polêmica em escola nos EUA com estátua nua de Michelangelo
A diretora de uma escola na cidade de Tallahassee, nos Estados Unidos, foi forçada a pedir demissão após o ultimato do conselho pedagógico. Hope Carrasquilla foi responsabilizada pela exibição de imagens da estátua de David, de autoria de Michelangelo, em sala de aula. A nudez da obra foi classificada como "pornográfica" por um dos pais. A imagem foi usada em um exercício na aula de artes do 6º ano — que, nos EUA, ensina a crianças de 11 e 12 anos — da Tallahassee Classical School. Três pais reclamaram que a imagem foi exibida sem qualquer advertência de que nudez seria mostrada. Depois da polêmica, a diretora da Galleria dell'Accademia em Florença, na Itália, onde a estátua é exibida desde 1873, convidou a ex-diretora da escola e os alunos a visitarem a obra. A diretora do museu, Cecilie Hollberg, defendeu que Hope Carrasquilla deve ser "premiada, e não punida". Fim do Matérias recomendadas "Falar do Renascimento sem mostrar David, um ícone indiscutível da arte e da cultura daquele período histórico, não faria sentido", afirmou Hollberg. A estátua de mármore do século 16 é uma das mais famosas da história ocidental. Ela retrata o heroi bíblico David indo lutar contra Golias armado apenas com um estilingue e sua fé em Deus. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Vários pais e professores estão planejando protestar contra a saída de Carrasquilla, mas ela não tem certeza se aceitaria o emprego de volta, caso isso fosse possível. "Houve tanta polêmica e agitação", disse ela em entrevista à agência Associated Press. "Eu realmente teria que considerar: 'Isso é realmente o melhor para mim?'" A polêmica deixou florentinos e especialistas em arte renascentista perplexos. Hollberg disse estar "impressionada" com a situação e afirmou que pensar que a estátua de David é pornográfica revela não apenas uma má compreensão da Bíblia, mas da própria cultura ocidental. "Não acredito que isso realmente aconteceu, no começo pensei que fosse uma notícia falsa, de tão improvável e absurdo que era", disse a diretora do museu. "É preciso fazer uma distinção entre nudez e pornografia. Não há nada de pornográfico ou agressivo no Davi, ele é um jovem, um pastor, que mesmo segundo a Bíblia não usava roupas ostentosas, mas queria defender seu povo com o que ele tinha." O prefeito de Florença, Dario Nardella, também convidou a professora que mostrou aos alunos a imagem do David para visitar a cidade e suas obras de arte. "Confundir arte com pornografia é simplesmente ridículo", postou no Twitter. "Arte é civilização, e quem a ensina merece respeito." Em entrevista ao site Slate, Barney Bishop, presidente do conselho pedagógico, disse que no ano passado a diretora enviou um comunicado aos pais avisando que os alunos iriam ver a imagem de David, mas o mesmo procedimento não foi feito este ano. Bishop chamou isso de "erro flagrante" e disse que "os pais têm o direito de saber sempre que seus filhos estão lidando com um tópico ou uma imagem controversa". Mas, para o historiador de arte e reitor da Universidade para Estrangeiros de Siena, Tomaso Montanari, "desconcertante" foi a repercussão da imagem nos EUA. “Primeiro, vem a consternação com a ausência de liberdade educacional, pois ela não deve ser restringida ou manipulada pelas famílias”, analisa Montanari. “Por outro lado, do ponto de vista cultural, o mundo ocidental tende a associar o fundamentalismo e a censura a outras sociedades, acreditando que possui a capacidade de espalhar os ideais democráticos em todo o mundo." "Mas esse retrocesso cultural revela claramente a presença de visões fundamentalistas no Ocidente também."
2023-03-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czq9032de8go
sociedade
De Dom Pedro I a Neil Armstrong: frases famosas que nunca foram ditas
Certa vez, por deveres do ofício, este repórter acompanhava uma sessão na vetusta Academia Paulista de Letras, no Largo do Arouche, centro de São Paulo. Era princípio de março e o encontro dos acadêmicos, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, trazia histórias protagonizadas por escritoras. A um dado momento, Lygia Fagundes Telles (1918-2022) pediu a palavra e proclamou um inflamado discurso. Sua revolta era contra “a internet”. Não por nenhuma idiossincrasia, mas pelo fato de que ali, ela constatava, havia muita gente atribuindo a autoria de “frases bonitinhas” à sua grande amiga, Clarice Lispector (1920-1977). “E Clarice não era de escrever frases ‘bonitinhas’”, disse Telles, enaltecendo o gigantismo e a profundidade literária da colega que “assina” milhares de posts de qualidade questionável nas redes sociais. Se Facebook e afins contribuíram para a propagação de citações falsamente atribuídas a personalidades, não é de hoje que esse tipo de falseio existe — pode ser encontrado até em velhos livros de história. Fim do Matérias recomendadas A seguir, a BBC News Brasil contextualiza oito frases que se tornaram muito famosas — mas que não podem ser entendidas como verdade. “Se eu não fora imperador, quisera ser mestre-escola. Nada conheço tão nobre como dirigir jovens inteligências, preparar os homens do futuro” Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mestre-escola é como eram chamados os professores do antigo curso primário, ou seja, os encarregados da alfabetização e da formação inicial dos alunos. E a frase é atribuída a Dom Pedro II (1825-1891), o segundo e último imperador do Brasil. E geralmente aparece no sentido de reconhecer as virtudes humanas do monarca. Até aí tudo bem. O problema é que, ao contrário do que se afirma, esta frase não aparece em nenhuma das linhas dos diários do imperador. “Todo mundo diz que ele escreveu isso no diário, mas não existe em nenhuma parte”, afirma à BBC News Brasil o pesquisador e escritor Paulo Rezzutti, biógrafo de diversos personagens da monarquia brasileira, inclusive dos dois imperadores. De acordo com Rezzutti, a menção mais parecida com esta é quando ele diz que era um homem “nascido para se consagrar às letras e às ciências, mais do que a ocupar posição política”. “E se ele tivesse de optar por alguma coisa, preferiria ser presidente da República ou ministro a ser imperador, porque, no entendimento dele, isso lhe daria mais tempo para estudar e dedicar-se ao que realmente gostava”, explica. “Isso de ser mestre-escola, dizem que ele teria falado na França e que o Barão do Rio Branco [o diplomata José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912)] anotou”, acrescenta o pesquisador. “Mas Dom Pedro mesmo nunca deixou isso registrado em lugar nenhum.” “Eu não concordo com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo” Pois é, a frase acima pode representar muito bem a visão do filósofo iluminista francês Voltaire (1694-1778). Pena que nunca foi dita por ele. Conforme afirmam os historiadores Paul F. Boller Jr. e John H. George no livro They Never Said It: A Book of Fake Quotes, Misquotes and Misleading Attributions, essa que virou a máxima do direito da livre expressão teria sido uma invenção da escritora inglesa Evelyn Beatrice Hall (1868-1956), em seu livro Os Amigos de Voltaire, de 1906, uma biografia do filósofo. Em 1935, a própria Hall foi questionada a respeito. “Eu nunca tive a intenção de afirmar que Voltaire teria usado exatamente essas palavras e ficaria muito surpresa se essa frase fosse encontrada em algum de seus trabalhos”, respondeu a biógrafa. “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto. Digam ao povo que fico!” Atire o primeiro livro de história do Brasil quem nunca leu esta frase. Pois segundo historiadores contemporâneos, esta declaração atribuída a Dom Pedro I (1798-1834) em 9 de janeiro de 1822, quando ele declarou que não retornaria a Portugal, dando um passo importante no processo de emancipação política do Brasil, foi uma criação posterior, numa ideia de consolidação da historiografia nacional. Passou para os livros de História como o emblema do "Dia do Fico". “O que foi registrado em ata é um texto muito maior que, a grosso modo, poderia ser resumido a isso. Mas ele mesmo nunca teria pronunciado essa frase em nenhum momento”, diz Rezzutti, à reportagem. Conforme ata da Câmara do Rio, onde ocorreu o ato, o que o então príncipe do Brasil teria declarado foi: “Convencido de que a presença de minha pessoa no Brasil interessa ao bem de toda a nação portuguesa, e conhecido de que a vontade de algumas províncias assim o requer, demorarei a minha saída até que as Cortes e meu Augusto Pai e Senhor deliberem a este respeito, com perfeito conhecimento das circunstâncias.” “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” Está na Bíblia em três dos quatro evangelhos: Marcos, considerado o mais antigo deles, Mateus e Lucas. A frase teria sido a resposta de Jesus quando lhe questionaram se era lícito pagar os impostos aos dominadores romanos. E até hoje é interpretada pelos cristãos como uma justificativa sobre a necessidade de respeitar as regras e as autoridades terrenas. Entretanto, para o historiador André Leonardo Chevitarese, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro Jesus de Nazaré: o que a história tem a dizer sobre ele, provavelmente não foi exatamente essa expressão a utilizada por Jesus. Isto porque há citações semelhantes em evangelhos apócrifos, como o de Tomé e o de Egerton, e uma análise mais minuciosa faz com que os pesquisadores entendam que se tratou de uma criação posterior. “Em Egerton, esse dito circulou de maneira independente, com um outro contexto, o que pode sugerir que a história contida em Marcos possa não ser original, mas, sim, criação do próprio evangelista”, explica Chevitarese, à reportagem da BBC News Brasil. De qualquer forma, mesmo aparecendo em narrativas distintas, a mensagem em si seria verdadeira. “O núcleo central da história parece ser no seu todo autêntico, isto é, a orientação sobre pagar ou não impostos às autoridades”, diz o historiador. “O que implica dizer que Jesus esteve às voltas com essa questão, ou com essa armadilha”, acrescenta. “Um pequeno passo para o homem, um grande salto para a humanidade” Aqui a culpa é atribuída à tecnologia. E o próprio astronauta Neil Armstrong (1930-2012) chegou a dar explicações em entrevistas, mas o erro já estava espalhado de tal forma que não teve jeito: ficou assim para a história a primeira declaração de um ser humano ao pisar na lua. O que acontece é que o sentido da frase, tal e qual acabou entrando para a história, compromete a ideia de contraste planejada por seu autor, Armstrong. Ele contrastava a humanidade coletiva com a façanha de um único indivíduo. Ele afirma que teria dito “Um pequeno passo para um homem” (ressaltando o sentido individual solitário), e não para “o homem” — que, nesta acepção, parece ter o mesmo sentido de humanidade. Segundo o astronauta diria depois, o mal-entendido foi devido à estática da transmissão. “Se não têm pão, que comam brioches” Segundo a versão amplamente conhecida, a rainha Maria Antonieta (1755-1793), quando informada que o povo francês passava fome e não tinha nem sequer pão, teria dito esta frase insensível. Pois tudo indica que seja uma invenção, criada para reforçar a fama negativa da monarca frente à população daquela época. O historiador Jacques Barzun (1907-2012) certa vez afirmou que essa história — ou variações dela — circulavam pela Europa como uma velha anedota muito anterior ao próprio nascimento de Maria Antonieta. Tudo indica que a frase tenha se eternizado graças ao livro As Confissões, do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). No sexto volume da obra autobiográfica, Rousseau relata, em determinado momento, que queria pão para acompanhar um pouco de vinho. “Finalmente, me recordei da história de uma grande princesa a quem foi dito que os camponeses não tinham pão, e que ela respondeu: ‘que comam brioche’.” Ele não menciona o nome da tal nobre. Mas nem poderia ser Antonieta, já que embora As Confissões só tenham sido publicadas em 1782 (depois da morte do autor), os textos foram escritos nos anos 1760, quando a futura rainha da França ainda era uma criança. “Se eu vi mais longe, foi por estar sobre ombros de gigantes” Isaac Newton (1641-1727), certo? Até é verdade que o grande físico inglês, que entrou para a história como aquele que descobriu a gravidade, escreveu essa sentença modesta. Mas não foi uma ideia original sua. Conforme apontam os historiadores Boller e George, Newton usou a frase em uma carta a seu colega cientista Robert Hook (1635-1703). Acontece que a mesma ideia aparecia no livro A Anatomia da Melancolia, publicado antes do nascimento de Newton pelo cientista inglês Robert Burton (1577-1640). E o pai da teoria da gravidade conhecia o trabalho de Burton. “Pigmeus apoiados sobre ombros de gigantes veem mais do que os próprios gigantes”, era a frase original. Que nem era tão original. Segundo os autores de They Never Said, há construções semelhantes tanto em obras do século 12 quanto em textos do século 6. Ou seja: como a própria frase diz, foram levas de autores se apoiando em levas de gigantes anteriores… “O Estado sou eu” A história é que o então jovem Luís 14 (1638-1715), do alto do seu absolutismo, teria proferido esta frase. Segundo o livro They Never Said, a narrativa é de que isso teria ocorrido quando ele entrou no Parlamento de Paris, interrompendo um debate que lá ocorria. Contudo, embora a declaração ajude os estudantes de Ensino Médio a memorizarem os preceitos do absolutismo francês, não há nada que indique que ela tenha ocorrido de fato. “Não há evidência que ele tenha alguma vez feito isso, mas ele certamente acreditava nas palavras que lhe foram atribuídas”, pontuam os historiadores Boller e George.
2023-03-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv29lmeedgmo
sociedade
O 'paradoxo da carne', que faz muita gente ignorar como animais são criados na hora de comer
Uma picanha recém-saída da churrasqueira pode causar em muita gente uma reação parecida. A boca começa a salivar, e vem um desejo enorme de comer a carne grelhada na brasa. Mas há pessoas que, ao pensar sobre tudo o que aconteceu antes da picanha chegar ao prato, podem sentir um certo desconforto. É o chamado “paradoxo da carne”, conflito moral que ocorre quando nosso reconhecimento dos direitos dos animais e os efeitos da produção de carne para o planeta se chocam com nossa vontade de comê-la. Há cada vez mais informações e evidências científicas a esse respeito disponíveis, e isso coloca em questão o prazer que muitos sentem ao se alimentar. A produção e o consumo de carne representam hoje um grande problema ético e ambiental no mundo: quase 15% das emissões globais de gases que provocam o efeito estufa podem ser relacionados à produção pecuária. Fim do Matérias recomendadas Cerca de 1 trilhão de animais são criados e mortos antes de chegar à mesa a cada ano - e são criados de forma que nos chocariam se o mesmo tratamento fosse dado a animais de estimação. Essas e outras informações foram reunidas a partir de artigos científicos e pesquisas feitas por Rob Percival, autor de Meat Paradox: Eating, Empathy and the Future of Meat (O paradoxo da carne: comer, empatia e o futuro da carne, em tradução livre). Percival é diretor de políticas alimentares da Soil Association, organização britânica dedicada a transformar a forma que as pessoas comem e valorizam a alimentação. Por mais de dois anos, ele compilou tudo o que podia sobre o assunto para ilustrar a dicotomia de que trata em seu livro. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Percival aponta ser muito comum que alguém tenha um distanciamento cognitivo com o alimento que come. “Raramente encontramos os animais que consumimos. Não os conhecemos. Não testemunhamos seus momentos finais e normalmente não participamos da desmontagem de seus corpos”, afirma à BBC News Brasil. Isso gera o que ele e outros especialistas chamam de ignorância deliberada, já que muitas pessoas buscam intencionalmente não se informar sobre os processos industriais nos quais os animais criados para abate estão envolvidos. O psicólogo Hank Rothgerber, autor de inúmeros estudos que abordam a psicologia do ato de comer carne animal, aponta que, em várias investigações, entrevistados disseram que não sabiam sobre práticas agrícolas e de bem-estar animal porque desejavam permanecer ignorantes a respeito. “Em muitos casos, porque sabiam que tais informações dificultariam emocionalmente a compra e o consumo de carne”, afirma Rothgerber. Já Percival aponta que, embora muita gente diga que se preocupa com o bem-estar animal, 67% admitem que não gostam de pensar nisso quando estão fazendo compras. Entre quem considera o bem-estar animal “altamente importante”, cerca de metade diz pensar nisso quando vai a um supermercado ou restaurante. “Mesmo os mais conscientes entre nós somos propensos à ignorância deliberada”, afirma Percival. Ao mesmo tempo, diz o pesquisador, o cuidado e valorização dos animais são um comportamento cada vez mais comum na sociedade hoje. Muitas pessoas se dedicam intensamente a cuidar e oferecer a melhor vida a seus animais de estimação, criam instituições de ajuda a animais, estão à frente de projetos de resgate de bichos que vivem na rua. “Somos empáticos por natureza, e o apego aos animais de estimação pode refletir uma ‘canalização’ dessa empatia”, explica Percival. A questão é que aprendemos a separar, até certo ponto, essa empatia que focamos em “animais não comestíveis” (ou de estimação) dos “animais comestíveis”. Percival acredita que os dois fenômenos – o apego aos animais de estimação e o distanciamento cognitivo do modo produção de carne – estão ligados. “Podemos ver nossa devoção aos animais de estimação como um mecanismo de enfrentamento, mitigando os sentimentos dissonantes às vezes despertados por nossa cumplicidade no mal causado a vacas, porcos e galinhas”, aponta. “Encontrar um equilíbrio é desafiador. No momento, nossos valores e nosso comportamento estão em desacordo.” Muitas vezes, as pessoas defendem uma coisa, mas fazem outra. Isso é evidente no Reino Unido, por exemplo, segundo dados reunidos pelo autor. Uma em cada três pessoas diz estar comendo menos carne, muitas vezes citando o bem-estar animal ou preocupações ambientais como a principal razão para isso. Mas isso não provoca uma redução significativa no consumo de carne. “A maioria das pessoas no Reino Unido diz que o bem-estar animal é muito importante para elas, mas são os porcos e galinhas de criação industrial que fornecem a maior parte da carne de suas dietas”, afirma Percival. A tendência é semelhante em outros lugares do mundo. Na Alemanha, por exemplo, o consumo per capita aumentou na última década. Em uma pesquisa de 2020, 42% dos alemães disseram que estavam comendo menos carne, mas os dados sobre o consumo real não apontaram um declínio relevante. Vários estudos recentes reunidos por Percival em seu livro ilustram essa dissonância comum entre o que as pessoas afirmam e fazem em relação ao consumo de animais. Uma pesquisa com 10 mil americanos apontou que 60% dos que se diziam vegetarianos haviam comido carne ou frutos do mar no dia anterior. Em outras pesquisas nos Estados Unidos, aproximadamente 7% das pessoas se identificaram como vegetarianas, mas, quando perguntadas sobre seus hábitos alimentares, apenas entre 1 e 2,5% haviam seguido uma dieta vegetariana de fato nas semanas anteriores. “Essas descobertas não são preocupantes por si só, mas ilustram o grau em que nossos comportamentos podem se divorciar de nossa autoimagem, nossa suscetibilidade a formas sutis de autoengano”, explica. As pesquisas demonstram, segundo ele, que a suposta "mudança de comportamento” é uma estratégia comum adotada em resposta ao paradoxo da carne. Ao mesmo tempo, o autor aponta que a indústria da carne tem uma influência importante sobre esse padrão de comportamento. “A indústria da carne é altamente consolidada, com alguns atores poderosos puxando os cordões nos bastidores”, diz. “As dez maiores empresas do setor no mundo são responsáveis pela vida e morte de mais de 10 bilhões de animais, mas nós [consumidores regulares] não sabemos nem quem são essas empresas.” Além de criar rótulos e marcas que podem muitas vezes ser desonestos, Percival aponta que a indústria da carne pressiona agressivamente governos e comercializa vorazmente seus produtos. “A consolidação do poder [dessas empresas no mercado] também contribui para uma sensação de distanciamento entre consumidor e o alimento que é consumido”, afirma Percival. O autor afirma, no entanto, que o fato de esse autoengano ser tão comum pode ser motivo de um certo otimismo, porque, em última análise, isso se deve ao poder de nossa empatia pelos animais. “Paradoxalmente, só agimos assim porque nos importamos.” Percival destaca que têm ocorrido avanços no desenvolvimento de proteínas alternativas, feitas à base de vegetais ou com as células dos animais, sem precisar matá-los, que facilitam a vida de quem deseja consumir menos carne de criação industrial ou parar com isso por completo. Uma vez que estes produtos se tornem competitivos em preço com as versões tradicionais, o autor acredita que poderá ocorrer uma redução significativa no consumo de carne. “A agenda ambiental também está avançando – simplesmente não há como resolver as crises do clima e da natureza sem mudanças na dieta humana”’, conclui.
2023-03-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cgx4950jxvqo
sociedade
Genômica social, a polêmica análise de propensão a traços como estresse ou introversão
Você tem tendência genética à ansiedade? Ou à introversão? Hoje em dia, é possível responder a estas perguntas, graças a um novo e polêmico campo científico: a genômica social e do comportamento. A genômica é o estudo do genoma humano. Ela permitiu grandes avanços na compreensão de doenças como o câncer. Mas as técnicas da genética “estão sendo aplicadas em uma nova frente, um campo onde ela nunca havia sido adotada antes: a psicologia e a sociologia. E estão surgindo coisas realmente controversas”, diz à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, o geneticista espanhol Manuel Pérez Alonso, professor de genética da Universidade de Valência, na Espanha, e editor da revista Genética Médica News. Há uma década, já é possível calcular nosso risco de contrair certas doenças a partir de uma amostra de saliva. A novidade é que agora podemos também conhecer nossa propensão genética, por exemplo, ao estresse, à ansiedade, ao isolamento ou aos anos de escolaridade. Fim do Matérias recomendadas A genômica social pode beneficiar as pessoas e, no futuro, poderá orientar políticas sociais mais eficazes, segundo os especialistas. Mas esses mesmos cientistas advertem sobre o risco de mau uso dessas ferramentas, até com motivações racistas. As “promessas e perigos da genômica social e do comportamento” foram o tema de um recente encontro do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano dos Estados Unidos (NHGRI, na sigla em inglês). A BBC News Mundo falou com especialistas em genética sobre as aplicações da genômica social, seus riscos e os avanços revolucionários que levaram ao desenvolvimento deste novo campo da ciência. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Dois avanços paralelos possibilitaram o surgimento da genômica social, segundo Pérez Alonso. “De um lado, tivemos um avanço tecnológico muito importante, que foi a redução de custos do sequenciamento do DNA para ter acesso às informações genômicas. A queda dos custos foi espetacular.” “E, por outro lado, houve também uma explosão no desenvolvimento de ferramentas de informática de última geração que permitem processar grande quantidade de dados”, afirma o geneticista. “A combinação destes fatores levou a uma explosão de informações, fazendo com que estudos que antes eram muito complexos agora sejam relativamente simples.” Essas duas inovações – o sequenciamento do DNA e a informática – possibilitaram o que se conhece hoje como “estudos de associação do genoma completo” (GWAS, na sigla em inglês). Os GWAS são estudos de exploração global do genoma “nos quais se pode ler cerca de um milhão de pontos do genoma que apresentam variações naturais entre as pessoas. Em genética, chamamos estes pontos variáveis de polimorfismos”, explica Pérez Alonso. As novas ferramentas de informática, por sua vez, permitem procurar correlações entre essas variações naturais e uma determinada característica visível de uma pessoa, o que é conhecido como fenótipo. “Em GWAS, estima-se a relação entre um fenótipo e cada uma dentre milhões de variantes genéticas. O fenótipo poderia ser uma doença ou alguma outra característica, incluindo uma função social ou de comportamento”, explica Daniel Benjamin, professor de economia do comportamento e genoeconomia (o estudo dos vínculos entre os dados genômicos e o comportamento) da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos Estados Unidos. Mas como é possível conseguir todas essas informações com uma simples amostra de saliva? Com base nos estudos GWAS, é calculado um número que expressa o risco de uma pessoa padecer de uma certa doença ou ter uma certa característica social ou psicológica. Este número é conhecido como “avaliação do risco poligênico” (“polygenic score” ou “polygenic index”, em inglês). Segundo Benjamin, a avaliação do risco poligênico “reúne as relações de milhões de variantes genéticas em uma única variável resumida” e mede a capacidade de propensão genética para uma determinada característica. O cientista acrescentou que “na última década, passou a ser possível criar índices de risco poligênico porque o GWAS pode ser realizado em estudos de centenas de milhares ou milhões de pessoas”. Conhecer nosso risco poligênico custa atualmente menos de US$ 200 (cerca de R$ 1.050). No caso de doenças físicas, as avaliações poligênicas são usadas para avaliar o risco genético de doenças como a hipertensão, diabetes, obesidade e alguns tipos de câncer. A hipertensão, por exemplo, tem um componente genético, segundo Pérez Alonso. Mas o professor adverte que “não há um gene causador da hipertensão, nem dois, nem três. Existem centenas de genes que contribuem para o nosso risco de hipertensão e, por isso, falamos de genética complexa ou genética multifatorial.” “A empresa pioneira neste campo é a 23andMe. Qualquer pessoa, com uma amostra de saliva, pode ter acesso ao teste e conhecer seu risco poligênico para uma série de doenças. Isso já é uma realidade.” Da mesma forma, diversas empresas começaram, nos últimos dois anos, a usar testes GWAS e calcular avaliações de risco poligênico para características sociais ou psicológicas. “Nos Estados Unidos, existem inúmeros exemplos de usos de dados genômicos sociais e de comportamento pelas empresas”, afirma a professora Daphne Martschenko, do Centro de Ética Biomédica da Universidade de Stanford, na Califórnia (Estados Unidos). “Os consumidores podem ter acesso fácil e relativamente econômico a testes genéticos diretos para o consumidor sobre capacidade matemática, nível educacional e capacidade cognitiva”, acrescenta ela. “Existem também empresas de encontros que pretendem utilizar o DNA da pessoa para determinar o perfil mais compatível. Falta regulamentação nos Estados Unidos.” A BBC News Mundo explorou três casos concretos de usos, possíveis benefícios e riscos da genômica social. O professor Pérez Alonso é sócio-fundador de uma startup do Parque Científico da Universidade de Valência, chamada Mendel Brain. A empresa desenvolveu um teste genético de 54 características da psicologia humana, segundo explicou Aitor García, CEO (diretor-executivo) da startup. Segundo García, “entre essas características, o usuário pode conhecer sua sensibilidade ao estresse ou à ansiedade, sua predisposição a ser uma pessoa introvertida ou extrovertida e outras características que fazem com que cada um de nós seja uma pessoa única”. Ele acrescentou que a Mendel Brain baseia-se em mais de 150 artigos científicos que identificaram variações genéticas associadas à maior predisposição de manifestar determinadas características, como, por exemplo, a ansiedade. Com os estudos GWAS, essas variações genéticas são identificadas e são definidos dois grupos de pessoas: as que apresentam uma característica como a ansiedade e as que não apresentam. Aplicando métodos estatísticos, “são identificadas variantes genéticas que aparecem no grupo de interesse [com ansiedade] com valor estatístico significativo e que se encontram em proporção muito baixa ou nula no grupo sem a característica”, explica García. A empresa compila então essas variações genéticas para gerar um cálculo de risco poligênico e determinar qual é a predisposição de uma pessoa com relação à média da população. García reconhece que saber nossa propensão ao estresse ou ansiedade traz o risco da “profecia autorrealizadora”, ou seja, que conhecer nossa predisposição ao desenvolvimento de uma característica facilita sua transformação em realidade. “É por este motivo que somos metódicos nas informações que incluímos nos relatórios elaborados pelos psicólogos”, segundo ele. “Estes relatórios fornecem não só a pontuação genética, mas também quanto das características manifestadas é regulado pela genética, indicando a todo momento que tanto a genética quanto o ambiente intervêm no desenvolvimento da característica e que a pessoa tem capacidade de adaptar-se”, explica ele. Pérez Alonso acredita que conhecer nossa propensão ao estresse ou à ansiedade pode ser benéfico. “Há duas décadas, houve um debate similar, quando se pensava que informar a uma pessoa seu risco de sofrer de câncer era, de alguma forma, condená-la a viver no sofrimento. Mas vimos claramente que não é assim”, relembra ele. “Se sou informado que tenho risco maior, por exemplo, de melanoma hereditário, vou ser mais cuidadoso na hora de tomar sol e, em caso de qualquer dúvida, vou visitar o dermatologista.” “Acredito que, no caso da psicologia, ocorre algo similar”, segundo o professor. “Se uma pessoa souber que tem risco mais alto que a média de ter estresse ou ansiedade, ela irá tomar precauções especiais para não acumular muitas tarefas e lutar contra o estresse de forma mais ativa.” “Um fenótipo que meus colegas e eu estudamos é o número de anos cursados em educação formal”, afirma Daniel Benjamin. O cientista da Universidade da Califórnia explica que a genética não permite prever sozinha os anos de educação formal, já que existem outros fatores de influência. “O índice poligênico para anos de educação formal explica cerca de 15% da variação entre os indivíduos. Este nível de poder de previsão é muito baixo para prever com precisão qual será o resultado para cada pessoa.” “Como comparação, a previsão do tempo dos meteorologistas profissionais prevê corretamente cerca de 95% da variação das temperaturas diárias”, afirma ele. Embora seu poder de previsão seja baixo, Benjamin destaca que conhecer o índice poligênico para anos de educação formal completados é algo valioso para fins de pesquisa. Identificar a importância do fator genético permite estudar com mais precisão a influência de outros fatores, como a situação socioeconômica dos pais ou a assistência pré-escolar. Mas Benjamin adverte sobre o risco de que “as pessoas possam interpretar mal o índice poligênico e considerar que ele prevê muito mais do que a realidade”. Por outro lado, em muitos casos, as pessoas que enviam uma amostra de saliva para uma empresa recebem não só os resultados para uma característica específica, mas seus dados genéticos “brutos”, ou seja, todas as informações obtidas ao ler o seu genoma. E, no futuro, qualquer pessoa pode carregar essas informações para plataformas online que ofereçam o cálculo de avaliações de risco poligênico. Para Pérez Alonso, “o principal risco é que uma pessoa sem o assessoramento devido possa acreditar que tudo isso representa sua vida e seu futuro”. “Isso não é uma bola de cristal que nos diz o que vai acontecer nos próximos anos. Ela somente nos oferece, no melhor dos casos, certas tendências. A contribuição genética nunca é 100 por cento.” Um dos maiores riscos da genômica, segundo os especialistas, é que estudos legítimos sejam mal interpretados ou manipulados maliciosamente com propósitos racistas. “Um dos exemplos mais terríveis de como a pesquisa genômica social e do comportamento está sendo utilizada como arma é o caso do ‘assassino de Buffalo’”, destaca Daphne Martschenko. O criminoso transmitiu o ataque ao vivo e publicou um manifesto na internet. No documento, ele se descreveu como supremacista branco e citou, como justificativa do ataque, estudos genômicos revisados por pares e publicados em revistas científicas de prestígio. Esses estudos referem-se, por exemplo, à influência genética sobre características como a aptidão cognitiva. Eles não falam em diferenças raciais, mas foram mal interpretados e distorcidos em fóruns racistas. “O pesquisador Jedidiah Carlson e seus colegas realizaram um excelente trabalho, demonstrando como a direita alternativa [movimento nacionalista branco de extrema-direita] está invocando materiais extraídos da pesquisa científica convencional”, destaca Martschenko. Apesar dos possíveis riscos, os pesquisadores consultados pela BBC News Mundo concordam que a genômica social pode fornecer importantes benefícios. “O que mais me entusiasma é que a genômica social e do comportamento promete melhorar a forma como podemos fazer ciências sociais”, destaca Daniel Benjamin. Distinguir a influência genética no caso de anos de educação formal completados, por exemplo, pode ajudar a identificar em quais outros fatores as políticas sociais devem se concentrar para que tenham maior impacto, como a assistência pré-escolar ou merendas gratuitas nas escolas. A genômica também poderia ajudar a estudar problemas como o isolamento social, segundo Pérez Alonso. Para ele, a genômica social e do comportamento “abre o caminho”. “Ninguém sabe até onde se pode chegar porque é algo realmente muito novo, mas o que se começa a ver é que ela pode ajudar a encontrar respostas a algumas perguntas”, afirma o geneticista espanhol. Com o avanço da genética, haverá cada vez mais informações disponíveis sobre os vínculos entre o genoma e as características psicológicas ou do comportamento, segundo Pérez Alonso. “Mas, ante essa revolução e a avalanche de informações e avanços, acredito que o importante é que os cidadãos tenham mais formação em genética.” Martschenko destaca que “é imensamente importante comunicar ao público as limitações das avaliações do risco poligênico”. “Um exemplo do trabalho sendo realizado para explicar as limitações dos estudos de genômica social e do comportamento é a publicação pelos pesquisadores de ‘perguntas frequentes’ sobre o alcance dos seus estudos”, acrescenta a pesquisadora da Universidade de Stanford. Em conjunto com outros colegas, Martschenko reuniu, em um repositório público, os documentos nos quais os próprios cientistas explicam, em termos mais acessíveis, como interpretar os seus estudos. A pesquisadora destaca que também existem iniciativas nos Estados Unidos para transformar a forma de ensino da biologia, de forma a refletir os avanços da genética multifatorial. Para Pérez Alonso, é importantíssimo que os professores de todos os níveis educacionais recebam atualizações sobre o que está acontecendo na área da genética. Ele afirma que “um país não pode dar as costas para esses avanços, que são verdadeiras revoluções”. “Falo também das universidades. Um professor que, no melhor dos casos, atualizou seus conhecimentos dez anos atrás, não pode continuar falando apenas da genética como características determinadas por um único gene. É triste que isso continue ocorrendo em universidades da Europa.” “Sim, existem doenças determinadas por um único gene, como a fibrose cística. Mas, no caso da psicologia, todas as características são poligênicas.” “Estamos agora diante de uma genética muito mais complexa, na qual existe uma infinidade de características determinadas ou influenciadas por centenas de genes e o risco poligênico precisará ser convertido para todos em linguagem comum e habitual”, conclui o professor.
2023-03-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cw5nd07exgyo
sociedade
Vídeo, 6 joias icônicas da históriaDuration, 8,05
Nos preparativos para a cerimônia de coroação do rei Charles 3°, do Reino Unido, chamou atenção uma ausência importante: o diamante Koh-i-Noor, que integra uma coroa pertencente à avó dele, não foi incluído nas festividades. O motivo é uma disputa diplomática com a Índia. Essa é uma das vezes em que joias icônicas - por seu valor, história ou por quem as usou - ganharam o noticiário. Neste vídeo, nossa repórter Nathalia Passarinho conta a história de 6 joias que se tornaram lendárias e símbolos não apenas de riqueza e glamour, mas às vezes também de dominação e mau agouro: além do Koh-i-Noor, conheça o diamante Orlov, o diamante Hope, a pérola La Peregrina, a Cruz de Attallah e a joia de "Bonequinha de Luxo".
2023-03-21
https://www.bbc.com/portuguese/geral-65032711
sociedade
Como indianas usam até alfinetes para se defender de assédio sexual
Quase toda mulher indiana tem uma história de abuso sexual em espaços públicos lotados para contar – alguém mexeu nos seus seios, beliscou as nádegas, acotovelou-se no seu peito ou encostou-se nela. Para combater os assediadores, as mulheres usam o que tiverem à mão. Décadas atrás, quando éramos estudantes no ensino médio e andávamos em ônibus e bondes lotados em Calcutá, no leste da Índia, minhas amigas e eu usávamos guarda-chuvas. Muitas também mantinham as unhas compridas e pontiagudas para arranhar "mãos bobas". Outras usavam o salto fino dos sapatos para atingir os homens que se aproveitavam da multidão para pressionar o pênis nas nossas costas. Muitas outras usavam um instrumento bem mais eficiente – o alfinete. Afinal, ele está em toda parte. Desde que foram inventados, em 1849, os alfinetes de segurança são usados por mulheres em todo o mundo para unir diferentes peças de roupas ou para resolver algum problema inesperado. Fim do Matérias recomendadas E mulheres de todo o mundo também o usam para revidar contra seus agressores. Poucos meses atrás, diversas mulheres da Índia foram ao Twitter dizer que sempre carregam um alfinete na bolsa ou junto ao corpo – e que esta é a arma que elas escolheram para lutar contra os assediadores em espaços cheios de gente. Uma delas, Deepika Shergill, escreveu sobre um incidente no qual ela usou o objeto. Ela contou à BBC que aconteceu em um ônibus que ela sempre pegava para ir ao escritório. O episódio ocorreu décadas atrás, mas ela ainda relembra os mínimos detalhes. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Shergill tinha cerca de 20 anos de idade e o abusador estava na casa dos 40 anos. Ela sempre usava um safári cinza (uma roupa indiana de duas peças que costuma ser usada pelas funcionárias públicas), sandálias abertas e uma bolsa de couro retangular. "Ele sempre vinha e ficava perto de mim", ela conta. "Ele se inclinava, esfregava a virilha nas minhas costas e caía em cima de mim sempre que o motorista freava." Shergill conta que, naquela época, era "muito tímida e não queria chamar a atenção para mim". Por isso, ela sofreu em silêncio por meses. Mas, uma noite, quando "ele começou a se masturbar e ejaculou no meu ombro", ela decidiu que bastava. "Eu me senti suja", relembra ela. "Quando cheguei em casa, eu tomei um banho muito longo. Não contei nem à minha mãe o que havia acontecido comigo." "Naquela noite, não consegui dormir e até pensei em sair do emprego, até que comecei a pensar em vingança. Eu queria feri-lo, machucá-lo, fazer com que ele nunca mais fizesse aquilo comigo", ela conta. No dia seguinte, Shergill trocou as sandálias baixas por sapatos de salto alto e embarcou no ônibus armada com um alfinete de segurança. "Assim que ele chegou e ficou perto de mim, levantei do meu assento e amassei os dedos dos pés dele com os saltos. Eu o ouvi ofegante e fiquei muito alegre", afirma ela. "Então usei o alfinete para furar seu antebraço e rapidamente saí do ônibus." Shergill continuou pegando aquele ônibus por mais um ano, mas aquela foi a última vez que o encontrou. É uma história impressionante, mas não é algo raro de acontecer. Uma colega de Shergill, na casa dos 30 anos, narra um incidente em que um homem tentou apalpá-la várias vezes em um ônibus noturno, entre as cidades de Cochin e Bangalore, no sul da Índia. "No início, eu me livrava dele, achando que fosse acidental", ela conta. Mas, quando ele continuou, ela percebeu que era deliberado – e o alfinete de segurança que ela usava para manter o cachecol no lugar "salvou o dia". "Eu o espetei e ele se afastou, mas continuou tentando mais e mais vezes e eu continuei espetando de volta. Por fim, ele foi embora", ela conta. "Ainda bem que eu tinha o alfinete, embora eu me sinta uma boba por não ter me virado e lhe dado um tapa." "Mas, quando eu era mais jovem, eu tinha medo que as pessoas não me apoiassem se eu desse o alarme", afirma ela. Ativistas afirmam que o medo e a vergonha da maioria das mulheres incentiva os abusadores e dissemina ainda mais o problema. Em uma pesquisa online em 140 cidades indianas em 2021, 56% das mulheres contaram que já sofreram abuso sexual no transporte público, mas apenas 2% foram à polícia. A ampla maioria afirma que tomou iniciativas próprias ou preferiu ignorar a situação, muitas vezes se mudando de lugar para não criar uma cena ou preocupadas para não agravar o contexto. Mais de 52% das mulheres entrevistadas contaram que já desistiram de oportunidades de educação e emprego, devido à "sensação de insegurança". "O medo da violência sexual afeta a mobilidade e o lado psicológico das mulheres, mais do que a violência em si", afirma Kalpana Viswanath, uma das fundadoras da organização social Safetipin, que trabalha para tornar os espaços públicos seguros e inclusivos para as mulheres. "As mulheres começam a impor restrições a si próprias, o que as impede de terem cidadania igual à dos homens", explica ela. "O impacto sobre a vida das mulheres é muito mais profundo que o fato de serem molestadas." Viswanath indica que o abuso das mulheres não é apenas um problema indiano. A questão é mundial. Uma pesquisa com mil mulheres realizada pela Fundação Thomson Reuters em Londres, Nova York (EUA), Cidade do México, Tóquio (Japão) e no Cairo (Egito) concluiu que "as redes de transporte são ímãs para os predadores sexuais, que usam as aglomerações dos horários de rush para esconder seu comportamento e como desculpa se forem pegos." Viswanath afirma que mulheres da África e da América Latina contaram a ela que também carregam alfinetes de segurança. E, segundo a Smithsonian Magazine, as mulheres já usavam alfinetes de chapéu nos anos 1900 nos Estados Unidos, para ferir os homens que chegassem perto demais delas. Mas, mesmo ocupando os primeiros lugares em diversas pesquisas globais sobre a escala de abusos públicos, a Índia não parece reconhecer que este seja um grande problema. Viswanath afirma que isso ocorre, em parte, porque a ausência de queixas faz com que o abuso não seja incluído nas estatísticas criminais. E a influência do cinema popular nos ensina que o abuso é apenas uma forma de cortejar as mulheres. Mas Viswanath afirma que, nos últimos anos, a situação melhorou em várias cidades. Na capital indiana, Nova Déli, os ônibus têm botões de pânico e câmeras de circuito fechado. Foram contratadas mais mulheres motoristas e foram elaboradas sessões de treinamento para sensibilizar os motoristas e cobradores para que atendam melhor as mulheres passageiras. Policiais também foram destacados para os ônibus. A polícia lançou ainda aplicativos e números de telefone de emergência que as mulheres podem usar para ter ajuda. Mas Viswanath afirma que nem sempre é questão de policiamento. "Acho que a solução mais importante é que precisamos falar mais sobre o assunto. É preciso ter uma campanha estruturada nos meios de comunicação, que coloque na cabeça das pessoas o que é comportamento aceitável e o que não é", segundo ela. Até que isso aconteça, Shergill, minha colega e milhões de mulheres indianas precisarão manter seus alfinetes ao alcance da mão. - Este texto foi publicado em
2023-03-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c84dylxle5xo
sociedade
Como semana de trabalho de 4 dias pode beneficiar meio ambiente
Em 2011, Simon Ursell e os três outros cofundadores da recém-criada consultoria ambiental Tyler Grange, com sede em Gloucestershire, no Reino Unido, decidiram dar a todos os seus funcionários um dia de folga por mês para que se dedicassem ao trabalho voluntário. Eles haviam percebido que muitos dos seus novos funcionários já usavam seu tempo livre trabalhando como voluntários em organizações de proteção da vida selvagem. "Nossos ecologistas sempre adoraram ser ecologistas", afirma Ursell. Mas, no ano passado, a Tyler Grange tomou uma medida que algumas pessoas considerariam muito mais radical para o bem-estar dos funcionários: ela tentou eliminar um quinto da semana de trabalho de todos eles. A empresa participou do maior teste da semana de quatro dias de trabalho já realizado no mundo, que ocorreu no Reino Unido entre junho e dezembro de 2022. Fim do Matérias recomendadas A iniciativa piloto pretendia determinar se as empresas conseguiriam manter a produtividade com menos dias de trabalho — e, o mais importante, sem reduzir o salário dos seus funcionários. Os gerentes e demais funcionários da Tyler Grange comemoraram a conquista com entusiasmo. Seus resultados demonstraram que a produtividade diária aumentou em 22%. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas Ursell também estava interessado em avaliar outro resultado: o impacto da semana de trabalho mais curta sobre a pegada de carbono da empresa. E ele conta que a semana de quatro dias acabou funcionando surpreendentemente bem, também para este propósito. "Em média, observamos uma redução de 21% da quilometragem percorrida de carro", observa ele, com um sorriso de contentamento. A Tyler Grange eliminou reuniões e viagens desnecessárias. E muitos funcionários usaram seus dias de descanso adicionais para se dedicar ainda mais ao voluntariado climático. A discussão em torno da semana de trabalho de quatro dias está ganhando impulso em todo o mundo. A organização sem fins lucrativos 4 Day Week Global — que coordenou o teste no Reino Unido — já havia conduzido pilotos nos Estados Unidos e na Irlanda. O setor público da Islândia e empresas da Espanha, Suécia, Bélgica, Japão e Nova Zelândia também já testaram o impacto da semana de trabalho mais curta. Mas o teste do Reino Unido foi o maior já realizado. Ele envolveu mais de 60 empresas e organizações. Os resultados foram publicados em 21 de fevereiro e algumas das empresas estão apresentando resultados mais amplos que confirmam as indicações de estudos anteriores: a semana de trabalho mais curta pode ajudar o planeta. De 70 empresas participantes do teste realizado em 2022 no Reino Unido, 56 afirmaram que planejam manter a semana de trabalho de quatro dias após o fim do piloto. Elas mencionaram benefícios como o aumento da produtividade e economias financeiras significativas para os funcionários, como os custos de transporte e creches. Os funcionários parecem especialmente dispostos a fazer com que as semanas de trabalho mais curtas passem a ser o padrão, o que não é surpreendente. Mas, embora a semana de trabalho de quatro dias possa parecer promissora em alguns setores, como o de tecnologia, ainda se questiona sua viabilidade em setores mais tradicionais. Na área ambiental, a economista e socióloga Juliet Schor, do Boston College, nos Estados Unidos, e pesquisadora-chefe da 4 Day Week Global que trabalhou em dois pilotos (no Reino Unido e nos EUA), defende que a semana de trabalho mais curta é fundamental para atingir a redução de emissões de carbono de que o mundo precisa. "Os benefícios climáticos são os mais difíceis de se avaliar, mas temos muitas pesquisas indicando que, ao longo do tempo e à medida que os países diminuem as horas de trabalho, suas emissões de carbono também são reduzidas", afirma ela. Uma redução de 10% das horas de trabalho representa uma queda de 8,6% da pegada de carbono, segundo um estudo de 2012, do qual Schor é uma das autoras. Um dos fatores que mais contribuíram com os benefícios climáticos da semana de trabalho de quatro dias foi a redução dos deslocamentos. Dados do teste realizado no Reino Unido obtidos pela BBC revelam redução de 10% ao longo do período piloto, de 3,5 horas para 3,15 horas por semana, entre as companhias que acompanharam o tempo de deslocamento. É uma redução significativa, mas a economia pode atingir 15-20%, segundo Schor. No teste americano, também realizado em 2022, a redução foi ainda maior, de 3,56 para 2,59 horas por semana — uma queda de 27%. Os dois testes também concluíram que muitas pessoas passaram o tempo ganho com a redução do deslocamento ou das horas de trabalho em atividades de baixo consumo de carbono, como caminhadas ou hobbies domésticos. Os dados do Reino Unido também demonstram que a mudança para a semana de trabalho mais curta gerou aumento das ações em prol do meio ambiente. Os participantes do teste passaram mais tempo em trabalhos voluntários para causas ambientais e cuidaram mais da reciclagem e da compra de produtos ecológicos. "Quando as pessoas trabalham menos, elas têm mais tempo livre para atividades sustentáveis, que, muitas vezes, tomam bastante tempo", segundo a pesquisadora Stefanie Gerold, da Universidade de Tecnologia de Brandemburgo, na Alemanha. Ela não estava envolvida nos testes nos EUA e no Reino Unido, mas desenvolveu modelos de redução do tempo de trabalho que foram adotados por diversas empresas austríacas. O voluntariado aumentou entre os funcionários da Waterwise — uma organização sem fins lucrativos que participou do teste no Reino Unido — e da plataforma de crowdfunding Kickstarker, que participou do teste nos EUA. Jon Leland, vice-presidente e chefe de sustentabilidade da Kickstarter, afirma que os funcionários da empresa estavam mais dedicados, tanto cívica quanto socialmente. E, às vezes, surgem as surpresas. Um efeito imprevisto chamou a atenção da Tyler Grange durante o teste no Reino Unido: as emissões de carbono relativas ao envio e armazenamento de dados caíram significativamente. Como um grande centro de armazenagem de dados pode consumir a mesma eletricidade de 50 mil casas, esta foi outra vitória significativa. "A ausência de tráfego comercial [online] às sextas-feiras trouxe impacto substancial às emissões, talvez ainda mais significativo que a redução dos deslocamentos", afirma Ursell. A empresa não rastreou o uso exato de dados, mas suspeita que a queda veio da equipe que "evitou comunicações internas desnecessárias". O aumento da eficiência evitando a sobrecarga de trabalho é a questão principal da semana de trabalho de quatro dias. E a eficiência também envolve o consumo de energia. O aumento dos dias sem trabalhar pode resultar em uso mais eficiente da energia pelos funcionários, segundo Laura White, gerente de pesquisas e projetos da Waterwise. "As pessoas são conscientes quando estão em casa, porque, no fim, são elas que pagam a conta", segundo ela. Entre quase todas as empresas que participaram do teste no Reino Unido, o veredicto foi positivo: a semana de trabalho mais curta é uma bênção para os negócios e para o meio ambiente. Ter mais dias sem trabalhar no futuro é ideal para o planeta, então? Calma, a resposta não é tão simples. Alguns especialistas ressaltam que a redução das horas de trabalho pode apresentar outros riscos para o meio ambiente. É difícil prever como cada pessoa irá utilizar seu dia de folga adicional. Elas podem embarcar em um voo internacional altamente poluente para comemorar sua sexta-feira de descanso remunerado. "O fim de semana de três dias pode gerar maior consumo de bens e serviços com uso intensivo de carbono", afirma Anupam Nanda, professor de economia urbana e imobiliária da Universidade de Manchester, no Reino Unido. "Se você acabar pegando um avião ou dirigindo por centenas de quilômetros para atividades de lazer, dificilmente ajudará a combater a crise climática", diz ele. Os testes no Reino Unido e nos EUA não mediram o impacto total de carbono das eventuais atividades das pessoas no seu dia de descanso adicional. O pesquisador Philipp Frey, do Instituto de Avaliação de Tecnologia e Análise de Sistemas de Karlsruhe, na Alemanha, e autor do livro The Ecological Limits of Work ("Os limites ecológicos do trabalho", em tradução livre) compreende a preocupação sobre o possível aumento das emissões de lazer, mas afirma que não parece ser algo válido no momento. Ele menciona um estudo que demonstrou que as pessoas na Europa e na América do Norte têm pegada de carbono menor no fim de semana. Segundo o estudo, as emissões de domingo na Europa e na América do Norte, de forma geral, ficaram 40% abaixo da média, enquanto as emissões durante a semana de trabalho foram cerca de 20% maiores que a média. As emissões de carbono no fim de semana não diminuíram no leste asiático. Dados da Administração de Informações de Energia dos Estados Unidos também demonstram que os americanos queimam cerca de 10% menos combustíveis fósseis nos fins de semana que durante a semana de trabalho. Por isso, Frey acredita que transformar a sexta-feira em mais um dia do fim de semana pode representar uma melhoria significativa das emissões de combustíveis fósseis. E, para Leland, "estes números demonstram que a semana de quatro dias pode realmente ter um impacto substancial". Alguns dados dos testes também parecem ser relativamente animadores. O número de viagens domésticas de lazer dos profissionais envolvidos no programa piloto britânico caiu 5,5% em quatro semanas, embora o número de voos internacionais para lazer tenha permanecido quase sem alteração. Enquanto isso, o estudo americano não encontrou alterações nas viagens domésticas para lazer. Já as viagens internacionais mais do que dobraram, embora a base seja pequena. A Tyler Grange, a Waterwise e a Kickstarter afirmam que não observaram aumento das viagens de longa distância. Mas vale a pena observar que as três consideram-se empresas com preocupações climáticas. "O benefício ambiental foi a primeira razão que me levou a entrar na campanha da Semana de Quatro Dias", afirma Leland, da Kickstarter. Já os outros funcionários das companhias podem ser menos ecológicos quando o assunto é decidir como passar seus dias de folga. É por isso que subestimar o risco do aumento das emissões relativas ao lazer não é uma boa ideia, segundo Gerold. "Não existem muitas evidências empíricas e você realmente não sabe como as pessoas usariam o seu tempo adicional." Para ela, é preciso ter políticas adicionais para influenciar o tempo de lazer das pessoas, segundo Gerold. E Nanda concorda. "Precisamos investir em infraestrutura verde", segundo ele. "Instalações ecológicas e espaços verdes na vizinhança devem ser criados nas áreas urbanas, para incentivar as pessoas a passar seu tempo livre de forma sustentável." Ainda assim, apesar do crescente número de testes, ainda temos muito poucos dados para compreender totalmente quais seriam os impactos climáticos da mudança para quatro dias de trabalho por semana. Pode ser difícil calcular com precisão alguns dos benefícios climáticos, devido a outros fatores confluentes. Em 2022, por exemplo, os preços da energia dispararam, o que dificultou a análise do impacto da semana de quatro dias sobre eventuais reduções observadas no consumo de energia das empresas. "Um teste de seis meses pode não ser suficiente nestes casos", afirma Schor. De qualquer forma, as preocupações ambientais não são o único fator determinante para muitas das empresas envolvidas no teste. É por isso que o impacto climático não aparece predominantemente nos dados rastreados, em comparação com os efeitos socioeconômicos como a produtividade e o equilíbrio entre a vida pessoal e o trabalho. Às vezes, as empresas simplesmente não sabem que pode haver benefícios para o clima. "Encontrei muito poucas companhias que realmente pensaram na semana de quatro dias como algo que tivesse impacto positivo para o meio ambiente", afirma Ursell. E outros empregadores simplesmente têm prioridades diferentes. "Os benefícios climáticos estão aí, mas não parecem tão tangíveis para a maioria das empresas", segundo K. T. McBratney, fundadora da startup de tecnologia OwnTrail, que participou do teste nos Estados Unidos. "Parece uma gota no balde." Ela afirma que são necessários novos pilotos para conseguir dados precisos. "As empresas têm a obrigação de adotar essas iniciativas para incentivar as pesquisas." A semana de quatro dias de trabalho realmente é algo que todas as empresas podem adotar? "Na prática, não há desvantagens e sua adoção generalizada é viável", segundo Jon Leland, mas "é preciso coragem para fazê-lo". Às vezes, os empregadores precisam apenas de um empurrãozinho. É aqui que as ações do governo entram em cena. "É preciso ter ações políticas para direcionar esta grande mudança. Os governos nacionais precisam mostrar o caminho", afirma Philipp Frey. Recentemente, o governo espanhol confirmou que irá pagar até 150 mil euros (cerca de R$ 828 mil) para as empresas de pequeno e médio porte que testarem a semana de trabalho de quatro dias. Frey ressalta que o apoio governamental pode também materializar-se de outras formas, como reduzindo por lei o limite máximo de horas de trabalho ou com o próprio governo agindo como pioneiro. "O setor público é um dos maiores empregadores em todos os países europeus", explica ele. "Se ele oferecer a semana de quatro dias [aos seus servidores], as empresas particulares precisarão ficar competitivas para atrair funcionários." Além disso, quanto mais empresas se aventurarem neste campo, mais os governos serão pressionados a agir. Para Stefanie Gerold, "esses programas piloto são muito importantes para forçar a agenda política, especialmente se os benefícios climáticos entrarem nas discussões". E, por fim, a semana de trabalho de quatro dias também tem uma vantagem sobre muitas outras soluções climáticas: ela não é considerada um sacrifício. "A semana de trabalho mais curta sem redução de salário é uma satisfação", afirma Leland. "É algo que todos nós queremos."
2023-03-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz9j10dmgqzo
sociedade
Alfred Kinsey, o homem que soltou 'bomba atômica sexual', destruindo tabus e dando origem a revolução de costumes
Em 1938, o zoólogo Alfred Kinsey, até então pouco conhecido nos Estados Unidos, abandonou seus estudos sobre as vespas e começou a dedicar-se à pesquisa sexual. Seu trabalho neste campo o tornaria uma das figuras mais controversas do seu tempo. Kinsey estudou a vida sexual de mais de 11 mil americanos e revelou tudo o que, até então, era omitido em público sobre os hábitos sexuais do país. Seu primeiro livro Sexual Behavior in the Human Male ("Comportamento sexual no homem", em tradução livre) foi publicado em 1948, com enorme impacto. E seu outro livro, Sexual Behavior in the Human Female ("Comportamento sexual na mulher"), veio a público cinco anos depois, causando uma explosão ainda maior. Era uma época em que o cirurgião-geral do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, por exemplo, foi interrompido quando falava no rádio, porque ele disse "sífilis", em vez de "uma doença social". Para informar sobre uma mulher que havia sido brutalmente ferida, os jornais escreviam que ela "não havia sido agredida criminalmente". Fim do Matérias recomendadas Também a palavra "violação" não era usada com relação ao ato sexual sem consentimento. E não existia a educação sexual nas escolas. Em meio a tudo isso, os estudos científicos de Alfred Kinsey levaram as pessoas não só a pensar naquilo que não se podia mencionar, mas também a falar sobre o assunto. Os livros diziam que o sexo é algo normal e que os rótulos impostos à sexualidade são muito arbitrários. As pesquisas e seu autor ficaram mundialmente famosos e polêmicos. As opiniões se dividiam. Havia quem criticasse e quem aplaudisse. Os que criticavam se armaram contra tudo o que o livro dizia e suas consequências. Já os que aplaudiam fizeram algo mais contundente: eles se informaram e, com esses conhecimentos, deram os primeiros passos rumo a uma das revoluções que mais transformaram a sociedade - a revolução sexual. Tudo começou na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. Kinsey tinha doutorado em biologia pela Universidade Harvard e chegou a Indiana como professor auxiliar de zoologia em 1920. Por 17 anos, nenhum indício demonstrava o que iria acontecer. Ele passou todos esses anos fascinado pelas vespas-das-galhas e conseguiu boa reputação por seus estudos. Mas houve algo que o levou a abandonar os insetos e concentrar-se nos seres humanos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Eu lecionava no curso de biologia geral e os estudantes se aproximavam de mim com problemas relacionados ao sexo", explicou ele mesmo em uma entrevista na televisão. Esse papel informal de Kinsey como assessor sexual foi oficializado em 1938, quando ele organizou um curso de casamento para estudantes que causou grande rebuliço no campus. Ele falava de todos os aspectos da vida matrimonial, incluindo, é claro, o sexo. "Para nós, foi espetacular, pois éramos todos realmente muito ignorantes", contou a aluna Alice Blinkley no documentário televisivo da BBC Alfred Kinsey, the man who invented modern sex ("Alfred Kinsey, o homem que inventou o sexo moderno", em tradução livre), de 1996. "Eu não conhecia nem as palavras que ele usava", acrescentou Dorothy McCrea, outra de suas alunas. "Depois, conversei com uma amiga mais velha, casada, que estava muito interessada pelo que estavam nos ensinando e nunca havia ouvido falar em clitóris, de forma que percebi que eu estava passando adiante os conhecimentos do curso de casamento." Foi o desconhecimento dos estudantes que despertou a curiosidade científica de Kinsey. Kinsey propôs-se a estudar o que os americanos realmente faziam na cama, convencendo milhares de pessoas a responder perguntas íntimas sobre suas experiências e opiniões reais. Ele começou percorrendo a universidade em busca de voluntários, pedindo que lhe contassem seu histórico sexual. Isso fez surgir forte oposição de pessoas da comunidade, que achavam que não se devia falar sobre isso. E este grupo foi reforçado por ministros metodistas e católicos, que foram a Indianápolis e causaram furor. "A forma mais segura de conseguir com que algo seja feito é continuar fazendo", afirmou Kinsey. "Não pedi permissão a ninguém para começar esta pesquisa e não havia mais ninguém trabalhando comigo." Para alguém que desafiava as opiniões conservadoras, Kinsey levava uma vida muito convencional. Casado e feliz, raramente bebia e desfrutava de prazeres muito tradicionais. Ele cultivava lírios e se reunia com os amigos nos fins de semana para ouvir música clássica na sua casa. Sua ética profissional era muito rígida e era antiquado em alguns aspectos da sua vida privada. Mas, quando o assunto era a sexualidade, Kinsey era muito liberal. A universidade cancelou seu curso de casamento, mas ele não abandonou as pesquisas. Chegou até a ampliar sua rede, viajando cada vez mais longe no seu tempo livre e com seu próprio dinheiro, em busca de novas pessoas com quem falar. Ele conseguiu centenas de voluntários, em diversos lugares, que revelaram seus segredos respondendo perguntas específicas e rigorosamente tabuladas. Ele chegou a informar que 120 desses voluntários eram homossexuais. Na época, eles eram invisíveis, já que precisavam viver escondidos, sob pena de prisão. Em 1943, a Fundação Rockefeller interessou-se pelas suas pesquisas e outorgou a Kinsey uma subvenção inicial de US$ 23 mil (cerca de R$ 120,7 mil). Alfred Kinsey pôde finalmente financiar seu sonho. Ele contratou pessoas e começou a treiná-las. A entrevista básica consistia de cerca de 300 perguntas, que começavam com os dados demográficos e, em seguida, cobriam todas as atividades sexuais possíveis. Para não incomodar os voluntários, os pesquisadores precisavam decorar as perguntas. E, para garantir a confidencialidade das respostas, elas eram registradas em código e marcadas em cartões perfurados da IBM. A equipe visitou escolas, fábricas, fazendas, prisões... qualquer lugar onde poderiam ser encontrados voluntários, incluindo policiais e criminosos, prostitutas e donas de casa, trabalhadores e empresários, pais e filhos. E, na década de 1940, quando os Estados Unidos entraram em guerra, Kinsey chegou à capital dos exageros sexuais, Nova York, conhecendo apenas uma ex-aluna. Ele acabou sendo recebido pelos mais atrevidos artistas e escritores, como o dramaturgo Tennessee Williams e o escritor Gore Vidal. "Todos, desde [o músico] Lenny Bernstein até eu, contamos a ele nosso histórico sexual", declarou Vidal à BBC. Mas houve contratempos. Certa vez, o proprietário de um hotel suspeitou que as entrevistas tinham relação com a prostituição e questionou Kinsey a respeito. Quando ficou sabendo do que realmente se tratava, ficou ainda mais indignado. "Não vou permitir que a mente das pessoas seja despida no meu hotel!", exclamou ele. Depois de dez anos despindo milhares de mentes e centenas de horas de análise, saiu o primeiro livro, detalhando o comportamento masculino. A editora especializada em medicina WB Saunders não previu que a obra seria uma granada pronta para explodir na puritana sociedade americana. O livro foi lançado sem aviso, nem publicidade. E, para assombro de todos, começou a ser vendido nas livrarias genéricas. Foi um grande sucesso. Em questão de meses, foram vendidas 200 mil cópias. É preciso considerar que era um livro de difícil leitura, com 804 páginas, repletas de tabelas e avaliações. As descobertas de Kinsey foram surpreendentes. Ele revelou que, entre os homens casados, apenas 50% dos orgasmos que eles tiveram na vida ocorreram nas relações sexuais matrimoniais. A outra metade provinha de fontes moralmente desaprovadas e, muitas vezes, ilegais. Kinsey também concluiu que mais de três quartos dos homens entrevistados haviam tido relações sexuais antes do casamento; que um terço deles tinha relações extramatrimoniais; e 37% tiveram pelo menos uma experiência homossexual. O biólogo também introduziu a escala Kinsey, para classificar as pessoas conforme seu grau de atração ou comportamento sexual pelo mesmo sexo ou pelo oposto: Foi a primeira vez em que uma pesquisa científica reconheceu que não existem apenas duas opções. A curiosidade e a notoriedade do livro renderam fama mundial a Alfred Kinsey. Os números foram tão surpreendentes que, desde o princípio, surgiram dúvidas sobre as bases estatísticas do relatório. Em 1950, a Associação Americana de Estatística foi até Indiana avaliar seu trabalho - que foi aprovado, mas com reservas. Também foi questionada a representatividade da amostra da pesquisa, com razão. Por um lado, todos os entrevistados eram voluntários, o que costuma influenciar o caráter dos dados. Neste caso, as pessoas dispostas a falar sobre sexo costumam ser sexualmente mais abertas. E, por outro lado, muitos voluntários eram brancos, de classe média e com educação. Eles não representavam os Estados Unidos como um todo. Mas, para a maioria dos críticos, a metodologia não importava. O caso é que, para eles, o relatório parecia estar em um vácuo moral. "Seu livro afirmava cientificamente que podemos fazer o que quisermos, sem nenhum inconveniente, e que já estamos fazendo todo o tempo", criticou em 1996 Judith Reisman, uma das autoras do livro Kinsey, Sex and Fraud ("Kinsey, sexo e fraude", em tradução livre). "Ele falou sobre o que estava acontecendo e não sobre o que deveria estar acontecendo." Por tudo isso, se falar sobre o comportamento sexual dos homens já havia causado fortes ondas, o passo seguinte de Kinsey provocaria um tsunami. Em 1953, Kinsey e sua equipe publicaram o livro Sexual Behavior in the Human Female. Era o resultado da análise de quase seis mil entrevistas. Ele revelou, por exemplo, que 25% das esposas entrevistadas cometiam adultério e que, no casamento, cerca de um terço das mulheres nunca havia tido um clímax sexual, ao contrário de praticamente todos os homens. Além disso, 50% das mulheres haviam tido sexo antes do casamento e cerca de 10% das noivas estavam grávidas no dia das núpcias. Kinsey afirmou que as chamadas ninfomaníacas, muitas vezes, eram apenas mulheres que tinham mais orgasmos do que o médico que as atendia. Ele destacou também que não é verdade que a resposta sexual seja mais emocional do que física para as mulheres. De fato, segundo ele, cerca de 14% relataram orgasmos múltiplos em um único ato sexual. Ele escreveu: "a igreja, o lar e a escola são as principais fontes de inibições sexuais", que geram os "sentimentos de culpa que muitas mulheres levam consigo nos seus casamentos". A lição do primeiro livro foi aprendida e, desta vez, os repórteres receberam cópias do estudo antes do lançamento. Os jornais enfrentaram o dilema de informar ou não sobre o estudo de Kinsey. Os que publicaram notas refletiram a profunda polarização de opiniões existente no país. O editorial do Jersey Journal declarou que "o Dr. Alfred C. Kinsey lançou uma bomba atômica, projetada para destruir o que ainda resta de moralidade sexual nos Estados Unidos". Já o editorial do Newark Star-Ledger afirmou que Kinsey havia lançado uma bomba que "cai em cheio sobre todas as estruturas da moralidade sexual". "Quando a nuvem de destruição se diluir, pouco pode restar intacto", prossegue o jornal. "O sexo terá perdido seu caráter pessoal íntimo e se tornará a mais casual e comum de todas as atividades biológicas do animal humano." Mas o jornal The Patriot, de Harrisburg, na Pensilvânia, declarou que "Kinsey representa um desafio para todos os que mantiveram uma posição perigosamente reservada sobre o ensinamento das relações sexuais". Este desafio para os pais, profissionais da saúde e para o clero era "fornecer informações adequadas sobre este tema proibido, para que a geração mais jovem possa aprender sobre o sexo sem hipocrisia e sem as conotações imorais proporcionadas em conversas de fontes desinformadas". O Los Angeles Times comentou: "acreditamos que o primeiro passo rumo a um melhor ajuste familiar e comunitário seja conhecer os fatos. Os conceitos errôneos e temores causaram muitas tragédias pessoais..." "Acreditamos que o bem que se obtém com a publicação dessas descobertas supera em muito a relutância de algumas pessoas de mencionar o assunto", prossegue o jornal. O livro sobre as mulheres foi publicado na era McCarthy, que foi um momento particularmente conservador da história dos Estados Unidos. O ícone da feminilidade americana na época era a atriz Doris Day, representando esposas dedicadas a tarefas domésticas. Foi quando chegou o livro que dizia que essas mulheres maravilhosas se masturbavam e, às vezes, eram infiéis. E grande parte do público americano simplesmente não conseguia suportar aquilo. Kinsey foi acusado de ser comunista e tentar debilitar o país. Em 1954, um subcomitê do Senado americano acusou a Fundação Rockefeller, fonte da maior parte do apoio de Kinsey. Os livros foram veementemente rechaçados e o financiamento da fundação não foi renovado. As críticas continuaram se acumulando e a saúde do cientista começou a deteriorar-se. Kinsey morreu em 25 de agosto de 1956, com 62 anos de idade. Nas duas décadas que se seguiram, estendeu-se pelo mundo uma mudança nas atitudes com relação ao sexo. Era a revolução sexual, mas Kinsey não viveu para presenciá-la. "Fizemos esta pesquisa porque descobrimos uma lacuna no nosso conhecimento", explicou Kinsey na sua entrevista para a TV. "E, na história da ciência, sempre que preenchemos uma lacuna, a humanidade, em última instância, é quem pode se beneficiar." A "bomba atômica" de Kinsey não redesenhou instantaneamente o tecido da sociedade, mas foi um poderoso estimulante para a revolução sexual. Seus livros abriram o caminho para estudos sérios sobre a sexualidade. Pesquisadores pioneiros, como os americanos William H. Masters e Virginia E. Johnson, admitiram que não teriam conseguido realizar suas pesquisas sem os trabalhos anteriores de Kinsey. Embora todos os aspectos da sua pesquisa tenham sido criticados e contestados diversas vezes, seus livros iluminaram cantos que, até então, eram obscuros e desafiaram as pessoas a retirar as vendas em relação ao sexo, sem temer nem condenar aquilo que era absolutamente normal. E, por mais esforços que fizessem seus opositores, este gênio nunca mais retornou à lâmpada. Mesmo que esses esforços persistam até hoje. Em fevereiro de 2023, a Câmara dos Representantes de Indiana, nos Estados Unidos (equivalente à assembleia legislativa daquele Estado) aprovou o bloqueio do financiamento estadual do Instituto Kinsey. Esse financiamento enfrentou, por muito tempo, críticas dos conservadores por pesquisar a sexualidade e pelo legado do trabalho de Kinsey. Eles culpam o pesquisador por contribuir para a liberalização da moral sexual.
