File size: 67,023 Bytes
b092c58
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
34
35
36
37
38
39
40
41
42
43
44
45
46
47
48
49
50
51
52
53
54
55
56
57
58
59
60
61
62
63
64
65
66
67
68
69
70
71
72
73
74
75
76
77
78
79
80
81
82
83
84
85
86
87
88
89
90
91
92
93
94
95
96
97
98
99
100
101
102
103
104
105
106
107
108
109
110
111
112
113
114
115
116
117
118
119
120
121
122
123
124
125
126
127
128
129
130
131
132
133
134
135
136
137
138
139
140
141
142
143
144
145
146
147
148
149
150
151
152
153
154
155
156
157
158
159
160
161
162
163
164
165
166
167
168
169
170
171
172
173
174
175
176
177
178
179
180
181
182
183
184
185
186
187
188
189
190
191
192
193
194
195
196
197
198
199
200
201
202
203
204
205
206
207
208
209
210
211
212
213
214
215
216
217
218
219
220
221
222
223
224
225
226
227
228
229
230
231
232
233
234
235
236
237
238
239
240
241
242
243
244
245
246
247
248
249
250
251
252
253
254
255
256
257
258
259
260
261
262
263
264
265
266
267
268
269
270
271
272
273
274
275
276
277
278
279
280
281
282
283
284
285
286
287
288
289
290
291
292
293
294
295
296
297
298
299
300
301
302
303
304
305
306
307
308
309
310
311
312
313
314
315
316
317
318
319
320
321
322
323
324
325
326
327
328
329
330
331
332
333
334
335
336
337
338
339
340
341
342
343
344
345
346
347
348
349
350
351
352
353
354
355
356
357
358
359
360
361
362
363
364
365
366
367
368
369
370
371
372
373
374
375
376
377
378
379
380
381
382
383
384
385
386
387
388
389
390
391
392
393
394
395
396
397
398
399
400
401
402
403
404
405
406
407
408
409
410
411
412
413
414
415
416
417
418
419
420
421
422
423
424
425
426
427
428
429
430
431
432
433
434
435
436
437
438
439
440
441
442
443
444
445
446
447
448
449
450
451
452
453
454
455
456
457
458
459
460
461
462
463
464
465
466
467
468
469
470
471
472
473
474
475
476
477
478
479
480
481
482
483
484
485
486
487
488
489
490
491
492
493
494
495
496
497
498
499
500
501
502
503
504
505
506
507
508
509
510
511
512
513
514
515
516
517
518
519
520
521
522
523
524
525
526
527
528
529
530
531
532
533
534
535
536
537
538
539
540
541
542
543
544
545
546
547
548
549
550
551
552
553
554
555
556
557
558
559
560
561
562
563
564
565
566
567
568
569
570
571
572
573
574
575
576
577
578
579
580
581
582
583
584
585
586
587
588
589
590
591
592
593
594
595
596
597
598
599
600
601
602
603
604
605
606
607
608
609
610
611
612
613
614
615
616
617
618
619
620
621
622
623
624
625
626
627
628
629
630
631
632
633
634
635
636
637
638
639
640
641
642
643
644
645
646
647
648
649
650
651
652
653
654
655
656
657
658
659
660
661
662
663
664
665
666
667
668
669
670
671
672
673
674
675
676
677
678
679
680
681
682
683
684
685
686
687
688
689
690
691
692
693
694
695
696
697
698
699
700
701
702
703
704
705
706
707
708
709
710
711
712
713
714
715
716
717
718
719
720
721
722
723
724
725
726
727
728
729
730
731
732
733
734
735
736
737
738
739
740
741
742
743
744
745
746
747
748
749
750
751
752
753
754
755
756
757
758
759
760
761
762
763
764
765
766
767
768
769
770
771
772
773
774
775
776
777
778
779
780
781
782
783
784
785
786
787
788
789
790
791
792
793
794
795
796
797
798
799
800
801
802
803
804
805
806
807
808
809
810
811
812
813
814
815
816
817
818
819
820
821
822
823
824
825
826
827
828
829
830
831
832
833
834
835
836
837
838
839
840
841
842
843
844
845
846
847
848
849
850

FRAGMENTS
DE MEMORIAL
As Encruzilhadas no Caminho¹
Este capítulo é dedicado aos companheiros do Kibutz Bror Chail, das diversas gerações,
que em suas vidas realizaram a vivência do movimento, criaram
um estabelecimento no Neguev e definiram fronteira.
Introdução
A geração dos fundadores do movimento encontrou-se no mundo caótico que se
formou depois da grande guerra, diante de questões cuja compreensão global era difícil.
A Europa estava destruída, e o que sabíamos sobre o Holocausto não nos possibilitava
compreender a profundidade da tragédia. No pano de fundo da matança de populações
gigantescas (ainda não conhecíamos o número monstruoso da morte de 57 milhões de
pessoas), parecia a luta da pequena coletividade em Eretz Israel frente ao império
britânico e o mundo árabe verossímel somente aos olhos de sionistas crentes, e esses
eram poucos. Lidamos com o começo do estabelecimento do povo, sem saber de
antemão as dimensões de nossa ação e o preço do sacrifício. Não sabíamos quem
seriam os futuros parceiros na construção do país, e poucos foram os que previram que
faríamos frente aos nossos vizinhos nas desgastantes guerras de várias gerações. No fim
da guerra, quando tomamos conhecimento do holocausto acontecido na Europa, eu me
encontrei em pleno processo de assimilação à sociedade e cultura brasileiras. A
contradição entre os dois processos, o pessoal de um lado, e o do povo judeu de outro
lado, me conduziu a uma crise espiritual e emocional profunda. Essa diferença acionou
dentro de mim um processo intransigente de procura espiritual e intelectual, não só nas
minhas raizes familiares, mas também na tentativa de entender o meu judaismo, a
natureza do Holocausto e suas causas. Queria saber para onde conduzem os caminhos
do judaismo após o evento de caráter apocalíptico. Nessas procuras, e com a sensação
interna que meu caminho e meu futuro exigem respostas apropriadas, comecei a jornada
sem que tivesse idéia da longitude do tempo e para onde me conduziria ao fim do
caminho. As incertezas se apresentavam diante de mim quando saí para o caminho no
qual os pontos de interrogação conduziam.
A Família na Polônia
Minha família é originária da Polônia e se espalhou pela região de Lublin. Eu nasci
no ano de 1927, na casa de meu avô, Zeev Goldman, pai de minha mãe, na cidade de
Chelm. Quando eu tinha dois anos de idade, meu pai viajou para o Brasil à procura de
sustento, e nós continuamos a viver com meu avô até a sua morte, em 1933. A irmã de
minha mãe vivia em Lublin e seu irmão numa fazenda cerca de Zamosc2 Meu avô
Aharon Zimering, pai de meu pai, vivia com sua grande família em um Shtetel (aldeia) em
Piaski. Eu chegava em visitas constantes em casa de meus parentes, uma ou duas vezes
ao ano na casa dos tios, e nas festas grandes na casa de meu avô Aharon.
Mas a vida real vivi com meu avô Zeev Goldman. Ele foi a figura proeminente da
minha vida. Foi para mim um atenuante em muitas horas de angústia que tive em minha
vida.
No princípio de 1934 recebemos as passagens e embarcamos para o Brasil.
Durante a viagem através do grande oceano, sobre o qual eu sabia somente das estórias,
senti-me solitário e livre. Ao an do mar, que purifica a alma, lembrei-me da época em que
a figura de meu avô se elevava, e só ela me proporcionava a justificativa de existência,
nessa época. Saí da Polônia com as sensações de uma criança alienada, sem vivência
judaica arraigada. Não vivenciei uma casa judaica organizada, sinagoga com suas rezas
e comportamentos, e nem escola judaica em yidisch ou em hebraico. Tudo isso me
prejudicou quando me expus à corrente arrastadora e assimilante da cultura brasileira.
2
Falava polonês e ouvia yidisch em casa, enquanto que o russo era o idioma que falavam
os adultos quando não queriam que eu entendesse, de forma que eu não podia sentir
nenhuma delas como minha língua-mãe. o português, aprendi rapidamente, como meio
de integração no novo ambiente.
Brasil
Moramos em Santos, numa casa conjugada, com uma família local. Os assuntos
materiais não me preocupavam, a maior dificuldade que encontrei na minha chegada ao
Brasil foi o encontro com meu pai, entender e aceitar a sua posição na hierarquia familiar,
e aceitar que a vida que tive com meu avô tinha sido especial. Lembrança que aparecia e
sentia com saudade e em sonhos.
Também no Brasil eu não tive uma casa judaica ativa, sem sinagoga e sem escola
judaica. Expus-me inteiramente à vivência brasileira, que era católica na sua essência e
assimiladora em seu caráter.
