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Vamos votar nos conselheiros tutelares
Neste domingo (21), maiores de 16 anos residentes em São Paulo, com título de eleitor, estão convidados a votar nos conselheiros tutelares. Com a responsabilidade de zelar pelo cumprimento dos direitos definidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na Constituição Federal, a missão dos 260 conselheiros que tomarão posse no dia 6 de março é enorme. Numa metrópole de 12 milhões de habitantes, na qual violações aos direitos humanos ocorrem a cada instante, tal missão ganha ainda mais relevância. Nesta eleição, concorrerão quase 1.600 candidatos em 52 regiões nas quais foi dividida a capital para atuação dos conselhos. A cidade passa a ter 52 conselhos tutelares, cada um com cinco titulares e cinco suplentes. O conselho tutelar é responsável por assegurar, com a melhor qualidade possível, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à convivência familiar e comunitária, além de proteger crianças e adolescentes de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Diante de atribuições tão difíceis, é importante que os paulistanos se mobilizem e participem desse processo, que reforça o aprimoramento da democracia e da participação popular nos destinos do país. Para votar, basta ter o título de eleitor e conferir os respectivos locais de escrutínio no site www.direitoshuma nos.prefeitura.sp.gov.br. Criados há 25 anos, os conselhos tutelares sofrem ainda hoje com a falta de reconhecimento de sua importância para o país. O prefeito Fernando Haddad tem feito esforços para melhor qualificar o exercício da função. Em novembro de 2013, encaminhou projeto de lei à Câmara dos Vereadores, logo aprovado, que regulamentou no município a lei federal nº 12.696/12, estendendo aos conselheiros tutelares direitos sociais e trabalhistas, como férias remuneradas, 13º salário, licença maternidade e paternidade. A prefeitura está realizando estudos relativos sobre ajuste salarial, vale-transporte, auxílio refeição e melhoria de infraestrutura de trabalho, assim como a definição das responsabilidades funcionais e respectivas medidas disciplinadoras. Os problemas técnicos que ocasionaram a anulação do processo de escolha dos conselheiros em 15 de novembro já foram superados. Um grande esforço está sendo realizado para que seja bem-sucedido o maior pleito do Brasil relativo aos direitos das crianças e dos adolescentes. Quero agradecer, de forma pública e enfática, a participação de mais de 6.000 servidores de toda a administração municipal que trabalharão neste domingo para que haja pleno sucesso neste processo de escolha, o que também dependerá da participação entusiástica e consciente da sociedade. EDUARDO MATARAZZO SUPLICY, 74, é secretário municipal de Direito Humanos e Cidadania de São Paulo. Foi senador pelo PT-SP (1991-2014) * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-02-19
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1740894-vamos-votar-nos-conselheiros-tutelares.shtml
Impeachment e incapacidade mental
Retomo o tema do impeachment motivado pelas numerosas reações à minha coluna recente na Folha sobre o tema. Muitos acharam interessante a referência à relação entre impeachment e assassinato. Outros entenderam que ela teria sido pinçada de forma arbitrária e não teria nada a ver com o real debate constitucional americano. Aos que não são acadêmicos da área - e portanto não têm obrigação de conhecer a literatura científica -, recomendo o artigo "Impeachment and Assassination", de Josh Chafetz, que é excelente introdução para o debate. Chafetz afirma –e com ele concordo– que discutir a relação entre impeachment e assassinato permite "jogar luz sobre as questões mais instigantes em torno do impeachment": porque destituir um mandatário eleito por maioria e que tipo de delito poderia justificar seu impeachment?. Meu argumento centra-se em um paradoxo certamente identificado por leitores de boa fé. A Constituição brasileira não admite o impeachment, mas sim a anulação das eleições, no caso extremo que juristas renomados julgam incontroverso para o impeachment: quando há corrupção no processo eleitoral. O processo é decidido na esfera judicial, passando ao largo do poder legislativo. Essa singularidade brasileira –a existência de uma Justiça Eleitoral– confere ao processo de impeachment no país uma dinâmica pouca discutida: o conflito ocorre em duas arenas distintas, o Tribunal Superior Eleitoral e o Congresso Nacional. Além disso, faço uma dedução contra-intuitiva: a derrota em uma delas pode aumentar