2023-03-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv2qd3j1p49o
sociedade
4 coisas que você talvez não limpe em casa, mas deveria
Cada lar é diferente do outro, mas a limpeza da casa costuma ser uma das prioridades de todos os seus moradores. Algumas pessoas fazem a limpeza todos os dias. Outras, uma vez por semana. Ainda outras complementam a limpeza de rotina com uma faxina profunda, semestral ou anual. Segundo uma pesquisa do Instituto Nacional da Limpeza dos Estados Unidos, 70% dos lares realizam pelo menos uma limpeza anual completa. Para muitos, o mais importante é a cozinha e, para outros, o banheiro. Costumamos concentrar os esforços no forno, no vaso sanitário e nos tapetes, onde sabemos com certeza que se acumulam germes, fungos, ácaros e bactérias. Fim do Matérias recomendadas Mas existem alguns objetos e espaços específicos aos quais nem sempre prestamos a mesma atenção. Neles, também se acumula sujeira e, às vezes, em proporção até maior do que outros lugares mais óbvios. Você talvez não limpe estes quatro objetos da casa... mas deveria! Uma pesquisa da Organização de Saúde e Segurança Pública dos Estados Unidos (NSF, na sigla em inglês) concluiu que um dos objetos de cozinha com maior número de germes é a cafeteira. Os pesquisadores encontraram até 67 tipos de germes diferentes dentro das cafeteiras examinadas. Existem dois problemas na hora de fazer café. Primeiro, a água quente não consegue retirar todos os germes e a cafeína é perfeita para o crescimento de bactérias. E, durante o processo, ocorre um acúmulo de minerais que acaba formando a borra que pode dificultar o funcionamento da máquina. Por isso, os especialistas recomendam limpar a cafeteira pelo menos uma vez a cada três meses. E, nos aparelhos que usam cápsulas, recomenda-se a limpeza após o uso de 100 unidades. Sim, limpar o colchão não é fácil. Mas o corpo humano produz 1,5 grama de pele morta todos os dias, que invariavelmente acabam ficando no colchão. Um estudo publicado pela revista Royal Society Open Science em 2018 demonstrou a limpeza do colchão onde dormia um ser humano, em comparação com outro, usado por um chimpanzé. O resultado foi que os seres humanos sujam o colchão quase 30% mais que os seus primos das árvores. Essa sujeira é o acúmulo de pele morta, pó e suor, que são solo fértil para ácaros e bactérias. Os especialistas destacam que, nos últimos anos, foram desenvolvidos novos métodos de limpeza dos colchões. E também é recomendável colocar o colchão no sol para reduzir a umidade e passar o aspirador para controlar a presença de mofo. O combate às mudanças climáticas trouxe atenção especial aos sacos plásticos descartáveis, que começaram a ser substituídos por produtos mais ecológicos. Muitos lares passaram a adotar as sacolas reutilizáveis, para evitar o consumo de sacos descartáveis. Mas elas nunca saem do carro ou do carrinho do supermercado. "Essas sacolas contêm mais vestígios de material fecal e de bactérias como E. coli que a nossa roupa de baixo", segundo o microbiólogo Charles P. Gerba, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, declarou ao portal de notícias AARP. "Se você usar as mesmas sacolas para carregar carne crua e vegetais crus, pode fazer uma 'salada de salmonela' com muita facilidade", acrescentou Gerba. O Instituto Nacional da Limpeza dos Estados Unidos recomenda que as sacolas reutilizáveis sejam lavadas à mão (pois a lavadora pode destruí-las) pelo menos uma vez por semana. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A esponja da cozinha serve exatamente para retirar a sujeira mais difícil dos pratos e panelas. E, como usamos sabão para a lavagem e até pela sua própria função de limpar e desengordurar, achamos que não é necessário prestar atenção na sua própria limpeza. Mas um estudo da Universidade de Furtwangen, na Alemanha, destaca que pode haver mais germes e bactérias perigosas para o ser humano na esponja de lavar pratos do que na própria pia. O estudo encontrou 362 tipos diferentes de bactérias nas esponjas de cozinha analisadas – muito mais do que as encontradas no banheiro. O motivo é a constante umidade. Além disso, a esponja é repleta de espaços vazios que são ideais para o crescimento dos germes e bactérias. A recomendação dos especialistas é lavar as esponjas pelo menos uma vez por semana com cloro ou água sanitária, para evitar esse perigoso acúmulo de bactérias. - Este texto foi publicado em
2023-03-17
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crg5n6637yro
sociedade
'Como escapei de seita abusiva e resgatei meu filho depois'
Atenção: esta reportagem contém detalhes de abusos físicos e sexuais que podem ser sensíveis para alguns leitores. Quando a polícia mexicana lançou uma operação contra uma seita judaica, seus antigos membros esperavam que fosse o fim do grupo, acusado de crimes contra crianças. Mas o processo não foi adiante e a seita se recuperou, até que surgiram detalhes sobre sua comunidade enclausurada, incluindo seus planos de assassinato em massa em caso de intervenção de autoridades. Um antigo membro, que fugiu recentemente, contou à BBC as provações que ele enfrentou. Quando Yisrael Amir se casou, ele e sua noiva ficaram de pé sob a chupá – a tenda tradicional judaica, usada em casamentos – rodeados pelos membros da sua comunidade. Mas o que deveria ter sido o dia mais feliz da vida do casal, para eles, foi um pesadelo. Yisrael e sua esposa, Malke (nome fictício), tinham 16 anos de idade e haviam se encontrado naquela ocasião pela primeira vez. O casamento foi organizado pelos líderes do grupo que os havia criado desde crianças. O grupo se chama Lev Tahor ("Coração Puro", em hebraico). Ele afirma que segue uma versão fundamentalista do judaísmo. Mas seus antigos membros e um tribunal israelense defendem que se trata apenas de uma seita. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Não tivemos escolha", conta Yisrael, agora com 22 anos, enquanto nos sentamos para conversar no quintal da casa da sua tia, ao sul de Tel Aviv, em Israel. "O rabino me chamou na sua sala e disse: 'na semana que vem, você vai se casar. Se você se recusar, será punido'.'' "Minha irmã tinha 13 anos de idade e foi forçada a se casar com um rapaz de 19 anos", ele conta. "Ela chorava. Ela chorava tanto que eles a puniram proibindo-a de falar por um ano. Ela não podia dizer uma palavra – não podia pedir comida, não podia pedir para ir ao banheiro, nada." Yisrael conta que sua irmã não conseguia falar direito depois que terminou sua punição de um ano. Tudo isso era parte da vida do complexo do grupo na Guatemala, onde a idade mínima legal para se casar é de 18 anos, tanto para os homens quanto para as mulheres. A maior parte dos membros do Lev Tahor se estabeleceu no país centro-americano em 2013, depois de fugir do Canadá, onde foram acusados de abuso infantil - uma parte menor foi para o México. O grupo nega as acusações. Esses tratamentos são parte de um repertório de supostos abusos praticados pelos líderes e por outras pessoas em posição de autoridade no grupo, segundo Yisrael e outros antigos membros. Conta-se que esses abusos incluem surras por pequenas infrações, em que as crianças são forçadas a agradecer aos seus algozes por baterem nelas. Mas, segundo Yisrael, havia muito mais. "Eu via todos os dias Shlomo Helbrans [o fundador do Lev Tahor] e outro líder levar meninos para o seu quarto, meninos até de oito anos de idade, e depois ele os mandava para o mikvê [ritual de banho usado para purificação]", ele conta. "Eu não entendia o que ele fazia com eles. Agora, eu sei." Yisrael afirma que meninos e meninas disseram a ele que eram abusados sexualmente – e estuprados. A BBC tentou falar com supostas vítimas de estupro infantil que saíram do grupo, mas nenhuma delas quis conversar com a reportagem. Um grupo de apoio americano, os Sobreviventes do Lev Tahor (LTS, na sigla em inglês), afirmou à BBC que existem vítimas de estupro infantil entre seus membros. Já uma fonte envolvida em uma investigação policial informou que as autoridades centro-americanas possuem declarações juramentadas de antigos membros de que eram cometidos estupros. "Helbrans se apresentava como um messias que podia fazer o que quisesse porque era um homem sagrado", afirma Yisrael. "Ele nos disse que havia vindo do céu para 'corrigir' as pessoas e tinha poderes sobrenaturais. E seus seguidores acreditavam nele." Uma das formas de controle do grupo sobre seus membros, segundo Yisrael, é retirar as crianças dos pais e colocá-las em novas "famílias". Os pais biológicos são proibidos de ter qualquer contato com elas depois disso. Foi o que aconteceu com Yisrael. Com 12 anos de idade, ele foi retirado da sua casa em Israel, junto com seus seis irmãos, pelo seu pai, Shaul, para unir-se ao grupo na Cidade da Guatemala. Yisrael conta que o Lev Tahor fez promessas falsas à sua família de que a vida na Guatemala seria o paraíso, com animais para as crianças brincarem. Mas, na verdade, "foi um choque completo", segundo ele. "Todos foram separados uns dos outros", relata Yisrael. "As crianças precisavam dormir sobre o chão de pedra. Éramos acordados cerca de três horas da manhã todos os dias, depois havia orações o dia todo, sem comida, sem água e sem falar com outras crianças." "Se o líder [Helbrans] desse uma palestra para nós, ela duraria horas. Às vezes, eu dormia em pé", ele conta. "Tudo era controlado. Você só podia ir ao banheiro quando eles autorizassem." "Não recebíamos educação. Não estudávamos nem mesmo a Torá [os livros mais sagrados do judaísmo] ou o Talmud [o principal livro das leis judaicas] porque aquilo teria aberto nossas mentes – apenas os escritos de Helbrans, que tínhamos que aprender de cor", prossegue Yisrael. "Nós ficávamos acordados até às 23 horas." Yisrael afirma que os membros só podiam comer certos legumes, verduras e frutas. Os líderes proibiram a carne, peixe e ovos. Segundo eles, estes alimentos podem ser afetados pela engenharia genética, o que faria com que deixassem de ser kosher (eles não seriam mais permitidos pelas leis judaicas de alimentação). Yisrael acredita que o verdadeiro motivo era simplesmente manter os membros fracos sem a ingestão de proteínas. "Mas Helbrans comia tudo o que quisesse – ovos, peixe, carne", ele conta. "Ele dizia que era para sua saúde e você não podia questioná-lo." Helbrans morreu afogado em um rio no México, em 2017. Quem assumiu foi seu filho, Nachman, que foi descrito em documentos judiciais norte-americanos como "mais extremista" que o seu pai. "Quando fui levado para lá na infância, eu simplesmente sabia que tudo parecia errado, mas não podia fazer nada", relembra Yisrael. "Mas depois eu só sabia que precisava sair dali." O momento chegou quando sua esposa Malke teve um menino, Nevo, dois anos depois que eles se casaram. "Eles sabiam onde você estava todo o tempo, mas, um dia, os líderes me mandaram pegar alguma coisa impressa na cidade [Oratório, no sul da Guatemala, para onde o grupo havia se mudado]. Era uma lan house e eu me lembrava da aparência dos computadores de quando eu era criança em casa", relembra ele. "Eu não sabia usá-los, então pedi ajuda ao dono da loja." Depois de aprender sobre o Google, Yisrael pediu ao comerciante que pesquisasse Lev Tahor – e ele ficou abismado com o que descobriu. "Havia reportagens sobre aquele culto que confirmaram o que eu pensava." Entre os resultados, havia relatos de como sua tia, Orit, combatia o grupo em Israel. "Pensei que Orit tivesse se esquecido de nós", afirma Yisrael. "Eu não sabia que ela estava fazendo de tudo para resgatar nossa família." Yisrael encontrou seu endereço de email e enviou uma mensagem. Orit conta que ficou chocada ao recebê-la. Eles começaram a se comunicar e Yisrael retornava à loja sempre que era mandado para alguma tarefa. Foi então que, usando o dinheiro que havia juntado em segredo, ele comprou um telefone celular e ligou para sua tia. "Quando ela ouviu a minha voz, ficou muito feliz", ele conta, sorrindo. "Ela disse que viria me buscar e, alguns dias depois, eu fugi." "Certa noite, eu saí pelo portão e corri por 15 minutos pela selva até chegar a uma estrada", relembra Yisrael. "Parei um ônibus e ele me levou até a Cidade da Guatemala, a cerca de duas horas de distância. Fiquei com medo que os membros viessem me procurar." "Orit estava me esperando, mas eu não a reconheci e, no começo, não sabia se a abraçava porque ela não estava vestida como as mulheres do Lev Tahor, onde tocar o sexo oposto [fora do casamento] era rigorosamente proibido." Uma das características do grupo é que ele exige que todas as mulheres, a partir dos três anos de idade, vistam um manto que cubra todo o corpo. Eles defendem que é por "humildade". Em público, também são observadas mulheres que cobrem seus rostos, exceto pelos olhos. Na imprensa, esta prática rendeu ao Lev Tahor o apelido de "Talebã judeu". Inicialmente, Yisrael não queria sair sem seu filho, mas Orit prometeu que eles voltariam para buscar o menino. Eles então saíram da Guatemala e foram para Israel. Na época com 19 anos, Yisrael tinha realmente vivido uma existência isolada por cinco anos e teve dificuldade para se ajustar. "Precisei começar a vida do zero", ele conta, "conhecer pessoas, fazer amigos e até aprender de novo o idioma – foi realmente muito difícil." Ele e Orit voltaram para a Guatemala várias vezes para tentar buscar o filho de Yisrael, sem sucesso. Até que, em setembro de 2022, depois de uma operação secreta com uma equipe de quatro homens de Israel (incluindo ex-agentes do Mossad, o serviço secreto israelense, um ex-policial e um advogado), uma unidade policial de elite invadiu o esconderijo do Lev Tahor no Estado de Chiapas, no sul do México, para onde parte do grupo havia se transferido. A invasão foi autorizada por um juiz estadual que havia examinado provas de atividades criminosas, incluindo estupro e tráfico de drogas, reunidas pelo Procurador Especial do México para o Crime Organizado. Essas provas incluíram uma ordem – à qual a BBC teve acesso – de um líder do grupo, instruindo as mães a matar seus filhos, aparentemente com veneno, se os serviços de assistência social viessem levá-los embora. "Se algumas pessoas vierem tomar nossas crianças de nós... precisamos sacrificar as vidas para que os amaldiçoados não profanem o espírito das nossas crianças puras... [na] forma que foi instruído por nossa santidade [Shlomo Helbrans] antes de morrer", diz a tradução do documento. "Precisa ser feito de forma que eles [as crianças] não sofram... sem desfigurar o corpo... para que elas [as mulheres] usem o que iremos distribuir [que] precisa ser dado às crianças imediatamente... sem explicar a elas o que é, para não as assustar", prossegue o documento. A ordem instrui então as mulheres a tirar a própria vida depois de terem matado seus filhos. A polícia separou imediatamente as crianças dos adultos por precaução e o complexo foi evacuado. Nevo era uma das crianças que foram retiradas e foi entregue a Yisrael. "Eu chorei", conta o pai, "mas Nevo estava calmo. Estou certo de que ele sabia que eu era o seu pai." Malke também foi retirada, mas se recusou a deixar o grupo. Ela e duas dezenas de outras pessoas foram mantidas em um abrigo do governo, mas, cinco dias depois, eles fugiram. Dois líderes presos por ordem do juiz estadual, sob suspeita de tráfico de pessoas e sérios abusos sexuais, foram postos em liberdade por um juiz local. O relato de Yisrael sobre os abusos do Lev Tahor não foi verificado de forma independente, mas é similar aos testemunhos de outros membros antigos do grupo. O porta-voz do Lev Tahor, Uriel Goldman, rejeita as alegações. "Nego totalmente todas as acusações", disse ele à BBC. "A maior evidência que temos são as palavras do juiz [local] do México. Depois de ouvir todas as provas, de A a Z, o juiz decidiu encerrar definitivamente o caso." Goldman afirma que o grupo foi vítima de "perseguição". A conclusão do juiz local ainda não foi derrubada, mas uma fonte com total conhecimento do caso afirma que ele não teve acesso às provas reunidas pelo investigador federal. Segundo a mesma fonte, todas as pessoas que fugiram do abrigo do governo no México, bem como os dois líderes libertados, voltaram para a Guatemala. A cerca de 12 mil quilômetros de distância, Yisrael continua reconstruindo sua vida com Nevo, na sua nova casa nos arredores de Tel Aviv. Proibido de usar tecnologia por anos, ele agora está estudando ciência da computação na Universidade Bar-Ilan, em Israel. Ele pretende tornar-se engenheiro de software. "Afinal", ele conta, "o céu é o limite". - Este texto foi publicado em
2023-03-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c970d5nwxeyo
sociedade
O país onde pais estressados têm direito a férias de 3 semanas em spa
Sebastian Schwerk não conseguiu dormir à noite. Sua cabeça estava girando. Seu pai havia morrido recentemente de leucemia. Schwerk passou meses cuidando dele, junto com seus irmãos, além de cuidar da sua própria família. Agora, sua mãe também precisava de assistência. Seus dois filhos mais velhos estavam entrando na puberdade. E, com tantas coisas acontecendo, ele se preocupava porque seu filho mais novo não estava recebendo atenção suficiente. “Todas essas questões estavam me causando enorme estresse”, relembra Schwerk, que trabalha como diretor de criação em uma agência de comunicação em Dresden, na Alemanha. “Foi quando minha parceira disse: ‘você sabe que temos direito a uma licença de saúde, não sabe?’” A Alemanha talvez seja o único país do mundo em que pais em dificuldades têm direito legal ao “Kur” – uma licença de saúde de cerca de três semanas, a cada quatro anos. Fim do Matérias recomendadas O Kur é receitado pelo médico e a maior parte dos custos é coberta por seguro, incluindo refeições, creche e terapias. Fundamentalmente, a licença pode servir não só para tratar um problema de saúde, mas como medida preventiva para impedir que problemas relativamente pequenos aumentem e se tornem questões piores. Schwerk, por exemplo, decidiu pedir a licença paga pelo seguro como medida preventiva, para tratar da sua insônia. “Minha principal necessidade era realmente passar o máximo de tempo possível com meu filho, sem estresse, e voltar a ter um estilo de vida mais saudável”, afirma ele. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em janeiro de 2020, ele e seu filho mais novo passaram três semanas em uma clínica no litoral. Schwerk fez cursos de terapia de relaxamento muscular, meditação, caminhadas nórdicas e ioga – tratamentos que ele nunca havia tentado antes. Ele chegou a abrir mãos de alguns hábitos cultivados há tempos. “O álcool é totalmente proibido nessas clínicas, o que pode ser difícil para os alemães”, ele conta. “Então, disse para mim mesmo: ‘bem, eu gosto de tomar cerveja depois do trabalho, mas, de fato, eliminar isso por três semanas é uma ótima ideia.” Pode parecer um período de férias, mas as pesquisas demonstram que esses retiros em clínicas são surpreendentemente eficazes para prevenir problemas de saúde muito maiores. Algumas pessoas também argumentam que a demanda crescente deve fazer soar o alarme, como sinal de que cada vez mais pais não estão suportando a tensão do dia a dia. E o impacto prolongado da pandemia de covid-19 e dos confinamentos parece ter aumentado essa pressão. “As clínicas estão relatando que as mães e os pais que as procuram estão mais doentes do que antes [da pandemia]”, afirma Yvonne Bovermann, diretora da organização sem fins lucrativos Deutsches Müttergenesungswerk, que administra cerca de 70 clínicas que oferecem retiros por toda a Alemanha. As mães formam a maioria dos pacientes. “A ampla maioria dos nossos retiros tem fins preventivos”, segundo Bovermann. “Mas as clínicas afirmam que boa parte das mulheres, cerca de 30%, já chega em estado muito pior e precisa de tratamento, não de prevenção.” As questões mais comuns são problemas psicológicos, como ansiedade, insônia ou sintomas depressivos. Elas afetam agora mais de 90% dos pais que procuram seus retiros, segundo Bovermann – antes, eram 80%. “Além disso, quase todos possuem problemas físicos, como dores nos joelhos ou nas costas”, ela conta. “Mas a razão que os leva ao retiro não é a dor no joelho, é porque eles simplesmente não sabem mais como enfrentar o dia a dia. Eles estão muito desgastados, precisam dessas três semanas longe de tudo, para poderem começar a pensar: ‘como posso sair desta situação?’” A origem das licenças em clínicas parece ser algo muito diferente das preocupações modernas com a criação de filhos. Depois da Segunda Guerra Mundial, Elly Heuss-Knapp, política e esposa do primeiro presidente da antiga Alemanha Ocidental, Theodor Heuss, fundou a Müttergenesungswerk como forma de apoio a mães esgotadas. As primeiras pacientes incluíram mães que sofreram os efeitos da guerra e da subnutrição, ao mesmo tempo em que cuidavam de crianças e maridos traumatizados. Atualmente, um tipo diferente de estresse familiar está recebendo cada vez mais atenção na Alemanha e em outras partes do mundo: o burnout parental. Pesquisas globais indicam o profundo impacto do burnout parental, definido como um estado de “exaustão avassaladora com relação ao papel de pai ou mãe de uma pessoa, distanciamento emocional dos filhos e sensação de ineficiência na sua criação”. Além de ser causa de estresse para os pais, o burnout aumenta o risco de negligência e de violência contra os filhos. O desespero dos pais também pode afetar seus filhos de outras formas. A depressão dos pais aumenta a probabilidade de que as próprias crianças desenvolvam depressão e foi relacionada a problemas de comportamento. Estudos de saúde mental indicam que o problema piorou durante a pandemia e os lockdowns, quando muitos cuidadores equilibravam o trabalho e a família sem nenhum apoio. Pais e mães solteiros sofreram pressão maior naquele período. E eles também já enfrentam maiores riscos à saúde. Um terço das mães solteiras relata sintomas de depressão ou ansiedade. Os pais e mães solteiros chegam a ter expectativa de vida mais curta que os casados. “É claro que cuidar dos filhos pode ser cansativo, mas não deveria ser uma sensação de encargo adicional que você não sabe como enfrentar”, afirma Bovermann. “Não é isso o que deveria ser.” Ela afirma que, na Alemanha, um problema são as expectativas sociais profundamente enraizadas de que um dos parceiros – tradicionalmente, a mãe – deve ficar em casa com as crianças. Quando o país era dividido em dois, essa expectativa era particularmente forte na Alemanha Ocidental. Na Alemanha Oriental, as mulheres costumavam trabalhar. Pesquisas demonstraram que essa prática trouxe um impacto positivo e duradouro sobre a igualdade de gênero naquela parte do país, mesmo décadas após a reunificação. De forma geral, as mães que trabalham na Alemanha ainda enfrentam falta de creches confiáveis e de assistência social, ao contrário da França e dos países escandinavos, segundo Bovermann. Os pais que querem dividir igualmente as tarefas podem enfrentar a falta de compreensão das pessoas. E muitos pais e mães enfrentam ainda a dupla responsabilidade de cuidar das crianças e dos seus próprios pais idosos. “Independentemente do gênero, se você cuidar de filhos e de outras pessoas necessitadas, você recebe muito pouco apoio na Alemanha”, afirma Bovermann. “E isso traz enorme tensão, podendo causar doenças.” Pesquisas indicam que, embora uma licença de três semanas não consiga resolver todos esses problemas em um passe de mágica, ela pode trazer forte impacto para os pais e as mães – e até benefícios duradouros. “A grande vantagem da prevenção é que você evita uma forma mais grave da doença”, segundo Claudia Kirsch, chefe de uma unidade de pesquisa da Faculdade de Medicina de Hannover, na Alemanha. Ela avaliou o impacto dessas licenças sobre a saúde familiar. “No caso das dores nas costas, ela pode significar a intervenção antes que se tornem dores fortes e crônicas”, segundo ela. “E, se os pais demonstrarem sinais de exaustão, você pode garantir que a situação não se agrave, nem acabe em burnout parental.” Quando os pais entram em uma clínica, eles são avaliados e recebem um plano de atividades e terapias específicas, como terapia da fala, exercícios físicos e sessões de aconselhamento para uma rotina mais saudável. As crianças recebem atenção e apoio sobre eventuais problemas de saúde, enquanto as refeições e a higiene são oferecidas por funcionários. À tarde, pais e filhos passam o tempo juntos. “Acho que é esta mistura que faz com que essas intervenções sejam um sucesso”, afirma Kirsch. “A abordagem terapêutica é fundamental. Sem ela, não funcionaria.” Pesquisas já demonstraram melhorias dos problemas físicos dos pais, como dores nas costas, até nove meses depois da licença, especialmente se os pais prosseguirem com os exercícios nas suas vidas diárias. E as crianças também apresentaram benefícios em uma série de condições, como problemas da pele, questões respiratórias e problemas de comportamento. As melhorias ainda são evidentes até seis meses depois da licença. Separadamente, pesquisas com pacientes também demonstraram que a maioria dos pais e mães considera que os retiros são benéficos e acredita que eles os ajudaram a lidar com problemas e cuidar da saúde na sua vida diária. Como se acredita que os benefícios durem até um ano, Kirsch recomenda repetir a licença depois de alguns anos, se os problemas de saúde retornarem ou aumentarem. “Você precisa ter em conta que são apenas três semanas”, ressalta ela. “Mas, nessas três semanas, os pais recebem muita ajuda, conselhos e a possibilidade de tentar tratamentos diferentes. E, é claro, é importante acompanhar os resultados e, idealmente, apoiar os pais no uso [das orientações] na vida diária.” Evidências indicam que retiros especializados também podem ajudar os pais mais vulneráveis e seus filhos. Matthias Franz é especialista em medicina psicossomática e psicoanalista do Hospital Universitário de Düsseldorf, na Alemanha. Ele estudou o estresse psicológico em mães solteiras e seus filhos. Ele afirma que as mães solteiras enfrentam risco de depressão três vezes maior do que aquelas que fazem parte de um casal. A pobreza, que afeta desproporcionalmente as mães solteiras e seus filhos, exacerba esses problemas psicológicos. “Muitas mães solteiras não cuidam apenas dos filhos”, ele conta. “Elas são abandonadas e marginalizadas pela sociedade. Muitas vezes, elas estão totalmente sobrecarregadas.” Solidão, baixa autoestima e culpa por ser mãe sozinha são sentimentos comuns entre as mães solteiras, que compõem a ampla maioria das pessoas solteiras que criam filhos, segundo Franz. Em conjunto com a Fundação Walter-Blüchert, uma organização sem fins lucrativos, Franz e sua equipe desenvolveram um programa chamado “Wir 2” (“Nós dois”, em alemão) para mães e pais solteiros com problemas como depressão profunda. O programa se concentra na terapia intensiva para as mães, ajudando-as a superar sua própria depressão e conectar-se com seus filhos. “É questão de estabelecer um profundo contato emocional consigo mesma e com seu filho”, afirma Franz. É possível seguir o programa na forma de curso ambulatorial ou como parte de uma estada de três ou seis semanas em uma clínica especializada. “As mães aprendem a se observar como [pessoas] importantes, elas ouvem coisas que não ouviam há anos – ‘você é uma ótima mãe, você está bonita hoje’. Muitas vezes, elas chegam às lágrimas”, ele conta. “E, depois de quatro ou cinco sessões, seus sentimentos começam a voltar e elas ficam emocionalmente vivas outra vez”, afirma Franz. Ele acrescenta que, por sua vez, isso as ajuda a entender e atender seus filhos. Pesquisas demonstraram que o programa reduziu os sintomas depressivos das mães e os problemas de comportamento das crianças. Os efeitos ainda podiam ser observados um ano mais tarde. Franz destaca que precisa ser feito mais para apoiar as mães e os pais solteiros e que as mães que participam do programa “realmente levam alguma coisa com elas e tratam a si próprias e aos seus filhos de forma muito mais relaxada”. Para Schwerk (o pai que saiu de licença com seu filho), os principais benefícios foram aprender mais sobre si próprio, fortalecer os laços com seu filho e ganhar nova perspectiva para lidar com conflitos familiares. Três anos já se passaram e ele afirma que a licença ainda o ajuda a ter uma visão mais relaxada em certas situações. E, depois de um longo período cuidando intensamente da sua mãe, ele acha que pode estar na hora de outra licença. “No outro dia, falei com a minha médica e ela disse que posso fazer de novo no ano que vem”, ele conta. “Porque com certeza me trouxe incentivos saudáveis.”
2023-03-14
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqvjeex4jd3o
sociedade
As ilhas paradisíacas assoladas pela heroína
Cerca de 10% da população de Seychelles, um arquipélago tropical no oceano Índico, são dependentes de heroína. O governo local trata dessa dependência como uma epidemia. Nem o encarceramento oferece proteção para os dependentes da droga. O programa de TV Africa Eye, da BBC News, conseguiu ter raro acesso à principal penitenciária do país para retratar uma pequena parte do problema que ameaça dominar as ilhas. Empoleirada no topo de uma montanha e rodeada por belas vistas do oceano Índico fica a prisão Montagne Posée, a principal unidade prisional das ilhas Seychelles. Este é um país de contrastes, mas, mesmo assim, é difícil conciliar a vista de cartão-postal das praias locais com o que veremos a seguir. Fim do Matérias recomendadas Na entrada do local onde ficam os prisioneiros, depois de passar por diversos portões trancados e quilômetros de cercas de arame farpado, existe um mural de Nelson Mandela de quatro metros de altura pintado no prédio da administração. Ao lado do rosto sorridente do falecido presidente sul-africano – que foi, ele próprio, um prisioneiro – existe uma citação que diz: "Conta-se que ninguém conhece um país até entrar nas suas cadeias". De fato, esta prisão, de muitas formas, é um reflexo do que está acontecendo nas Seychelles para além dos seus luxuosos hotéis cinco estrelas. Estamos aqui para falar com um dos detentos, Jude Jean. Antes, contudo, a equipe da BBC é levada para o que os prisioneiros chamam de "cela modelo" para os visitantes. Ela é limpa, mas apertada. São oito camas, quatro de cada lado – uma em cima da outra, sem espaço para sentar com as costas retas. Na mesma sala, há um banheiro e chuveiro. Privacidade é algo que não existe. Perto dali ficam as cozinhas, sujas e dilapidadas. Entranhas de peixe entopem as pias e o mau cheiro domina o ambiente. Há muitas moscas. Em seguida há o pavilhão principal. A escuridão é impressionante. Ainda é início da tarde, mas não há luz do dia. Pequenas lâmpadas em um corredor próximo lançam uma luz fraca. Os prisioneiros usam caixas de papelão para ter alguma privacidade atrás das barras das celas, cuja frente é aberta. Algumas são pequenas e parecem mais gaiolas, com colchões sujos no chão. O problema da heroína também se esconde na escuridão. Narcóticos potentes fluem através das celas. A prisão não oferece proteção contra o que acontece no lado de fora. As ilhas Seychelles estão enfrentando uma epidemia. Estima-se que cerca de 10% da população do arquipélago sejam dependentes de heroína. É preciso trazer trabalhadores estrangeiros para fazer o trabalho que os moradores locais não conseguem, devido à dependência da droga. Na prisão, guardas tanzanianos revezam-se em turnos para tentar impedir a corrupção e o fluxo de heroína para dentro das celas. Mas não está funcionando. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O próprio presidente de Seychelles, Wavel Ramkalawan, admite que a prisão não está cumprindo com seus objetivos. "Quando você tem uma bagunça tão grande, você tem um campo fértil para a corrupção dos funcionários. E, quando você tem corrupção, as drogas continuam a entrar na prisão", declarou ele à BBC, do palácio do governo na capital do país, Vitória. Ele acrescenta que está planejando a construção de uma nova cadeia. Ramkalawan admite que "a situação da droga é muito ruim". "Neste momento, com relação ao consumo de heroína, Seychelles é o primeiro do mundo por habitante", afirma o presidente. "E esta não é uma estatística que me dê grande prazer pessoal." É dia de visita na prisão. Jude Jean está preso por roubo e aguarda sua mãe. A sala da família fica no lado de fora. É um quintal de concreto com mobília de plástico, rodeado por arame farpado. Jude é agradável – caloroso e amigável; confiante, mas humilde. Ele também é dependente de drogas. "Tenho vergonha de dizer, mas você sabe, sou viciado", ele conta. "E não é fácil." Hoje, enquanto se senta, suas pálpebras parecem pesadas demais para ele. Mesmo estando na prisão, ele conseguiu sua dose de heroína de manhã e alguns cigarros de maconha. Jude entra e sai da prisão há mais de uma década – na maioria das vezes, por roubo, para financiar sua dependência. Sua mãe, Ravinia, precisou lidar com isso e com outra tragédia terrível. Ela é uma pessoa alegre. Seu sorriso ilumina a sala e sua risada é contagiante. Ela passou anos trabalhando muito, dirigindo uma lanchonete de fast-food, tentando sustentar seus quatro filhos e dar uma vida boa para eles. Mas a heroína levou tudo embora. Em 2011, o filho mais velho, Tony, foi encontrado enforcado. Sua morte ainda é um mistério, mas ele estava muito envolvido com a heroína. Ravinia tem certeza da ligação entre a droga e a morte do filho. Ela não acredita que ele tenha posto fim à própria vida. Enquanto fala, ela parece estar a um milhão de quilômetros de distância. A dor e a confusão transfiguram seu rosto. Até hoje, ela não entende por que não apenas um, mas dois dos seus filhos seguiram este caminho. "Mesmo se você me disser para não me culpar, eu tenho que me culpar", ela conta. Muitas outras mães de todo o país têm esta mesma sensação. Quando Ravinia encontra Jude, seu humor melhora e seu sorriso resplandece. "Estou feliz por ver você, meu filho", diz ela, enquanto o abraça com força. "Também estou feliz por ver você, mãe", responde ele. Enquanto eles se sentam, ela se dirige à reportagem: "Sabe, nós conversamos, mas eu sei que ele mente para mim às vezes. Nós conversamos, somos amigos!" Mas a tensão logo aparece e ela começa a chorar. Jude Jean enxuga suas lágrimas e diz a ela: "Seja forte, mãe, seja forte". E ela é. Ravinia é o ponto de apoio do filho. Pode-se ver o quanto ela significa para ele, mas, ao longo dos anos, ele foi uma provação para ela. "Não temos nada hoje em dia porque tudo se foi. Ele chegou a pegar meu talão de cheques e começou a [emitir] cheques", ela conta. "Ele levou tudo... Lembro que, uma vez, não tínhamos nem lençóis. Tudo o que ele via, simplesmente pegava e vendia para comprar drogas." Na primeira vez em que Jude foi para a prisão, Ravinia ficou aliviada. Mas a trégua foi curta. Ela conta que foi como se ela o tivesse mandado para "uma escola de criminosos". Enquanto Jude estava preso, sua mãe era também forçada a financiar sua dependência da droga, pois ele "estava usando drogas a crédito". Ela conta que "precisava pagar porque eles mandavam pessoas para cobrar o dinheiro" e faziam ameaças. Jude era quem dizia para que eles fossem até a casa dos pais e eles pagariam. "Eles ameaçam você. Eles dizem que vão matá-lo", segundo Ravinia. Jude reconhece sua sorte por ter a mãe que tem. "Obrigado, mãe, por estar sempre comigo", ele diz. "Sei que, com você por perto, um dia serei uma pessoa melhor, eu quero ser uma pessoa melhor." "Faça isso antes que seja tarde demais", responde a mãe, em lágrimas. Jude promete a ela que irá mudar. Ela não se convence, mas não irá desistir dele. A prisão não é o lugar ideal para a recuperação, mas não é impossível. Existe um programa com metadona, substância que pode ser usada para o tratamento da dependência de heroína, e algumas sessões limitadas de psicoterapia. Mas Jude precisa querer fazer o programa. A metadona também está disponível para os usuários fora da prisão. Ela é gratuita para qualquer pessoa que se inscrever, considerando o tamanho da epidemia. Em Vitória, todas as manhãs, uma van branca personalizada com uma janela de atendimento ao público percorre a cidade fazendo diversas paradas. Longas filas se formam com pessoas de todos os tipos esperando para conseguir o remédio. Surpreendentemente, em um país que foi feito refém da heroína, a metadona é o único apoio consistente disponível para os usuários de drogas. Mas, para muitos moradores de Seychelles, é apenas uma dose matinal grátis que é incrivelmente perigosa. O uso simultâneo de metadona e heroína pode gerar uma overdose fatal. Tomar metadona sem um programa de desintoxicação e terapia raramente é uma solução de longo prazo para a recuperação. Mesmo assim, decisões políticas levaram ao fechamento de todos os centros de reabilitação residencial do arquipélago. O presidente assumiu o poder há dois anos e culpa seus antecessores pela falta da necessária assistência aos pacientes. Ele afirma que a política obstruiu o caminho para tratar da questão no governo anterior. "Mas nós recebemos uma doação dos Emirados Árabes Unidos para construir um centro de reabilitação adequado. E estamos indo nesta direção", afirma Ramkalawan. O problema é muito grave em Seychelles porque as ilhas ficam em rotas de tráfico estabelecidas que vão do Irã e do Afeganistão até o leste africano e a Europa. Mas o presidente Ramkalawan afirma que o problema se ampliou quando um grupo de traficantes iranianos foi preso no país. "Quando ficaram aqui, eles desenvolveram sua rede", ele conta. "Depois disso, havia mais moradores locais envolvidos no comércio de drogas do Irã e, agora, estamos dedicando muitos recursos apenas para combater os barcos iranianos que vêm até as nossas águas para vender seu veneno." A heroína chega a Seychelles principalmente de barco, por suas vastas e instáveis fronteiras aquáticas. São mais de meio milhão de quilômetros quadrados de mar territorial, que oferecem fácil acesso aos contrabandistas. Ao chegarem à terra, a maior parte da droga é vendida em lojas pequenas e improvisadas atrás das casas das pessoas, nos muitos guetos do país. Basicamente, é uma indústria artesanal e comunidades inteiras estão envolvidas. Para observar a situação, basta dirigir por cinco minutos para longe de qualquer rua principal e deixar para trás os belos hotéis e os restaurantes caros. A droga está em toda parte e o medo é que o pior ainda esteja por vir. Pelo menos por enquanto, a heroína ainda é a droga de maior consumo, porque é relativamente barata. Mas existem drogas novas no mercado. O crack e a metanfetamina estão começando a ser usados e nenhuma dessas drogas pode ser tratada com metadona. Na prisão, alguns dias depois da visita de sua mãe, Jude Jean decide cumprir sua promessa e tentar novamente a recuperação. É um grande passo para ele, que tenta se inscrever no programa de metadona da prisão. Mas nem todos conseguem ser aceitos. Jude chega ao centro médico da prisão visivelmente drogado. Quando a enfermeira faz o exame de urina para detectar heroína, não é surpresa quando vem o resultado positivo. Ele é instruído a parar totalmente de usar a droga para ser aceito no programa de metadona. Ele concorda. No dia seguinte, entra na fila com seus companheiros e recebe sua primeira dose. Jude também está inscrito em um programa de psicoterapia para aumentar suas possibilidades de recuperação. Sua mãe, Ravinia, não tem grandes expectativas. Ela já ficou desapontada muitas vezes antes. Mas está rezando muito para que, desta vez, possa dar certo.
2023-03-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nz1vd0lmdo
sociedade
Os fiéis que se endividam para pagar 'dízimo milagroso'
Evarline Okello começa a chorar ao contar que se endividou depois de pagar a um pastor para orar por ela. Ela mora em um pequeno barraco em Kibera, uma vasta favela em Nairóbi, a capital do Quênia, e não consegue mais sustentar seus quatro filhos. Evarline não ganha nada há meses, ela conta por telefone. Então, quando ouviu falar de um pastor cujas orações poderiam tornar a vida melhor, quis conhecê-lo. Ele pediu a ela 15.000 xelins quenianos (cerca de R$ 600). A prática é conhecida como "oferta de sementes": uma contribuição financeira a um líder religioso, com um objetivo específico em mente. Evarline pegou o dinheiro emprestado de uma amiga, que fez um empréstimo no nome dela. Disseram a ela que as orações desse pastor eram tão poderosas que ela veria o retorno de seu dinheiro em uma semana. Fim do Matérias recomendadas Mas o milagre nunca veio. Na verdade, as coisas ficaram ainda piores, diz ela. O valor a devolver pelo empréstimo da amiga explodiu devido aos juros. Ela agora deve o equivalente a mais de R$ 1.500 e não tem ideia de como vai pagar. A amiga parou de falar com ela e Evarline continua desempregada. "As coisas ficaram tão difíceis que perdi toda a esperança", diz ela. O Quênia — país que fica no leste do continente africano, na altura da linha do Equador, e faz fronteira com Etiópia, Somália, Uganda e Tanzânia — foi duramente atingido pela crise inflacionária global. Ali, os preços dos alimentos aumentaram quase 16% em 12 meses até setembro de 2022, de acordo com a Agência Nacional de Estatísticas do Quênia, enquanto dados do Banco Mundial mostram que o número de quenianos desempregados mais do que dobrou nos últimos sete anos. "As pessoas estão vivendo vidas muito desesperadas", diz Gladys Nyachieo, professora de sociologia da Universidade Multimídia do Quênia. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Isso aumentou o anseio por soluções sobrenaturais, diz ela, e muitos agora estão dispostos a pagar por um milagre, mesmo que tenham que pedir dinheiro emprestado. "As pessoas estão ouvindo que Deus não quer que elas continuem pobres. Então elas 'plantam uma semente'", diz ela. A prática é comum no chamado Evangelho da Prosperidade, que prega que Deus recompensa a fé com riqueza e saúde. Os crentes são encorajados a mostrar sua fé dando dinheiro às igrejas. A crença é de que a doação será recompensada por Deus em bençãos vistas como ainda maiores do que o valor doado. O Evangelho da Prosperidade tem origem nos Estados Unidos, ganhou força no início do século 20 e se espalhou por diversos países, incluindo o Brasil. No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, pastores nigerianos foram para os EUA para aprender mais sobre essa vertente evangélica. No início dos anos 2000, ela se espalhou pela África e ganhou popularidade, impulsionada em parte por evangelistas americanos como Reinhard Bonnke, que atraiu grandes multidões de Lagos, na Nigéria, a Nairóbi, no Quênia. Esse crescimento em número de fiéis continua até hoje. A socióloga também aponta para outro fator que favorece o endividamento: as ofertas de empréstimos que os quenianos recebem regularmente em seus telefones celulares. "As pessoas simplesmente se inscrevem e recebem o dinheiro", diz ela. Foi o que aconteceu com Dennis Opili, de 26 anos. Desanimado depois de mais de três anos procurando trabalho, ele pediu ajuda a um amigo. "Ele me disse que há uma igreja onde você vai e eles oram por você. Você dá uma certa oferta, eles oram por você, e então você pode conseguir um emprego", diz Dennis. Ele foi instruído a fazer uma doação todos os domingos durante três meses e doou um total equivalente a cerca de R$ 940. Quando suas economias acabaram, ele pediu algo em torno de R$ 600 emprestados de aplicativos de crédito e de amigos. "Acreditei no que o pastor me disse, que eu poderia conseguir um emprego. Portanto, não tive nenhum problema com tomar os empréstimos, porque pensei que eventualmente conseguiria pagar o dinheiro." Mas quando nenhum trabalho apareceu, Dennis começou a suspeitar que havia sido enganado. Logo ele estava sendo perseguido pelas empresas de crédito. "Às vezes, eu estou apenas sentado em algum lugar, relaxando, pensando em outras coisas. Então alguém liga, quer que você devolva o dinheiro e você não tem nada para poder pagar", diz ele. "Fiquei com medo porque você não sabe o que eles podem fazer se você não pagar. Não sabe se pode ser processado ou levado à polícia." Felizmente, Dennis agora conseguiu encontrar um trabalho, o que permitiu a ele pagar parte do dinheiro, tanto para as empresas de empréstimo, quanto para seus amigos. "Ainda acredito muito em Deus", diz ele. "Só o que preciso fazer é ser um pouco mais cuidadoso." Não é apenas no Quênia que as pessoas estão se endividando na esperança de um milagre. Uma mulher que costumava frequentar uma igreja nigeriana nos Estados Unidos diz que ela e seu marido sofreram fortes pressões financeiras — incluindo a obrigação de "semear". Ela pediu para ter seu nome e o Estado do sul dos EUA onde mora preservados, por medo de intimidação da igreja ou de seus representantes legais. Sarah (nome fictício) diz que tanto os fiéis quanto os pastores locais em sua antiga igreja tinham de dar um "dízimo" equivalente a 10% de sua renda mensal para financiar a igreja e seus líderes na Nigéria. E isso era um adicional ao que era chamado de "primeiro fruto" — doação equivalente a toda a renda recebida por eles no primeiro mês do ano. Os líderes locais estabeleciam metas mensais, diz ela. Os membros foram informados de que seriam abençoados pelo pastor principal na Nigéria. Sarah diz que viu pessoas pagando doações com seus cartões de crédito nos cultos da igreja. "Lembro-me de uma vez na igreja que uma senhora disse: 'Tenho pagado meu dízimo e parece que ainda não tenho dinheiro suficiente no final do mês'." A resposta do pastor, diz Sarah, foi dizer às pessoas que doar era mais importante do que pagar o aluguel. Ela conta que qualquer um que questionasse por que os milagres não estavam acontecendo ouvia: "Você não orou o suficiente, você não semeou o suficiente. Você não teve fé suficiente." Sarah relata que seu marido foi pressionado a deixá-la, porque ela continuou fazendo questionamentos — mas, em vez disso, os dois acabaram deixando a igreja. Jörg Haustein, professor associado especializado em cristianismos na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, diz que é possível entender por que as pessoas continuam doando mesmo quando "as promessas não estão valendo a pena". Para as classes médias e em ascensão, como a maioria das pessoas na igreja de Sarah, Haustein afirma que o Evangelho da Prosperidade oferece "um ar de sucesso econômico e mobilidade ascendente que atrai as pessoas". Mas o discurso também pode atrair aqueles que vivem na pobreza, diz ele. "Uma igreja que diz: 'Sabemos que você está sofrendo e temos uma solução prática e alcançável para você' será mais atraente do que outra que prega alguma mudança sistêmica intangível." Mas por que as pessoas continuam a doar mesmo quando isso significa contrair dívidas? "Não é como jogar na loteria quando você não tem dinheiro?", pergunta Haustein. "É algo que parece acessível porque você pode pegar emprestado algumas centenas de xelins quenianos por telefone para investir e ver se isso ajuda", diz. "Claro, há um parcela de desespero também, pode ser a última esperança que alguém tem." De volta ao Quênia, Evarline diz que a experiência não a fez abandonar sua fé. "Eu não diria que a igreja é ruim. A igreja é boa. São os pastores que estão agindo errado. São eles que estão pedindo dinheiro."
2023-03-12
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cer2v3z8vv8o
sociedade
Berlim vai permitir que mulheres fiquem 'topless' em piscinas públicas
Em breve, as mulheres poderão nadar sem a parte de cima do biquíni nas piscinas públicas de Berlim, após uma deliberação das autoridades da cidade. A decisão aconteceu após um processo iniciado por uma mulher que foi expulsa de uma piscina pública por tomar sol topless, ou seja, sem sutiã. Uma outra mulher disse que foi instruída a se cobrir em uma piscina coberta em dezembro. As autoridades concordaram que as duas foram vítimas de discriminação e disseram que todos os visitantes das piscinas de Berlim agora podem usar apenas a parte de baixo do traje de banho — como os homens. Ainda não foi anunciada uma data oficial para a entrada em vigor da nova regra. A decisão será bem recebida por aqueles que defendem o que é conhecido na Alemanha como Freikörperkultur — palavra que designa o naturismo ou nudismo, mas que em uma tradução literal significaria "cultura do corpo livre" em alemão. Fim do Matérias recomendadas Visitantes estrangeiros que visitam a Alemanha costumam ficar surpresos — e, às vezes, totalmente desconcertados — ao ver alemães nus brincando em lagos, descansando nos parques ou suando nas saunas. Mas este é um país que considera a nudez pública em alguns ambientes tanto apropriada quanto saudável. Autoridades locais, porém, têm lidado com a questão de saber até que ponto isso é permitido em piscinas municipais. No verão passado, as cidades de Göttingen e Siegen já haviam permitido que as mulheres nadassem sem o sutiã. A operadora de piscinas de Berlim, a Berliner Bäderbetriebe (BBB), na verdade não mudou suas regras, que exigem que a roupa de banho cubra os órgãos genitais. O BBB apenas esclareceu que isso se aplica a todos os visitantes, independentemente do gênero.
2023-03-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1wjwxn9q36o
sociedade
Chippendales: a história do 1º clube de striptease para mulheres nos EUA que acabou em assassinato
A imagem de homens musculosos usando sungas e gravatas-borboleta para entreter mulheres em clubes enfumaçados pelo cigarro não é um legado normalmente associado a um indiano que foi tentar a vida nos Estados Unidos. Mas Steve Banerjee, que nasceu em Mumbai, na Índia, trocou o sonho americano convencional por um sonho do sul da Ásia que surgiu na sua cabeça, ao fundar o clube de striptease masculino Chippendales em Los Angeles, nos Estados Unidos, em 1979. O resto é história. Banerjee fez fortuna com o que acabou sendo uma franquia de imenso sucesso. Acrescente sexo, drogas e assassinato, e a história do imigrante indiano se torna uma lenda extraordinária. Na Índia, Banerjee e seu trabalho são pouco conhecidos. Já nos Estados Unidos, a marca Chippendales parece ter sobrepujado a reputação do seu controverso fundador. Mas isso agora está mudando. Certa de três décadas depois da sua morte, um podcast e diversos programas de TV — incluindo a recente série Welcome to Chippendales ("Bem-vindo a Chippendales", em tradução livre), do canal americano Hulu e estrelada pelo ator Kumail Nanjiani — estão revendo a história de Banerjee. Fim do Matérias recomendadas "A maioria das pessoas acha que o fundador do Chippendales era um frequentador de festas que perseguia as mulheres, usava drogas e bebia muito", afirma Scott MacDonald, um dos autores do livro Dreadly Dance: The Chippendale Murders ("Dança Assustadora: os Assassinatos de Chippendale", em tradução livre), publicado em 2014. Mas "Steve era um homem controlado e reservado, com o objetivo claro de criar uma marca mundial que competisse com a Disney, Playboy ou Polo." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Ele é "uma parte única da história", segundo a historiadora Natalia Mehlman Petrzela. Seu podcast, Welcome to Your Fantasy ("Bem-vindo à sua Fantasia", em tradução livre), renovou o interesse pelo legado do Chippendales. De óculos, moreno e encorpado, Banerjee contrasta com a fantasia do "homem branco e loiro da Califórnia", vendida pela sua franquia. A família de Banerjee trabalhava no setor de impressão. Ele saiu da Índia para o Canadá com pouco mais de 20 anos de idade, nos anos 1960, e logo acabou na Califórnia, onde passou a ser dono de um posto de gasolina em Los Angeles. Mas Banerjee tinha ambições maiores. Petrzela conta que ele dizia "eu quero dirigir aquele carro", quando as pessoas chegavam ao posto para abastecer seus belos veículos. Nos anos 1970, Banerjee usou suas economias para comprar um bar em Los Angeles, que ele chamou de Destiny II. Ele tentou de tudo para atrair multidões — jogos de gamão, shows de mágica e lutas de mulheres na lama. Em 1979, o promotor de clubes noturnos Paul Snider sugeriu que Banerjee trouxesse strippers homens, normalmente vistos apenas em clubes gay, para fazer um show destinado às mulheres. Na época, o bar havia mudado de nome para Chippendales, para dar uma ideia mais requintada aos clientes. Os shows de striptease foram anunciados em todo o oeste de Los Angeles — em todos os lugares onde as mulheres se reuniam, desde salões de beleza até banheiros femininos, segundo conta Petrzela no seu podcast. O sucesso foi instantâneo. O Chippendales começou a atrair multidões de mulheres todas as noites. Inspirados pelas coelhinhas da Playboy, os dançarinos usavam algemas, colares e calças pretas apertadas. Nos Estados Unidos dos anos 1980, "isso foi um choque", segundo Petrzela. Mas, seguindo a revolução sexual da década de 1970, o Chippendales de Banerjee também veio em uma época em que o empoderamento das mulheres e a liberdade sexual podiam virar comércio, segundo explica a historiadora. As mulheres precisavam de um lugar "onde pudessem se divertir sem que fossem julgadas", segundo a promotora Barbara Ligeti, na série documental Secrets of the Chippendales Murders ("Segredos dos Assassinatos do Chippendales", em tradução livre), do canal de TV A&E. "Elas podiam se encontrar, beber alguma coisa, beliscar um traseiro e colocar 20 dólares na tanga de um homem de boa aparência", ela conta. Banerjee queria criar uma "Disneylândia para adultos", suficientemente grande para rivalizar com seus heróis Hugh Hefner, da revista Playboy, e Walt Disney. No início dos anos 1980, ele conheceu Nick de Noia, diretor e coreógrafo vencedor do prêmio Emmy. Ele o convenceu de que o show precisava ser aprimorado. Os dançarinos e produtores do Chippendales afirmam que De Noia transformou o show em uma produção teatral interativa, usando personagens e roteiros. De Noia ajudou a levar o Chippendales para Nova York e expandir a produção pelos Estados Unidos, em um tour que foi bem sucedido. Mas as coisas começaram a se complicar entre os dois, à medida que o carismático coreógrafo se tornava o rosto da marca. A imprensa apelidou De Noia de "Sr. Chippendale", enquanto Banerjee permanecia por trás, administrando as operações em Los Angeles. Quando as tensões aumentaram, De Noia e Banerjee encerraram sua parceria e o coreógrafo planejou dar início à sua própria companhia — a US Male. E, na série documental, um ex-produtor do Chippendales que ajudou De Noia na sua nova empreitada afirma que aquilo fez com que Banerjee "passasse dos limites". Muitas pessoas que conheceram Banerjee o descrevem como um homem "paranoico". Ele achava que o sucesso era um jogo de vencedores e vencidos. "Para ele, se os outros tivessem sucesso, aquilo necessariamente o afastaria do seu sucesso próprio", afirma Petrzela. À medida que surgiam cada vez mais clubes de striptease, Banerjee contratou Ray Colon, um amigo que se tornou criminoso, para sabotar os concorrentes. Em 1987, por ordem de Banerjee, Colon contratou um cúmplice que matou De Noia a tiros no seu escritório. Amigos e colaboradores suspeitavam da participação de Banerjee no crime, mas os investigadores do FBI levaram anos para fazer essa correlação. O advogado de Banerjee, Bruce Nahin, afirmou que "o assassinato não prejudicou a marca". Em 1991, quando estava no Reino Unido com o tour do Chippendales, Banerjee pediu a Colon que eliminasse membros de uma trupe rival lançada por antigos dançarinos do seu clube. Segundo as provas obtidas pelo FBI, o plano era injetar neles cianureto, que Colon forneceu para um cúmplice conhecido como "Morango". Mas Morango teve medo e denunciou Colon ao FBI. Ele foi preso, acusado de conspiração e por contratar um assassino de aluguel. Segundo a agência americana, uma busca na casa de Colon encontrou 46 gramas de cianureto. Por meses após a prisão, Colon permaneceu leal a Banerjee e se declarou inocente. "Apenas quando Steve se recusou a pagar um advogado para ajudá-lo é que Ray finalmente rompeu com ele", conta MacDonald. Em 1993, o FBI finalmente reuniu provas suficientes contra Banerjee, usando Colon para gravar secretamente suas conversas. Banerjee foi preso por extorsão, conspiração e por contratar assassino de aluguel, entre outras acusações. Ele se declarou inocente. Depois que o julgamento se arrastou por alguns meses, Banerjee aceitou um acordo: 26 anos de prisão e confisco da propriedade do Chippendales pelo governo norte-americano. Petrzela afirma que os advogados de Banerjee tentaram de tudo para evitar o confisco da empresa, sem sucesso. Até que, em outubro de 1994, um dia antes da sentença, Banerjee se suicidou em sua cela, na prisão. "Muito poucos indianos americanos conhecem sua história", afirma Anirvan Chatterjee, organizador de uma caminhada histórica sobre as raízes do sul da Ásia em Berkeley, na Califórnia. Para ele, a vida de Banerjee foi "a versão distorcida da história padrão dos negócios dos indianos na Califórnia nos anos 1990" e contradiz todos os estereótipos sobre a comunidade. Nas suas pesquisas, Petrzela descobriu que Banerjee havia tentado de todas as formas assimilar-se e tornar-se um verdadeiro homem de negócios californiano, mesmo com seu sotaque indiano prevalecendo na memória dos seus entrevistados. "É claro que as outras pessoas sempre o consideraram um total estrangeiro e muito indiano", afirma ela. "Mesmo depois da sua morte, a primeira coisa que as pessoas fazem ao comentar sobre ele é imitar o seu sotaque."
2023-03-09
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crg2gnrwxd5o
sociedade
O que é o Dia Internacional das Mulheres e como começou a ser comemorado?
Você deve estar vendo o Dia Internacional das Mulheres sendo mencionado na imprensa ou ouvindo comentários sobre o assunto. Mas para que serve esta data? Quando é? É uma celebração ou um protesto? Existe algo equivalente como um Dia Internacional dos Homens? E que eventos vão acontecer neste ano? Por mais de um século, o dia 8 de março é identificado ao redor mundo como uma data especial para as mulheres. A seguir, explicamos para você por quê. O Dia Internacional das Mulheres teve origem no movimento operário e se tornou um evento anual reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU). Fim do Matérias recomendadas Suas sementes foram plantadas em 1908, quando 15 mil mulheres marcharam pela cidade de Nova York exigindo a redução das jornadas de trabalho, salários melhores e direito ao voto. Um ano depois, o Partido Socialista da América declarou o primeiro Dia Nacional das Mulheres. A proposta de tornar a data internacional veio de uma mulher chamada Clara Zetkin, ativista comunista e defensora dos direitos das mulheres. Ela deu a ideia em 1910 durante uma Conferência Internacional de Mulheres Socialistas em Copenhague. Havia 100 mulheres, de 17 países, presentes, e elas concordaram com a sugestão dela por unanimidade. A data foi celebrada pela primeira vez em 1911, na Áustria, Dinamarca, Alemanha e Suíça. E seu centenário foi comemorado em 2011 — então, neste ano, estamos tecnicamente comemorando o 111º Dia Internacional das Mulheres. Mas o Dia Internacional das Mulheres só foi oficializado em 1975, quando a ONU começou a comemorar a data. E se tornou uma ocasião para celebrar os avanços das mulheres na sociedade, na política e na economia, enquanto suas raízes políticas significam que greves e protestos são organizados para aumentar a conscientização em relação à contínua desigualdade de gênero. A proposta de Clara de criar um Dia Internacional das Mulheres não tinha uma data fixa. A data só foi formalizada após uma greve em meio à guerra em 1917, quando as mulheres russas exigiram "pão e paz" — e quatro dias após a greve o czar foi forçado a abdicar, e o governo provisório concedeu às mulheres o direito ao voto. A greve das mulheres começou em 23 de fevereiro, pelo calendário juliano, utilizado na Rússia na época. Este dia corresponde a 8 de março no calendário gregoriano — e é quando é comemorado hoje. Roxo, verde e branco são as cores do Dia Internacional das Mulheres, de acordo com o site oficial. "Roxo significa justiça e dignidade. Verde simboliza esperança. Branco representa pureza, embora seja um conceito controverso. As cores se originaram da União Social e Política das Mulheres (WSPU, na sigla em inglês) no Reino Unido em 1908", afirmam. Existe, sim, 19 de novembro. Mas a data só foi criada na década de 1990 e não é reconhecida pela ONU. É celebrada em mais de 80 países em todo o mundo, incluindo o Reino Unido. Este dia celebra "o valor positivo que os homens trazem para o mundo, suas famílias e comunidades", de acordo com os organizadores, e visa destacar modelos positivos, aumentar a conscientização sobre o bem-estar dos homens e melhorar as relações de gênero. O tema para 2021 foi "Melhores relações entre homens e mulheres". O Dia Internacional das Mulheres é um feriado nacional em muitos países, incluindo a Rússia, onde as vendas de flores dobram durante três a quatro dias ao redor de 8 de março. Na China, muitas mulheres recebem meio dia de folga no 8 de março, conforme recomendado pelo Conselho de Estado. Na Itália, o Dia Internacional das Mulheres, ou La Festa della Donna, é comemorado com a entrega de botões de mimosa. A origem desta tradição não é clara, mas acredita-se que tenha começado em Roma após a Segunda Guerra Mundial. Nos EUA, março é o Mês da História das Mulheres. Todos os anos, um pronunciamento presidencial homenageia as conquistas das mulheres americanas. Neste ano, as comemorações vão continuar sendo um pouco diferentes por causa da pandemia de covid-19 e eventos virtuais devem ocorrer em todo o mundo, incluindo o da ONU. A ONU anunciou que seu tema para 2022 é "Igualdade de gênero hoje para um amanhã sustentável". Seus eventos vão reconhecer como mulheres ao redor do mundo estão respondendo às mudanças climáticas. Mas há também outros temas. O site do Dia Internacional das Mulheres — que diz que foi criado para "fornecer uma plataforma para ajudar a gerar mudanças positivas para as mulheres" — escolheu o tema #BreakTheBias e está pedindo às pessoas que imaginem "um mundo livre de vieses, estereótipos e discriminação". Testemunhamos um retrocesso significativo na luta global pelos direitos das mulheres no ano passado. O ressurgimento do Talebã em agosto mudou a vida de milhões de mulheres afegãs — meninas foram banidas do ensino médio, o Ministério para Assuntos da Mulher no país foi dissolvido e muitas mulheres foram instruídas a não voltar ao trabalho. No Reino Unido, o assassinato de Sarah Everard por um policial em serviço reacendeu os debates sobre a segurança feminina. A pandemia de covid-19 também continua a ter impacto nos direitos das mulheres. De acordo com o Global Gender Gap Report 2021 do Fórum Econômico Mundial, o tempo necessário para acabar com a disparidade global de gênero aumentou em uma geração, de 99,5 anos para 135,6 anos. Um estudo de 2021 da ONU Mulheres com base em 13 países mostrou que quase 1 em cada 2 mulheres (45%) relatou que ela própria ou uma mulher que conhecem sofreram alguma forma de violência durante a pandemia. Isso inclui o abuso que não é físico, sendo o abuso verbal e a negação de recursos básicos os mais comuns relatados. Apesar das preocupações com o coronavírus, passeatas ocorreram em todo o mundo no Dia Internacional das Mulheres no ano passado. No México, grupos de mulheres transformaram grades de metal, erguidas para proteger o Palácio Nacional, em um memorial improvisado para as vítimas de feminicídios. Em paralelo, mulheres na Polônia realizaram protestos em todo o país após a introdução de uma proibição quase total do aborto em janeiro de 2021. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Nos últimos anos, porém, houve avanços — especialmente no que se refere à liderança feminina. Kamala Harris se tornou a primeira mulher, a primeira negra e a primeira asiática-americana vice-presidente dos EUA em 2021. No mesmo ano, a Tanzânia empossou sua primeira presidente mulher, Samia Suluhu Hassan, enquanto Estônia, Suécia, Samoa e Tunísia tiveram primeiras-ministras mulheres pela primeira vez na história. Em janeiro de 2022, Xiomara Castro tomou posse como a primeira mulher presidente de Honduras. Em 2021, a Nova Zelândia aprovou licença remunerada para mulheres (e seus parceiros) que sofreram aborto espontâneo ou em caso de natimorto. Em 2020, o Sudão criminalizou a mutilação genital feminina. E não podemos deixar de falar no impacto da campanha #MeToo, denunciando experiências de assédio e agressão sexual. Começou em 2017, mas agora é um fenômeno global. Em janeiro de 2022, um professor universitário no Marrocos foi condenado a dois anos de prisão por comportamento indecente, assédio sexual e violência depois que estudantes universitárias quebraram o silêncio sobre os favores sexuais que ele havia exigido em troca de boas notas — uma série de escândalos deste tipo manchou a reputação das universidades marroquinas nos últimos anos. No ano passado, também houve avanços em relação ao aborto em vários países. Em fevereiro de 2022, a Colômbia descriminalizou o aborto nas primeiras 24 semanas de gestação. Nos EUA, enquanto isso, os direitos ao aborto foram restringidos em alguns estados, com no Texas, que proibiu procedimentos a partir de seis semanas de gravidez.