A luta principal pela minha sobrevivência eu mantive na escola. Em um ano aprendi
o português, esqueci completamente o polonês que sabia, e absorvi o yidisch, que era
necessário para a comunicação em casa.
Os quatro anos de escola primária passaram rapidamente. Eles deixaram frutos
valiosos, como o domínio do idioma, integração na sociedade juvenil, que incluiu a
introversão da tolerância, principalmente a tolerância racial com relação aos tons de cor
dos mestiços, mulatos, cafusos, e as misturas deles. Os japoneses também entraram na
mistura de todos os tons de branco e suas raizes, os italianos, os espanhois, os
portugueses. Meu relacionamento para com os alemães era diferente, em comparação
com os outros grupos étnicos. Diferença que se desenvolveu durante a guerra civil
espanhola e depois, com o domínio de Hitler sobre a Europa. Meu pai lia os jornais diários
em português e jornais em yidisch e nos explicava o que ocorria no mundo, o que me
ajudava muito nas discussões que tinha na escola. No ambiente de pré-guerra, com a
presença de representantes de todas as partes do conflito, eu me via obrigado a participar
nelas, principalmente por ser judeu-polonês. E eu o fiz numa proporção de violência não
despresível, para me sobrepor à timidez e aos temores que se desvendaram no processo
de minha adolescência.
Minha Libertação do Gringo
Não entendi o conceito de gringo como um símbolo coletivo, não identifiquei que
entre eu e os japoneses e os alemães houvesse alguma ligação essencial, a vivência de
imigrante. Os professores ajudaram muito, o diretor da escola foi como um raio de luz. Eu
me esforcei muito, deve-se ter sucesso para escapar do estigma de imigrante, de
estranho, da con e natureza diferente dele, expressando isso com um quase cinismo. No
início se olha para ele, escarnea e zomba dele. Porém, no momento em que ele perde um
pouco da característica estranha e estrangeira do imigrante, ele desaparece e é engolido
pelo todo. No final das contas, eu tive que me defrontar com essa questão, com minha
identidade polonesa judaica, frente a necessidade de chegar a ser como um deles.
No folclore e na cultura brasileira, Judas Iscariotes é lembrado e comemorado com
a queima de sua imagem numa orgia popular. Em português, a semelhança entre judeu e
judas (o nome de Judas Iscariotes) tem origem na crença popular. Esta semelhança entre
os dois conceitos é percebida mais na realidade histórica. Emigraram para o Brasil muitas
famílias de "cristãos novos", com o objetivo de fugir da Inquisição, pois que foram
perseguidos também lá por seus emissários. Quase ao mesmo tempo, chegaram ao
Brasil cerca de um milhão de escravos da África, que adotaram o cristianismo e a cultura
por compulsão e violência de padres fanáticos.
o Brasil dos anos de 30 estava sob a ditadura de Vargas, regime parecido ao
fascismo, equipado de todos os elementos por nós conhecidos de regimes como este, tais
3
3
como censura jornalística, polícia secreta, prisão de suspeitos políticos, torturas,
desaparecimento de opositores, e existência do movimento fascista, o Integralismo, que
não chegou ao poder. O regime revelou simpatia para com os paises do Eixo (Alemanha,
Itália e Japão), e fizeram isso com todo o cuidado, pois o Brasil se encontra na América.
Durante a guerra civil espanhola, o ambiente geral era favorável a Franco, e não
somente entre os imigrantes espanhois e descendentes dos paises do eixo. Eu não sabia
distinguir entre os nacionalistas e os republicanos, até que meu pai me explicou a
realidade mundial e que a luta que estavam empreendendo os republicanos na Espanha
estava relacionada com a luta global que empreendem as forças liberais e esquerdistas
contra o fascismo.
o Incidente Anti Semita na Escola
Os descendentes de imigrantes alemães, espanhóis, italianos e portugueses que
estudavam na escola apoiavam a tendência nazi fascista difundida pelo mundo, e no
seu entendimento, este modelo será o modelo do mundo de amanhã. Quer dizer, eles
vencerão os regimes democráticos, que não são senão "burguesia podre na sua
essência".
No quarto ano de meu estudo ginasial, desenvolveu-se na classe uma situação à
qual eu não estava atento. Num diálogo tenso com o professor, Abraham Ziman, meu
amigo judeu da classe fez uma observação, em consequência da qual o professor elevou
sua voz e vociferou: "vocês os judeus têm que se calar, pois vocês são um povo de
covardes" Levantei-me instintivamente, passei voando os passos até o professor, e então
saltaram sobre mim três ou quatro alunos e à força me imobilizaram, me afastaram dele, e
me mandaram para casa. Espalhou-se o boato que resolveram me expulsar da escola.
Um ato como esse, no qual um aluno ameaça o professor é considerado uma atitude
muito grave em qualquer critério. Voltei para casa e contei tudo a meu pai. Ele respeitou a
minha coragem, tentou me acalmar e disse que iria falar com um advogado renomado.
Passei dias difíceis de tensa expectativa e incerteza. No fim das contas, fomos
convidados, meu pai e eu, ao diretor da escola, que condenou o meu comportamento, e
sem se relacionar ao motivo da crise, exigiu que eu me comprometesse a voltar a ser um
aluno quieto e comportado. Meu pai reagiu positivamente, e eu entendi que este era um
caminho inteligente para encerrar o caso. Com a minha volta à classe, senti que o
relacionamento para comigo mudou para pior. Meu pai viu no incidente expressão do anti
-semitismo enraigado, diferente do católico polonês, na expressão mas não no conteúdo.
A Doença de Meu Pai
No quinto ano do curso médio meu pai adoeceu, e ficou claro que somente eu
poderia substitui-lo nos seus negócios de vendedor ambulante, "profissão" judaica que
era muito difundida entre imigrantes em todo o continente. o vendedor ambulante, que
geralmente mal conhece algumas palavras da língua local, oferece a sua mercadoria,
utensílios domésticos e roupa popular, para a população mais pobre. Os vendedores
ambulantes viajavam de bonde, o meio de transporte coletivo mais barato, e
principalmente andavam a pé. As compradoras eram mulheres que não podiam comprar
as mercadorias nas lojas ou não podiam pagar à vista. As mercadorias eram de baixa
qualidade e baratas. Elas compravam a prestação e costumavam dividir o pagamento por
muitos meses. Elas tinham todas as tonalidades de pele, desde o negro até o branco,
com mesclas de amarelo índio. Havia famílias inteiras que não conheciam uma letra
escrita, e em muitos casos as crianças não frequentavam escolas para trabalhar e ajudar
na economia familiar. Eles eram candidatos naturais ao crime, à prostituição e à pobreza.
Parte dos chefes de família eram trabalhadores do porto, organizados em sindicatos, e
cuja situação era estável.
4
4
o vendedor ambulante se punha à porta da casa do cliente, batia palmas,
conforme o hábito local, e então ouvia-se a voz de uma menina, pequena ou grande, que
anunciava, em tom de desprezo, a chegada do estrangeiro: "mãe, o judeu, ou em
alternativa, o turco, o sírio, o libanês, o polaco, o russo ou o gringo". As negociações se
realizavam como num bazar turco, com a diferença que o imigrante dificilmente falava a
língua de seus fregueses. Ele tinha que vender e ela queria comprar. As limitações
econômicas criavam pressões psicológicas, pois ela não tinha dinheiro próprio. Ela era
jovem quando encontrou o seu "amigo", e na maioria dos casos não se casaram. Quando
engravidou, passaram a viver juntos. As crianças vieram ao mundo uma após a outra. o
amigo é o mantedor e nem sempre ele está ciente de suas compras do mascate. Mais de
uma vez ele batia em sua mulher: "porquê você compra dele, são todos uns ladrões". E
não poucas vezes lhe batiam a porta.
Este era um trabalho duro, que exigia andança e carga de mercadoria durante todo
o dia, num clima quente e úmido na maior parte dos dias do ano. Na época das chuvas
era ainda mais difícil. A dificuldade estava no desconhecimento da língua, no primeiro
contato insultante, e depois, a dificuldade de receber o dinheiro da venda da mercadoria a
prestações. Os compradores sempre tinham desculpas. Mas os vendedores não tinham
outra alternativa. Alguns tiveram sucesso em seu trabalho e após alguns anos abriram
loja, e alguns passaram da loja para pequenas empresas ou fábricas. Essa geração se
sacrificou nesse trabalho para sustentar sua família e educar seus filhos, e com a
resolução firme de não permitir que eles experimentassem a mesma vivência. De fato,
seus filhos não concordaram em se ocupar disto, em qualquer condição e a nenhum
preço.
Meu pai adoeceu, era necessário operá-lo. Passamos juntos sobre o material
escrito e selecionado para o dia seguinte. Ele mapeava para mim as ruas e os meios de
transporte. Antes da minha entrada na casa do cliente, me atacava uma sensação interna
de vergonha e medo, e mais de uma vez eu saia depressa para que não me vissem.