as chances de sucesso na outra. Sunstein, a quem citei, escreveu no contexto da tentativa de impedimento de Bill Clinton em 1998, no famoso caso Monica Lewinsky. Ele sustentava que seria disparatado destituir o presidente por ilicitudes menores, como fumar maconha na Casa Branca. E listou os delitos, dos menores aos mais graves, como corrupção grave ou alta traição. O subtexto de seu artigo era outro: não se poderia impedir o presidente pela prática de sexo oral no salão Oval (ou por mentir a respeito). Concordo com Sunstein quando afirma que "o poder do impeachment é parte fundamental de um sistema de democracia deliberativa" e que o impeachment não pode ser trivializado e acionado para delitos menores. Seria descabido propor o impeachment de um presidente no Brasil devido a, por exemplo, sua deficiente capacidade oratória. Mas o autor alerta sobre a dificuldade de demarcação em uma classe ampla de casos, como homicídio pelo presidente sem motivação política. Como nota Sunstein, o impeachment constitui fenômeno raro no que denomina "democracias que funcionam bem" (well functioning). Afinal, o que seriam casos incontroversos de impeachment –como a venda de segredos militares para o inimigo ou desvio massivo de fundos públicos para o financiamento de campanhas, ou operações orçamentárias ilegais (como o caso Irã-Contras nos EUA)– são muitos raros em democracias. Alguns casos de impeachment na América Latina tiveram justificativa controversa –para alguns exemplo de trivialização– como o de Abdalá Bucaram, impedido por "incapacidade mental" (algo explicitamente previsto na Constituição do Equador). Bucaram, vulgo "El Loco", como ele próprio se intitulava, "não dizia coisa com coisa" diante das câmeras, e respondeu a graves acusações de corrupção. A incapacidade mental, ou mesmo má-fé intelectual, pode ser motivo para muita coisa, sobretudo no mundo acadêmico onde denúncias de supostas intenções atribuídas a autores amiúde substitui a análise, mas como justificativa para o impeachment é certamente controversa. MARCUS ANDRÉ MELO é professor titular de ciência política da UFPE - Universidade Federal de Pernambuco. É coautor de "Brazil in Transition: Beliefs, Leadership and Institutional Change" (Princeton University Press) * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-02-19
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1740780-impeachment-e-incapacidade-mental.shtml
Proibir a doação de empresas
Afirmar que a prática do "caixa 2" vai aumentar em 2016, indiretamente implica afirmar que a proibição de doações por empresas foi um equívoco, um incentivo a essa prática. Um incentivo legal, feito nas casas legislativas e chancelado pelo Executivo. É ilusão achar que a vedação das doações pelas empresas constitua medida eficaz para a moralização das eleições. E a desilusão será o amargo remédio. Essa panaceia moralizadora ainda merece reflexão. Três aspectos que deveriam ser considerados. Primeiro, o veto a doações empresariais fará o "caixa 2" crescer mais em 2016. Sem sombra de dúvida. Imaginar o contrário constitui perspectiva infantil do processo eleitoral. Mais de 90% das doações vinham das empresas. Pensar que o particular unido contribuirá com os 100% do necessário para os gastos do alto valor de uma campanha eleitoral, significa imaginar que as punições severas da lei sirvam para evitar atividades ilícitas. Só para lembrar: a Lei de Improbidade Administrativa não inibiu práticas que a Lava Jato vem revelando. E não esqueça: referida lei é de 1992. Curiosamente, quem a sancionou sofreu impeachment. Teria praticado ato de improbidade que, comparada com as atuais, seria de "menor potencial ofensivo". Quase uma "improbidade famélica". A Lei Anticorrupção coibirá a corrupção em todos os seus aspectos? A resposta é óbvia e propõe outra questão: referida lei já não puniria práticas imorais decorrentes de benefícios derivados de doações feitas com o objetivo de receber benesses governamentais? Segundo, uma boa solução seria a possibilidade de cada empresa, ao invés de doar um valor a esse, àquele e, ainda, a outro partido (para ficar "bem com todos"), doar, dentro dos limites legais, a um único partido. De quem é o voto? Do candidato ou do partido? Do partido, óbvio. Se é do partido, chega de valores pouco republicanos. Uma empresa tem de ter a coragem de optar por essa ou aquela legenda, ainda que mude em futuras eleições, pois estamos numa democracia. O que não se deve admitir, por exemplo, é uma doação hipotética de R$ 999 mil, dividida pelas três principais legendas. Doação deve revelar a ideologia