2023-03-08
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60646605
sociedade
Quais são as 10 joias mais icônicas da história
Em janeiro, a estrela de TV Kim Kardashian virou manchete ao comprar um pingente em forma de crucifixo que era usado com frequência pela princesa Diana, por um valor impressionante: 163.800 libras (cerca de R$ 1,02 milhão). Kardashian já havia comprado o relógio Cartier Tank de Jacqueline Kennedy em 2017. Acredita-se que ela está formando uma coleção de joias para homenagear as mulheres que a inspiram. "Um passado ilustre pode acrescentar imenso valor a uma joia, especialmente se o dono anterior tiver sido alguém extremamente glamouroso, que tenha formado uma coleção de joias, como a princesa Margaret ou Elizabeth Taylor", afirma Helen Molesworth, curadora de joias do Museu Victoria & Albert, de Londres. É claro que uma joia é principalmente valiosa pela sua qualidade e beleza estética e “o joalheiro que a criou pode agregar valor, se for um designer conhecido”, segundo Molesworth. Mas, muitas vezes, a procedência da peça é o que a define como realmente excepcional. Ao longo do tempo, diversas gemas notáveis e desenhos de joias excepcionais reuniram histórias que fizeram com que passassem a ser ícones inquestionáveis ou talismãs malditos – de símbolos da devoção do amor até representações de conquistas coloniais; de diamantes “amaldiçoados” até acessórios de estilos ousados. Fim do Matérias recomendadas Aqui, revelamos as histórias por trás de 10 das joias mais lendárias do mundo. A joia que chamou a atenção de Kardashian, com suas ametistas lapidadas em quadrados e ofuscadas por diamantes de 5,2 quilates, foi criada nos anos 1920 pela joalheria londrina Garrard. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A empresa era uma das favoritas de Diana, Princesa de Gales (1961-1997), e desenhou seu anel de noivado. Mas a joia, na verdade, nunca pertenceu a Diana. Ela foi emprestada para a princesa em várias ocasiões, por Naim Attallah, que dá o nome à joia. Attallah era amigo próximo de Diana e, na época, um dos diretores-gerentes da Asprey & Garrard. Segundo seu filho, a princesa foi a única mulher que ele permitiu que usasse a peça. Para Molesworth, Kardashian é uma proprietária adequada para a joia: "é uma mulher empreendedora, comprando para ela própria – um grande símbolo de igualdade de classe e de gênero no mundo das coleções comerciais". Brilhante e arrojado, o crucifixo representa uma mudança no estilo cada vez mais empoderado de Diana nos anos 1980. Kristian Spofforth, chefe de joalheria da casa de leilões Sotheby’s, de Londres, observou antes da venda que "até certo ponto, este pingente incomum é um símbolo da crescente autoconfiança da princesa nas suas escolhas de roupas e joias, naquele momento específico da sua vida". Spofforth refere-se ao mês de outubro de 1987, quando a princesa usou o crucifixo gigante no baile de caridade da organização Birthright. Ela combinou a peça com um colar de pérolas que se acredita ter pertencido a ela própria e um vistoso vestido em estilo elisabetano, da mesma cor púrpura do crucifixo. Diamantes negros cristalinos, por si só, já são especiais. É por isso que o diamante negro Orlov talvez seja o mais raro da sua espécie. O Orlov é uma pedra de 67,49 quilates em forma de almofada, com distinta tonalidade metálica e uma lenda de arrepiar. A história conta que o diamante original, com cerca de 195 quilates, foi roubado de uma estátua do deus hindu Brahma, em um santuário indiano do século 19. O diamante teria sido então amaldiçoado. Ele teria causado a morte do ladrão e o suicídio de três dos seus donos: uma princesa russa chamada Nadia Vygin-Orlov, uma de suas parentes e J. W. Paris, o negociante de diamantes que importou a pedra nos Estados Unidos. Pesquisas recentes lançaram dúvidas sobre esta história. Especialistas consideram improvável que o diamante tenha se originado na Índia e duvidam que a princesa Orlov tenha realmente existido. O que se sabe é que o diamante foi novamente lapidado para formar três gemas individuais, na esperança de quebrar o feitiço. E os donos seguintes do Orlov – agora disposto na forma de pingente, rodeado por uma coroa de louros feita de diamantes – aparentemente escaparam da maldição. La Peregrina é uma pérola deslumbrante em forma de pera encontrada na costa do Panamá em 1576. Ela conta uma história tão interessante quanto seu formato. "É simplesmente uma das pérolas mais perfeitas do mundo, se não a mais perfeita. E tem por trás grandes histórias e um romance", explica Helen Molesworth. A pérola pesa 202,24 grãos (50,56 quilates) e foi comprada inicialmente pelo rei Filipe 2º da Espanha para sua noiva, a rainha Maria 1ª da Inglaterra (1516-1558). Ela foi passada de geração em geração na realeza espanhola, até cair nas mãos de Joseph-Napoléon Bonaparte, irmão mais velho de Napoleão. Muito depois, em 1969, ela foi comprada por Richard Burton para Elizabeth Taylor e remontada em um colar desenhado por Cartier. "É uma grande história de amor, mas também engraçada", segundo Molesworth. "Taylor contou na sua autobiografia que, certa vez, estava sentada no sofá com Burton, quando percebeu que a pérola havia caído da corrente." "Ela olhou para baixo e encontrou seu filhote de cachorro mastigando algo no tapete - a pérola estava entre seus dentes. Felizmente, ela conseguiu recuperá-la relativamente incólume." La Peregrina foi vendida em 2011 pela casa de leilões Christie's de Nova York, nos Estados Unidos, por US$ 11.842.500 (cerca de R$ 61,6 milhões, em valores atuais), tornando-se a pérola natural mais cara já leiloada na época. Outro diamante enfeitiçado por um passado sinistro é o diamante Hope, a joia da coroa da Coleção Nacional de Gemas do Museu Smithsonian, nos Estados Unidos. "É um diamante azul-escuro muito raro, que recebeu o nome dos seus donos", explica Arabella Hiscox, especialista em joias da casa de leilões Christie's de Londres. A pedra tem 45,52 quilates - o maior diamante do seu tipo conhecido. "Quando exposto à luz ultravioleta, seu brilho é vermelho-sangue, o que só aumenta o seu mistério", afirma Hiscox. O escritor Karl Shuker conta as origens lendárias do diamante Hope no seu livro The Unexplained ("O não explicado", em tradução livre), de 1996. A pedra teria sido "impiedosamente arrancada [da] testa de um ídolo em um templo indiano" por um sacerdote hindu. Conta-se que ele teria despertado a maldição e sofrido com ela. Em 1668, o diamante foi comprado pelo rei Luís 14, da França - e roubado durante a Revolução Francesa, entre comentários de que o rei e Maria Antonieta teriam sido vítimas da maldição. Pierre Cartier foi o responsável pelo belo colar de diamantes brancos que agora sustenta o diamante Hope. Ele o vendeu para a herdeira da mineração Evalyn Walsh McLean em 1912 — o que teria condenado seu destino. "Conta-se que dois filhos de McLean morreram enquanto ela estava usando o diamante", segundo Hiscox. Em 1958, o então dono do Hope, o joalheiro Harry Winston, doou a joia para o Smithsonian, no que Hiscox considera "uma jogada de isenção de impostos muito inteligente". Agora guardado, sua maldição parece ter desvanecido. O famoso caso de amor entre Wallis Simpson e o rei Eduardo 8°, que abdicou do trono britânico em 1936 para casar-se com a socialite norte-americana, pode ser acompanhado de muitas formas, através da deslumbrante coleção de famosas joias Cartier que o casal encomendou, um para o outro, ao longo da vida. Grande parte da coleção foi vendida pela Sotheby’s em 2010. O astro do leilão foi o bracelete de pantera de Simpson, ornamentado com ônix e diamantes e olhos de esmeralda arrebatadores – um presente que ela ganhou de Eduardo em 1952, durante o exílio do casal em Paris. "Esta peça possui quase todas as qualidades que fazem uma joia icônica", afirma Magali Teisseire, chefe de joalheria da Sotheby’s de Paris. "É muito importante para a história da Cartier", prossegue ela. "Foi projetada por Jeanne Toussaint [mulher pioneira no design de joias] e apelidada La Panthère por Louis Cartier, que concebeu o desenho de pantera original. Você tem então a qualidade, o design histórico e, é claro, a origem romântica." Na época do leilão, Madonna estava filmando sua cinebiografia de Simpson, intitulada WE. Conta-se que ela chegou a colocar o bracelete, mas o nome do comprador — que pagou a inacreditável quantia de 4,5 milhões de libras (cerca de R$ 28,2 milhões) pela peça em forma de felino — nunca foi revelado. O Koh-i-Noor é um dos maiores diamantes lapidados do mundo. Ele tem 105,6 quilates e também é um dos mais controversos entre as joias da coroa britânicas. Acredita-se que ele tenha sido originalmente extraído no sul da Índia, na era medieval. Mas as origens escritas do diamante remontam a 1628, quando ele adornou o trono incrustado de gemas do então imperador mogol Shah Jahan. Em 1739, o trono foi pilhado pelo governante persa Nader Shan durante a invasão de Déli, na Índia, e o diamante foi levado para o território que hoje é o Afeganistão. Segundo a Smithsonian Magazine, a pedra então "passou pelas mãos de diversos governantes, entre um episódio sangrento e outro", até ressurgir na Índia, no colo do marajá sikh Ranjit Singh, em 1813. A companhia britânica East India Company, em meio à colonização de grande parte do subcontinente asiático na época, tomou conhecimento do diamante. Encantada pela mitologia envolvida, decidiu reivindicá-la. E assim o fez em 1849, forçando o marajá Duleep Singh - herdeiro do trono punjabi, que tinha 10 anos de idade - a abrir mão do diamante e da sua soberania. A companhia então presenteou o Koh-i-Noor à rainha Vitória. A pedra foi mostrada ao público na Grande Exposição de 1851, quando foi ridicularizada pela sua falta de brilho. Em meio a rumores de uma maldição, a pedra foi então novamente lapidada e polida. Atualmente, o Koh-i-Noor ornamenta a coroa da falecida rainha-mãe britânica, mas os governos da Índia, Paquistão, Irã e Afeganistão já exigiram a devolução desse símbolo singular de conquista colonial. "Quando se fala em pessoas que você gostaria que tivessem sido donas das suas joias, Maria Antonieta está no topo da lista", afirma Arabella Hiscox. A prova é um conjunto de 10 joias que pertenceram à rainha francesa, que foram comprados pela família Bourbon-Parma e novamente vendidos por uma fortuna, em um leilão recordista da Sotheby's em 2018. Um belo pingente de pérola natural foi a peça que atingiu o maior preço de venda. Ele havia sido embalado a mão e colocado em um baú de madeira pela própria Maria Antonieta e enviado para Bruxelas pouco antes da captura da rainha. Mas Magali Teisseire considera um minúsculo anel com monograma como a peça de maior destaque da coleção histórica. "Ele possui as letras MA em diamantes e, dentro, há uma mecha dos cabelos de Maria Antonieta", explica ela. "É uma peça incrivelmente íntima e um anel que ela usou com muita frequência." "Eu me lembro de perguntar ao especialista que avaliou as joias quanto essa rara peça poderia render", ela conta. "A resposta foi: muito. A estimativa era de 8 a 10 mil francos suíços [R$ 44,5 a 55,5 mil] e nós a vendemos por 50 vezes este valor." Comprado nos anos 1870 por Charles Lewis Tiffany, fundador da joalheria americana Tiffany & Co., a pedra ficou famosa quando Audrey Hepburn a usou nas fotos publicitárias do filme Bonequinha de Luxo, de 1961. Este diamante amarelo único, visualmente espetacular e culturalmente adorado, tem um passado problemático. A gema de 128,54 quilates, até hoje, só foi usada por quatro mulheres: a socialite Mary Whitehouse, Hepburn (que a usou no colar Ribbon Rosette do joalheiro da Tiffany Jean Schlumberger), Lady Gaga e Beyoncé. As duas últimas usaram a joia em um contexto atualizado: um colar de 2012 com diamantes brancos que somavam 100 quilates de pedras. Mas o ar de exclusividade do magnífico diamante trouxe com ele a controvérsia das suas origens muito mais obscuras. O diamante foi desenterrado em 1877 na mina de Kimberley, na África do Sul. A mina era conhecida pelas condições assustadoras que os trabalhadores negros eram forçados a enfrentar e pelos baixíssimos salários durante o regime colonial britânico. Em uma coluna publicada no jornal The Washington Post em 2021, a escritora Karen Attiah defende que, embora a expressão “diamante de sangue” designe normalmente “recursos usados por milícias perigosas e senhores da guerra para financiar suas operações”, essa denominação deveria ser estendida para incluir diamantes como este, em reconhecimento às “milhares de vidas africanas perdidas e comunidades destruídas na corrida colonial para controlar os recursos do continente”. Um dos tesouros mais simbólicos da coleção de joias ilustres do Museu Victoria & Albert é o que Helen Molesworth descreve como uma "coroa de safiras e diamantes bela, mas compacta". O príncipe Albert a desenhou para a rainha Vitória no ano em que eles se casaram (1840). Sua elaboração esteve a cargo de Joseph Kitching, da joalheria Kitching e Abud, de Londres. A coroa foi um dos pertences mais preciosos que Vitória teve ao longo da vida. "Ela usou a famosa tiara como círculo fechado em volta do coque quando jovem e, mais tarde, no luto, no seu véu de viúva - claramente, uma forma para que ela mantivesse seu amado Albert por perto", explica Molesworth. Ela destaca que safiras são gemas particularmente emblemáticas para a família real britânica. Tudo começou com os desenhos de Albert para Vitória, até chegar ao anel de noivado de Diana. "Elas simbolizam o azul da realeza, além da fé e da verdade e, por isso, são ideais para casamentos", afirma Molesworth. Afinal, essa gema com profundo significado faz o melhor que as joias podem fazer, segundo ela: "contém um sinal público e um significado pessoal". O histórico colar de diamantes de Napoleão foi um presente do imperador francês para sua segunda esposa, Maria Luísa da Áustria, quando nasceu seu filho, Napoleão 2º, Imperador de Roma, em 1811. O deslumbrante desenho de ouro e prata foi concebido pela Etienne Nitôt and Sons, de Paris. Segundo o Smithsonian, o colar continha originalmente 234 diamantes: 28 diamantes antigos lapidados em minas, nove pedras em forma de pera e 10 briolettes, além de diversas gemas menores. "Todas as pedras foram extraídas na Índia ou no Brasil, de onde vinham os melhores diamantes naquela época", afirma Hiscox sobre o aspecto magnético do colar. "Eles têm essa qualidade extraordinariamente límpida, como água." Após a queda de Napoleão, Maria Luísa - da casa de Habsburgo - e suas muitas joias voltaram para sua cidade de origem, Viena. E, após a morte dela, o colar passou para sua cunhada, a arquiduquesa Sofia da Áustria. Sofia decidiu reduzi-lo, removendo duas pedras que foram transformadas em brincos, cujo paradeiro atual é desconhecido. Já o colar permaneceu na família até 1948, quando foi vendido - primeiro, para um colecionador francês, depois para a empresária norte-americana Marjorie Merriweather Post, que o doou ao Smithsonian em 1962. No museu, ele continua sendo reverenciado, segundo Hiscox, como "uma das peças mais espetaculares do [seu] tempo".
2023-03-07
https://www.bbc.com/portuguese/articles/crgey00y1ezo
sociedade
Por que muitas mulheres chinesas não querem mais ter filhos
"Não posso me dar ao luxo de ter filhos", diz Gloria, que é casada e está na casa dos 30 anos. Ela calculou que criar um filho onde ela mora na China custaria cerca de US$ 2,4 mil por mês, além de outras despesas. "Seriam 3.000 yuans (US$ 436) para despesas diárias, como alimentação. 2.000 (US$ 291) para o jardim de infância, 1.000 (US$ 145) para creche em meio-período, se for necessário, e pelo menos 10.000 (US$ 1.456) para escola." Gloria trabalha em meio-período como professora primária na Província de Guangdong, no sul da China. A renda média para quem trabalha no setor privado nesta parte do país é de cerca de 6.000 yuanes por mês (US$ 873). Fim do Matérias recomendadas Como filha única, resultado da agora extinta política de filho único da China, ela diz que precisa se concentrar em pagar seu financiamento imobiliário e economizar dinheiro para cuidar dos pais idosos. E novos dados mostram que a maioria das mulheres chinesas quer ter apenas um ou nenhum filho. A porcentagem de mulheres chinesas que não têm filhos aumentou de 6% em 2015 para 10% em 2020, de acordo com uma pesquisa recente do Centro de Pesquisa de População e Desenvolvimento da China. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O levantamento também mostrou que as mulheres chinesas em idade reprodutiva têm menos intenção de engravidar, com a média do número de filhos desejados caindo para 1,64 em 2021, em comparação com 1,76 em 2017. Enquanto outros países asiáticos como Singapura, Japão e Coreia do Sul também apresentam uma taxa de fecundidade inferior a dois, a maioria das pessoas ainda diz que quer ter dois filhos. Na China, isso não acontece. "Nesse sentido, a China é um caso atípico porque não apenas a fecundidade real é baixa, como os desejos de fecundidade também são baixos", diz Shuang Chen, professora assistente de política pública e social internacional da Universidade London School of Economics (LSE), no Reino Unido. Assessores do governo apresentaram várias propostas para aumentar a taxa de natalidade do país. As sugestões incluem o apoio a mulheres solteiras para congelar óvulos e a isenção de taxas de mensalidade e livros didáticos do jardim de infância à faculdade. Outra ideia é conceder direitos iguais aos filhos de pais solteiros. Na China, crianças nascidas de pais solteiros têm dificuldade em obter o hukou, uma espécie de registro oficial familiar exigido para ter acesso à educação, saúde e bem-estar social, e as taxas administrativas podem ser caras. O alto custo de criar um filho é uma das principais razões pelas quais as mulheres chinesas não querem dar à luz. Na China, a competição com os colegas começa praticamente no minuto em que você nasce — com os pais tentando te matricular em uma boa escola comprando uma casa perto de distritos escolares populares e inscrevendo os filhos em vários cursos extracurriculares. "Não quero trazer uma nova vida a um ambiente competitivo tão acirrado", diz Mia, estudante universitária de 22 anos. Nascida em uma pequena cidade no norte da China, Mia considera que sua educação foi focada em provas. Ela fez o "Enem" chinês, mais conhecido como Gaokao, e passou a frequentar uma universidade de prestígio em Pequim. Mas ela diz que se sentia estressada a maior parte do tempo. Os formandos de hoje, observa ela, também precisam competir com aqueles que tiveram condições de estudar no exterior. “Todo esse suporte educacional extra requer dinheiro”, diz Mia, que não acredita que vai conseguir ganhar dinheiro suficiente para oferecer essas oportunidades a um possível filho no futuro. "Se eu não sustentar uma criança para crescer dessa maneira, então por que traria uma vida a este mundo?" As mulheres chinesas entrevistadas pela BBC também mencionaram os impactos negativos na carreira como um fator que as levou a optar por não ter filhos. Em entrevistas de emprego, as mulheres lembraram que eram questionadas se planejavam ter filhos nos próximos anos. Elas dizem que se respondessem que sim, as chances de serem contratados seriam menores, ou teriam menos chance de serem promovidas. "O equilíbrio entre vida pessoal e profissional é um fator muito enfatizado pelas mulheres chinesas com ensino superior quando estão considerando se estão prontas para ter um bebê", afirma Yun Zhou, professora assistente de sociologia na Universidade de Michigan, nos EUA, à BBC. "Trabalhar para elas é sobre autorrealização", explica. "Em um mercado de trabalho cheio de discriminação de gênero, é difícil escolher entre a carreira e ter um filho." Como muitos jovens que adoram compartilhar suas vidas nas redes sociais, Mia gravou um vídeo explicando por que não queria ter filhos e postou na internet. Para sua surpresa, ela recebeu centenas de comentários abusivos. Muitos a acusaram de ser egoísta. Alguns disseram que ela não sabia o que queria, pois ainda estava na casa dos 20 anos. "Veja se você ainda vai pensar assim quando estiver na casa dos 40 anos", comentou um usuário. "Aposto US$ 10 mil que você vai se arrepender", dizia outro. O governo chinês introduziu sua política de três filhos em maio de 2021 em resposta aos resultados do censo de 2020, que mostraram que as mulheres chinesas deram à luz apenas 12 milhões de bebês naquele ano, o menor número de nascimentos desde 1961. Nos últimos anos, o governo introduziu várias políticas novas para encorajar mais pessoas a terem filhos. Mas, devido às baixas taxas de fecundidade da China, aos olhos de alguns cidadãos, uma mulher que diz não à maternidade está desapontando o país. "É minha escolha pessoal. Não estou defendendo a ideia de que ninguém tenha filho. Respeito as pessoas que querem filhos", argumenta Mia. Desafiar as expectativas da família em relação a ter filhos pode ser igualmente difícil. "Foi uma batalha árdua", diz Yuan Xueping, de 34 anos. Nascida e criada em uma área rural onde ter um filho homem para dar continuidade ao nome da família é considerado um dever da mulher, ela precisou lutar para dizer não à maternidade. Yuan e sua irmã mais velha não puderam ir para a faculdade, embora ela estivesse entre as três melhores alunas da escola. Seus pais pagaram apenas para que seu irmão mais novo continuasse os estudos. "Meus pais sempre diziam: 'Qual é o sentido de uma garota ir para a faculdade? Mais cedo ou mais tarde, você vai se casar e ficar em casa para criar seus filhos'", recorda Yuan. Quando sua tia, da mesma faixa etária, se divorciou e teve que criar dois filhos sozinha, ela ficou ainda mais desanimada. "Não confio mais na instituição do casamento", diz ela, que saiu de casa para uma cidade onde desfruta agora de sua independência. "Eu leio e saio com amigos nas horas vagas. Me sinto livre." * Reportagem adicional de Lara Owen
2023-03-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c2q9729yv5xo
sociedade
Por que Brasil tem caído em ranking global de desigualdade de gênero
Ser mulher significa, estatisticamente, ter menos oportunidades de crescimento profissional e receber menos do que colegas homens ao desempenhar uma mesma função. É a desigualdade de gênero, um problema estrutural que nenhum país conseguiu equacionar completamente - e que vai além do mercado de trabalho. Em algumas regiões, meninas têm menos acesso à educação do que meninos, mulheres têm acesso mais precário à saúde do que homens e enfrentam muito mais barreiras para entrar na política. O Fórum Econômico Mundial, organização sem fins lucrativos que realiza encontros anuais em Davos (Suíça) que reúnem empresários e líderes de todo o mundo, elabora desde 2006 um indicador que procura agregar essas diferentes dimensões da desigualdade de gênero. Fim do Matérias recomendadas O escore vai de zero a 1 — quanto mais perto de 1, mais próximo está o país de atingir a igualdade de gênero. O Brasil está mal posicionado no ranking. Na edição de 2022, ganhou o 94º lugar entre 146 nações, e vem piorando sua colocação desde 2020, quando ocupava o 92º lugar. Nesses três anos, o país chegou a conseguir melhorar marginalmente sua nota, de 0,691 para 0,696. Outros países, contudo, tiveram um crescimento mais significativo e acabaram ganhando posições. "Os países começaram a se preocupar mais com isso nos últimos 15 anos, mas o progresso ainda é muito lento", diz a economista Regina Madalozzo. "Mas mesmo nesse avanço tão lento, o Brasil avança menos", conclui ela, que é membro do Grupo de Estudos em Economia da Família e do Gênero (GeFam), que reúne pesquisadores de diversas instituições. O país que está mais próximo de acabar com a desigualdade de gênero é a Islândia, que ocupa o topo da lista do Global Gender Gap Report, com escore de 0,908, e é seguida por Finlândia (0,860) e Noruega (0,845). Também estão no top 10 Ruanda (6º lugar, 0,811) e Nicarágua (7º, 0,810). No desempenho por regiões, o Brasil tem um dos piores índices da América Latina e Caribe. Entre 22 países, está à frente apenas de Belize e da Guatemala. Olhando para os quatro pilares que formam o índice, o país está bem colocado nas áreas de saúde e educação (o que significa que o acesso de homens e mulheres a esses direitos é mais equânime) e tem desempenho melhor do que o índice agregado no pilar de participação econômica, ficando em 85º lugar. É no último pilar, de empoderamento político, que o país está na lanterna, na posição 104, com escore de 0,136. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A professora do Insper Ana Diniz afirma que muitos dos países bem colocados na lista — como os nórdicos — têm "políticas de gênero mais estruturadas, especialmente aquelas orientadas para o trabalho e para as múltiplas dimensões que interferem na participação das mulheres no mercado". No caso do Brasil, ela acrescenta, o foco das políticas de gênero historicamente esteve voltada para a violência contra a mulher por conta da própria gravidade do problema. Mas mesmo essas ações foram desidratadas nos últimos quatro anos, diz a economista, como mostram os dados da execução orçamentária do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. O Ministério Público Federal chegou a abrir um inquérito para apurar porque, em 2020, a pasta gastou apenas 44% do orçamento aprovado. Na avaliação de Regina Madalozzo, parte do avanço mais lento do Brasil nessa área também tem relação com o retrocesso na discussão sobre os papéis de gênero nos últimos anos. "As pessoas passaram a se sentir no direito de reproduzir falas preconceituosas e confundiram isso com liberdade de expressão. Então você acaba perdendo parte do progresso que tinha feito, porque o progresso passa em educar as pessoas, ensiná-las que não se pode tratar diferente", pontua. Trata-se da dimensão cultural da desigualdade de gênero, que também tem influência direta no combate ao problema e se manifesta, por exemplo, nos estereótipos de gênero: a ideia de que cabe mais às mulheres do que aos homens o trabalho doméstico e o cuidado com crianças e idosos; ou de que algumas áreas do conhecimento, como as exatas e as tecnologias, são mais masculinas. Esse último caso é o que Ana Diniz definiu para a reportagem como "divisão sexual do conhecimento": "como a gente prepara as mulheres para algumas áreas que estão mais relacionadas aos cuidados, e os homens, a outras áreas, que estão mais relacionadas à decisão e à tecnologia e que, não por uma coincidência, tendem a ser as áreas mais valorizadas em termos de remuneração". Ambas as economistas destacam que a pandemia também teve um papel no aprofundamento das desigualdades de gênero, à medida que as mulheres se viram diante de um aumento do trabalho doméstico e da demanda por cuidados vinda da família, especialmente enquanto as crianças estiveram em casa, quando as escolas estavam fechadas. O relatório de 2022 do Global Gender Gap chama atenção para o impacto da covid-19 e afirma que "a perda de emprego por conta da pandemia foi significativamente pior para as mulheres do que para os homens, ao contrário de outras recessões na história recente, que afetou mais trabalhadores homens". As estatísticas no Brasil vão nessa direção. Segundo a Pnad Contínua, do IBGE, a taxa de desemprego entre as mulheres atingiu um pico de 18,5% no primeiro trimestre de 2021, período em que o desemprego entre os homens foi de 12,2%. A diferença de 6,3 pontos percentuais entre os dois índices é a maior da série, que começa em 2012. As mulheres não só ficaram mais desempregadas, mas também saíram mais do mercado de trabalho. Em 2020, no primeiro ano da pandemia, a taxa de participação das mulheres (ou seja, o percentual de mulheres em idade ativa que está de fato no mercado, seja à procura de vagas ou empregada), caiu pela primeira vez abaixo de 50% na série da Pnad Contínua. Entre os homens, o percentual também caiu, mas se manteve em nível maior que o das mulheres, 67%. Ainda que a pandemia tenha afetado o nível de permanência das mulheres no mercado, a diferença expressiva nas taxas de participação de cada gênero é estrutural e também está ligada à desigualdade de gênero. Uma série de fatores contribuem para manter mais mulheres fora da força produtiva. Gravidez na adolescência, falta de creches, casamento precoce… todos são fatores que contribuem para que as mulheres tenham uma relação mais intermitente com o mercado de trabalho. É por isso que todas essas dimensões, na avaliação das especialistas, deveriam estar dentro do escopo das políticas públicas do Estado quando se propõe a diminuir a desigualdade de gênero. "Fiz uma pesquisa por volta de 2012 com moradoras de baixa classe social da cidade de São Paulo, famílias com crianças com menos de seis anos de idade. E metade delas relatou que não estava trabalhando porque não conseguia vaga em creche para o filho", exemplifica Madalozzo. "Tinha uma parte que não trabalhava porque o marido não queria que ela trabalhasse e tinha uma parte pequena que não trabalhava porque realmente era ela que não queria, mas a maioria falava: 'Eu não consigo porque eu não arrumo uma vaga em creche'." Ampliar a oferta de vagas em creches, aumentar a licença paternidade, combater a gravidez precoce e incluir na educação dos meninos tarefas tradicionalmente vistas como restritas ao universo feminino são algumas das ações enumeradas pela economista que poderiam contribuir para tornar as oportunidades e desafios do cotidiano mais igualitários entre homens e mulheres. Para Ana Diniz, cuja área de pesquisa engloba iniciativas públicas e privadas para combater desigualdades e promover a inclusão no mercado de trabalho, em paralelo ao poder público, o setor privado também tem um papel importante nessa construção. "A gente fala muito em revisar as práticas de gestão, especialmente aquelas aplicadas à gestão de pessoas, para que elas não estejam embebidas desses estereótipos, não reproduzam limites e barreiras às mulheres e para que elas sejam sensíveis às especificidades de cada grupo." A economista acrescenta que o tema da autonomia econômica da mulher — ou seja, dar condições para que ela entre, cresça e permaneça no mercado de trabalho — conversa diretamente com o problema endêmico da violência contra a mulher. "Não é que necessariamente uma mulher que tenha autonomia econômica sairá da situação de violência, mas na maior parte das vezes ela precisa da autonomia econômica para poder sair. Se não tiver, ainda que queira, ela não consegue." O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) afirmou, na última semana, que seu governo está preparando uma proposta de lei, a ser anunciada no próximo dia 8 de março, para garantir que mulheres e homens que ocupem as mesmas funções recebam os mesmos salários. No dia 1º de março, a primeira dama, Janja Lula, e a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, reuniram as 11 ministras que compõem o governo (entre 30 ministérios) e as presidentes da Caixa e do Banco do Brasil para "marcar o posicionamento do governo federal na ampliação dos espaços de poder feminino".
2023-03-06
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c4nljwjq0nno
sociedade
O multimilionário plano do Japão para estimular casais a terem mais filhos
É "agora ou nunca", alertou o primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, se referindo à queda acentuada da fecundidade no país. Ele afirmou há algumas semanas que o Japão está prestes a não conseguir funcionar como sociedade devido à baixa histórica na taxa de natalidade. No ano passado, pela primeira vez em mais de um século, o número de bebês nascidos no Japão ficou abaixo de 800 mil, segundo estimativas oficiais. Na década de 1970, esse número passava de 2 milhões. "Focar a atenção em políticas relacionadas às crianças e ao cuidado infantil é uma questão que não pode esperar ou ser adiada", declarou Kishida, acrescentando que está é uma das questões mais urgentes da agenda do país neste ano. Embora a queda na taxa de natalidade seja um fenômeno bastante difundido nos países desenvolvidos, o problema é mais grave no Japão, dado que a expectativa de vida aumentou nas últimas décadas, o que significa que há um número cada vez maior de idosos e cada vez menos trabalhadores para sustentá-los. Fim do Matérias recomendadas Na verdade, o Japão é o país com a população mais idosa do mundo, depois de Mônaco, segundo dados do Banco Mundial. É muito difícil para qualquer país sustentar sua economia quando uma parte significativa da população se aposenta, os serviços de saúde e o sistema previdenciário são sobrecarregados ao máximo, e o número de pessoas em idade ativa diminui. Diante deste problema, Kishida anunciou que vai dobrar os gastos fiscais do governo destinados a programas que promovem a natalidade por meio do apoio à criação de filhos. Isso significa que os gastos do governo aumentariam para cerca de 4% do Produto Interno Bruto (PIB). No entanto, outros governos japoneses já tentaram promover estratégias semelhantes, sem obter os resultados esperados. Atualmente, a média de filhos de uma mulher japonesa é de 1,3, uma das taxas mais baixas do mundo (a Coreia do Sul tem a menor, 0,78). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast São muitas as causas desta crise demográfica. Algumas são comuns em países desenvolvidos e outras são típicas da cultura japonesa. Entre elas, estão: - Desigualdades de gênero no trabalho doméstico e na criação dos filhos; - Pequenos apartamentos nas grandes cidades que não oferecem espaço para uma família extensa; - Alto custo e forte pressão para que as crianças frequentem as melhores escolas e universidades; - Aumento do custo de vida; - Maior participação de mulheres no mercado de trabalho; - Alta demanda de trabalho e pouco tempo para se dedicar à criação dos filhos; - Mulheres jovens mais instruídas que preferem permanecer solteiras e não ter filhos; - Mulheres que decidem adiar a gravidez até uma idade mais avançada, reduzindo o número de anos férteis. Estas são algumas das razões que contribuem para diminuir as taxas de natalidade, explica Tomas Sobotka, vice-diretor do Instituto de Demografia de Viena, na Áustria. "No Japão existe uma cultura de trabalho punitiva que exige longas jornadas de trabalho, alto nível de comprometimento e alto desempenho dos funcionários", deixando pouco espaço para ter filhos. "Está claro que o apoio monetário às famílias pode resolver apenas parcialmente as razões por trás da baixíssima fecundidade no país", acrescenta. Além disso, as medidas financeiras típicas, segundo Sobotka, não são suficientes para compensar significativamente o alto custo de ter filhos. Os governos japoneses rejeitaram a imigração como possível solução para a escassez crônica de mão de obra e a crescente pressão sobre o financiamento da saúde e da previdência social. Rupert Wingfield-Hayes, ex-correspondente da BBC no Japão, diz que "a hostilidade contra a imigração não diminuiu". Apenas cerca de 3% da população do Japão nasceu no exterior, em comparação com 15% em outros países, como o Reino Unido. "Na Europa e nos Estados Unidos, os movimentos de direita apontam o país como um excelente exemplo de pureza racial e harmonia social. Mas o Japão não é tão etnicamente puro quanto esses admiradores podem pensar", explica Wingfield-Hayes. "Se você quer ver o que acontece com um país que rejeita a imigração como solução para a queda da fecundidade, o Japão é um bom lugar para começar." Giovanni Peri, fundador e diretor do Centro de Migração Global da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, e pesquisador do National Bureau of Economic Research, diz que a imigração é essencial para o desafio japonês. "Um número maior de imigrantes seria uma maneira eficaz de conter o declínio populacional e de mão de obra." No entanto, ele adverte: "Não vejo governos dispostos a aceitar o grande fluxo de imigrantes necessário para permitir o crescimento da população no Japão". Do ponto de vista demográfico, diz Peri, é desejável um aumento dos fluxos migratórios, sobretudo de jovens, para as economias avançadas. Mais imigrantes evitariam que o tamanho da força de trabalho diminua ainda mais e gerariam mais receita tributária, argumenta. O governo do Japão já deixou claro que a imigração não é a sua solução — e decidiu apostar no dinheiro. O plano do premiê Kishida é dobrar os gastos públicos em programas dedicados a apoiar a criação de filhos. Mas alguns analistas, como Poh Lin Tan, acadêmica da Escola de Políticas Públicas Lee Kuan Yew da Universidade Nacional de Cingapura, argumentam que, em outros países asiáticos, aumentar os gastos fiscais para estimular a natalidade não funcionou. Em Cingapura, o governo luta contra a tendência implacável de queda na fecundidade desde os anos 1980. Em 2001, introduziu um pacote de incentivos econômicos para aumentar a taxa de natalidade. Atualmente, diz Poh, o pacote inclui licença-maternidade remunerada, subsídios para creches, isenções e abatimentos fiscais, bônus financeiro e subsídios para empresas que implementam contratos de trabalho flexíveis. "Apesar desses esforços, a taxa de fecundidade continuou caindo", afirma a especialista. E, assim como vem diminuindo no Japão e em Cingapura, também está caindo na Coreia do Sul, Taiwan, Hong Kong e cidades chinesas de alta renda como Xangai. Em Cingapura e em outros países asiáticos, existe uma espécie de paradoxo do sucesso. "A incapacidade de aumentar a taxa de fecundidade não é tanto um testemunho de políticas pró-natalidade ineficazes, mas do sucesso esmagador de um sistema econômico e social que recompensa fortemente as conquistas e penaliza a falta de ambição", diz Poh. Por isso, ele diz que também são necessárias mudanças que não dependam de incentivos monetários. Uma política melhor, argumenta a acadêmico, seria ajudar os casais que desejam ter pelo menos dois filhos a atingir suas metas de fecundidade, em vez de persuadir aqueles que não estão convencidos e encorajar a gravidez em mulheres mais jovens. Stuart Gietel-Basten, professor de Ciências Sociais da Universidade de Ciência e Tecnologia de Hong Kong e da Universidade Khalifa, em Dubai, concorda. Para aumentar realmente a taxa de fecundidade, ele explica, é preciso apoiar quem já pretendia ter um filho a ter dois. "A razão pela qual as políticas para aumentar a fecundidade não têm funcionado é porque elas não abordam as razões fundamentais", como empregos instáveis, papéis de gênero desiguais dentro de casa, discriminação no ambiente de trabalho e alto custo de vida. Nesse sentido, “a baixa fecundidade é um sintoma de outros problemas”. Melhorar as condições de vida das pessoas é essencial para incentivar as taxas de natalidade, diz Tomas Sobotka. São medidas como maior flexibilidade no trabalho, creches públicas de boa qualidade, licenças maternidade e paternidade bem remuneradas ou moradia a preços acessíveis. Mas nem mesmo tudo isso, ele adverte, é suficiente para aumentar significativamente as taxas de natalidade no Japão. O que o país precisa é de uma transformação ainda mais profunda, porque "as normas e expectativas familiares e de gênero da sociedade permanecem arraigadas ao passado". Muitas vezes, ele explica, "as mães continuam a ser vistas como as únicas responsáveis ​​por cuidar da família, pelos afazeres domésticos, pelo bem-estar, educação e sucesso escolar dos filhos". Segundo Sobotka, poucos países da Europa conseguiram um aumento sustentado em suas taxas de natalidade. Em certa medida, isso aconteceu na Alemanha, que adotou políticas familiares nos últimos 20 anos, melhorando as condições de trabalho e a assistência infantil para aqueles que decidem ter filhos. A Estônia também teve algum sucesso ao aplicar algumas medidas semelhantes. Pelo menos na Europa, “os países que investem mais recursos em políticas familiares de longo prazo têm, em média, taxas de fecundidade mais altas”, diz o especialista. A França, que agora é um dos países com maior fecundidade da Europa, diz Sobotka, conseguiu. Pela sua experiência ao pesquisar o assunto, o que não funciona é adotar políticas pró-natalidade com um "enfoque limitado". Isso acontece quando os governos estabelecem metas específicas de fecundidade centradas em incentivos econômicos para os pais. E há menos chance de funcionar quando esses incentivos monetários “são acompanhados de restrições ao acesso à saúde sexual e reprodutiva ou ao aborto”, argumenta o especialista. - Texto originalmente publicado em
2023-03-05
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjmwp2p293do
sociedade
O britânico que não sabia ler e escrever até 18 anos e virou mais jovem professor negro de Cambridge
Diagnosticado na infância com autismo e atraso global do desenvolvimento, Jason Arday só começou a falar com 11 anos — e aprendeu a ler e escrever aos 18. Agora com 37 anos, ele está prestes a se tornar o professor negro mais jovem da Universidade de Cambridge, no Reino Unido. Embora não conseguisse falar, o pequeno Jason já questionava de forma fervorosa o mundo à sua volta. Ele lembra de se perguntar: "Por que algumas pessoas moram na rua? Por que há guerras?". Nascido e criado em Clapham, no sudoeste de Londres, Arday é agora sociólogo. Ele cita alguns momentos que influenciaram sua formação, como assistir pela televisão à libertação de Nelson Mandela e ao emblemático triunfo da África do Sul na Copa do Mundo de Rugby de 1995. Fim do Matérias recomendadas Ele se lembra de ficar profundamente comovido com o sofrimento das outras pessoas e de se sentir na obrigação de tomar uma atitude. "Eu me lembro de pensar que, se não tivesse sucesso como jogador profissional de futebol ou de sinuca, eu queria salvar o mundo", revela. A mãe dele desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento das suas habilidades e autoconfiança. Ela apresentou a ele uma ampla variedade de músicas, na esperança de que isso o ajudasse na conceitualização da linguagem. Mas isso também despertou um profundo interesse pela cultura popular, que caracterizou parte de suas pesquisas. Com o apoio do seu mentor, professor universitário e amigo Sandro Sandri, Arday finalmente começou a ler e escrever no final da adolescência. Ele se formou em Educação Física e Estudos da Educação na Universidade de Surrey, no Reino Unido. E, na sequência, se tornou professor de Educação Física. Arday conta que ter sido criado em uma região relativamente menos favorecida e que ter trabalhado como professor de escola permitiu a ele ver de perto as desigualdades sistêmicas enfrentadas pelos jovens de minorias étnicas na educação. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Aos 22 anos, ele se interessou em fazer pós-graduação e comentou com seu mentor sobre a ideia. "Sandro me disse: 'Acho que você consegue — acho que podemos conquistar o mundo e vencer'", ele recorda. "Fazendo uma retrospectiva, aquela foi a primeira vez em que realmente acreditei em mim mesmo". "Muitos acadêmicos dizem que acabaram por acaso nesse ramo, mas desde aquele momento, eu estava determinado e focado — sabia que aquele seria o meu objetivo." Aprender a se tornar um acadêmico, no entanto, foi muito difícil, especialmente porque ele tinha pouco treinamento prático ou orientação a respeito. Durante o dia, Arday trabalhava como professor de Educação Física de ensino superior. À noite, ele escrevia artigos acadêmicos e estudava Sociologia. "Quando comecei a escrever artigos acadêmicos, não tinha ideia do que estava fazendo", ele conta. "Não tinha um orientador, e ninguém nunca me mostrou como escrever. Tudo o que eu apresentava era violentamente rejeitado." "O processo de revisão por pares era muito cruel, quase engraçado. Mas tratei como uma experiência de aprendizado e, de maneira perversa, comecei a gostar daquilo." Arday concluiu dois mestrados e um doutorado em Estudos da Educação. Questionado sobre quando percebeu que era sociólogo, ele conta que foi provavelmente por volta de 2015. "Analisando agora, era o que eu queria fazer." Oito anos depois, Arday está prestes a se tornar professor de Sociologia da Educação na Universidade de Cambridge. Há, atualmente, cinco professores negros dando aula na universidade. Dados oficiais da Agência de Estatísticas da Educação Superior do Reino Unido mostram que, em 2021, dos mais de 23 mil professores universitários do país, apenas 155 eram negros. Com previsão para assumir o novo cargo em 6 de março, Arday tem interesse particular em melhorar a representação das minorias étnicas no ensino superior. “Meu trabalho se concentra principalmente em como podemos abrir portas para mais pessoas socialmente desfavorecidas e democratizar verdadeiramente a educação superior”, diz ele. Em 2018, Arday teve seu primeiro artigo publicado e conseguiu uma vaga na Universidade de Roehampton antes de ir para a Universidade de Durham, onde trabalhou como professor de Sociologia. Em 2021, ele passou a dar aula de Sociologia da Educação na Universidade de Glasgow, na Escócia, o que fez dele, na época, um dos professores universitários mais jovens do Reino Unido. "Espero que estar em um lugar como Cambridge me forneça as ferramentas para promover esta agenda a nível nacional e internacional", afirma. "Falar sobre isso é uma coisa; fazer é o que interessa." Em seu trabalho atual sobre neurodiversidade e estudantes negros, ele está colaborando com a pesquisadora Chantelle Lewis, da Universidade de Oxford, também no Reino Unido. “Cambridge já está fazendo mudanças significativas e atingiu ganhos notáveis na tentativa de diversificar o cenário”, avalia. “Mas há muito mais a ser feito — aqui e em todo o setor.” “A universidade tem pessoas e recursos notáveis; o desafio é como usar esse capital para melhorar as coisas para todos e não apenas para alguns”, explica o professor. “Fazer isso corretamente é uma arte – é preciso diplomacia real e todos precisam estar inspirados para trabalhar juntos.” “Se quisermos tornar a educação mais inclusiva, as melhores ferramentas que temos são a solidariedade, a compreensão e o amor.”
2023-03-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c29j1xr84weo
sociedade
Belga condenada por assassinar 5 filhos morre por eutanásia com alegação psicológica
Uma belga de 56 anos que matou os cinco filhos foi submetida por vontade própria à eutanásia, exatamente 16 anos após os assassinatos. Genevieve Lhermitte matou o filho e as quatro filhas — com idades de três a 14 anos — em 28 de fevereiro de 2007, na cidade belga de Nivelles, enquanto o pai deles estava fora. Ela tentou tirar a própria vida na sequência, mas não conseguiu, e acabou ligando para os serviços de emergência pedindo ajuda. Lhermitte foi condenada à prisão perpétua em 2008, antes de ser transferida para um hospital psiquiátrico em 2019. Na Bélgica, a lei permite que as pessoas optem pela eutanásia se for considerado que elas estão passando por um sofrimento psicológico "insuportável", e não apenas físico, que não pode ser curado. Fim do Matérias recomendadas A pessoa precisa estar consciente da decisão e ser capaz de expressar seu desejo de forma fundamentada e consistente. "É esse procedimento específico que a senhora Lhermitte seguiu, com diferentes opiniões médicas coletadas", declarou seu advogado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A psicóloga Emilie Maroit disse ao canal RTL-TVI que Lhermitte provavelmente escolheu morrer no dia 28 de fevereiro num "gesto simbólico de respeito aos filhos". “Também pode ter sido para ela terminar o que começou, porque basicamente ela queria acabar com sua vida quando os matou”, acrescentou. O crime gerou grande comoção na Bélgica em 2007. Durante o julgamento, os advogados de Lhermitte argumentaram que ela sofria de transtorno mental, e não deveria ser mandada para a prisão. Mas o júri a considerou culpada de assassinato premeditado e a condenou à prisão perpétua. Em 2010, Lhermitte entrou com uma ação civil exigindo até três milhões de euros de um ex-psiquiatra, alegando que sua "inércia" não impediu os assassinatos, mas ela acabou abandonando a batalha legal após 10 anos. Em 2022, cerca de 2.966 pessoas morreram por eutanásia na Bélgica, um aumento de 10% em relação a 2021. O câncer continua sendo o motivo mais comum, mas as autoridades disseram que em aproximadamente três de cada quatro solicitações, os pacientes apresentam "vários tipos de sofrimento, tanto físico quanto psicológico". Desde 2014, a Bélgica permite que crianças sejam ajudadas a morrer, assim como adultos, se estiverem com doenças terminais e com muita dor e se tiverem o consentimento dos pais.
2023-03-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cqe8dr6jylmo
sociedade
Como a geração Z consegue fazer amigos na era das relações virtuais
Nayomi Mbunga sempre quis morar em uma cidade grande. Ela ficou entusiasmada quando conseguiu um emprego na área de tecnologia em Toronto, no Canadá. A jovem de 24 anos cresceu na Irlanda e estava ansiosa para "conhecer pessoas em todas as fases da vida", segundo ela. Mas foi difícil fazer amizades começando no emprego em janeiro de 2022, trabalhando à distância e isolada nos primeiros meses, devido aos casos de covid-19. Mbunga gostava dos seus colegas, mas não tinha muita oportunidade de conhecê-los sem encontrá-los pessoalmente, o que foi impossível por meses depois que ela começou no emprego. Ela se dava bem com suas colegas de quarto e uma delas já era sua conhecida, mas queria expandir o seu círculo social. Ela se perguntava como seria possível fazer amigos. Mbunga não praticava esportes e ela se sentia "esquisita" fazendo contato com estranhos que pareciam agradáveis no Instagram. Por isso, suas oportunidades de tentar fazer novas amizades limitavam-se ao trabalho remoto e à sua casa. Ela também sentiu que estava sem prática de cultivar relacionamentos, apesar de ser muito sociável. Fim do Matérias recomendadas "Durante a pandemia, fiquei chocada ao ver como fiquei antissocial, como fiquei nervosa para falar com pessoas novas e me apresentar a elas", conta Mbunga. Fazer amigos quando se é profissional em início de carreira é fundamental, especialmente para pessoas em uma cidade nova sem laços estabelecidos. Esses amigos incentivam as pessoas nas crises profissionais e em momentos pessoais. Em alguns casos, eles acabam ficando amigos para a vida inteira. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Fazer amigos na idade adulta pode já ser difícil por natureza, mas nunca houve tantas barreiras como agora, especialmente para os jovens da Geração Z – os nascidos entre 1995 e 2010. O trabalho sempre foi um local para fazer conexões, mas muitos desses jovens perderam essa oportunidade quando as empresas passaram a adotar modelos de trabalho híbrido, distribuído ou remoto. Especialistas afirmam que, de forma geral, os círculos sociais diminuíram depois de dois anos de isolamento causados pela pandemia – e, em alguns casos, nem chegaram a ser estabelecidos. Isso significa que existem jovens buscando novas formas de fazer amigos. Particularmente, os jovens da Geração Z, criados em meio às redes sociais, agora utilizam novas plataformas para estabelecer conexões fortes e sustentáveis, algo que as gerações anteriores não faziam. Simplesmente, os profissionais jovens estão ficando mais criativos com relação à forma em que eles conhecem as pessoas. Em abril de 2022, Mbunga encontrou no TikTok um vídeo postado por Chloe Bow, uma funcionária pública que virou criadora de conteúdo. Ela falava honestamente sobre amizades. Bow estava planejando eventos para um grupo criado por ela, chamado Toronto Girl Social. Mbunga a seguiu e se inscreveu para uma noite no cinema, apesar de estar nervosa. "Quando fui ao evento, foi tão divertido, todas estavam exatamente no mesmo barco, todas estavam nervosas, todas vieram sozinhas, e isso meio que quebrou o gelo, de certa forma", relembra Mbunga. "Provavelmente foi a melhor coisa que eu fiz, porque conheci muitas pessoas ali." Entre a Geração Z, a covid-19 criou uma situação sem precedentes para a formação de amizades. Para os que ainda estão na escola, os lockdowns da pandemia impuseram um período de isolamento e interrupção das atividades. E os que acabaram de entrar no mercado de trabalho também se viram isolados dos novos colegas que teriam conhecido em circunstâncias normais. "Durante a pandemia, houve falta de consistência", afirma Joyce Chuinkam, gerente de pesquisas da agência de pesquisa de mercado Talk Shoppe, com sede em Los Angeles, nos Estados Unidos. Ela entrevistou millennials (nascidos entre 1981 e 1995) e jovens da Geração Z sobre suas amizades durante a pandemia. Chuinkam observa que a escola e o trabalho, que tradicionalmente eram "experiências consistentemente compartilhadas" pelos jovens adultos nas gerações passadas, não serviam mais a este propósito. "Muitas pessoas, e a Geração Z especificamente, que está entrando no mercado de trabalho, não tiveram necessariamente a experiência de poder fazer amigos da forma normal. Eles estão começando pela primeira vez em um novo emprego onde não conhecem ninguém", explica Miriam Kirmayer, psicóloga clínica e especialista em amizades de Montreal, no Canadá. Pesquisas indicam o quanto a pandemia afetou o senso de conexão dos jovens da Geração Z. Janice McCabe, professora de sociologia da Faculdade Dartmouth, nos Estados Unidos, estuda como as redes de amizades favorecem o sucesso. Em 2016, ela começou a realizar entrevistas com estudantes de três universidades de New Hampshire, nos Estados Unidos, para observar como essas novas amizades se desenvolveram ao longo da vida. Depois de completar sua segunda onda de entrevistas em 2021, quando seus participantes estavam entrando no mercado de trabalho, ela observou como a pandemia havia prejudicado suas capacidades de manter amizades e fazer novos amigos. "Fazer novos amigos era muito difícil [durante a pandemia], de forma que as redes estavam diminuindo em todos os setores", afirma ela. Essa escassez de relacionamentos pode prejudicar o bem-estar de qualquer pessoa, mas o momento não poderia ser pior para a Geração Z. Eles estão enfrentando atualmente períodos de imensas mudanças de vida: formação na escola, mudança para novas cidades, início de novos empregos, entrada no mercado de trabalho – e, em muitos casos, todas ao mesmo tempo. "Com todas essas mudanças, eles precisam ter uma comunidade nos seus novos espaços", afirma Chuinkam. E ela acrescenta que eles precisam aprender com as novas experiências: "Fazer novos amigos ajuda – ser exposto a algo totalmente novo e diferente". Mas, agora, isso está em falta. E encontrar essas amizades significativas que desafiam e expandem os horizontes dos jovens adultos é uma experiência fundamental que afeta o resto da vida da pessoa, segundo McCabe. No início da idade adulta, as pessoas estão buscando uma sensação de identidade e os amigos podem ajudar alguém a se tornar uma pessoa melhor ou diferente, segundo explica McCabe. "Nós nos vemos através dos nossos amigos, de forma que vemos e imaginamos o 'tipo de pessoa' que somos pensando e falando com nossos amigos", afirma ela. É claro que não é uma situação perdida para os jovens da Geração Z. Para muitos deles, a limitação das redes sociais tem sido uma grande preocupação e eles estão criando formas inovadoras para estabelecer o tipo de amizade que as gerações anteriores encontravam com mais facilidade em locais como os escritórios. Segundo a pesquisa da Talk Shoppe, Chuinkam concluiu que a Geração Z é mais aberta que os millennials para fazer novos amigos online, por meio de aplicativos de amizade como o Bumble BFF e grupos do Facebook. Mas os aplicativos podem ser assustadores, pois muitas vezes eles possibilitam encontros pessoais, exercendo pressão similar à de um primeiro encontro, segundo os participantes do estudo. A Geração Z sente que sua "possibilidade de fazer amigos é maior" se eles se conhecerem nos grupos do Facebook, afirma Chuinkam. Esses grupos costumam desenvolver-se em torno de hobbies em comum e também apresentam uma "forma mais confortável de conhecer pessoas" do que a experiência pessoal de um aplicativo. Embora muitos estejam abertos para essas estratégias, os meios existentes de formar conexão não funcionam para todos os jovens da Geração Z. Alguns criaram seus próprios aplicativos ou centrais online para fazer novos amigos em um ambiente social desafiador. Durante o ano letivo de 2020, por exemplo, Jamie Lee era aluna da Universidade Columbia em Nova York, nos Estados Unidos. Ela estudava de forma remota e procurava formas de fazer conexões autênticas com seus colegas online. No verão daquele ano, ela lançou a versão beta do que seria conhecido como seu aplicativo, o Flox. Nele, grupos de amigos podiam inscrever-se para encontrar outros grupos de amigos. Para Lee, esta pareceu ser uma forma mais autêntica para que a Geração Z fizesse amigos, como ela disse ao website de notícias sobre tecnologia TechCrunch, já que as pessoas tendem a ser mais autênticas perto dos amigos que elas já têm. Conhecer novas pessoas como um grupo permitiria que elas fossem elas mesmas e retiraria parte do nervoso do processo de fazer amigos. Um cenário mais específico levou Marissa Meizz, de Nova York, a criar sua própria central online para encontrar amigos, chamada No More Lonely Friends ("Não mais amigos solitários"), que agora tem alcance nacional. O grupo surgiu no verão de 2021, quando a jovem, então com 23 anos de idade, encontrou um vídeo no TikTok no qual um estranho a alertou que seus amigos estavam planejando deliberadamente dar uma festa sem que ela soubesse. Para encontrar novos – e melhores – amigos como membro da Geração Z, Meizz usou a internet para convidar pessoas estranhas para suas reuniões. Ela agora está tentando expandir o serviço, com um formulário online que as pessoas podem assinar para comparecer aos seus eventos no exterior. Por mais importante que seja a internet, o fascínio de conhecer alguém pessoalmente não desapareceu para todos os jovens. Depois que Pranav Iyer, com 23 anos, formou-se na faculdade na Filadélfia, nos Estados Unidos, em 2020, ele se mudou para uma cidade no oeste do Estado americano de Maryland para trabalhar em um laboratório. Mas o emprego era totalmente remoto. "Acho que não me sentia realmente próximo de ninguém... talvez uma vez por semana, nós tivéssemos uma reunião comigo e mais duas outras pessoas do laboratório, mas era isso", ele conta. "Na maior parte da semana, era apenas eu sentado em frente ao meu computador." Em vez de concentrar-se em fazer novos amigos onde morava, Iyer escolheu outra estratégia. Ele fazia viagens regulares para a Filadélfia, para reforçar os círculos sociais que ele já havia formado na faculdade. O trabalho remoto o impedia de fazer novos amigos no laboratório, mas também permitiu que ele trabalhasse onde quisesse, de forma que podia ficar na Filadélfia por longos períodos. Por fim, como a Geração Z não teve a "experiência de fazer novos amigos no trabalho, a quem eles realmente pudessem recorrer e impulsionar para manter a sensação de estarem socialmente conectados", segundo Kirmayer, os jovens estão fundamentalmente mudando suas estratégias sobre a forma e a aparência das suas conexões. Essas mudanças também alteraram toda a ideia tradicional de que o trabalho funciona como "central de amizade e conexão social". Chuinkam destaca que a Geração Z também está mais disposta a descentralizar essa "central", graças ao seu conforto com os métodos online de conhecer novas pessoas e à sua capacidade de trabalhar remotamente e visitar seus amigos, em vez de fazer com que os amigos venham até eles. Sim, eles podem estar enfrentando uma época difícil devido à pandemia – mas, se existe alguém realmente disposto a cultivar essas amizades em um mundo em mutação, são eles. Quanto a Nayomi Mbunga, ela está entusiasmada com os diferentes tipos de pessoas que conseguiu conhecer no Toronto Girl Social, expandindo seu mundo bem além das colegas de quarto e do seu trabalho. "É algo muito novo para mim ficar ao lado de tantas pessoas, literalmente... todas com históricos diferentes", ela conta, descrevendo as mulheres que conheceu no grupo. Uma delas havia acabado de se mudar da Ucrânia para Toronto e outra, da Índia. Algumas estão na faculdade e outras são casadas e têm filhos. "Nunca estive em uma situação onde conheci tantas pessoas diferentes, todas ao mesmo tempo... estou adorando esta parte", afirma Mbunga.
2023-02-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c72drndnr7vo
sociedade
Por que mulheres não deveriam esperar 3 meses para anunciar gravidez, segundo especialistas
Há um velho ditado no Chile, de quando não havia como diagnosticar uma gravidez. "Menos de três meses é atraso, mais de três meses é gravidez”. E embora essa frase seja antiga, ela faz referência a um princípio tácito que é seguido por muitas mulheres em todo o mundo: o melhor período para compartilhar a notícia de uma gravidez é após o primeiro trimestre, para evitar problemas caso algo “dê errado” e a gestação não siga adiante. Isso não é apenas uma tradição que muitas mulheres adotam sem pensar muito no assunto, é também uma recomendação que alguns médicos fazem para supostamente proteger os pais de terem de lidar publicamente com as más notícias. De acordo com a Biblioteca Nacional de Medicina dos Estados Unidos, uma em cada quatro gestações conhecidas termina em aborto espontâneo. A estimativa é de que a porcentagem real seja ainda maior, já que a grande maioria dos abortos espontâneos (que ocorrem principalmente devido a uma anormalidade cromossômica) ocorre nas primeiras semanas, às vezes até mesmo antes de a mulher descobrir a gestação. Fim do Matérias recomendadas No entanto, para muitos especialistas em luto gestacional ou perinatal — que trata da perda do embrião desde qualquer idade até a morte após o nascimento —, esse sigilo em torno das primeiras semanas de gravidez pode ser contraproducente. Não falar sobre um aborto espontâneo caso ocorra, dizem especialistas e mulheres que já passaram por isso, invalida e torna invisível um luto que para muitos costuma ser um período extremamente doloroso. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os estudos de luto perinatal mostram que, de fato, "quando houve um aborto na 8ª ou 9ª semana, para dar um exemplo, a dor dessa mãe que perdeu o filho se mistura à dor de perder um filho que nunca existiu e que nunca conseguiu contar sobre ele a ninguém.” É assim que explica à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) Andrea Von Hovelin, ginecologista que fez parte da equipe de assessoria da Lei Dominga, promulgada no Chile em 2021, que estabelece um protocolo universal em hospitais e clínicas sobre a perda perinatal. Mas quando a notícia é compartilhada, pode acontecer o contrário, diz a especialista. "Às vezes há um elemento de consolo em saber que os avós passaram a amá-lo, ou há um elemento de despedida como os sapatinhos que seu tio lhe deu." "A sensação de que se escondermos a existência da gravidez, se ela for perdida, vai doer menos, é muito tendenciosa, muito masculina", diz Von Hovelin. “Há momentos em que os pais ficam mais aliviados por não ter que contar, mas a experiência que você ganha com as histórias das mulheres é o contrário. Elas te dizem: nunca ninguém chegou a querer ele, ele nunca existiu. Eu tive esse filho, quero colocá-lo na minha biografia e ninguém soube dele.Se ninguém sabia, como faço para justificar meu luto?” Por outro lado, abortos nessa fase inicial tendem a gerar pouca empatia, diz a especialista. “Quando alguém quer fazer algum tipo de velório ou rito de despedida para essa criança, muitas vezes o que se encontra no ambiente é deboche ou incompreensão franca ou evasiva”. “Te dizem coisas como: você precisa pensar no seu outro filho, ou ao menos sabe que é uma pessoa fértil. Coisas que, mesmo com as melhores intenções, nos impedem de expressar e invalidam completamente a existência daquele filho, como se fôssemos ficar patologicamente de luto, quando na verdade foi demonstrado que os lutos que se encerram têm um melhor prognóstico do ponto de vista da saúde mental”, comenta. “Me diziam frases como ‘mas ainda nem estava formado, a natureza é sábia e mata ovos ruins’. Eu entendo isso racionalmente, mas para mim não era um ovo ruim, era meu filho”, diz Von Hovelin, que sofreu um aborto espontâneo durante o primeiro trimestre da gravidez. "Sim, a natureza é sábia, mas tremendamente cruel. E, nesse momento, para mim era mais cruel do que sábia", se recorda. Avaliar o impacto psicológico de uma perda gestacional no primeiro trimestre é algo complexo. "Eles me diziam frases como 'ei, mas ainda nem estava formado, a natureza é sábia: mata ovos ruins'. Eu entendo isso racionalmente, mas para mim não era um ovo ruim, era meu filho", ele diz Von Hovelin, que sofreu um aborto espontâneo durante o primeiro trimestre da gravidez. "Sim, a natureza é sábia, mas tremendamente cruel. E, naquela época, para mim era mais cruel do que sábia", lembra. Embora tendemos a pensar que quanto mais avançada a gravidez, maior a dor, essa não é uma relação matemática. Um aborto espontâneo nas primeiras semanas também pode ter um impacto profundo em algumas mulheres ou casais. “Varia largamente de pessoa para pessoa, dependendendo do seu próprio perfil psicológico, sua história de perdas, o apoio ao seu redor e inclusive como se sente em relação ao seu corpo, porque, infelizmente, escutamos muitas mulheres que nesses casos dizem que sentem que seus corpos falharam e se culpam por algo que está fora de seu controle”, explica Jessica Zucker à BBC News Mundo. Ela é doutora em psicologia em Los Angeles e autora do livro I had a miscarriage (Eu tive um aborto espontâneo, em português). Uxia*, mãe de uma menina de 11 anos e outra de sete, sofreu dois abortos espontâneos por volta da sétima semana de gravidez, após o nascimento da primeira e antes da segunda filha. Ela conta que a experiência foi devastadora. “Tinha ido ao médico por outro problema e quando contei que estava grávida fizeram uma ultrassonografia. Quando não encontraram batimento cardíaco, foi um choque emocional pra mim. Não havia tido problemas, não tinha nenhum indício de que algo estava errado”, diz ela. "Embora fossem apenas sete semanas, emocionalmente é brutal. Me lembro de tentar me convencer dizendo: não se preocupe, é apenas um pequeno grupo de células, um embrião." "Mas mesmo sabendo que é só um grupinho de células que se desenvolveu mal, você já se projetou por um ano com esse bebê, já se imaginou mãe, já começou a fazer planos. Então, emocionalmente, o luto que você está passando é muito maior do que a descrição científica do que você perde.” "Além disso, seu corpo ainda está ‘gestante’ (se você fizer o teste depois de um aborto espontâneo, ainda dá positivo). Você tem uma revolução hormonal que dura muito mais do que o próprio aborto. Eu me olhava no espelho e ainda tinha barriga, seios inchados, ainda estava constipada", lembra Uxía. Outra coisa que ela não esquece é o sentimento de culpa. "’Como algo pode ter dado errado e eu não ter notado nada?', eu me perguntava." "E olhando para o que aconteceu, eu queria saber se talvez eu devesse ter descansado mais ou feito algo diferente." Uxía procurou ajuda psicológica, um grupo para compartilhar sua experiência (na Espanha, seu país natal, e no Reino Unido, onde mora atualmente) e, na época, não encontrou nada que se adequasse a essa situação particular. Foi justamente a falta de informação e a vontade de entender porque as mulheres não falam sobre isso, porque se sentem culpadas e se veem como fracassadas por não terem conseguido conceber um filho saudável, que motivou, no outro lado do mundo, Jessica Zucker. Ela se especializou no tema após perder o seu bebê no segundo trimestre e lançou uma campanha para dar visibilidade ao aborto espontâneo. Usando a hashtag #Ihadamiscarriage (eu tive um aborto espontâneo), ela começou a desencadear "uma conversa global sobre esse assunto". "Não estou dizendo que todas temos que gritar nossa perda em voz alta, nem todas temos que nos tornar defensoras neste espaço, mas se você não está compartilhando (sua perda) porque está com vergonha ou porque pensa há algo errado com você, ou porque é algo que você não deveria fazer, pergunte a si mesmo por quê", diz Zucker. "Precisamos mudar isso de uma vez por todas, porque não faz bem a ninguém." A regra das 12 semanas é "incrivelmente prejudicial para as mulheres e para as suas famílias. Todos nós precisamos de apoio, independentemente de a gravidez continuar ou não", diz. Ainda que tudo corra bem e a gravidez transcorra sem grandes transtornos, manter a gravidez escondida nas primeiras semanas também pode ter um impacto direto na gestante, já que este costuma ser o período mais extenuante e mobilizador tanto do ponto de vista emocional quanto físico. Zucker observa que esse é o estágio em que você pode sentir náuseas ou "ficar muito preocupada porque tem perdas e acha que está abortando, então pode precisar de apoio mais cedo". Em retrospecto, Uxía acredita que se tivesse dado a notícia, sua qualidade de vida naquela época teria melhorado. "Depois de passar por duas gestações completas, percebi que quando me sentia mais vulnerável e com menos energia, era nos primeiros três meses", diz ela. "As mudanças em seu corpo são tremendas, tudo é novo, e se é sua primeira gravidez você está cheia de ansiedades e ilusões, tudo junto." "Na minha experiência, eu precisaria de muito mais ajuda, compreensão ou flexibilidade de trabalho nos primeiros três meses do que nos últimos três, porque não tinha metade da energia lá do que no quarto, quinto ou sexto." "É irônico que justamente quando eu mais precisava de flexibilidade no trabalho ou simplesmente alguma compreensão dos meus colegas para a situação que eu estava passando, eu não tive. Mas no final são essas regras da sociedade que são impostas e de uma forma ou de outra forma limitam as mulheres", diz Uxía. Não se trata, claro, de obrigar nenhuma mulher a compartilhar ou revelar informações que ela considera privadas e não deseja tornar públicas. É uma decisão muito individual, concordam os especialistas ouvidos pela BBC News Mundo. O importante é justamente se deixar levar pela intuição, pela própria necessidade e não pelas regras sociais, sejam elas explícitas ou não. *Uxía é um nome fictício para proteger a identidade da mulher que prestou depoimento nesta história.
