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FRAGMENTS DE MEMORIAL As Encruzilhadas no Caminho¹ Este capítulo é dedicado aos companheiros do Kibutz Bror Chail, das diversas gerações, que em suas vidas realizaram a vivência do movimento, criaram um estabelecimento no Neguev e definiram fronteira. Introdução A geração dos fundadores do movimento encontrou-se no mundo caótico que se formou depois da grande guerra, diante de questões cuja compreensão global era difícil. A Europa estava destruída, e o que sabíamos sobre o Holocausto não nos possibilitava compreender a profundidade da tragédia. No pano de fundo da matança de populações gigantescas (ainda não conhecíamos o número monstruoso da morte de 57 milhões de pessoas), parecia a luta da pequena coletividade em Eretz Israel frente ao império britânico e o mundo árabe verossímel somente aos olhos de sionistas crentes, e esses eram poucos. Lidamos com o começo do estabelecimento do povo, sem saber de antemão as dimensões de nossa ação e o preço do sacrifício. Não sabíamos quem seriam os futuros parceiros na construção do país, e poucos foram os que previram que faríamos frente aos nossos vizinhos nas desgastantes guerras de várias gerações. No fim da guerra, quando tomamos conhecimento do holocausto acontecido na Europa, eu me encontrei em pleno processo de assimilação à sociedade e cultura brasileiras. A contradição entre os dois processos, o pessoal de um lado, e o do povo judeu de outro lado, me conduziu a uma crise espiritual e emocional profunda. Essa diferença acionou dentro de mim um processo intransigente de procura espiritual e intelectual, não só nas minhas raizes familiares, mas também na tentativa de entender o meu judaismo, a natureza do Holocausto e suas causas. Queria saber para onde conduzem os caminhos do judaismo após o evento de caráter apocalíptico. Nessas procuras, e com a sensação interna que meu caminho e meu futuro exigem respostas apropriadas, comecei a jornada sem que tivesse idéia da longitude do tempo e para onde me conduziria ao fim do caminho. As incertezas se apresentavam diante de mim quando saí para o caminho no qual os pontos de interrogação conduziam. A Família na Polônia Minha família é originária da Polônia e se espalhou pela região de Lublin. Eu nasci no ano de 1927, na casa de meu avô, Zeev Goldman, pai de minha mãe, na cidade de Chelm. Quando eu tinha dois anos de idade, meu pai viajou para o Brasil à procura de sustento, e nós continuamos a viver com meu avô até a sua morte, em 1933. A irmã de minha mãe vivia em Lublin e seu irmão numa fazenda cerca de Zamosc2 Meu avô Aharon Zimering, pai de meu pai, vivia com sua grande família em um Shtetel (aldeia) em Piaski. Eu chegava em visitas constantes em casa de meus parentes, uma ou duas vezes ao ano na casa dos tios, e nas festas grandes na casa de meu avô Aharon. Mas a vida real vivi com meu avô Zeev Goldman. Ele foi a figura proeminente da minha vida. Foi para mim um atenuante em muitas horas de angústia que tive em minha vida. No princípio de 1934 recebemos as passagens e embarcamos para o Brasil. Durante a viagem através do grande oceano, sobre o qual eu sabia somente das estórias, senti-me solitário e livre. Ao an do mar, que purifica a alma, lembrei-me da época em que a figura de meu avô se elevava, e só ela me proporcionava a justificativa de existência, nessa época. Saí da Polônia com as sensações de uma criança alienada, sem vivência judaica arraigada. Não vivenciei uma casa judaica organizada, sinagoga com suas rezas e comportamentos, e nem escola judaica em yidisch ou em hebraico. Tudo isso me prejudicou quando me expus à corrente arrastadora e assimilante da cultura brasileira. 2 Falava polonês e ouvia yidisch em casa, enquanto que o russo era o idioma que falavam os adultos quando não queriam que eu entendesse, de forma que eu não podia sentir nenhuma delas como minha língua-mãe. o português, aprendi rapidamente, como meio de integração no novo ambiente. Brasil Moramos em Santos, numa casa conjugada, com uma família local. Os assuntos materiais não me preocupavam, a maior dificuldade que encontrei na minha chegada ao Brasil foi o encontro com meu pai, entender e aceitar a sua posição na hierarquia familiar, e aceitar que a vida que tive com meu avô tinha sido especial. Lembrança que aparecia e sentia com saudade e em sonhos. Também no Brasil eu não tive uma casa judaica ativa, sem sinagoga e sem escola judaica. Expus-me inteiramente à vivência brasileira, que era católica na sua essência e assimiladora em seu caráter. A luta principal pela minha sobrevivência eu mantive na escola. Em um ano aprendi o português, esqueci completamente o polonês que sabia, e absorvi o yidisch, que era necessário para a comunicação em casa. Os quatro anos de escola primária passaram rapidamente. Eles deixaram frutos valiosos, como o domínio do idioma, integração na sociedade juvenil, que incluiu a introversão da tolerância, principalmente a tolerância racial com relação aos tons de cor dos mestiços, mulatos, cafusos, e as misturas deles. Os japoneses também entraram na mistura de todos os tons de branco e suas raizes, os italianos, os espanhois, os portugueses. Meu relacionamento para com os alemães era diferente, em comparação com os outros grupos étnicos. Diferença que se desenvolveu durante a guerra civil espanhola e depois, com o domínio de Hitler sobre a Europa. Meu pai lia os jornais diários em português e jornais em yidisch e nos explicava o que ocorria no mundo, o que me ajudava muito nas discussões que tinha na escola. No ambiente de pré-guerra, com a presença de representantes de todas as partes do conflito, eu me via obrigado a participar nelas, principalmente por ser judeu-polonês. E eu o fiz numa proporção de violência não despresível, para me sobrepor à timidez e aos temores que se desvendaram no processo de minha adolescência. Minha Libertação do Gringo Não entendi o conceito de gringo como um símbolo coletivo, não identifiquei que entre eu e os japoneses e os alemães houvesse alguma ligação essencial, a vivência de imigrante. Os professores ajudaram muito, o diretor da escola foi como um raio de luz. Eu me esforcei muito, deve-se ter sucesso para escapar do estigma de imigrante, de estranho, da con e natureza diferente dele, expressando isso com um quase cinismo. No início se olha para ele, escarnea e zomba dele. Porém, no momento em que ele perde um pouco da característica estranha e estrangeira do imigrante, ele desaparece e é engolido pelo todo. No final das contas, eu tive que me defrontar com essa questão, com minha identidade polonesa judaica, frente a necessidade de chegar a ser como um deles. No folclore e na cultura brasileira, Judas Iscariotes é lembrado e comemorado com a queima de sua imagem numa orgia popular. Em português, a semelhança entre judeu e judas (o nome de Judas Iscariotes) tem origem na crença popular. Esta semelhança entre os dois conceitos é percebida mais na realidade histórica. Emigraram para o Brasil muitas famílias de "cristãos novos", com o objetivo de fugir da Inquisição, pois que foram perseguidos também lá por seus emissários. Quase ao mesmo tempo, chegaram ao Brasil cerca de um milhão de escravos da África, que adotaram o cristianismo e a cultura por compulsão e violência de padres fanáticos. o Brasil dos anos de 30 estava sob a ditadura de Vargas, regime parecido ao fascismo, equipado de todos os elementos por nós conhecidos de regimes como este, tais 3 3 como censura jornalística, polícia secreta, prisão de suspeitos políticos, torturas, desaparecimento de opositores, e existência do movimento fascista, o Integralismo, que não chegou ao poder. O regime revelou simpatia para com os paises do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), e fizeram isso com todo o cuidado, pois o Brasil se encontra na América. Durante a guerra civil espanhola, o ambiente geral era favorável a Franco, e não somente entre os imigrantes espanhois e descendentes dos paises do eixo. Eu não sabia distinguir entre os nacionalistas e os republicanos, até que meu pai me explicou a realidade mundial e que a luta que estavam empreendendo os republicanos