Girava pela redondeza, e no fim me via batendo palmas. Os clientes aproveitaram a
ausência do meu pai e a minha falta de experiência para escaparem do pagamento das
dívidas. Os primeiros dias andava com medo e profunda frustração de que o dinheiro era
necessário para a manutenção da casa. Esta foi a primeira vez que entrei em contato com
o povo. Era difícil não valorizar a capacidade de resistência e não desenvolver empatia
em face ao seu sofrimento. Nós também sofremos, mas era um sofrimento com
esperança, vimos vizinhos e amigos que sairam dessa situação e viram bênção no seu
trabalho. Eu não tinha instrumentos de análise intelectuais para analisar a sua situação,
só sentimentos de identificação, preocupação mesclada com vergonha e desespero.
Olhar as suas dificuldades, a situação sub-humana de suas vidas. Gostava deles,
honrava sua coragem no enfrentar o destino, que começou na época da escravidão, e é
muito difícil ver as suas condições, cerca de cem anos após a abolição da escravatura.
Toda a minha alma se revoltou contra a profunda brecha existente entre a riqueza da
natureza e a miséria do homem. Na perspectiva do tempo, eu agradeço a oportunidade
que me possibilitou conhecer aquelas pessoas. Ela me possibilitou cristalizar, com
respeito a elas, uma relação de honradez e estima e basificar concepções sociais, que
adotei não somente na sabedoria escrita, mas também no respeito humano.
No quinto ano de meus estudos no curso médio, foi realizada uma reforma no
sistema educacional brasileiro, segundo o qual eu teria o direito de passar a estudar um
ano no curso pré-universitário. Por motivos burocráticos e econômicos, encontrei-me dois
anos na cidade de Itu. Vou passar por sobre os motivos, sobre o programa, sobre o nível
dos estudos e as vivências nesta cidade provinciana e especial e me concentrarei nos
assuntos que se juntaram ao meu conhecimento e à minha consciência.
Num mundo em estado de guerra, e num ambiente carregado de ideologia, nos
ocupamos dela em abundância. Quis meu destino e encontrei dois excelentes
5

porofessores para a vida, que estiveram na Europa após a Primeira Guerra Mundial e
vivenciaram na própria carne a subida do fascismo na Itália e a guerra civil na Espanha.
Passei muitas horas nas sapatarias deles e escutei as suas opiniões sobre a classe
operária européia entre as duas guerras mundiais. Um era socialista e o outro anarco
sindicalista. o que unia as suas opiniões era a potência da Alemanha nazista e o
retrocesso real do comunismo stalinista. Absorvi essas idéias sem críticas. Aprendi com
os dois, para a cristalização das minhas concepções.
Próximo ao fim da guerra, nos anos de 1944 1945, houve uma trégua entre
Vargas, o presidente para fascista do Brasil, e Prestes, o líder lendário do Partido
Comunista. Foi permitido ao Partido Comunista aparecer em público sob o disfarce de
organizações em prol da democracia, e em pouco tempo apareceram em todo o Brasil
clubes abertos que se denominaram "Centro Democrático", cujo sucesso lhes foi
garantido graças à grande experiência que acumularam na ilegalidade.
Só falta de experiência e precipitação podem explicar a minha prontidão de ser
atraído para a experiência comunista. o meu "recrutador" era também aluno da escola e
os encontros entre nós se revestiram de caráter subversivo. As células eram pequenas e
só ele sabia sobre elas. Ouvi conferências, participei de encontros com os "Heróis
Subterrâneos". Mas, compreendi que meu amigo era mais entendido em recrutar e
organizar do que no campo ideológico do modelo stalinista. Pedi material e livros que me
eram difíceis de conseguir, como "A Introdução ao Marxismo", de Plekhanov, "O Estado e
a Revolução", de Lenin, "O Problema Nacional", de Stalin, e a adição de brochuras que
glorificavam "o sol dos povos" e o paraíso soviético, e principalmente hinos de louvor ao
heroísmo supremo do Exército Vermelho e do povo russo. A contribuição das Forças
Unidas na vitória sobre a Alemanha não era lembrada siquer por uma palavra. o meu
"recrutador" desapareceu de repente, e pude escapar dessa armadilha. No futuro, quando
ainda me ocupava de discissões ideológicas entre os diversos movimentos, abençoei o
hábito que adquiri de prestar atenção e a importância do estudo ideológico. Sem isso, não
há possibilidade de estudar e compreender a realidade social e política.
Nos anos de 40, Itu era uma cidade católica, com muitas igrejas e ampla atividade
religiosa eclesiástica, principalmente aos domingos, nos quais costumavam famílias
inteiras ir à igreja e os jovens costumavam se encontrar antes e depois da missa. Eu
também vivi esta experiência, e costumava me encontrar com a minha namorada após a
missa, sob o olhar inquiridor da sua mãe, e passeávamos em torno do jardim público. À
pergunta porque não entra na igreja, se os poloneses, em geral, são católicos apegados?
"Eu tenho um adendo ao meu polonês, eu sou também judeu". A resposta não
surpreendeu, pois em diversas ocasiões eu assim respondia, e ao mesmo tempo evitava
conversas sobre assuntos religiosos. Eles eram entendidos na tradição católica, e eu não
senti a necessidade de ser adversário, tinha consciência da minha ignorância como judeu.
À minha namorada perturbava o fato que eu a esperava fora da igreja. Ela voltava ao
assunto e à sua perturbação, e lembrou as palavras do padre que à entrada da igreja,
antes da "cisterna de água benta" há um espaço grande, que segundo a tradição católica,
é permitido aos "não crentes" visitar, inclusive aos judeus. Suas preocupações, e não a
explicação teológica, elas que me fizeram esperá-la no lugar destinado aos "não crentes".
A missa em latim e o canto gregoriano na igreja provinciana no estilo português colonial,
tudo isso não me impressionou. Mas continuei realizando o cerimonial até que deixei Itu.
o período de dois anos que passei em Itu, no seio da sociedade brasileira, longe da
família e da comunidade judaica, possibilitou-me ampliar a minha compreensão dela, de
ângulos e pontos de vista diferentes, e é impossível não gostar dela.
Após menos de um ano, na crise espiritual e sentimental em que me encontrei no
meu retorno ao judaismo ativo, lembrei-me com relutância do período "eclesiástico" de Itu.
Pois, eu vinha de casas muito religiosas, meu avô era de Piaski, devoto declarado do
"rabino de Trisk", e meu avô Zeev, à sombra de quem fui educado, construiu uma
6
sinagoga em nome de sua família, e cumpria os preceitos religiosos, tanto os fáceis
quanto os difíceis. Meu pai era religioso que cumpria os preceitos nas condições da
época, a comida Kosher ele trazia de São Paulo, e em sua velhice construiu a sinagoga
da coletividade em Santos.
São Paulo
Inscrevi-me numa escola que era uma espécie de preparação para a universidade
(cursinho), na qual estuda-se as matérias para o vestibular da Faculdade de Medicina,
física, química e biologia. Depois de poucas semanas de estudo, tive a certeza que não
tinha chance de enfrentar a prova de ingresso para a universidade, que estava lotada de
candidatos que vieram dos melhores ginásios do Estado de São Paulo. Entrei em crise
pessoal, pois sabia das dificuldades econômicas de meu pai, dificuldades que se
agravaram devido à operação que minha mãe tinha que ser submetida com urgência pelo
seu estado crítico. Minha irmã Ida cresceu, e com ela as despesas. Sentei com meu pai e
expus diante dele as alternativas e eu disse-lhe que eu achava que não estava capacitado
para ser bem sucedido no vestibular e que eu necessitava aulas intensivas, e também
achava que não haverá prejuízo para mim se eu interromper os estudos por um ou dois
anos, para ajudá-lo, pois eu conheço o trabalho, e quando sentirmos que a tensão baixou,
voltarei a estudar. Meu pai disse simplesmente que ele não trabalhou a vida toda para
que eu volte a esse trabalho desprezível. Sua posição bancária era estável, e não há
investimento melhor do que financiar estudos. Aceitei o veredito e cheguei a São Paulo,
onde encontrei uma residência, onde me forneciam alimentação a preços razoáveis, e
havia também transporte fácil para chegar à escola.