2023-02-28
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cz7rx7jezdro
sociedade
Como escravidão e racismo alimentaram gordofobia, segundo socióloga
Os padrões de beleza e a percepção da sociedade em relação aos corpos estão sempre mudando. Se os quadros do pintor flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640) foram aclamados por retratar a beleza das curvas acentuadas do início do século 17, na década de 1960, a britânica Twiggy ganhou os holofotes como uma das primeiras top models magérrimas a estampar capas de revista. E enquanto em séculos passados o excesso de gordura e a obesidade já foram considerados símbolos de riqueza e saúde em meio a epidemias de desnutrição, hoje muitas pessoas gordas sofrem ataques e preconceito. Mas, afinal, quando e como a gordura e os corpos mais volumosos passaram a ser depreciados? A socióloga e professora da Universidade da Califórnia Irvine, Sabrina Strings, estuda há anos esse tema. E, segundo a tese desenvolvida por ela, o surgimento da gordofobia estaria ligado ao início da escravidão africana na Europa e América. O tráfico de negros africanos como escravizados foi uma das principais atividades comerciais dos países dominantes no período de 1501 a 1867. Antes disso, segundo Strings, os padrões de beleza na Europa — especialmente os femininos — eram muito similares àqueles vistos em muitas obras renascentistas: corpos mais cheios e com muitas curvas. Fim do Matérias recomendadas Mas segundo a tese defendida pela pesquisadora, o padrão de corpo ideal teria passado a ser mais magro e longilíneo a partir do momento em que os escravizados, tirados à força da África, começaram a ser considerados "gordos demais" ou julgados pela quantidade de alimentos que ingeriam. "Durante o Renascimento, que também coincidiu com a ascensão do comércio de escravizados, nasceu na mentalidade europeia uma conexão entre negritude e gordura", diz Strings à BBC News Brasil. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Os europeus passaram a visitar as colônias e disseminar a ideia de que os negros comiam demais e, como resultado, tendiam a ser mais gordos." Aqui, segundo explica a socióloga, há também um elemento que é constantemente discutido por pesquisadores de uma área de estudos conhecida como pós-colonialismo. Segundo esse ponto de vista, em seu esforço de conquistar novos territórios, os europeus teriam promovido uma ideia de contraste em relação aos povos colonizados. Ou seja, de que eles eram exatamente o oposto dos africanos, sul-americanos e asiáticos nativos em termos religiosos, morais e até físicos. Portanto, se os negros eram mais encorpados, os brancos precisavam buscar a magreza. "Os europeus se viam como mais racionais, lógicos e disciplinados. E por isso decidiram criar um padrão de beleza para suas mulheres que fosse representativo daqueles que consideram seus ideais e valores", opina a professora da Universidade da Califórnia Irvine. "Assim, por volta do século 18, foi disseminada a ideia de que as mulheres, em particular, deveriam ser esbeltas e que esse era o padrão a ser desejado pelos homens". Ainda segundo a socióloga, mesmo os cientistas da época pregavam a ideia de que as mulheres africanas eram mais propensas a engordar do que as europeias. "Dizia-se que os homens da África gostavam de suas mulheres robustas e a imprensa europeia divulgava supostos eventos culturais realizados no continente que eram descritos como festivais destinados a engordar as mulheres". O ideal de beleza magro foi sendo reforçado e adaptado aos diferentes períodos ao longo da história, mas segundo Sabrina Strings, a associação entre racismo e gordofobia nunca deixou de existir. "As mulheres não-brancas são vítimas mais frequentes da gordofobia, especialmente nos Estados Unidos", diz a pesquisadora, que é americana. Segundo ela, essa relação ficou ainda mais evidente durante a pandemia de covid-19, quando, para tentar explicar porque mais membros da comunidade afro-americana estavam morrendo da doença nos EUA, muitos pesquisadores e médicos passaram a citar o excesso de peso, a má alimentação e a falta de exercícios físicos como causas. "A narrativa de que o peso dos negros é um prenúncio de doenças e da morte há muito tempo serve como uma perigosa distração das verdadeiras fontes de desigualdade — e isso está acontecendo novamente", diz. Estudos realizados entre a população americana já mostraram que as taxas de sobrepeso e obesidade são maiores nas comunidades negras, especialmente nas mulheres. Mas para Sabrina Strings, esses dados devem ser analisados com cuidado, já que o principal índice usado para calcular o peso ideal de cada pessoa, o IMC (índice de massa corporal), não traduz da forma correta todas as especificidades e diferenças corporais da população mundial. "O IMC não é uma ferramenta confiável. Sabemos que existem muitas variações físicas entre pessoas de sexos e cores diferentes, então qual o sentido de estabelecer um único padrão para todos?", questiona a pesquisadora. A fórmula do IMC divide o peso do indivíduo pelo quadrado de sua altura. Os resultados são divididos em cinco faixas, que classificam as pessoas como abaixo do peso, peso saudável, sobrepeso e obeso. Strings alerta, porém, que essa fórmula foi desenvolvida com base em dados restritos e que, portanto, não reflete a realidade de boa parte da população mundial, ainda que seja considerada padrão pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por diversos países. O índice foi criado pelo matemático belga Lambert Adolphe Jacques Quetelet na década de 1830, que usou dados de companhias de seguro médico europeias para chegar até a fórmula. "Quem possuía seguro médico naquela época eram homens brancos de classe média", diz a socióloga. A discussão sobre as limitações do IMC não é nova e vêm crescendo na comunidade médica há alguns anos. Segundo especialistas, o índice não leva em consideração a composição corporal e tampouco reflete necessariamente o estado de saúde de uma pessoa. Para a socióloga da Califórnia, usar somente uma fórmula como base para todos é não só uma forma de racismo, mas também prejudicial para os próprios serviços de saúde prestados a diferentes grupos. “Sempre ouvimos que obesidade causa diabetes, mas nas comunidades negras essa relação está ficando cada vez mais fraca. Ou seja, outra coisa está causando diabetes e não sabemos o que é”. Sabrina Strings também ressalta que há uma conexão muito forte entre o sobrepeso e as condições financeiras de uma pessoa. "Existe uma forte relação entre peso e classe social que é contra-intuitiva. Tendemos a pensar que uma pessoa de mais baixa renda não teria dinheiro suficiente para comer, mas a verdade é que os alimentos ultraprocessados são muitas vezes mais baratos", diz. "E não é só uma questão de peso. Esses alimentos não só engordam mais, como também são menos saudáveis pela enorme quantidade de hormônios, sal e outros químicos que contêm". Para a pesquisadora, o combate às desigualdades sociais e raciais deveria ser prioridade não só na luta contra a obesidade e as doenças associadas, mas também na batalha contra a própria gordofobia. Há quem acredite, porém, que a origem da gordofobia está relacionada a mais do que um único fator. Uma dessas correntes, por exemplo, atribui o surgimento desse tipo de preconceito a um fascício pela antiguidade clássica durante o século 18. A burguesia teria sido influenciada pelo impulso de se parecer com os gregos e romanos e de gostar de corpos mais magros e musculosos. Segundo especialistas, as figuras encorpadas de Rubens pouco a pouco deram lugar a nus mais suaves e esbeltos na arte neoclássica. Simultaneamente, a moda passou a comercializar roupas em medidas menores, para se assemelhar à escultura antiga. Outra teoria aponta a influência dos primórdios literários do Romantismo no final do século 18 como elemento que pode ter influenciado a valorização da magreza. Muitas das obras desse período apresentavam uma personagem fictícia, feminina ou masculina, dotada de uma espécie de "magreza fatal" e uma vilania convincente. Essa figuras normalmente eram descritas como indivíduos de rosto marcado, estutura alta e longilínea e muita energia. E apesar de pouco ortodoxa, acredita-se que essa magreza extrema acabou se tornando popular justamente por sua morbidez e sugestão de práticas proibidas e preocupações profanas. Mais recentemente, a comunidade médica passou a ser apontada por muitos como responsável por vilanizar a obesidade e, por consequência, estimular a gordofobia.
2023-02-25
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c721j8j91lwo
sociedade
Por que os jovens devem aprender a liderar
A definição mais comum de liderança é a capacidade de motivar os demais a atingir objetivos definidos. Para algumas pessoas, isso significa ser heroico e especial. O mundo parou quando Nelson Mandela morreu. Suas conquistas — o lutador pela liberdade que virou prisioneiro político, o primeiro presidente negro da África do Sul, o vencedor do Prêmio Nobel da Paz — qualificavam Mandela como um grande líder. Para outros, liderança é sinônimo de gerenciamento. Embora estas palavras sejam frequentemente utilizadas de forma intercambiável, na verdade, elas não têm o mesmo significado. Talvez você conheça um gerente que não escolheria necessariamente para seguir, mas que você precisa obedecer, simplesmente porque ele está em uma posição de comando e você não quer perder o seu emprego. Fim do Matérias recomendadas Minha pesquisa demonstra que o que diferencia um líder de um gerente é a sua forma extraordinária de influência. E, longe de ser privilégio dos negócios e da política, todo coletivo — independentemente da profissão ou setor de atividade — precisa de um timoneiro. Em cada estágio e em cada esfera da vida, as pessoas precisam de alguém que possa defender seus valores e lutar pelas suas necessidades. Isso significa que até um jovem com 20 anos de idade no seu primeiro e mal remunerado emprego deve tratar de ganhar conhecimentos de liderança — e as pesquisas identificam quatro habilidades principais que precisam ser desenvolvidas. As habilidades empresariais envolvem a identificação de oportunidades onde os outros veem problemas ou confusão, e ser capaz de descobrir como melhor explorá-las. Fundamentalmente, isso significa não ter medo de correr riscos. Em 2018, Greta Thunberg arriscou-se a prejudicar seu desempenho escolar quando começou sua solitária greve pelo clima na escola, com 15 anos de idade. Ela foi indicada para o Prêmio Nobel da Paz em 2019 e trabalhou para consolidar um movimento ativista da juventude global. As habilidades técnicas são as competências e capacidades analíticas necessárias para se sobressair no seu campo. Em terceiro lugar, vêm as habilidades interpessoais — a capacidade de compreender as pessoas e trabalhar com elas. Ser um comunicador bom e compreensivo faz com que você seja capaz de tomar decisões melhores e formar equipes mais eficientes. A profunda empatia de Mahatma Gandhi, aliada à sua disposição de viver como as pessoas que ele buscava ajudar, fez com que ele se tornasse um excelente modelo. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Por fim, as habilidades conceituais permitem que as pessoas processem e analisem situações complexas, gerando novas ideias. Isso significa que você tem capacidade de planejamento estratégico e de resolver problemas de forma criativa. Martin Luther King inspirou milhões de pessoas com sua visão inabalável — um quadro claro do futuro da nação, que ele conseguiu transmitir eficientemente para seus companheiros. Essas quatro habilidades de liderança são "portáteis". Se você mudar de caminho na sua carreira, elas seguem com você. Antes de concorrer à Presidência e servir como secretário de habitação e desenvolvimento urbano dos Estados Unidos, Ben Carson foi um cirurgião pioneiro — o chefe de neurocirurgia pediátrica mais jovem dos Estados Unidos. Ele fundou um importante centro de pesquisa e debates especializado em temas política. Carson conseguiu atingir esses marcos profissionais mesmo com seus antecedentes desfavoráveis. Sua história demonstra como ser um líder envolve definir seus próprios objetivos (idealização), dedicar-se ao trabalho para atingi-los (determinação e tomada de decisões) e buscar as oportunidades (gestão de riscos). Uma das melhores formas de cultivar habilidades de liderança é aprendendo com os sucessos — e fracassos — das pessoas que você admira. Oprah Winfrey, por exemplo, menciona a escritora Maya Angelou, que ela conheceu no início da carreira nos anos 1970, como sua maior mentora. Parte do aprendizado é desenvolver habilidades que você já tem, como Winfrey disse sobre Angelou. "'Quando você aprender, ensine. Quando você conseguir, compartilhe.' É uma das melhores lições que aprendi com ela." Investir no crescimento pessoal é igualmente importante. Leia livros, faça mais treinamentos. Concentre-se em um esforço consciente para diversificar suas fontes, desafie a si próprio e aprenda sempre. Observe suas potencialidades e fraquezas e personalize seu aprendizado de acordo com elas. Coloque em ação planos para corrigir essas falhas. Seja curioso, humilde e metódico ao avaliar o seu progresso. Lembre-se de que ninguém se torna líder da noite para o dia e que ninguém consegue ser perfeito. A política está repleta de pessoas em posições de liderança que se afastam do seu caminho. A autorreflexão é fundamental. Pergunte-se por que você quer ser um líder. Os que procuram a autoridade apenas por autogratificação frequentemente fracassam. A liderança é estabelecida mais satisfatoriamente quando você serve àqueles que se propõe a liderar. *Christian Harrison é palestrante sobre liderança da Escola de Negócios e Indústrias Criativas da Universidade do Oeste da Escócia, no Reino Unido.
2023-02-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cg3yye66wnyo
sociedade
A história de 'amor proibido' online que acabou em prisão de indiano
Em janeiro, um indiano foi preso por ajudar uma paquistanesa a entrar ilegalmente no país e obter uma identidade falsa. A mulher que ele estava ajudando era sua esposa. Mulayam Singh Yadav, de 21 anos, e Iqra Jeewani, de 19, se conheceram e se apaixonaram pela internet há três anos, enquanto jogavam uma partida do jogo de tabuleiro Ludo. Mas sabiam que seria difícil para eles ficarem juntos. A Índia e o Paquistão têm uma relação tensa — os países vizinhos travaram três guerras desde 1947, quando a Índia foi dividida na independência, e o Paquistão foi criado. Isso pode dificultar a obtenção de vistos. Fim do Matérias recomendadas Então, em setembro do ano passado, Mulayam e Iqra viajaram para o Nepal, onde se casaram. Depois, eles foram para a cidade indiana de Bangalore, capital do Estado de Karnataka, e passaram a viver juntos. Mas a felicidade do casal durou pouco. Em janeiro, Jeewani foi detida por entrar ilegalmente na Índia, e Yadav foi preso acusado de fraude, falsificação e fornecimento de abrigo a um cidadão estrangeiro sem documentação adequada. Ela foi deportada para o Paquistão na semana passada, e Yadav permanece na prisão em Bangalore. Os familiares de Yadav, que vivem no estado de Uttar Pradesh, no norte da Índia, estão arrasados com o desfecho. Eles dizem que a história do casal é simplesmente de amor. "Nós queremos eles em casa", diz seu irmão Jeetlal. "Nós entendemos a situação entre a Índia e o Paquistão. Mas tudo o que eles fizeram foi se apaixonar." Até a polícia parece concordar. "Além da entrada ilegal e da falsificação, parece ser uma história de amor", afirmou um alto funcionário da polícia de Bangalore sob condição de anonimato. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A história de amor do casal começou em 2020, durante o lockdown imposto pela pandemia de covid-19. Yadav trabalhava como segurança de uma empresa de TI em Bangalore, enquanto Jeewani era estudante na cidade paquistanesa de Hyderabad. Os dois começaram um relacionamento à distância depois de se conhecerem online. Mas Jeewani estava sob crescente pressão da família para se casar. Por sugestão de Yadav, ela deixou o Paquistão e viajou para o Nepal via Dubai para encontrá-lo. A polícia diz que os dois se casaram em uma cerimônia hindu e foram, na sequência, para a Índia. Mas Jeewani não tinha os documentos necessários para ficar na Índia. Então, de acordo com a polícia, Yadav teria conseguido um Aadhaar, documento de identidade indiano, falso para ela. A polícia afirma ainda que Yadav saía todos os dias para trabalhar, enquanto Jeewani ficava em casa. Mas ela fazia ligações pelo WhatsApp para a mãe no Paquistão com frequência, o que levou a polícia até ela. A polícia de Bangalore informou que eles estavam em alerta máximo no mês passado porque dois grandes eventos internacionais estavam previstos para acontecer na cidade em fevereiro: o show aéreo Aero India e uma reunião dos ministros das finanças do G-20. Após uma investigação mais aprofundada, Jeewani foi levada para o Escritório Regional de Registro de Estrangeiros em 20 de janeiro. Ela foi deportada para o Paquistão em fevereiro. "Até agora, não há nenhuma acusação feita contra ela além de entrar ilegalmente no país", afirmou à BBC S Girish, vice-comissário de polícia no distrito de Whitefield, em Bangalore. "Mas a investigação está em andamento." A BBC não conseguiu entrar em contato com Jeewani nem com sua família no Paquistão para comentar o caso. No início desta semana, a agência de notícias PTI informou que o pai dela havia confirmado que a filha havia chegado em casa — e que eles não queriam "falar sobre o assunto". A mãe de Yadav, Shanti Devi, diz que espera que os governos de ambos os países possam ajudar a reunir o casal novamente. "Não nos importamos se ela é muçulmana ou paquistanesa, ela é nossa nora. Vamos cuidar bem dela."
2023-02-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxwxgw0deyno
sociedade
'Me descobri negra ao ser chamada para ser modelo em um curso de maquiagem'
Quando a musicista Lua Bernardo, de 35 anos, foi chamada para participar como modelo em um curso de maquiagem em 2014, descobriu algo que desconhecia até então: o fato de que é uma mulher negra. “A companheira de um amigo estava fazendo um curso de maquiagem e queria fazer um estilo afro em uma noiva negra e me convidou para ser modelo. Foi quando a minha ficha começou a cair (sobre ser uma mulher negra)”, comenta Lua à BBC News Brasil. Filha de mãe branca e pai negro, que não acompanhou o crescimento dela, Lua afirma que passou mais de duas décadas sem entender que é negra. “Só descobri com quase 27 anos”, diz à BBC News Brasil. Descobertas como a de Lua não são incomuns entre os brasileiros. Em locais como as redes sociais há diversos relatos de pessoas que contam sobre o momento em que se descobriram negras. Em um livro intitulado Quando me descobri negra, a escritora Bianca Santana narra a sua descoberta. "Tenho 30 anos, mas sou negra há dez. Antes era morena", inicia ela, ao contar experiências que viveu ou ouviu de outras mulheres e homens sobre a forma como se descobriram negros. Fim do Matérias recomendadas Mais recentemente, o assunto se tornou notícia após uma participante do reality show Big Brother Brasil se descobrir negra durante a atração exibida pela Rede Globo. Na competição, a participante Paula Freitas disse que soube disso durante o confinamento. "Juro, descobri que era preta aqui. Foi naquela hora que ele disse 'vem os pretos tirar foto'", disse. Durante o diálogo no programa, o médico Fred Nicácio, o responsável por chamar Paula para a foto, comentou que "vários pretos descobrem que são pretos na faculdade". Essas diferentes maneiras de descobrir sobre o tema, aponta a pesquisadora Daniela Gomes, fazem parte da história de muitas pessoas negras. “Uma pessoa branca não tem dúvidas do que ela é, ela se olha no espelho e se reconhece. Agora uma pessoa negra, que teve a sua negritude negada ou questionada, se olha no espelho e não se vê como negra, porque o negro é outro”, afirma Daniela, que é professora em estudos da Diáspora Áfricana na Universidade Estadual da Califórnia em San Diego (SDSU). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast É a partir dessa descoberta que muitas coisas vividas no passado começam a fazer sentido para essas pessoas, aponta Daniela. “Não é algo como acordei de manhã e sou preta. É que você passa a entender que agressões que sofreu, pequenas ou grandes, ocorreram por causa do racismo, entende oportunidades que perdeu e até então isso não tinha nome (até se reconhecer como uma pessoa negra). A partir dessa tomada de consciência, isso passa a ter nome: racismo”, diz a pesquisadora. No caso de Lua, essa descoberta a levou a recordar situações do passado que hoje avalia como episódios de racismo. “Entendi que alguns comentários, como o de que o meu cabelo estava muito crespo e precisava de chapinha, já apontavam para isso, mas nunca relacionei isso com questão de raça por estar nesse contexto familiar bem branco”, diz a musicista. “Mesmo com meu cabelo e alguns traços negróides, eu nunca havia parado pra pensar nisso. O contexto familiar (composto por pessoas brancas) nunca me fez pensar sobre isso”, acrescenta. A descoberta de que é uma mulher negra foi fundamental para a vida, avalia Lua. “Essa descoberta me impactou num lugar de pertencimento, de entender esse lugar de estar em uma família branca.” “Passei a me sentir pertencente a uma comunidade negra, com pessoas negras. Tanto que hoje naturalmente a maioria dos meus amigos são pessoas pretas, porque fui buscando essa ligação”, diz Lua, que considera que o ingresso na universidade também a ajudou a entender melhor a importância da luta contra o racismo. Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), de 2021, a população negra soma 56,1% no Brasil. Isso inclui aquelas pessoas que se “autodeclaram pretas e pardas", segundo definição do Estatuto da Igualdade Racial em 2010. De acordo com essa pesquisa de 2021, os pardos somam cerca de 100 milhões de brasileiros. Eles respondem por 47% da população brasileira, à frente de brancos (43%), pretos (9,1%) e da soma entre indígenas e amarelos (0,9%). A professora Daniela Gomes afirma que o Brasil tem uma mentalidade racial construída para clarear as pessoas, “um processo de embranquecimento da população construído para negar negritude e racismo”. “Lá atrás, esse embranquecimento da população, construía uma mentalidade de nação onde por um lado quanto mais escuro mais é afetado pelo racismo e por outro lado o racismo não existe na cabeça da grande maioria da população”, pontua. “No país há um inconsciente coletivo onde a mentalidade racial aponta para fazer com que as pessoas entendam que ser negro não é legal. Por isso, podem tentar de alguma forma não ser negro. Isso vai desde não se entender com pessoas negras até ao ponto de não se envolver com elas”, declara Daniela. A estudiosa afirma que o processo de tomada de consciência racial é fundamental. “Isso envolve muitas coisas, a partir de um espaço social. É parte de uma retomada de consciência que pode envolver situações como acessar outros espaços, fazer parte de grupos ativistas ou se ver isolado em um ambiente predominantemente branco no qual você é o único negro”, diz. Ela frisa que essa descoberta pode ser um processo doloroso, que demanda apoio emocional e que pode precisar de acolhimento por parte da família e até de movimentos ativistas. “Isso demanda estudar sobre si e o povo. Ninguém quer ficar do lado da história que perdeu. No caso, a população negra foi vitimizada pela escravidão e sofre racismo desde que esse país existe. Então quem quer se identificar com a negritude? Ninguém quer estar do lado que está sendo destruído e massacrado. Por isso, é um processo doloroso, mas necessário”, afirma.
2023-02-24
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cek3yplkkk8o
sociedade
Os 10 países onde as pessoas vivem mais e o que eles podem nos ensinar
Lucile Randon era a pessoa mais velha do mundo (de quem se tinha um registro claro) quando morreu em janeiro aos 118 anos. Conhecida como Irmã André, a freira francesa testemunhou duas guerras mundiais, a chegada da humanidade à Lua e a era digital. O caso dela continua sendo uma exceção, dado que a expectativa média de vida no mundo é de 73,4 anos. No entanto, a cada dia que passa as pessoas estão vivendo mais, e a longevidade média deve ultrapassar 77 anos até meados deste século, segundo projeções da Organização das Nações Unidas (ONU). Assim como a expectativa de vida aumenta, a taxa de natalidade diminui, o que nos torna uma população cada vez mais envelhecida. Fim do Matérias recomendadas O mundo já tem mais gente acima dos 65 anos do que pessoas abaixo dos cinco anos, embora a situação varie muito de um país para outro. Enquanto em Mônaco a expectativa de vida é de 87 anos, na República do Chade, na África Central, é de apenas 53. Depois de Mônaco, aparecem no ranking de expectativa de vida as regiões administrativas especiais chinesas de Hong Kong e Macau, enquanto o quarto lugar é ocupado pelo Japão, que é o país mais longevo entre as potências mundiais. A lista é seguida por Liechtenstein, Suíça, Cingapura, Itália, Coreia do Sul e Espanha, de acordo com o relatório Perspectivas da População Mundial da ONU. Com exceção dos períodos de pandemias e as guerras mundiais, a expectativa de vida aumentou de forma constante a nível global nos últimos 200 anos, a partir do desenvolvimento de vacinas e antibióticos, remédios, saneamento, alimentação e condições de vida melhores. Embora a genética seja um dos fatores mais determinantes, uma maior longevidade costuma também estar associada às condições de vida do local onde a pessoa nasceu e às suas decisões como indivíduo. Não se trata apenas de ter acesso a um sistema de saúde e uma alimentação melhor, mas também do que os especialistas chamam de "decisões inteligentes" em termos de ter uma dieta equilibrada, dormir o suficiente, controlar os níveis de estresse e praticar exercícios. Os países que fazem parte do ranking com maior expectativa de vida têm algo em comum: alto nível de renda. Mas há algo mais que os une: o tamanho. Patrick Gerland, chefe do departamento de estimativas e projeções populacionais das Nações Unidas, adverte que na lista há países como Mônaco ou Liechtenstein que, por serem tão pequenos, não representam uma população tão diversificada como a de outras nações. "Parecem países excepcionais, mas na verdade são uma espécie de população artificial. Não é uma combinação aleatória de pessoas como em outras partes do mundo." "O que eles compartilham é um alto padrão de vida, acesso a bons serviços de saúde e educação, mas não é uma seleção aleatória", diz Gerland em conversa com a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC. As diferenças podem ser observadas entre os países e também dentro de um mesmo país. Onde há mais desigualdade, aumenta a diferença de expectativa de vida entre os grupos sociais. "Muitos dos países escandinavos, por exemplo, são sociedades mais igualitárias e com uma maior expectativa de vida", acrescenta. As chamadas "zonas azuis" são populações muito pequenas em que as pessoas vivem muito mais do que o resto. Há algumas décadas, o demógrafo Michel Poulain e o gerontólogo Gianni Pes se dedicaram a pesquisar em que lugares do mundo os mais idosos viviam. Eles traçaram círculos em um mapa com uma caneta marca-texto azul nos vilarejos ou cidades em que as pessoas chegavam aos 100 anos de idade. Foi assim que perceberam que uma das partes do mapa tingidas de azul era a região de Barbagia, na ilha italiana da Sardenha, e acabaram chamando-a de "zona azul". Desde então, a nomenclatura tem sido associada a locais em que os habitantes desfrutam de uma longevidade extraordinária em boas condições de vida. Com base neste estudo, o jornalista Dan Buettner montou uma equipe de especialistas para buscar outras comunidades em que se reproduzia o mesmo fenômeno. Como resultado, eles descobriram que, além da Sardenha, havia outras quatro zonas azuis: a ilha de Okinawa, no Japão; a península de Nicoya, na Costa Rica; a ilha de Icaria, na Grécia; e a comunidade adventista de Loma Linda, na Califórnia. Não há dúvida de que uma genética privilegiada é essencial para viver mais, preservando a maior parte das faculdades físicas e mentais. Mas o grupo de cientistas (formado por médicos, antropólogos, demógrafos, nutricionistas e epidemiologistas) se perguntava que outros aspectos estariam influenciando as zonas azuis. E eles viajaram para diferentes partes do mundo. Alguns anos depois, em 2008, Buettner publicou o livro As Zonas Azuis, e a partir desse momento se dedicou a desenvolver esse conceito. No entanto, nem todos estão de acordo com as considerações do autor, pois entendem que muitas de suas afirmações são baseadas em observações, e não em estudos científicos de longo alcance. Buettner e sua equipe encontraram alguns padrões em comum nas comunidades estudadas que teoricamente poderiam explicar por que essas populações apresentam uma longevidade maior e qualidade de vida melhor do que o resto do mundo. Entre eles, estão: Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast - Elas possuem um propósito na vida: um ikigai, palavra japonesa usada para se referir às "razões de ser" ou mais precisamente, às razões pelas quais nos levantamos da cama todas as manhãs; - Cultivam os laços familiares; - Reduzem o estresse interrompendo o ritmo normal da rotina para dar lugar a outras atividades que fazem parte dos hábitos sociais comuns. Por exemplo, tirar a sesta (aquela soneca após o almoço) nas sociedades mediterrâneas, orar no caso dos adventistas ou participar da cerimônia do chá para mulheres em Okinawa; - Comem sem atingir a saciedade; - Adotam uma dieta balanceada que inclui muitos legumes, verduras e frutas; - Consomem álcool moderadamente; - Praticam exercício físico regularmente como parte das atividades diárias —caminhadas, por exemplo; - Possuem um forte senso de comunidade e participam de círculos sociais que promovem comportamentos saudáveis; - Fazem parte de grupos que cultivam a fé ou a religião; Tudo isso dentro de um contexto que inclui, entre outras coisas, um clima amistoso, natureza prolífica, comida saudável e saborosa acessíveis, vida em comunidade e longe dos grandes centros urbanos. Embora para fazer parte de uma zona azul seja necessário ter nascido nela e ser um membro ativo dessa comunidade, é possível que alguns desses padrões recorrentes possam ser úteis para quem está interessado em viver mais e melhor. Além das restrições econômicas e do seu mapa genético, alguns dos pontos-chaves a que se dá menos atenção, segundo os especialistas, é a maneira de se relacionar com outras pessoas e encontrar um propósito na vida. Esse, embora possa parecer simples, é um dos grandes desafios para quem está interessado em ter uma qualidade de vida melhor por mais tempo. Especialistas como Luigi Ferrucci, diretor científico do Instituto Nacional do Envelhecimento, nos EUA, afirmam que idosos saudáveis ​​tendem a ser aqueles que são fisicamente ativos, passam tempo ao ar livre e têm fortes conexões com amigos e familiares. O ponto em que os especialistas não conseguem chegar a um consenso é em relação a quanto a genética e o estilo de vida de uma pessoa influenciam na longevidade. Algumas pesquisas sugerem que a genética é responsável por cerca de 25% da longevidade, enquanto o restante está relacionado a fatores como onde a pessoa mora, o que come, com que frequência se exercita e sua rede de apoio por meio de amigos ou familiares. No entanto, o peso da loteria genética em uma vida mais longa e saudável ainda é motivo de debate na comunidade científica. - Este texto foi publicado em
2023-02-23
https://www.bbc.com/portuguese/articles/clm418jg804o
sociedade
A polêmica decisão de reescrever trechos de livros de autor da 'Fantástica Fábrica de Chocolate'
A editora britânica que edita os livros do autor infantil Roald Dahl (1916-1990) decidiu remover conteúdo que considera ofensivo dos livros do escritor que estão sendo relançados agora. Nas novas edições dos livros — inclusive no clássico A Fantástica Fábrica de Chocolate —, as referências a gênero, aparência e peso dos personagens foram apagadas ou modificadas. Os curadores e editores de Dahl disseram que os romances foram atualizados para melhor atender o público moderno. Os livros são editados pela Puffin Books, do grupo Penguin Random House. Parte da opinião pública mostrou concordar com as mudanças, mas muitos se manifestaram contra, incluindo o primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak. O porta-voz de Sunak afirmou que as obras de ficção devem ser "preservadas, e não retocadas". Fim do Matérias recomendadas Tomando emprestada uma palavra que Dahl, o porta-voz do primeiro-ministro disse: "Quando se trata de nossa rica e variada herança literária, o primeiro-ministro concorda com o grande e bem-humorado gigante BFG [personagem da obra O Bom Gigante Amigo] que não devemos 'gobblefunk' (brincar) com as palavras". No Brasil, algo semelhante aconteceu em 2020 com os livros infantis do autor Monteiro Lobato (1882-1948), criador do Sítio do Picapau Amarelo. Diversos termos considerados racistas foram retirados de seus livros, em uma revisão conduzida pela bisneta do autor. O escritor Salman Rushdie também criticou a mudança. "Roald Dahl não era um anjo, mas isso é uma censura absurda", postou o autor de Os Versos Satânicos em seu Twitter. "A Puffin Books e os responsáveis ​​pelo legado de Dahl deveriam se envergonhar." A Roald Dahl Story Company afirmou que as mudanças que surgiram do processo de revisão — iniciado em 2020 — foram "pequenas e cuidadosamente analisadas". O autor Philip Pullman disse à BBC que seria melhor deixar os livros de Dahl "desaparecerem" do que reescrevê-los se eles hoje são considerados ofensivos. "Se Dahl é ofensivo, parem de publicá-lo",opinou Pullman. "Leiam todos os outros autores maravilhosos que estão escrevendo hoje em dia e que não recebem tanta atenção por causa do enorme peso comercial de autores como Roald Dahl." Mas a poetisa e autora indiano-britânica Debjani Chatterjee discorda. Ela acha "uma coisa muito boa que os editores estejam revisando seu trabalho". "Acho que foi feito com bastante sensibilidade", disse à BBC. Ela deu como exemplo a mudança da palavra “gordo” para “enorme” nos textos. Segundo ela, o novo termo “está ainda mais divertido”. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Não há razão para BFG não ter uma capa preta. Isso parece absurdo para mim", afirmou o autor de livros infantis John Dougherty à BBC. "No caso de Augustus Gloop, por exemplo, o ponto principal do personagem é que ele está muito acima do peso porque não para de comer, é um glutão." "Pode ​​haver um argumento de que no mundo de hoje isso é ofensivo", pontua Dougherty. "Acho que se você decidir que é assim, a única solução é tirar o livro de circulação. Não acho que você pode dizer 'vamos mudar as palavras de Dahl, mas manter o personagem'." Kate Clanchy, uma ex-professora que revisou suas próprias memórias depois de ser criticada por alguns trechos, disse que os livros infantis devem ser tratados com cuidado especial. "Augustus Gloop é um personagem ganancioso. Ele continuará sendo moralmente ganancioso e sua ganância moral estará errada, quer tenhamos ou não muitas referências de como ele é gordo, o que eu acho que pode ser irritante." "Sempre atualizamos os livros infantis. É uma homenagem à maneira como esses livros estão se tornando clássicos... que os adaptamos novamente." Laura Hackett, vice-editora literária do jornal The Sunday Times, disse que continuará a ler os originais dos livros de Dahl para seus filhos em "toda a sua glória completa, desagradável e colorida". “Acho que a malícia é o que torna Dahl tão divertido. Você adora quando, em Matilda, Bruce Bogtrotter é forçado a comer o bolo de chocolate inteiro para não ficar preso no Chokey [um dispositivo de tortura]. É isso que as crianças adoram." "E remover todas as referências a violência ou qualquer coisa que não seja limpa, agradável e amigável é remover o espírito dessas histórias." Os livros foram modificados após serem revisados ​​por leitores orientados a buscar conteúdo potencialmente ofensivo nas obras. A empresa que administra o legado do autor, a Roald Dahl Story Company, trabalhou com as editoras Puffin e Inclusive Minds, coletivo que trabalha pela inclusão e acessibilidade na literatura infantil. Um porta-voz da The Roald Dahl Story Company afirmou que queria "garantir que todas as crianças continuem a desfrutar das maravilhosas histórias e personagens de Roald Dahl". "Ao se publicar novas tiragens de livros escritos anos atrás, não é incomum revisar a linguagem junto com outros detalhes, como a capa e o layout da página", disse ele. “Nosso princípio norteador em todos os momentos tem sido preservar as histórias, os personagens e a irreverência e o espírito incisivo do texto original”, acrescentou. Dahl, que morreu aos 74 anos em 1990, continua sendo um dos autores infantis mais populares do Reino Unido. Em 2021, a Netflix comprou os direitos de suas obras. Comentários antissemitas que ele fez ao longo de sua vida o tornaram uma figura problemática nos dias de hoje. Em 2020, sua família se desculpou publicamente pela "dor duradoura e compreensível causada pelas declarações antissemitas de Roald Dahl".
2023-02-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cv238vp57p5o
sociedade
As escolas na Flórida em que professores são obrigados a esconder livros dos alunos
Livros deveriam abrir a mente dos alunos para novos mundos. Mas, nas bibliotecas de centenas de escolas da Flórida, nos Estados Unidos, milhares de obras permanecem literalmente fora do alcance dos alunos. Juntos, os condados de Manatee e Duval, na Flórida, somam quase 300 centros educativos. E seus professores precisaram esconder da vista dos alunos os livros das bibliotecas mantidas em salas de aula. Em alguns casos, os livros foram escondidos com papel e cartolina. Em outros, eles foram guardados em caixas. Mas o objetivo era sempre o mesmo: bloquear o acesso dos estudantes àquele material de leitura. O motivo desta medida drástica foi a lei HB 1467, aprovada pelo legislativo do Estado da Flórida e sancionada pelo governador Ron DeSantis, do Partido Republicano, em março de 2022. Segundo seus promotores, o objetivo da legislação é proteger os direitos dos pais de controlar o tipo de material a que seus filhos têm acesso nas escolas. Fim do Matérias recomendadas “Na Flórida, nossos pais têm todo o direito de participar da educação dos seus filhos”, afirmou DeSantis, ao promulgar a norma. “Não permitiremos que os políticos neguem aos pais o direito de saber o que está sendo ensinado nas nossas escolas.” “Estou orgulhoso de assinar esta legislação que garante a transparência do programa de estudos”, declarou o governador. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Mas seus críticos afirmam que este é um instrumento de censura – uma arma usada pelos conservadores na sua luta contra a chamada cultura woke (“desperta”), um termo adotado nos Estados Unidos para designar pessoas que tomaram para si o dever de enfrentar questões de desigualdade ou discriminação, especialmente por motivo de raça, gênero ou orientação sexual. DeSantis deixou claro que se opõe frontalmente à cultura woke. Ele afirma que ela está sendo usada para doutrinar as crianças nas escolas. “Nós refutamos a ideologia woke. Combatemos o woke no legislativo, combatemos o woke nas escolas, combatemos o woke nas empresas”, afirmou o governador em um discurso após sua reeleição, em novembro de 2022. “Nunca, jamais nos renderemos à multidão woke. É na Flórida que o woke vai morrer”, prosseguiu DeSantis. Mas como uma lei para permitir que os pais exerçam controle sobre o que seus filhos estudam levou ao fechamento das bibliotecas de salas de aula em centenas de escolas? A lei HB 1467 entrou em vigor em julho de 2022. Ela exige que as escolas garantam que os livros oferecidos sejam livres de pornografia, adequados às necessidades dos estudantes e apropriados para sua idade. Posteriormente, em dezembro, o Departamento de Educação da Flórida ampliou a aplicação da norma às bibliotecas disponíveis para os professores em salas de aula. “O distrito escolar tentou então fazer com que essas bibliotecas de salas de aula atendessem à norma. Por isso, pediram aos professores que não permitissem que os alunos tivessem acesso a elas até que todos os livros fossem aprovados pelos especialistas”, explica à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) Pat Barber, presidente da Associação Educativa de Manatee. A associação é o sindicato que representa os professores daquele condado e foi um dos mais afetados pela nova norma. Na prática, a consequência para os estudantes é que eles, agora, não têm mais acesso a materiais de leitura que poderiam ser do seu interesse. Especialistas em pedagogia denunciam que esta medida afeta não só a formação que os estudantes podem receber, mas também a criação de hábitos de leitura, cujos benefícios estendem-se por toda a vida. “O motivo que leva os professores a formar bibliotecas consistentes em sala de aula é ter o máximo possível de livros que possam ser de interesse para todos os estudantes da sua classe, pois eles estão tentando desenvolver leitores para toda a vida e crianças que apreciem a leitura por prazer, além de obter informações”, afirma Barber. “Mas a comodidade e a disponibilidade dentro da sala de aula já não estarão ali, até que os livros tenham sido examinados.” E a revisão também prejudica a autoridade dos professores nas escolas. “Nenhum professor tem pornografia na biblioteca da sua sala de aula”, ressalta Barber. “Por isso, fazer toda essa revisão e tirar as decisões das mãos dos professores, que foram rigorosamente treinados para determinar o que é apropriado para seus alunos, é algo muito perturbador.” Apesar de tudo, esta provavelmente não é a maior preocupação dos educadores. Como um dos argumentos para a revisão dos textos é que eles podem conter pornografia, o eventual fornecimento aos estudantes de algum material que receba esta classificação pode resultar em perda da licença do magistério ou em pena de prisão. “Oferecer pornografia a um menor de idade é considerado um delito grave de terceiro grau [punido com até cinco anos de prisão]. Por isso, existe a ameaça de violação da lei”, segundo Barber. “Daí a grande preocupação de que um professor venha a ser acusado de infringir esta lei. Não que eles a infrinjam, mas simplesmente sejam acusados de violação”, afirma ela. O treinamento que os especialistas encarregados de aprovar os livros nas escolas exige que os textos estejam livres de pornografia (definida como a representação de um comportamento erótico com o fim de causar excitação sexual). E, no caso dos alunos do jardim da infância até o terceiro ano do ensino fundamental, também não podem ser abordados temas de orientação sexual ou identidade de gênero. Além disso, também não é permitido material que apresente discriminação que faça com que “um indivíduo, em virtude da sua raça, cor, sexo ou nacionalidade seja [considerado] racista ou opressor, consciente ou inconscientemente”. A norma que levou à retirada de livros nas escolas da Flórida está sendo aplicada de forma diferente em cada um dos 67 distritos escolares do Estado, o que dificulta seu acompanhamento. Mas, segundo os números da ONG Projeto Liberdade de Leitura na Flórida (FFTRP, na sigla em inglês), que procura combater essa legislação, foram contestadas mais de 900 obras desde setembro de 2022 naquele Estado. Destas, mais de 400 foram retiradas temporariamente das bibliotecas e 65 acabaram sendo censuradas. Números atualizados do início de fevereiro indicam que foram registrados no Estado cerca de 1.858 pedidos de retirada de livros, sendo que algumas obras foram objeto de mais de uma petição. Entre os livros questionados, encontram-se várias biografias, como a do jogador de beisebol porto-riquenho Roberto Clemente, da cantora cubana Celia Cruz e de Sonia Sotomayor, a primeira cidadã hispânica a tornar-se juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos. Outras biografias questionadas são as da ativista dos direitos civis Rosa Parks e do Dalai Lama. “Muitos desses livros tratam da experiência de vida de pessoas negras e morenas. E muitos têm personagens LGBTQ ou histórias com temas LGBTQ, que tendem a ser a maioria dos livros que estão proibidos”, explica Raegan Miller, diretora de Desenvolvimento e Finanças do FFTRP. “Alguns têm material mais desafiador, como, por exemplo, o romance O Olho Mais Azul [de Toni Morrison, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 1993], que apresenta uma cena muito violenta”, segundo Miller. “Mas este livro, publicado em 1970, é oferecido em um curso de nível universitário e lido sob a orientação de um professor, que é como queremos que os estudantes possam ler esses livros: junto com um professor que os ajude a compreender que esta poderia ser a experiência vivida por outra pessoa ou a entender que existem pessoas assim no mundo”, explica ela. Pouco antes que DeSantis sancionasse a lei HB 1467, a PEN América – a seção norte-americana da associação internacional de escritores PEN – denunciou o que considerava uma “campanha orquestrada” nos Estados Unidos para proibir livros que contenham conteúdo “questionável”, o que, segundo a associação, costuma se limitar frequentemente a conteúdo que reconheça as identidades LGBTQIA+ ou a existência do sexismo e do racismo. “O objetivo da lei HB 1467 é facilitar essa campanha”, afirma a associação. A BBC News Mundo entrou em contato com o Departamento de Educação da Flórida e com o escritório do senador republicano naquele Estado, Joe Gruters, que foi um dos incentivadores das novas normas, mas não recebeu resposta até a publicação desta reportagem. Mais recentemente, no dia 10 de fevereiro, a PEN América denunciou que 176 livros foram retirados das aulas das escolas no condado de Duval. Essas obras já estavam indisponíveis para os alunos há 10 meses, sem previsão de regresso. Paradoxalmente, mesmo com a retirada em massa de livros das bibliotecas escolares na Flórida, existem pessoas descontentes que acreditam que é preciso ir mais longe e consideram que as medidas tomadas até agora são insuficientes. Uma dessas organizações chama-se Patriotas da Comunidade de Manatee. Seu website a define como um grupo de americanos que “amam a liberdade, abraçam a autogovernança e trabalham para garantir justiça para todos”. Em uma postagem publicada no seu portal com o título Consentimento dos pais e pornografia são inaceitáveis, a organização destaca que, depois das queixas de “pais e patriotas”, o distrito escolar do condado de Manatee deu início a um protocolo para revisar livros “graficamente eróticos”, mas avalia que, seis meses depois, muitos desses textos foram colocados de volta nas estantes com a “vaga e inexequível restrição” de exigir que os estudantes obtivessem o consentimento dos pais para poder ter acesso a eles. O grupo indica que a pessoa que recorrer ao consentimento dos pais cria um vácuo legal para que as escolas continuem mantendo material considerado inadequado nas estantes. “Acreditamos que a lei é clara: o material que seja prejudicial aos menores não deve estar nas escolas, com ou sem o consentimento dos pais”, afirmam eles. A organização incentiva seus membros a entrar em contato com as autoridades escolares para comunicar seu desagrado. “Os pais, os contribuintes e os cidadãos preocupados não querem que isso ocorra em nossas escolas”, destaca o grupo. “Devemos manter a pressão sobre a Junta [Escolar] e entrar em contato diretamente com os diretores para que eles saibam que queremos [esses livros] fora [da escola], independentemente do consentimento dos pais.” Esta postura é especificamente questionada pelo FFTRP. “O que estamos vendo é que, se um dos pais se opuser a alguma coisa, ela é retirada de todas as crianças”, afirma Raegan Miller. “E, como todos temos origens muito diferentes, acreditamos que os verdadeiros direitos dos pais significam que tenho o poder de decisão. Posso tomar uma decisão com meu professor sobre o que é apropriado para o meu filho e outro pai não pode tomar essa decisão por mim”, acrescenta ele, Mas este debate vai muito além das posições enfrentadas entre os pais que pensam de formas diferentes. Segundo Pat Barber, da Associação Educacional de Manatee, a nova lei da Flórida permitiu que membros da comunidade que sequer têm filhos possam decidir sobre o que se ensina nas escolas.
2023-02-22
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czq080gx4e2o
sociedade
Chuva em SP: tragédia ocorre 56 anos após a maior já vista no litoral norte
Com 40 mortes confirmadas até o momento e mais de 750 desabrigados, as chuvas que atingiram municípios do litoral norte de São Paulo no fim de semana são o maior acumulado que se tem registro no país, com 682 milímetros e um rastro de destruição ainda incalculável. A catástrofe atual ocorre 56 anos após a maior tragédia ligada às chuvas na história de São Paulo, que ocorreu em 18 de março de 1967 no município de Caraguatatuba, quando as águas causaram o desmoronamento de encostas e centenas de casas foram soterradas. Segundo a contagem feita na época, 487 pessoas morreram, mas estima-se que o número de óbitos tenha sido muito maior, já que muitos desaparecidos nunca foram encontrados. O episódio foi tema de livros e documentário, além de, junto a tragédia que ocorreu no Rio de Janeiro em 1966, também por conta de chuvas, ter ajudado a estruturar a Defesa Civil no Brasil. Um texto do jornal Folha de S.Paulo publicado em 21 de março daquele ano descreve parte do cenário. Fim do Matérias recomendadas "Caraguatatuba está sob a lama, Sábado à tarde, depois de três dias de chuva, começou o deslizamento dos morros. Árvores foram arrancadas e arrastadas pela enxurrada, levando pessoas, animais e casas. Toda Caraguatatuba, desde a praia Martim de Sá – onde se sai para Ubatuba – até a Santa Casa, do outro lado da cidade, foi varrida." "Por terra não se chega ao litoral Norte. Na estrada Paraibuna-Caraguatatuba a partir do Mirante, no quilômetro 194, até o 199, trinta barreiras caíram, obstruindo a estrada. E no quilômetro 202 a estrada desapareceu, levada pelas águas, em quase dois mil metros. Aí, no sapé de um morro, isoladas de tudo e de todos, pessoas acenam desesperadamente para os helicópteros que passam ao longe." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Eduardo D'Angelo, 65, tinha nove anos em 1967, quando as chuvas devastaram grande parte do município de Caraguatatuba. Sua família viajava com frequência ao litoral para passar períodos de 15 dias na Colônia de Férias Ministro João Cleófas. "A hospedagem ficava perto da praia, e quando pegamos o ônibus para voltar já era possível ver o mar, que normalmente tinha ondas tranquilas, muito agitado, com uma maré alta. Chovia muito, e nos anos todos que eu estive lá, não vi nada igual", recorda. Eduardo e a família, um grupo de 10 pessoas, saíram um dia antes dos danos começarem, e ficaram sabendo da situação de calamidade pouco após voltarem para casa. "Naturalmente foi o assunto da família, o alívio de termos voltado antes." No ano seguinte, Eduardo e sua família voltaram e ainda testemunharam os efeitos das chuvas intensas. "Na serra, a caminho da Colônia, vimos todas as casas soterradas até o telhado, e o rio que desce ao longo da estrada, se alargou três vezes em tamanho e levou a ponte que existia ali." Eduardo, que trabalha com o setor habitacional como diretor do Movimento Pró-moradia Mário Lago, avalia que não houve avanços significativos que pudessem prevenir novos desastres meio século após a tragédia. "Essas situações de deslizamento ocorrem porque o homem altera a natureza, e as políticas públicas não agem para evitar que moradias sejam construídas em locais perigosos. Estamos falando de 1967 e de lá para cá as condições só pioraram." O litoral de São Paulo tem diferentes municípios afetados pelas chuvas fortes nos últimos dias, com deslizamentos de encostas, alagamentos e bairros isolados devido à interdição de vias de acesso. O número de mortos já supera a tragédia de Franco da Rocha, em 2022, com o deslizamento que matou 18 pessoas. O acumulado de chuva nessa oportunidade foi de 70 milímetros em 24 horas. Segundo o Centro Nacional de Previsão de Monitoramento de Desastres (Cemaden), resultou no acumulado de 682 mm em Bertioga, 626 mm em São Sebastião, 337 mm em Ilhabela, 335 mm em Ubatuba e 234 mm em Caraguatatuba. "Para efeito de comparação, em 2022, Petrópolis (Rio de Janeiro) teve o acumulado de 530 milímetros de chuva em 24 horas. Antes, o maior índice havia sido registrado em Florianópolis (Santa Catarina), em 1991, com acumulado de 400 mm em apenas um dia", publicou o governo de São Paulo por meio de conta oficial no Twitter.
2023-02-21
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cydngmz112mo
sociedade
A história do casal que morreu 'caçando' vulcões e virou filme indicado ao Oscar
Em 1985, um episódio marcou a vida do casal de vulcanólogos Katia e Maurice Krafft. A erupção do Nevado del Ruiz, na Colômbia, deixou mais de 23 mil mortos, numa das maiores tragédias causadas por vulcões da história. A cidade de Armero foi completamente soterrada e, literalmente, deixou de existir, após a erupção derreter as geleiras da montanha e gerar os chamados lahars - uma avalanche de lama, terra e detritos vulcânicos. Na época, especialistas em vulcões tentaram alertar autoridades sobre riscos da iminente erupção e da necessidade de evacuar cidades, mas não foram ouvidos. Maurice e Katia, que já haviam ganhado fama no mundo por "caçarem" e registrarem vulcões em todos os continentes, fizeram coro ao aviso. Mas também não foi suficiente. Fim do Matérias recomendadas "Ficamos com vergonha de nos considerarmos vulcanólogos", disse Katia em entrevistas na época. "Meu sonho é que vulcões deixem de matar", afirmou Maurice. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Abalado pela tragédia, o casal decidiu que precisava fazer mais do que já fazia — ou seja, gravar de perto atividades vulcânicas ameaçadoras para, assim, demonstrar o poder destrutivo e convencer autoridades sobre os riscos. Em junho de 1991, eles viajaram ao Japão para registrar a força da erupção do Monte Unzen. Nas últimas imagens em que aparecem com vida, Katia e Maurice olham para a montanha, ao lado da câmera. Eles morreram minutos depois, ele aos 45 anos, ela aos 49. Os corpos foram encontrados lado a lado. Foi em 1966, quando frequentavam a Universidade de Estrasburgo, na França, que Katia e Maurice se conheceram. Ela, geoquímica; ele, geólogo. Mas logo descobriram um interesse em comum: vulcões. "Começamos na vulcanologia porque estávamos decepcionados com a humanidade. E, como um vulcão é maior do que os homens, sentimos que era o que precisávamos. Algo além da compreensão humana", disse Maurice em uma entrevista mostrada no documentário. Ele era considerado mais "midiático" do que Katia. Na Islândia, em 1968, os Kraffts tiveram a primeira experiência juntos na exploração de vulcões. A partir dali, começaram a registrar erupções em vídeo e fotos — o que acabaria se tornando uma fonte de renda do casal, que passou a vida viajando. "Quando você vê uma erupção, não consegue mais viver sem, porque é tão grandiosa, tão forte, que temos um sentimento de insignificância", explicava Katia. Dois anos depois, se casaram e escolheram não ter filhos. "Eles não poderiam fazer o que fizeram se não fosse o outro. Eles tinham um relacionamento entre os dois, e entre eles e os vulcões", diz a vulcanóloga Rosaly Lopes. Além da venda de parte do material audiovisual, Katia e Maurice filmavam todas as expedições com a intenção de rever as erupções e estudá-las. E passaram a querer chegar cada vez mais perto. Para Rosaly Lopes, o casal, mesmo que não se destacasse pela produção acadêmica em si, deixou um grande legado científico e para a humanidade. As filmagens que mostram lava, explosões e fluxos piroclásticos (a mistura de gás, matéria vulcânica, cinzas e fragmentos de rocha expelida nas erupções) rodaram o mundo e foram usadas por pesquisadores para entender e criar modelos sobre o comportamento dos vulcões. Os dois também traziam material "jovem" expelido nas erupções para estudos em laboratórios geofísicos. "Mas acho que o legado principal é de educação, de ensinar que vulcões são muito bonitos, porém perigosos. E também que, às vezes, você pode ir a um vulcão, perto da lava, sem correr muito risco", diz Lopes, que escreveu um livro sobre as possibilidades de se fazer turismo em áreas com atividade vulcânica. Katia e Maurice adotaram duas classificações para vulcões. Os "vermelhos" seriam aqueles em que há os "rios" de lava e sem fortes explosões. Eram esses, menos perigosos, que os Krafft se dedicaram inicialmente a explorar. Já os "cinzas" eram os explosivos, que acumulam pressão e calor até sua liberação cataclísmica. Eram os chamados de "assassinos", menos conhecidos e mais difíceis de acessar. Após a erupção do vulcão "cinza" do Monte Santa Helena, nos Estados Unidos, que deixou 57 mortos em 1980, o casal decidiu mudar o foco de suas expedições para esses mais arriscados. Elas foram atrás de erupções no Alasca (Estados Unidos), Indonésia e Colômbia, onde registram o rastro de destruição da tragédia em Armero. Em junho 1991, eles receberam a informação de que o monte Unzen, no Japão, entraria em erupção. Eles viajaram ao país e foram ao encontro de mais uma missão - sua última. Na ocasião, Katia e Maurice decidiram se manter a uma distância que acreditavam ser segura, com outros cientistas, jornalistas e bombeiros. Mas um fluxo piroclástico muito mais forte do que o esperado levou à morte de 43 pessoas, incluindo o casal. As marcas no solo depois da tragédia indicaram que Katia e Maurice estavam perto um do outro. Nas imagens mostradas no documentário, há a menção a um texto em que Maurice escreveu que preferia uma "vida intensa e curta que longa e monótona", justificando sua caça aos vulcões. E Katia, em certo ponto, disse: "Se ele morrer, prefiro ir com ele".
2023-02-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cj5yye4z369o
sociedade
Como pobreza e drogas têm transformado bibliotecas nos EUA
Para alguns usuários, o objetivo é se proteger do frio ou do calor da rua, usar o banheiro ou talvez os bebedouros. Outros estão em busca de acesso gratuito à internet, computadores ou apenas um local para carregar o celular. Há quem passe horas lendo jornais e livros, ou até mesmo cochilando, e também os que procuram um lugar onde não vão sofrer assédio da polícia. Presentes em bibliotecas públicas ao redor dos Estados Unidos, tanto em grandes metrópoles quanto em cidades pequenas, esses frequentadores assíduos têm uma característica em comum: estão em situação de rua. Em um momento em que a população sem-teto no país é calculada em quase 600 mil pessoas, e é comum ver calçadas tomadas por barracas em várias cidades, as bibliotecas públicas americanas vêm assumindo um papel cada vez mais relevante no combate aos efeitos da crise da falta de moradia. Como já desempenham informalmente a função de abrigo durante o dia para uma parcela da população que não tem para onde ir, muitas vêm decidindo participar de maneira mais ampla nas estratégias de suas comunidades para enfrentar a crise habitacional. Um dos objetivos é servir de ponte entre esses usuários e instituições que prestam serviços de moradia, saúde e educação. Fim do Matérias recomendadas Bibliotecas ao redor do país passaram a oferecer programas específicos para esse público, desde a contratação de assistentes sociais até o fornecimento de roupas e produtos de higiene. Em várias delas, funcionários recebem treinamento para lidar com crises de saúde mental, dependência de drogas ou até mesmo overdoses, problemas que afetam parte dessa população. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para os bibliotecários, que antes tinham como foco recomendar obras e autores, a profissão agora traz novas exigências. “Muita gente pensa em bibliotecas como basicamente depósito de livros”, diz à BBC News Brasil a presidente da American Library Association (Associação Americana de Bibliotecas), Lessa Kanani’opua Pelayo-Lozada. “Mas, nos últimos 20 anos ou mais, nós vimos as bibliotecas evoluírem e se tornarem espaços comunitários”, afirma. “E também vimos uma mudança no tipo de habilidades que nossos funcionários precisam para poder fazer seu trabalho”, acrescenta. Segundo Pelayo-Lozada, o trabalho dos bibliotecários não se restringe mais à curadoria da coleção de livros, mas inclui também o desenvolvimento de habilidades interpessoais e treinamento para lidar com clientes que estejam enfrentando problemas de saúde mental, entre outros aspectos. “Todas essas coisas são mais recentes. E se devem, em parte, ao fato de as bibliotecas serem espaços tão inclusivos e abertos, garantindo que todos tenham um ambiente seguro para onde possam ir quando precisarem”, ressalta. Pelayo-Lozada salienta que as bibliotecas não coletam dados sobre a situação de moradia dos frequentadores e, portanto, é difícil estimar o percentual de usuários que não têm onde morar ou se houve aumento nessa parcela do público. “Mas os usuários de nossas bibliotecas refletem as comunidades em que vivemos, bem como tendências sociais mais amplas. E sabemos que houve aumento na falta de moradia, especialmente nos últimos dois anos, entre a pandemia e a recessão iminente”, observa. “E sabemos também que esse público em particular costuma recorrer às bibliotecas, porque estamos aqui para todos, e nossos serviços estão disponíveis para aqueles que precisam, estejam ou não em situação de rua”, complementa. Em algumas cidades, como San Diego, na Califórnia, a imprensa local calcula que moradores de rua formam a maioria dos frequentadores da biblioteca central. O aumento dessa fatia do público é fruto de uma queda no volume geral de visitantes em anos recentes, aliada a um aumento no número pessoas sem-teto em várias partes do país. Um estudo publicado no ano passado por pesquisadores da Universidade Estadual de San Diego e da Universidade da Califórnia em San Diego afirma que “em todo o país, as bibliotecas são cada vez mais reconhecidas como espaços públicos com potencial para ajudar usuários em situação de rua ou instabilidade habitacional”. Os autores entrevistaram 14 funcionários da biblioteca central de San Diego e 49 frequentadores em situação de rua, dos quais 51% eram homens, 43% tinham idade acima de 50 anos e 33% diziam ter algum tipo de deficiência física ou mental. O resultado é um retrato detalhado dessa parcela do público e de suas interações com os bibliotecários. Muitas pessoas em situação de rua não querem ir para abrigos, que costumam estar lotados e ter regras rígidas, como toque de recolher. E mesmo os que dormem em abrigos precisam de um local para passar o dia e sofrem com “o estigma ou a exclusão de outros espaços públicos”, diz o estudo. “Durante o dia, somos todos sem-teto, independentemente de termos ou não um lugar para dormir à noite”, resumiu um dos entrevistados que, assim como o restante, teve sua identidade preservada. “Se você está em um abrigo, tem seis dias ou três dias, e depois (precisa ir para) outro abrigo”, observou outro. Nas bibliotecas, onde tradicionalmente todos são bem-vindos e não há barreiras que são comuns em outros locais, como exigência de pagamento ou apresentação de carteira de identidade, essa parcela do público encontra um lugar acolhedor e que proporciona estabilidade, nem que seja apenas durante algumas horas. Muitos já estão de manhã cedo na porta, esperando o prédio abrir. “Eu posso simplesmente me isolar. Pegar um livro ou até mesmo um jornal e desligar todo o resto. Você entende? Estou seguro e não preciso me preocupar em ser roubado”, relatou um entrevistado. De acordo com Pelayo-Lozada, além de desfrutar de facilidades básicas, como banheiros e cadeiras, esses frequentadores usam as bibliotecas para diversas atividades, desde procurar empregos e enviar currículos até se conectar por email e redes sociais com a família e amigos. “Não estão apenas em busca de recursos, também buscam alimentar seu lado humano, encontrar maneiras de serem criativos”, destaca. “Vejo pessoas participando de programas em que podem criar arte e sentir que são parte de uma comunidade.” Segundo o estudo em San Diego, as bibliotecas representam “uma oportunidade única” de atender uma parcela da população muitas vezes oculta e vulnerável, e que geralmente “carece de recursos adequados para os múltiplos riscos que enfrentam”, como insegurança alimentar, dependência de drogas e transtornos mentais. Mas esse novo papel das bibliotecas representa um desafio para os funcionários, que nem sempre são capacitados para ajudar esse público. Enquanto alguns dos bibliotecários entrevistados no estudo disseram que esta “não é sua função ou propósito”, outros manifestaram a vontade de ter mais treinamento e “informações para encaminhar esses usuários aos serviços apropriados”. A epidemia de opioides que afeta os Estados Unidos de maneira geral, com mais de 100 mil mortos por overdose a cada ano, também impacta diretamente a população de rua. Conforme o estudo, há um aumento recente em casos de overdoses e até tentativas de suicídio em bibliotecas do país. “Os funcionários podem nem sempre estar preparados para lidar com a miríade de desafios sociais que seus usuários enfrentam, como overdose de opioides e crises de saúde mental que ocorrem no local”, dizem os autores. Nos últimos anos, várias bibliotecas no país passaram a treinar seus funcionários para administrar Narcan, um medicamento capaz de reverter overdoses. Algumas também passaram a contratar agentes de segurança pública treinados para identificar, intervir e prevenir crises de saúde mental, outro problema que muitas vezes afeta pessoas em situação de rua. É importante que os funcionários não apenas estejam capacitados para auxiliar esses frequentadores em aspectos práticos, como navegar a burocracia envolvida no acesso à moradia ou outros serviços, mas também desenvolvam empatia. “Algo que tentamos enfatizar com os funcionários é que não podemos julgar alguém por sua aparência. Então, não sabemos se (determinados usuários) estão em situação de rua ou algo assim até que venham falar conosco”, destaca Pelayo-Lozada. “Uma das coisas importantes que devemos fazer regularmente é desenvolver relacionamentos com nossos clientes, independentemente de seu histórico. Para que, quando precisarem de algo, sintam-se à vontade para vir até nós”, afirma. De acordo com o estudo em San Diego, é comum que usuários em situação de rua pensem que não se qualificam para os serviços disponíveis ou não saibam onde obter ajuda. Para muitos, as bibliotecas são um primeiro ponto de contato, a partir de onde podem ser encaminhados a serviços de moradia, saúde, tratamento para dependência de drogas e outros. Cada biblioteca tem um modelo diferente, de acordo com a comunidade onde atua e os recursos disponíveis. Em 2012, a biblioteca pública de Tucson, no Arizona, foi a primeira do país a contratar um enfermeiro especializado em saúde pública, responsável por serviços que vão desde primeiros socorros até ajudar usuários a se inscrever para planos de saúde. Em várias cidades, como Las Vegas ou Salt Lake City e outras, as bibliotecas oferecem roupas e kits de higiene. Em muitas, como Chicago ou Denver, funcionários costumam ajudar quem precisa a preencher formulários para acessar serviços de moradia, fazer currículo para procurar emprego ou simplesmente aprender a usar computadores e outras tecnologias. “Nos últimos anos, houve um aumento no número de bibliotecas com assistentes sociais na equipe, para ajudar pessoas que podem estar em situação de rua ou enfrentando outros problemas”, afirma Pelayo-Lozada. “Frequentemente também fazemos parcerias com outras entidades públicas e sem fins lucrativos para conectar as pessoas a informações e recursos de que precisem.” A capital americana é uma das cidades que vêm ampliando os serviços oferecidos em suas bibliotecas aos usuários em situação de rua. Em 2014, o sistema de bibliotecas públicas de Washington foi um dos primeiros do país a contratar uma assistente social em tempo integral, após iniciativa semelhante alguns anos antes em San Francisco, na Califórnia. Essa assistente social, Jean Badalamenti, atua como gerente de saúde e serviços humanos do sistema que inclui 26 bibliotecas públicas ao redor da cidade e é parte do governo municipal. Calcula-se que cerca de 4,4 mil pessoas em Washington não tenham onde morar, segundo os dados mais recentes, do ano passado. Em entrevista à BBC News Brasil na biblioteca central da cidade, que leva o nome do líder de direitos civis Martin Luther King Jr., Badalamenti conta que sua missão ao assumir o cargo era descobrir maneiras de usar os recursos e especialistas já disponíveis na comunidade para ajudar os clientes sem-teto. “Quando cheguei, há nove anos, o número de pessoas em situação de rua na cidade vinha crescendo. Ao mesmo tempo, a biblioteca havia contratado cerca de cem novos funcionários, muitos dos quais estavam pela primeira vez trabalhando em uma biblioteca pública urbana”, lembra. Uma das iniciativas foi familiarizar os funcionários sobre os recursos disponíveis na comunidade, como banco de alimentos, locais para tomar banho, doação de roupas e outros serviços, para que pudessem orientar melhor os usuários em situação de rua. A equipe também recebeu treinamento para entender de maneira mais profunda a crise habitacional na cidade. Entre as várias medidas adotadas para demonstrar às pessoas em situação de rua são que são bem-vindas nas bibliotecas da cidade está a distribuição de kits com produtos como xampu, sabonete, escova e pasta de dente, absorventes íntimos, máscaras, gorros, meias e luvas, entre outros. Qualquer visitante pode pedir um kit, e os funcionários também tomam a iniciativa de oferecer a usuários que demonstram precisar desses produtos. Um funcionário lembrou recentemente da alegria de um homem que usava sacos plásticos para aquecer os pés ao ser abordado e receber meias novas. Outro programa bem-sucedido em Washington é o chamado Coffee and Conversation (Café e Conversa), aberto a todos, no qual funcionários conduzem uma conversa informal sobre assuntos variados, com direito a um cafezinho. “O objetivo era achar maneiras de reunir pessoas com e sem moradia para conversar, e a biblioteca é o lugar perfeito para isso”, diz Badalamenti. Um dos principais programas trazidos por Badalamenti, e que também já foi adotado por outras cidades, envolve contratar e treinar pessoas que no passado viveram como moradores de rua, para que possam ajudar os usuários atualmente nessa situação. A iniciativa é conjunta com o departamento municipal de Saúde Comportamental, e faz parte de um esforço maior da cidade para combater a falta de moradia. “São pessoas que já viveram a experiência de estar em situação de rua, (muitas vezes) lidaram com problemas de saúde mental, dependência de drogas, encarceramento”, afirma Badalamenti. “Eles interagem diretamente com os frequentadores que podem estar precisando de algum tipo de ajuda, são muito conhecidos na comunidade (de serviços aos sem-teto).” Além da empatia de quem já passou pela mesma situação, esses funcionários têm a experiência de já terem decifrado a burocracia muitas vezes difícil para acessar os diferentes serviços disponíveis para essa parcela do público. Chamados de “pares”, eles ajudam os usuários a se conectar com serviços de saúde mental, abrigos, receber tratamento, obter documentos e várias outras tarefas. Segundo Badalamenti, muitos dos usuários ajudados pelos “pares” acabam conseguindo se mudar para habitação permanente. “Conseguimos conectar muitas pessoas com serviços de moradia, e vimos pessoas mudarem da rua para abrigos, de lá para moradias transitórias, e então para habitação permanente”, salienta. Um dos desafios das bibliotecas é atender às necessidades da parcela mais vulnerável dos clientes de maneira respeitosa e sem alienar os outros frequentadores. “Temos de equilibrar as necessidades de todos os membros da comunidade, o que é complexo e delicado. Para garantir que todos se sintam seguros e tenham seu espaço”, ressalta Pelayo-Lozada. “Assim como em outros espaços públicos, usuários e funcionários podem encontrar pessoas se comportando de maneira inapropriada ou ilegal”, afirma. “Oferecer treinamento para que nossos funcionários sejam capazes de lidar com essas situações é cada vez mais importante”, acrescenta. O fato de alguém estar em situação de rua não significa que vá causar problemas, e os funcionários se esforçam para não estigmatizar essas pessoas. O foco não é no histórico dos usuários, e sim em comportamentos, vindos de qualquer pessoa, que possam perturbar os outros, como uso de drogas nas dependências, agressividade ou até mesmo ronco alto ao cochilar. Há relatos na imprensa americana de casos de conflito. Em Anaheim, na Califórnia, um morador de rua foi preso no ano passado após derrubar um funcionário da biblioteca central com um soco, em um incidente documentado em vídeo. Nos últimos meses, bibliotecas nas cidades de Boulder e Englewood, no Colorado, tiveram de ser fechadas temporariamente para passar por um processo de “limpeza especializada” depois que testes revelaram contaminação por metanfetamina em algumas áreas, como os banheiros. Em anos recentes, diversas cidades, entre elas Chicago, San Francisco e Seattle, registraram reclamações de moradores por causa de acampamentos de sem-teto nas áreas externas de algumas bibliotecas, como estacionamentos. Mas funcionários ouvidos no estudo em San Diego ressaltam que muitos dos usuários em situação de rua “valorizam tanto a biblioteca que são quase um par extra de olhos e ouvidos” e que “se surgir um problema, eles ajudam, porque não querem que a biblioteca tenha problemas” e querem “preservar o ambiente seguro” do qual desfrutam. “De nossa perspectiva, temos todos os tipos diferentes de clientes”, salienta Badalamenti. “Para mim, o mais importante é (ressaltar) que as pessoas em situação de rua são pessoas como você e eu.” A assistente social diz que, nas bibliotecas em Washington, reclamações por parte de outros usuários incomodados com a presença de moradores de rua são raras. “Talvez, de tempos em tempos, alguém reclame”, afirma. “E minha resposta é: ‘Se você está preocupado com as pessoas em situação de rua na biblioteca pública, eu sugiro que entre em contato com seu vereador e converse com sobre moradias mais acessíveis na cidade’.”