na Espanha estava relacionada com a luta global que empreendem as forças liberais e esquerdistas contra o fascismo. o Incidente Anti Semita na Escola Os descendentes de imigrantes alemães, espanhóis, italianos e portugueses que estudavam na escola apoiavam a tendência nazi fascista difundida pelo mundo, e no seu entendimento, este modelo será o modelo do mundo de amanhã. Quer dizer, eles vencerão os regimes democráticos, que não são senão "burguesia podre na sua essência". No quarto ano de meu estudo ginasial, desenvolveu-se na classe uma situação à qual eu não estava atento. Num diálogo tenso com o professor, Abraham Ziman, meu amigo judeu da classe fez uma observação, em consequência da qual o professor elevou sua voz e vociferou: "vocês os judeus têm que se calar, pois vocês são um povo de covardes" Levantei-me instintivamente, passei voando os passos até o professor, e então saltaram sobre mim três ou quatro alunos e à força me imobilizaram, me afastaram dele, e me mandaram para casa. Espalhou-se o boato que resolveram me expulsar da escola. Um ato como esse, no qual um aluno ameaça o professor é considerado uma atitude muito grave em qualquer critério. Voltei para casa e contei tudo a meu pai. Ele respeitou a minha coragem, tentou me acalmar e disse que iria falar com um advogado renomado. Passei dias difíceis de tensa expectativa e incerteza. No fim das contas, fomos convidados, meu pai e eu, ao diretor da escola, que condenou o meu comportamento, e sem se relacionar ao motivo da crise, exigiu que eu me comprometesse a voltar a ser um aluno quieto e comportado. Meu pai reagiu positivamente, e eu entendi que este era um caminho inteligente para encerrar o caso. Com a minha volta à classe, senti que o relacionamento para comigo mudou para pior. Meu pai viu no incidente expressão do anti -semitismo enraigado, diferente do católico polonês, na expressão mas não no conteúdo. A Doença de Meu Pai No quinto ano do curso médio meu pai adoeceu, e ficou claro que somente eu poderia substitui-lo nos seus negócios de vendedor ambulante, "profissão" judaica que era muito difundida entre imigrantes em todo o continente. o vendedor ambulante, que geralmente mal conhece algumas palavras da língua local, oferece a sua mercadoria, utensílios domésticos e roupa popular, para a população mais pobre. Os vendedores ambulantes viajavam de bonde, o meio de transporte coletivo mais barato, e principalmente andavam a pé. As compradoras eram mulheres que não podiam comprar as mercadorias nas lojas ou não podiam pagar à vista. As mercadorias eram de baixa qualidade e baratas. Elas compravam a prestação e costumavam dividir o pagamento por muitos meses. Elas tinham todas as tonalidades de pele, desde o negro até o branco, com mesclas de amarelo índio. Havia famílias inteiras que não conheciam uma letra escrita, e em muitos casos as crianças não frequentavam escolas para trabalhar e ajudar na economia familiar. Eles eram candidatos naturais ao crime, à prostituição e à pobreza. Parte dos chefes de família eram trabalhadores do porto, organizados em sindicatos, e cuja situação era estável. 4 4 o vendedor ambulante se punha à porta da casa do cliente, batia palmas, conforme o hábito local, e então ouvia-se a voz de uma menina, pequena ou grande, que anunciava, em tom de desprezo, a chegada do estrangeiro: "mãe, o judeu, ou em alternativa, o turco, o sírio, o libanês, o polaco, o russo ou o gringo". As negociações se realizavam como num bazar turco, com a diferença que o imigrante dificilmente falava a língua de seus fregueses. Ele tinha que vender e ela queria comprar. As limitações econômicas criavam pressões psicológicas, pois ela não tinha dinheiro próprio. Ela era jovem quando encontrou o seu "amigo", e na maioria dos casos não se casaram. Quando engravidou, passaram a viver juntos. As crianças vieram ao mundo uma após a outra. o amigo é o mantedor e nem sempre ele está ciente de suas compras do mascate. Mais de uma vez ele batia em sua mulher: "porquê você compra dele, são todos uns ladrões". E não poucas vezes lhe batiam a porta. Este era um trabalho duro, que exigia andança e carga de mercadoria durante todo o dia, num clima quente e úmido na maior parte dos dias do ano. Na época das chuvas era ainda mais difícil. A dificuldade estava no desconhecimento da língua, no primeiro contato insultante, e depois, a dificuldade de receber o dinheiro da venda da mercadoria a prestações. Os compradores sempre tinham desculpas. Mas os vendedores não tinham outra alternativa. Alguns tiveram sucesso em seu trabalho e após alguns anos abriram loja, e alguns passaram da loja para pequenas empresas ou fábricas. Essa geração se sacrificou nesse trabalho para sustentar sua família e educar seus filhos, e com a resolução firme de não permitir que eles experimentassem a mesma vivência. De fato, seus filhos não concordaram em se ocupar disto, em qualquer condição e a nenhum preço. Meu pai adoeceu, era necessário operá-lo. Passamos juntos sobre o material escrito e selecionado para o dia seguinte. Ele mapeava para mim as ruas e os meios de transporte. Antes da minha entrada na casa do cliente, me atacava uma sensação interna de vergonha e medo, e mais de uma vez eu saia depressa para que não me vissem. Girava pela redondeza, e no fim me via batendo palmas. Os clientes aproveitaram a ausência do meu pai e a minha falta de experiência para escaparem do pagamento das dívidas. Os primeiros dias andava com medo e profunda frustração de que o dinheiro era necessário para a manutenção da casa. Esta foi a primeira vez que entrei em contato com o povo. Era difícil não valorizar a capacidade de resistência e não desenvolver empatia em face ao seu sofrimento. Nós também sofremos, mas era um sofrimento com esperança, vimos vizinhos e amigos que sairam dessa situação e viram bênção no seu trabalho. Eu não tinha instrumentos de análise intelectuais para analisar a sua situação, só sentimentos de identificação, preocupação mesclada com vergonha e desespero. Olhar as suas dificuldades, a situação sub-humana de suas vidas. Gostava deles, honrava sua coragem no enfrentar o destino, que começou na época da escravidão, e é muito difícil ver as suas condições, cerca de cem anos após a abolição da escravatura. Toda a minha alma se revoltou contra a profunda brecha existente entre a riqueza da natureza e a miséria do homem. Na perspectiva do tempo, eu agradeço a oportunidade que me possibilitou conhecer aquelas pessoas. Ela me possibilitou cristalizar, com respeito a elas, uma relação de honradez e estima e basificar concepções sociais, que adotei não somente na sabedoria escrita, mas também no respeito humano. No quinto ano de meus estudos no curso médio, foi realizada uma reforma no sistema educacional brasileiro, segundo o qual eu teria o direito de passar a estudar um ano no curso pré-universitário. Por motivos burocráticos e econômicos, encontrei-me dois anos na cidade de Itu. Vou passar por sobre os motivos, sobre o programa, sobre o nível dos estudos e as vivências nesta cidade provinciana e especial e me concentrarei nos assuntos que se juntaram ao meu conhecimento e à minha consciência. Num mundo em estado de guerra, e num ambiente carregado de ideologia, nos ocupamos dela em abundância. Quis meu destino e encontrei dois excelentes 5 porofessores para a vida, que estiveram na Europa após a Primeira Guerra Mundial e vivenciaram na própria carne a subida do fascismo na Itália e a guerra civil na Espanha. Passei muitas horas nas sapatarias deles e escutei as suas opiniões sobre a classe operária européia entre as duas guerras mundiais. Um era socialista e o outro anarco sindicalista. o que unia as suas opiniões era a potência da Alemanha nazista e o retrocesso real do comunismo stalinista. Absorvi essas idéias sem críticas. Aprendi com os dois, para a cristalização das minhas concepções. Próximo ao fim da guerra, nos anos de 1944 1945, houve uma trégua entre Vargas, o presidente para fascista do Brasil, e Prestes, o líder lendário do Partido Comunista. Foi permitido ao Partido Comunista aparecer em público sob o disfarce de organizações em prol da democracia, e em pouco tempo