Hershel Mlinash
o catalizador que mudou a minha vida na época da minha crise foi um amigo de
meu pai, no passado membro da direção do Hashomer Hatzair de Varsóvia, homem culto,
que sabia hebraico e manteve relações com seus companheiros que emigraram para
Israel. Quando passei, por acaso, em frente à sua loja na Rua Prates, me chamou e disse
que tinha um assunto importante sobre o qual queria conversar comigo. Voltei no dia
seguinte e ele começou a conversa contando sobre o Holocausto e a destruição do
judaísmo europeu. Eu sentei, tenso e atento. Ele falou durante horas, às vezes eu o
interrompia com perguntas, e ele contou de forma seca, exata, aquilo que sabia. Ele foi
obrigado a se confrontar com as minhas perguntas sobre o povo judeu, a religião e a
história judaica, pois eu era completamente ignorante no assunto. Não deixei em branco
nenhuma pergunta. Eu tinha necessidade de um apoio interno mais sólido, para me
defrontar com problemas de tal amplitude. Ainda não havia usado a expressão l'extermínio
do povo judeu na Europa'. Depois disso, começou a falar comigo sobre Eretz Israel,
Palestina, as lutas, sobre os ingleses e os árabes. Falou sobre a Palestina como único
refúgio para a salvação dos sobreviventes do holocausto. Estávamos na época do 'livro
branco' também esse conceito ele me esclareceu ele, entretanto, falou em termos
gerais, e eu entendi o princípio da história do processo da colonização em Israel, dos
kibutzim, dos movimentos juvenis. Ele, claro, acentuou o "Hashomer Hatzair" e me
explicou que existe movimento sionista no Brasil. Isso não era um processo de
"recrutamento", ele não tentou me recrutar, ele também não era ativo em qualquer
instituição judaica. Eu não sabia que, na realidade, eu começara um processo doloroso e
difícil de identificação com o sofrimento dos outros, a aproximação repleta de dor à
tragédia do povo judeu. Ainda não conseguia dizer simplesmente meu povo, o povo ao
qual pertenço. Ao fim de muitas horas de conversas com Mlinash, senti uma carga
emocional e intelectual que me foi muito difícil de suportar. Disse-lhe que eu precisava ler.
Esta é uma estória difícil, e eu tenho dificuldade de absorvê-la sem leitura adicional. Ler
atenciosamente eu já sabia. Ele disse que podia me dar jornais, mas não era isso: no
jornal de ontem ou da semana passada não poderia ler sobre a Europa e nem sobre o
judaísmo europeu ou a Polônia ou todas as coisas que me havia explicado sobre o povo
judeu. Pois, ele usou o conceito de 'nacionalidade judaica' e negligenciou a religião
judaica. Então, também sobre a história judaica de que falou, eu tinha que ler. Ele me
explicou que não tinha tal literatura, mas que numa rua próxima havia uma organização
de jovens com uma boa biblioteca. Mlinash não se propos a me orientar nesta tarefa,
dizendo claramente que não era instruído suficientemente.
Leitura e Primeiras Palestras
o material para a leitura encontrei no Centro Hebreu Brasileiro, onde se localizava
parte das instituições sionistas; ali também se encontravam moços e moças sionistas para
atividades de estudo, mas principalmente para se divertirem, e como foi dito, havia lá uma
bibliteca judaica.
Nós nem sempre demos o devido valor histórico ao Centro Hebreu Brasileiro.
Deve-se acentuar que ele foi o ninho de onde surgiram todos os movimentos juvenis
pioneiros de São Paulo. Papel semelhante ao que foi preenchido no Rio de Janeiro o
Ginásio Hebreu.
Li A Questão Nacional de Chaim Zhitlovski em yidish, um trabalho duro, Simon
Dubnow, Heinrich Graetz e Theodor Herzl em espanhol, a Autoemancipação de Leon
Pinsker em português, com uma introdução excelente de Idel Becker.
Escrevi notas sem fim, passaram-se dias, passaram-se noites. Lia em meu quarto
e não me saciava. E em cada livro descobria coisas novas. Fiz uma lista de temas que
sabia, ao lado de uma lista inteira de assuntos que eu deveria repassar e reestudar, e era
preciso procurar outros livros, e outros assuntos que eu só podia adivinhar a sua
existência. Vivia de forma espartana. Não chegava em casa, nã me encontrei com meu
pai, e não me preparei para o curso próximo.
Resolvi procurar trabalho e me sustentar. Fiszel Czeresnia era secretário da Magbit
(Fundo Nacional) e me deixou preparar a lista dos contribuintes. Fazia o trabalho às
noites. Minha vida começou a mudar e nas manhãs sentava-me horas na leitura de
livros. De repente, apareceu um elemento novo na minha vida-o tema da "nacionalidade".
O material básico encontrei em Zhitlovski e Dubnow, e no livro de Stalin sobre "O
Problema Nacional". As notas que fiz desses livros eram matéria imatura, mas quando
comecei a dar palestras (a primeira foi no centrinho) ela chamou a atenção. Com o correr
do tempo, quando acumulei conhecimento e experiência, voltei a ela muitas vezes, era
sério e sombrio. Não me lembro que nesta época tivesse alegria de viver, riso e sorriso
não me vinham à face. Os estudos, abandonei. Não era conhecido, mas começaram a se
dirigir a mim jovens, não muito mais do que eu, e me esforcei em responder-lhes. Fui
convidado uma, duas vezes a encontros do 'Hashomer Hatzair', que foram orientados por
dois adultos, antigos ativistas do movimento polonês, cheios de entusiasmo. Não me
empolguei da intromissão extranha do "escotismo", e das palestras em yidish sobre a
política sionista.
Um dia recebi um convite para me apresentar numa grande assembléia que foi
realizada num cinema, com a finalidade de protestar contra o 'livro branco" dos ingleses.
Não tinha qualquer experiência em apresentação diante de público, e estava bem
emocionado e tenso. Preparei-me por escrito, o que se tornou um hábito. A sala foi se
enchendo devagar. No palco sentaram-se os representantes das autoridades, e o orador
principal foi Beno Milnitski, líder conhecido dos estudantes judeus nas universidades. o
discurso do Beno foi uma obra-prima e falou em tom moderado e numa linguagem rica.
Quando chegou a minha vez, à minha falta de experiência se juntou o meu
temperamento, que libertou de dentro de mim a raiva e o protesto que nunca tinha sido
ouvido até então. Meu discurso foi forte e agressivo. Seu motivo era um protesto contra a
política britânica e alusão ao fato de que o Brasil não moveu um dedo na campanha
internacional. Não sei onde ele se criou com certeza na minha alma, que já sofria há
alguns meses. No começo fez-se um silêncio absoluto, que parecia prolongar-se pela
eternidade, e então de repente, veio uma tremenda explosão de aplausos e gritos, o
coração do público fez-se ouvir. A instituição judaica criticou a minha apresentação, de
onde apareceu esse selvagem?
Depois da minha aparição no cinema, que teve muita repercussão, fui convidado a
todas as partes de São Paulo. Intensificaram-se as conversas com jovens, e fui convidado
a dar palestras sobre assuntos que desenvolvi. Comecei a dar palestras em reuniões em
casas de família, em organizações, em sinagogas, em casas particulares e eventos
públicos em São Paulo e em seminários nacionais sobre assuntos como: "Sionismo e
Nacionalidade Judaica", "Socialismo e Sionismo Socialista", "O Holocausto e o Anti-
semitismo Moderno", "Movimentos Juvenis e sua Divisão Partidária", " o Conflito Entre
Judeus e Árabes em Eretz Israel", "O Judaísmo Brasileiro e a Realidade da Assimilação".
Senti um enorme cansaço do ano carregado que passei e do processo de
amadurecimento. Meu calendário se preencheu, mas senti que as minhas energias
espirituais se enfraqueceram. Senti e pensei que era chegada a hora de uma auto -
revisão, ainda não assumi a responsabilidade sobre a ação, mas senti que isso era
inevitável quanto mais falava, mais ampliava-se a minha compreensão do sentido da
ação. Eu não só falava, mas também ouvia e considerava uma ampla variedade de idéias.
Minhas Conversas com Idel Becker
Tive contatos com as pessoas principais do Centro, na maioria pessoas boas e
capacitadas, entre os quais alunos do seminário para professores de hebraico, donos de
rico conhecimento judaico, sendo que parte deles vinha de casas tradicionais. Este
pessoal passaria no futuro para o movimento Dror, e ele passou para si o Centro. Neste
grupo salientava-se Benjamin Raicher, que foi agraciado com uma rara capacidade para
idiomas. Ele estudou no seminários para professores e tinha grande conhecimento
judaico e geral. Desde o princípio ele demonstrou grande ceticismo a meu respeito, na
maior parte das vezes fazia perguntas nas quais ele era o mestre e eu simplesmente
principiante. Finalmente ele propos que fôssemos falar com o Doutor Idel Becker,
professor de espanhol no ginásio, cujo nome era muito considerado entre seus alunos.
Ele ficou conhecido pela sua tradução da Autoemancipação de Pinsker, ao qual ele juntou
uma introdução, trabalho louvável do ponto de vista intelectual. Ele manteve distância de
qualquer atividade pública.