2023-02-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c98yy9gnw71o
sociedade
Os novos gurus da beleza que ganham fama ao postar críticas negativas
Contrariando seu conteúdo habitual, influenciadores de beleza do TikTok agora estão “desinfluenciando” as pessoas – eles estão dizendo ao público o que eles não devem comprar. Oferecendo críticas de produtos fora da sua forma característica, muitos estão dirigindo suas críticas a produtos que eles acreditam terem sido superestimados por outros influenciadores naquela plataforma. O recente interesse pelas críticas negativas começou com uma controvérsia sobre uma recomendação de produto. Usuários acusaram a influenciadora de beleza Mikayla Nogueira no TikTok de aplicar secretamente grandes cílios para exagerar o efeito de uma máscara que ela havia sido paga para promover. O vídeo e os comentários negativos geraram debates mais abrangentes sobre a honestidade dos influenciadores, gerando uma avalanche de postagens “desinfluenciadoras”. O termo “desinfluenciar” pode ser um neologismo no vocabulário dos influenciadores, mas essa estratégia já existe há anos. Em um estudo recente, pesquisamos por que as pessoas perdem a confiança nos influenciadores que elas tanto reverenciavam e o que os influenciadores podem fazer para reconquistar essa confiança. Fim do Matérias recomendadas Estudamos os influenciadores que ganharam proeminência no YouTube como “gurus da beleza”. Os participantes do estudo (seguidores desses gurus) explicaram que, nos primeiros dias do YouTube, os vlogueiros ofereciam análises imparciais de produtos, muitas vezes de forma “brutalmente honesta” sobre produtos de que eles não gostavam. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Essas críticas foram fundamentais para a popularidade inicial de muitos vlogueiros. Como disse um participante, o conteúdo “nos fez economizar muito dinheiro”. Mas, quando os vlogueiros ganharam popularidade, nasceu o marketing dos influenciadores. Marcas capitalizaram o papel do guru de confiança, pagando ou incentivando-os a promover produtos para os seus leais seguidores. Este novo papel dos influenciadores gerou um exemplo do que os pesquisadores chamam de “conflito de interesses”. Os seguidores esperavam recomendações honestas e imparciais dos seus gurus favoritos, enquanto as marcas esperavam que os influenciadores apresentassem seus produtos de forma positiva. Essas expectativas entravam em conflito, criando desconfiança entre os seguidores. Nossos participantes contaram que eles duvidavam da honestidade e da confiabilidade dos vlogueiros de beleza depois que eles começaram a receber para promover produtos para os seus seguidores. Esta desconfiança era fundamentada. Nossa análise dos canais dos principais vlogueiros no YouTube revelou que, depois que adotaram o papel de influenciadores, eles passaram a evitar críticas às marcas, talvez porque não quisessem prejudicar colaborações existentes ou potenciais com fabricantes. Os influenciadores concentravam-se principalmente nas suas marcas preferidas e não naquelas de que eles não gostavam. As análises críticas dizendo aos seus seguidores quais produtos eles não deveriam comprar ficaram cada vez mais raras. Muitos dos participantes do nosso estudo relataram que deixaram de seguir ou evitaram conteúdo de influenciadores nos quais eles deixaram de confiar. Esta reação pode colocar o sucesso dos influenciadores em risco, já que o engajamento dos seguidores é fundamental para suas carreiras. Descobrimos que os vlogueiros de beleza do YouTube perceberam rapidamente a necessidade de reagir a esta sensação crescente de desconfiança. Nós observamos que eles usam o que chamamos de estratégia de “priorização do papel” para comprovar sua confiabilidade. Isso significa que eles priorizaram o papel de “guru”, e não o de “influenciador”, demonstrando isso aos seus seguidores. Eles ofereceram mais análises honestas e críticas de produtos. Os vlogueiros criaram vídeos intitulados “produtos decepcionantes” e “piores compras”, ou simplesmente integraram críticas negativas ao seu conteúdo. Muitos deles publicaram críticas negativas de produtos “presenteados” a eles pelas equipes de relações públicas das marcas, ou de marcas com quem haviam colaborado anteriormente. Com essas críticas, os influenciadores mostraram aos seus seguidores que seus relacionamentos com os espectadores eram mais importantes do que com as marcas. E funcionou. Os seguidores com quem conversamos disseram que este comportamento os incentivou a depositar mais confiança em recomendações de produtos futuras. Esta confiança é fundamental para a manutenção do papel do guru de confiança, que acaba fazendo com que os vlogueiros sejam atraentes para as marcas. Não surpreende que a conversa sobre os influenciadores e a confiança esteja surgindo no TikTok. O algoritmo da plataforma, que fornece aos usuários um fluxo infinito de vídeos pequenos personalizados sob o título “Para Sua Página”, combinado com sua natureza dirigida às tendências, faz com que os usuários do TikTok sejam particularmente culpados por incentivarem os últimos produtos de beleza “imperdíveis”. A profusão infinita de recomendações de produtos pode ser irresistível para os usuários e reduzir os saldos bancários dos influenciados. Em plataformas competitivas como o YouTube, os influenciadores aprenderam há muito tempo que devem dedicar-se à priorização do papel para manter a confiança dos espectadores. A popularidade dos desinfluenciadores demonstra que os gurus do TikTok também estão aprendendo a lição. Alguns comentaristas elogiaram a desinfluência como representando a morte da influência e, portanto, dos influenciadores. Mas nossa pesquisa indica o contrário. Desinfluenciar é uma forma de influenciar, mais atraente para muitos consumidores, particularmente no clima econômico atual. Em vez de representar o fim dos influenciadores, desinfluenciar é uma oportunidade para que eles redefinam seu papel original de “guru” e conquistem confiança com transparência e autenticidade. É uma estratégia usada para proteger seu papel de influenciador – e sua renda futura. * Rebecca Mardon é professora de marketing da Universidade de Cardiff, no Reino Unido. Hayley Cocker é professor de marketing da Universidade de Lancaster, no Reino Unido. Kate Daunt é professora de marketing da Universidade de Cardiff, no Reino Unido.
2023-02-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cxrppk1ppqlo
sociedade
Guerra na Ucrânia: como conflito divide famílias na Rússia
Uliana chora enquanto o caixão com o corpo do irmão é sepultado. O nome dele é Vanya, um soldado russo de 23 anos que morreu na linha de frente da guerra na Ucrânia. "Disseram que ele morreu como um herói", diz Uliana, de 37 anos. “Eu pensei: 'O que significa 'como um herói'?' É um absurdo. Não quero um herói morto como irmão." Mas o pai deles, Boris, embora dilacerado pela dor, está orgulhoso que Vanya morreu lutando pelo país. Fim do Matérias recomendadas Para ele, o conflito é uma batalha contra "um governo que prega o fascismo". Esse discurso ecoa as palavras do presidente russo, Vladimir Putin, que diz estar ajudando a desnazificar a Ucrânia e que o governo do país vizinho cometeu genocídio — acusação para a qual não há evidências. “Antes disso acontecer com Vanya, não discutíamos sobre a guerra”, conta Uliana ao descrever sua relação com o pai. "Mas depois que ele morreu, tivemos algumas brigas terríveis em relação a isso." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Em um novo documentário do programa Storyville, da BBC, pai e filha debatem a guerra — uma cena que acontece nos lares de muitas famílias na Rússia hoje. É difícil obter um panorama preciso de como a população no país se sente em relação à invasão da Ucrânia pela Rússia, dada a legislação que proíbe qualquer comentário que desacredite os militares, ou que se refira à ação militar como uma guerra, em vez de uma "operação militar especial". Mas uma pesquisa publicada em novembro de 2022 por um grupo de pesquisa russo independente sugere que o conflito está dividindo gerações — 75% dos entrevistados com 40 anos ou mais disseram que apoiavam a guerra, em comparação com 62% daqueles com 18 a 24 anos. A cineasta russa Anastasia Popova afirma que os dados batem com o que ela viu enquanto viajava pelo país para filmar o documentário. "Observei várias rupturas diferentes entre as famílias. Os filhos eram em sua maioria contra a guerra, e os pais — a geração criada durante a União Soviética, que assistia à TV [estatal] dia e noite — apoiavam a guerra. A mesma divisão acontece dentro da minha família", acrescenta ela, dizendo que o pai apoia a ação militar. Confiar nas notícias da TV estatal significa absorver a narrativa oficial do governo russo dia após dia. Uliana e outras pessoas da sua faixa etária são mais propensas a se informar a partir de outros meios de comunicação, como YouTube e redes sociais. "'Desculpa não chega nem perto de expressar a dor que sinto por dentro", diz Uliana. Ela acredita que a guerra mudou as pessoas. "Eu observo as pessoas no metrô [em Moscou]. Elas leem as notícias, e depois desviam o olhar. Elas pararam de se olhar nos olhos." Popova destaca que fora das grandes cidades o apoio à guerra é maior, independentemente da análise demográfica. Ela diz que isso ficou claro enquanto filmava o funeral de Vanya em Arkhangelskoe, vilarejo natal da família, a 97 quilômetros de Moscou. Uliana também constatou isso. "Quando eu estava observando aquelas pessoas, percebi que elas realmente acreditavam nas palavras que estavam dizendo, que Vanya morreu como um herói, um verdadeiro patriota que defendeu sua pátria." "Eu sei que tem algo errado. Quem devemos salvar lá? Por o que nossos meninos estão morrendo? Nunca imaginei na minha vida que meu irmão seria trazido para mim em um caixão de zinco." Vanya era o caçula de quatro irmãos — e o único homem. "Ele era um menino de ouro", diz Uliana. "Ele teve uma educação vasta", acrescenta Boris. "Escola de arte, escola de música, esporte... depositei tudo o que sonhei nele." Depois de sair de casa, Vanya entrou para um instituto literário em Moscou para estudar escrita criativa e também atuou em produções experimentais, inclusive no Teatro Bolshoi. E, de acordo com Boris, isso levou o filho a sofrer uma decepção amorosa, ao se apaixonar por uma jovem que não queria se casar. "Este é o mundo do teatro. Com suas próprias visões de mundo. Seus próprios critérios éticos e morais. No lugar dos valores familiares, eles têm relações abertas entre homens e mulheres", diz Boris. Uliana afirma que Vanya parecia extremamente feliz no teatro, mas o pai sugere que aquele ambiente provocou algum tipo de crise no filho. "Ele não estava satisfeito com a visão de mundo deles, que eles são sempre negativos em relação à Rússia; que os russos não são ninguém para eles; que seus ancestrais, toda a história da Rússia é repleta de bobagens. Ele sabia que não é assim. Nós falamos sobre isso. O que ele deveria fazer?" De acordo com Boris, ele e Vanya concordaram que ele deveria entrar para o Exército. "Para uma vida nas artes criativas... você precisa de experiência de vida", diz Boris. "Onde você pode encontrar isso? Decidimos que ele deveria seguir os passos dos grandes escritores: o Exército." Vanya ingressou no Exército como conscrito — e depois, em busca de desafios mais interessantes, assinou um contrato militar. Ele era um fuzileiro naval baseado na cidade de Sebastopol, na Crimeia ocupada pela Rússia, em fevereiro do ano passado. Ele foi instruído a ligar para sua família para se despedir antes de ser enviado para a cidade portuária ucraniana de Mariupol. "Conversamos muito, mais de uma hora", conta Uliana. “Ele estava com lágrimas nos olhos. Eu disse: 'Vanya, me mostra o que você tem aí'. Ele me mostrou uma metralhadora. Como costumava me mostrar brinquedos quando era criança." Boris compartilha um trecho da mensagem de vídeo de Vanya para ele. "Nossa causa é justa", Vanya diz. "Olá a todos. Escrevo quando chegar lá. Abraços e beijos." "Essas foram suas últimas palavras", diz Boris. Ele foi morto perto do complexo siderúrgico Azovstal, em Mariupol, em 15 de março. A morte dele trouxe à tona as diferentes visões de Uliana e Boris sobre a guerra. Boris diz a Uliana que ela é muito nova para se lembrar do que ele chama de "irmandade" das repúblicas da União Soviética. Ele argumenta que sua queda "quebrou a psique de muitas gerações seguintes, martelando em suas cabeças que os russos eram seus inimigos". A linguagem dele lembra a do presidente Putin, que chamou a queda do império soviético de "a maior catástrofe geopolítica do século [20]". A Ucrânia declarou independência pouco antes do colapso da União Soviética em 1991. O presidente russo também coloca a culpa da guerra na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e no Ocidente, que ele argumenta estar tentando enfraquecer e, por fim, destruir a Rússia. Boris também adota essa narrativa. "No contexto atual, 'não à guerra' só significa uma coisa", diz Boris a Uliana. "Significa 'morte aos russos'. Esta é uma luta pelo mundo russo, pela alma russa, por nossa cultura." Claramente não é uma visão compartilhada por Uliana, embora ela hesite de vez em quando. Popova captura um momento em que Uliana está de férias na Geórgia — um dos poucos países que os russos ainda podem visitar por causa das sanções —, e ela e os amigos conversam sobre a guerra durante o jantar. Uliana começa a questionar os fatos. "Quero acreditar que meu irmão não morreu em vão. Você quer justificar a perda. É tão doloroso. Você precisa se segurar em alguma coisa", explica Uliana. Um pequeno santuário foi construído em homenagem a Vanya na casa da família. Inclui solo coletado em Mariupol, onde ele morreu. Às vezes, pai e filha param juntos diante dele. Uliana diz que apesar de todas as diferenças quer manter o relacionamento com o pai. “Não posso entrar em guerra contra meu próprio pai. Não posso dizer: 'Eu te odeio porque discordamos'. Tudo que posso dizer é: 'Pai, eu não concordo'. É tudo que posso dizer.'"
2023-02-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cek3ddkm12eo
sociedade
Como a decisão de não ter filhos tem afetado a vida de casais
O número de casais que, conscientemente, não querem ter filhos vem aumentando – e, com eles, reações negativas a isso. Em uma de suas postagens mais recentes, Marcela Muñoz dança em um parque ensolarado, vestindo um top esportivo e bermuda jeans. Esse vídeo descontraído tem um papel: o de celebrar, nas redes sociais, o seu estilo de vida sem filhos. Muñoz tem 27 anos e mantém o perfil Childfree Millennial no TikTok, Instagram e YouTube. Ela é uma dentre um número cada vez maior de influenciadores que produzem conteúdo projetado para detalhar por que eles nunca quiseram ter filhos. "A primeira coisa que eu sempre digo quando as pessoas me perguntam por que não tenho filhos é que eu não tenho o desejo de ter filhos”, afirma Muñoz, pequena empresária de Kansas, nos Estados Unidos. Ela acredita que as crianças iriam interferir com suas paixões de viajar livremente, treinar futebol e levantar tarde com frequência. Fim do Matérias recomendadas Em uma de suas outras postagens recentes, ela brinca: “se você deseja ter um filho, tire uma soneca; se você gostar da soneca, desista”. “Perdi a conta de quantas vezes meus amigos [que são pais] disseram ‘meu Deus, eu só dormi duas horas na noite passada, meus filhos estavam vomitando e precisei cuidar deles’”, conta Muñoz. “Isso realmente não me atrai!” Decidir não ter filhos não é uma novidade, mas existe uma tendência cada vez maior de assumir o rótulo “livre de crianças” e discutir mais abertamente esta decisão. Além do surgimento de influenciadores individuais como Muñoz, as comunidades e grupos de apoio online para adultos que decidem não ter filhos cresceram rapidamente nos últimos dois anos. Mas, embora o movimento “livre de crianças” esteja crescendo, pesquisadores argumentam que a aceitação social e a compreensão da decisão de viver sem filhos não vêm aumentando na mesma velocidade. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast A maioria das comunidades online de pessoas sem filhos define seus membros como gente que decidiu conscientemente nunca ter filhos. É diferente de outros adultos que, no momento, não têm filhos, mas querem crianças no futuro, ou de adultos que tinham esperança de ter filhos, mas não conseguiram. Estes podem ter enfrentado problemas de fertilidade ou outras condições médicas, ou foram prejudicados por circunstâncias sociais, como não encontrar um parceiro adequado ou disposto no momento certo, por exemplo. Em inglês, os casais que decidem não ter filhos são chamados de “child-free” (literalmente, “livres de crianças” ou “sem crianças”). Esta expressão existe desde o início dos anos 1900, mas feministas começaram a usá-la de forma mais abrangente a partir da década de 1970, para se referir a mulheres que, voluntariamente, não tinham filhos. A palavra “livre” foi escolhida por simbolizar o sentimento de liberdade e ausência de obrigações experimentado por muitos dos que decidiram voluntariamente não ter filhos. Mas a maior parte das pesquisas acadêmicas normalmente “reúne todas as pessoas que não têm filhos em um mesmo grupo”, segundo Elizabeth Hintz, professora de comunicação da Universidade de Connecticut, nos Estados Unidos. Ela estudou a percepção sobre a identidade das pessoas “livres de crianças”. Hintz afirma que esta metodologia não reflete as experiências e sentimentos muito diferentes das pessoas que decidiram não ter filhos e das que quiseram, mas não conseguiram – e significa que existem poucos dados comparativos de longo prazo examinando cada grupo separadamente. Mas, na nossa era de redes sociais e hashtags, o rótulo “livre de crianças” está ganhando atenção, segundo Hintz, à medida que mais pessoas que optaram por não ter filhos passaram a divulgar sua decisão. Esta tendência acompanha alguns dados de pesquisa que indicam que mais adultos no Ocidente podem estar decidindo ativamente não ter filhos. Nos Estados Unidos, um estudo do think tank – centro de pesquisa e debates – Pew Research Center demonstrou em 2021 que cerca de 44% das pessoas que não são pais com 18 a 49 anos de idade acreditam que não terão filhos, contra 37% em 2018. Mais da metade dos pesquisados indicou que sua principal razão é “não quero ter filhos” e não fatores mais circunstanciais, como questões médicas ou não querer criar um filho sem ter um parceiro. Na Inglaterra e no País de Gales, um estudo do instituto YouGov de 2020 indicou que mais da metade dos britânicos com 35 a 44 anos de idade que não tiveram filhos nunca planejaram ser pais. Hintz afirma que são muitas as razões que levam os millennials (nascidos entre 1981 e 1995) e os jovens da Geração Z (nascidos entre 1995 e 2010) a decidir não ter filhos, mas existem diversas trajetórias comuns. “Existem pessoas que sabem no início da vida adulta que não querem filhos e nunca mudam de ideia”, ela conta. “Há pessoas que tomam essa decisão mais tarde e a proclamam como parte da sua identidade. E existem pessoas que ficam meio que em cima do muro sobre ter filhos ou não e podem mudar de ideia várias vezes.” A gerente de redes sociais Ciara O’Neill, de Londres, tem 31 anos de idade e enquadra-se firmemente na primeira categoria. “Realmente, nunca quis ter filhos e, na verdade, nunca me vi como futura mãe”, ela conta. “Realmente acho que não tenho esse desejo maternal de procriar.” O’Neill namora há três anos e seu namorado sente o mesmo, segundo ela. O casal também acredita que ter filhos faria com que viajar ou trabalhar no exterior no futuro ficasse mais difícil para eles. Para a professora de inglês Cristina Garcia Trapero, que trabalha na Espanha, decidir identificar-se como “livre de crianças” foi um processo mais gradual. “Quando era adolescente até pouco mais de 20 anos de idade, pensei em ter filhos, mas porque eu acreditava que era o que todos tinham que fazer”, ela conta. Agora com 32 anos e atualmente solteira, ela começou a adotar a identidade “livre de crianças” dois anos atrás, depois de concluir que não conseguia se ver como mãe. “Sou uma pessoa que gosta do silêncio e de passar algum tempo sozinha e não conseguiria ter isso com filhos”, ela conta. Garcia Trapero também menciona “mudanças climáticas e a situação do planeta” como fatores externos que influenciaram sua decisão. Ela faz parte de uma tendência pequena, mas crescente, identificada por pesquisadores como Hintz, que estudam as pessoas que decidem não ter filhos. No estudo do Pew Research Center em 2021, 9% das pessoas que não têm filhos afirmaram que “a situação do mundo” era a razão pela qual eles provavelmente não serão pais, enquanto 5% mencionaram preocupações com o meio ambiente. A psicoterapeuta Margaret O’Connor, de Limerick, na Irlanda, trabalha principalmente com clientes no grupo definido por Hintz como “em cima do muro”. O’Connor apresenta o podcast Are Kids for Me? (“Crianças são para mim?”, em tradução livre). Ela conta que questões práticas e financeiras, como viver na insegurança do aluguel, trabalhar na economia informal e acesso limitado à assistência médica, também são cada vez mais importantes para muitos millennials, quando eles ponderam se irão ou não ter filhos. “Tudo isso pode talvez ser eliminado ou contornado, até certo ponto, se o desejo de ter um bebê for suficientemente forte”, explica ela. “Você pode se mudar de casa ou mudar de emprego.” Mas O’Connor afirma que cada vez mais jovens que não têm certeza se devem ter filhos questionam exatamente o que pode ser esse tipo de “sacrifício”, ao contrário das gerações anteriores, que eram mais dispostas a seguir as normas sociais e formar família, apesar das circunstâncias. A maior consciência do possível custo mental e físico de começar uma família também tem influência, segundo O’Connor. “As mulheres com quem trabalho estão realmente considerando o impacto da gravidez e do parto, além da sua capacidade de se dedicar da mesma forma que elas desejam, física e mentalmente”, afirma O’Connor. “Morar perto da família de origem ou da sua rede de amigos definitivamente também é outro fator.” Mesmo fazendo parte de uma geração que cresceu compartilhando tudo nas redes sociais, Muñoz afirma que os millennials que decidiram não ter filhos inicialmente relutaram em anunciar e celebrar sua decisão online. Mas ela afirma que houve uma “grande mudança” nos últimos anos. Muñoz argumenta que foi um efeito de bola de neve, já que mais pessoas começaram a se sentir confortáveis para contar suas experiências quando viram como outras pessoas que decidiram não ser pais se tornaram “francas e abertas”. “Quando abri minha conta no Instagram, havia talvez três ou quatro outras contas de pessoas que não queriam ter filhos... mas, agora, avançando dois anos, existem centenas, centenas e centenas de contas ‘livres de crianças’”, ela conta. “Você pode dizer que existe alguma espécie de movimento acontecendo agora.” No Instagram, a hashtag #childfree já reuniu mais de 311 mil postagens. E, no TikTok, onde Muñoz também participa, a popularidade das hashtags #child-free e #childfreebychoice disparou nos últimos dois anos. Cada uma delas teve 570 e 391 milhões de visualizações, respectivamente. A conta de Muñoz no TikTok segue uma linha leve e humorística, mas ela conta que o assunto ainda desperta muitas discussões mais profundas sobre algumas das pressões sofridas pelas pessoas que decidem não ter filhos. Alguns dos seus seguidores, por exemplo, sabem que não querem crianças, mas sentem que podem arriscar-se a perder amizades ou desapontar seus pais se decidirem não ser pais. “Não sou de entrar em debates ou argumentar sobre assuntos que me apaixonam e, por isso, considero o humor como minha forma de expressar minha escolha de não ter filhos”, afirma Muñoz. “Eu só acrescento, no final de todos os meus vídeos no YouTube, que ‘esta é a sua vida, são as suas decisões, viva a sua vida da melhor forma’... Não viva como sua mãe quer que você viva. Não faça o que o seu melhor amigo quer que você faça. Não faça o que o seu vizinho quer.” Muñoz afirma que os criadores de conteúdo para pessoas que não querem ter filhos oferecem aquele tipo de comunidade que ela sentia que faltava quando começou a aceitar sua própria identidade “livre de crianças”. Ela tinha perto de 25 anos na época e não sabia que havia outras pessoas na mesma situação. “Eu realmente achava que era a única pessoa do mundo que não queria ter filhos”, ela conta. “A comunidade meio que solidificou minha decisão e também me ajudou a abrir os olhos de outras pessoas para o fato de que, sim, [não ter filhos] é uma opção.” Outra comunidade online em crescimento é We Are Childfree, administrada pela britânica Zoë Noble e seu parceiro James Glazebrook. Ambos têm pouco mais de 40 anos de idade e moram em Berlim, na Alemanha. O grupo usa fotojornalismo, podcasts e encontros para enaltecer as diferentes formas em que as pessoas que não querem ter filhos vivem vidas gratificantes. Eles já acumulam 66 mil seguidores nas suas diversas plataformas de redes sociais, desde o lançamento durante a pandemia. Também vem crescendo bastante o subgrupo Childfree na plataforma de rede social Reddit. A comunidade atingiu recentemente 1,5 milhão de assinantes, contra menos de meio milhão 10 anos atrás, quando Hintz começou a estudar as postagens. No grupo, as pessoas postam histórias sobre alguns dos comentários não solicitados ou cobranças agressivas que elas recebem de familiares e estranhos – “você vai mudar de ideia”, “você está concentrado demais na sua carreira”, “você não quer uma cópia pequena de você?” Outros usam o espaço para debater diversos temas relacionados a não ter filhos, como o acesso à esterilização, a identidade “livre de crianças” na comunidade LGBTQIA+ ou como contar que não quer ter filhos em um encontro. Especialistas afirmam que o aumento dos influenciadores e comunidades online enaltecendo as pessoas que não querem ter filhos é uma indicação de que as normas sociais estão mudando. O número de pessoas que estão encontrando outros com o mesmo ponto de vista online é significativo, segundo Hintz. “Minha impressão é que [algumas] pessoas estão manifestando seu orgulho porque é um tabu cada vez menor.” Para Hintz, o motivo exato que faz com que os tabus a sejam derrubados provavelmente é uma confluência de diferentes fatores. Fundamentalmente, as pessoas que não querem ser pais conhecem cada vez mais outros que não têm filhos, seja nos seus círculos sociais ou em comunidades online, simplesmente porque se tornou mais comum. “Conhecer pessoalmente alguém que pertence a um grupo estigmatizado pode ser um dos catalisadores mais poderosos para alterar as próprias visões preconceituosas de uma pessoa”, explica ela. E, enquanto isso, “à medida que mais pessoas decidem não ter filhos, as comunidades online tornam-se ambientes tranquilos para elas.” Hintz sugere que a pandemia também pode ter exercido sua influência, quando vieram à tona discussões públicas sobre as dificuldades enfrentadas por muitos pais. Quando os pais começaram a falar abertamente sobre suas dificuldades com os estudos em casa, fechamento de creches ou a simples administração de despesas básicas de vida, devido ao impacto econômico da covid-19, surgiu um ambiente mais seguro para discutir os benefícios de não ter filhos. Mas Hintz também destaca que o conteúdo “livre de crianças” também gera “muitas opiniões fortes” de fora da comunidade, o que indica que ainda há falta de respeito e compreensão com os adultos “livres de crianças” por parte de alguns grupos. O conteúdo de Muñoz costuma atrair comentários hostis de pessoas que ridicularizam suas decisões como sendo “anticrianças” ou “egoístas”, ou de seguidores que simplesmente não acreditam que ela possa considerar que seu estilo de vida é gratificante. “Muitos pais simplesmente não entendem que foi uma escolha. E, por isso, eles acham que é um ataque à escolha deles de ter filhos”, ela conta. “Eles entram imediatamente em modo defensivo e dizem, ‘oh, mas você vai se arrepender’, ‘você vai morrer sozinha’, ‘quem vai cuidar de você quando ficar mais velha?’ e ‘você nunca vai conhecer o verdadeiro amor’”, segundo Muñoz. Muñoz é cristã e afirma que também foi criticada por pessoas da sua comunidade religiosa, online e dentro da sua própria congregação. Essas pessoas acreditam que ela está rejeitando a ênfase da Bíblia sobre a procriação. Outros a acusaram de dar as costas à sua herança hispânica. “As pessoas dizem, ‘sua cultura, seu patrimônio, você precisa passar de geração em geração – o que você está fazendo?!”, ela conta. Para Hintz, grande parte das críticas dirigidas aos defensores das pessoas “livres de crianças” costuma ter forte viés de gênero. “Tomar decisões reprodutivas sempre foi um encargo imposto às mulheres, mais do que aos seus parceiros”, afirma ela. “A maternidade e a feminilidade estão tão intimamente entrelaçadas que, eu acho, isso também é uma parte da questão.” Por isso, muitas vezes, as mulheres ainda sofrem mais pressão do que os homens para seguir um “roteiro de vida” tradicional e começar uma família, segundo Hintz – mesmo nos países ocidentais que fizeram grandes avanços rumo à igualdade de gênero. Ajudar os millennials e jovens da Geração Z a lidar melhor com seus “roteiros de vida” alternativos pode parecer um objetivo central de muitos ativistas “livres de crianças”. “Ainda não é o que a maioria das pessoas faz. Por isso, é diferente, é assustador”, afirma O’Connor. “Existe um pouco de pressão de que, se você não tiver filhos, precisa ficar disposto a viver uma vida maravilhosa, glamourosa ou filantrópica, ou você precisa sair e fazer algo significativo”, ela conta. Mas ela espera que seus podcasts, canais de redes sociais e sessões de terapia possam ajudar a aumentar a consciência de que uma vida sem filhos pode ser simplesmente “sua vida diária comum, apenas sem ter crianças”. “Pode ser voluntariado. Pode ser envolver-se na vida da sua própria família ou dos seus amigos como suporte. Mas, na verdade, é qualquer coisa que seja importante para você ou que você queira que seja”, aconselha O’Connor. Um casal que espera ser um modelo mais velho de uma vida comum e feliz sem filhos são os noivos Veronica Prager, com 46 anos, e Rick Grimes, com 51. Eles são de Austin, no Texas (Estados Unidos), e administram a comunidade online Childfree Connection. Nela, eles compartilham o que aprenderam sobre não ter filhos com 30, 40 anos de idade e além. “Existe muito conteúdo no TikTok ou em outros lugares, dizendo ‘eu prefiro estar no clube em vez de precisar cuidar de uma criança’”, conta Prager. “O que é interessante, aceitável e faz sentido para eles no momento. Mas então chega um momento em que você não estará no clube.” Atualmente, o casal passa seu tempo livre praticando caiaque, cuidando dos cachorros e trabalhando de forma flexível em lugares diferentes. Eles nunca quiseram ter seus próprios filhos, mas adoram sair com seus sobrinhos. Seu conteúdo fornece conselhos sobre como manter relacionamentos com amigos próximos e parentes que são pais. “Existem muitas contas que criticam muito as crianças e dizem ‘oh, nossa vida é melhor’, este tipo de coisa”, explica Grimes. “E nós não somos assim. É mais sobre o que sentimos sobre esta vida, como ela é e o que você pode esperar dela.” Eles também discutem questões práticas e financeiras, incluindo o planejamento para a aposentadoria sem ter filhos. “Existe muito medo de ficar mais velho e ‘quem vai cuidar de mim?’ ou ‘como será o meu futuro?’”, segundo Prager. “E nós estamos fazendo isso agora para poder compartilhar com a nossa comunidade.” O casal chega a oferecer conselhos para membros que ainda têm dúvidas sobre não ter filhos. “Existem dias em que você irá se sentir muito confiante sobre a sua decisão e, de repente, no dia seguinte, você tem medo de estar perdendo alguma coisa”, afirma Grimes. “É importante enfrentar essa luta interna que vai e vem e [muitas pessoas precisam] ter um lugar para ir e conseguir esse apoio.” O tamanho do impacto que o movimento “livre de crianças” pode ter nas decisões das gerações futuras sobre ter filhos ou sobre a percepção mais geral que as pessoas têm daqueles que não são pais ainda está sendo analisado. Para Margaret O’Connor, é importante notar que a maioria dos ativistas da causa “livres de crianças” defende o direito de livre escolha para todos, e seu objetivo não é o de “convencer as pessoas a não ter filhos”, ou de “tentar recrutar [pessoas] para a comunidade”. Mas ela espera que os grupos online, à medida que cresçam e ganhem mais importância, irão ajudar mais pessoas que não têm certeza se devem ter filhos a compreender melhor suas opções e fornecer àqueles que já tomaram sua decisão mais instrumentos para “facilitar” sua escolha de vida. Elizabeth Hintz está confiante que viver “livre de crianças” será ainda “mais normalizado” nos próximos anos, simplesmente devido ao aumento do número de pessoas que, agora, não estão tendo filhos. Ela espera que isso ajude a combater parte do estigma de que “as pessoas que não têm filhos são egoístas e infelizes”, já que os que têm ou querem ter filhos começarão naturalmente a encontrar mais pessoas solteiras ou casais “livres de crianças”, que podem ajudar a enfraquecer este mito. Mas Hintz ressalta que os resultados dessas ações em termos de mudanças mais profundas da opinião pública provavelmente serão influenciados pelo panorama político, religioso e da imprensa em lugares específicos. Moradores de subúrbios predominantemente cristãos ou de direita, por exemplo, podem ser menos dispostos a mudar seu comportamento com relação a pessoas que decidem não ter filhos do que em cidades maiores e mais liberais, mesmo que surjam mais pessoas conscientemente “livres de crianças” nas suas comunidades. O’Connor concorda totalmente que os meios de comunicação detêm um papel importante na promoção dos avanços. “Existe pouca demonstração positiva do que representa ser ‘livre de crianças’ para a sociedade”, segundo ela. “Não temos na grande imprensa, em programas de TV, nem em filmes, pessoas mais velhas vivendo felizes, sem ter filhos.” Já influenciadores como Marcela Muñoz acreditam que já têm muito a comemorar, em termos do aumento da visibilidade do movimento “livre de crianças” ao longo dos últimos dois anos. “Cada vez mais reportagens estão surgindo sobre pessoas que não têm filhos... e ver mais contas surgindo, mais canais sendo criados no YouTube, é um grande incentivo”, ela conta. “Não tenho preconceito contra as pessoas que têm filhos. Tenho na vida muitos amigos que são pais”, afirma Muñoz. “Mas simplesmente adoro que as pessoas agora estejam pensando com um pouco mais de profundidade sobre a criação de filhos, em vez de simplesmente considerar que é o que precisa ser feito.”
2023-02-20
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3g335ge6xno
sociedade
Seis dicas para conseguir um emprego depois dos 50 anos
Arranjar emprego depois dos 50 anos pode ser um enorme desafio. Em parte, porque as empresas de recrutamento e recursos humanos têm preferência por profissionais jovens. Contratar pessoas mais velhas, apesar da experiência que elas possuem, continua sendo um tabu em todo o mundo — e isso acabou ganhando força durante a pandemia de covid-19, com os idosos sendo considerados “grupos de risco”. No Brasil, uma pesquisa realizada em agosto do ano passado mostrou que um em cada quatro profissionais foi demitido por causa da idade. O levantamento, que contou com a participação de 252 profissionais de recursos humanos, foi realizado pelas empresas Vagas.com, Colettivo e Talento Sênior. Se você tem mais de 50 anos, foi demitido e quer voltar ao mercado de trabalho ou apenas mudar de emprego, confira seis dicas a seguir: Fim do Matérias recomendadas Infelizmente, a “velhofobia” (também chamada de “etarismo”, o preconceito contra idosos) ainda é um problema, diz James Reed, executivo-chefe da empresa de recrutamento Reed. "Candidatos mais velhos ainda podem enfrentar preconceito", admite. Ele sugere, sempre que possível, focar em suas habilidades, em detrimento da idade. “Embora você não deva mentir sobre sua idade, também não há necessidade de destacá-la", afirma. "Considere simplificar seu currículo e elimine experiências mais antigas, que remontem a mais de 10 anos, ou omita as datas em que você lista a sua formação educacional." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Se sua saúde é a razão pela qual você deixou seu último emprego, isso pode ser um obstáculo para você se recolocar no mercado de trabalho. Mas você não precisa mencionar isso na entrevista, a menos que saiba que seu problema de saúde pode afetar seu desempenho no futuro. Petra Tagg, diretora da multinacional de recrutamento Manpower, diz que cabe a você decidir quanta informação você quer compartilhar. "Não há necessidade de divulgar um histórico de doenças se isso não afetar sua capacidade de desempenhar suas funções", diz. No entanto, ela recomenda ser sincero sobre problemas de saúde que possam afetar sua capacidade de realizar um trabalho ou se você precisar se ausentar. Laura Reilly, diretora da empresa de seleção Taurus HR, aconselha falar sobre os motivos que o levaram a sair do emprego anterior de uma forma “relativamente leve e positiva”. "Depois que uma oferta de emprego é recebida, você pode falar o que quiser — inclusive se ajustes razoáveis precisam ser feitos para você", observa. Yvonne Smyth, da empresa de recrutamento Hays, diz que, se você for solicitado a preencher uma avaliação ou formulário de adaptação ao local de trabalho, esse é o momento de divulgar qualquer informação de saúde que você ache relevante e que possa ter impacto em seu trabalho. Mas isso geralmente acontece um pouco mais adiante no processo de entrevista. Trabalhadores mais velhos podem muitas vezes ser alvo de preconceito, especialmente em relação a habilidades digitais, afirma James Reed. Por isso, ele diz que vale a pena aprimorar as habilidades em áreas valorizadas pelos empregadores. Segundo Reed, usar alertas de notícias para acompanhar o que está acontecendo em seu campo de atuação, por exemplo, pode ajudar você a se destacar durante o processo seletivo. Aproveitar oportunidades de trabalho não remunerado também pode ampliar seu leque de habilidades à medida que você efetivamente vai aprender a lidar com novas tecnologias, diz Stuart Lewis, executivo-chefe do Rest Less, um site que disponibiliza fontes de empregos e voluntariado para maiores de 50 anos. Ele também aconselha deixar claro na candidatura que você está interessado em novos desafios e aprender novas habilidades. Algumas pessoas mais velhas descobrem que não têm energia para trabalhar em tempo integral, ou precisam cuidar de outros familiares ou simplesmente preferem trabalhar meio período. Mas você não deve ter receio de pedir flexibilidade no trabalho. As empresas estão percebendo cada vez mais que oferecer trabalho flexível ajuda a reter profissionais de mais idade, segundo Tracy Riddell, do Center for Aging Better, ONG de apoio a pessoas mais velhas no mercado de trabalho com sede no Reino Unido. James Reed diz que os candidatos mais velhos não devem descartar a obtenção de novas qualificações profissionais. Isso pode demonstrar a potenciais empregadores a sua capacidade de se adaptar e aprender novas habilidades, ou até mesmo ser o início de uma carreira totalmente nova. Estágios, por exemplo, não são só para os jovens. Profissionais mais velhos e que estão mudando de carreira também podem fazer. E pense em suas "habilidades transferíveis", aquelas que podem ser aproveitadas em diferentes profissões ou carreiras, afirma Clare McCartney, do Chartered Institute of Personnel and Development, associação para profissionais de gestão de recursos humanos com sede na Inglaterra. Se você é um bom comunicador ou tem muita experiência em liderança, por exemplo, vale a pena considerar se candidatar a empregos em diferentes setores, diz ela. Por fim, não caia na armadilha de se subestimar, adverte Petra Tagg, da Manpower. Ela diz que muitas vezes a vantagem para os profissionais mais velhos é a vasta experiência que possuem. "Em circunstâncias em que outros candidatos mais jovens parecem ter mais a oferecer, lembre-se do que o destaca da multidão. Essa é uma maneira rápida e eficaz de aumentar sua autoconfiança", afirma. Tagg recomenda que os candidatos analisem detalhadamente a descrição de uma vaga “listando com exemplos práticos como suas habilidades podem atender aos requisitos pedidos, em vez de se concentrar naqueles em que você não tem experiência". Este texto foi originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cye8ww699x1o
2023-02-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cye8ww699x1o
sociedade
Método Montessori: o mais influente método de educação funciona de verdade?
Quando analisamos a vida dos ricos e famosos, sempre temos a tentação de procurar o segredo do sucesso deles. Então, vamos lá: o que a cozinheira Julia Child, o romancista Gabriel García Márquez, a cantora Taylor Swift e os fundadores do Google, Larry Page e Sergey Brin, têm em comum? Resposta: todos eles estudaram em escolas Montessori quando crianças. Fim do Matérias recomendadas Nos Estados Unidos, a influência dessas escolas no mundo das artes e da tecnologia vem sendo observada há muito tempo. Mas o alcance do método educacional vai muito além disso. O líder da independência da Índia, Mahatma Gandhi, era um admirador do método Montessori. Ele descreveu como as crianças "não sentiam o aprendizado como obrigação, pois elas aprendiam tudo enquanto brincavam". Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Já o poeta indiano Rabindranath Tagore, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1913, formou uma rede de escolas Montessori para liberar a autoexpressão criativa das crianças. Mas o método Montessori realmente funciona? Faz mais de um século que a médica e educadora italiana Maria Montessori delineou seus famosos princípios, incentivando as crianças a desenvolver a autonomia desde cedo. A vida dela oferece a história inspiradora de uma feminista pioneira que ousou desafiar o regime fascista da Itália em busca de um sonho. Estimativas indicam que existem atualmente pelo menos 60 mil escolas em todo o mundo que adotam o método. Mas os benefícios da educação Montessori, surpreendentemente, continuam a ser debatidos. Essas discussões se devem, em parte, às dificuldades inerentes de se conduzir pesquisas científicas em salas de aula, o que faz com que os estudos existentes sejam objeto de severas críticas pelos céticos. Apenas recentemente os pesquisadores conseguiram resolver algumas dessas questões, e suas conclusões são uma leitura fascinante para professores, pais e estudantes — na verdade, para qualquer pessoa interessada pela maleabilidade da mente das crianças. Maria Montessori nasceu na pequena municipalidade de Chiaravalle, na Itália, em 1870. Seus pais eram progressistas e mantinham reuniões frequentes com os principais pensadores e acadêmicos do país. E este ambiente familiar ofereceu a Montessori muitas vantagens sobre as outras jovens do seu tempo. "O apoio de sua mãe foi fundamental para algumas decisões importantes, como matricular-se em uma escola técnica depois do ensino fundamental", segundo Elide Taviani, uma das diretoras da Opera Nazionale Montessori em Roma, na Itália. A organização foi fundada por Montessori para pesquisar e promover os métodos educacionais. O suporte dos pais também foi essencial para a decisão de estudar medicina, um campo que, na época, era dominado pelos homens. "A família de Maria Montessori sempre foi extremamente sensível a questões sociais", acrescenta Taviani. Um exemplo é a luta pela emancipação feminina, uma batalha que Montessori travaria até a idade adulta. "Ela representou um importante ponto de referência para outras mulheres de seu tempo." Pouco depois de formar-se em 1896, Montessori começou a trabalhar como assistente voluntária em uma clínica psiquiátrica na Universidade de Roma, na Itália, onde cuidava de crianças com dificuldades de aprendizado. As salas eram quase vazias, com poucos móveis. Um dia, ela observou as crianças entusiasmadas, brincando com migalhas de pão que haviam caído no chão, segundo Catherine L’Ecuyer, pesquisadora de psicologia e educação da Universidade de Navarra, na Espanha, e autora do livro The Wonder Approach ("A Abordagem Maravilhosa", em tradução livre). "Foi quando ocorreu para ela que a origem de algumas dificuldades intelectuais poderia estar relacionada ao empobrecimento", conta L’Ecuyer. Montessori então concluiu que, com os materiais de aprendizado corretos, aquelas e outras mentes jovens poderiam ser cultivadas. Esta observação levaria Montessori a desenvolver um novo método de educação, concentrado em fornecer o estímulo ideal durante os períodos sensíveis da infância. O método parte do princípio de que todos os materiais de aprendizado devem ter o tamanho adequado para as crianças e ser projetados para apelar a todos os cinco sentidos. Além disso, deve-se também permitir que cada criança se movimente e aja livremente, usando a criatividade e as próprias técnicas de resolução de problemas. Os professores assumem o papel de guias, apoiando as crianças sem controle, nem coerção. Montessori abriu a primeira Casa dei Bambini ("Casa das Crianças", em tradução livre) em 1907 e logo surgiram várias outras unidades. Ao longo do tempo, ela também formou ligações com visionários de todo o mundo, incluindo Gandhi. Talvez de forma surpreendente, os fascistas inicialmente adotaram o método quando chegaram ao poder na Itália, em 1922. Mas logo passaram a combater a ênfase de Montessori sobre a liberdade de expressão das crianças. Taviani afirma que os valores de Montessori sempre foram sobre o respeito humano e "os direitos das crianças e das mulheres, mas os fascistas queriam explorar o trabalho e a fama dela". O rompimento chegou quando o regime fascista tentou influenciar o conteúdo educacional das escolas. Montessori e seu filho decidiram então sair da Itália, em 1934. Maria Montessori só retornaria à sua terra natal em 1947. Ela continuou a escrever e desenvolver seu método até sua morte em 1952, aos 81 anos de idade. Existem atualmente muitos tipos diferentes de escolas Montessori e nem todas são reconhecidas pela Opera Montessori. Mas certos princípios fundamentais permanecem intactos. Um deles é a ideia de que os professores são guias que incentivam as crianças com gentileza a fazer as atividades com o mínimo de interferência possível dos adultos. "Nossas crianças aprendem a se autogerenciar", afirma Miriam Ferro, diretora da Ecoscuola Montessori de Palermo, na Itália, que atende crianças desde os primeiros meses de vida até os seis anos de idade. Algumas matérias da Ecoscuola são similares às ensinadas em outras instituições, como a matemática e a música. Mas existe também um segmento chamado de "vida prática", que retoma a visão original de Montessori sobre a autonomia das crianças. Esta matéria inclui tarefas práticas do dia a dia, como servir bebidas para os colegas de classe. Por questões de segurança, os professores se encarregam de ferver a água, mas as crianças têm papel ativo na limpeza da superfície de trabalho e apresentam as bebidas para os demais. "No café da manhã e no almoço, elas também se autogerenciam, dividindo-se em turmas para arrumar a mesa e servir os colegas", afirma Ferro. O método incentiva a independência, mas também a colaboração. Crianças de diferentes idades aprendem na mesma sala de aula, de forma que os que têm seis anos de idade, por exemplo, possam ajudar os de três anos. Não há exames, nem notas, para evitar a competição entre os alunos. Cada sessão tem três horas de duração, para permitir que as crianças fiquem imersas no que estão fazendo. Os materiais de aprendizado são elaborados para que possam ser manuseados e explorados com todos os sentidos, como letras e números feitos de lixa, que a criança pode procurar e sentir com os dedos. Mas, por mais sensível e animador que possa parecer este conceito, será que ele traz benefícios tangíveis além dos encontrados na sala de aula comum? Esta parece uma questão simples, mas é muito difícil de responder. Pesquisas indicam que pode haver benefícios em aspectos específicos da educação Montessori, mas os resultados trazem advertências importantes. Isso porque é difícil aplicar em sala de aula o processo científico padrão empregado para descobrir se algo funciona ou não. Para medir cientificamente os efeitos de uma intervenção, tipicamente se realiza um teste controlado aleatório. Este teste envolve a alocação aleatória dos participantes em dois grupos – o grupo "experimental", que recebe a intervenção, e o grupo "controle" que passa por um procedimento comparável, mas diferente, que não se espera que cause o efeito desejado. Se os participantes que receberam a intervenção tiverem melhores resultados que os que não a receberam, pode-se concluir que a intervenção funcionou conforme o desejado. Na área médica, as pessoas do grupo que passou pela intervenção receberiam um comprimido real, enquanto o grupo controle receberia uma pílula "placebo", que se parece exatamente com o remédio de verdade, mas não contém os ingredientes ativos. Infelizmente, porém, é muito difícil aplicar o mesmo rigor científico aos testes com intervenções educacionais. Você pode optar por comparar alunos das escolas Montessori com os de algum outro sistema educacional. Mas muitas escolas Montessori são particulares, pagas com mensalidades, e a escolha dos pais pode estar relacionada a muitos outros fatores que também podem influenciar o progresso das crianças. E a situação financeira dos pais não é a única variável em questão. "Os pais que matriculam seus filhos em uma escola Montessori podem ser mais dedicados à sua educação, de forma que o seu próprio estilo educativo em casa pode influenciar positivamente", explica Javier Bernacer, do Instituto de Cultura e Sociedade da Universidade de Navarra, na Espanha. É certo que alguns estudos aparentemente demonstram uma série de benefícios para as crianças em desenvolvimento, mas não podemos ter certeza se esse é um resultado do método Montessori ou se é uma simples consequência do um ambiente privilegiado. A professora de psicologia Angeline Lillard, da Universidade da Virgínia em Charlottesville, nos Estados Unidos, tentou superar essas dificuldades observando uma escola Montessori específica na cidade norte-americana de Milwaukee. As crianças matriculadas na instituição foram selecionadas por um sistema de sorteio. Esta seleção aleatória deveria eliminar os outros fatores de influência, oferecendo a Lillard maior confiança de que o próprio método Montessori seria o responsável por eventuais diferenças. Ao analisar o progresso dos alunos aos cinco anos de idade, Lillard concluiu que a maioria das crianças que frequentaram a escola Montessori apresentava níveis de alfabetização, habilidades matemáticas, funções executivas e habilidades sociais maiores em comparação com as que frequentaram locais com outros métodos. E, com 12 anos de idade, elas demonstraram melhor capacidade de contar histórias. Por mais positivos que sejam estes resultados, é importante observar que eles se basearam em uma amostra de alunos relativamente pequena. Chloe Marshall, do Instituto de Educação da Universidade College London, no Reino Unido, afirma que os resultados de Lillard fornecem o teste mais rigoroso já aplicado, "mas esta é apenas uma evidência e, na ciência, é necessário replicá-la". Ao analisar a literatura sobre psicologia e educação de forma mais geral, Marshall suspeita que o método realmente traga benefícios, sem nenhuma desvantagem. Existem, por exemplo, evidências recentes de que oferecer às crianças tempo não estruturado, no qual elas podem desempenhar suas próprias atividades sem muita interferência dos adultos, realmente gera maior independência e autodirecionamento. Esta abordagem é central para o método Montessori. Existem também evidências de que as crianças em salas de aula que usam apenas materiais de aprendizado Montessori oficiais apresentam melhor desempenho do que em salas de aula com outros tipos de objetos educacionais, o que indica que o projeto característico realmente beneficia o aprendizado. A neurocientista Solange Denervaud, do Centro Hospitalar Universitário de Vaud, na Suíça, e ex-professora que seguia o método Montessori, tem a mesma impressão positiva. Em um estudo recente, ela concluiu que crianças que frequentam escolas Montessori tendem a apresentar maior criatividade, o que parece estar ligado a melhores resultados acadêmicos. Embora Denervaud não tenha conseguido reunir uma amostra totalmente aleatória de estudantes, ela tentou garantir a comparação de crianças com inteligência e antecedentes socioeconômicos similares, eliminando alguns dos fatores de influência. Denervaud suspeita que as vantagens sejam derivadas da experiência das crianças ao assumirem a coordenação das suas atividades de aprendizado desde cedo, da maior oportunidade de encontrar soluções próprias para os problemas e do aprendizado a partir dos erros. Todos esses processos devem incentivar o pensamento mais flexível. "É um espaço seguro para tentativa e erro", segundo ela. O sucesso dos alunos Montessori pode refletir todos esses benefícios? Marshall afirma que é algo a ser visto com reservas, já que ainda não temos evidências convincentes sobre os benefícios de longo prazo. Já Denervaud é mais positiva: considerando seus resultados, ela acredita que a educação Montessori pode ajudar as pessoas a ter sucesso em setores mais criativos. "Quando estamos na escola, construimos a arquitetura da mente", afirma ela. Por isso, faria sentido que as pessoas que aprenderam a ser automotivadas, flexíveis e cooperativas com pouca idade tenham vantagens ao longo da vida, aponta Denervaud. Sejam quais forem os verdadeiros benefícios do método, existe certamente algo de atraente sobre a ideia central — e seus proponentes tiveram enorme sucesso na difusão da sua mensagem de uma infância liberada e autodirecionada, livre da tirania da educação convencional. Maria Montessori foi incansável na promoção do seu método e seus sucessores continuam a dinfundir as ideias dela pelo mundo. "[Montessori] tornou-se uma ‘marca’ não por acidente", explica Gianfranco Marrone, professor de semiótica — o estudo dos sinais e dos símbolos — da Universidade de Palermo, na Itália. Ele indica o crescimento das marcas e do marketing desde os anos 1980. O nome Montessori, segundo ele, é agora associado à educação de alta qualidade e até à uma filosofia de vida, o que vem atraindo muitos pais. Mas, ironicamente, muitas escolas hoje até adotam o nome de Maria Montessori, mas empregam os métodos dela apenas de forma parcial. Isso ocorre porque o nome não é uma marca registrada. Embora existam instituições Montessori oficiais em diversos países que oferecem treinamento e certificação de professores, isso não é necessário para que as escolas adotem a denominação na hora de fazer publicidade. "É cada vez mais difícil encontrar educação autenticamente Montessori", afirma L’Ecuyer. Ela teme que algumas escolas possam estar simplesmente seguindo uma tendência, sem realmente adotar os princípios de autonomia das crianças ou de duração das sessões de aprendizado. Estes fatores podem ter grande influência sobre os resultados. A falta de consistência na aplicação do método pode explicar por que existem variações nas avaliações dos benefícios do método Montessori, incluindo casos em que não foram observadas vantagens sobre outros sistemas educacionais. Marshall é mais otimista sobre essas mudanças. Ela concorda que as diferentes abordagens, às vezes, podem desvirtuar as avaliações do método Montessori, mas também reconhece que o movimento talvez precise adaptar-se às mudanças sociais e tecnológicas. Os aparelhos eletrônicos e seus muitos usos na educação são um exemplo. "Não é um assunto sobre o qual ela poderia ter escrito", defende Marshall. Mais de 100 anos depois que Maria Montessori abriu sua primeira escola, os educadores ainda discutem suas teorias, que continuam a inspirar pesquisas sérias. Este fato, por si só, já é um testemunho da importância do trabalho da educadora italiana. E, considerando a motivação trazida pelos recentes resultados, essas discussões provavelmente prosseguirão por mais um século. ** Alessia Franco é escritora e jornalista especializada em história, cultura, sociedade, narração de histórias e seus efeitos sobre as pessoas. Sua conta no Twitter é @amasognacredi. Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyxqljnk0djo
2023-02-19
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cyxqljnk0djo
sociedade
O ideal do 'parto perfeito' que pode ser prejudicial às mulheres
Atenção: esta reportagem inclui detalhes de partos traumáticos que podem ser sensíveis para alguns leitores. Quando Emma Carr ficou grávida em 2021, ela teve uma visão do seu parto ideal. Basicamente, ela queria sentir-se empoderada, ser ouvida e estar no controle. Mas, como ocorre com muitas mulheres, a visão de Carr ia muito além. Especificamente, ela esperava ter um “parto natural” – geralmente descrito como o parto normal com o mínimo possível de intervenções médicas e de produtos farmacêuticos para aliviar as dores. Fim do Matérias recomendadas Ela seguiu dois caminhos. Um deles foi a popular abordagem da “hipnose no parto”. O hypnobirthing, como é chamado em inglês, ensina práticas de relaxamento e respiração para ajudar a reduzir as dores e fazer com que a mãe permaneça consciente durante o parto. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast E, seguindo as recomendações dos seus instrutores, Carr assistiu a vídeos de partos saudáveis, felizes e sem traumas, para mantê-la otimista. “Você assiste a todos esses vídeos de bebês nascendo e é tão bonito”, afirma Carr, que tem 36 anos de idade e mora em Londres. “Eles nascem com muita facilidade, as mulheres os abraçam e você diz ‘isso é o que vai acontecer comigo’.” Mas, quando a bolsa de Carr se rompeu, o fluido continha mecônio – as fezes do feto, que podem ser perigosas tanto para a mãe, quanto para a criança. Ela correu para o hospital e os médicos disseram que ela precisava retirar o bebê imediatamente. E, duas horas depois, ela estava deitada sob as luzes brilhantes da sala de cirurgia. Longe do seu ideal – o parto normal livre de intervenções –, seu bebê nasceu de cesariana. E o pior, segundo Carr, foi como ela se sentiu despreparada para este desfecho, de tão concentrada que estava – depois de todo o incentivo recebido nos cursos que ela fez – na criação de uma mentalidade positiva. “Se eu não tivesse na minha cabeça como ‘deveria’ ter acontecido, não teria sentido que foi um fracasso”, ela conta. “Eu só gostaria que [meus instrutores] fossem um pouco mais abertos sobre como acontecem esses partos. Que nem sempre funciona, só porque você fez hipnose no parto.” Carr conta que, durante a gravidez, suas amigas tentaram avisá-la que ela poderia não ter o parto que esperava. Mas ela as ignorou, pensando que provavelmente elas não fizeram o mesmo treinamento que ela. “As pessoas que você normalmente ouve, você deixa de escutá-las, porque você tem essas outras pessoas na sua cabeça dizendo que o seu parto deve ser natural e mágico, que o seu corpo foi projetado perfeitamente para isso”, afirma ela. “Mas não acho que o meu tenha sido.” Muitas mulheres realmente se beneficiam desta abordagem sobre o parto. Algumas chegam a vivenciar o cenário ideal que elas esperavam. Com as técnicas corretas – como respiração, afirmações ou massagens –, algumas pessoas defendem que o parto pode ser agradável e até orgásmico. Mas outras mulheres, como Carr, ficam em estado de choque e não só devido ao parto traumático. Elas se sentem como se tivessem se fixado naquela visão, sem se prepararem para as muitas razões que podem impedir aquilo de acontecer. E, por isso, sua experiência foi ainda pior. Em grande parte da história humana, as mulheres morriam no parto com frequência – até uma a cada 100 partos nos séculos 17 e 18. Até que avanços científicos, incluindo os antibióticos, fizeram despencar a mortalidade materna. À medida que a comunidade médica expandia sua atenção para além da segurança, técnicas de redução das dores com narcóticos, como a epidural, tornaram-se comuns em muitos países. Ainda hoje, a mortalidade materna é mais alta em países onde pode não haver assistência médica adequada para cuidar das mesmas complicações que são tratadas mais facilmente em outras partes do mundo. Muitas pessoas, ao darem à luz, preferem o controle moderno das dores como a opção mais adequada para elas, o que também é recomendado por muitos médicos. Mas outras mulheres e profissionais de saúde acreditam que o processo de parto avançou demais nesta direção. Eles afirmam que a dependência excessiva das intervenções médicas pode ser desnecessária, perigosa e até desumanizadora. Nos anos 1960, por exemplo, mulheres de países ricos muitas vezes davam à luz sedadas com anestesia geral. Elas podem não ter sentido dores, mas também não conseguiam ficar conscientes para tomar as decisões momentâneas relativas à sua assistência. Hoje em dia, muitas mulheres lutam pelo que, muitas vezes, é considerado o “parto positivo” – e até o idealizam. Expressão cunhada pela ativista britânica e fundadora do Movimento do Parto Positivo, Milli Hill, “parto positivo” não se destinava originalmente a descrever nenhum tipo específico de trabalho de parto. O significado da expressão se expandiu. “O parto positivo não precisa ser ‘natural’, nem ‘livre de medicação’ – ele simplesmente precisa ser informado do ponto de vista da positividade e não do medo”, segundo o website do movimento. Ou seja, “você pode ter seu bebê com positividade no hospital ou em casa, com ou sem intervenção médica”. O website destaca que o parto positivo, na verdade, é um a experiência na qual a mulher sente que tem “liberdade de escolha, acesso a informações precisas e que ela está no controle, poderosa e respeitada”. É também um parto que ela “irá apreciar e dele se lembrará mais tarde com carinho e orgulho”. Ainda assim, muitas mulheres que fazem os cursos de parto positivo afirmam que sentem uma tendência subjacente a idealizar especificamente os partos “naturais”. Para alguns instrutores, uma parte importante da ênfase sobre como o parto pode ser “positivo” é acompanhada de palestras sobre como o corpo da mulher é “projetado” para dar à luz – e as entrelinhas podem dizer que as intervenções médicas impedem este processo, em vez de assisti-lo. Um fundamento importante de muitas dessas abordagens, por exemplo, é que o medo e a ansiedade aumentam a produção de hormônios como a adrenalina, que pode retardar o parto e piorar as contrações. Com técnicas que incluem fazer com que o local do parto pareça acolhedor e confortável; apoio de um parceiro (ou equipe) de parto; uso de técnicas de respiração ou meditação; e, acima de tudo, entrar em trabalho de parto sentindo-se relaxada e confiante, a ideia é que você pode incentivar a produção de oxitocina, que acelera o trabalho de parto e reduz as dores. A popularização do parto “natural” tem um longo histórico, que se inicia pelo menos nos anos 1930 – curiosamente, mais ou menos na mesma época em que foi fundado o primeiro colégio de ginecologistas e obstetras. Para muitas mulheres, abordagens como estas nunca tiveram muita importância. Se você quiser dar à luz com o mínimo de dores possível, por que simplesmente não usar todas as modernas intervenções de saúde e medicações disponíveis? Mas, para outras, esta imagem do parto “natural” ideal prevaleceu, amplificada por uma indústria crescente de educação para o parto. Nas redes sociais, são frequentes as belas histórias de partos relaxados na água, com música de cura e velas por toda parte. Existem muitos benefícios desses movimentos de parto, incluindo a intenção de devolver a tomada de decisões para as pessoas que irão dar à luz. Mas, com os ideais culturais de “positivo” e “natural” ficando cada vez mais comuns, existe um lado negativo para algumas mulheres. Nenhuma aula ou técnica de relaxamento pode superar a realidade de que cada parto tem suas circunstâncias diferentes; que existem imensas disparidades raciais e étnicas na qualidade da assistência; que a assistência à maternidade, de forma geral, pode estar abaixo dos padrões; e que as mulheres, às vezes, sentem-se pressionadas para aceitar as intervenções. Mesmo os objetivos mais simples de se sentir empoderada ou ter memórias agradáveis do trabalho de parto podem parecer fora do alcance. É preciso também observar que o tempo e o investimento financeiro necessários para alguns desses cursos fazem com que eles sejam inacessíveis para muitas pessoas. Eles podem custar menos de US$ 50 (cerca de R$ 255) ou até mais de US$ 1 mil (cerca de R$ 5,1 mil) para orientações particulares e normalmente exigem várias horas de instrução, no mínimo. Os proponentes desta abordagem afirmam que os profissionais médicos precisam se prontificar a resolver esses problemas, sem que as mães precisem reduzir suas expectativas. Mas, enquanto isso não acontece, para as mulheres que têm partos que não saem conforme o esperado, ter em mente uma visão do parto altamente específica – e, muitas vezes, idealizada – pode impor pressão desnecessária sobre o que, afinal, é uma experiência imprevisível. E, no pior dos casos, elas podem sentir que elas ou até que seus bebês fracassaram. O parto “natural”, no qual tudo se desenvolve perfeitamente e sem necessidade de intervenção, permanece longe de ser a norma geral. Em 2020, por exemplo, dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos demonstraram que cerca de um terço de todos os partos naquele país incluíram um tipo de indução do trabalho de parto – e um terço deles ocorreu por cesariana. Já os partos em casa, muitas vezes considerados o trabalho de parto “natural” por excelência, representaram apenas 1% do total. Mas, para muitas pessoas que enfatizam o parto natural como objetivo da sua abordagem “positiva”, os seus partos nem sempre saem de acordo com o plano, o que pode ter efeito cascata. Algumas mães afirmam que, por terem se concentrado apenas no seu parto ideal, foram pegas de surpresa pela realidade – e seu luto foi maior quando não tiveram a experiência do parto perfeito que queriam. Em um estudo, 15% das mulheres que tiveram cesariana não programada declararam que se sentiam como se tivessem “fracassado”. Em Toronto, no Canadá, Andie Perris, com 38 anos de idade, queria “a experiência mais natural possível” quando estava grávida do seu primeiro filho. Ela fez um curso de hipnose no parto, ouviu áudios de relaxamento e leu o livro On Childbirth (“Sobre o nascimento de crianças”, em tradução livre), da parteira norte-americana Ina May Gaskin, “repleto de histórias de partos serenos de mulheres tendo seus filhos respirando tranquilamente, com seu corpo assumindo o controle”, afirma Perris. “Eu havia visto e ouvido essas belas histórias de partos e era o que eu esperava para mim, já que eu tinha feito todo o trabalho”, ela conta. “Eu realmente acreditava que mudaria o desfecho do meu parto.” Mas Perris ficou em trabalho de parto por quase 24 horas. Seu assoalho pélvico estava “completamente destruído”. A criança não conseguia descer corretamente e acabou nascendo por aspiração. A mãe teve hemorragia pós-parto. Analisando o que aconteceu, ela conta que provavelmente deveria ter feito uma cesariana, mas foi contra. “Eu sentia que só havia uma forma ‘certa’ de ter meu bebê, o que me deixou totalmente concentrada naquela forma certa”, afirma Perris. “E, é claro, não existe apenas uma forma certa. Mas eu estava muito envolvida nessa visão de como a natureza ‘pretendia’ que você tivesse um bebê.” Como ela estava muito concentrada em manter uma mentalidade positiva durante o seu trabalho de parto, Perris conta que não se preparou para a possibilidade de que tudo saísse diferente. Por isso, “quando as coisas começaram a dar errado, adaptar-me foi muito difícil para mim”. Para seu segundo filho, ela tentou ouvir os mesmos áudios de relaxamento, como costumava fazer na preparação para o primeiro. Mas eles aumentaram tanto a sua ansiedade que ela teve que parar. A doula britânica Emiliana Hall é fundadora do grupo The Mindful Birth, que ajuda as mulheres a preparar-se para o parto. Hall afirma que sua abordagem evita a idealização de qualquer forma de parto e prefere cobrir todos os desfechos possíveis. Ela conta que agora está vendo uma onda de mulheres que estão sendo mães pela segunda vez e dizem que, depois de uma abordagem de parto “positivo”, sua primeira experiência não saiu como elas haviam planejado. O problema, segundo Hall, não é apenas que elas tiveram uma experiência negativa, mas sim que elas se culpam por isso. E este pode ser o risco de uma abordagem tão concentrada na mentalidade, segundo ela. Muitos cursos recomendam ouvir apenas histórias de parto positivas ou até substituir palavras negativas como “contrações” por “ondas”, para afastar o medo e a ansiedade e, com eles, os hormônios do estresse e, teoricamente, as dores. Por isso, se uma mulher realmente acabar sentindo dores ou trauma, ela poderá se perguntar se foi porque ela não estava suficientemente relaxada. “Quando isso não funciona, elas se sentem como se tivessem fracassado ou como se tivesse sido uma completa perda de tempo”, afirma Hall. “Mas existem tantas coisas que você não pode controlar.” Hall afirma que toma muito cuidado nos seus cursos para até mesmo usar a expressão “parto positivo”. Apesar de ensinar técnicas que facilitam o parto, ela tem total consciência de que não há garantia de que tudo sairá conforme o planejado. É claro que muitas mães acharam as abordagens de parto positivo úteis e até transformadoras. Em Berlim, na Alemanha, Edwina Moorhouse, com 32 anos de idade, achava que essas técnicas pareciam coisas de “hippie”. Mas, depois de assistir a uma vlogueira entusiasmada no YouTube contando sua experiência, ela deixou o ceticismo de lado. “Eu realmente queria ter aquela alegria que você vê que ela tem”, ela conta. Moorhouse fez um curso de hipnose no parto, praticou técnicas de respiração e passou por sessões semanais de acupuntura. Ela teve um parto na água rápido e fácil. Seu segundo parto foi similar. E, quando foi ter seu terceiro bebê, ela levou luminárias de sal rosa do Himalaia, grandes fones de ouvido e meias quentes para deixar o quarto do hospital mais acolhedor. Havia se convertido totalmente. “Eu não posso simplesmente ter tido sorte nas três vezes, certo? Deve haver alguma razão nisso”, segundo ela. “Pensar que, no meu terceiro filho, eu ouvia religiosamente os áudios em mp3 sobre hipnose no parto, inundava meu cérebro com histórias positivas no YouTube, gastava um mundo de dinheiro naquele xampu que tinha um aroma que oferecia alívio imediato das dores – fiquei completamente irreconhecível com relação àquela mulher que ficou grávida seis anos antes”, conta Moorhouse. De fato, existem evidências de que as técnicas ensinadas em muitos desses cursos de parto podem reduzir as dores e o uso de epidural, diminuir o número de intervenções e a própria duração do trabalho de parto, resulta em menor quantidade de cesarianas e melhora a experiência geral do parto para as mães. Mas estas descobertas nem sempre podem ser reproduzidas, pois alguns aspectos parecem ser mais úteis do que outros. Um extenso estudo demonstrou que alguns elementos populares, como a presença de um parceiro de parto treinado ou o uso de música ou massagem para relaxar, ajudou a reduzir a probabilidade de que a mulher relembre sua experiência de parto como “negativa”, mas outras técnicas foram menos úteis. Outro estudo demonstrou que a música, ioga e técnicas de relaxamento como meditações orientadas podem ajudar a reduzir as dores. Mas não houve diferença na redução das taxas de intervenções médicas, incluindo cesarianas, nem da quantidade de mulheres que acabaram precisando de alívio das dores com medicamentos. Do ponto de vista médico, é geralmente aceito que todas as intervenções têm seus próprios custos e riscos e, por isso, elas não devem ser realizadas sem necessidade – ou, no caso de intervenções para controlar as dores, sem total consentimento informado da mãe. A epidural, por exemplo, pode estar relacionada a um segundo estágio de trabalho de parto mais longo, maior possibilidade de ser necessário o parto instrumental e, em casos raros, febre ou lesões dos nervos. Mas as mulheres que seguem abordagens de parto “positivo” afirmam que a mensagem subjacente, às vezes, pode ir além, fazendo com que as pessoas sintam que qualquer intervenção é “ruim”. “A mensagem é que você foi feita para isso, que é natural, que as mulheres vêm fazendo isso desde o início dos tempos, que o seu corpo sabe o que está fazendo e que o seu bebê sabe o que está fazendo”, segundo a blogueira de estilo de vida Beth Sandland, fundadora da revista digital The Motherhood Edit. “Eu não diria que isso incentiva o medo. Mas eu diria que existe certamente uma mensagem subjacente de que ‘os hospitais não trabalham necessariamente no seu melhor interesse. Os médicos não têm necessariamente uma abordagem realista do parto fisiológico’” em alguns dos cursos e contas de redes sociais que Sandland, com 26 anos de idade, tem observado. Mas as intervenções isoladamente não são necessariamente o fator decisivo para que uma experiência seja considerada “positiva”. Na verdade, pesquisas concluíram que um dos aspectos mais importantes que definem se o parto foi positivo para uma mulher é o tempo que levou o trabalho de parto. As mães que tiveram trabalho de parto mais curto ficaram mais satisfeitas, mesmo quando o tempo foi reduzido por uma intervenção como o aumento da oxitocina, por exemplo. E, considerando o efeito do trabalho de parto prolongado, os pesquisadores concluíram que “as intervenções para evitar isso podem resultar em ‘benefício líquido’.” É claro que as intervenções também podem salvar a vida de muitas mulheres. “A forma de apresentação é que você não precisa fazer o que eles dizem. E os médicos estão ali meio que para prejudicar você, de certa forma”, afirma Carr. “Eles dizem, ‘oh, não é perigoso. É natural.’ Isso pode ser verdade, mas nem sempre.” “Acho que, para mim, havia risco”, prossegue ela. “Se eu não tivesse recebido intervenção médica, um de nós poderia não ter sobrevivido... não acho que, no meio natural, eu teria tido aquele bebê com facilidade.” Uma grande parte do movimento do parto positivo envolve o empoderamento. De fato, sentir-se no controle e envolvida na tomada de decisões é uma grande parte da experiência positiva. E, mesmo se houver complicações durante o parto, algumas mulheres ainda encontram técnicas úteis para ajudá-las a manter-se no controle. Em Glasgow, no Reino Unido, Anna Murray, com 34 anos de idade, fez toda a preparação possível para o parto. “Estudei como se fosse para um exame”, ela conta. Murray fez um curso particular com uma doula, leu livros e fez um curso de hipnose no parto com ioga. Ela chegou a ter uma pasta no Google Drive com todos os seus áudios e vídeos de ioga para diferentes posições de parto. Por fim, Murray precisou de uma cesariana não programada. Seu bebê havia crescido demais e estava em posição fixa, de forma que nenhum exercício poderia virá-lo. Mas ela conta que as técnicas de respiração a ajudaram a ficar calma na mesa de cirurgia. “Controlar a calma durante o parto pode ajudar, independente do que você tenha”, afirma Murray. “Mas, no final, não é possível ter mais controle sobre o que está acontecendo.” O parto de Murray é um exemplo da natureza diversa de como as mães vivenciam atualmente o ideal do parto positivo. Para algumas, ele se desenvolve exatamente como elas sonharam e fornece as técnicas para ajudar no processo. Para outras, é um desapontamento arrasador. E, para ainda outras, como Murray, as técnicas podem fornecer ferramentas úteis para que elas consigam o melhor possível em situações difíceis. Por fim, para muitas mulheres, o aspecto mais importante de ter um parto positivo resume-se em uma palavra: autonomia. Não significa apenas sentir-se empoderada, seja na enfermaria ou no parto em casa. Significa não se sentir pressionada a ter o parto de nenhuma forma específica. E, culturalmente, significa reconhecer que a fisiologia, as condições médicas e o processo de parto de cada mulher terão aparências diferentes, cuidando para não idolatrar nenhuma experiência específica como se fosse o máximo dos ideais, seja com o uso de anestesia ou em uma banheira à luz de velas.