apareceram em todo o Brasil clubes abertos que se denominaram "Centro Democrático", cujo sucesso lhes foi garantido graças à grande experiência que acumularam na ilegalidade. Só falta de experiência e precipitação podem explicar a minha prontidão de ser atraído para a experiência comunista. o meu "recrutador" era também aluno da escola e os encontros entre nós se revestiram de caráter subversivo. As células eram pequenas e só ele sabia sobre elas. Ouvi conferências, participei de encontros com os "Heróis Subterrâneos". Mas, compreendi que meu amigo era mais entendido em recrutar e organizar do que no campo ideológico do modelo stalinista. Pedi material e livros que me eram difíceis de conseguir, como "A Introdução ao Marxismo", de Plekhanov, "O Estado e a Revolução", de Lenin, "O Problema Nacional", de Stalin, e a adição de brochuras que glorificavam "o sol dos povos" e o paraíso soviético, e principalmente hinos de louvor ao heroísmo supremo do Exército Vermelho e do povo russo. A contribuição das Forças Unidas na vitória sobre a Alemanha não era lembrada siquer por uma palavra. o meu "recrutador" desapareceu de repente, e pude escapar dessa armadilha. No futuro, quando ainda me ocupava de discissões ideológicas entre os diversos movimentos, abençoei o hábito que adquiri de prestar atenção e a importância do estudo ideológico. Sem isso, não há possibilidade de estudar e compreender a realidade social e política. Nos anos de 40, Itu era uma cidade católica, com muitas igrejas e ampla atividade religiosa eclesiástica, principalmente aos domingos, nos quais costumavam famílias inteiras ir à igreja e os jovens costumavam se encontrar antes e depois da missa. Eu também vivi esta experiência, e costumava me encontrar com a minha namorada após a missa, sob o olhar inquiridor da sua mãe, e passeávamos em torno do jardim público. À pergunta porque não entra na igreja, se os poloneses, em geral, são católicos apegados? "Eu tenho um adendo ao meu polonês, eu sou também judeu". A resposta não surpreendeu, pois em diversas ocasiões eu assim respondia, e ao mesmo tempo evitava conversas sobre assuntos religiosos. Eles eram entendidos na tradição católica, e eu não senti a necessidade de ser adversário, tinha consciência da minha ignorância como judeu. À minha namorada perturbava o fato que eu a esperava fora da igreja. Ela voltava ao assunto e à sua perturbação, e lembrou as palavras do padre que à entrada da igreja, antes da "cisterna de água benta" há um espaço grande, que segundo a tradição católica, é permitido aos "não crentes" visitar, inclusive aos judeus. Suas preocupações, e não a explicação teológica, elas que me fizeram esperá-la no lugar destinado aos "não crentes". A missa em latim e o canto gregoriano na igreja provinciana no estilo português colonial, tudo isso não me impressionou. Mas continuei realizando o cerimonial até que deixei Itu. o período de dois anos que passei em Itu, no seio da sociedade brasileira, longe da família e da comunidade judaica, possibilitou-me ampliar a minha compreensão dela, de ângulos e pontos de vista diferentes, e é impossível não gostar dela. Após menos de um ano, na crise espiritual e sentimental em que me encontrei no meu retorno ao judaismo ativo, lembrei-me com relutância do período "eclesiástico" de Itu. Pois, eu vinha de casas muito religiosas, meu avô era de Piaski, devoto declarado do "rabino de Trisk", e meu avô Zeev, à sombra de quem fui educado, construiu uma 6 sinagoga em nome de sua família, e cumpria os preceitos religiosos, tanto os fáceis quanto os difíceis. Meu pai era religioso que cumpria os preceitos nas condições da época, a comida Kosher ele trazia de São Paulo, e em sua velhice construiu a sinagoga da coletividade em Santos. São Paulo Inscrevi-me numa escola que era uma espécie de preparação para a universidade (cursinho), na qual estuda-se as matérias para o vestibular da Faculdade de Medicina, física, química e biologia. Depois de poucas semanas de estudo, tive a certeza que não tinha chance de enfrentar a prova de ingresso para a universidade, que estava lotada de candidatos que vieram dos melhores ginásios do Estado de São Paulo. Entrei em crise pessoal, pois sabia das dificuldades econômicas de meu pai, dificuldades que se agravaram devido à operação que minha mãe tinha que ser submetida com urgência pelo seu estado crítico. Minha irmã Ida cresceu, e com ela as despesas. Sentei com meu pai e expus diante dele as alternativas e eu disse-lhe que eu achava que não estava capacitado para ser bem sucedido no vestibular e que eu necessitava aulas intensivas, e também achava que não haverá prejuízo para mim se eu interromper os estudos por um ou dois anos, para ajudá-lo, pois eu conheço o trabalho, e quando sentirmos que a tensão baixou, voltarei a estudar. Meu pai disse simplesmente que ele não trabalhou a vida toda para que eu volte a esse trabalho desprezível. Sua posição bancária era estável, e não há investimento melhor do que financiar estudos. Aceitei o veredito e cheguei a São Paulo, onde encontrei uma residência, onde me forneciam alimentação a preços razoáveis, e havia também transporte fácil para chegar à escola. Hershel Mlinash o catalizador que mudou a minha vida na época da minha crise foi um amigo de meu pai, no passado membro da direção do Hashomer Hatzair de Varsóvia, homem culto, que sabia hebraico e manteve relações com seus companheiros que emigraram para Israel. Quando passei, por acaso, em frente à sua loja na Rua Prates, me chamou e disse que tinha um assunto importante sobre o qual queria conversar comigo. Voltei no dia seguinte e ele começou a conversa contando sobre o Holocausto e a destruição do judaísmo europeu. Eu sentei, tenso e atento. Ele falou durante horas, às vezes eu o interrompia com perguntas, e ele contou de forma seca, exata, aquilo que sabia. Ele foi obrigado a se confrontar com as minhas perguntas sobre o povo judeu, a religião e a história judaica, pois eu era completamente ignorante no assunto. Não deixei em branco nenhuma pergunta. Eu tinha necessidade de um apoio interno mais sólido, para me defrontar com problemas de tal amplitude. Ainda não havia usado a expressão l'extermínio do povo judeu na Europa'. Depois disso, começou a falar comigo sobre Eretz Israel, Palestina, as lutas, sobre os ingleses e os árabes. Falou sobre a Palestina como único refúgio para a salvação dos sobreviventes do holocausto. Estávamos na época do 'livro branco' também esse conceito ele me esclareceu ele, entretanto, falou em termos gerais, e eu entendi o princípio da história do processo da colonização em Israel, dos kibutzim, dos movimentos juvenis. Ele, claro, acentuou o "Hashomer Hatzair" e me explicou que existe movimento sionista no Brasil. Isso não era um processo de "recrutamento", ele não tentou me recrutar, ele também não era ativo em qualquer instituição judaica. Eu não sabia que, na realidade, eu começara um processo doloroso e difícil de identificação com o sofrimento dos outros, a aproximação repleta de dor à tragédia do povo judeu. Ainda não conseguia dizer simplesmente meu povo, o povo ao qual pertenço. Ao fim de muitas horas de conversas com Mlinash, senti uma carga emocional e intelectual que me foi muito difícil de suportar. Disse-lhe que eu precisava ler. Esta é uma estória difícil, e eu tenho dificuldade de absorvê-la sem leitura adicional. Ler atenciosamente eu já sabia. Ele disse que podia me dar jornais, mas não era isso: no jornal de ontem ou da semana passada não poderia ler sobre a Europa e nem sobre o judaísmo europeu ou a Polônia ou todas as coisas que me havia explicado sobre o povo judeu. Pois, ele usou o conceito de 'nacionalidade judaica' e negligenciou a religião judaica. Então, também sobre a história judaica de que falou, eu tinha que ler. Ele me explicou que não tinha tal literatura, mas que numa rua próxima havia uma organização de jovens com uma boa biblioteca. Mlinash não se propos a me orientar nesta tarefa, dizendo claramente que não era instruído suficientemente. Leitura e Primeiras Palestras o material para a leitura encontrei no Centro Hebreu Brasileiro, onde se localizava parte das instituições