Benjamin não preparou o Dr. Becker sobre o conteúdo da conversa. Ele começou
explicando as dificuldades da tradução, principalmente da introdução, para facilitar a
divulgação do livro e sua receptividade pela juventude. Ele era uma pessoa
impressionante, e as conversas com ele eram interessantes, porém não tocaram na
realidade trágica dos judeus em Eretz Israel, na luta contra os ingleses, e o destino do
povo judeu depois do Holocausto. o que me preocupava era: o que fazer agora? Ler
Hertzel e Pinsker e ampliar a minha compreensão? Para pessoas como eu, levanta-se a
pergunta, será a autoemancipação possível? E no caso positivo, o que nós devemos fazer
para concretizar a situação histórica?
Na conversa com Idel Becker falei em linguagem incisiva, procurei evitar o rococó
intelectual e o virtuosismo da linguagem. Criou-se uma situação muito desconfortável.
Ficou claro que Becker não tinha qualquer interesse pelas minhas perguntas, e ele não
via qualquer obrigatoriedade de agir. Sua parte neste grande drama ele terminou com a
tradução do livro, com a escrita da introdução e com conversas com pessoas, enquanto
eu procurava uma pessoa que me desse respostas aos problemas centrais da minha vida,
e ele não era a pessoa. Não conhecia, então o ditado de Zen: "Você adquire um Mestre
para se libertar do Mestre". Quando saímos, o Benjamin estava abalado. "Não é assim
que se fala com o Idel Becker") A mim, a conversa não emocionou. Não fui para um
desafio intelectual, jogar xadrês com um adversário melhor do que eu.
Minhas atividades atraíram as atenções. Talvez pela minha personalidade diferente
e extranha. Eu ardia internamente, pensava e investigava, estudava e perguntava, na
minha apresentação não havia qualquer elemento de pose, eu era transparente.
Judeus Cosmopolitas
Uma vez fui convidado para uma conversa num grupo diferente, todo ele europeu.
Parte dele era de imigrantes e parte dele pertencia à camada intelectual literária do tipo
Stephan Zweig e semelhantes, gente do grande mundo. A particularidade se expressava
na atmosfera, nos seus livros e no tipo de pessoas que vieram à sua casa. Eles me
convidaram para uma conversa. Frente ao meu provincialismo, eles apresentaram um
extremo mundo cultural e espiritual. Eu penso que o que me atraiu a eles foi o seu amplo
horizonte, e a visão de mundo e de vida deles além do shtetel. Eles falaram sobre Riga,
Berlin, Londres, Suécia e Normandia. Desde o início interessei-me pelo caráter especial
do nacionalismo judaico e judaismo laico. Eles viviam vidas cosmopolitas, num judaísmo
que estava mesclado com a cultura universal. Eu não tomei a iniciativa de siquer um
desses conhecimentos, mas eu sou feliz por eles terem acontecido no meu caminho, e
eles tiveram uma contribuição de valor inestimável no meu amadurecimento intelectual e
espiritual.
Outro conhecimento foi com Itzchak Kissin, engenheiro florestal que falava
hebraico fluente. Ele me contou sobre Eretz Israel, que visitou muitas vezes. Dele aprendi
muito sobre Israel, sobre o kibutz, sobre o moshav e sobre os problemas fundamentais do
país desértico. Ele me mostrou um livro sobre os judeus da África do Norte, do lemen, do
Iraque, sob o nome generalizado de "Os Judeus Exóticos", que foi publicado na
Alemanha. Ele apresentou diante de mim um quadro objetivo e complexo da realidade em
Israel, sem idealizações, principalmente no que diz respeito à crise cultural que acontecia
em Israel que, na sua opinião, iria perdurar por gerações. Também a sua visão sobre a
realidade política com respeito às relações entre a colónia judaica e os árabes em Eretz
Israel era singular e pessimista. No seu círculo, já entendiam o desenvolvimento do
nacionalismo árabe. Ele criticava a fraqueza da posição do Hashomer Hatzair, que
defendia a solução de um país bi-nacional. Ele apresentou uma visão geral e realista da
situação em Israel, frente às estórias que ouvimos, lemos e vimos nas fotografias que nos
eram apresentadas pelo Keren Kaiemet (fundo para a compra de terras).
A Casa do Povo
Todas as semanas, à noite, tínhamos discussões numa das esquinas das ruas do
Bom Retiro, com um grupo de estudantes, a maioria deles sob a camuflagem da Casa do
Povo. Eles eram membros do Partido Comunista, ou seus simpatizantes e apoiadores. o
objetivo das discussões era o de influenciar na opinião pública da comunidade, mas
principalmente na opinião da juventude. Os assuntos iam desde o Holocausto e a
Alemanha, o destino do povo judeu depois dele, o conflito em Eretz Israel, a influência da
União Soviética, o comunismo como solução do problema do judaísmo e dos judeus, e a
relação com a política local. Eles apresentavam a linha comunista. Na questão judaica
eles adotaram a posição do "Bund" europeu, segundo o qual o futuro dos judeus terá sua
solução em todos os lugares através da luta dos operários e das forças "progressistas",
as "forças do amanhã", conceitos abrandados da palavra comunistas. Eles rejeitavam o
conflito em Eretz Israel na suposição que as forças imperialistas britânicas e americanas
não permitirão o término da época colonialista imperialista. Claro que o ênfase estava
no heroísmo de Exército Vermelho, o sacrifício do povo russo, quando eles atrbuem o
mérito da luta dos partisanos judeus a si mesmos, ignorando a contribuição das grandes
democracias, como se elas nem tivessem participado da guerra.
10
Minha posição, então, baseou-se no Holocausto como expressão do anti-semitismo
substancial, em toda a cultura européia, depois de os judeus se encontrarem lá mil anos.
Sobre a tentativa de salvar os reminiscentes, que não foi permitido em lugar nenhum do
mundo, a não ser em Israel. Lembramos a eles o acordo Ribentrop Molotov, assinado
às vésperas de Segunda Guerra Mundial entre a União Soviética e a Alemanha nazista,
que causou uma crise no movimento esquerdista, e com que comunistas cessassem sua
oposição à Alemanha nazista de Hitler. Isto, até a invasão da União Soviética pela
Alemanha, na operação "Barbarossa", em Junho de 1941. As minhas citações de escritos
comunistas e a capacidade de usá-los contra eles por meio da retórica e dos slogans
deles próprios, aumentaram a credibilidade das minhas posições.
Avaliamos que após a guerra, a Grä Bretanha deixará de ser uma potência, e
acentuamos a possibilidade real da instituição de um lar nacional para o pavo judeu em
Eretz Israel, devido à realidade mutante. Grande parte dos assuntos relacionados à
realidade eretzisraelense eu estudei nessa época sobre as colônias judaicas, sobre os
combatentes, e sobre a Haganá (forças de defesa) e sobre a Palmach (tropas de ação), e
sobre a liderança da comunidade, especialmente Ben- Gurion. A suposição básica era
que se os árabes vencerem a guerra, no final eles exterminarão a coletividade judaica, e o
que restará? Comecei a desenvolver coisas, que depois me aprofundarei, sobre a
civilização judaica, pois nós somos parte do mundo moderno; nós somos organizados, e o
nosso nível de instrução é mais alto, nossa coesão social e o regime democrático, e a
liderança bem sucedida, e a capacidade, não só devido ao "não tem alternativa", mas por
causa da cultura, da instrução, do caráter moderno. Na minha opinião de então, o Império
Britânico começaria a se esfarelar no mundo todo, e apesar do heroísmo e do grande
sacrifício que pagaram na guerra, os grandes vencedores eram os Estados Unidos e a
União Soviética, e eles não tinham a política ou a obrigação de manter o império britânico.
A importância da proposta americana de trazer cem mil judeus da Europa para Israel, não
tinha só importância numérica, senão que pela ruptura entre os Estados Unidos e
Inglaterra, e na América, a influência de parte dos grandes líderes judeus, como Stephan
Weiss10 e o Rabino Hilel Silver11. se fez sentir.
A Discussão com o Hashomer Hatzair no Rio de Janeiro
Recebi um convite de me encontrar com Natan Bistritski. Ele era o sheliach
(enviado) principal ao Brasil e membro da direção mundial do Hashomer Hatzair, que me
convidou para um fim de semana no Rio de Janeiro para um esclarecimento ideológico
sobre o socialismo e o sionismo. Lá se encontrava a direção nacional do Hashomer
Hatzair, e seus elementos eram conhecidos por seu nível e sua formação. Parte
importante deles estudaram em universidades, era explicitamente um grupo de elite.
Falamos entre nós abertamente. Disse-lhe: "Não sei como as pessoas no Rio de
Janeiro me receberão, pois eu não sou membro do Hashomer Hatzair. Além disso, eu não
tenho o conhecimento de sionismo socialista para participar de um debate nesse nível".
Ele me disse que os líderes da coletividade lhe haviam contado sobre as discussões que
tive com as pessoas da Casa do Povo.