de quem doa e não constituir uma conveniência ou um pedágio, pago como "ato preventivo" de futuras participações nos empreendimentos públicos. Terceiro, limites. Tetos de valores a serem doados e gastos. Quantias máximas relacionadas com aspectos de quem doa e de quem gasta. Experimentem tetos e verão que o "caixa 2" cairá. Se na prestação de contas cada qual pode doar um valor (e exclusivamente a um partido), como as contas não baterão? Quem não pretende que as contas batam? Sabem por que empresa deve doar? Porque uma proposta como a sugerida dificulta o "caixa 2"; porque empresas geram empregos e participam do processo democrático, recolhendo uma infinidade de tributos. Simples assim. E tanto é importante a consideração da influência das empresas no cotidiano das relações público-privadas que há uma lei, já aqui referida, para que a corrupção "realizada" pelas pessoas jurídicas seja punida. Estão sujeitas a punição porque usadas para determinadas práticas engendradas por seus administradores. Algumas ficam mesmo estigmatizadas e seus nomes passam a representar sinônimo de provável corrupção. Mas, apesar dessas considerações, sempre aparece a afirmativa, que é a principal justificativa para proibir a doação: "empresa não vota". Ainda, ouve-se: "doou dinheiro porque vai receber de volta lá na frente". A doação é proibida porque tem aspecto de ato preparatório de improbidade. Vamos "prevenir" e conviver com o "caixa 2". Isso equivale afirmar que não temos saída. Temos. Certamente, as propostas acima podem ser complementadas por outras tantas. JOSÉ MARCELO MENEZES VIGLIAR, 51, doutor pela faculdade de direito da USP e pós-doutor pela Universidade de Lisboa, é professor de direito eleitoral e interesses difusos das UNIFMU PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON, 49, livre-docente e doutor pela faculdade de direito da USP é conselheiro do IASP - Instituto dos Advogados de São Paulo e presidente do IBDP - Instituto Brasileiro de Direito Processual * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-02-18
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1740465-proibir-a-doacao-de-empresas.shtml
Tática 'fubanga'
Contrariamente ao anunciado poucas horas antes, nada se deliberou na reunião do Conselho Político do PT a respeito das acusações envolvendo o ex-presidente Lula e as empreiteiras OAS e Odebrecht. Pelo menos, foi o que afirmou o presidente do partido, Rui Falcão, ao fim do encontro realizado nesta segunda-feira (15) em São Paulo. Talvez não houvesse mesmo grandes explicações a dar sobre o sítio de Atibaia e o tríplex do Guarujá. Falcão limitou-se a negar fundamento às acusações. Argumentou que o sítio não é formalmente propriedade de Lula, sem abordar a questão, entretanto inevitável, de quem teria financiado as reformas na propriedade, e por que teriam duas grandes empresas de obras públicas interesse em prestar gentilezas desse tipo. Marco Aurélio Garcia, assessor da Presidência, teve atitude mais amena, em entrevista à Folha antes da reunião. "Se formos falar desse tríplex, ele é bem fubango, não é?", perguntou; "considero meu apartamento melhor". Concordando ou não com esse julgamento, o fato é que os demais membros do Conselho Político teriam, portanto, segundo a versão oficial, discutido assuntos mais elevados do que uma simples cobertura no Guarujá, e não tão prosaicos quanto pescarias e passeios de pedalinho. Tratou-se, assim, da necessidade de um "plano nacional de emergência" para responder à crise econômica, propondo alternativas ao receituário "neoliberal". As dificuldades do PT, nessa seara, tendem a ser consideráveis do ponto de vista político. Apesar das próprias relutâncias, o governo Dilma Rousseff tem insistido na necessidade de cortar de gastos, reformar a Previdência e retomar a cobrança da famigerada CPMF. Ao mesmo tempo em que defende a presidente, o partido busca todavia afastar-se do pouco que a atual administração ainda mantém de acertado em seus caminhos. Na defesa do ex-presidente, não se esconde o mal-estar: o apartamento é mixuruca. Aliás nunca foi de Lula. Mais ainda, favores como os das empreiteiras são normais, como sugeriu o ex-ministro Gilberto Carvalho recentemente. Para utilizar uma expressão popular, é como se o partido estivesse órfão de pai e mãe: Lula e Dilma não são mais o que eram, e o "plano de emergência" para a economia talvez valha tanto quanto as explicações sobre Atibaia. Elabore-se algum arrazoado, jurídico ou financeiro, para ganhar tempo. Contabilizem-se os votos que já foram perdidos de qualquer modo, e que o resto se arranje até 2018. A tática é bem "fubanga", seja lá o que isso signifique, mas é o que o PT tem a oferecer. editoriais@grupofolha.com.br