sionistas; ali também se encontravam moços e moças sionistas para atividades de estudo, mas principalmente para se divertirem, e como foi dito, havia lá uma bibliteca judaica. Nós nem sempre demos o devido valor histórico ao Centro Hebreu Brasileiro. Deve-se acentuar que ele foi o ninho de onde surgiram todos os movimentos juvenis pioneiros de São Paulo. Papel semelhante ao que foi preenchido no Rio de Janeiro o Ginásio Hebreu. Li A Questão Nacional de Chaim Zhitlovski em yidish, um trabalho duro, Simon Dubnow, Heinrich Graetz e Theodor Herzl em espanhol, a Autoemancipação de Leon Pinsker em português, com uma introdução excelente de Idel Becker. Escrevi notas sem fim, passaram-se dias, passaram-se noites. Lia em meu quarto e não me saciava. E em cada livro descobria coisas novas. Fiz uma lista de temas que sabia, ao lado de uma lista inteira de assuntos que eu deveria repassar e reestudar, e era preciso procurar outros livros, e outros assuntos que eu só podia adivinhar a sua existência. Vivia de forma espartana. Não chegava em casa, nã me encontrei com meu pai, e não me preparei para o curso próximo. Resolvi procurar trabalho e me sustentar. Fiszel Czeresnia era secretário da Magbit (Fundo Nacional) e me deixou preparar a lista dos contribuintes. Fazia o trabalho às noites. Minha vida começou a mudar e nas manhãs sentava-me horas na leitura de livros. De repente, apareceu um elemento novo na minha vida-o tema da "nacionalidade". O material básico encontrei em Zhitlovski e Dubnow, e no livro de Stalin sobre "O Problema Nacional". As notas que fiz desses livros eram matéria imatura, mas quando comecei a dar palestras (a primeira foi no centrinho) ela chamou a atenção. Com o correr do tempo, quando acumulei conhecimento e experiência, voltei a ela muitas vezes, era sério e sombrio. Não me lembro que nesta época tivesse alegria de viver, riso e sorriso não me vinham à face. Os estudos, abandonei. Não era conhecido, mas começaram a se dirigir a mim jovens, não muito mais do que eu, e me esforcei em responder-lhes. Fui convidado uma, duas vezes a encontros do 'Hashomer Hatzair', que foram orientados por dois adultos, antigos ativistas do movimento polonês, cheios de entusiasmo. Não me empolguei da intromissão extranha do "escotismo", e das palestras em yidish sobre a política sionista. Um dia recebi um convite para me apresentar numa grande assembléia que foi realizada num cinema, com a finalidade de protestar contra o 'livro branco" dos ingleses. Não tinha qualquer experiência em apresentação diante de público, e estava bem emocionado e tenso. Preparei-me por escrito, o que se tornou um hábito. A sala foi se enchendo devagar. No palco sentaram-se os representantes das autoridades, e o orador principal foi Beno Milnitski, líder conhecido dos estudantes judeus nas universidades. o discurso do Beno foi uma obra-prima e falou em tom moderado e numa linguagem rica. Quando chegou a minha vez, à minha falta de experiência se juntou o meu temperamento, que libertou de dentro de mim a raiva e o protesto que nunca tinha sido ouvido até então. Meu discurso foi forte e agressivo. Seu motivo era um protesto contra a política britânica e alusão ao fato de que o Brasil não moveu um dedo na campanha internacional. Não sei onde ele se criou com certeza na minha alma, que já sofria há alguns meses. No começo fez-se um silêncio absoluto, que parecia prolongar-se pela eternidade, e então de repente, veio uma tremenda explosão de aplausos e gritos, o coração do público fez-se ouvir. A instituição judaica criticou a minha apresentação, de onde apareceu esse selvagem? Depois da minha aparição no cinema, que teve muita repercussão, fui convidado a todas as partes de São Paulo. Intensificaram-se as conversas com jovens, e fui convidado a dar palestras sobre assuntos que desenvolvi. Comecei a dar palestras em reuniões em casas de família, em organizações, em sinagogas, em casas particulares e eventos públicos em São Paulo e em seminários nacionais sobre assuntos como: "Sionismo e Nacionalidade Judaica", "Socialismo e Sionismo Socialista", "O Holocausto e o Anti- semitismo Moderno", "Movimentos Juvenis e sua Divisão Partidária", " o Conflito Entre Judeus e Árabes em Eretz Israel", "O Judaísmo Brasileiro e a Realidade da Assimilação". Senti um enorme cansaço do ano carregado que passei e do processo de amadurecimento. Meu calendário se preencheu, mas senti que as minhas energias espirituais se enfraqueceram. Senti e pensei que era chegada a hora de uma auto - revisão, ainda não assumi a responsabilidade sobre a ação, mas senti que isso era inevitável quanto mais falava, mais ampliava-se a minha compreensão do sentido da ação. Eu não só falava, mas também ouvia e considerava uma ampla variedade de idéias. Minhas Conversas com Idel Becker Tive contatos com as pessoas principais do Centro, na maioria pessoas boas e capacitadas, entre os quais alunos do seminário para professores de hebraico, donos de rico conhecimento judaico, sendo que parte deles vinha de casas tradicionais. Este pessoal passaria no futuro para o movimento Dror, e ele passou para si o Centro. Neste grupo salientava-se Benjamin Raicher, que foi agraciado com uma rara capacidade para idiomas. Ele estudou no seminários para professores e tinha grande conhecimento judaico e geral. Desde o princípio ele demonstrou grande ceticismo a meu respeito, na maior parte das vezes fazia perguntas nas quais ele era o mestre e eu simplesmente principiante. Finalmente ele propos que fôssemos falar com o Doutor Idel Becker, professor de espanhol no ginásio, cujo nome era muito considerado entre seus alunos. Ele ficou conhecido pela sua tradução da Autoemancipação de Pinsker, ao qual ele juntou uma introdução, trabalho louvável do ponto de vista intelectual. Ele manteve distância de qualquer atividade pública. Benjamin não preparou o Dr. Becker sobre o conteúdo da conversa. Ele começou explicando as dificuldades da tradução, principalmente da introdução, para facilitar a divulgação do livro e sua receptividade pela juventude. Ele era uma pessoa impressionante, e as conversas com ele eram interessantes, porém não tocaram na realidade trágica dos judeus em Eretz Israel, na luta contra os ingleses, e o destino do povo judeu depois do Holocausto. o que me preocupava era: o que fazer agora? Ler Hertzel e Pinsker e ampliar a minha compreensão? Para pessoas como eu, levanta-se a pergunta, será a autoemancipação possível? E no caso positivo, o que nós devemos fazer para concretizar a situação histórica? Na conversa com Idel Becker falei em linguagem incisiva, procurei evitar o rococó intelectual e o virtuosismo da linguagem. Criou-se uma situação muito desconfortável. Ficou claro que Becker não tinha qualquer interesse pelas minhas perguntas, e ele não via qualquer obrigatoriedade de agir. Sua parte neste grande drama ele terminou com a tradução do livro, com a escrita da introdução e com conversas com pessoas, enquanto eu procurava uma pessoa que me desse respostas aos problemas centrais da minha vida, e ele não era a pessoa. Não conhecia, então o ditado de Zen: "Você adquire um Mestre para se libertar do Mestre". Quando saímos, o Benjamin estava abalado. "Não é assim que se fala com o Idel Becker") A mim, a conversa não emocionou. Não fui para um desafio intelectual, jogar xadrês com um adversário melhor do que eu. Minhas atividades atraíram as atenções. Talvez pela minha personalidade diferente e extranha. Eu ardia internamente, pensava e investigava, estudava e perguntava, na minha apresentação não havia qualquer elemento de pose, eu era transparente. Judeus Cosmopolitas Uma vez fui convidado para uma conversa num grupo diferente, todo ele europeu. Parte dele era de imigrantes e parte dele pertencia à camada intelectual literária do tipo Stephan Zweig e semelhantes, gente do grande mundo. A particularidade se expressava na atmosfera, nos seus livros e no tipo de pessoas que vieram à sua casa. Eles me convidaram para uma conversa. Frente ao meu provincialismo, eles apresentaram um extremo mundo cultural e espiritual. Eu penso que o que me atraiu a eles foi o seu amplo horizonte, e a visão de mundo e de vida