Durante dois dias dirigi o combate principal. Era impossível esconder de mim a
fraseologia do Partido Comunista ou a sua forma de pensamento. Também não a política
do Comintern¹ que entretanto mudou o seu nome para Cominform ¹. Em comparação a
eles, eu possuia o conhecimento apropriado para o seu relacionamento ao problema
nacional, e apesar dos meus temores, eles não sabiam mais do que eu sobre o sionismo
socialista, e como não entraram de forma específica nos problemas dos partidos
israelenses, eu pude me confrontar. o meu objetivo era o de salvar aquelas pessoas
magníficas para o sionismo, e não entregá-las de presente ao Partido Comunista,
relacionei-me a eles com respeito e empatia.
11
Próximo ao resumo, eu disse que receava que parte deles já se encontram,
teoricamente, a caminho do Partido Comunista, seja do ponto de vista ideológico, ou
simplesmente isso. Não ouvi deles sobre o problema nacional judaico, nenhuma palavra
sobre o Holocausto. Suas preocupações com o mundo colonial eram maiores do que com
os problemas fatais do povo judeu e da sorte da luta anti-colonialista que emprendia a
coletividade de Eretz Israel contra a Inglaterra. Acrescentei que, apesar da maioria dos
participantes terem estudado no Ginásio Hebreu e continuaram a viver em casa dos seus
pais, do ponto de vista espiritual eles estão profundamente envolvidos na cultura local a
caminho da assimilação e de casamento misto.
Retirei-me antes da discussão interna incisiva entre eles. Bistritzki me contou que a
continuação da discussão foi ardente, e em consulta que ele realizou com Yaakov
Chazan, dos líderes da direção mundial, resolveram expulsar essa célula do movimento.
Duas Convenções do Dror
Conclui, do meu encontro com o Hashomer Hatzair, que atividade sionista não se
pode realizar como um lobo solitário, e isto é o que eu era. Dentro de pouco tempo, fui
convidado a participar da convenção nacional do Dror. A direção do movimento era em
Porto Alegre, e precisava-se viajar para lá, a caminho do congresso sul americano do
movimento. Conhecia as idéias do movimento, mas sabia pouco de suas atividades.
Esclareci a eles que ainda não tinha resolvido a quem me afiliar, e que eu via no minha
participação no congresso deles parte do meu "processo de estágio". Mas os
companheiros do Dror pensavam que eu estava ligado ao movimento do ponto de vista
ideológico, e supuzeram que eu estava a caminho do seu movimento, e que este era um
risco calculado.
Viajei com Rivka Averbuch (Berezin) que mais tarde se tornou chefe da cátedra
de Estudos do Judaísmo e da Língua Hebraica da Universidade de São Paulo. À cabeça
do movimento havia gente competente, Efraim Bariach¹4. Moshé e Betty Kersh¹5. Eles
eram conhecidos também além do movimento. Havia uma discussão séria sobre o futuro
dos idiomas no povo judeu. A discussão estorou por motivos sentimentais, porque um dos
participantes, que era um completo ignorante, insistiu para que os educandos do
movimento falassem somente hebraico. Este era eu, que apesar da língua materna ser o
yidish, e então não saber uma frase em hebraico; mas eles me calaram. Eu, tudo bem,
mas num assunto importante como este, como conseguirão fazer calar a Ben Gurion?
o tema seguinte era baseado na suposição de que nossos companheiros viam na
Argentina o centro do movimento. Lá encontravam-se os seus líderes, lá eram publicados,
em espanhol, o melhor material ideológico, e principalmente as notícias do que acontece
no movimento operário em Israel. Em resumo, os companheiros do Dror do Brasil viam lá
o modelo para a imitação ou para o aprendizado. À cabeça do movimento da Argentina
achavam-se líderes importantes que vieram da Polônia e construiram o movimento
segundo o modelo do movimento mãe. A coletividade Argentina era grande e rica do
ponto de vista da cultura judaico, em escolas judaicas, e ela vivia com a sensação de que
eles são a continuação natural do judaísmo europeu.
Sobre todos os assuntos relacionados com o caráter do movimento do Brasil, não
achei conveniente polemizar com eles em base aos meus pensamentos primários, que
ainda exigiam estudo e cristalização. Pensei que a visita à Argentina me possibilitará
observar de forma crítica para estudar o assunto.
o Choque na Argentina e a Cisão no Movimento
A convenção foi preparada pelo escritório localizado em Buenos Aires. Depois da
tragédia na Europa, e extermínio de todos os movimentos juvenis pioneiros, salientou-se
12
12
a existência desse continente. A liderança local era formada por pessoas importantes. A
personalidade dominante era Moshé Kostrinski (Kitron)¹6, líder do Poalei Tzion. Ao seu
lado estava Itzchak Harkavi, que veio a ser, depois, embaixador de Israel para paises da
América Latina, e ele também, assim como Kitron, tinha raizes na Europa. A discussão foi
aberta sobre um assunto ideológico, que logo se tornou uma discussão política, no centro
da qual estava a cisão do Mapai em Israel. Na convenção havia dois grupos organizados:
um grupo de argentinos que representavam a direção do movimento na América Latina.
Entre eles havia pessoas muito competentes, cuja maioria emigrou para Israel e fundou o
Kibutz Mefalsim. Frente a eles, havia um pequeno grupo de pessoas muito capazes do
Chile, que só uma pequena parte deles emigrou para Israel. Não conhecia a matéria que
estava sendo discutida, que em pouco tempo se tornou em polêmica violenta, combate de
palavras e citações de Berl Katzenelson, Itzchak Tabenkin ¹7. Mein Yaari18, Ygal Alon¹9 e
Ben Gurion. No duelo entre os grupos, não pouparam nenhum exercício para machucar
uns aos outros. Eu não entendia as motivações ideológicas dos dois grupos rivais. Mas
entendi o palavreado político. o tema se referia à cisão, que como resultado do mesmo
foram criados dois partidos políticos em Israel: Mapai e Achdut Haavodá. Mais tarde
cindiu-se também o movimento kibutziano Kibutz Hameuchad.
Eu rejeitava a abordagem divisória. Os nossos movimentos estavam em processo
de formação, e a cisão em base a assuntos que não pertencem à essência de sua
existência na América Latina, no final das contas atingirá a sua própria existência. A
convenção não discutiu sobre a característica do movimento, sobre os instrumentos
educativos necessários ou sobre a necessidade de adaptar o movimento à cultura local, à
juventude que se educa no mundo novo. Essas eram discussões que caracterizavam
organização de juventude de partido, e não movimento juvenil educativo, que deveria se
afastar da política e afastá-la de si. Estava em estado de choque, e isso me aconteceu
mais de uma vez durante a vida. Sempre vinha acompanhado de confronto com idéia ou
fato que contrariava minhas posições ou meus pensamentos, e na maioria dos casos eu
necessitava uma certa distância até que pudesse encontrar a solução apropriada ao
problema. Mas meu silêncio recebeu uma interpretação política; como se eu escondesse
minha identificação política, e como se eu pertencesse à corrente radical, ao Achdut
Haavodá. Em todos os temas da ordem do dia, não foi realizada qualquer discussão
essencial, só polemizaram, e os dois lados só queriam uma corrida desvairada para a
cisão do movimento, e conseguiram. A esta loucura não foi dada legitimidade no
movimento do Brasi, e ele não foi parte de nenhuma cisão que acometeu os partidos em
Israel. Passei a convenção sem abrir a boca. Ela aprofundou meus conflitos internos no
processo de reconstrução do nosso movimento no Brasil.
No fim da convenção, fui a todas as instituições importantes e recolhi todas as
publicações apropriadas que pudessem contribuir para o meu conhecimento. Durante o
vôo estudei duas publicações: uma de Berl Katzenelson sobre o "Socialismo Construtivo",
e dois artigos polêmicos de Ben Gurion. Para meu alívio, descobri que toda a sabedoria,
na qual todos se basearam durante a convenção estava, na íntegra, nesses dois
panfletos.
Os Princípios de Minha Concepção Sobre os Caminhos do Movimento
Chegou a hora de resolver a que movimento me juntar. Os companheiros ouviam
recusas claras de minha parte com respeito a dois movimentos, que não vinha em conta
juntar-me a eles: (a) ao Hashomer Hatzair por causa de sua idéia de "bi-nacional como
resposta à idéia de divisão do país", e a aproximação ao "mundo do amanhã", o que
significa a identificação com a política da União Soviética. Desgostava bastante do
dogmatismo doutrinário deste regime e do centralismo político de sua direção. (b) ao
Betar por seu caráter chauvinista, por sua compreensão da solução dos problemas
existentes e dos que virão no futuro, quando Israel for instituída e seus vizinhos, e pelo
13
13
seu caráter para militarista. o movimento Dror que encontrei em São Paulo era, na
realidade, um clube de intelectuais, judeu e sionista, com altas qualidades de seus
participantes, mas sem qualquer compromisso com a aliá e estabelecimento. o Dror, na
consciência de seus membros, não era um movimento educativo realizador.