2023-02-18
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c510djjg8y2o
sociedade
Pastor morre ao tentar imitar 40 dias de jejum de Jesus
Um pastor em Moçambique morreu após tentar jejuar por 40 dias, emulando um episódio semelhante descrito na Bíblia e atribuído a Jesus Cristo. Francisco Barajah, fundador da Igreja Evangélica de Santa Trindade, faleceu aos 39 anos num hospital da cidade da Beira, para onde foi levado em estado crítico. Após 25 dias sem comida e sem água, segundo pessoas próximas a ele, o homem havia perdido peso a ponto de não conseguir se levantar. Foi levado ao hospital por insistência de familiares e de fiéis de sua igreja. Barajah foi diagnosticado com anemia aguda e insuficiência dos órgãos digestivos. Fim do Matérias recomendadas Os profissionais da saúde o reidrataram com soro e tentaram alimentá-lo com líquidos, mas não conseguiram reverter o quadro. O pastor faleceu na quarta-feira (15/2). Ele também era professor de francês na cidade de Messica, na província de Manica, na fronteira de Moçambique com o Zimbábue. Membros da Igreja de Santa Trindade relataram que era comum o pastor e seus fiéis jejuarem, mas não por tanto tempo. Seu irmão, Marques Manuel Barajah, confirma que o pastor jejuou, mas contesta o diagnóstico de óbito dado pelos médicos. "A verdade é que meu irmão sofria de pressão baixa", disse ele. Este não é o primeiro caso em que alguém morre ao tentar reproduzir o jejum de 40 dias de Cristo no deserto descrito no Evangelho de Mateus. Em 2015, um homem do Zimbábue faleceu após 30 dias sem comer, conforme informou a mídia local na época. Em 2006, um legista britânico descobriu que uma mulher morreu no meio de um jejum semelhante em Londres.
2023-02-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/c14nn9xeq40o
sociedade
Sempre quis ser 'dono de casa': os pais que preferem cuidar dos filhos a trabalhar fora
Pergunte a Steven Lange o que ele faz, e ele te dirá que está envolvido com start-ups. Ou que trabalha de casa. Talvez que esteja semiaposentado — embora possa voltar a trabalhar em tempo integral assim que seu filho mais novo terminar o ensino médio no ano que vem. O que é menos provável que ele te diga é o que está, na verdade, mais próximo da realidade. "Sou um pai dono de casa", afirma. Lange, de 52 anos, mora em Ohio, nos Estados Unidos. Ele trabalhou com branding e desenvolvimento de produtos por 30 anos. Em 2020, decidiu ficar em casa para cuidar dos filhos. "Mas acho que nunca diria isso a ninguém ou me apresentaria dessa maneira", acrescenta. Fim do Matérias recomendadas "Sinto a necessidade de explicar a você que não estou apenas dobrando roupas, preparando o jantar e fazendo compras de supermercado. Tenho outras coisas para fazer." Essa autocrítica persiste apesar de Lange saber o quão benéfica foi esta decisão: ele estabeleceu um relacionamento mais próximo com o filho adolescente; está por perto para ajudar com o novo neto; e o arranjo permitiu que sua esposa fizesse um mestrado. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Pais que ficam em casa como Lange estão se tornando mais comuns. Nos Estados Unidos, por exemplo, o número quase dobrou de 1989 a 2012. Mas eles ainda são relativamente incomuns. Das famílias americanas com pais casados ​​com o sexo oposto, 5,6% possuem mães que trabalham fora e pais que não, em comparação com 28,6% com pais que trabalham fora, e mães que não. Vale a pena observar que essas estatísticas incluem pessoas que estão desempregadas, mas podem estar procurando emprego, então não é uma estimativa perfeita. Na União Europeia, é ainda mais raro: cerca de um em cada 100 homens interrompe sua carreira por pelo menos seis meses para cuidar dos filhos, em comparação com uma em cada três mulheres. Essa relativa raridade significa que os homens que fazem essa escolha podem se sentir um estranho no ninho— e, às vezes, ser duramente julgados. Mesmo em culturas em que se espera que os pais se envolvam mais do que no passado, ainda existe a expectativa de que sejam os provedores da família — e são frequentemente estereotipados como menos afetuosos ou menos aptos para as tarefas domésticas do que as mães. Tudo isso significa que, para pais como Lange, ficar em casa cuidando das crianças pode parecer estranho e gerar um certo ostracismo — mesmo que eles estejam satisfeitos com a escolha. Em países como os EUA e a Austrália, espera-se que o pai ideal esteja mais envolvido no dia a dia dos filhos do que no passado, afirma Brendan Churchill, professor de sociologia na Universidade de Melbourne, na Austrália, que estuda paternidade. Mesmo assim, "o modelo de chefe de família perdura. É reforçado diariamente em nossa cultura. Pense nas propagandas na televisão ou no jornal que reforçam o núcleo familiar de quatro pessoas", diz ele. "Também persiste em nossas estruturas de política social, embora tenha havido muitas mudanças — nosso ponto de referência ainda é aquela família de quatro pessoas com um homem como provedor." A licença-maternidade, por exemplo, continua sendo muito mais generosa na maioria dos países do que a licença-paternidade. Essa crença cultural de que os homens devem "proteger e prover" pode plantar uma narrativa insidiosa na cabeça dos pais que são donos de casa, mesmo daqueles que sentem que estão mais aptos a contribuir com suas famílias no papel de cuidador principal. "No ensino médio, nunca me imaginei indo para a faculdade e tendo uma carreira chique. Sempre fiquei muito animado em ser pai", conta Spencer Bouwhuis, de 25 anos, que mora em Utah, nos EUA. "Sempre sonhei em ser um pai dono de casa." Mas ao crescer, ele nunca se sentiu confortável em compartilhar isso com ninguém. O modelo tradicional no qual ele foi criado em sua comunidade – ele é membro da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias – normalmente enfatizava que os pais deveriam sustentar suas famílias, enquanto as mães deveriam cuidar da casa. Quando perguntavam a ele o que queria ser quando crescer, ele dizia que não tinha certeza. "Simplesmente não achava que haveria uma reação positiva" se dissesse a verdade, afirma. Bouwhuis trabalha sazonalmente, construindo deques. Em 2021, com a chegada do inverno, ele e a esposa decidiram que ele ficaria em casa por alguns meses para cuidar dos filhos de seis meses e dois anos. Apesar de enfrentar os mesmos desafios de qualquer pai dono de casa — ele se lembra particularmente do "burnout" inicial ao tentar manter em dia as refeições caseiras, a casa limpa, as roupas lavadas e as crianças cuidadas –, ele conta que "amou" a experiência. Embora esteja de volta ao mercado de trabalho remunerado, Bouwhuis ainda é o cuidador principal dos filhos pelo menos um ou dois dias por semana. Para sua família, essa divisão de trabalho faz sentido. Ele afirma que a esposa tende a ter "mais vontade de trabalhar fora". Mesmo assim, ele às vezes se vê lutando contra as mensagens que cresceu ouvindo. "Sinto que deveria ser o provedor e deveria trabalhar fora [em tempo integral]." Em Chicago, Eric Taylor, de 43 anos, fica em casa para cuidar da filha de dois anos. Como estudante de doutorado em psicologia clínica, ele tem um esquema flexível de trabalho remoto, enquanto sua mulher trabalha fora em dois empregos. Apesar de sua abordagem equitativa de gênero e paternidade — um dos principais objetivos de sua carreira é empoderar os pais a se sentirem tão envolvidos e valorizados quanto as mães —, ele também se questiona sobre seu papel. "Sinto que, às vezes, estou sendo observado, como quando estou lavando a louça, por algum tipo de grupo hierárquico de supervisão masculina em algum lugar que está me observando, me regulando e dizendo: 'Por que você lava tanto a louça?'", diz ele. Embora Taylor contribua financeiramente para o orçamento da família, às vezes ele se sente culpado por não ser o principal provedor. "Luto com a sensação de 'não estou sustentando minha família'", afirma. "Luto internamente com: 'Você é aquele cara que só fica em casa, aquele cara que é sustentado pela mulher enquanto ela trabalha fora e coloca comida na mesa?'" E se ele não estivesse ganhando nenhuma renda, e ele e a esposa decidissem que sua principal contribuição para a família seria cuidar da filha? Taylor não hesita. "Eu não conseguiria lidar com isso. Não", responde. A voz interior contra a qual alguns pais donos de casa lutam é um desafio. Mas há também as críticas que vêm do mundo exterior. Não há evidências concretas de que os homens estejam menos preparados para o papel de cuidador do que as mulheres. E pesquisas recentes mostram que os pais, assim como as mães, se deparam com mudanças transformadoras em seus hormônios e redes neurais quando ingressam na maternidade/paternidade —mudanças que parecem ajudá-los a se tornarem mais afetuosos e empáticos. "As mulheres não são mais mães naturais do que os homens são pais naturais —isso envolve uma curva de aprendizado, mas o que faz parecer 'natural' é que se espera que as mulheres façam isso", diz Churchill. Ainda assim, alguns homens e mulheres continuam a acreditar que os pais não devem ser cuidadores em tempo integral. Em Malta, Manrico Bugeja, de 36 anos, deixou o emprego de professor de francês há seis anos para ficar em casa cuidando dos filhos, hoje com quatro e seis anos. Ele e a mulher queriam que os filhos ficassem com um dos pais, em vez de ir para a creche — e sua esposa, que é contadora, ganhava o salário mais alto. A decisão parecia simples. Mas não para todo mundo. Ele ouvia as pessoas insinuando que ele seria preguiçoso, dizendo coisas como: "Não sei como os homens fazem isso, deixar suas esposas trabalharem". Outros tipos de estereótipos, embora aparentemente mais inofensivos, podem ser ainda mais perniciosos. Um exemplo com o qual muitos pais se identificam é ser questionado por estranhos ou conhecidos se eles estão de "babá" dos filhos, quando estão no parquinho ou no supermercado, por exemplo. "Se você está tentando me deixar chateado, uma das maneiras de fazer isso é me perguntar se estou olhando meu filho", diz Taylor. "Porque não, estou cuidando dos meus filhos. Estou fazendo o que devo fazer." Em Montana, nos EUA, Kyle Rasmussen, de 38 anos, cuida das duas filhas em tempo integral. Ele se lembra de quando preparou muffins para uma delas levar para a escola como lanche. "Uma das mães me elogiou muito por eu ter sido capaz de fazer muffins", diz ele. "Acho que sou um pouco capaz, né." O estereótipo do homem como pai "em tempo parcial" (e menos qualificado) também vem à tona de outras maneiras. Em Londres, Paddy Cameron, de 39, deixou seu emprego de barman para ficar em casa cuidando das filhas de três anos e um ano e meio. Mesmo seis meses depois, quando ele se esquece de, digamos, levar um casaco quente o suficiente para uma das meninas no parquinho, ele não se sente mal apenas por ter esquecido. Ele se sente como se estivesse sendo julgado. "Eu penso: 'Estão olhando para mim porque sou o pai, e o pai não entende dessas coisas direito'", diz ele. "O que é considerado normal é que o pai não está fazendo o trabalho certo, ou que ele normalmente não é o cuidador principal, então ele faz uma certa confusão. Por isso, quando você se confunde, você sente como: 'Todo mundo está olhando para mim porque eu sou o pai'." Ambas as atitudes — e a ideia de que os homens não devem ser pais donos de casa — em geral são comuns, segundo Churchill. "Os próprios pais nem sempre se sentem preparados para ser pais em tempo integral — não porque não queiram, mas porque não sentem que têm o conhecimento ou as habilidades para fazer isso, ou [porque sentem] que a mãe é naturalmente mais adequada para fazer isso", diz ele. Uma percepção baseada em "ideias arraigadas sobre gênero e cuidado". Mas essas crenças podem ser tóxicas. "A ideia do homem como provedor, e igualmente das mulheres como cuidadoras 'naturais' ou 'maternais', prejudica homens e pais, porque os impede de se engajar ou se envolver", afirma Churchill. "Isso age como um roteiro social, que molda os comportamentos deles, os colocando meio em que uma posição de recuo." Se os pais são menos propensos a assar muffins, em outras palavras, é porque, como sociedade, não esperamos que eles façam isso. Esses estereótipos — junto à relativa raridade de cuidadores principais do sexo masculino — podem tonar o papel do pai dono de casa não apenas difícil, como também solitário. Em Malta, Bugeja não conhece nenhum outro pai que fica em casa. Ele tenta ser sociável com as mães que encontra, mas após seis anos como pai em tempo integral, ele não pode dizer que fez amigos de verdade. Às vezes, ele até se sente rejeitado por ser pai. Certa vez, um grupo de pais e filhos mudou o dia da reunião para o único dia da semana em que ele não poderia participar — ele suspeita que para deixá-lo de lado. Em outra ocasião, uma mãe perguntou se ele gostaria de tomar um café com ela e outra mãe. A segunda mãe pareceu não gostar da ideia. "Vi a expressão facial dela mudar e nunca recebi o convite", diz ele. Para Taylor, enquanto isso, levar sua filha para brincar é sinônimo de se manter em guarda. Assim como outros pais donos de casa, ele se destaca. Não só porque ele é homem, e não mãe — mas também porque é negro. Mesmo tendo o cuidado, por exemplo, de não cumprimentar crianças que não conhece e de deixar claro que está ali com a própria filha, ele diz que demorou para que os pais que ele encontra com frequência em lugares como o parquinho local o aceitassem. "Demorou um pouco até que eles me cumprimentassem e percebessem que tudo bem, ele está aqui com a filha, não apenas andando pelo parque aleatoriamente", afirma. Alguns pais tentam explorar redes de pais, seja em seus círculos de amizade ou online. Mas os resultados variam. "Tem sido tão difícil encontrar pais para se conectar. Eu simplesmente sou um entusiasta da paternidade — não sei se outros pais estão nessa onda. Ou se são tipo: 'Ah, cara, relaxa'", diz Bouwhuis, que estudou casamento e terapia familiar na universidade. "Ainda não tenho amigos pais." Quando ele entrou para grupos de pais online, no entanto, ficou desapontado ao ver que eram principalmente mães. E quando encontrou uma comunidade de pais, eles estavam apenas compartilhando memes, diz ele. "Não é a conexão que eu estava procurando." Em Londres, Cameron e a mulher fizeram um curso de pré-natal com vários outros casais. Após o término do curso, o grupo de bate-papo das mamães permaneceu ativo. Mas o grupo de pais não. Ele conta que manteve contato com um dos pais, sobretudo por causa de algo não relacionado à paternidade: eles torcem pelo mesmo time de futebol. "Usávamos o futebol quase como nossa desculpa", diz ele. Eles saíam para tomar cerveja e assistir a jogos. Ao longo do caminho, começaram a conversar sobre os filhos ou sobre como era difícil criá-los. "Embora digamos que é futebol, talvez não seja apenas futebol", avalia. Apesar dos desafios, muitos pais donos de casa dizem que não gostariam de trocar de papel. "Consigo ver minha bebê todos os dias, quanto eu quiser", diz Taylor. "Eu pude vê-la dar seus primeiros passos. Pude vê-la falar suas primeiras palavras... Só sei que se eu estivesse trabalhando todos os dias, ou até mesmo trabalhando mais todos os dias do que estou agora, eu não seria capaz. Não teria tido essas oportunidades." Há também sinais de que os pais que são donos de casa podem estar se tornando mais aceitos. Bugeja chama a atenção para a troca de fraldas. Quando começou a ficar em casa com os filhos, há seis anos, ele conta que quase sempre só havia trocador no banheiro feminino. "Houve momentos em que eu simplesmente tive que ir embora", diz ele. Agora, ele às vezes vê espaços de gênero neutro para trocar fraldas. Também é provável que quanto mais as famílias dividirem as responsabilidades de acordo com o que funciona melhor para elas, e não de acordo com os papéis de gênero, mais as gerações futuras vão fazer o mesmo. As pesquisas mostram, por exemplo, que o principal fator decisivo no que se refere a que gênero realiza mais tarefas domésticas em uma família, é como isso era feito nas casas em que o casal cresceu. Assim como muitos outros pais donos de casa, Rasmussen espera que sua decisão sirva como um modelo positivo para as filhas. "Espero que elas possam encontrar o que melhor se adapte às suas personalidades para suas vidas, em vez de sentir que precisam se conformar a alguma questão específica de gênero", diz ele. "Também espero que, à medida que cresçam, também encontrem parceiros que estejam dispostos a assumir parte da carga." Enquanto isso, romper os estereótipos em torno dos pais que são donos de casa não é bom apenas para os homens que desempenham esse papel. É algo que pode fortalecer e ser libertador para todos os pais. "Há muito mais pais que querem ser pais, que estão sendo contidos por essas ideias e estereótipos sociais. E isso não permite que eles sejam o pai que desejam ser", diz Taylor. "Apenas seja o pai que você quer ser." Mesmo que isso signifique renunciar a estereótipos para ser dono de casa e pai em tempo integral.
2023-02-16
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cpvek9dv033o
sociedade
As empresas que estão levando jovens ao burnout no início da carreira
Sarah sempre sonhou em trabalhar na indústria de moda. Com 21 anos de idade, ela decidiu se mudar para Londres e ir atrás do seu sonho, em busca da carreira que queria seguir. "Como muitos outros jovens, eu era apaixonada pela moda", ela conta. "Mas a realidade não era tão glamourosa." Depois de trabalhar por menos de um ano no varejo de moda, Sarah conseguiu um emprego de assistente de comércio eletrônico na matriz de uma marca de luxo global. Nos dois empregos, ela era rodeada por pessoas da mesma idade e com pensamento similar. Todos eles queriam ter sucesso no mundo da moda. "É como qualquer indústria criativa: os jovens sempre gostam de trabalhar nela", diz ela. "E os benefícios são bons, mesmo em vendas: nós conseguíamos produtos com grandes descontos todo o tempo." Mas Sarah acrescenta que sempre houve alta rotatividade no escritório, especialmente entre os funcionários de escalões mais baixos. Fim do Matérias recomendadas "Os funcionários jovens pediam demissão todo o tempo", segundo Sarah. "Uma estagiária de 18 anos ficou apenas uma semana, quando percebeu que o seu emprego era essencialmente trabalho manual mal remunerado, com longas horas simplesmente carregando e embalando roupas devolvidas das sessões de fotografias." "Os estagiários que ficavam meses no emprego acabavam se demitindo com burnout", ela conta. "Havia simplesmente uma rotatividade contínua de profissionais jovens impressionáveis e nada era feito sobre isso. Virou um teste para saber quem tinha mais resistência." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Sarah ficou naquele emprego por dois anos. O entusiasmo de trabalhar no setor de moda logo virou tédio e frustração. "Tarefas administrativas por longas horas e salário baixo", descreve ela. Como a gerência não oferecia uma trajetória clara de carreira, nem havia sensação de progresso, Sarah conta que seu emprego a deixou completamente esgotada e desanimada e ela se demitiu. "A gerência e os funcionários sabiam que era um local de trabalho competitivo — que o seu emprego sempre estaria em alta demanda", segundo Sarah. "Se você saísse, seria substituído por outro jovem profissional com entusiasmo e vontade de estar ali." Especialistas afirmam que existem muitas empresas que contratam especificamente recém-formados que estão tentando ir atrás das suas paixões — muitas vezes, em carreiras competitivas ou até "glamourosas". Em alguns casos, pode ser ótimo para esses profissionais, que estão procurando uma forma de entrar em um setor dos seus sonhos. Mas, às vezes, os funcionários jovens acabam ficando desmotivados em funções extenuantes com salários baixos, já que os empregadores sabem que as eventuais vagas sempre serão muito cobiçadas. Estas situações podem fazer com que os profissionais em início de carreira, que estão procurando se estabelecer, fiquem vulneráveis ao burnout ou à desilusão logo no início da vida profissional. Muitos empregos são criados com a expectativa de que jovens profissionais cresçam dentro deles. Muitas vezes, existem caminhos definidos para promoções e objetivos a serem alcançados. Às vezes, as empresas chegam a oferecer programas de formação e desenvolvimento para orientar funcionários recém-contratados a atingir cargos mais altos. Mesmo se esse caminho for duro, muitos empregadores preferem investir em profissionais que permaneçam na empresa. Mas os especialistas afirmam que outras companhias adotam uma abordagem diferente. Elas formam infraestruturas nas quais contratam funcionários jovens com pouca ou nenhuma oportunidade de ascensão e os entopem de tarefas trabalhosas. Nestas situações, as empresas muitas vezes esperam que esses jovens profissionais se demitam em algum momento, seja porque estão em um beco sem saída ou devido ao burnout gerado pelo cargo. Eles são então geralmente substituídos por outros profissionais jovens, que terão o mesmo destino. É claro que, muitas vezes, espera-se que os funcionários jovens se esforcem nos primeiros anos das suas carreiras, mostrando ambição, persistência e resiliência no ambiente de trabalho — para, de certa forma, ganharem experiência. Mas nem todo profissional jovem sem um caminho explícito rumo ao crescimento fica em uma empresa que, intencionalmente, cria rotatividade entre seus talentos iniciantes, segundo a professora Helen Hughes, da Escola de Negócios da Universidade de Leeds, no Reino Unido. Ela cita como exemplo o setor de relações públicas, em que os cargos iniciais de salário mais baixo "se enquadram na trajetória de carreira da pessoa — a expectativa é que, nos estágios iniciais, você precisa assumir cargos de nível júnior antes de poder progredir." Mas algumas empresas decidem formar o que Hughes chama de "modelo de visão curta". E existem muitas razões que levam as empresas a optar pela rotatividade de seus funcionários jovens, em vez de investir neles. Em primeiro lugar, existem as implicações financeiras. Os recém-formados começam no ponto mais baixo da escada com salários iniciais e não têm as mesmas expectativas de compensação dos funcionários com experiência. "Os empregadores, muitas vezes, contratam recém-formados para poder pagar menos", segundo Dominik Raškaj, gerente de marketing do site de empregos Posao.hr, com sede na Croácia. "É, de fato, uma fonte de mão de obra barata e subvalorizada." Além disso, os profissionais iniciantes podem ser maleáveis e dispostos a aceitar determinadas condições de trabalho. "Quanto menos experiência tiver o funcionário, mais aberto e receptivo ele será em relação ao ambiente de trabalho", afirma Hughes. "Eles não têm a influência da experiência, o que traz vantagens para o empregador — eles podem ser moldados com mais facilidade." Mas isso pode fazer com que profissionais jovens que desejam entrar em uma carreira fiquem suscetíveis a empregos mal remunerados ou ambientes de trabalho tóxicos. "Os recém-formados podem ser vulneráveis à exploração, por não terem adquirido experiência para saber o que está certo e o que não está", afirma Hughes. "Os recém-formados podem ficar com a sensação de que tudo realmente é competitivo, e ficam desesperados para aceitar um cargo desafiador que pode não oferecer as melhores condições." Nestas situações, o risco imediato é o burnout. Os profissionais podem ficar sobrecarregados pelas longas horas e imensas cargas de trabalho ou tarefas insignificantes. E, devido à sua falta de experiência, podem ser incapazes de defender seus interesses. Isso pode deixar os funcionários frustrados, no melhor dos casos, ou com alto nível de estresse, como ocorreu com Sarah. Mas muitos acham que não têm escolha a não ser permanecer, especialmente se estiverem tentando entrar em determinados setores onde o ingresso é muito difícil. E, para os profissionais jovens desesperados para se estabelecer em uma carreira competitiva, enfrentando longas horas e más condições de trabalho, os efeitos podem ser traiçoeiros. "Alguns podem decidir ficar no emprego até o burnout porque estão em início de carreira", afirma Hughes. "Mas, sem as experiências do passado para orientá-los, o risco é que eles aceitem que aquilo é o que o mercado de trabalho oferece, as más condições se tornem o normal e o profissional jovem acabe acreditando que isso é o que ele vale." Isso pode ter efeitos sérios e duradouros para esses jovens profissionais, azedando suas expectativas sobre o que significa estar no mercado de trabalho. "Você vê profissionais começando a tirar o pé do acelerador, economizando esforços e exibindo o comportamento de demissão silenciosa", afirma Jim Harter, cientista-chefe de administração e bem-estar no local de trabalho da empresa de pesquisas norte-americana Gallup. "Isso pode distorcer a visão de uma pessoa sobre o que significa uma carreira e seu relacionamento com o trabalho." "Os recém-formados podem ficar tão preocupados em conseguir um emprego que acham que qualquer coisa serve", acrescenta Hughes. Mas trabalhar muito por longos períodos com salários baixos e sem solução à vista traz consequências de longo prazo. "Você se ajusta às normas à sua volta — normas ruins — logo no início da carreira", segundo ele. A boa notícia é que o mercado de trabalho atual, favorável a trabalhadores em muitos países ou setores, pode oferecer opções aos funcionários jovens, se eles acharem que estão sendo explorados em um cargo sem perspectiva de progresso, ou que o custo do trabalo está ficando alto demais. "Também existem agora mais perguntas sendo feitas sobre os empregos dos recém-formados", afirma Hughes. "E existem mais denúncias sobre a falta de boas práticas de trabalho nas redes sociais, o que significa que a pressão por mudanças sobre as empresas que não cuidam dos seus funcionários jovens é maior." Mas, mesmo nessa era de carência de profissionais em muitos países e de avaliações e resenhas online, muitos ambientes continuarão sendo tóxicos. Isso significa que pode caber aos funcionários iniciantes reconhecer quando estão em má situação. Identificar essa situação pode ser difícil, já que os funcionários com pouca experiência de trabalho podem não conhecer os padrões em um cargo inicial, em comparação com uma etapa mais à frente. Sarah percebeu que o seu trabalho a forçava ao máximo e se demitiu. Mas, em vez de permanecer no mesmo setor de atividade, ela seguiu um caminho diferente. Agora, ela trabalha para uma agência de marketing fora do setor de moda. Sarah conta que está muito mais feliz no seu novo cargo, que oferece claras oportunidades de progresso, um trabalho desafiador e tarefas diárias variadas. "[A moda] pode ter parecido um lugar impressionante para trabalhar", afirma ela, "mas percebi que é muito mais importante ter um emprego gratificante do que um nome bonito no currículo." O sobrenome de Sarah é omitido por motivos profissionais.
2023-02-12
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64429881
sociedade
As mulheres jovens dependentes de opioides em país africano
A descoberta do corpo de uma jovem de 22 anos nas ruas de Mogadíscio, capital da Somália, no ano passado, chamou a atenção para o problema da dependência de drogas entre mulheres na cidade. Profissionais da saúde afirmam que a vítima, uma influenciadora de redes sociais, morreu em decorrência de uma overdose de opioides. De acordo com relatos de amigos, ela vinha usando drogas injetáveis há muito tempo — e estava drogada quando gravou alguns dos seus populares vídeos no TikTok. A polícia registrou um aumento do uso abusivo de substâncias em Mogadíscio e em outras partes da Somália, inclusive entre as mulheres. Eles afirmam que as pessoas estão procurando novos tipos de drogas. O costume local era mascar a folha narcótica de khat (que não é ilegal), consumir bebida alcoólica, cheirar cola e fumar haxixe. Mas cada vez mais gente vem abusando de opioides injetados diretamente na veia. Entre eles, morfina, tramadol, petidina e codeína. Fim do Matérias recomendadas No início de dezembro de 2022, a polícia apreendeu uma grande quantidade de remédios controlados, sobretudo opioides, no aeroporto internacional de Mogadíscio. Os importadores foram presos. "Comprimidos e drogas injetáveis são muito populares entre as mulheres jovens e as meninas", diz um médico de Mogadíscio, que pediu para não ser identificado por se tratar de um tema sensível. "Muitas dessas substâncias causam dependência e são facilmente encontradas à venda sem receita médica em farmácias por toda a cidade." Outra droga popular consumida pelas mulheres jovens é um tipo de fumo de mascar conhecido como "tabbuu", que pode causar câncer de boca e de garganta. Amino Abdi, de 23 anos, usa drogas há cinco anos. A dependência entre as mulheres é um tabu na Somália, mas ela decidiu falar abertamente com a BBC, na esperança de poder ajudar a romper o silêncio e diminuir o preconceito. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "Comecei a mascar tabbuu com as meninas com quem morava", ela conta. "Elas exerciam uma má influência sobre mim. Fiquei dependente do fumo e então comecei a usar drogas mais pesadas, especialmente as que eu podia injetar por via intravenosa, principalmente tramadol e petidina." Abdi conta que seu consumo de drogas disparou quando começou a ter problemas com o marido. Agora, ela é divorciada e mora com a filha pequena. "Meu ex é a razão pela qual me tornei dependente de drogas pesadas", diz ela. "Minha dependência ficou tão forte que perdi a cabeça. Comecei a dormir em carros e nas ruas." Abdi está tentando deixar as drogas, mas diz que é muito difícil porque não existem centros de reabilitação adequados na Somália para gerenciar a abstinência. Segundo ela, é impossível parar de usar todas as substâncias ao mesmo tempo. Abdi conseguiu reduzir a injeção de opioides, mas ainda masca tabaco e fuma narguilé. Os pais, especialmente as mães, estão extremamente preocupados com o aumento do consumo de drogas entre as filhas — muitas ainda em idade escolar. Khadijo Adan percebeu que a filha de 14 anos vinha se comportando de forma incomum: "Ela dormia em horários estranhos e estava agindo de forma diferente". "Um dia, encontrei comprimidos de tramadol e fumo de mascar na bolsa dela. Eu a confrontei, e ela me disse que havia começado a usar drogas devido à pressão das colegas", relata a mãe. Adan encaminhou a filha para morar em um centro administrado por xeques muçulmanos. Ela não usa mais drogas porque não consegue ter acesso a elas no centro. Muitos pais encaminham filhos "problemáticos" para essas instituições, especialmente quando têm problemas de saúde mental, quando se envolvem em crimes ou com drogas e quando há suspeita de homossexualidade. Já foram registrados abusos sérios em alguns desses centros, incluindo casos de pacientes que foram acorrentados e agredidos. Tudo isso acontece enquanto a Somália luta para enfrentar a pior seca dos últimos 40 anos e mais de três décadas de conflitos. Diante deste cenário, os recursos limitados do país são insuficientes para cobrir as necessidades humanas mais básicas, que dirá combater problemas como a dependência de drogas. Algumas pequenas organizações estão tentando preencher essa lacuna, promovendo conscientização sobre os perigos das drogas. A Green Crescent Society visita escolas e universidades para alertar os alunos sobre os diferentes tipos de dependência, incluindo o uso abusivo de substâncias, jogos de azar, games e redes sociais. Sirad Mohamed Nur dirige a Fundação Mama Ugaaso, dedicada ao uso abusivo de drogas entre jovens, incluindo meninas. "Fazemos o melhor que podemos para desestimular o consumo de drogas pelos jovens, mantendo programas de conscientização que destacam os riscos à saúde associados ao uso abusivo de substâncias." "Também fazemos lobby para que o governo se apresente e faça alguma coisa", acrescenta Nur. "Mas não é suficiente. São necessárias medidas drásticas para evitar que esse flagelo saia de controle, especialmente entre as crianças de rua." Segundo o Ministério do Desenvolvimento das Mulheres e dos Direitos Humanos, mais de 40% das crianças de rua consomem drogas. Cerca de um quinto das crianças de rua na Somália são meninas e aproximadamente 10% têm menos de seis anos — algumas, chegam a ter apenas três anos. O khat, a cola e o fumo de mascar são as substâncias mais comuns consumidas pelas crianças de rua. Mas um estudo realizado pelo ministério concluiu que cerca de 10% delas usam opioides — e aproximadamente 17% tomam comprimidos para dormir. O aumento do uso de drogas entre os jovens marginalizados fez aumentar a criminalidade, incluindo a violência contra meninas e mulheres. E, segundo a organização de pesquisa Somali Public Agenda, também gerou o recente fenômeno das gangues de rua, conhecidas como "Ciyal Weero", que vêm espalhando o terror em Mogadíscio. Em alguns casos, as drogas são usadas para se aproveitar das mulheres, como na cidade de Baidoa, no sudoeste da Somália, onde uma mulher teria sido violentada depois de receber um opioide. Existe também o risco de que o aumento do uso de drogas intravenosas possa reverter a incidência relativamente baixa de HIV e Aids na Somália. "O recente aumento das pessoas que injetam drogas, especialmente opioides, está colocando todo um novo grupo de somalis em risco de infecção pelo vírus", afirma a diretora do programa de HIV do Ministério da Saúde da Somália, Sadia Abdisamad Abdulahi. Os profissionais da saúde afirmam que uma das formas mais eficazes de combater o problema dos opioides é mirar nas pessoas que vendem os medicamentos — em sua maioria, farmacêuticos. E a polícia começou a reprimi-los. Um farmacêutico que não quis se identificar afirma que ele e seus colegas não estão nem um pouco satisfeitos com a intervenção policial. "Administrei uma farmácia em Mogadíscio por muitos anos", ele conta. "Costumava ser muito fácil vender drogas para os jovens, incluindo as meninas, em parte porque ninguém sabia que tipo de efeito as drogas teriam sobre eles." "Nós costumávamos vender para todo mundo e ganhávamos um bom dinheiro", acrescenta o farmacêutico. "Mas os pais agora estão trabalhando com a polícia, que começou a nos vigiar e a nos prender, em alguns casos. Agora, temos medo de vender drogas para os jovens e, por isso, estamos perdendo dinheiro." Ao falar abertamente sobre a questão da dependência entre as mulheres, jovens corajosas, como Amino Abdi, e mães, como Khadijo Adan, deram o primeiro (e importante) passo para trazer à tona este problema. A intervenção policial e os programas de conscientização em relação às drogas também vão ajudar — mas, sem novos recursos e atenção, é improvável que o problema seja solucionado no curto prazo. * Fathi Mohamed Ahmed é editora-chefe da agência de notícias Bilan Media, formada só por mulheres, na Somália.
2023-02-11
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64290357
sociedade
'Por que adotamos uma irmã mais velha para nossa filha de 9 anos'
Desde quando eram namorados, o assunto adoção esteve presente na vida da psicomotricista Daniele Ribas Précoma Moro, de 40 anos, e do gerente de comunicação e marketing Gabriel Moro, 39 de anos. Ela, desde a adolescência, dizia querer adotar uma criança e ele também já havia pensado no assunto. Os anos se passaram, os dois se casaram e há nove anos tiveram a primeira filha, Alice. Com a vida estabilizada, a família, moradora de Colíder, no norte de Mato Grosso, sentia que ainda faltava algo. Apesar de estarem felizes, a casa ainda não estava completa.  "A gestação da Alice foi tranquila e sem intercorrências. A gente poderia ter um segundo filho biológico, mas o nosso sonho sempre foi ter também um filho adotivo", conta Daniele. Foi quando em 2019, Daniele e Gabriel decidiram colocar o desejo de adotar uma criança em prática e se cadastraram no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento. A ideia do casal nunca foi adotar um bebê, mas sim uma criança mais velha. Após passar pelo processo que tornou o casal apto para adotar uma criança, a família então pôde selecionar as características do filho que deseja, como idade, cor de pele e gênero, por exemplo.  Fim do Matérias recomendadas Após fazer toda a documentação, eles entraram em uma lista de espera que considera a ordem de chegada e as preferências de cada adotante. "Quando nos cadastramos a Alice já estava com 5 anos e queríamos uma menina em uma faixa etária próxima, de 4 a 8 anos, para que as duas fossem amigas e ter bastante proximidade. Além de que elas pudessem dividir quarto e os brinquedos", recorda Daniele. Três anos se passaram e a família seguia na lista de espera. A Alice crescia e sua irmãzinha nunca chegava. No entanto, essa situação mudou no ano passado depois que o casal se propôs a adotar uma criança ainda mais velha, de até 12 anos. "Durante esses três anos não recebemos nenhuma ligação do sistema de adoção. A Alice já estava com 8 anos e então decidimos aumentar também a idade da criança que pretendíamos adotar, até para tentar aumentar as chances de termos a nossa segunda filha", conta psicomotricista. Como crianças mais velhas pertencem a uma faixa etária menos concorrida, cerca de cinco meses depois a família foi selecionada para conhecer uma menina de 11 anos chamada Gabrielly que vivia em um abrigo e aguardava na fila de adoção. Por morarem em cidades diferentes, os primeiros contatos foram por fotos. Depois começaram as videochamadas. Conforme os laços iam se estreitando, foram autorizados visitas e passeios aos finais de semana. Até que, em outubro de 2022, Gabrielly ganhou um novo lar. "É como uma gestação, a gente vai passando por diversos processos e quando finalmente chega o dia de a gente receber essa criança em casa é uma alegria imensa. Desde quando conhecemos a Gabi, teve uma identificação e um amor gigante entre todos nós, não tinha como não ser ela a nossa segunda filha", diz Daniele. A mãe conta ainda que durante todo o processo — desde o cadastro no sistema de adoção até conhecer pela primeira vez a criança selecionada — Alice sempre esteve presente e sempre fez parte de todo o contexto que inclui a adoção. Situações que a fizeram aceitar muito bem a nova irmã mais velha. "Elas são muito parceiras, brincam o tempo todo juntas e estudam na mesma escola. Andam de bicicleta, patins, correm pela casa, aonde uma vai a outra vai junto. Claro, que vez ou outra tem um ciúme, mas é coisa de irmão", acrescenta. Além disso, para lidar com todas as mudanças que a chegada de uma nova criança no lar exige, a família fez questão de que as duas crianças tivessem um acompanhamento psicológico. "Agora, sim, a nossa família está completa com nossas duas filhas. A gente não lembra mais como era as nossas vidas antes da Gabi chegar", complementa. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, mostram que no ano passado 362 crianças com mais de 12 anos foram adotadas no país. O número representa 10% das 3.608 adoções registradas no período. Atualmente as crianças acima de 12 anos que aguardam um novo lar somam 2.085 representando quase a metade das crianças aptas para adoção, que são 4.227. Por outro lado, aquelas com idades entre 2 e 4 anos representam quase 50% daquelas que ganham uma nova família. Uma criança é considerada apta para adoção quando todo o processo de retirada dela da família biológica é concluído. Ainda segundo o Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento, quase 33 mil (32.913) pretendentes aptos estão na fila para adotar uma criança no país, número maior do que o de crianças que vivem em abrigos no país, 31.256. Essa conta só não fecha porque a grande maioria dessas pessoas adotantes (26.490) aguardam por uma criança entre 2 e 6 anos. E apenas 786 delas informaram ao sistema o interesse por crianças maiores de 10 anos. As pessoas interessadas em adotar uma criança passam por um processo de habilitação à adoção com palestras e entrevistas com psicólogos. Se forem consideradas aptas, elas farão parte de um cadastro nacional unificado, onde os dados são cruzados com as crianças que estão na fila aguardando um lar.  "A espera por adotar uma criança nessa faixa etária de 2 a 4 anos, que é a mais buscada, pode demorar até 4 anos. Já quando falamos de crianças mais velhas, acima de 10 anos, esse tempo é reduzido a quatro, seis meses, porque elas são muitas e há poucos adotantes que aceitam perfis mais velhos", diz Noeli Reback, juíza e presidenta do Colégio de Coordenadores da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça do Brasil. Para mudar essa realidade, os Tribunais de Justiça do país têm realizado trabalhos de conscientização e também de aproximação dessas crianças que precisam de um lar com a sociedade, como os projetos de apadrinhamento. "Essas crianças precisam ser vistas para serem lembradas. Além disso, quando a colocamos em contato com as pessoas vai mudando um pouco aquela visão que a sociedade tem sobre elas. Estamos tendo um avanço com relação à adoção tardia, mas ele ainda é tímido", acrescenta a juíza. Nos últimos quatro anos 13.966 foram adotadas no Brasil, desse total 7.927 tinham idades entre 2 e 8 anos e 4.964 eram maiores de 9 anos.
2023-02-10
https://www.bbc.com/portuguese/articles/czvygq2yj7zo
sociedade
A estrada de ferro construída por chineses que transformou EUA para sempre
"Você consegue quase sentir a dor que ela causou", afirma Roland Hsu, dentro do túnel ferroviário escavado no Pico Donner, nas montanhas de Sierra Nevada, no Estado americano da Califórnia. Ásperas e irregulares, as paredes do túnel têm pouca semelhança com as passagens subterrâneas escavadas pela maquinaria moderna. Nos anos 1860, equipes de trabalhadores chineses explodiram o granito e escavaram cuidadosamente à mão 15 passagens pelas montanhas de Sierra Nevada para que a primeira ferrovia transcontinental pudesse transportar seus passageiros. Eram quase 3 mil quilômetros de trilhos, partindo de Sacramento, na Califórnia, até Omaha, em Nebraska. A viagem, que levava seis meses, passaria a durar seis dias, transformando os Estados Unidos para sempre. "Eram necessários quatro homens para segurar uma grande barra de ferro e perfurar manualmente um buraco no granito", afirma Hsu, que é diretor de pesquisa do Projeto Trabalhadores Ferroviários Chineses na América do Norte (CRWNAP, na sigla em inglês), da Universidade de Stanford, nos EUA. O projeto busca divulgar as experiências dos trabalhadores ferroviários chineses. Fim do Matérias recomendadas "Um quinto homem batia no ferro com uma marreta. Eles então giravam a barra, dando um quarto de volta, batiam nela de novo, e assim por diante. Era assim que eles cavavam o buraco, e então colocavam a pólvora, acendiam e saíam correndo. Não havia mecanismos hidráulicos." Este processo de construção extenuante permitia aos trabalhadores avançar apenas alguns centímetros por dia. Dois anos e meio se passaram até que o túnel de cerca de 520 metros de extensão no Pico Donner fosse escavado. Basta olhar mais de perto, diz Hsu, e "você ainda pode ver as marcas da perfuração". Este feito monumental da engenharia trouxe imensas consequências para os Estados Unidos. Fez com que o comércio prosperasse — e, em 1880, a ferrovia transportava US$ 50 milhões (cerca de R$ 260 milhões) em carga por ano. À medida que novas cidades surgiam ao longo do trajeto, a ferrovia transformava os lugares em que os americanos viviam, impulsionava a expansão para o oeste e reduzia os custos das viagens. Mas o projeto também devastou florestas, desalojou tribos nativas americanas e expandiu rapidamente a influência anglo-europeia por todo o país. E seu custo humano foi alto: estima-se que 1,2 mil trabalhadores chineses tenham morrido durante os seis anos da sua construção — e os que sobreviveram enfrentaram ameaças e discriminação racial. Atualmente, o trem Zephyr, da empresa ferroviária estatal americana Amtrak, ainda passa por boa parte dos trechos mais difíceis construídos pelos trabalhadores chineses há mais de 150 anos. Subindo pelas montanhas de Sierra Nevada, a viagem oferece vistas panorâmicas de picos cobertos pela neve e faixas de florestas com abetos e pinheiros imponentes. Já o restante do trajeto, que conecta a baía de San Francisco a Chicago, é coberto por uma linha diferente, construída depois da Ferrovia Transcontinental original. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Outra forma de observar mais de perto a obra dos trabalhadores chineses é andando a pé. Perto da Floresta Nacional de Tahoe, ao longo da Passagem de Donner, uma placa indica a "Muralha da China" — um muro de contenção de 23 metros que mantém a terra firmemente no lugar até hoje, evitando que deslizamentos soterrem os trilhos. Considerado uma "maravilha da engenharia" pela Sociedade Histórica de Truckee-Donner, responsável pela placa, o muro foi levantado por "mestres da construção" chineses, empilhando pedras, umas sobre as outras, sem usar cimento nem argamassa. Pouco acima do muro, encontra-se um trecho da ferrovia que não está mais em uso, mas é acessível para montanhistas. Os trilhos foram retirados, e o caminho agora é uma trilha sem sinalização. A mais de 2,1 mil metros de altitude, a trilha oferece aos visitantes vistas panorâmicas do Lago Donner. Os montanhistas podem atravessar uma série de túneis, incluindo o Túnel n° 6, com cerca de 520 metros de comprimento — o mais longo dos 15 túneis perfurados nas montanhas —, e vários snow sheds, galpões em forma de túnel construídas para proteger os trilhos da neve. É estranho — e, sim, difícil — ficar de pé na entrada de um dos túneis e observar o pequeno raio de sol brilhando na outra ponta, sabendo não só como foi difícil escavar aquela passagem, mas também como eram tratados os trabalhadores chineses. Houve um momento em que, na tentativa de acelerar a construção, eles trabalharam ininterruptamente, com equipes mergulhadas na escuridão por horas a fio. As estruturas são agora um testemunho do seu suor e sacrifício. E também refletem um legado que havia sido apagado há muito tempo da história americana. Mas com o recente aumento do preconceito contra pessoas de origem asiática nos Estados Unidos, houve um novo estímulo. Foram tomadas algumas medidas, incluindo a fundação do primeiro museu nacional asiático-pacífico-americano e a aprovação de novas leis em Illinois, Nova Jersey e em outros Estados para ensinar a história dos povos americanos originários da Ásia e da Oceania a crianças em idade escolar. A intenção é reconhecer o papel dos trabalhadores chineses na concretização deste feito monumental. "Foi o maior empreendimento de engenharia do século 19", diz a historiadora Connie Young Yu. Seu bisavô foi um dos trabalhadores chineses da ferrovia. "E pensar que seriam os chineses que construiriam os trilhos que uniriam os Estados pela estrada de ferro." Inicialmente, não havia a intenção de que trabalhadores chineses construíssem a maior ferrovia dos Estados Unidos. As empresas ferroviárias Central Pacific Railroad (CPRR) e Union Pacific Railroad receberam do Congresso americano a tarefa de construir uma ferrovia para conectar o país. Mas a CPRR não conseguiu contratar trabalhadores brancos em quantidade suficiente na época. Muitos deles haviam recebido oportunidades de trabalho em minas, com melhores salários. Até que, em 1864, a CPRR começou a contratar trabalhadores chineses em uma tentativa desesperada de cumprir o prazo estabelecido. Muitos dos primeiros trabalhadores chineses já moravam na Califórnia, atraídos pela Corrida do Ouro do final dos anos 1840 e início da década de 1850. Outros foram trazidos da China, com promessas de trabalho constante e renda estável. Ao todo, estima-se que 20 mil imigrantes chineses tenham trabalhado na ferrovia, representando até 90% dos funcionários da CPRR, segundo o CRWNAP. A Union Pacific Railroad começou a construir a ferrovia a partir do leste em direção ao oeste. O trecho que ficou a cargo da CPRR era inquestionavelmente o mais difícil do projeto. Seus trilhos precisavam passar pela imponente Sierra Nevada — uma cadeia de montanhas que atinge mais de 4,2 mil metros de altitude — até se conectar aos trilhos da Union Pacific Railroad. Estabelecer aquela rota significava limpar o terreno, nivelar o caminho pelas montanhas e instalar os trilhos. A maior parte desse trabalho foi realizada por trabalhadores chineses. Eles, muitas vezes, trabalhavam de 10 a 11 horas por dia, seis dias por semana. Não havia intervalo durante o inverno, quando as tempestades chegavam a depositar vários metros de neve em um único dia. Mas, apesar da sua dedicação, havia funcionários chineses que recebiam apenas metade do pagamento dos trabalhadores brancos, segundo o CRWNAP. E a CPRR também não se dava ao trabalho de registrar suas identidades, referindo-se a eles de forma depreciativa, como uma multidão de "John Chinamen", ou "Joões Chineses". Após a inauguração da Ferrovia Transcontinental, em 1869, houve uma grande expurgo de todas as pessoas de origem chinesa dos Estados Unidos, por meio de leis locais e estaduais, ataques populares e até linchamentos. Alguns imigrantes voltaram para a China, mas um pequeno número foi contratado para fazer a manutenção da ferrovia. Os demais tentaram se instalar em locais como a importante cidade ferroviária de Truckee, na Califórnia, perto do Pico Donner. Ali, eles abriram negócios, como serviços de lavanderia e restaurantes. Os imigrantes chineses chegaram a representar até de 30% a 40% da população de Truckee, mas logo ficou claro que eles não eram bem-vindos. Em 1875, um incêndio destruiu o bairro chinês de Truckee. A origem do fogo foi atribuída aos chineses e suas construções de madeira, mas era evidente que o incêndio não foi simplesmente acidental. A comunidade chinesa foi forçada a se mudar para o outro lado do rio Truckee, onde outros incêndios começaram a destruir, repetidamente, suas casas e negócios. Em uma ação particularmente ultrajante, diversos homens brancos incendiaram casas e atiraram nos moradores chineses que tentavam fugir das chamas. Os criminosos foram capturados e julgados, mas acabaram sendo absolvidos. Em seguida, veio o famigerado Método Truckee — uma campanha dos moradores brancos da cidade para boicotar negócios de imigrantes da China e todos os comerciantes que tivessem relações comerciais com membros da comunidade chinesa. No final dos anos 1880, a comunidade chinesa havia sido reduzida para apenas um punhado de pessoas. Em todo o país, outras comunidades chinesas foram igualmente expulsas ou destruídas. O ódio nacional contra os chineses, alimentado pelo medo da concorrência no mercado de trabalho e por um senso de superioridade moral sobre os imigrantes da China, culminou em 1882. Naquele ano, o Congresso aprovou a Lei de Exclusão dos Chineses, proibindo qualquer pessoa com ascendência chinesa de entrar nos Estados Unidos. A lei só seria revogada em 1943. Atualmente, a cidade de Truckee e a região de Lake Tahoe são destinos bastante populares para quem quer esquiar. O resort Palisades Tahoe (antes chamado de Squaw Valley), a apenas 16 km ao sul de Truckee, sediou os Jogos Olímpicos de Inverno de 1960. O resort Sugar Bowl, que inspirou o curta-metragem de animação de Walt Disney A Arte de Esquiar (1941), estrelado pelo personagem Pateta, deve sua construção aos túneis escavados pelos trabalhadores chineses. Mas, apesar de toda a atenção internacional, quase não há sinais de que os imigrantes da China tiveram, um dia, uma presença importante naquela região. Caminhando pelo centro de Truckee, o único indício do legado chinês é uma placa em uma construção de tijolos que abrigou uma loja de ervas chinesas no passado. Mas, de acordo com Connie Yu, o sucesso da Ferrovia Transcontinental e os cruéis acontecimentos do final do século 19 não podem ser esquecidos. "O fato de que aquilo aconteceu, que pode acontecer de novo e que aconteceu de novo... é por isso que continuamos falando sobre a história e não podemos parar."
2023-02-05
https://www.bbc.com/portuguese/vert-tra-64244169
sociedade
O que há de verdade em lenda de premiê holandês 'comido' pela população em fúria
Exposto no Rijksmuseum, o museu nacional dos Países Baixos, em Amsterdã, um óleo sobre tela de 69,5 centímetros de altura por 56 centímetros de largura mostra dois corpos desnudos, de cabeça para baixo, com os órgãos extirpados. A pintura, do holandês Jan de Baen (1633-1702), chama-se 'Os Cadáveres dos Irmãos De Witt' e foi feita possivelmente entre 1672 e 1675. Para alguns historiadores, o realismo do quadro é uma das origens da narrativa — possivelmente fantasiosa — de que o primeiro-ministro holandês Johan de Witt (1625-1672) tenha sido devorado pela população enraivecida, depois de linchado. "A imagem do primeiro-ministro sendo comido pela população se refere muito mais a uma representação artística do pintor Jan de Baen. Podemos perceber que essas representações mais realistas, mais envolventes do corpo humano, já vinham dos dois séculos anteriores. Mas [a cena] ilustra muito mais um realismo corporal do que necessariamente um fato histórico", comenta o historiador Victor Missiato, integrante de grupo de pesquisa na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e professor no Colégio Presbiteriano Mackenzie Tamboré. O que é fato dado como certo foi que Johan de Witt e seu irmão Cornelius (1623-1672), os dois corpos representados na pintura, sofreram uma morte violenta, executada por populares revoltosos. "O processo de linchamento ocorria com muito mais frequência [do que o canibalismo] e há muitos registros dessa prática na Europa dos século 16, 17 e 18", diz. "Historicamente é possível afirmar que houve linchamento e que partes do corpo dos irmãos de Witt foram cortados", complementa. "Mas registro histórico de que se alimentaram de suas partes, isso é pouco verossímil. Não há nada em relação a isso. É mais resultado do impacto da representação artística do que necessariamente de um fato histórico." Fim do Matérias recomendadas Mas o que acontecia nos Países Baixos naqueles tumultuados anos do século 17 para desencadear tão grotesco episódio? Conforme explica Roberto Georg Uebel, professor de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), foi um "período muito conturbado da Holanda, hoje parte dos Países Baixos, que na época era uma das poucas repúblicas no continente europeu". Filho de uma família de políticos importantes da sociedade neerlandesa de então, Witt era advogado e matemático quando assumiu o posto de grande pensionário da república — algo equivalente ao cargo de primeiro-ministro. Ele ficou no comando do executivo do país por quase duas décadas, entre 1653 e 1672. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Uebel pontua que aquele período "coincidiu com as guerras holandesas com a França, Inglaterra e alguns Estados germânicos". No período, houve "um certo enfraquecimento dos Orange-Nassau, uma das famílias reais mais importantes e fortes na história europeia". Isto porque o estatuder — chefe do Executivo — da região, príncipe Guilherme 2º de Orange-Nassau (1626-1650) morreu deixando como único herdeiro, Guilherme 3º (1650-1702), uma criança recém-nascida. Depois de diversas disputadas, Witt assumiu o poder de fato, enquanto Guilherme 3º era criado e educado para, um dia, suceder o pai. "De Witt teve sua responsabilidade no fortalecimento do poder marítimo e geopolítico da Holanda, que à época era concebida como uma das maiores potências econômicas e geopolíticas do mundo", comenta Uebel. Costumava-se comparar a então Holanda com o império britânico, no sentido de que em ambos "nunca se via o sol se pôr", já que o poderio se estendia por colônias além-mar. "Por meio das Companhias das Índias Ocidentais e Orientais, o domínio (holandês) chegava ao Caribe e Américas e ao Sudeste Asiático", acrescenta o professor. "O próprio nordeste do Brasil se viu sob ocupação holandesa." Missiato explica que a Holanda passava por grandes transformações políticas. "Já vinha, anteriormente, da independência em relação à Espanha [ocorrida após a Guerra dos 80 anos, terminada em 1648]. E isso fez com que ocorresse no seio da Europa uma primeira grande divisão entre catolicismo e protestantismo após os movimentos de reforma e contrarreforma", contextualiza. Nos primeiros anos pós-independência, a Holanda experimentou um momento de crescimento econômico sem precedentes. "Principalmente na área do comércio, a partir da visão protestante de sociedade", frisa Missiato. O historiador também afirma que o fato de o país ter se configurado como uma república favoreceu esse desenvolvimento. "Os negócios não ficavam presos ao poder hierarquizado, aristocrático", comenta. Esse cenário promissor passou a incomodar outras regiões da Europa. "Tanto na parte comercial quanto na parte religiosa", diz Missiato, citando regiões da atual Alemanha, além de França e Inglaterra como fortes concorrentes. "No centro de muitas disputas comerciais e religiosas, a Holanda teve diversos confrontos ao longo do século 17", acrescenta. "Era um período de efervescência política que coincidia com movimentos pós-reforma protestante, ocorrida um século antes, com a antessala do iluminismo e com as rápidas mudanças trazidas pelo capitalismo metalista e mercantilista, em substituição ao feudalismo, que começava a ruir suas últimas fortalezas na Europa, inclusive na Holanda", afirma Uebel. "No contexto holandês, o país passava por uma guerra de proporções continentais, a Guerra Franco-Holandesa, que deixou marcada a rivalidade de Witt com a casa de Orange-Nassau e seus apoiadores orangistas", conta o professor. Segundo o professor de história Victor Alexandre, roteirista do podcast História em Meia Hora, o estopim desse conflito foi a recusa de Witt em devolver o poder aos de Orange, mesmo com Guilherme já tendo alcançado a maioridade. "Esse foi o primeiro sinal de rusgas entre de Witt e outras nações, como França e Inglaterra, que começavam a fazer uma forte oposição ao comandante holandês", comenta. Os demais reinos entendiam que essa postura não era um bom exemplo. "Essa tensão entre as nações escalou ao ponto de o rei francês Luís 14 determinar a invasão dos Países Baixos em 1672, dando início a uma guerra entre França e Reino Unido contra a Holanda", diz Alexandre. "Foi a partir dos desdobramentos dessa guerra que Johan de Witt foi linchado pela população que queria Guilherme de Orange no poder." Os dois irmãos acabaram tentando forçar um acordo de paz com a França. "Cornelius chegou a ser acusado de traição e foi preso", narra Uebel. "Na tentativa de ajudar o irmão a fugir, Johan de Witt também foi linchado, assassinado. Há relatos que tenha sido, junto com seu irmão, alvo de canibalismo post mortem." Uebel não descarta que isso realmente tenha ocorrido, lembrando que tal violência era uma prática que aludia a uma "Europa pré-iluminista" guardando resquícios "do feudalismo e do medievalismo". Contudo, oficialmente, de acordo com os relatos históricos da política holandesa, Uebel diz que o que consta é que os corpos dos irmãos Witt foram "mutilados após suas mortes pelos opositores orangistas e pela população descontente com a situação pela qual a Holanda passava e a humilhação face à Guerra Franco-Holandesa". "Lenda ou não, também há relatos, inclusive jornalísticos, de que seus corpos mutilados de fato tenham sido alvo de práticas de canibalismo", comenta o professor. "Para a cultura política, o que mais pesa, contudo, é o símbolo do desfecho desta crise política que marcou a transição da república holandesa para uma monarquia orangista e o retorno dos Orange-Nassau ao poder." "Historicamente falando, é plenamente possível que o primeiro-ministro tenha sido comido. Porém, precisamos tomar cuidado: não é porque algo é possível que isso de fato aconteceu", relativiza Alexandre. "Johan de Witt foi morto após a fúria desenfreada da população e os relatos contam que ele foi mutilado e, em seguida, seu corpo foi exposto para toda a população." O professor de história conta que, sendo ele um dos homens mais importantes dos Países Baixos, há registros sobre os episódios que o envolviam. "E as fontes mais confiáveis que contam sobre sua vida e também sua morte não trazem nada que diga respeito a canibalismo", enfatiza. "É inegável que ele foi morto pela fúria da população e bem provável que a lenda a respeito de um homem público ter sido devorado pelos cidadãos tenha se alastrado porque reforça a noção de que a força de mudança estava com o povo que pedia mudanças." "Afirmei que historicamente é possível que ele tenha sido comido porque diversas civilizações têm no ritual da antropofagia uma prática relativamente com um em seus respectivos costumes locais", pondera Alexandre. "Os casos mais famosos são dos povos habitantes da mesoamérica (sul do México e América Central) e em alguns povos do Brasil. Porém, todos esses rituais tinham uma conotação religiosa ou simbólica para justificar a ingestão de carne humana. Em nenhum dos casos algum ser humano foi comido por um ataque coletivo de raiva, como nesse caso da Holanda." Com a morte do primeiro-ministro e de seu irmão, houve um enfraquecimento desse grupo político que eles representavam. "E a casa de Orange-Nassau voltou ao poder. A regência da Holanda, antes comandada por Witt, foi substituída por um reino comandado por Guilherme 3º, que depois viria a ser também o rei da Inglaterra", contextualiza Uebel. Ele frisa, entretanto, que embora o episódio tenha deixado "o republicanismo holandês enfraquecido", a experiência republicana ali havida "acabaria por influenciar outros movimentos", como "nos países germânicos e na própria Península Ibérica". "Embora fossem vislumbrar a ascensão de movimentos republicanos apenas no limiar do século 19". Missiato comenta que, embora Guilherme 3º tenha sido diretamente beneficiado pela morte dos irmãos Witt, "não há registro de participação direta ou indireta dele no episódio". "No século 19, muitos historiadores afirmavam que haveria essa participação. Hoje, ela é questionável", argumenta. "Sua ascensão a partir de 1673 destravou muitas consequências para a história europeia", acrescenta o historiador Missiato. "Guilherme 3º foi fundamental para as transformações geopolíticas que ocorreram na Europa no século 18."