deles além do shtetel. Eles falaram sobre Riga, Berlin, Londres, Suécia e Normandia. Desde o início interessei-me pelo caráter especial do nacionalismo judaico e judaismo laico. Eles viviam vidas cosmopolitas, num judaísmo que estava mesclado com a cultura universal. Eu não tomei a iniciativa de siquer um desses conhecimentos, mas eu sou feliz por eles terem acontecido no meu caminho, e eles tiveram uma contribuição de valor inestimável no meu amadurecimento intelectual e espiritual. Outro conhecimento foi com Itzchak Kissin, engenheiro florestal que falava hebraico fluente. Ele me contou sobre Eretz Israel, que visitou muitas vezes. Dele aprendi muito sobre Israel, sobre o kibutz, sobre o moshav e sobre os problemas fundamentais do país desértico. Ele me mostrou um livro sobre os judeus da África do Norte, do lemen, do Iraque, sob o nome generalizado de "Os Judeus Exóticos", que foi publicado na Alemanha. Ele apresentou diante de mim um quadro objetivo e complexo da realidade em Israel, sem idealizações, principalmente no que diz respeito à crise cultural que acontecia em Israel que, na sua opinião, iria perdurar por gerações. Também a sua visão sobre a realidade política com respeito às relações entre a colónia judaica e os árabes em Eretz Israel era singular e pessimista. No seu círculo, já entendiam o desenvolvimento do nacionalismo árabe. Ele criticava a fraqueza da posição do Hashomer Hatzair, que defendia a solução de um país bi-nacional. Ele apresentou uma visão geral e realista da situação em Israel, frente às estórias que ouvimos, lemos e vimos nas fotografias que nos eram apresentadas pelo Keren Kaiemet (fundo para a compra de terras). A Casa do Povo Todas as semanas, à noite, tínhamos discussões numa das esquinas das ruas do Bom Retiro, com um grupo de estudantes, a maioria deles sob a camuflagem da Casa do Povo. Eles eram membros do Partido Comunista, ou seus simpatizantes e apoiadores. o objetivo das discussões era o de influenciar na opinião pública da comunidade, mas principalmente na opinião da juventude. Os assuntos iam desde o Holocausto e a Alemanha, o destino do povo judeu depois dele, o conflito em Eretz Israel, a influência da União Soviética, o comunismo como solução do problema do judaísmo e dos judeus, e a relação com a política local. Eles apresentavam a linha comunista. Na questão judaica eles adotaram a posição do "Bund" europeu, segundo o qual o futuro dos judeus terá sua solução em todos os lugares através da luta dos operários e das forças "progressistas", as "forças do amanhã", conceitos abrandados da palavra comunistas. Eles rejeitavam o conflito em Eretz Israel na suposição que as forças imperialistas britânicas e americanas não permitirão o término da época colonialista imperialista. Claro que o ênfase estava no heroísmo de Exército Vermelho, o sacrifício do povo russo, quando eles atrbuem o mérito da luta dos partisanos judeus a si mesmos, ignorando a contribuição das grandes democracias, como se elas nem tivessem participado da guerra. 10 Minha posição, então, baseou-se no Holocausto como expressão do anti-semitismo substancial, em toda a cultura européia, depois de os judeus se encontrarem lá mil anos. Sobre a tentativa de salvar os reminiscentes, que não foi permitido em lugar nenhum do mundo, a não ser em Israel. Lembramos a eles o acordo Ribentrop Molotov, assinado às vésperas de Segunda Guerra Mundial entre a União Soviética e a Alemanha nazista, que causou uma crise no movimento esquerdista, e com que comunistas cessassem sua oposição à Alemanha nazista de Hitler. Isto, até a invasão da União Soviética pela Alemanha, na operação "Barbarossa", em Junho de 1941. As minhas citações de escritos comunistas e a capacidade de usá-los contra eles por meio da retórica e dos slogans deles próprios, aumentaram a credibilidade das minhas posições. Avaliamos que após a guerra, a Grä Bretanha deixará de ser uma potência, e acentuamos a possibilidade real da instituição de um lar nacional para o pavo judeu em Eretz Israel, devido à realidade mutante. Grande parte dos assuntos relacionados à realidade eretzisraelense eu estudei nessa época sobre as colônias judaicas, sobre os combatentes, e sobre a Haganá (forças de defesa) e sobre a Palmach (tropas de ação), e sobre a liderança da comunidade, especialmente Ben- Gurion. A suposição básica era que se os árabes vencerem a guerra, no final eles exterminarão a coletividade judaica, e o que restará? Comecei a desenvolver coisas, que depois me aprofundarei, sobre a civilização judaica, pois nós somos parte do mundo moderno; nós somos organizados, e o nosso nível de instrução é mais alto, nossa coesão social e o regime democrático, e a liderança bem sucedida, e a capacidade, não só devido ao "não tem alternativa", mas por causa da cultura, da instrução, do caráter moderno. Na minha opinião de então, o Império Britânico começaria a se esfarelar no mundo todo, e apesar do heroísmo e do grande sacrifício que pagaram na guerra, os grandes vencedores eram os Estados Unidos e a União Soviética, e eles não tinham a política ou a obrigação de manter o império britânico. A importância da proposta americana de trazer cem mil judeus da Europa para Israel, não tinha só importância numérica, senão que pela ruptura entre os Estados Unidos e Inglaterra, e na América, a influência de parte dos grandes líderes judeus, como Stephan Weiss10 e o Rabino Hilel Silver11. se fez sentir. A Discussão com o Hashomer Hatzair no Rio de Janeiro Recebi um convite de me encontrar com Natan Bistritski. Ele era o sheliach (enviado) principal ao Brasil e membro da direção mundial do Hashomer Hatzair, que me convidou para um fim de semana no Rio de Janeiro para um esclarecimento ideológico sobre o socialismo e o sionismo. Lá se encontrava a direção nacional do Hashomer Hatzair, e seus elementos eram conhecidos por seu nível e sua formação. Parte importante deles estudaram em universidades, era explicitamente um grupo de elite. Falamos entre nós abertamente. Disse-lhe: "Não sei como as pessoas no Rio de Janeiro me receberão, pois eu não sou membro do Hashomer Hatzair. Além disso, eu não tenho o conhecimento de sionismo socialista para participar de um debate nesse nível". Ele me disse que os líderes da coletividade lhe haviam contado sobre as discussões que tive com as pessoas da Casa do Povo. Durante dois dias dirigi o combate principal. Era impossível esconder de mim a fraseologia do Partido Comunista ou a sua forma de pensamento. Também não a política do Comintern¹ que entretanto mudou o seu nome para Cominform ¹. Em comparação a eles, eu possuia o conhecimento apropriado para o seu relacionamento ao problema nacional, e apesar dos meus temores, eles não sabiam mais do que eu sobre o sionismo socialista, e como não entraram de forma específica nos problemas dos partidos israelenses, eu pude me confrontar. o meu objetivo era o de salvar aquelas pessoas magníficas para o sionismo, e não entregá-las de presente ao Partido Comunista, relacionei-me a eles com respeito e empatia. 