Não era um fato trivial vir como visitante, e dar instruções aos habitantes da casa
como mudar seu estilo de vida. As minhas incertezas não eram abstratas, mas deram
soluções parciais. Conheci de forma geral os demais ramos do movimento e seus líderes,
e tudo me parecia semelhante a São Paulo, isto é, seus cabeças eram geralmente
também pessoas capazes. Estudaram em escolas judaicas, parte deles veio de casas
tradicionais, outros de casas cujos pais eram ativistas e até chefes de organizações
públicas, principalmente de instituições sionistas. Seus filhos se destacaram: Chana
Tzikinovski (Raicher), cujo pai era o rabino chefe do Rio de Janeiro, um sábio e
personalidade estimada por todas as partes da coletividade, Max e Ruth Resh, David
Roterman, Avraham Baunwol (Hatzamri), Alberto Dines, filho de um dos líderes mais
importantes do sionismo brasileiro, Bernardo Einisman (Dov Bar Natan), Mariam Genauer
(Bariach), Yossef e Arieh Etrog. Eles constituiam um grupo forte e mantiveram distância e
uma boa medida de independência do escritório de São Paulo, cuja atividade era limitada,
assim como sua autoridade. Em Curitiba, dirigiam o movimento Sara e Shaul Shulman.
Bem cedo juntou-se Felipe Kraun.
Consciência da Hora de Crise
Liderança é a capacidade de receber sobre si resoluções que contêm uma
dimensão pública que influem sobre ele. Esta é uma propriedade que não se aprende nas
escolas. Movimentos existentes e enraigados desenvolvem trajetórias de aperfeiçoamento
para pessoas que têm propriedades naturais de liderança. Há situações espirituais ou
necessidades de uma realidade que impulsionam as pessoas naturalmente dotadas, ou
aquelas que têm carisma, que aparentemente não se expressaram, a agirem.
Não era esse o meu caso. Eu não me via como uma pessoa com capacidade, e o
mesmo ocorria com as pessoas que me circundavam. Não me destaquei durante a minha
juventude e em nenhum momento do meu desenvolvimento me vi situado à cabeça de
qualquer coisa. Ao longo do desenvolvimento da minha personalidade e nas diversas
estações da minha vida, acumulei e acrescentei conhecimento, e examinava os diferentes
ângulos da realidade existente e os seus problemas. Só no processo concreto da "crise
respiritual" que passei, num processo de amadurecimento acelerado, senti pela primeira
vez o impulso de prestar atenção e a capacidade de formular para mim mesmo as
dificuldades intelectuais, e também de delinear caminho. Depois de incubar por dois anos,
fui impulsionado para a ação. Ninguém se dirigiu a mim, nenhuma instituição me elegeu,
não preparei qualquer plano escrito e não apresentei documento algum para aprovação.
Entre a Ideologia e a Obra de Construção do Movimento
Esta redação não é um documento programático, ela não passa de uma história
pessoal, de forma que tomei a liberdade de não ser preciso na separação entre os vários
elementos. Até aqui, os dois assuntos já existem de formas diversas, tanto os temas
ideológicos como os pensamentos sobre a construção do movimento. Pensei que deveria-
se cristalizar um movimento adequado às características da juventude que cresceu no
mundo novo, e que deve-se libertar dos modelos que trouxeram os enviados de Israel ou
passoas que vieram da Polônia ou de outros paises antes do Holocausto, isto é, modelos
que estiveram enraigados na vivência dos movimentos na Europa. A juventude judaica do
Brasil tem características específicas, e era preciso encontrar os caminhos adequados
para ela. Nós vivemos aqui numa cultura diferente, talvez possa se dizer numa civilização
diferente. A educação, o contato com os vizinhos, com nossos amigos, com os colegas de
classe. É outro mundo. Fala-se outra língua, e nós não só tentamos nos assemelhar a
14
eles, mas também assimilar-se para não nos sentirmos diferentes. Às vezes
atravessamos os limites dessa aproximação e assim rompemos a corrente de gerações.
O processo de assimilação numa sociedade em formação, sociedade de imigração multi
nacional e multi cultural, acontece de forma inconsciente.
Havia necessidade de adaptar o movimento à singularidade da juventude judaica
brasileira, às condições históricas e culturais que ele se encontra. A análise do caráter
assimilador da sociedade brasileira e a posição da juventude judaica frente a esse
processo, foi ele que me levou à resolução de me abster de discutir "a negação da golá"
como parte da concepção sionista. E me perdoará Ben Gurion por ferir a coerência.
Apesar de ter-se formado um movimento juvenil realizador, a realidade nos demonstrou
que éramos uma minoria na coletividade judaica, e porisso temos hoje que apoiar, com
todos os instrumentos ao nosso dispor, a preservação do judaísmo da coletividade,
escolas judaicas, sinagogas e yeshivot, e apoiar a coletividade com possibilidades. Na
Alemanha de antes do Holocausto, e nos Estados Unidos, não impediram que a juventude
perseguisse o modernismo, ainda mais impedir qua a juventude judaica persiga com
avidez a vida e a cultura brasileira.
Processos de Mobilização
Em conversas pessoais que entabulei com jovens, aprendi a escutar com atenção
as suas palavras e também entender a sua alma. A expressão proselitismo, religiosa em
sua origem, e que com o tempo se tornou fluente no movimento, não expressa o espírito
do processo. A intenção do conceito é um diálogo intelectual que era realizado entre duas
pessoas que procuravam entender uma à outra, antes que começassem a convencer esta
àquela. Era importante criar um ambiente de confiança mútua que possibilitasse
conversas profundas no longo prazo. Muitas vezes essas conversas criaram laços de
amizade e cooperação frutíferas. As discussões, e principalmente as conversas pessoais
basificaram a minha concepção.
Os temores se justificaram, ninguém me fez a vida fácil, trocamos idéias,
discutimos, muitas conversas sobre tudo, quase não houve assunto que não foi tocado
nelas, e houve casos em que eu simplesmente respondi que não sei. Falamos sobre o
anti semitismo no Brasil; se Israel conseguirá fazer frente aos seus inimigos; ao tipo de
socialismo a implantar em Israel. Como tinha tanta certeza das minhas respostas? Pois
muitos dos temas eram somente suposições, crenças ideológicas ainda não testadas.
Como era possível se comprometer pela vida toda? Se na Europa aconteceu o
Holocausto, porque pôr em perigo o destino do povo judeu numa região encharcada de
ódio e violência como o Oriente Médio?
Eu não tenho anotações das conversas. Eu não tinha nenhuma possibilidade de
avaliar a influência da ação de mobilização na época carregada de tensão, preocupação e
interesse, época na qual quasi todo o povo judeu, em todos os cantos do mundo, estava
atento à sua sorte. Não tenho a menor dúvida que, nessas condições, nossas palavras
não cairam em ouvidos tapados. No fim da "maratona" de mobilização, durante a qual eu
estava em verdadeira euforia, fui acossado pelo medo. Pois, parte das conversações
pareciam um compromisso mútuo.
A realidade foi favorável ao desenvolvimento do movimento. Formaram-se grupos
mais velhos que começaram a reunir grupos mais jovens, e o movimento parecia como
adequado à natureza do movimento educativo. Viram-nos discutindo sobre uniforme,
sobre realização pioneira, isto é, emigrar para Israel, ligar-se ao kibutz e até filiar-se
individualmente ao movimento juvenil. Tudo isso ainda não se cristalizara num conjunto
ideológico coerente. Então, ainda me debatia como apresentar diante dele uma
concepção de mundo generalizada, que inclui um projeto de vida completo num mundo
diferente do meu. Eu já introvertira a essência e o caráter da sociedade israelense. A
Chevrat Ovdim (Sociedade dos Trabalhadores) e o kibutz eram, sem dúvida, instrumentos
15
15
apropriados, que podiam responder às aspirações socialistas que se difundiram no mundo
depois da Segunda Guerra Mundial. Vi também diante dos meus olhos o processo de
mobilização da camada mais velha, que pudesse dirigir o movimento e que fosse capaz
de mobilizar e criar grupos mais jovens, educá-los no espírito aberto, e criar instrumentos
educacionais que os ajude, junto com a família e as escolas, a fazer frente a um mundo
complexo, onde a assimilação é uma opção que se encontra na palma da mão. Vi a
dificuldade na preparação da camada mais velha para a ida a Israel e ao mesmo tempo
de um quadro organizado que garanta a continuidade do movimento. Debati-me no dilema
com o qual o movimento deveria se confrontar com respeito aos estudos universitários, se
concordar com a continuação dos estudos nas universidades ou deixá-los para in para
Israel e para o kibutz? Senti a dificuldade de formular a generalidade, e não só os
problemas em si,
o encontro com o meu pai, com o objetivo de comunicá-lo de forma final que eu
estava a caminho da realização, de abandonar os estudos no Brasil, não dava mais para
adiar, e então viajei para casa, em Santos. Nós dois procuramos manter um bom estado
de espírito, mas o encontro foi difícil, pois ambos sentimos que ele iria ferir de forma grave
o nosso relacionamento. Não tinha o que renovar, a não ser expressar em voz alta um
pensamento que pela primeira vez expressei também para mim próprio: "Eu acho que
estou a caminho da Palestina". Não há por que repetir tudo o que foi dito entre nós, mas
no centro estava a palavra "ativista", que era uma expressão de vexame, cujo significado,
de sua boca, era o de uma pessoa que vive às custas de dinheiro público. O encontro
deixou, em nós dois, um gosto mau, os resultados aprenderia no futuro.