2023-02-05
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64215885
sociedade
Qual é o maior PIB? 4 razões por que o crescimento econômico não é sinônimo de sucesso de um país
Em meio à Grande Depressão nos Estados Unidos na década de 1930, o economista Simon Kuznets buscou uma maneira de avaliar a atividade econômica do país para ajudá-lo a sair da violenta crise. Ele se perguntava quais eram as atividades realmente produtivas — e como era fomentado o bem-estar em um país. Porém, quando a Segunda Guerra Mundial começou, a prioridade de medir a riqueza gerada por um país mudou: era preciso saber quanto se produzia e quanto sobrava para financiar a guerra. Fim do Matérias recomendadas Com o fim do conflito bélico, os Estados Unidos tinham que saber como estavam os beneficiários da ajuda econômica destinada à reconstrução, então todos passaram a usar o indicador-chave para esse objetivo: o Produto Interno Bruto (PIB). Kuznets, no entanto, não estava muito orgulhoso do que havia ajudado a criar, porque no fim das contas a medida que teoricamente iria refletir o bem-estar econômico acabou sendo a soma de todos os bens e serviços que um país produz em um ano. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast "É preciso ter em mente as distinções entre a quantidade e a qualidade do crescimento", disse o próprio Kuznets em 1962. Sete décadas depois, o PIB continua sendo usado para medir a riqueza gerada por um país. O problema não é o PIB em si, dizem os críticos, mas o poder supremo que lhe foi dado para refletir o sucesso ou o fracasso de uma nação. Por isso, defendem que é preciso dar um fim à "ditadura do PIB", ou, como diz o prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz, ao "fetichismo do PIB". Eles argumentam que, embora o crescimento econômico tenha gerado mais empregos, rendas mais altas e mais riqueza, as desigualdades entre as elites e o restante da população se aprofundaram nas últimas décadas. Por outro lado, dizem que o "dogma" de produzir mais e consumir cada vez mais levou à destruição do planeta. Em contrapartida, os defensores do PIB argumentam que o crescimento econômico é o que deu ao mundo o tratamento contra o câncer, o acesso à eletricidade e à água potável e uma expectativa de vida mais longa. Em suma, que o crescimento gerou bem-estar. A seguir, estão alguns mitos que cercam a medida controversa. O PIB é a forma como classificamos os países e julgamos seu desempenho. O número é fundamental porque a elaboração do orçamento pelos governos depende dele — e esse dado também permite o acesso a informações fundamentais para a tomada de decisões. Ele também determina o valor dos empréstimos que um país pode solicitar e a que taxa de juros, além de influenciar as decisões de investimento. No entanto, as economias mais ricas tendem a crescer menos que as demais porque estão em outra fase de desenvolvimento, não necessariamente porque estão indo mal. Também acontece o contrário, quando o PIB de um país parece incrivelmente alto, mas não reflete necessariamente o cenário como um todo. Basta ver o famoso "rebote estatístico" que acontece quando o PIB de um país cai vertiginosamente e, no ano seguinte, cresce "espetacularmente", fenômeno que ocorre porque a base de comparação é muito baixa. Foi o que aconteceu com a pandemia de covid-19. O México, por exemplo, cresceu incríveis 4,8% em 2021, mas vinha de uma queda brutal de -8,1% no ano anterior. A Bolívia, por sua vez, aumentou seu PIB para 6,1%, mas saiu de -8,7% em 2020. Por outro lado, temos o caso da Venezuela, que este ano será o país com maior crescimento da América Latina, chegando a incríveis 6,5%, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI). A Venezuela é realmente a economia mais bem-sucedida da América Latina devido ao aumento do seu PIB? Economistas apontam que, após anos de hiperinflação, aumento da pobreza e queda recorrente do crescimento econômico, o que estamos testemunhando é uma recuperação. Mas o fato de ter o maior crescimento em relação às demais não é sinônimo de ser a economia mais bem-sucedida da região. Outro exemplo de PIB alto que nada tem a ver com sucesso acontece quando há guerras ou desastres naturais, devido aos gastos públicos gigantescos que os governos precisam fazer. “Um aumento do PIB pode refletir coisas que você não quer que aconteçam”, diz Dimitri Zenghelis, cofundador do Wealth Economy Project da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, à BBC. "Você pode enfrentar um terremoto, como aconteceu no Japão em meados dos anos 1990. Isso gera muita atividade econômica por causa da reconstrução, muito PIB", explica. "Mas ninguém em sã consciência gostaria que isso acontecesse." O PIB não distingue atividades legais e ilegais porque coloca tudo no mesmo saco. "As ogivas nucleares de Kim Jong-un funcionam tão bem quanto as camas de hospital ou a torta de maçã", diz David Pilling, autor de The Growth Deception: The Wealth and Well-Being of Nations (“A decepção do crescimento: a riqueza e o bem-estar das nações”, em tradução literal). A injeção de dinheiro na economia proveniente do tráfico de drogas, de armas ou de seres humanos também tem impacto no crescimento econômico. As organizações criminosas geram empregos, aumentam o consumo, criam grandes cadeias de produção, distribuição e comercialização que, direta ou indiretamente, fazem parte do PIB. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que entre 2% e 5% do PIB mundial é gerado por lavagem de dinheiro, embora o número possa ser muito maior devido às dificuldades de cálculo. Isso é relativo. Pode ser que em alguns países o crescimento gere mais bem-estar para a maioria da população, e em outros gere mais riqueza apenas para alguns. Nesse sentido, o PIB por si só não é sinônimo de bem-estar, desenvolvimento ou sucesso. Para ter um retrato mais realista do desempenho de um país, dizem os especialistas, é preciso agregar outras medidas, como o Índice de Gini, que estuda a distribuição de renda, ou o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) das Nações Unidas, que atenta para a expectativa de vida, alfabetização, educação e outros elementos relacionados à qualidade de vida das pessoas. Por outro lado, as médias em relação ao crescimento econômico podem ser enganosas. O famoso PIB per capita é uma medida útil para dividir o valor da atividade econômica de um país pelo número de habitantes. É uma média, mas não diz nada sobre a distribuição da riqueza. Um dos melhores exemplos da ilusão causada por essas médias foi dado pelo antipoeta chileno Nicanor Parra, que, antes de se dedicar à literatura, foi professor de matemática, física e mecânica racional. "Há dois pães. Você come dois. Eu, nenhum. Consumo médio: um pão por pessoa." A medição do PIB inclui o número de carros fabricados, mas não suas emissões, o que no fim das contas acaba levando a maiores gastos com saúde e outros efeitos relacionados à poluição. O PIB "também inclui os detritos de plástico flutuando no oceano, alarmes antirroubo e gasolina consumida em um engarrafamento", diz David Pilling. Deste ponto de vista, um país pode ter um crescimento elevado e ao mesmo tempo comprometer o seu futuro. "Se o seu crescimento é baseado em atividades que não são sustentáveis, como a destruição do meio ambiente, então não é bom", observa Zenghelis. Nos últimos anos, a ideia de “crescimento sustentável e inclusivo” ganhou espaço para neutralizar seus efeitos negativos, como propõe a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). O foco não é “diminuir”, mas atentar para a qualidade do crescimento. O que diria Simon Kuznets, o criador do PIB, se ainda estivesse vivo?
2023-02-04
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy6jx225gnno
sociedade
'É marketing de enganação', diz professora da USP sobre 'vaporizador com vitaminas'
Nos últimos dias, as redes sociais se agitaram com o anúncio de um cigarro eletrônico que alegadamente não tem nicotina e ainda faria bem para a saúde por conter vitaminas. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) disse que "não é possível a apresentação de vitaminas na forma de vaporizadores" e que "o produto não pode ser comercializado como suplemento alimentar". A BBC News Brasil também ouviu ouviu especialistas para entender se o aparelho realmente causa benefícios para a saúde. A venda dele e de qualquer outro vaporizador do tipo é proibida em território nacional. Mesmo assim, um levantamento publicado em 2022 mostrou que quase um em cada cinco brasileiros de 18 a 24 anos usaram algum tipo de cigarro eletrônico pelo menos uma vez na vida. Nas redes sociais, o aparelho fabricado pela IZ Health é apresentado por uma modelo em um vídeo no qual ela se exercita enquanto usa o vaporizador. Fim do Matérias recomendadas Na propaganda, ela afirma ainda que inalar a fumaça do "pod" garante que ela tenha mais energia, algo como um suplemento alimentar. "Com o IX Power, você garante a energia necessária para realizar as mais variadas tarefas, sem danos à saúde, e com sabor de hortelã cítrica, o que deixa ainda mais gostoso. Os 'pods' IZ são concentrados vitamínicos elaborados para o dia a dia", afirma a mulher no vídeo enquanto faz exercícios. A BBC News Brasil encontrou diversos sites que vendem o produto. O mais barato custa R$ 55 e o mais caro, R$ 75. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Livre docente da Faculdade de Medicina da USP e diretora do Programa de Tratamento ao Tabagismo do Incor, Jaqueline Scholz diz que a divulgação desse vaporizador "é puro marketing de enganação". "O pulmão não é o trato digestivo para receber vitaminas. O pulmão foi feito para receber ar e, quanto mais puro, melhor. As micro e nano partículas podem causar um processo inflamatório e, nos casos mais graves, pode até precisar intubar o paciente", diz. Na propaganda do vaporizador de essências vendido como saudável, a modelo diz que a absorção de nutrientes é feita pela mucosa durante a inalação do vapor produzido a baixas temperaturas. O pneumologista do hospital Sírio-Libanês André Nathan disse que desconhece qualquer estudo que indique a absorção de vitaminas pelo sistema respiratório humano. "Ele não foi desenhado para isso e não conheço nenhum estudo sobre essa essa via de absorção de vitamina", afirma à reportagem. Após a grande repercussão do vídeo, a empresa IZ Health desativou todas as contas que tinha nas redes sociais. A reportagem tentou entrar em contato para ouví-los sobre o caso, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem. A BBC News Brasil não encontrou nenhum indício de que a empresa IZ Health funcione no Brasil, como um CNPJ, site oficial ou canal para contato. Também não há informação se ela tem sede em outro país ou se os produtos oferecidos foram fabricados sob demanda a pedido de outra empresa ou pessoa física. Procurada, a Anvisa informou que "a resolução RDC 46/2009 proíbe os dispositivos eletrônicos para fumar". Segundo o órgão, o texto "se aplica para quaisquer acessórios e refis destinados ao uso em qualquer dispositivo eletrônico para fumar". A Anvisa informou ainda que "se desconhece o perfil de toxicidade das substâncias empregadas nos dispositivos em questão considerando a utilização por meio de vaporização". De acordo com a agência, "as formas farmacêuticas que podem ser utilizadas em suplementos alimentares são aquelas destinadas à administração e ingestão oral, ou seja, pela boca". Jaqueline Scholz, que é médica e pesquisadora do Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, afirma que não é recomendada a ingestão de medicamentos ou suplementos por meio da inalação. Ela diz à reportagem que as exceções são pacientes com problemas respiratórios, como os asmáticos. "O sistema respiratório serve para você receber apenas ar. Exceto em situações bem restritas e até desesperadoras, quando você não consegue um acesso periférico, por exemplo", afirma a médica da USP à BBC News Brasil. Scholz afirma que, mesmo que seja retirada do ar, a propaganda já fez "estragos enormes" por convencer pessoas de que o produto pode causar benefícios à saúde. Ela diz que é justamente o oposto e que a inalação por meio dos vaporizadores de essências pode ser ainda mais prejudicial que o cigarro. "Em primeiro lugar porque não é vapor, é aerossol. Vapor é água apenas de água. E o aerossol contém micropartículas que atravessam os alvéolos. Elas agridem nossas membranas, que são ultrafinas, e podem causar graves inflamações. O cigarro eletrônico tem baterias que geram uma quantidade de nanopartículas muito maior do que o cigarro convencional", diz a médica. Para ela, os responsáveis pela empresa devem ser identificados e responsabilizados, assim como as redes sociais que permitiram a veiculação do conteúdo. Ela também defende que a veiculação de produtos falsos deveria ser combatida da mesma maneira que a disseminação das fake news nas redes sociais. "Quando você inala algo que contém uma partícula ultra pequena, ela ganha a corrente sanguínea e pode infeccionar o pulmão, desencadeando um quadro de asma aguda. Não recomendo inalar nada. Você pode inalar metal pesado, níquel e cobre. Materiais cancerígenos que podem ser absorvidos pelo organismo." Ela resume que o discurso do vaporizador de essências rotulado como saudável é "mais um artifício da indústria do cigarro eletrônico, junto com as cores e aromas, usado para atrair os mais jovens".
2023-02-03
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64420252
sociedade
Como a polícia do Egito usa apps de paquera para perseguir comunidade LGBT
No Egito, a homossexualidade é altamente estigmatizada e existem denúncias, há muito tempo, de que a polícia está perseguindo pessoas LGBT online. A BBC News reuniu evidências de como as autoridades estão usando aplicativos sociais e de namoro para isso. Os nomes de todas as vítimas foram alterados. Fui criado no Egito e conheço a profunda homofobia que permeia todos os setores da sociedade do país. Mas amigos egípcios contam que, recentemente, a atmosfera ficou muito mais pesada e as táticas para rastrear as pessoas LGBT agora são mais sofisticadas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Não existem leis específicas contra a homossexualidade no Egito, mas nossas investigações descobriram que o crime de “depravação” – definido por uma lei contra o trabalho sexual – está sendo usado para criminalizar a comunidade LGBT. Transcrições apresentadas em relatos de prisões pela polícia demonstram como os policiais estão presentes online para procurar pessoas LGBT que buscam encontros online e, em alguns casos, supostamente fabricar evidências contra elas. As transcrições revelam como a polícia inicia conversas de texto com seus alvos. O Egito é um dos aliados estrategicamente mais importantes do Ocidente no Oriente Médio. O país recebe bilhões de dólares de ajuda dos Estados Unidos e da União Europeia todos os anos. Cerca de meio milhão de turistas britânicos visitam o país anualmente e o Reino Unido treina forças policiais egípcias através das Nações Unidas. Em uma conversa de texto no aplicativo de namoro e rede social WhosHere, um policial disfarçado parece estar pressionando um usuário do aplicativo a encontrar-se pessoalmente com ele. A pessoa foi presa posteriormente. Policial: você já dormiu com homens antes? Usuário do aplicativo: Sim. Policial: Que tal nos encontrarmos? Usuário do aplicativo: Mas eu moro com minha mãe e meu pai. Policial: Ora, querido, não seja tímido, podemos nos encontrar em público e depois ir para o meu apartamento. Existem outros exemplos que são explícitos demais para publicarmos. É extremamente difícil para as pessoas LGBT encontrar abertamente possíveis parceiros em público no Egito. Por isso, os aplicativos de namoro são uma forma popular de conhecer pessoas. Mas o simples uso dos aplicativos, independentemente da sexualidade da pessoa, pode dar razão a prisões com base no incentivo à depravação ou nas leis de moralidade pública do Egito. E não só os egípcios estão sendo investigados. Em uma transcrição, o policial descreve ter identificado um estrangeiro, que estamos chamando de Matt, no popular aplicativo de namoro gay Grindr. Um informante conversou com Matt, que, segundo a transcrição, “admitiu sua perversão, sua disposição de praticar depravação de graça e enviou fotografias suas e do seu corpo”. Matt contou à BBC que foi preso em seguida, acusado de “depravação”, e acabou sendo deportado. Em algumas das transcrições, a polícia aparentemente tenta pressionar pessoas que parecem estar simplesmente procurando encontros ou fazer novas amizades, levando a que elas concordem em ter sexo por dinheiro. Especialistas legais no Egito afirmam que a comprovação de que houve uma oferta ou pagamento pode dar às autoridades a munição de que eles precisam para levar o caso a julgamento. Uma dessas vítimas, que encontramos nas transcrições, foi um homem gay que vamos chamar de Laith. Ele é dançarino contemporâneo e, em abril de 2018, recebeu o contato do número de telefone de um amigo. “Olá, como vai?”, disse a mensagem. O “amigo” pediu para encontrá-lo para beber. Mas, quando chegou ao local combinado, Laith não encontrou seu amigo. Ele foi recebido pela polícia, que o prendeu e o trancou em uma cela do esquadrão antidrogas. Um policial esfregou um cigarro no seu braço, contou Laith, mostrando a cicatriz. “Foi a única vez na vida em que tentei me matar”, afirma ele. Ele conta que a polícia fez um perfil falso para ele no aplicativo WhosHere e alterou digitalmente suas fotos para que ficassem mais explícitas. Laith afirma que eles então forjaram uma conversa no aplicativo para fazer parecer que ele estaria oferecendo serviços sexuais. Laith conta que as imagens são a prova de que ele sofreu a encenação, já que as pernas da fotografia não se parecem com as dele – uma das suas pernas é maior do que a outra. A BBC só teve acesso às fotocópias dos arquivos policiais, com baixa qualidade, de forma que não pode verificar este detalhe de forma independente. Três outras pessoas declararam que a polícia também forçou ou falsificou confissões relacionadas aos seus casos. Laith foi condenado a três meses de prisão por “depravação habitual” e teve a pena reduzida para um mês após recurso. Ele afirma que a polícia também tentou fazer com que ele informasse sobre outras pessoas homossexuais que ele conhecia. “[O policial] disse: ‘eu posso fabricar uma história completa sobre você, se não me der nomes’”. O governo egípcio fez uma declaração pública sobre a prática de vigilância online dirigida ao que descreveu como “reuniões homossexuais”. Em 2020, Ahmed Taher, ex-assistente do Ministério do Interior para Crimes da Internet e Tráfico de Pessoas, declarou ao jornal Ahl Masr: “nós recrutamos a polícia no mundo virtual para descobrir as inúmeras festas de sexo em grupo e reuniões homossexuais”. O ministério das Relações Exteriores do Reino Unido – disse à BBC que não foi usado financiamento britânico para o treinamento da polícia egípcia em atividades referentes às afirmações apresentadas na investigação. A parlamentar britânica Alicia Kearns, chefe do Comitê de Assuntos Externos do Parlamento, disse à BBC que queria que mais fosse feito para alertar os viajantes LGBT sobre os riscos em países como o Egito, “onde a sua sexualidade pode ser usada como arma contra eles”. “Eu apelaria ao governo egípcio para que suspendesse todas as atividades dirigidas a indivíduos com base na sua orientação sexual”, declarou ela. O governo do Egito não respondeu ao pedido de comentários da BBC. O aplicativo WhosHere foi indicado em quase todas as transcrições policiais a que a BBC teve acesso. Especialistas em privacidade na internet afirmam que o WhosHere aparentemente tem vulnerabilidades específicas, que permitem que hackers extraiam informações sobre seus usuários, como a localização, em larga escala. E que a forma em que o WhosHere coleta e armazena dados provavelmente infringe leis de privacidade no Reino Unido e na União Europeia. Foi apenas quando a BBC entrou formalmente em contato com o WhosHere que o aplicativo mudou suas configurações, removendo a seleção “à procura do mesmo sexo”, que poderia colocar as pessoas em risco de serem identificadas. O WhosHere contesta as descobertas da BBC sobre vulnerabilidades e afirma que tem extenso histórico de combater problemas quando são levantados. E que não opera nenhum serviço específico para a comunidade LGBT no Egito. Já o aplicativo Grindr, que também é usado pela polícia e por criminosos para encontrar pessoas LGBT no Egito, afirma: “trabalhamos extensamente com ativistas LGBTQ no Egito, defensores internacionais dos direitos humanos e especialistas em segurança tecnológica para melhor atender nossos usuários na região”. Gangues de criminosos usam a mesma tática da polícia para encontrar pessoas LGBT. Eles as atacam, humilham e praticam extorsão, ameaçando postar os vídeos online. Consegui encontrar duas pessoas, que vamos chamar de Laila e Jamal. Eles foram vítimas de um vídeo que viralizou no Egito alguns anos atrás. A filmagem os mostra sendo forçados a tirar as roupas e dançar, enquanto são agredidos e sofrem abusos. Laila e Jamal são ameaçados com facas, sendo forçados a fornecer seus nomes completos e admitir sua homossexualidade. Eles contam que a dupla responsável pelo vídeo – Bakar e Yahia – é conhecida na comunidade. Vimos pelo menos quatro vídeos nos quais Bakar e Yahia podiam ser vistos ou ouvidos extorquindo e abusando de pessoas LGBT antes de carregar os vídeos no WhatsApp, YouTube e Facebook. Em um desses vídeos, um homem gay com 18 anos de idade que vamos chamar de Saeed é forçado a afirmar que é um trabalhador do sexo, o que não é verdade. Encontrei-me com ele para saber o que aconteceu em seguida. Ele contou que pensou em entrar na Justiça, mas seu advogado recomendou que não o fizesse, pois sua sexualidade seria percebida como crime – mais do que o ataque que ele sofreu. Saeed agora está afastado da família. Ele conta que eles o abandonaram quando a gangue enviou o vídeo em uma tentativa de também chantageá-los. “Venho sofrendo de depressão depois do que aconteceu, com os vídeos circulando para todos os meus amigos no Egito”, ele conta. “Não saio de casa e não tenho celular. Ninguém costumava saber nada sobre mim.” Soubemos de dezenas de ataques como este, conduzidos por diversas gangues. Existem poucos relatos de criminosos que foram presos. Fiquei surpreso ao saber, durante a investigação, que o líder de uma gangue, Yahia, é homossexual e posta ativamente conteúdo online sobre o seu próprio trabalho sexual. Mas talvez isso dê a ele uma vantagem no crime. Ele sabe como suas vítimas são vulneráveis. E, certamente, sua própria posição, como homem gay com poucas oportunidades, alimenta sua criminalidade. Não temos evidências de que Yahia tenha se envolvido nos ataques mais recentes. Ele negou envolvimento em todos os ataques. Jornalisticamente, cobrir estas questões dentro do Egito é proibido desde 2017, quando o Conselho Supremo de Regulamentação da Imprensa do país proibiu a representação LGBT na imprensa, exceto se a cobertura “reconhecer o fato de que a sua conduta é inadequada”. Os defensores da comunidade LGBT, muitos deles no exílio, estão divididos sobre a questão de se os problemas no Egito devem ser apresentados na imprensa ou combatidos longe dos holofotes. Mas Laila, Saeed, Jamal e Laith preferiram sair das sombras e romper o silêncio. * Com reportagem adicional de Vanessa Bowles, Bettina Waked e Jasmine Bonshor. Para o documentário, a BBC empregou tecnologia inovadora de identificação de rostos e máscaras 3D, garantindo que as identidades dos entrevistados fossem protegidas. O objetivo foi filmar com estética mais atraente do que a técnica comum de borrar os rostos para ocultá-los.
2023-02-03
https://www.bbc.com/portuguese/articles/ck7jmpvk2xmo
sociedade
MrBeast: por que youtuber mais famoso do mundo foi criticado após pagar cirurgia para mil pessoas
O vídeo, que já tem mais de 71 milhões de visualizações, dividiu opiniões — e chegou a ser chamado de "exibicionismo da caridade". O youtuber de 24 anos, cujo nome verdadeiro é Jimmy Donaldson, respondeu pelo Twitter às insinuações de que o vídeo foi feito apenas com fins lucrativos. Segundo ele, os vídeos do MrBeast perderam em média US$ 1,5 milhão no ano passado. Ele também argumentou que o vídeo "gerou conscientização". MrBeast, que recentemente se tornou o youtuber mais popular do mundo com um canal com 131 milhões de assinantes, disse que inicialmente não esperava que tantas pessoas assistissem ao vídeo. Fim do Matérias recomendadas À medida que o número de visualizações aumentava, surgiram dúvidas e preocupações sobre o custo e a falta de acesso a cirurgias oculares em algumas partes do mundo. Algumas pessoas também sugeriram que influenciadores ricos não deveriam ser usados ​​para tentar resolver problemas mais amplos da sociedade e do sistema de saúde. Mas nem todo mundo concordou com as críticas — ele também recebeu elogios pela iniciativa. "Qualquer coisa que coloque em evidência condições oculares tratáveis, como catarata, e forneça financiamento para que as pessoas se submetam a cirurgias para restaurar a visão, deve ser bem-vinda", disse Andrew Hodgson, presidente da Federação Nacional dos Cegos do Reino Unido, ao Newsbeat da BBC. Uma porta-voz da Sightsavers, instituição beneficente internacional, afirmou que eles ficaram "animados ao ver o tema da saúde ocular sendo levado a um grande público". Um usuário do Twitter observou que "o fato de essas pessoas terem necessitado de caridade para obter ajuda evidencia o problema". Outro disse que "pagar para 1.000 pessoas cegas serem submetidas a uma cirurgia ocular é algo bacana, mas usar esse ato de generosidade em conteúdo o transforma em um ato de exibicionismo da caridade deselegante e de mau gosto". O cirurgião Jeff Levinson, que trabalhou para MrBeast, diz no vídeo que "metade de todos os cegos do mundo são pessoas que precisam de uma cirurgia de 10 minutos". O youtuber é conhecido por vídeos com grandes ofertas e prêmios em dinheiro, assim como trabalhos de caridade. Apesar da reação mista, o impacto da iniciativa de MrBeast naqueles que foram operados é visível. "Achei que nunca mais veria de novo", disse um paciente que trabalhava como caixa, mas se viu obrigado a parar de trabalhar quando sua perda de visão se tornou avançada.
2023-02-02
https://www.bbc.com/portuguese/articles/cd1kjjg3zx0o
sociedade
4 fatores que podem determinar a maneira como você fala
O sotaque falado no norte de um país costuma ser diferente do falado no sul. Da mesma forma, em um mesmo país, os sotaques dos moradores de regiões montanhosas costumam ser diferentes dos habitantes do litoral. Em alguns casos, as diferenças podem ser mais sutis. Mas um ouvido acostumado pode reconhecer em uma única frase, por exemplo, de qual região do Brasil é a pessoa que está falando. De onde vêm os sotaques? E como eles mudam? Vamos examinar quatro fatores interessantes que influenciam nossa forma de falar. Nós entendemos os sotaques muito antes do que se pensa. Cientistas do comportamento da Universidade de Helsinque, na Finlândia, descobriram que os bebês podem reconhecer sons externos ainda no útero da mãe. Fim do Matérias recomendadas E os bebês também podem chorar de forma diferente, dependendo da sua língua materna. Em outro estudo, de 2009, os pesquisadores monitoraram o choro de 60 recém-nascidos, sendo 30 franceses e 30, alemães. Eles concluíram que os bebês franceses choravam com tom ascendente, enquanto os alemães choravam com melodia descendente, igualando os padrões de ritmo dos seus idiomas nativos. Os especialistas acreditam que os bebês tentem formar vínculo com suas mães, imitando-as. Mobilidade social é o movimento de pessoas para cima ou para baixo, na escala social. Historicamente, os sotaques se desenvolvem quando grupos de pessoas vivem em relativo isolamento, sem contato com outras pessoas. Usando o aplicativo English Dialects, pesquisadores da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, coletaram dados de sotaques de mais de 30 mil usuários em 4 mil locais do país. Os resultados foram então comparados com uma pesquisa realizada na década de 1950. Eles concluíram que os sotaques regionais parecem estar desaparecendo lentamente, aproximando-se da forma de falar do sul do país, enquanto as formas de falar do norte estão se estendendo pelo Reino Unido. Um estudante de doutorado de Cambridge que trabalhou na análise acredita que o "nivelamento" dos sotaques ingleses pode ser devido à maior mobilidade social. A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirma que a exposição à contaminação do ar, a curto e a longo prazo, pode afetar nossa saúde de diversas formas. O médico e especialista na voz humana Robert Sataloff acredita que fatores ambientais, como a contaminação do ar, podem contribuir com a rouquidão, as mudanças de qualidade e controle da voz e até com a fadiga da voz. Um componente importante dos contaminantes do ar é a queima de combustíveis fósseis, acelerada pela industrialização dos séculos 18 e 19. Segundo o Museu de Londres, os nascidos na capital inglesa nos anos 1800 e 1900 se distinguiam pelo seu linguajar específico, sua aparência enferma e sua baixa estatura. Mas sua voz também teve forte influência e o sotaque dos londrinos foi afetado pela necessidade de respirar pela boca, já que suas fossas nasais eram congestionadas. Nós, seres humanos, somos criaturas inerentemente sociais. Os sotaques nos permitem fazer parte de um grupo e podem aumentar nossa sensação de identidade e pertencimento. Mas, além de criaturas sociais, somos também grandes imitadores. É verdade que a voz muda ao longo da vida, desde a infância, passando pela adolescência e até a velhice. Mas estas podem não ser as únicas vezes em que nossos sotaques se alteram. Em 2010, um estudo da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, concluiu que nós imitamos a fala das pessoas com quem conversamos para aumentar nossa compreensão mútua. Este conceito é conhecido como efeito camaleão: a cópia inconsciente do comportamento dos demais para criar empatia. * Esta reportagem é parte do Hay Festival Cartagena, um encontro de escritores e pensadores realizado na Colômbia entre 26 e 29 de janeiro de 2023.
2023-01-31
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64450673
sociedade
'A culpa é minha se recebo todo dia imagens de homens nus que não pedi?'
A estrela de TV britânica Emily Atack recebe centenas de fotos e mensagens explícitas todos os dias. Ela questiona o que leva os homens a fazerem isso e o que pode ser feito para impedi-los. Todas as manhãs, quando acorda, Emily Atack vê uma foto de um homem nu que ela não pediu para ver. A atriz, apresentadora e comediante, com 33 anos de idade, sente-se enojada centenas de vezes por dia. "É o cúmulo do desrespeito", afirma ela. "É o cúmulo pensar, 'acho que você é fácil e que está a fim." Atack fez um documentário sobre o tema para a BBC. Ela vem recebendo mensagens explícitas nas suas redes sociais há anos, mas a quantidade e o tom das mensagens se intensificaram com a pandemia, ficando sexualmente ainda mais agressivas. "Senti que aquilo simplesmente estava me corroendo aos poucos", ela conta. Fim do Matérias recomendadas Atack tinha 17 anos de idade quando interpretou a personagem Charlotte Hinchcliffe na popular série cômica adolescente The Inbetweeners, do Canal 4 da TV britânica. "Ela era a garota popular da escola", conta a atriz. "A questão é que, sim, é uma personagem de ficção, mas as pessoas claramente associam você às personagens que você representa." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Emily Atack conta que, desde muito jovem, recebe atenção indesejada de parte dos homens. E, para tentar se proteger, ela afirma que seus entes queridos sugeriram a ela mudar seu comportamento, como deixar de usar maquiagem ou saia para ir à escola. "É algo tão fora de controle, a única forma que as pessoas que amam você podem fazer para controlar isso é mudar você", ela conta. "Tudo isso tem algum motivo, então comecei a olhar para dentro de mim. Passei a vida toda me culpando por causa disso." Atack carregou essa sensação de culpa até a vida adulta. "Fico nervosa em levar tudo isso a público porque coloco fotos de biquíni no Instagram, falo sobre sexo nos meus programas e sou muito ousada e irreverente", ela conta. "Haverá pessoas dizendo, 'mas você pediu essa atenção negativa, o que você espera?'" "De fato, você se senta e pergunta: 'é minha culpa? É alguma coisa que estou expressando?'" Atack sempre usou o humor como mecanismo de defesa para tornar as mensagens mais leves, mas ela diz que agora não é mais engraçado. "Se realmente observarmos a seriedade do assunto, as meninas estão no Instagram recebendo mensagens como estas", afirma ela. "O que aconteceria se fosse sua filha, sua sobrinha? É uma discussão mais séria que precisa ser feita quando todos pararem de rir." Uma pesquisa de 2020 concluiu que 76% das meninas com 12 a 18 anos de idade já receberam imagens íntimas não solicitadas de homens adultos ou meninos. Atack conversou com meninas do ensino médio e ficou chocada quando todas elas disseram que já haviam recebido mensagens sexualmente explícitas online. "O que mais me abalou foi que eu esperava que as meninas fossem dizer que eram os meninos da escola que estavam fora de controle nos seus celulares", ela conta, "mas são os homens mais velhos que estão abordando aquelas meninas pela internet." Emily Atack postou uma mensagem nas suas redes sociais pedindo aos homens que enviam mensagens explícitas para ela que explicassem por que fazem isso. "Verifiquei meus e-mails: zero, não recebi resposta alguma", ela conta. "Esses homens passam a vida me bombardeando com abusos, dizendo as coisas mais horríveis e, quando eu respondo e digo, 'bem, gostaria de ouvir você, vamos conversar': nada", afirma ela. "O que realmente recebi foram inúmeras mensagens de mulheres contando o que elas já precisaram enfrentar." Atack afirma que nunca havia discutido os abusos online com seus pais antes. Agora, sua mãe, a comediante Kate Robbins, ficou muito preocupada quando viu uma amostra dos abusos. Ela conta que se preocupa com o impacto psicológico sobre a filha, e com a sua segurança física. As mensagens chegam de muitos homens diferentes, mas o pai de Atack, Keith, comenta como elas quase parecem vir de uma mesma personalidade. Para tentar entender mais sobre as características dessas pessoas, Emily Atack enviou mensagens diretamente para dois homens que enviam regularmente conteúdo explícito para ela, perguntando por quê. Um deles a bloqueou imediatamente após ler a mensagem. O outro respondeu culpando Atack, dizendo que ele estava tentando chamar a atenção e que suas mensagens deviam-se à sua "reputação". Atack conversou com Jamie Klingler, uma das fundadoras do movimento britânico Reclaim These Streets (Recupere estas ruas, em tradução livre), para tentar entender a mentalidade desses homens. Klingler começou a receber imagens explícitas e ameaças de estupro e morte online, depois de organizar uma vigília após o assassinato de Sarah Everard, em outubro de 2021. "A questão não é o que vestimos, não é o que falamos", afirma ela. "A questão é que eles querem silenciar e controlar você e querem ter poder para fazer você sentir que eles têm um pedaço de você." Atack conversou com a professora Jane Monckton-Smith, que pesquisa sobre a prevenção do homicídio - atos que podem levar à morte de outra pessoa. Ela afirma que os padrões de violência contra as mulheres aumentam de algo que parece pequeno até o abuso sexual grave. Por isso, ela recomenda sempre denunciar o abuso online à polícia, para que o nome do indivíduo fique registrado. "O estupro não é a primeira agressão, o homicídio não é a primeira agressão", afirma Monckton-Smith. "Haverá sinais, comportamentos e padrões antes que eles cheguem a este ponto, mas a maioria dos sinais, padrões e alertas serão defendidos, desculpados, justificados e alguma culpa será colocada sobre a vítima." Depois da conversa com a professora, Emily Atack passou a denunciar os abusos online à polícia - e percebeu que fica muito afetada quando descreve os abusos. Um policial afirmou que eles poderiam rastrear os homens se outras pessoas denunciassem abusos - e que eles podem tomar ações se o comportamento envolver ações de perseguição (stalking). Mas, depois que os policiais saíram, Atack sentiu um conflito interno para definir se, realmente, ela quer que alguém seja preso. "Preciso que eles simplesmente reconheçam que o que fizeram é errado, para poder tirar a culpa de mim", ela conta. Em 2021, Emily Atack deu uma palestra no Parlamento britânico, contando suas experiências de abuso. E o projeto de Lei de Segurança Online passou a incluir uma nova infração - o cyberflashing, que é o envio de fotos obscenas e não autorizadas por meios eletrônicos. A pena é de até dois anos de prisão. O projeto de lei foi aprovado pelos parlamentares britânicos em janeiro de 2023 e agora segue para a Câmara dos Lordes. Emily defendeu esta lei, mas agora ela se pergunta se mudar a lei, simplesmente, é a solução. A ativista sobre segurança online Seyi Akiwowo afirma que a lei pode ajudar, mas a educação tem um papel fundamental, bem como a mudança das normas sociais. "Realmente precisamos dar um passo atrás e perguntar 'de onde está vindo essa contenção?'", afirma ela. "E, realmente, ela está mudando o comportamento dos homens. Ela está fazendo com que eles entendam o que é um relacionamento saudável. Está fazendo com que eles entendam o que é o consentimento." Andrea Simon, diretora do grupo End Violence Against Women (Fim da violência contra mulheres, em tradução livre), concorda que a sociedade precisa parar de colocar a culpa nas mulheres. "Tudo é direcionado às mulheres e ao seu comportamento e isso é algo imenso que precisa mudar", acrescenta. Emily Atack afirma que confrontar o abuso que ela sofre online foi uma das coisas mais difíceis que já fez. Ela passou por terapia por todo o processo, que fez com que ela revisitasse traumas do passado. "Coisas pelas quais passei e que normalizei por toda a minha vida, quanto mais eu falo sobre elas, mais eu percebo que não devia ter aceitado - nem na época, nem hoje", ela conta. "Ainda estou aprendendo, ainda estou trabalhando em mim mesma e sempre estarei." "Não vou mudar o que estou fazendo porque sofro abuso sexual todo o tempo. Não é o nosso comportamento que precisa mudar, é o deles", afirma Atack. "Eu não devo me culpar por isso."
2023-01-31
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64410529
sociedade
'Quase aniquilação': o massacre de Bear River, um dos piores contra indígenas da história dos EUA
Quando os antepassados de Brad Parry viram os cavalos descendo a colina, eles relembraram a primeira vez em que observaram uma locomotiva em funcionamento. Isso porque, naquela manhã gelada, à distância, chamava a atenção o vapor produzido pela respiração dos soldados e seus cavalos. É certo que havia tensões com o exército, mas os líderes da tribo não acreditavam que a mobilização seria uma ameaça para o seu povo. Eles orientaram as mulheres e idosos que se encontravam nas tendas para que não se levantassem e voltassem a dormir, como faziam as crianças. Mas eles logo descobririam que a intenção dos soldados não era de dialogar e rapidamente deram orientação para escaparem. O que se seguiu foi um dos capítulos mais dolorosos da história dos povos originários norte-americanos. O dia 29 de janeiro de 1863 marcou o que hoje é conhecido como o massacre de Bear River. Estimativas indicam que mais de 300 nativos morreram no massacre. Deles, 90 eram mulheres e crianças. Fim do Matérias recomendadas "Eles agarravam as crianças pequenas pelas pernas como se fossem coelhos e batiam a cabeça delas contra o solo", conta Elva Schramm, descendente de um dos caciques. "Foi assustador, o objetivo era matar e durou quatro horas", segundo Brad Parry. Parry é vice-presidente do Conselho do grupo do noroeste da nação Shoshone (Northwestern Band of the Shoshone Nation). Ele contou à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC) o que chegou até nós sobre esse dia por meio da tradição oral. Existem registros militares, mas sua avó Mae Timbimboo Parry foi fundamental para que conhecêssemos o ponto de vista dos shoshones. "Ela foi a primeira a reunir essas histórias. Ela as escreveu e depois divulgou ao público", afirma a professora Molly Cannon, da Universidade do Estado de Utah, nos Estados Unidos, onde trabalha como diretora do Museu de Antropologia. A tragédia ocorreu perto do rio Bear, onde hoje fica o Estado de Idaho, no noroeste do país. "É triste que o maior massacre de nativos americanos da história dos Estados Unidos não seja realmente conhecido", afirma Darren Parry, ex-presidente do grupo do noroeste da nação Shoshone, no documentário Remembering Bear River: Tragedy for Idaho's Shoshone Tribe ("Recordando Bear River: tragédia para a tribo Shoshone, de Idaho", em tradução livre"), apresentado pela PBS, o serviço público de rádio e televisão dos Estados Unidos. Inicialmente, o ocorrido foi descrito como uma "batalha" entre o exército e os guerreiros shoshones. Mas Cannon destaca que Mae Parry fez com que essa definição fosse questionada. "Essa ideia de que se tratou de uma batalha perdurou por muito tempo na nossa história e na mente dos norte-americanos, mas acredito que a narrativa esteja lentamente desmoronando, em grande parte graças ao trabalho dos grupos tribais", segundo a antropóloga. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Para Brad Parry, esta é uma história que foi mantida em "silêncio" por mais de 100 anos. Muitas pessoas que moravam perto daquela região preferiram não se aproximar, enquanto outras "não quiseram escrever sobre uma matança de mulheres, crianças e idosos". Além disso, o massacre ocorreu durante a Guerra Civil Americana (1861-1865) e a maioria dos jornalistas estava cobrindo os acontecimentos do conflito no leste do país. E, quanto aos nativos americanos, "não sabíamos escrever, só podíamos contar [verbalmente] o que havia acontecido", afirma Parry. Mas tudo mudou graças a Mae Parry, avó de Brad, que, segundo ele, "foi uma estudante excepcional". "Sua educação foi extremamente boa", afirma ele. "Ela escrevia e falava muito bem e, quando se formou no ensino médio, seu avô ainda estava vivo. Ela então começou a escrever o que ele contava." Os testemunhos dele e de outros sobreviventes alimentaram o registro histórico dos shoshones sobre o acontecido naquele trágico dia. "Somente nas décadas de 1980 e 1990, minha avó começou a insistir na mudança do nome da 'Batalha de Bear River' para 'massacre de Bear River'", conta Brad Parry. "Ela enfrentou o exército dos Estados Unidos, foi ao Congresso e se reuniu com todas essas pessoas para conseguir o verdadeiro reconhecimento dos fatos." O episódio não pode ser observado como um fato isolado. No século 19, os shoshones e outras tribos tiveram suas terras invadidas por colonos e grupos de mórmons, além de enfrentarem garimpeiros em busca de ouro. O massacre foi "o ápice de quase duas décadas de incidentes que surgiram da interação entre índios e brancos", segundo a editora da Universidade de Utah na apresentação do livro The Shoshoni Frontier and the Bear River massacre ("A fronteira shoshone e o massacre de Bear River", em tradução livre), do historiador Brigham Madsen. "A terra-natal dos shoshones englobava uma grande extensão de território e foi atravessada pelas principais rotas de viagem no oeste, o que fez com que houvesse encontros entre índios e brancos", ele conta. "Inicialmente, [os nativos] foram amigáveis e complacentes com os viajantes brancos na década de 1840, [mas] no final da década de 1850, o ressentimento se agravou entre os índios quando houve assassinatos e suas reservas de alimentos foram consumidas pelos imigrantes e seus animais." Michael Andersen é o autor do estudo Bear River Massacre and the Ethical Implications for Large Scale Combat Operations ("O massacre de Bear River e as implicações éticas para operações de combate em larga escala", em tradução livre), publicado pelo Centro Simons para a Liderança Ética e Cooperação Interinstitucional, uma organização dedicada, entre outros temas, a pesquisar sobre assuntos de segurança nos Estados Unidos. O autor destaca que, embora se costume considerar os sioux e os apaches como "as tribos mais violentas daquele período da história norte-americana, de fato, os shoshones foram responsáveis por mais ataques a colonos e viajantes, em comparação com outras tribos". No dia 6 de janeiro de 1863, a tensão aumentou quando um grupo de viajantes que transitava pelo vale Cache relatou que um dos seus membros havia sido assassinado e que seu gado havia sido roubado. Um dos viajantes forneceu às autoridades uma declaração juramentada que fez com que um juiz emitisse ordem de prisão contra três líderes shoshones. Foi solicitada a assistência do coronel irlandês Patrick Connor, que dirigiu a expedição militar ao vale Cache, onde havia um assentamento shoshone perto do rio Bear. "Todos os anos, no inverno, nós íamos até lá e nos reuníamos com outras nações shoshones que vinham de outras partes", segundo Brad Parry. A região é chamada de "casa dos pulmões". Nela, seus antepassados encontravam recursos e fontes termais com propriedades curativas. "Era um lugar espiritual sagrado, mas também brincávamos, fazíamos corridas e havia prêmios. Muitas vezes, você conhecia seu cônjuge e havia casamentos. Era como um grande encontro familiar", ele conta. "Em janeiro, começava o que chamamos de dança quente, para ajudar a Mãe Terra e o grande espírito a trazer a primavera", segundo ele. As famílias dos outros grupos shoshones começavam a voltar para os seus territórios. "Nosso pequeno grupo, do noroeste, ficava ali porque éramos os anfitriões", afirma Parry. "Pouco antes de 29 de janeiro, os jovens e os homens mais fortes foram buscar comida, caçando cervos ou alces para passar o resto do inverno." "Muito poucos guerreiros" ficaram no acampamento e, quando o chefe shoshone Sagwitch viu os soldados descendo a colina em cavalos, falou com os outros líderes da tribo. "Ele disse: 'vamos ver o que querem, se precisam prender alguém, seguiremos as regras'. De forma geral, eles tentavam, entre os líderes, negociar uma saída." Para Brad Parry, era evidente que os shoshones não queriam o combate: "eles tinham mulheres, crianças e anciãos nas tendas". Segundo Andersen, Sagwitch deu ordens de "não disparar contra o exército", pois achava que só estavam interessados nas prisões e "logo iriam embora". A antropóloga Cannon ressalta que os colonos europeus e o exército sabiam que, naquele assentamento, estariam "todos os membros" daquele povo shoshone e não apenas "guerreiros". Connor dirigiu cerca de 300 soldados. "Eles cavalgaram até o acampamento, enquanto nós tínhamos nossa primeira linha de defesa", segundo Brad Parry. E o enfrentamento começou. Quando os shoshones ficaram sem munição, "a batalha terminou e começou o massacre de homens, mulheres e crianças", afirma Andersen, com base nos testemunhos coletados no seu estudo. "Várias indígenas foram assassinadas porque não se submeteram silenciosamente a serem violentadas e outras foram violentadas na agonia da morte", segundo contou um mórmon da região. Parry indica que houve testemunhas que viram os soldados "agarrarem crianças pequenas pelas tranças e fazê-las rodopiar até romper o couro cabeludo". Os líderes e os homens da tribo trataram de manter os soldados no sul, "para que o nosso povo pudesse escapar pelo norte, mas o coronel percebeu e destacou suas tropas pelo norte, sobre uma colina. Eles começaram a atirar e todas as pessoas precisaram correr em direção ao sul", ele conta. Brad Parry conta o caso de Anzie Chee, uma mulher que conseguiu escapar, mesmo ferida. Ela saltou com seu bebê para uma parte do rio que não estava congelada e se escondeu em uma das margens. Ali, ela percebeu que havia outras mulheres. "Mas seu bebê começou a chorar...", ele conta. "Ela precisou soltá-lo. O bebê se afogou para poder salvar todas as outras pessoas." Sagwitch ficou ferido e flutuava no rio até que "um amigo branco o ajudou" e ele sobreviveu. Seu filho Yeager Timbimboo (avô de Mae Parry) tinha cerca de 14 anos de idade. Junto com sua avó, ele se deitou sobre o solo gelado e eles fingiram estar mortos. "Não abra os olhos, não olhe para cima", sussurrou a avó. Mas o menino logo desobedeceu. "Um soldado percebeu, aproximou-se e colocou uma pistola na sua cabeça, sem disparar. Ele retirou a arma e voltou a apontá-la. Riu e foi embora", conta Brad Parry. Yeager cresceu com essas recordações. Ele e outros sobreviventes não queriam que elas desaparecessem. "Todos os invernos, eles se reuniam e contavam a história do massacre. Eles pegavam uma folha de uma árvore, dobravam e abriam furos com um prego: 'assim ficaram nossas tendas', diziam eles." Outras foram queimadas. Depois que os soldados foram embora, "os membros da comunidade branca do condado de Franklin [Idaho] correram até os índios para ajudá-los. Muitos foram assistidos muito bem no assentamento. Balas foram retiradas, feridas foram tratadas, crianças foram adotadas." Foram 25 os soldados que morreram, mas calcular com precisão o número de mortes entre os shoshones ainda é difícil. Os soldados contaram 224 corpos, mas deixaram claro que este não era o número total. O imigrante dinamarquês Hans Jasperson indicou na sua autobiografia de 1911 que, depois de percorrer o acampamento, contou 493 shoshones mortos. "Dei meia volta, voltei a contar e cheguei ao mesmo número", escreveu ele, segundo o jornal Salt Lake Tribune. Brad Parry afirma que os membros da comunidade próxima que ajudou as vítimas contaram 368 mortos. "Nós estimamos que morreram 350 a 500 pessoas", segundo ele. "Nosso grupo [os shoshones do noroeste] provavelmente tinha cerca de 650 integrantes. Eles nos deixaram com cerca de 125 pessoas." "Nossa tribo ainda não superou 600 membros desde então. Acredito que sejamos agora cerca de 578 ou 580. É o número mais alto que atingimos há muito, muito tempo", ele conta. "Ainda não recuperamos os números anteriores ao massacre", afirma Brad Parry. "Foi quase uma aniquilação completa, fomos tão dizimados que levamos 160 anos para voltar à mesma população." Antes de irem embora, os soldados se apropriaram dos cavalos, "saquearam o acampamento, roubaram a carne, os grãos e nos deixaram sem nada". E, territorialmente, aqueles shoshones sentiam que não tinham para onde ir. Ao refletir sobre a matança de nativos americanos no século 19, o historiador militar Jonathan Deiss declarou à jornalista Dana Hedgpeth, do jornal The Washington Post, que, naquela época, "as pessoas achavam que os índios realmente não eram humanos, de forma que era fácil justificar sua matança ou maus tratos". Com essa percepção desumanizadora dos nativos americanos, segundo Cannon, "os massacres não pareciam massacres, mas sim ações militares, parte de um processo de ocupação e expansão". De fato, ao regressar, o coronel Connor foi elogiado pelos seus superiores e promovido a general de brigada. E, um ano depois, foi solicitado seu assessoramento para lidar com um acampamento da tribo arapaho e dos cheyennes no Estado norte-americano do Colorado. "O coronel [John] Chivington usou uma estratégia similar - um ataque no inverno, de manhã cedo - e massacrou 130 homens, mulheres e crianças", afirma Andersen. Já se passaram 160 anos do massacre de Bear River e, todos os anos, os shoshones recordam o inverno em que suas terras se tingiram de vermelho. Para eles, os espíritos dos mortos continuam ali.
2023-01-31
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64420247
sociedade
'Liberdade religiosa ainda não é realidade': os duros relatos de ataques por intolerância no Brasil
Um pai de santo celebrava um culto em um terreiro de candomblé em Vitória da Conquista, na Bahia, quando, na noite de 24 de janeiro de 2022, começou a ouvir, em altíssimo volume, frases como "Jesus Salva!". Do lado de fora, um homem, que se declarou evangélico, acabara de estacionar um carro de som para interromper a cerimônia e tentava "exorcizar" quem chegava ao local. Indignado, o líder religioso registrou um boletim de ocorrência e fez uma denúncia à Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia. Três meses depois, em 25 de abril, uma jovem de 16 anos foi agredida em uma escola municipal de Joinville, em Santa Catarina, após dizer que era praticante de umbanda, religião de matriz africana. Segundo a mãe da adolescente, que é mãe de santo e registrou um boletim de ocorrência, sua filha conversava sobre religião com um colega de turma quando outra aluna ouviu e, entre outras ofensas, disse que a estudante "cultuava o demônio". Em 2 de novembro, uma mãe de santo foi impedida de entrar em um hospital estadual na cidade do Rio de Janeiro para atender um paciente na UTI. Segundo ela, que dirige um terreiro de candomblé em Guapimirim, na Baixada Fluminense, os funcionários alegaram que a família não teria autorizado sua entrada. Fim do Matérias recomendadas Depois de esperar por cerca de seis horas do lado de fora, a mãe de santo registrou um boletim de ocorrência e denunciou o caso à Comissão de Combate à Discriminação da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Uma lei federal de 2000 assegura o livre acesso de líderes religiosos aos hospitais da rede estadual e privada atender pacientes. "Os ataques estão sempre rondando o povo do axé", lamenta Ana Paula Santana de Souza, conhecida como Iya Paula de Odé, mãe de santo que foi impedida de entrar em um hospital de Marechal Hermes, na Zona Norte do Rio, para fazer um ritual em Jerônimo Rufino dos Santos Júnior, de 39 anos, que sofreu um AVC em 31 de outubro e morreu cinco dias depois. "Implorei ao segurança para conversar com o diretor de plantão, mas não adiantou. O racismo religioso foi nítido quando minha advogada conseguiu entrar na unidade e eu, não. Isso não teria acontecido se fosse outro segmento religioso." Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O número de denúncias de intolerância religiosa no Brasil aumentou 106% em apenas um ano. Passou de 583, em 2021, para 1,2 mil, em 2022, uma média de três por dia. O Estado recordista foi São Paulo (270 denúncias), seguido por Rio de Janeiro (219), Bahia (172), Minas Gerais (94) e Rio Grande do Sul (51). A maior parte foi feita por praticantes de religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé. Seis em cada dez vítimas são mulheres. Só nos primeiros 20 dias de 2023, o Disque 100, canal para denúcias de violações de direitos humanos, registrou 58 ocorrências. "A intolerância religiosa, assim como o racismo, está, desde o período colonial, atrelada à história da formação da sociedade brasileira. Atualmente, faz parte das relações sociais cotidianas", afirma Ivanir dos Santos, doutor em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR). "A liberdade religiosa, assegurada na Constituição, ainda não é uma realidade. Na década de 1980, os ataques, principalmente no Estado do Rio, passaram a ser praticados pelo poder paralelo, que proibia o funcionamento de templos religiosos de matrizes africanas dentro das favelas." Mas o número de casos de intolerância religiosa no país pode ser maior do que o registrado pelo governo federal, aponta Nilce Naira do Nascimento, a mãe Nilce de Iansã, coordenadora nacional da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro). Em julho de 2022, a entidade divulgou o relatório "Respeite o Meu Terreiro — Mapeamento do Racismo Religioso Contra Os Povos Tradicionais de Religiões de Matriz Africana", que ouviu lideranças de 255 comunidades tradicionais de terreiros, no qual 78% dos entrevistados relataram que membros de suas comunidades já sofreram algum tipo de violência, física ou verbal, por racismo religioso. "Todos nós já fomos discriminados. Muitos nos olham como se fôssemos de outro planeta. Somos sempre apontados, seja por nossa indumentária, seja por nossos guias, que usamos para nossa proteção. Somos uma tradição de matriz africana. A maioria do nosso povo é formada por negros e negras. Isso incomoda. Mas, não deixo de fazer nada por causa do racismo religioso. Incentivo a quem sofreu violência a ir à delegacia e denunciar. O Estado é laico, e isso tem que ser respeitado", afirma. "Nasci e me criei dentro de terreiro. Nossas portas estão abertas para qualquer pessoa. Somos um espaço de acolhimento e escuta, que não discrimina ninguém. Lutamos para construir uma cultura de paz. Esse espaço sagrado merece respeito." No ambiente virtual, o número de casos de intolerância religiosa quintuplicou em um ano. Segundo levantamento da Safernet, ONG que mantém uma central de denúncias de violações contra direitos humanos, como racismo, misoginia e xenofobia, os ataques online saltaram de 614, entre janeiro e outubro de 2021, para 3,8 mil, no mesmo período de 2022, um crescimento de 522%. "É importante denunciar toda e qualquer manifestação que ataque ou incite violência contra pessoas ou grupos em razão de sua orientação religiosa. As autoridades precisam ser provocadas para tomar providências e investigar os casos", explica Juliana Cunha, diretora de projetos especiais da Safernet. O advogado Arnon Velmovitsky, presidente da CCIR-OAB-RJ, explica que a Constituição garante a todo cidadão o direito de escolher sua religião e, também, o direito de culto, ou seja, de exercer sua religião plenamente. Em caso de intolerância religiosa, isto é, da invasão de terreiros, da interrupção de cultos e do vandalismo de imagens, a vítima deve procurar uma delegacia especializada em crimes raciais e delitos de intolerância e registrar um boletim de ocorrência. É importante reunir provas, fotos ou vídeos e testemunhas para viabilizar a punição do agressor. "Entendo que a educação ainda é o melhor caminho, mas não é o único. Vamos lançar uma cartilha para conscientizar a população. Além disso, é indispensável ter leis com penas mais severas e multas de valor elevado para inibir essa prática maléfica." Nem mesmo famosos escapam ilesos da ira de fanáticos religiosos. Em 9 de julho, a atriz Cleo e o empresário Leandro D'Lucca renovaram seus votos de casamento em uma cerimônia realizada pelo babalorixá Paulo de Oyá. "Abençoados no axé", escreveu ela em seu perfil no Instagram. Logo, alguns seguidores começaram a postar mensagens preconceituosas. Uns disseram que Cleo estava "cega". Outros lamentaram que estivesse "desviada de Jesus". "Intolerância religiosa mata!", desabafou a atriz nas redes sociais. "Foi um turbilhão de sensações: medo, impotência, desrespeito, incredulidade... Não foi a primeira vez, mas foi a de maior proporção. Estava ali celebrando algo, renovando os meus votos de casamento, e algumas pessoas se aproveitaram disso para destilar ódio e preconceito", lamenta Cleo. "Recomendo substituir o ódio por pesquisa e o preconceito por leitura para entender melhor sobre religiões de matriz africana. Precisamos aprender a respeitar o diferente para avançarmos como sociedade. Vivemos em um Estado laico. As pessoas têm o direito de professar sua fé. E a obrigação de respeitar." A intolerância religiosa não é um fenômeno recente no Brasil. Em outubro de 1999, Gildásia dos Santos, a mãe Gilda de Ogum, teve uma foto sua, com trajes de candomblé e uma oferenda aos pés, publicada em uma reportagem do jornal Folha Universal, da Igreja Universal do Reino de Deus, que acusava religiões de matriz africana de praticar charlatanismo. "Macumbeiros charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes", dizia o título da matéria. Em poucos dias, a vida de mãe Gilda de Ogum virou um inferno. Ela teve seu terreiro invadido e suas imagens depredadas. Os vândalos ainda agrediram física e verbalmente a fundadora do Ilê Axé Abassá de Ogum. Aos 65 anos, ela sofreu um infarto e morreu em 21 de janeiro de 2000. Sua filha, Jaciara Ribeiro dos Santos, processou a Universal, que foi obrigada a publicar uma retratação no seu jornal e a pagar, em setembro de 2008, uma indenização de R$ 145,2 mil por danos morais e uso indevido de imagem à família de mãe Gilda. Em sua memória, 21 de janeiro virou o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. "O Brasil sempre teve uma noção frágil de laicidade. O sistema de crenças dos 5 milhões de pretos e pretas escravizados no Brasil sempre foi satanizado pelos colonizadores portugueses", diz Sidnei Nogueira, o Sidnei de Xangô, doutor em Semiótica pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Intolerância Religiosa (Jandaíra, 2020). "Intolerância tem a ver com desrespeito. É quando um determinado grupo toma sua religião como superior à dos demais e não respeita a do outro. Estamos vivendo um momento de fanatismo religioso." Em junho de 2015, outro caso de intolerância religiosa ganhou repercussão nacional. Na noite do dia 14, a estudante Kayllane Coelho Campos, então com 11 anos, foi atingida por uma pedra ao sair de um culto de candomblé na Vila da Penha, na Zona Norte do Rio. A pedra foi arremessada por dois jovens que estavam em um ponto de ônibus. Segundo a família da vítima, os agressores conseguiram fugir. Três dias depois, a caminho do Instituto Médico Legal (IML) para fazer exame de corpo de delito, a garota, acompanhada da avó, que é mãe de santo, voltou a ser atacada. "Vai queimar no inferno!", gritou um homem que passava pelo local. "Guardo duas lembranças daquele dia: primeiro, o sangue sujando minha roupa branca e o desespero de não poder fazer nada", observa Kayllane, hoje com 18 anos. "De lá para cá, a situação só piorou. Está cada vez mais difícil conviver com pessoas que não respeitam as diferenças e, pior, não seguem a Bíblia que diz: 'Amarás ao teu próximo como a ti mesmo'. Acho que, com leis mais severas, elas pensariam duas vezes antes de cometer qualquer ato de intolerância religiosa." A intolerância religiosa deixa cicatrizes, não só físicas, como psicológicas. Durante muito tempo, Kayllane, que tem mãe evangélica e avó mãe de santo, teve medo de sair de branco às ruas. "Toda intolerância religiosa é uma violência, toda violência gera trauma, e todo trauma afeta, com maior ou menor intensidade, a saúde psíquica de um indivíduo", explica a psicóloga Tânia Jandira Rodrigues Ferreira, que presta atendimento a vítimas de intolerância religiosa. "O Brasil é um país de maioria cristã que sempre foi intolerante com as religiões não cristãs. Já fomos chamados de charlatães, curandeiros e histéricos. Como dar um basta à intolerância religiosa? A educação é o melhor caminho. É preciso educar para a paz."