11 Próximo ao resumo, eu disse que receava que parte deles já se encontram, teoricamente, a caminho do Partido Comunista, seja do ponto de vista ideológico, ou simplesmente isso. Não ouvi deles sobre o problema nacional judaico, nenhuma palavra sobre o Holocausto. Suas preocupações com o mundo colonial eram maiores do que com os problemas fatais do povo judeu e da sorte da luta anti-colonialista que emprendia a coletividade de Eretz Israel contra a Inglaterra. Acrescentei que, apesar da maioria dos participantes terem estudado no Ginásio Hebreu e continuaram a viver em casa dos seus pais, do ponto de vista espiritual eles estão profundamente envolvidos na cultura local a caminho da assimilação e de casamento misto. Retirei-me antes da discussão interna incisiva entre eles. Bistritzki me contou que a continuação da discussão foi ardente, e em consulta que ele realizou com Yaakov Chazan, dos líderes da direção mundial, resolveram expulsar essa célula do movimento. Duas Convenções do Dror Conclui, do meu encontro com o Hashomer Hatzair, que atividade sionista não se pode realizar como um lobo solitário, e isto é o que eu era. Dentro de pouco tempo, fui convidado a participar da convenção nacional do Dror. A direção do movimento era em Porto Alegre, e precisava-se viajar para lá, a caminho do congresso sul americano do movimento. Conhecia as idéias do movimento, mas sabia pouco de suas atividades. Esclareci a eles que ainda não tinha resolvido a quem me afiliar, e que eu via no minha participação no congresso deles parte do meu "processo de estágio". Mas os companheiros do Dror pensavam que eu estava ligado ao movimento do ponto de vista ideológico, e supuzeram que eu estava a caminho do seu movimento, e que este era um risco calculado. Viajei com Rivka Averbuch (Berezin) que mais tarde se tornou chefe da cátedra de Estudos do Judaísmo e da Língua Hebraica da Universidade de São Paulo. À cabeça do movimento havia gente competente, Efraim Bariach¹4. Moshé e Betty Kersh¹5. Eles eram conhecidos também além do movimento. Havia uma discussão séria sobre o futuro dos idiomas no povo judeu. A discussão estorou por motivos sentimentais, porque um dos participantes, que era um completo ignorante, insistiu para que os educandos do movimento falassem somente hebraico. Este era eu, que apesar da língua materna ser o yidish, e então não saber uma frase em hebraico; mas eles me calaram. Eu, tudo bem, mas num assunto importante como este, como conseguirão fazer calar a Ben Gurion? o tema seguinte era baseado na suposição de que nossos companheiros viam na Argentina o centro do movimento. Lá encontravam-se os seus líderes, lá eram publicados, em espanhol, o melhor material ideológico, e principalmente as notícias do que acontece no movimento operário em Israel. Em resumo, os companheiros do Dror do Brasil viam lá o modelo para a imitação ou para o aprendizado. À cabeça do movimento da Argentina achavam-se líderes importantes que vieram da Polônia e construiram o movimento segundo o modelo do movimento mãe. A coletividade Argentina era grande e rica do ponto de vista da cultura judaico, em escolas judaicas, e ela vivia com a sensação de que eles são a continuação natural do judaísmo europeu. Sobre todos os assuntos relacionados com o caráter do movimento do Brasil, não achei conveniente polemizar com eles em base aos meus pensamentos primários, que ainda exigiam estudo e cristalização. Pensei que a visita à Argentina me possibilitará observar de forma crítica para estudar o assunto. o Choque na Argentina e a Cisão no Movimento A convenção foi preparada pelo escritório localizado em Buenos Aires. Depois da tragédia na Europa, e extermínio de todos os movimentos juvenis pioneiros, salientou-se 12 12 a existência desse continente. A liderança local era formada por pessoas importantes. A personalidade dominante era Moshé Kostrinski (Kitron)¹6, líder do Poalei Tzion. Ao seu lado estava Itzchak Harkavi, que veio a ser, depois, embaixador de Israel para paises da América Latina, e ele também, assim como Kitron, tinha raizes na Europa. A discussão foi aberta sobre um assunto ideológico, que logo se tornou uma discussão política, no centro da qual estava a cisão do Mapai em Israel. Na convenção havia dois grupos organizados: um grupo de argentinos que representavam a direção do movimento na América Latina. Entre eles havia pessoas muito competentes, cuja maioria emigrou para Israel e fundou o Kibutz Mefalsim. Frente a eles, havia um pequeno grupo de pessoas muito capazes do Chile, que só uma pequena parte deles emigrou para Israel. Não conhecia a matéria que estava sendo discutida, que em pouco tempo se tornou em polêmica violenta, combate de palavras e citações de Berl Katzenelson, Itzchak Tabenkin ¹7. Mein Yaari18, Ygal Alon¹9 e Ben Gurion. No duelo entre os grupos, não pouparam nenhum exercício para machucar uns aos outros. Eu não entendia as motivações ideológicas dos dois grupos rivais. Mas entendi o palavreado político. o tema se referia à cisão, que como resultado do mesmo foram criados dois partidos políticos em Israel: Mapai e Achdut Haavodá. Mais tarde cindiu-se também o movimento kibutziano Kibutz Hameuchad. Eu rejeitava a abordagem divisória. Os nossos movimentos estavam em processo de formação, e a cisão em base a assuntos que não pertencem à essência de sua existência na América Latina, no final das contas atingirá a sua própria existência. A convenção não discutiu sobre a característica do movimento, sobre os instrumentos educativos necessários ou sobre a necessidade de adaptar o movimento à cultura local, à juventude que se educa no mundo novo. Essas eram discussões que caracterizavam organização de juventude de partido, e não movimento juvenil educativo, que deveria se afastar da política e afastá-la de si. Estava em estado de choque, e isso me aconteceu mais de uma vez durante a vida. Sempre vinha acompanhado de confronto com idéia ou fato que contrariava minhas posições ou meus pensamentos, e na maioria dos casos eu necessitava uma certa distância até que pudesse encontrar a solução apropriada ao problema. Mas meu silêncio recebeu uma interpretação política; como se eu escondesse minha identificação política, e como se eu pertencesse à corrente radical, ao Achdut Haavodá. Em todos os temas da ordem do dia, não foi realizada qualquer discussão essencial, só polemizaram, e os dois lados só queriam uma corrida desvairada para a cisão do movimento, e conseguiram. A esta loucura não foi dada legitimidade no movimento do Brasi, e ele não foi parte de nenhuma cisão que acometeu os partidos em Israel. Passei a convenção sem abrir a boca. Ela aprofundou meus conflitos internos no processo de reconstrução do nosso movimento no Brasil. No fim da convenção, fui a todas as instituições importantes e recolhi todas as publicações apropriadas que pudessem contribuir para o meu conhecimento. Durante o vôo estudei duas publicações: uma de Berl Katzenelson sobre o "Socialismo Construtivo", e dois artigos polêmicos de Ben Gurion. Para meu alívio, descobri que toda a sabedoria, na qual todos se basearam durante a convenção estava, na íntegra, nesses dois panfletos. Os Princípios de Minha Concepção Sobre os Caminhos do Movimento Chegou a hora de resolver a que movimento me juntar. Os companheiros ouviam recusas claras de minha parte com respeito a dois movimentos, que não vinha em conta juntar-me a eles: (a) ao Hashomer Hatzair por causa de sua idéia de "bi-nacional como resposta à idéia de divisão do país", e a aproximação ao "mundo do amanhã", o que significa a identificação com a política da União Soviética. Desgostava bastante do dogmatismo doutrinário deste regime e do centralismo político de sua direção. (b) ao Betar por seu caráter chauvinista, por sua compreensão da solução dos problemas existentes e dos que virão no futuro, quando Israel for instituída e seus vizinhos, e pelo 13 13 seu caráter para militarista. o movimento Dror que encontrei em São Paulo era, na realidade, um clube de intelectuais, judeu e sionista, com altas qualidades de seus participantes, mas sem qualquer compromisso com a aliá e estabelecimento. o Dror, na consciência de seus membros, não era um movimento educativo realizador. Não era um fato trivial vir como visitante, e dar instruções aos habitantes da casa como mudar seu estilo de vida. As minhas incertezas não eram abstratas, mas deram soluções parciais. Conheci de forma geral os demais ramos do movimento e seus líderes, e tudo me parecia semelhante a São Paulo, isto é, seus cabeças eram geralmente também pessoas capazes. Estudaram em escolas judaicas, parte deles veio de casas tradicionais, outros de casas cujos pais eram ativistas e até chefes de organizações públicas, principalmente de instituições sionistas. Seus filhos se destacaram: Chana Tzikinovski (Raicher), cujo pai era o rabino chefe do Rio de Janeiro, um sábio e personalidade estimada por todas as partes da coletividade, Max e Ruth Resh, David Roterman, Avraham Baunwol (Hatzamri), Alberto Dines, filho de um dos líderes mais importantes do sionismo brasileiro, Bernardo Einisman (Dov Bar Natan), Mariam Genauer (Bariach), Yossef e Arieh Etrog. Eles constituiam um grupo forte e mantiveram distância e uma boa medida de independência do escritório de São Paulo, cuja