o Tinido do Tempo
Sem aviso prévio, chegou a São Paulo um dos líderes do Dror do Rio de Janeiro,
Arieh Etrog. Arieh era uma pessoa agradável, inteligente e instruída, e cada encontro com
ele sempre deixava um bom ambiente. Em conjunto formulamos as propostas para a
segunda convenção nacional do movimento, após o primeiro que foi realizado em Porto
Alegre, como dito. A discussão central era a instituição da hachshará (fazenda de
preparação para o kibutz) pioneira no Brasil. Expressei a minha opinião de que, do ponto
de vista do movimento, era prematuro, pois o movimento não formou uma reserva para a
sua formação no futuro. Ele explicou que companheiros importantes do Rio de Janeiro e
de Porto Alegre chegaram à conclusão de que o seu tempo amadureceu e que para os
companheiros veteranos que haviam fundado o movimento começa a se tornar tarde.
Eles não viam motivos para continuarem a ser ativos no movimento, parte deles já estava
casada, e havia a preocupação de que se não fossem a tempo, sua aliá seria adiada, e
poderia fracassar no caminho. Houve dois gritos de alarme ao mesmo tempo que me
assinalaram que a hora de agir para a renovação do movimento era premente. A
exigência de instituir a hachshará e a resolução dos companheiros do movimento
argentino e dos membros do Hashomer Hatzair do Brasil de fazer aliá e se voluntarizar
para a guerra de independência. Minha opinião não foi aceita, a segunda convenção foi
realizada e a hachshará instituída. o primeiro grupo foi constituído pelos fundadores do
movimento, que foram também os primeiros a fazer aliá para Israel.
o Enviado Yossef Almogui
No Brasil havia um enviado central, Yossef Krelembaum (Almogui)²0, e resolvi me
aconselhar com ele a respeito da resolução que foi aceita no movimento de fazer aliá para
Israel e se alistar no exército. Expliquei minha posição sobre a falta de preparação do
movimento para se desfazer de seus poucos companheiros maduros, e levantei diante
dele o dilema. Passados alguns dias ele me disse: "Falei com Israel; o destino dos jovens
que chegam nos kibutzim é o de trabalhar no lugar dos membros da Palmach que foram
convocados para a guerra". Perguntei sua opinião sobre a forma que eu agi, tanto no
16
assunto do exército como o da antecipação da ida para a hachshará. Ele me respondeu
direto e sem subterfúgios: "Se eu tiver que resolver, então você fica; mas saiba que o
tempo pressiona". As coisas em Israel aconteceram exatamente conforme disse Almogui:
os jovens da Argentina ficaram no kibutz Gvat e os jovens do Hashomer Hatzair no kibutz
Negba, nenhum deles foi convocado.
Almogui não foi o único enviado com quem me aconselhei. Chegaram ao Brasil,
naquela época, muitos enviados para diversas missões, além daqueles que vieram ajudar
os diversos movimentos que se formaram no Brasil. Não perdi uma oportunidade de ouvir
o que tinham a dizer, participar em discussões e me aconselhar com eles. Os enviados
eram a única fonte para se receber informações sobre Israel e sobre os esforços
diplomáticos internacionais que foram feitos para a instituição do Estado. Eles
apresentavam uma ampla variedade de opiniões políticas, as quais aprendi a escutar e
respeitar, e elas contribuiram de forma significativa para a cristalização das minhas
concepções sionistas socialistas amplas e anti dogmáticas.
Na minha concepção cristalizou-se o pensamento de que a ideologia serve à
pessoa e ao homem público como uma bússola que orienta o seu caminho, e não como o
"shulchan aruch" (código de leis judáicas) ou um Vade Mécum (guia) que ensina e orienta
cada passo de sua vida. Não há uma bola de cristal que mostra os caminhos do futuro, os
desastres naturais, guerras, desenvolvimento tecnológico, mas as condições são que
cousam a incerteza da existência humana. A distinção entre um estadista maduro e um
simples político é que o primeiro usa a bússula e o segundo não.
A terceira convenção do movimento, realizada na hachshará, aprovou o plano de
trabalho por mim apresentado, e escolheu a nova direção, formada pelo melhor da
juventude judaica. o movimento vivia uma hora construtiva.
A Lapa
Realização era entendida no movimento como o resumo de todas as nossas
atividades educativas, quando o objetivo concreto é a aliá para Israel e se estabelecer aí.
o fato de basear-se em estudantes criou no movimento um paradoxo. Pois, a
existência do movimento dependia deles, e quando chegavam às classes mais altas e às
universidades, eles dedicavam seu tempo e sua energia aos estudos, e não restava
tempo para o movimento. Anos depois disso, estando em Israel, estudei na literatura
sobre os movimentos clássicos que se formaram na Europa que se você basifica o
movimento sobre a juventude de dentro da "intelligenzia", você a constrói em solo fértil
porém problemático, devido ao mesmo problema que apontei. Entendi o dilema desde o
início da grande mobilização da liderança futura, mas resolvi arriscar e tentar convocar
para o movimento justamente os mais talentosos, e deixar para o destino fazer a sua
parte nas resoluções futuras. Tive muito tempo para sofrer, imaginar e tentar outras
soluções, mas não consegui inventar soluções que não sejam na verdade substitutos,
tentar novamente o caminho trilhado pelos movimentos europeus, dar aos companheiros
mais maduros maior liberdade para in à universidade e confiar o destino do movimento à
suas consciências.
Entrei nas discussões da "Lapa" com temor e piedade, realmente com profunda
ansiedade. Entendi o dilema que eu colocava diante dos companheiros, e eu não joguei
nenhum jogo retórico. Expliquei o que meus olhos viam, ou seja, que sem o abandono
dos estudos pela camada dirigente, e sem sua dedicação completa às atividades do
movimento, ele não resistirá, ele se desmanchará ou fenecerá, Conhecia cada um dos
participantes do seminário, e via nessa equipe o potencial para a realização do
movimento. Eles eram os escolhidos e os dotados que conseguimos recrutar na ocasião,
e com eles se erguerá ou cairá o movimento.
Não imaginei que na era moderna pode-se abrir mão de estudos universitários; fato
que todos aqueles companheiros dotados queriam estudar, estudaram, e há entre eles
17
17
professores e doutores que pode-se orgulhar deles. A resolução de interromper os
estudos não era técnica, mas de conteúdo, ela deu forma ao complexo conceito de
"liderança". Também sobre isso tive muito tempo para debater. o conceito que diz que
"somos todos iguais", esconde a complexidade das forças do espírito, caráter, vontade,
ambição, coragem do ponto de vista espiritual, carisma e componentes de personalidade.
Quando os componentes se revelam nas medidas e no ambiente social certos, eles criam
legitimação e liderança florescente, e o corpo social goza dos frutos abençoados.
Nem sempre pode-se descobrir o educando que possui parte das características
exigidas, só um ambiente estimulador possibilita a sua descoberta. Não santificamos o
processo que levou ao abandono dos estudos, e quando as condições mudaram, a
resolução mudou. As resoluções da Lapa trouxeram ao movimento anos abençoados, e a
todos aqueles companheiros que abandonaram os estudos, as universidades se abriram
diante deles, em Israel ou fora de Israel. Ela foi uma decisão coletiva em seu conteúdo e
moral na sua grandeza.
Resumo Temporário
Mesmo sem observar de forma retroativa, pode-se dizer que à nossa realização em
Israel houve uma justificativa humana e também nacional. o destino poupou de nós o que
causou a nossos antepassados na Europa, e para meu pesar Israel ainda não vive em
paz, assim como o mundo. A bênção de nossa realização e de outros como nós, com
nossas famílias, nossos filhos e nossos netos, não é medida só por números, mas pela
qualidade, pela voluntariedade, da capacidade, potencialidade ocultos na dimensão
do
tempo. A continuação da vida do movimento e sua realização em Israel serão escritos em
outro tempo, quando novamente florescer a inspiração.