2023-01-30
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64393722
sociedade
Como é ser barriga de aluguel para bebês de celebridades
Cada vez mais celebridades estão usando barrigas de aluguel para ter filhos e falando abertamente sobre isso. É o caso de famosos como Naomi Campbell, Elon Musk, Kim Kardashian e Paris Hilton. Mas como é ser barriga de aluguel de uma celebridade? A americana Shanna St.Clair foi mãe de aluguel duas vezes e teve duas experiências muito diferentes. O telefone de Shanna tocou. Era Catherine*. Ela começou falando sem nem mesmo dizer oi: "Ouça, eu queria te contar antes que você visse no noticiário. Eu estava usando outra barriga de aluguel e ela acabou de dar à luz". Shanna sentou-se, chocada. Ali estava ela, nas primeiras semanas de gravidez, com o filho de Catherine na barriga. Mas Catherine agora dizia que tinha outro filho. Shanna não foi a única mãe de aluguel contratada de Catherine. O que significava isso? Catherine ainda ia querer o bebê que Shanna estava carregando? "Eu preferia que você tivesse me contado", Shanna disse, atordoada. "Podemos conversar depois do meu check-up amanhã?" Fim do Matérias recomendadas Catherine concordou e desligou. Shanna mandou uma mensagem para Catherine horas depois. "Fiquei um pouco surpresa com a notícia, mas estou muito feliz por você. Aproveite seu bebê. Vamos conversar depois do meu check-up." Catherine não respondeu. E também não ligou no dia seguinte. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Shanna descobriu o mundo das barrigas de aluguel lendo uma revista, enquanto seus três filhos brincavam na fazenda da família na zona rural da Pensilvânia. Ela ficou encantada. O artigo falava bem das barrigas de aluguel, dizendo que era uma benção para pais solteiros, casais inférteis e famílias LGBT que queriam seus próprios filhos biológicos, mesmo se era feito por dinheiro. Mas ele não falava da disparidade de poder e riqueza entre pais e as mulheres que fazem a gestação de substituição — e dos problemas que isso pode causar. Shanna gostou da ideia. Ela tinha acabado de completar 30 anos com três gestações fáceis. Ela e o marido não queriam mais filhos. "Eu poderia ser uma portadora gestacional", pensou ela. Para ingressar em uma agência de barriga de aluguel, Shanna e seu marido preencheram dezenas de questionários. Eles foram avaliados por psicólogos e médicos e tiveram diversas reuniões com advogados, diz Shanna. Algumas semanas depois, ela recebeu uma ligação. Um casal de celebridades, Jennifer e Mark, havia visto o seu perfil e queriam encontrá-la em Nova York. Shanna sentiu uma conexão imediata com o casal. "Eles eram pessoas gentis", diz ela. "Eles se esforçaram para entender minha vida, para conhecer meus filhos." O pagamento a Shanna cobriria viagens para a clínica de fertilização in vitro, hotéis, combustível, comida e qualquer renda que ela perderia em seu emprego como cabeleireira durante a gravidez. Ao longo de três anos, ela recebeu US$ 50 mil (cerca de R$ 250 mil). Foram várias tentativas para engravidar. Quando ela deu à luz, Jennifer e Mark estavam no parto, seguraram sua mão, chorando enquanto a agradeciam por sua nova família. Meses depois, quando Jennifer ligou para perguntar se poderia apresentá-la a Catherine, Shanna concordou. Catherine era de uma família famosa. Ela vinha tentando ter um filho havia anos, com e sem barriga de aluguel. Depois de ouvir sobre a experiência bem-sucedida de Jennifer, ela quis falar com Shanna. "Pensando hoje, havia sinais de alguma coisa preocupantes desde aquela primeira conversa telefônica", diz Shanna. Catherine sugeriu que elas evitassem uma agência de barrigas de aluguel para economizar dinheiro. Em vez disso, um contrato foi redigido por advogados, lembra Shanna. "Ela disse que como eu já havia passado por uma avaliação psicológica em minha experiência com Jennifer, não precisava fazer outra." Shanna concordou em fazer três tentativas. Primeiro, houve um processo em que a barriga de aluguel e a doadora de óvulos sincronizam seus ciclos menstruais, usando injeções diárias de hormônio. Então Shanna e seu marido viajaram para conhecer Catherine pessoalmente, na clínica de fertilização in vitro, onde o óvulo fertilizado seria colocado no útero de Shanna. Catherine estava esperando por eles. Shanna foi abraçá-la, mas Catherine se afastou. Ela não gostava de abraços. Ela disse a Shanna que ficaria com ela para a transferência do óvulo, mas teria que sair logo depois, conta Shanna. Seu motorista os levaria de volta ao hotel. Shanna pensou consigo: "Isso vai ser bem diferente da experiência com Jennifer e Mark." A primeira tentativa de gravidez não funcionou. Na noite anterior à segunda, Catherine convidou Shanna e seu marido para jantar e ficou falando sobre jatos particulares e móveis de grife. Shanna se sentia desconfortável com a situação: ela vestia leggings pretas e um moletom comum em um restaurante luxuoso. Ela percebeu que não tinham nada em comum. No dia seguinte, na clínica de fertilidade, Catherine estava segurando um frasco de comprimidos e sugeriu que a primeira tentativa teria fracassado por Shanna estar nervosa. Ela deu a Shanna um comprimido de Valium, um calmante. "Não, obrigada", respondeu Shanna. Mas Catherine insistiu. "Ela ficava dizendo: 'Qual é o problema, Shanna? Uma pílula não vai te machucar', e eu senti que não podia discutir", diz Shanna. Shanna colocou o comprimido na boca, e depois o cuspiu discretamente quando Catherine não estava olhando. Novamente, Shanna não engravidou. Restava uma tentativa. Desta vez, quando se encontraram na clínica, Catherine estava ao telefone com a mãe, discutindo sobre o design de interiores de uma de suas casas. Ela mal falava com Shanna. Dez dias depois, boas notícias. Os níveis de hCG de Shanna — um hormônio produzido pela placenta — indicavam uma gravidez positiva. "Fiquei feliz", diz Shanna. Catherine, por outro lado, não demonstrou nenhuma emoção. Ela disse que não queria se deixar entusiasmar demais porque já tinha passado por um caso em que uma barriga de aluguel tinha engravidado e, depois, sofrido um aborto. Shanna disse: "Sinto muito, eu não sabia que isso tinha acontecido." "Foi culpa dela", foi a resposta de Catherine. Shanna diz que Catherine contou que a barriga de aluguel havia esperado 12 horas em um aeroporto por um voo para visitar seu pai, que estava doente. Shanna conta que ficou pasma com o comentário seguinte de Catherine: "Eu disse a ela para não viajar, mas ela viajou, e olha o que aconteceu!... Bebê morto." Alguns dias depois, os níveis de hCG de Shanna caíram ligeiramente, mas um médico disse a ela para não perder a esperança. Ela ligou para Catherine, que respondeu friamente: "OK, vamos ver como vai ser." Logo depois disso, Catherine ligou para Shanna com a notícia chocante de que outra barriga de aluguel havia acabado de dar à luz um bebê. E ficou em silêncio. Shanna continuou com seus check-ups regulares, dirigindo por mais de uma hora até uma clínica, sem saber se Catherine ainda queria o bebê. Então, quatro semanas depois, ela foi informada de que seus níveis de hCG haviam caído muito. Ela teve um aborto espontâneo. Shanna ligou para Catherine, que não atendeu, então ela mandou uma mensagem para contar a triste notícia. Horas depois, Catherine respondeu: "Eu ligo para você em breve." Vários dias depois, ela ainda não havia ligado. Então Shanna mandou uma mensagem para ela novamente. "Oi, espero que você e o bebê estejam bem. Devo encaminhar o restante das contas para você?" Em seguida, Catherine mandou uma mensagem de texto. "Shanna, nosso relacionamento acabou", disse ela. "Estou chocada com sua frieza sobre o nascimento do meu filho. Encaminhe suas contas." Shanna e Catherine nunca mais se falaram. Meses depois, a mãe de Shanna ligou para dizer que Catherine estava na TV. "Shanna, ela está detonando você!", disse a mãe. Catherine fazia comentários depreciativos sobre mães de aluguel, inclusive sobre as mulheres que abortaram seus óvulos fertilizados. Depois de tudo o que passou, Shanna não aguentou e caiu no choro. Aria Simuel, que dirige a Modernly, uma agência VIP de barriga de aluguel na Califórnia, diz que "hoje, as celebridades são mais abertas sobre o uso de barrigas de aluguel, que já vem acontecendo há muito tempo". Ela e sua sócia também foram mães de aluguel. "Quando uma pessoa famosa chega com gerentes, assistentes, chefe de segurança, isso pode ser muito intimidador para uma mãe de aluguel ", diz ela. Boas agências administram o relacionamento, diz Aria, verificando se a mãe de aluguel está confortável e defendendo-a se necessário, além de fazer verificações de antecedentes e avaliações psicológicas. Houve casos em que a barriga de aluguel também passou dos limites, ela acrescenta, tentando vender ideias de reality shows para os pais biológicos ou perguntando se eles poderiam ajudar um primo que quer ser cineasta. Os contratos devem deixar claro que isso "não faz parte do negócio", diz Aria. Quatro anos depois de sua experiência com Catherine, a antiga agência de Shanna perguntou se ela estaria disposta a ser apresentada a outro casal. Depois de conhecê-los e gostar deles, ela concordou em trabalhar pela última vez. Desta vez, ela deu à luz gêmeos. "Acho que precisava de algo bom para mudar a experiência horrível com Catherine", diz Shanna. "Eu tive duas lindas experiências de barriga de aluguel e uma que foi terrível." Hoje, Shanna administra um salão de beleza na sua cidade. Ao som do secador de cabelos, suas clientes conversam com ela sobre fofocas locais e de celebridades, e muitas vezes a conversa recai sobre fertilidade e família. "Toda semana eu falo com pessoas que estão tentando ter filhos, que acabaram de ter filhos, que perderam bebês, que não podem ter filhos, que dizem que nunca querem ter filhos, que querem tentar qualquer maneira de ter filhos", conta Shanna. "Ser mãe de aluguel não é para todo mundo. Mas em um assunto tão pessoal, se todos os envolvidos estiverem felizes e fortalecidos, não devemos julgar as escolhas de outras pessoas." * Todos os nomes dos pais biológicos foram alterados
2023-01-30
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64426107
sociedade
'As melhores soluções para o Brasil saem das periferias', diz professor da USP
Para o cientista social e pesquisador Tiaraju Pablo D'andrea, melhorias nas condições de vida e um maior acesso de moradores das periferias das grandes cidades à educação proporcionaram o surgimento de uma geração de jovens com um consciência de pertencimento e de ação política: o sujeito periférico. Em entrevista à BBC News Brasil, D'andrea explicou que a atuação política desses jovens acontece em vários setores da sociedade, como a academia, cultura, imprensa e mercado de trabalho. Eles atuam para visibilizar, reivindicar e reconhecer as periferias como local de origem e de potência criativa, e não apenas de precariedades, diz. "As melhores soluções para a consolidação da democracia no Brasil saem das periferias", afirma D'andrea, de 42 anos. No final do ano passado, o estudo foi atualizado e relançado no livro A Formação das Sujeitas e dos Sujeitos Periféricos (Editora Dandara). Fim do Matérias recomendadas D'andrea explica que a "sujeita e o sujeito periférico são aqueles que se deram conta dessa condição e compreendem que a vivência no território os constituem como seres humanos. Essa consciência de pertencimento leva a uma ação política de reivindicação e afirmação da periferia." O cientista social aponta que o "sujeito periférico" emergiu na década de 1990 durante uma onda de assassinatos que vitimou milhares de jovens negros e pobres, mas também após o fortalecimento de coletivos culturais que tentavam mostrar outras características desses locais para além do estigma da violência e da pobreza. Nascido na Vila União, periferia da zona leste de São Paulo, Tiaraju Pablo D'andrea hoje dá aulas na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, e também é professor na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde coordena o Centro de Estudos Periféricos. Na entrevista à BBC, ele também falou sobre o papel do homem branco e pobre na luta antirracista, a participação da periferia nas eleições de 2022 e como o "sujeito periférico" ainda encontra barreiras e resistências para ocupar posições de liderança nas universidade e no mercado de trabalho. Confira a entrevista abaixo. BBC News Brasil - Quem são os 'sujeitos periféricos'? Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Tiaraju Pablo D'andrea - Antes, é preciso explicar o conceito das subjetividades periféricas. São formas simbólicas de caráter e de enxergar o mundo que se dão a partir de relações sociais nas periferias, diferentes de outras experiências urbanas e de classe. Uma pessoa que nasce e cresce em Guaianases (extremo leste de SP) vive em um território com precariedades: a educação é de menor qualidade, o transporte público é ruim, a polícia age de determinada maneira. Por outro lado, Guaianases é um local heterogêneo: tem uma presença negra e nordestina muito expressiva, inúmeras igrejas evangélicas, terreiros de candomblé, rodas de samba, bailes funk, futebol de várzea… Todas essas relações múltiplas formam o que chamo de subjetividade periférica. No limite, todo morador da periferia tem essas subjetividades, e elas não são exatamente iguais. Já a sujeita e o sujeito periférico são aqueles que se deram conta dessa condição e compreendem que as vivências no território os constituem como seres humanos. Essa consciência de pertencimento leva a uma ação política de reivindicação e afirmação da periferia. Essa pessoa pensa: 'sou nascido e criado em um bairro popular e isso potencializa minha vida, mas também me traz limitações. Por isso, vou agir politicamente a partir da minha visão de mundo'. BBC News Brasil - E onde acontece essa ação política? D'andrea - Na universidade, no Estado, empresas, meios de comunicação, coletivos feministas, movimento negro, nos coletivos de arte, na cultura, partidos… É bom pontuar que há uma questão temporal. A periferia sempre reivindicou melhorias das condições de vida. Nos anos 1970 e 1980, havia movimentos populares que lutavam por moradia, saneamento, saúde pública e creches. Eram movimentos da classe trabalhadora. Mas essa nova forma de agir politicamente e de se enxergar como periférico começou nos anos 1990 por uma série de características e movimentos, como o fortalecimento dos coletivos de cultura e um maior acesso da população pobre ao ensino superior. BBC News Brasil - Qual a diferença para a geração anterior? D'andrea - Antes dos anos 1990, a classe trabalhadora não reivindicava os termos 'periferia' e 'favela' de maneira política. Eram movimentos populares e de trabalhadores que lutavam por melhorias das condições de vida. Já a geração dos anos 1990 foi marcada por um genocídio nos bairros pobres, principalmente da população negra. Nessa época, ocorreu um movimento de pacificação, que vai encontrar na arte e na cultura, fundamentalmente no rap, sua melhor maneira de fazer política. Os Racionais MCs são o maior expoente desse período, denunciando para a sociedade o massacre que estava acontecendo, mas também reivindicando o território e suas características. A partir daí acontece uma 'primavera cultural periférica', com a proliferação de coletivos que vão atuar no hip-hop, no audiovisual, universidades, teatro, jornalismo, música e outras linguagens. A gente vive esse momento até hoje. BBC News Brasil - Nesses ambientes, o que esse 'sujeito periférico' pode fazer para não se ver na posição em que só consegue falar sobre periferia? D'andrea - Essa é uma armadilha criada por nós mesmos, quase uma armadilha da identidade. Faço parte de uma geração que reafirma a periferia. E é fundamental reafirmar, visibilizar, colocar na pauta pública quais são os dilemas de se morar em um bairro periférico com precariedades. Mas é fundamental que isso leve a uma luta concreta de reivindicações, como melhorias na saúde, na educação, no transporte público. Isso não exclui que possamos falar sobre outros temas universais a partir desse lugar de sujeito periférico. Não é negar as origens, as marcas e os traumas. E, sim, como essas experiências nos constituem e nos dão a possibilidade de falar de qualquer coisa. BBC News Brasil - Como fazer isso? D'andrea - No final do livro eu proponho formar uma tríade. Uma parte é nossa vivência e experiências acumuladas. O que só a gente sabe sobre o território e sobre andar pela cidade? Qual é a nossa leitura do mundo? Mas é preciso formar uma teoria que explique essa vivência. O que quero dizer com isso? Por exemplo, moro em um bairro popular, e tenho de entender como ele foi formado, por que a distância entre minha casa e o centro me traz tantos problemas no trabalho, por que meu bairro tem esgoto a céu aberto, por que existe maior precariedade em relação a outros locais. A partir dessa teoria, o terceiro ponto é formar um projeto político de reivindicação da periferia, com uma proposta de sociedade e de transformações, superando os traumas e ressentimentos, senão a gente só fica escorregando e caindo. BBC News Brasil - Você acredita que essa geração conseguiu ocupar postos de poder? D'andrea - Sim, parte dessa geração começou a ter acesso à universidade e a pleitear postos de poder. Mas é importante fazer uma ressalva: a maior parte dos moradores das periferias continua vivendo em situações precárias e subordinadas economicamente. Não podemos tratar de maneira binária. A gente tem que assumir que uma parcela de jovens periféricos melhoraram de vida e estão na universidade, nas empresas, nos meios de comunicação colocando sua pauta, mas não podemos cair em falácias como a frase 'a favela venceu'. BBC News Brasil - Por que você não concorda com essa frase? D'andrea - Na verdade, a favela perdeu. Essa frase mistifica alguns casos de pessoas bem-sucedidas, usa um discurso triunfalista. Mas a verdade é que a maioria ainda vive de maneira precária. Temos 33 milhões de brasileiros passando fome. Todos os dados mostram que as condições de vida dos mais pobres pioraram muito nos últimos anos. BBC News Brasil - Você acredita que o jovem periférico, mesmo inserido nas empresas e na academia, tem mais dificuldades de crescer profissionalmente e assumir essas posições de poder? D'andrea - Com certeza. Em minha própria trajetória acadêmica encontrei muitas barreiras e boicotes. Tenho plena consciência que minha condição de homem branco me facilitou alguns acessos. Mas a condição de classe fechou outras portas. A burguesia brasileira estipula um teto, como se dissesse: 'daqui você não pode passar'. O Brasil é um país com mentalidade escravocrata. A elite econômica é muito pequena, mas é organizada e tem estruturas para manter o poder e beneficiar ela própria, formando 'panelinhas'. Poucas pessoas negras e de origem pobre conseguem furar essa estrutura. Quando conseguem, causam um terremoto. Embora o acesso à universidade tenha aumentado, ele é muito pequeno em relação ao tamanho da população negra e periférica do Brasil. BBC News Brasil - Como você disse, a periferia é heterogênea e, em grande parte, formada pela população negra. Mas há uma parcela importante de pessoas brancas e pobres, também. Qual é a reflexão que o branco e periférico pode fazer sobre sua condição e o lugar onde vive? D'andrea - O Brasil é um país racista. Então, o homem branco e periférico já tem privilégios em comparação ao homem negro, e principalmente à mulher negra. Ele tem mais facilidade de circular pela cidade e acessar determinados espaços, porque a sociedade se estrutura por raça e classe. Isso não quer dizer que a vida dele está resolvida. Ele não pode acreditar na ilusão de que sua condição racial vai salvá-lo. Ele não será incorporado pela burguesia branca, porque as amarras de classe são muito bem estruturadas. Acho que ele precisa ter consciência dessa opressão e de que a periferia é o local ideal para uma aliança interracial e de luta antirracista. Também existe racismo na periferia, mas nos bairros populares, até pela conformação urbanísticas e geográfica, existe uma convivência maior entre brancos e negros do que em em regiões mais ricas. BBC News Brasil - Qual a contribuição das periferias urbanas para o Brasil? D'andrea - As melhores soluções para a consolidação da democracia no Brasil saem e saíram das periferias, como a formação do Partido dos Trabalhadores (PT). O próprio Sistema Único de Saúde (SUS) surgiu depois de uma mobilização de mulheres trabalhadoras do Jardim Nordeste (zona leste de SP) e que se espalhou pela cidade e acabou entrando na Constituição de 1988. Da periferia vêm os Racionais MCs e todo o movimento hip-hop, as rodas de samba, o funk, a literatura, coletivos de arte. Temos que ter muito orgulho desse legado. Muito disso depois é incorporado pela intelectualidade, às vezes com outro nome. BBC News Brasil - No livro, você explica que o recepção ao termo 'periferia' mudou ao longo do tempo. Como isso aconteceu? D'andrea - Ela era usada em debates econômicos nas décadas de 50 e 60 sobre a inserção do Brasil no capitalismo do mundo. O Brasil era um país da 'periferia do capitalismo', conforme estudos de Caio Prado Jr. e do próprio Fernando Henrique Cardoso. A partir da década de 60, grandes cidades latino-americanas incharam muito, com a industrialização e a migração da zona rural. Essas pessoas passaram a viver em áreas muito empobrecidas. O termo periferia começou a ser usado por pesquisadores para designar esses locais. A própria Igreja Católica tinha um projeto de atuação nos bairros chamado 'Operação Periferia'. Mas, naquela época, a palavra ainda tinha um caráter de estigmatização. Depois, já nos anos 80 e 90, a periferia foi tratada nos grandes jornais e na televisão como o lugar da pobreza e da violência, o local onde os criminosos moravam. Em minha pesquisa, entrevistei moradores dessa época, que disseram que não usavam a palavra periferia, porque era um termo que carregava um estigma e as pessoas tinham vergonha de falar. Mas a partir da violência dos anos 90, houve uma reversão desse discurso e outros sentidos foram criados para a periferia. É aí que o termo ganha potência e um significado de orgulho e de valorização do território. Embora ainda existam muitas mazelas, as pessoas começam a se sentir pertencentes, a ver beleza no lugar onde elas nasceram e cresceram. E dizem: 'a periferia não é isso que vocês falam, a periferia é isso aqui que estou dizendo.' BBC News Brasil - Como você enxerga a migração do jovem da periferia para regiões mais centrais? Como ele lida com o estranhamento dentro da própria cidade? D'andrea - Existe sensação de desterro, de limbo permanente. Esse jovem tem uma infância pobre em um bairro da periferia e, por circunstâncias da vida, consegue acessar espaços da classe média, como a universidade ou ambientes de trabalho. Nesses locais, ele vive outros tipos de relações profissionais, sociais e de amizade. Mas São Paulo é uma cidade muito segregada e muito marcada por divisões sociais e raciais. Essas questões têm um peso muito grande. Para chegar na Pompeia e em Perdizes (zona oeste de SP), não é apenas um deslocamento geográfico, mas também simbólico. A paisagem e as pessoas mudam. Chega uma hora em que ele pode não se sentir como parte de nada, porque o círculo de classe média não tem as referências de sociabilidade da periferia… O futebol de várzea, a roda de samba, a conversa no boteco e na calçada. Mas também há um momento em que a própria relação com as pessoas da quebrada e da infância não se completa mais, porque nossa cabeça também muda. No fim das contas, fica a dúvida sobre a qual mundo ele realmente pertence. A quais as relações e círculos sociais ele pertence? Muita gente passa por esse dilema. BBC News Brasil - Como você avalia a participação da periferia de São Paulo nas eleições do ano passado? D'andrea - Normalmente, a análise que se faz é pintar os distritos da cidade de uma cor e dizer: 'esse distrito aqui deu vitória a Bolsonaro, logo, é um bairro bolsonarista'. É mais complexo que isso: se um candidato teve 51% e outro 49%, não significa que aquele distrito é azul ou vermelho, mas que há divisões internas e diferentes maneiras de pensar. Em São Paulo, há bairros mais periféricos, principalmente nos extremos da zona leste e zona sul, onde normalmente a esquerda tem uma votação maior. Nessas regiões o PT teve uma atuação importante, com políticas que melhoraram a vida dos pobres, como mutirões de moradia popular, Bilhete Único, Bolsa Família, os CEUs (Centro Educacional Unificado)... Mas esses locais também votaram em Bolsonaro em 2018, como a maior parte da sociedade. A grande questão são os bairros tradicionais que ficam no meio, como Penha, Sapopemba, Freguesia do Ó, Mandaqui… Nesses locais há uma pequena burguesia que reverbera o discurso do medo, principalmente o medo do pobre que está ascendendo. Então as pessoas podem votar na direita, mas isso vai depender se existe um discurso mais conservador na sociedade. Por outro lado, essas regiões também podem votar na esquerda. Depende muito das circunstâncias. Já em outros bairros, como Anália Franco, Mooca e Tatuapé (todos na zona leste), formados principalmente por uma população que ascendeu economicamente, há uma tendência de incorporar o discurso conservador de maneira mais radical. O Tatuapé foi o distrito onde Bolsonaro teve sua maior votação percentual em São Paulo. Reportagem originalmente publicada em - https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64418432
2023-01-29
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64418432
sociedade
Como um filme de terror de Hollywood ajudou a 'demonizar' as mulheres mais velhas
"Eu não daria um centavo por essas duas velhas acabadas...", comentou maldosamente certa vez Jack Warner, então presidente da Warner Bros, para o diretor que estava sentado do outro lado da mesa de mármore de sua sala. O diretor era Robert Aldrich. Ele insistiu e acabou convencendo o figurão do cinema a liberar um orçamento, ainda que reduzido, para que ele pudesse dirigir o filme O que terá acontecido a baby Jane? A adaptação para o cinema do romance gótico de Henry Farrell, feita por Aldrich em 1962, contou com as estrelas Bette Davis e Joan Crawford. Ambas na casa dos 50 anos, elas interpretaram duas irmãs em disputa, confinadas em uma mansão de Los Angeles com seus traumas e ressentimentos perversos pairando no ar. Teoricamente, o filme era um risco claro para a Warner, especialmente em uma era em que a discriminação com base no sexo e na idade fazia com que a maior parte das mulheres de Hollywood fosse rejeitada para novos papéis a partir dos 45 anos. Mas o filme Crepúsculo dos Deuses (1950), com a notável interpretação de Gloria Swanson como a personagem Norma Desmond, comprovou que a história de uma mulher com mais idade, desprezada e delirante, poderia trazer algo de poderoso. Fim do Matérias recomendadas Depois do enorme sucesso de Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, a Warner sabia que filmes de terror de baixo orçamento, concentrados em personagens excêntricos reclusos e seus nefastos segredos, ainda conseguiam cativar o público. Lançado no Dia das Bruxas 60 anos atrás, O que terá acontecido a baby Jane? contrariou completamente as expectativas ruins da Warner. Inicialmente, nem todos os críticos elogiaram o filme ("este não é um filme, é uma caricatura!", escreveu o jornal Chicago Tribune em uma resenha devastadora). Mas a obra recebeu cinco indicações ao Oscar, além de atrair audiências diversas, muitas hipnotizadas pela rivalidade tóxica entre as irmãs e pelo retrato de duas mulheres lutando desesperadamente para escapar das prisões a que elas mesmas se impuseram. Com custo de US$ 900 mil (cerca de R$ 4,5 milhões), o filme teve uma bilheteria de US$ 9 milhões (cerca de R$ 46 milhões) — valor que, corrigido pela inflação americana, representaria atualmente US$ 90 milhões (cerca de R$ 459 milhões). Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Bette Davis representa a versão de meia idade da estrela mirim Baby Jane Hudson, que saiu dos palcos onde por anos dançou um sapateado pretensioso a plateias lotadas - época em que exigia sorvete aos gritos, como uma verdadeira diva em idade escolar - para a decadência e a solidão. A passagem do tempo não impediu que Jane ainda se vestisse de forma extravagante, como se tivesse nove anos, sem falar nas tranças e no rosto cheio de pó branco, lutando para esconder as rugas. Davis mantém perfeito equilíbrio entre a inocência infantil desajustada e o desrespeito arrogante. As personalidades divididas da personagem são o resultado de uma vida que, um dia, foi cheia de glamour e agora parece destruída. Enquanto isso, Joan Crawford interpreta sua irmã menos dominadora, Blanche. Ela escapa da sombra opressiva de Jane para ter sucesso como estrela de Hollywood, de forma muito mais elegante que a irmã e por sua própria capacidade, até que um acidente de carro misterioso destrói seu futuro promissor. Como uma trêmula relíquia do passado em uma cadeira de rodas, a personagem de Crawford forma a base do filme, incitando a alta teatralidade de Davis e oferecendo um alvo constante para o ciúme descontrolado da irmã. A presença de Crawford e Davis juntas na tela é sempre explosiva, emocional e impossível de ser ignorada. Grande parte da infindável fascinação pelo filme (que foi preservado pela Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos em 2021 como "historicamente significativo") decorre da rivalidade sórdida entre as duas atrizes fora das telas do cinema. Relatos da época indicam que uma cena do filme, em que Jane ataca Blanche violentamente com uma série de chutes devastadores, na verdade, não foi um trabalho de representação. Bette Davis foi indicada para o Oscar de melhor atriz por sua atuação. Ela afirmava que Crawford teria sentido muita raiva por ter sido preterida para a indicação em favor da outra estrela do mesmo filme. E que, por isso, Crawford teria usado suas conexões em Hollywood para garantir que Davis perdesse o prêmio na entrega do Oscar em 1963. Crawford negou a acusação. "Joan não queria que eu ganhasse aquele Oscar!", exclamou Davis em entrevista a Barbara Walters, anos depois que a poeira já havia assentado. Fofocas e conjecturas à parte, o legado mais significativo de O que terá acontecido a baby Jane? pode ser encontrado nos filmes que vieram a seguir. Nos anos após seu lançamento, Hollywood começou a produzir uma série de filmes do chamado terror de "Hagsploitation" (algo como "exploração de bruxas velhas", em português). O subgênero também recebeu outros nomes, como "psycho-biddy horror" ("terror das mulheres psicóticas"), "terror das bruxas" e "Grande Dame Guignol" — mas todos desenvolvem a ideia de mulheres que ficaram descompensadas com a idade. Nesses filmes, atrizes veteranas como Barbara Stanwyck, Tallulah Bankhead, Shelley Winters e Debbie Reynolds interpretaram vilãs delirantes e exageradas como baby Jane. Esses papéis garantiram a continuidade de suas carreiras. Mas este subgênero é profundamente problemático, a começar pela sua própria denominação. "Hagsploitation é um termo misógino e preconceituoso com relação aos mais velhos, que é aplicado a estrelas do cinema decadentes que foram reinventadas como esses fantasmas grotescos", diz Christopher Pullen, professor de mídia e inclusão da Universidade de Bournemouth, no Reino Unido. "Reconheço que esses filmes foram grandes oportunidades para [as mulheres de meia idade] encontrarem novos papéis, mas, de muitas formas, eram papéis humilhantes que transmitiam estereótipos problemáticos sobre o envelhecimento de corpos femininos e as possibilidades de vida que podem existir para mulheres mais velhas", completa. Em muitos aspectos, é difícil discordar dessas observações. O gênero Hagsploitation foi construído sobre noções duvidosas sobre mulheres mais velhas, incapazes de manter um casamento ou criar um filho adequadamente, que ficaram devastadas. E, para elas, cometer assassinatos ou gritar para os céus era praticamente tudo o que ainda poderia lhes gerar satisfação. No filme Alguém morreu em meu lugar (1964), Bette Davis interpreta duas irmãs gêmeas, Margaret e Edith Phillips. Enquanto Edith é rica e glamourosa, Margaret é pobre, envelhecida e dirige um bar que, nitidamente, é uma espelunca. Edith decide então assassinar a irmã para assumir sua identidade e riquezas em uma jogada de xadrez maquiavélica. O filme mostra o estereótipo nocivo de que uma mulher envelhecida, incapaz de manter a segurança do casamento, é alguém praticamente inútil que começará a alimentar uma raiva incontrolável que acabará por definir a sua vida. Lançado no mesmo ano, A Dama Enjaulada adota a mesma metáfora. Sua história concentra-se na sra. Hilyard (interpretada por Olivia de Havilland), uma mãe solteira de fala suave que protegeu seu filho crescido por toda a vida, levando-o a fugir e deixar uma carta confirmando suas tendências suicidas, causadas pela natureza dominadora da mãe. Quando a personagem interpretada por Havilland, que sofre de uma fratura no quadril, fica perigosamente presa no elevador doméstico que ela havia instalado, ladrões decidem aproveitar e saquear a casa, tratando-a com total indiferença. Os gritos desesperados da sra. Hilyard — "sou um ser humano, uma criatura pensante, com sentimentos!" — são motivos de risos. Ela então perde gradualmente o juízo, o que é algo que costuma ser comum no gênero Hagsploitation. Na visão fria da sociedade mostrada pelo filme, da sobrevivência do mais adaptável, a personagem de Havilland é considerada totalmente inútil, em uma óbvia metáfora de como os Estados Unidos tratam as mulheres na menopausa ou pós-menopausa. Outro filme importante do gênero Hagsploitation é o terror britânico Fanatismo macabro (1965). Sua personagem principal, a sra. Trefoile (interpretada pela atriz Tallulah Bankhead) é uma mulher idosa infeliz que se irrita quando a namorada do seu filho morto se atreve a visitá-la. Irada, a sra. Trefoile descreve vestidos vermelhos como "satânicos" e proíbe todos os condimentos da mesa de jantar. Ela incorpora completamente as noções misóginas de que, quando as mulheres chegam a certa idade, sua existência precisa ser seca e sem sexo, puramente dedicada a Deus, à maternidade e a reviver as glórias do passado. "A essência da ideia da bruxa mostra como, pelo menos em muitas culturas, as mulheres mais idosas são figuras repulsivas", explica sobre esses filmes a pesquisadora de estudos do cinema da Universidade de Roehampton, no Reino Unido, Deborah Jermyn. "Em uma sociedade em que o capital das mulheres é mais ostensivamente ligado à beleza e a fertilidade, e a beleza e a fertilidade são características da juventude, as mulheres mais velhas deixam de ter uma função que pode ser demonstrada e sua presença torna-se incômoda, repugnante e inoportuna", afirma Jermyn. Para ela, "é por isso que as mulheres mais idosas aparecem com frequência entre as historicamente acusadas de serem bruxas. O cinema Hagsploitation cristaliza todas essas ideias." Mesmo que esses filmes tenham sido pensados por executivos de Hollywood como forma de fazer o público rir dos sinais de envelhecimento, a notável interpretação das suas estrelas destaca-se por si própria. Em O que terá acontecido a baby Jane?, por exemplo, as ações de Jane são abertamente demoníacas (como na cena em que Jane tenta servir um periquito morto para Blanche no jantar), mas existe uma tristeza nos olhos de Bette Davis que transpõe os limites da tela. Davis eleva a personagem original e força o espectador a sentir algo por Jane que seria improvável apenas com a caricatura nua e crua idealizada pela Warner Bros. Davis repete seu bom desempenho no filme Nas garras do ódio (1965), que conta a história de uma babá assassina. Ela transforma a personagem em uma anti-heroína que você simplesmente deseja que tivesse recebido mais atenção da família arrogante de classe média para quem ela trabalhou por tanto tempo. Também as duas atuações impressionantes da atriz Shelley Winters nos filmes de Hagsploitation criminosamente menosprezados do cineasta americano Curtis Harrington — Fábula macabra e Obsessão sinistra (ambos de 1972) — são outra prova de que esses papéis trouxeram muitos frutos para as estrelas que os representaram. Em Fábula macabra, Winters interpreta a personagem Rosie "Roo" Forest, uma matriarca rica, mas solitária, que perde sua filha em circunstâncias trágicas. Todos os anos, Forest convida as crianças de um orfanato local para uma festa de Natal, tentando preencher a lacuna deixada no coração pela morte da sua filha. Em alguns momentos, Winters brinca com essas crianças como um gato torturando um grupo de filhotes de camundongos indefesos. Um jovem valente chamado Christopher (interpretado por Mark Lester) compara Forest explicitamente com o arquétipo da bruxa que come crianças da fábula de João e Maria. Em uma cena realmente apavorante, pode-se ver Forest colocando delicadamente o corpo mumificado da filha para dormir em um berço. É um momento que causa um misto de medo e empatia do espectador, por sua referência ao nosso medo coletivo da solidão. A interpretação do luto e do sofrimento feita por Winters, atravessando diversos ciclos de traumas, toca profundamente até hoje. A crítica de cinema britânica Steph Green concorda que o gênero Hagsploitation inclui uma boa parcela de misoginia e temas moralmente insensíveis, mas também destaca suas virtudes. Seus filmes oferecem "personagens complexas e incomuns, malucas e divertidas, para mulheres que não conseguiam mais ofertas de papéis interessantes". A razão pela qual essas interpretações tendem a ser negligenciadas na história do cinema, segundo Green, é porque o público foi treinado para pensar nos filmes do gênero Hagsploitation como atrações sensacionalistas, e não como dramas humanos. "Sinto que [o que as pessoas] deixam de reconhecer, muitas vezes, é a inteligência e a habilidade necessárias para interpretar uma caricatura e ainda extrair empatia dos espectadores que passaram as últimas duas horas simplesmente tendo pena de você", explica ela. "Nos anos 1960 e 1970, os homens conseguiam interpretar chefes de Estado, heróis, detetives e advogados gentis até os 70 anos; as mulheres tinham menos escolhas." Embora o pico desses filmes tenha ocorrido nos anos 1960 e no início dos anos 1970, eles continuaram a ser produzidos nas décadas seguintes. No final dos anos 1970, o filme italiano A freira assassina incluiu uma interpretação surpreendente da atriz Anita Ekberg (que havia sido a beldade deslumbrante de A Doce Vida, de Fellini, em 1960), como uma freira idosa que injetava heroína e abusava dos seus pacientes. "Nas críticas, ela foi menosprezada pelos críticos homens como 'ultrapassada', expondo o tipo de misoginia que é fortalecido com esses filmes", afirma Green. "Mas A freira assassina realmente escancara as questões centrais do Hagsploitation: sombras de misoginia internalizada lutando contra o que são, muitas vezes, atuações integralmente dedicadas." Em 1980, Sexta-Feira 13 também trouxe novos ares para o gênero. O filme teve a ousadia de apresentar, como sua principal assassina, uma mãe idosa desesperada para punir os monitores — usuários de cannabis e que andavam seminus — do acampamento Camp Crystal Lake, onde seu filho Jason havia se afogado por negligência dos funcionários. A personagem Pamela Vorhees, interpretada pela atriz Betsy Palmer, foi possuída por uma raiva terrível, que sussurrava "mate-a, mamãe", na voz de Jason, sob sua respiração. Um ano depois, Mamãezinha Querida — um filme biográfico da própria Joan Crawford, que traz a interpretação da atriz Faye Dunaway — trouxe traços de Hagsploitation, com cenas em que a atriz tortura sua enteada por se atrever a pendurar roupas no cabide. Estas cenas são tão traumáticas quanto caricaturais, em uma combinação de tons que foi fundamental para o poder do gênero Hagsploitation. O legado do gênero ficou consolidado em 1990, com o filme Louca Obsessão, a adaptação para o cinema do romance de Stephen King publicado em 1987. Nele, um romancista famoso (James Caan) sofre um acidente de carro na área rural coberta de neve do Colorado, nos Estados Unidos. Ele recebeu tratamento da sua "fã número 1" Annie Wilkes (considerada a melhor interpretação da carreira da atriz Kathy Bates). Wilkes é apresentada como um anjo da morte do meio-oeste americano, de meia idade e antiquada. Ela quebra os tornozelos do seu amado prisioneiro para evitar que ele escape, enquanto o censura dissimuladamente por ser "pervertido". Kathy Bates é a combinação perfeita entre Bette Davis como baby Jane e Shelley Winters como Roo Forest. Ela recebeu o Oscar pelo papel e o prêmio serviu para dar nova vida a este tipo de interpretação. E, quando se fala em filmes de terror mais modernos, pode-se até argumentar que o filme Hereditário (2018), do cineasta americano Ari Aster, cujo tema central é formado por mães iradas que lutam para influenciar seus filhos, deve suas origens ao gênero Hagsploitation. Olhando para o futuro, Deborah Jermyn espera que o público possa começar a observar os filmes de Hagsploitation, com todos os seus problemas, de forma renovada. Grandes estrelas de Hollywood criaram nesses filmes atuações emblemáticas, contrariando as expectativas. Corajosamente, elas trouxeram visibilidade para o envelhecimento em uma indústria cinematográfica conhecida principalmente por querer escondê-lo. Entre outros pontos, Jermyn espera que possamos começar a olhar para esses personagens e para a raiva das atuações de forma mais complexa. "Embora muitas vezes motivadas pela necessidade financeira, as mulheres que aceitaram esses papéis personificaram uma rejeição memorável das restrições sociais impostas sobre as mulheres mais idosas", afirma ela. "Ao fazê-lo, na verdade, elas deram visibilidade a essas restrições sociais", prossegue a acadêmica, "e seu impacto condenatório sobre as mulheres na indústria do entretenimento, expondo a superficialidade e a injustiça de uma sociedade que deixa de valorizar as mulheres à medida que elas envelhecem." "Neste particular, estrelas interpretando 'bruxas' furiosas em filmes da indústria cinematográfica certamente referem-se a si próprias e fazem sua crítica de forma fascinante — elas retratam a indignação de todo o sistema", conclui Jermyn. Esta reportagem foi originalmente publicada em - https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-64225304
2023-01-29
https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-64225304
sociedade
O enigma que só será resolvido em 2113 sob a Torre Eiffel
Era um desafio totalmente novo. E os fãs da franquia de vídeo game Trials sabiam que seus criadores dificultariam a corrida de obstáculos ao máximo. Eles também sabiam que deveriam ficar atentos aos "easter eggs" - pistas ocultas ou referências externas a outros jogos, filmes, pessoas etc. No jogo anterior, Trials HD, eles haviam encontrado pistas sobre um enigma magnífico que levou anos para ser solucionado. O que eles não esperavam é que o enigma de Trials Evolution os levaria a explorar temas místicos e científicos, a ponto de saírem de casa em busca de pistas materiais para solucionar o grande mistério. E eles também nunca imaginaram que, graças a todos os seus esforços, acabariam encontrando todas as peças necessárias para que o quebra-cabeça seja resolvido... depois que nenhum deles estiver mais vivo. Este episódio é lendário entre os gamers. E, entre os estudiosos culturais, é um convite para a reflexão. O que pode parecer um entretenimento irrelevante trouxe à mente algumas das perguntas mais profundas da condição humana, segundo eles. Fim do Matérias recomendadas Mas vamos começar contando o que aconteceu com o épico enigma do jogo Trials Evolution. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os detalhes são complexos, mas, de forma geral, a história foi a seguinte: Pouco depois do lançamento do jogo Trials Evolution no serviço de download de jogos Xbox Live Arcade, em abril de 2012, os jogadores começaram a descobrir uma série de placas de madeira que, reunidas, formavam uma mensagem codificada. Com muito esforço e um pouco de sorte, eles decifraram a mensagem: eram instruções para realizar uma manobra secreta no jogo que desbloqueava uma música. A canção começava dizendo: "Acorde e escute / Os segredos estão escondidos / nos tons mais brilhantes / seus ouvidos podem não captá-los / talvez você precise transformá-los em uma forma visível..." E assim eles fizeram. Um programa de visualização de análise espectral revelou uma mensagem em código Morse. E essa mensagem levava a um website que continha imagens criptografadas, atualizadas diariamente a partir de 2013. Os gamers observaram que as imagens faziam referência a cientistas. E, com seus nomes, formaram as 26 letras do alfabeto. Era outro enigma. Sua resposta? "Grande congelamento sem final completo", uma teoria sobre o fim do Universo. Esta solução levou a outro website que fornecia coordenadas e pistas para encontrar quatro objetos espalhados no mundo real! Um deles estava em São Francisco, nos Estados Unidos; o segundo, em Sydney, na Austrália; e o terceiro, em Bath, no Reino Unido. Eram pequenos cofres ocultos, onde foram encontradas chaves e placas de metal com o início de uma frase: "Parecia que tinha sido uma eternidade." Os jogadores descobriram que a frase era do livro A Culpa É das Estrelas, do escritor norte-americano John Green. A citação completa era: "Parecia que tinha sido uma eternidade, como se tivéssemos vivido uma breve, mas infinita eternidade. Alguns infinitos são maiores que outros." O quarto cofre foi encontrado na capital da Finlândia, Helsinque, que é a cidade natal da empresa RedLynx, criadora de Trials. Um dos fãs que se aventuraram a procurá-lo foi até o endereço indicado no website. Lá entregaram a ele alguns documentos aparentemente reais com 300 anos de idade, relativos à venda de terras de uma propriedade francesa no século 18. Também havia um mapa para chegar a um cemitério onde estava o quinto e último cofre. E ele continha outra chave e vários objetos, incluindo um relógio de bolso antigo, de 1916. No verso da placa de metal, havia uma mensagem gravada: "Meio-dia do ano 2113. Primeiro sábado de agosto. Uma das cinco chaves abrirá a caixa debaixo da Torre Eiffel." E, assim, o enigma foi resolvido. Depois de tanto tempo, os fãs haviam chegado à última parada na sua caça ao tesouro global. A tão buscada resolução estava no futuro. Mas grande parte dos desejos do criador do enigma já havia sido atendida. Tudo foi meticulosamente planejado por Antti Ilvessuo - que, junto com seu irmão Atte, foi um dos fundadores da RedLynx no ano 2000. Enquanto a comunidade de gamers explorava teorias científicas, análise espectral, ideias sobre o fim do Universo, criptografia, tábuas neolíticas e compartilhava seus conhecimentos para solucionar o enigma em colaboração, Ilvessuo observava com satisfação que tudo estava se desenvolvendo conforme o esperado. "O enigma realmente é importante para mim, pois ele uniu as pessoas que queriam resolvê-lo", explicou ele em entrevista ao escritor britânico Matthew Syed, para o programa Sideways, da BBC Rádio 4. "Acredito que o esforço para fazer algo duradouro só funciona se as pessoas trabalharem em conjunto pelo bem comum, sem temer o pior, nem criar conflitos...", afirma Ilvessuo. "Só é preciso ser curioso e aproveitar os conhecimentos." Ele sorri com frequência, sem esclarecer os detalhes desconhecidos sobre o enigma. Mas deixa entrever que, mesmo 10 anos depois, ainda se emociona com o que aconteceu. "Para mim, foi muito significativo. Sempre disse que é preciso poder confiar nas pessoas, que as pessoas são inteligentes e curiosas", prossegue Ilvessuo. "E a forma certa de resolver os problemas do mundo em que vivemos é com as pessoas trabalhando em conjunto." "Neste enigma, tive fé que as pessoas teriam confiança e aconteceu. E continua acontecendo", afirma ele. Este voto de confiança valeu a pena. Mesmo precisando passar tantas décadas para poder abrir o último cofre, para o superfã Professor FatShady e muitos dos participantes, a conclusão está longe de ser frustrante. "Você persegue algo como isso porque quer ver o encerramento, quer chegar ao final, atingir a meta", afirmou o superfã ao programa Sideways. "O interessante é que a conclusão não foi uma conclusão, mas o começo de outra viagem de 100 anos para chegar a outra coisa. Esta é a melhor forma de terminar: dando-nos algo no futuro." Uma oferta ao que está por vir... um legado, que obriga a nos projetarmos para um amanhã em que não estaremos aqui. Ou, como ressalta o psicólogo social Philip Cozzolino, da Universidade de Essex, no Reino Unido, a pensar em algo que normalmente evitamos: a morte. O ato de refletir sobre a morte é considerado atualmente uma poderosa ferramenta psicológica, muito diferente de simplesmente planejar o futuro. Cozzolino analisou os efeitos psicológicos em pessoas que têm experiências de quase morte ou recebem diagnóstico terminal, mas indica que não precisamos passar por um trauma para obter a clareza proveniente de pensar na morte. O que, sim, é necessário é confrontar algumas verdades invioláveis. "Existe uma música da banda Pearl Jam (I'm Mine, ou "Sou meu", em tradução livre), que diz: 'sei que nasci e sei que vou morrer, o que fica no meio é meu'", afirma o psicólogo. "Só quando você realmente assume os dois extremos - o nascimento e a morte -, o que está no meio é seu." Cozzolino destaca que suas pesquisas confirmam o que está dizendo. Muitos dos que incorporam a inevitabilidade da morte à sua visão de vida passam por mudanças positivas poderosas. "Em muitos casos, eles dizem aos pesquisadores: 'sinto que finalmente assumi o controle. Por que estou fazendo este trabalho específico? Ele não me traz felicidade. Por que estamos nesta relação?'", ele conta. A verdade nua e crua é que temos apenas um pequeno período de existência intercalado entre duas eternidades de esquecimento. E não são só os psicólogos que argumentam que a apreciação desta realidade pode nos ajudar a viver vidas mais significativas. Grandes filósofos existencialistas do século 20, como Heidegger e Kirkegaard, já defendiam este ponto. E Jean-Paul Sartre, no seu livro O Ser e o Nada, argumenta que apreciar a mortalidade pode fornecer emoção à vida. Antti Ilvessuo preferiu não estar presente quando seu enigma for solucionado. "Não estou tentando deixar um legado", afirma ele. "O legado é das pessoas que trabalharam juntas para resolver o enigma e das que entregarão as chaves para as gerações futuras. Ou seja, é um legado comum, um legado do trabalho de muitas pessoas." O que ele garante é que deixou acordos concretos para que, naquele sábado de verão em Paris, na França, quem comparecer ao meio-dia à reunião abaixo da Torre Eiffel irá encontrar a peça final do quebra-cabeça. E, se você quer saber qual é a quinta chave mencionada na placa, trata-se de uma chave digital desbloqueada da sequência do jogo, Trials Fusion. .
2023-01-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64381269
sociedade
Da popularidade ao ‘sumiço’: o que aconteceu com os poodles no Brasil?
Quando as poodles Brisa, de 16 anos, e Belinha, de 13, saem para passear nas ruas de Madre de Deus, na Bahia, elas não recebem mais os elogios e carinhos de antes. "Além de estarem com a aparência de que são velhinhas, a raça não é mais a da moda, que as pessoas param e ficam elogiando quando encontram", conta a estudante Laila Cruz, de 24 anos, que tem mais tempo de vida com as cachorras do que sem elas. A rotina de Brisa e Belinha ilustra a atual situação da raça que, nos anos 1990 e início dos anos 2000, foi uma das mais populares do Brasil: a maioria que ainda está viva já é idosa, e poucas pessoas buscam por ela. No país, não há um censo oficial que detalhe raças dos animais de estimação, mas alguns dados dão um panorama sobre o "sumiço" dos poodles. A Confederação Brasileira de Cinofilia (CBKC), que estabelece padrões para criação e emite pedigrees (certificado de origem de cães de raça) no Brasil, aponta o auge dos poodles em 1997, quando 3.193 foram registrados por pessoas que procuraram a organização. Fim do Matérias recomendadas Em 2022, a despeito do aumento do mercado pet nos últimos anos, o número de poodles registrados foi de apenas 501, uma queda de quase 85%. Já o "censo" anual que as empresas DogHero (de hospedagens para pets) e Petlove (comércio eletrônico) fazem entre clientes cadastrados nas plataformas mostra que 62% dos poodles tinham mais de 15 anos em 2021. Ou seja, estão no fim da vida. No mesmo levantamento, a raça representava 5% dos cães cadastrados nas plataformas em 2021 - menos que os 6,1% identificados em 2017, no primeiro levantamento, e atrás de vira-latas (sem raça definida), shih-tzus e yorkshires. Mas o que aconteceu para esses cães saírem de moda no Brasil? Os especialistas na raça com quem a BBC News Brasil conversou concordam que a própria popularidade do poodle foi parte da sua "desgraça". Com a alta procura por cães da raça, também disparou a quantidade de pessoas que criavam, reproduziam e vendiam os animais no Brasil. "Todas as raças que têm um pico de popularidade passam a ser vendidas por mais criadores. O que acontece muitas vezes é que são pessoas que só visam o lucro, sem critérios ou estudos sobre raça", avalia Maria Gloria Romero, dona de um canil especializado em poodles registrado em São Paulo. No caso dos poodles, o desejo das famílias foi por animais cada vez menores. A situação chegou a um ponto em que, no Brasil, começaram a ser comercializados animais com o nome "micro" ou "zero" - mesmo que, nos critérios oficiais, o menor tamanho fosse o "toy", com altura entre 24 e 28 cm. "Foram cruzando os menores com os menores, pai com filha, para atender o desejo de clientes que queriam 'cão de bolso', um bibelô", diz Giovana Bião, criadora de poodles e dona de um canil de poodles em Salvador. "O resultado dessa busca muitas vezes são animais com deficiências, problemas. Os muito pequenos só deviam ser de companhia, não para ficar reproduzindo." Entre os problemas que mais se tornaram comuns entre os poodles no Brasil, estão a fragilidade óssea, convulsões, deficiências na arcada dental e as chamadas "lágrimas ácidas", que deixam a região perto do olho escura. Segundo as criadoras especializadas, quando alguma característica que afeta a saúde do animal é identificada, o cachorro não deveria ser utilizado para reprodução. Também não se deve cruzar cães com grau de parentesco próximo. Além da fama de problemáticos acabar "minando" o interesse pela raça, Maria Gloria Romero avalia que famílias compravam filhotes para crianças esperando que os animais não crescessem — mas, muitas vezes, cresciam. No fim dos anos 1990, quando a criadora fundou o Poodle Clube Paulista, famílias apareciam com reclamações constantes em exposições que, na época, reuniam dezenas de animais: "Cansei de ser abordada nos eventos por pessoas que se sentiam verdadeiramente enganadas por canis que reproduziam sem preocupações com a raça". O clube durou até 2003, quando quase nenhum animal aparecia mais para os eventos. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Lara, de 6 anos, é o sétimo poodle em 25 anos do analista de sistemas Bruno Gomes, de 40 anos, em Gurupi, no Tocantins. "Realmente, é difícil encontrar outro por aqui", diz. A insistência de Gomes na raça — que, para ele, tem como principais vantagens a inteligência e o fato de não soltar pelo — pode ser considerada exceção. Além dos problemas de saúde que se tornaram comuns, outro fator essencial para o desinteresse dos brasileiros pelo poodles é o movimento cíclico que acontece com "raças da moda". "O brasileiro vai muito no modismo. O poodle foi ficando barato, todo mundo tinha, não era mais novidade. Aí, o vizinho aparece com uma raça nova e isso, inconscientemente, enche os olhos", ilustra a criadora Giovana Bião. Para Lucas Woltmann, doutorando de Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) que estuda a criação de raças caninas, "entrar ou sair da 'moda' vai depender de múltiplos fatores, desde influências coletivas (filmes, livros) a individuais, como gostos pessoais e limitações de espaço" No Brasil, algumas raças que tomaram o lugar de poodles no gosto popular foram yorkshires, pugs, shih-tzus e, mais recentemente, o spitz alemão — ou Lulu da Pomerânia. Na percepção de Laila Cruz, tutora de duas poodles idosas, as "novas" raças das moda — muitas vezes mais peludas e "delicadas" — ganham espaço também por conta das redes sociais. "Cachorro agora tem que ser 'instagramável', tem que ser bonito, e o poodle é uma raça que necessita de muitos cuidados. Quando envelhece, ele não fica tão bonito. Então, as pessoas querem animais que valham a pena no social", critica. Lucas Woltmann concorda que as redes influenciam em "apresentar raças até então desconhecidas, ajudando a construir desejos e expectativas sobre elas". Para o pesquisador, essa relação entre raças caninas e "status" começa na história com as ideias de cães "nobres". Segundo sua pesquisa, a literatura sobre caça no período medieval, por exemplo, fazia distinções entre cães "nobres" e "não nobres". "Isso estimulou analogias entre pessoas e cães e amparou ideias sobre uma possível dimensão biológica e hereditária da nobreza, cuja marca mais clara foi o aparecimento do conceito de 'sangue nobre' entre os séculos 13 e 14", explica. O investimento em raças caninas ganhou corpo na Grã-Bretanha da segunda metade do século 19, quando houve uma popularização da criação organizada em clubes de canis. Esses locais passaram a estabelecer padrões morfológicos e comportamentais e a fazer registro genealógico dos animais — algo que hoje é perpetuado pelas confederações como CBKC no Brasil e Kennels Clubes pelo mundo. No caso do poodle, segundo o Kennel Club da Inglaterra, ele tem origem na Alemanha, onde foi criado para ser um caçador aquático, especialmente de patos, há mais de 400 anos. O primeiro registro de poodle foi em 1874, na Inglaterra. Para quem viu a criação da raça quase desaparecer no Brasil, o momento atual é positivo. O investimento que Giovana Bião fez em seu canil de poodles em Salvador, em 2014, foi taxado como "loucura". Mas, segundo ela, o mercado começou a dar bons sinais, com novos criadores surgindo. "No mundo dos groomers (profissionais especializados em estética pet), o poodle é muito valorizado, porque há um enorme número de tosas possíveis. É um animal único para isso", diz. A raça também vem sendo procurada, principalmente no exterior, para ser companhia de crianças com autismo, já que é considerada bastante obediente e atenta ao sentimento dos donos. Outra vantagem é ser uma raça que não provoca crises alérgicas. Já Maria Gloria Romero, que nunca deixou de criar poodles, percebe que a procura atual é de uma clientela com maior poder aquisitivo, que se fidelizou aos poodles por seu caráter "alegre, inteligente e fiel". Mesmo com uma possível retomada, as duas criadoras ainda precisam buscar animais no exterior, em países como Japão, Rússia e Suécia, para "manter padrões" em seus canis. "Eu até agradeço por a raça ter perdido popularidade, porque quem cria hoje em dia é criterioso", avalia Romero. Segundo os dados da CBKC, que tem 56 criadores de poodle cadastrados no Brasil hoje, o ano com menos registros da raça foi 2016 (450). De lá pra cá, o número vem registrando leve alta (em 2022, foram 501). Naturalmente, segundo os especialistas, o que aconteceu com o poodle também pode acontecer com outras raças na moda hoje no Brasil. Originalmente publicada em - https://www.bbc.com/portuguese/geral-64407900
2023-01-28
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64407900
sociedade
Mulher britânica morre e corpo é encontrado só três anos depois em apartamento
O cadáver de uma mulher britânica que sofria de doença mental foi encontrado em seu apartamento após ela passar três anos e meio morta no local. A família de Laura Winham, de 38 anos, afirmou que ela foi "abandonada e deixada para morrer" pelo NHS, a rede de saúde pública do Reino Unido, e pelos serviços de assistência social. Seus familiares disseram que estes profissionais perderam diversas chances de salvá-la ao negligenciar seu bem-estar antes de sua morte e ao não realizar visitas de rotina que poderiam ter levado à descoberta de seu corpo. A família disse que não pôde ter nenhum contato com Laura por causa das leis de privacidade britânicas depois de a mulher, que sofria de esquizofrenia, se recusar a manter contato com seus parentes por acreditar que eles estavam tentando prejudicá-la. Um de seus irmãos, Roy, afirmou que os familiares de Laura não conseguiram obter informações sobre ela nem tiveram sucesso nas repetidas tentativas de contatá-la e que encontraram seu corpo após olhar pela fresta de entrega de correspondências da porta de seu apartamento em Woking, a cerca de 40 km de Londres, na Inglaterra. Fim do Matérias recomendadas O corpo de Laura foi descoberto em maio de 2021, mas acredita-se que ela tenha morrido em novembro de 2017. O caso está sendo investigado pela Justiça britânica. Seus irmãos disseram que Laura cresceu em uma família amorosa e frequentou a escola e a universidade, mas desenvolveu problemas de saúde mental e não voltou para casa depois que foi internada pela primeira vez. A família decidiu limitar o contato, porque isso a colocava sob "enorme estresse", mas acreditava que ela estaria sob os cuidados profissionais. No entanto, eles não conseguiram nenhuma informação a respeito dela por causa das leis de privacidade. "Ela proibiu o contato entre a equipe de saúde mental e sua família, e isso impediu os médicos de falar conosco", disse sua irmã Nicky. A família de Laura continuou a enviar cartas, mensagens de texto e cartões. Quando seu pai adoeceu, seus parentes intensificaram as tentativas de contato. Depois que ele morreu, continuaram a ligar para o apartamento dela. Em sua última visita, eles estavam saindo quando Roy decidiu dar uma nova olhada. "Quando olhei pela caixa de correio, parecia que havia cobertores, mas, quando olhei para baixo, pensei ter visto um pé", disse ele. "Havia um moletom que ela usava, que eu pensei que estava junto com cobertores e outras coisas. Foi aí que eu consegui olhar por outro ângulo, e deu para ver o rosto, o corpo." Ele disse: "Algo me fez voltar a subir as escadas naquele dia, mas infelizmente o que vi me perseguiu por muito tempo." Publicado originalmente em - https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64340289
2023-01-28
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64340289
sociedade
A polêmica sobre prisão de trans condenada por estupro quando se identificava como homem
Uma mulher trans que estuprou duas mulheres antes de mudar de gênero não cumprirá sentença em uma prisão feminina na Escócia. Isla Bryson foi levada para a prisão feminina de Cornton Vale depois de ser condenada por cometer os estupros quando ainda era identificada como homem, com o nome Adam Graham. Os estupros aconteceram em 2016 e 2019. Bryson decidiu fazer a transição enquanto aguardava o julgamento. No entanto, a premiê da Escócia, Nicola Sturgeon, disse que Bryson não ficará presa em Cornton Vale. Bryson deve receber sua pena de prisão no próximo mês - e a prisão onde essa sentença será cumprida tem gerado debates acalorados. Fim do Matérias recomendadas A premiê escocesa citou o diretor da entidade Rape Crisis, que trabalha contra o estupro. Sturgeon disse que não entende como seria possível ter uma estupradora dentro de uma prisão feminina. Referindo-se diretamente ao caso, Sturgeon confirmou: "Esta prisioneira não será encarcerada na prisão feminina de Cornton Vale." Ela disse que qualquer prisioneiro que represente um risco de ofensa sexual é mantido separado de outros prisioneiros. "Não há direito automático para uma mulher trans condenada por um crime cumprir sua pena em uma prisão feminina, mesmo que tenha um certificado de reconhecimento de gênero", disse. "Cada caso está sujeito a uma avaliação de risco individual rigorosa e a segurança de outros prisioneiros é fundamental." Na quinta-feira (26/1), uma ex-diretora de Cornton Vale disse que a discussão sobre enviar uma estupradora transgênero para uma prisão feminina foi uma "confusão desnecessária". Rhona Hotchkiss, que dirigiu Cornton Vale até 2017, disse que teria se recusado a receber Isla Bryson na prisão. Em debate com Sturgeon no parlamento, o líder conservador escocês, Douglas Ross, perguntou repetidamente onde Bryson estava detida atualmente. Ele disse que os ministros podem intervir e têm 72 horas para questionar onde um prisioneiro é mantido. Sturgeon respondeu que esperava que, antes do término do período de 72 horas, a prisioneira não estivesse mais no presídio feminino. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast O governo do Reino Unido está discutindo uma reforma na sua política de encarceramento de prisioneiros transgêneros. A reforma prevê que prisioneiras trans com partes íntimas masculinas, ou as condenadas por crimes sexuais, não sejam mantidas em prisões femininas, exceto em casos "verdadeiramente excepcionais". Bryson, de 31 anos, disse ao tribunal que sabia que era transgênero aos quatro anos de idade, mas que decidiu fazer a transição aos 29 anos. Ela está tomando hormônios e pretende fazer uma cirurgia para fazer a mudança de sexo. Durante o julgamento, o advogado de Bryson disse que ela é "vulnerável" e não é um "predador masculino". Em depoimento pré-gravado apresentado aos jurados, uma das vítimas diz ter sido estuprada em um apartamento em Glasgow no dia 27 de junho de 2019. Bryson disse aos jurados que os dois conversaram sobre "problemas de sexualidade" depois de se conhecerem em uma rede social. Os dois ficaram sozinhos juntos em um apartamento. A vítima diz ter se sentido "esmagada" quando o agressor que ela conhecia como Adam a estuprou. Ela afirmou: "Eu disse para ele parar e ele não parou. Ele continuou. Foi quando fechei os olhos e o deixei fazer o que queria fazer." Bryson negou essa acusação. Ela disse: "Eu nunca faria isso. Eu nunca faria mal a nenhuma mulher."
2023-01-27
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-64415606
sociedade
Imagens de crianças vítimas de violência sexual explodiram na internet após lockdowns, diz estudo
Imagens de crianças vítimas de violência sexual aumentaram mais de dez vezes desde que as medidas de isolamento foram aplicadas na pandemia, segundo novo levantamento. A Internet Watch Foundation (IWF) diz que seus dados revelam como os predadores se aproveitaram da situação - os sites de mídia social explodiram em popularidade no início de 2020, quando a pandemia começou. No ano passado, a IWF registrou mais de 63 mil páginas mostrando vídeos e imagens de abuso infantil, em comparação com 5 mil antes da pandemia. Isso se refere a imagens de crianças filmando a si mesmas na câmera enquanto são coagidas por um predador na internet. "Durante a pandemia, a internet foi uma tábua de salvação, mas só agora estamos desvendando todos os efeitos", disse a presidente da IWF, Susie Hargreaves. "O que está claro para nós é que as crianças mais novas estão sendo levadas a situações abusivas por predadores vorazes, muitas vezes enquanto elas estão em seus próprios quartos." A IWF rastreia, investiga e tenta remover centenas de milhares de exemplares de material de abuso sexual infantil de toda a internet. Fim do Matérias recomendadas A instituição diz estar confiante de que o aumento detectado de imagens é um reflexo do crescimento desse tipo de atividade, porque os níveis identificados em seus relatórios permaneceram relativamente semelhantes nos anos anteriores. Vídeos e imagens de abuso infantil gravados pelas próprias vítimas agora representam dois terços das imagens investigadas por analistas. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Os pesquisadores dizem que muitos dos vídeos são gravados ou transmitidos ao vivo de quartos ou banheiros, com sons de uma casa movimentada ao fundo. Eles geralmente são feitos em um chat ao vivo e gravados sem o conhecimento da criança para serem compartilhados e vendidos por pedófilos. A IWF é uma organização sediada no Reino Unido e diz que muitas vezes é difícil determinar, pelos vídeos, onde as crianças moram. No entanto, a organização diz que repassa os casos às autoridades se um uniforme escolar ou outros sinais estiverem visíveis. Das imagens, que a instituição de caridade estima serem de crianças de 7 a 10 anos de idade, mais de 8 mil itens continham o que é classificado como material de categoria A. Este é o tipo mais grave e pode incluir atividade sexual com penetração, imagens envolvendo atividade sexual com um animal ou sadismo. Em um vídeo visto por analistas da IWF, uma menina de 9 anos é chamada por adultos em uma plataforma online a realizar atos sexuais enquanto está em seu quarto cercada por brinquedos fofinhos. Ela é chamada a realizar desafios "super sujos" por uma webcam e é interrompida quando um suposto membro da família, alheio ao abuso que está ocorrendo, liga para pedir que ela prepare um banho para seu (suposto) irmão mais novo. A IWF está em contato com o governo do Reino Unido, mas diz que o material analisado vem de todo o mundo e a maior parte não está hospedada no Reino Unido. Quem perceber alguma atitude suspeita de violência contra a criança no Brasil deve fazer uma denúncia pelo Disque 100 (com funcionamento 24h, inclusive nos finais de semana e feriados) ou acionar diretamente a polícia pelo 190.
2023-01-27
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64420807
sociedade
A desconhecida 'rede de sorrisos' entre mulheres negras
Se você já viu duas mulheres negras se cruzando nas ruas e sorrindo uma para a outra, na maioria das vezes não é porque elas se conhecem ou já se viram em algum lugar. A socióloga Vilma Reis, especializada em Estudos Étnicos e Africanos, explica que essa é uma prática que remonta a séculos atrás: "A gente aprendeu quando não era possível falar absolutamente nada — na brutalidade do tráfico transatlântico, muitas vezes foi somente com olhar que a gente construiu revoluções". O mesmo vale para os homens negros, que nesse caso se referem a essa troca em inglês como nod, um aceno ou o que pode ser chamado nas periferias de "salve". Vilma tem uma forma mais abrasileirada de se referir à questão e usa um termo pelo qual pessoas escravizadas que tinham vindo na mesma embarcação se tratavam: "Eu uso a palavra malungo para falar desse acordo nosso sem poder falar, é um acordo malungo. Provavelmente o nod é o nosso Jeito Malungo de resolver a questão", diz. Fim do Matérias recomendadas "É o jeito da gente se olhar, todos nós carregamos códigos que fazem com que a gente se traduza." Essa troca de sorrisos pode ser cumplicidade, admiração ou uma identificação com símbolos comuns, como o crescimento recente do uso do cabelo natural. Nas ruas de Londres, eu abordei mulheres negras que sorriram pra mim em uma tarde fria de dezembro para saber por que elas acham que isso acontece. "Acho que primeiro nós reconhecemos os nossos. Nós temos todas essas questões em comum, então tendemos a cumprimentar", disse Cara Lloid, de 37 anos. "Há essa identificação imediata, a gente se olha e se vê", complementa Vilma. Podcast traz áudios com reportagens selecionadas. Episódios Fim do Podcast Apesar de acontecer em qualquer lugar, existem certos espaços onde essa cumplicidade se intensifica. "Se for um espaço majoritariamente negro, é mais difícil (acontecer) porque você não vai sair acenando para todas as outras mulheres, mas um espaço que tenha a presença negra de uma forma minoritária é quando elas visualizam uma a outra e realizam esse aceno", diz a antropóloga Elisa Hipólito. Cara Lloid concorda e diz que experimenta isso na pele: "Eu costumava trabalhar em uma área de maioria branca e, quando encontrávamos um dos nossos — e, quando eu digo um dos nossos, me refiro a alguém com quem eu me identifico —, nós éramos mais amigáveis uns com os outros", conta. Essa facilidade maior do aceno ocorrer em lugares de maioria branca faz muitas brasileiras experimentarem essa cumplicidade pela primeira vez quando saem do país. Segundo Vilma Reis, isso já acontecia quando ela era uma estudante em Viena, na Áustria, em 1993, mas também não deixa de ocorrer até hoje em espaços mais elitistas de São Paulo. "Em Viena, as mulheres nigerianas que lá vivem olhavam pra mim e a gente se identificava. Mas eu também sinto essa energia em São Paulo, que é uma cidade das congolesas, das angolanas, das moçambicanas. Nesses espaços onde nós não somos majoritárias, elas olham para mim com muita cumplicidade. Porque o corpo fala, corpo é texto", diz. Um outro motivo muito citado nas ruas para motivar a troca de sorrisos é uma admiração estética — o que Patrícia Louisor diz que já estava na hora de acontecer: "Acho ótimo porque, por anos, senão séculos, nós costumávamos lutar para sermos admiradas por pessoas brancas. E agora é uma época em que negros reconhecem negros, eu acho que é muito poderoso", conta. A antropóloga Elisa Hipólito concorda e diz que é comum uma mulher negra sorrir ao ver a outra usando seu cabelo na textura natural ou até mesmo trançado. "Remonta a um pertencimento, a uma certa resistência. Principalmente se você almeja usar seu cabelo na textura natural e vê uma mulher com cabelo crespo; você sente um fortalecimento, um apoio pra fazer isso com você mesma", explica. Nem sempre, porém, a vivência compartilhada que gera essa troca de olhares e sorrisos nas ruas é positiva. Uma mulher negra sabe o que a outra passa. Elas recebem os menores salários, são as que mais sofrem violência doméstica e as que mais encontram dificuldades para se sair bem no mercado de trabalho. No Brasil, por exemplo, são menos de 1% dos CEOs de empresas, e no Reino Unido o número é ainda menor. Para Elisa Hipólito, esse compartilhamento pela dor é igualmente potente: "Vilma Piedade, intelectual brasileira, fala do conceito de dororidade, que sobrepõe essa ideia da sororidade que a gente escuta tanto. É um termo para se pensar essa dor compartilhada entre mulheres negras, essa dor marcada pelo sistema patriarcal, mas também pelo racismo", explica. Para Vilma Reis, essa troca de olhares, de sorrisos ou de um salve tem a ver com a tentativa de resgate de uma união propositalmente desfeita séculos atrás. "Eles separaram o nosso povo ao descermos na diáspora. Separaram quem era Fulani, Igbo, Hauçá e Iorubá. Mas o nosso povo se juntou. Diante de todas as impossibilidades a gente construiu uma linguagem no olhar e a possibilidade de empatia e acolhimento no olhar", diz. A socióloga afirma que algo tão simples como uma troca de sorrisos nas ruas aponta para um movimento de resgate da autoestima e de potência da população negra. "É nós sabermos que estamos à margem, mas que a margem pode se juntar para criar uma nova centralidade."
2023-01-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64335991
sociedade
Vídeo, A desconhecida 'rede de sorrisos' entre mulheres negrasDuration, 6,07
As mulheres negras recebem os menores salários, são as que mais sofrem violência doméstica e as que mais encontram dificuldades para se sair bem no mercado de trabalho. No Brasil, por exemplo, são menos de 1% dos CEOs de empresas, e no Reino Unido o número é ainda menor. Uma mulher negra sabe o que a outra passa. E elas se apoiam todos os dias, todas as horas, sem nem ao menos se conhecer. E sem que a grande maioria das outras pessoas perceba. Neste vídeo, a jornalista Jamille Ribeiro conversa com mulheres que encontrou nas ruas de Londres e com especialistas. O tema: a troca espontânea de sorrisos entre mulheres negras em diferentes partes do mundo. Essa troca pode ser uma expressão de cumplicidade, admiração ou uma identificação com símbolos comuns, como o crescimento recente do uso do cabelo natural. Mas como isso começou? Assista e confira.
2023-01-26
https://www.bbc.com/portuguese/geral-64412759