atividade era limitada, assim como sua autoridade. Em Curitiba, dirigiam o movimento Sara e Shaul Shulman. Bem cedo juntou-se Felipe Kraun. Consciência da Hora de Crise Liderança é a capacidade de receber sobre si resoluções que contêm uma dimensão pública que influem sobre ele. Esta é uma propriedade que não se aprende nas escolas. Movimentos existentes e enraigados desenvolvem trajetórias de aperfeiçoamento para pessoas que têm propriedades naturais de liderança. Há situações espirituais ou necessidades de uma realidade que impulsionam as pessoas naturalmente dotadas, ou aquelas que têm carisma, que aparentemente não se expressaram, a agirem. Não era esse o meu caso. Eu não me via como uma pessoa com capacidade, e o mesmo ocorria com as pessoas que me circundavam. Não me destaquei durante a minha juventude e em nenhum momento do meu desenvolvimento me vi situado à cabeça de qualquer coisa. Ao longo do desenvolvimento da minha personalidade e nas diversas estações da minha vida, acumulei e acrescentei conhecimento, e examinava os diferentes ângulos da realidade existente e os seus problemas. Só no processo concreto da "crise respiritual" que passei, num processo de amadurecimento acelerado, senti pela primeira vez o impulso de prestar atenção e a capacidade de formular para mim mesmo as dificuldades intelectuais, e também de delinear caminho. Depois de incubar por dois anos, fui impulsionado para a ação. Ninguém se dirigiu a mim, nenhuma instituição me elegeu, não preparei qualquer plano escrito e não apresentei documento algum para aprovação. Entre a Ideologia e a Obra de Construção do Movimento Esta redação não é um documento programático, ela não passa de uma história pessoal, de forma que tomei a liberdade de não ser preciso na separação entre os vários elementos. Até aqui, os dois assuntos já existem de formas diversas, tanto os temas ideológicos como os pensamentos sobre a construção do movimento. Pensei que deveria- se cristalizar um movimento adequado às características da juventude que cresceu no mundo novo, e que deve-se libertar dos modelos que trouxeram os enviados de Israel ou passoas que vieram da Polônia ou de outros paises antes do Holocausto, isto é, modelos que estiveram enraigados na vivência dos movimentos na Europa. A juventude judaica do Brasil tem características específicas, e era preciso encontrar os caminhos adequados para ela. Nós vivemos aqui numa cultura diferente, talvez possa se dizer numa civilização diferente. A educação, o contato com os vizinhos, com nossos amigos, com os colegas de classe. É outro mundo. Fala-se outra língua, e nós não só tentamos nos assemelhar a 14 eles, mas também assimilar-se para não nos sentirmos diferentes. Às vezes atravessamos os limites dessa aproximação e assim rompemos a corrente de gerações. O processo de assimilação numa sociedade em formação, sociedade de imigração multi nacional e multi cultural, acontece de forma inconsciente. Havia necessidade de adaptar o movimento à singularidade da juventude judaica brasileira, às condições históricas e culturais que ele se encontra. A análise do caráter assimilador da sociedade brasileira e a posição da juventude judaica frente a esse processo, foi ele que me levou à resolução de me abster de discutir "a negação da golá" como parte da concepção sionista. E me perdoará Ben Gurion por ferir a coerência. Apesar de ter-se formado um movimento juvenil realizador, a realidade nos demonstrou que éramos uma minoria na coletividade judaica, e porisso temos hoje que apoiar, com todos os instrumentos ao nosso dispor, a preservação do judaísmo da coletividade, escolas judaicas, sinagogas e yeshivot, e apoiar a coletividade com possibilidades. Na Alemanha de antes do Holocausto, e nos Estados Unidos, não impediram que a juventude perseguisse o modernismo, ainda mais impedir qua a juventude judaica persiga com avidez a vida e a cultura brasileira. Processos de Mobilização Em conversas pessoais que entabulei com jovens, aprendi a escutar com atenção as suas palavras e também entender a sua alma. A expressão proselitismo, religiosa em sua origem, e que com o tempo se tornou fluente no movimento, não expressa o espírito do processo. A intenção do conceito é um diálogo intelectual que era realizado entre duas pessoas que procuravam entender uma à outra, antes que começassem a convencer esta àquela. Era importante criar um ambiente de confiança mútua que possibilitasse conversas profundas no longo prazo. Muitas vezes essas conversas criaram laços de amizade e cooperação frutíferas. As discussões, e principalmente as conversas pessoais basificaram a minha concepção. Os temores se justificaram, ninguém me fez a vida fácil, trocamos idéias, discutimos, muitas conversas sobre tudo, quase não houve assunto que não foi tocado nelas, e houve casos em que eu simplesmente respondi que não sei. Falamos sobre o anti semitismo no Brasil; se Israel conseguirá fazer frente aos seus inimigos; ao tipo de socialismo a implantar em Israel. Como tinha tanta certeza das minhas respostas? Pois muitos dos temas eram somente suposições, crenças ideológicas ainda não testadas. Como era possível se comprometer pela vida toda? Se na Europa aconteceu o Holocausto, porque pôr em perigo o destino do povo judeu numa região encharcada de ódio e violência como o Oriente Médio? Eu não tenho anotações das conversas. Eu não tinha nenhuma possibilidade de avaliar a influência da ação de mobilização na época carregada de tensão, preocupação e interesse, época na qual quasi todo o povo judeu, em todos os cantos do mundo, estava atento à sua sorte. Não tenho a menor dúvida que, nessas condições, nossas palavras não cairam em ouvidos tapados. No fim da "maratona" de mobilização, durante a qual eu estava em verdadeira euforia, fui acossado pelo medo. Pois, parte das conversações pareciam um compromisso mútuo. A realidade foi favorável ao desenvolvimento do movimento. Formaram-se grupos mais velhos que começaram a reunir grupos mais jovens, e o movimento parecia como adequado à natureza do movimento educativo. Viram-nos discutindo sobre uniforme, sobre realização pioneira, isto é, emigrar para Israel, ligar-se ao kibutz e até filiar-se individualmente ao movimento juvenil. Tudo isso ainda não se cristalizara num conjunto ideológico coerente. Então, ainda me debatia como apresentar diante dele uma concepção de mundo generalizada, que inclui um projeto de vida completo num mundo diferente do meu. Eu já introvertira a essência e o caráter da sociedade israelense. A Chevrat Ovdim (Sociedade dos Trabalhadores) e o kibutz eram, sem dúvida, instrumentos 15 15 apropriados, que podiam responder às aspirações socialistas que se difundiram no mundo depois da Segunda Guerra Mundial. Vi também diante dos meus olhos o processo de mobilização da camada mais velha, que pudesse dirigir o movimento e que fosse capaz de mobilizar e criar grupos mais jovens, educá-los no espírito aberto, e criar instrumentos educacionais que os ajude, junto com a família e as escolas, a fazer frente a um mundo complexo, onde a assimilação é uma opção que se encontra na palma da mão. Vi a dificuldade na preparação da camada mais velha para a ida a Israel e ao mesmo tempo de um quadro organizado que garanta a continuidade do movimento. Debati-me no dilema com o qual o movimento deveria se confrontar com respeito aos estudos universitários, se concordar com a continuação dos estudos nas universidades ou deixá-los para in para Israel e para o kibutz? Senti a dificuldade de formular a generalidade, e não só os problemas em si, o encontro com o meu pai, com o objetivo de comunicá-lo de forma final que eu estava a caminho da realização, de abandonar os estudos no Brasil, não dava mais para adiar, e então viajei para casa, em Santos. Nós dois procuramos manter um bom estado de espírito, mas o encontro foi difícil, pois ambos sentimos que ele iria ferir de forma grave o nosso relacionamento. Não tinha o que renovar, a não ser expressar em voz alta um pensamento que pela primeira vez expressei também para mim próprio: "Eu acho que estou a caminho da Palestina". Não há por que repetir tudo o que foi dito entre nós, mas no centro estava a palavra "ativista", que era uma expressão de vexame, cujo significado, de sua boca, era o de uma pessoa que vive às custas de dinheiro público. O encontro deixou, em nós dois, um gosto mau, os resultados aprenderia no futuro. o Tinido do Tempo Sem aviso prévio, chegou a São Paulo um dos líderes do Dror do Rio de Janeiro, Arieh Etrog. Arieh era uma pessoa agradável, inteligente e instruída, e cada encontro com ele sempre deixava um bom ambiente. Em conjunto formulamos as propostas para a segunda convenção nacional do movimento, após o primeiro que foi realizado em Porto Alegre, como dito. A discussão central era a instituição da hachshará (fazenda de preparação para o kibutz) pioneira no Brasil. Expressei a minha opinião de que, do ponto de vista do movimento, era prematuro, pois o movimento não formou uma reserva para a sua formação no futuro. Ele explicou que companheiros importantes do Rio de Janeiro e de Porto Alegre chegaram à conclusão de que o seu tempo amadureceu e que para os companheiros veteranos que haviam fundado o movimento começa a se tornar tarde. Eles não viam motivos para continuarem a ser ativos no movimento, parte deles já estava casada, e havia a preocupação de que se não fossem a tempo, sua aliá seria adiada, e poderia fracassar no caminho. Houve dois gritos de alarme ao mesmo tempo que me assinalaram que a hora de agir para a renovação do movimento era premente. A exigência de instituir a hachshará e a resolução dos companheiros do movimento argentino e dos membros do Hashomer Hatzair do Brasil de fazer aliá e se voluntarizar para a guerra de independência. Minha opinião não foi aceita, a segunda convenção foi realizada e a hachshará instituída. o primeiro grupo foi constituído pelos fundadores do movimento, que foram também os primeiros a fazer aliá para Israel. o Enviado Yossef Almogui No Brasil havia um enviado central, Yossef Krelembaum (Almogui)²0, e resolvi me aconselhar com ele a respeito da resolução que foi aceita no movimento de fazer aliá para Israel e se alistar no exército. Expliquei minha posição sobre a falta de preparação do movimento para se desfazer de seus poucos companheiros maduros, e levantei diante dele o dilema. Passados alguns dias ele me disse: "Falei com Israel; o destino dos jovens que chegam nos kibutzim é o de trabalhar no lugar dos membros da Palmach que foram convocados para a guerra". Perguntei sua opinião sobre a forma que eu agi, tanto no 16 assunto do exército como o da antecipação da ida para a hachshará. Ele me respondeu direto e sem subterfúgios: "Se eu tiver que resolver, então você fica; mas saiba que o tempo pressiona". As coisas em Israel aconteceram exatamente conforme disse Almogui: os jovens da Argentina ficaram no kibutz Gvat e os jovens do Hashomer Hatzair no kibutz Negba, nenhum deles foi convocado. Almogui não foi o único enviado com quem me aconselhei. Chegaram ao Brasil, naquela época, muitos enviados para diversas missões, além daqueles que vieram ajudar os diversos movimentos que se formaram no Brasil. Não perdi uma oportunidade de ouvir o que tinham a dizer, participar em discussões e me aconselhar com eles. Os enviados eram a única fonte para se receber informações sobre Israel e sobre os esforços diplomáticos internacionais que foram feitos para a instituição do Estado. Eles apresentavam uma ampla variedade de opiniões políticas, as quais aprendi a escutar e respeitar, e elas contribuiram de forma significativa para a cristalização das minhas concepções sionistas socialistas amplas e anti dogmáticas. Na minha concepção cristalizou-se o pensamento de que a ideologia serve à pessoa e ao homem público como uma bússola que orienta o seu caminho, e não como o "shulchan aruch" (código de leis judáicas) ou um Vade Mécum (guia) que ensina e orienta cada passo de sua vida. Não há uma bola de cristal que mostra os caminhos do futuro, os desastres naturais, guerras, desenvolvimento tecnológico, mas as condições são que cousam a incerteza da existência humana. A distinção entre um estadista maduro e um simples político é que o primeiro usa a bússula e o segundo não. A terceira convenção do movimento, realizada na hachshará, aprovou o plano de trabalho por mim apresentado, e escolheu a nova direção, formada pelo melhor da juventude judaica. o movimento vivia uma hora construtiva. A Lapa Realização era entendida no movimento como o resumo de todas as nossas atividades educativas, quando o objetivo concreto é a aliá para Israel e se estabelecer aí. o fato de basear-se em estudantes criou no movimento um paradoxo. Pois, a existência do movimento dependia deles, e quando chegavam às classes mais altas e às universidades, eles dedicavam seu tempo e sua energia aos estudos, e não restava tempo para o movimento. Anos depois disso, estando em Israel, estudei na literatura sobre os movimentos clássicos que se formaram na Europa que se você basifica o movimento sobre a juventude de dentro da "intelligenzia", você a constrói em solo fértil porém problemático, devido ao mesmo problema que apontei. Entendi o dilema desde o início da grande mobilização da liderança futura, mas resolvi arriscar e tentar convocar para o movimento justamente os mais talentosos, e deixar para o destino fazer a sua parte nas resoluções futuras. Tive muito tempo para sofrer, imaginar e tentar outras soluções, mas não consegui inventar soluções que não sejam na verdade substitutos, tentar novamente o caminho trilhado pelos movimentos europeus, dar aos companheiros mais maduros maior liberdade para in à universidade e confiar o destino do movimento à suas consciências. Entrei nas discussões da "Lapa" com temor e piedade, realmente com profunda ansiedade. Entendi o dilema que eu colocava diante dos companheiros, e eu não joguei nenhum jogo retórico. Expliquei o que meus olhos viam, ou seja, que sem o abandono dos estudos pela camada dirigente, e sem sua dedicação completa às atividades do movimento, ele não resistirá, ele se desmanchará ou fenecerá, Conhecia cada um dos participantes do seminário, e via nessa equipe o potencial para a realização do movimento. Eles eram os escolhidos e os dotados que conseguimos recrutar na ocasião, e com eles se erguerá ou cairá o movimento. Não imaginei que na era moderna pode-se abrir mão de estudos universitários; fato que todos aqueles companheiros dotados queriam estudar, estudaram, e há entre eles 17 17 professores e doutores que pode-se orgulhar deles. A resolução de interromper os estudos não era técnica, mas de conteúdo, ela deu forma ao complexo conceito de "liderança". Também sobre isso tive muito tempo para debater. o conceito que diz que "somos todos iguais", esconde a complexidade das forças do espírito, caráter, vontade, ambição, coragem do ponto de vista espiritual, carisma e componentes de personalidade. Quando os componentes se revelam nas medidas e no ambiente social certos, eles criam legitimação e liderança florescente, e o corpo social goza dos frutos abençoados. Nem sempre pode-se descobrir o educando que possui parte das características exigidas, só um ambiente estimulador possibilita a sua descoberta. Não santificamos o processo que levou ao abandono dos estudos, e quando as condições mudaram, a resolução mudou. As resoluções da Lapa trouxeram ao movimento anos abençoados, e a todos aqueles companheiros que abandonaram os estudos, as universidades se abriram diante deles, em Israel ou fora de Israel. Ela foi uma decisão coletiva em seu conteúdo e moral na sua grandeza. Resumo Temporário Mesmo sem observar de forma retroativa, pode-se dizer que à nossa realização em Israel houve uma justificativa humana e também nacional. o destino poupou de nós o que causou a nossos antepassados na Europa, e para meu pesar Israel ainda não vive em paz, assim como o mundo. A bênção de nossa realização e de outros como nós, com nossas famílias, nossos filhos e nossos netos, não é medida só por números, mas pela qualidade, pela voluntariedade, da capacidade, potencialidade ocultos na dimensão do tempo. A continuação da vida do movimento e sua realização em Israel serão escritos em outro tempo, quando novamente florescer a inspiração. |