2016-02-17
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1740179-tatica-fubanga.shtml
Quando a exceção se transforma em regra
Embora a Constituição Federal de 1988 tenha definido que os cargos em comissão, aqueles de livre nomeação e exoneração preenchidos por quem que não se submeteu a concurso público, destinam-se somente às atribuições de direção, chefia e assessoramento, rotineiramente, a União, os Estados e os Municípios os têm utilizado para agraciar apadrinhados políticos. Temos assistido a administração pública em todas as esferas, violar a Constituição, uma vez que é comum a criação de cargos em comissão não corresponder às funções previstas na Carta Magna, destinando-se, na verdade, ao desempenho de atividades meramente burocráticas ou técnicas, que não exigem para seu adequado desempenho relação de especial confiança. Quando um cargo técnico, que deveria ser preenchido por uma pessoa concursada, é ocupado por um comissionado, surge a prerrogativa para a Administração de demiti-lo a qualquer momento. Logo, é comum que o comissionado ceda à pressão política em suas funções, sob o risco de ser imediatamente substituído caso desagrade seu superior. Visando repelir este tipo de atuação dos administradores, o Poder Judiciário tem proferido diversas decisões contrárias ao preenchimento de cargos em comissão em desconformidade com a Constituição. Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou decisão de primeira instância, a qual determinou que os cargos de natureza jurídica da Prefeitura de São Sebastião sejam preenchidos por concurso público. Na ação proposta pelo Ministério Público, reconheceu-se que `as funções jurídicas do município foram atribuídas as nomenclaturas de "assessor" e de "chefe", para fornecer "falsa roupagem de cargos comissionados". O Órgão Especial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais também reconheceu que a atuação de Procuradoria Jurídica é serviço típico de advocacia pública, que deve ser composta por servidores concursados. Por isso, julgou inconstitucional lei municipal que criou o cargo de assessor jurídico comissionado. O relator do caso além de lembrar a previsão constitucional para cargos em comissão, ainda ressaltou que as atribuições da Procuradoria Jurídica do Município são semelhantes as dos Estados e da União, conforme artigos 131 e 132 da Constituição, em que os servidores são organizados em carreira. Já o Município de São Paulo, ignorando a Constituição, e na contramão dos posicionamentos judiciais, insiste em manter em seus quadros mais de 100 cargos em comissão de Assessores Jurídicos, Assistentes Jurídicos, Assessores Especiais, exercendo funções típicas de Procurador do Município, em evidente desvio de função. É curioso o fato de que o próprio município de São Paulo (Processo n°. 2011-0.183.148-7), se manifestou no sentido de que "a função dos integrantes das denominadas assessorias ou consultorias jurídicas não se compatibiliza com o exercício de cargo em comissão por pessoa alheia à carreira da advocacia pública municipal, sendo inaplicável ao caso o art. 37, V, da Constituição Federal", o qual esclarece que os cargos em comissão são aqueles destinados às funções de direção, chefia e assessoramento. Enquanto isso, mais de 150 aprovados no último concurso público de procurador do município de São Paulo, finalizado em 2014, aguardam as respectivas nomeações. Alguns assessores nomeados foram, inclusive, reprovados no concurso. A ilegalidade perpetrada pelo Município de São Paulo está em investigação pelo Ministério Público através de Inquérito Civil instaurado em 2015. Não se pode ignorar que a contratação de comissionados é exceção à regra do concurso público, e se justifica a criação de restrições para inibir eventuais abuso a essa prática disseminada por todo Brasil. ALINE ALMEIDA, procuradora do Estado de Minas Gerais e integrante da Associação dos Aprovados no 7º Concurso para o cargo de procurador do Município de São Paulo * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-02-17
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1740106-quando-a-excecao-se-transforma-em-regra.shtml
O bolo a dividir
Demagogia, oportunismo e mistificações diversas campeiam no debate político em torno da necessidade de contenção dos gastos públicos, em particular daqueles destinados aos programas sociais. Pela tese mais encontradiça, aponta-se que ajustes orçamentários porão em risco –ou propositalmente eliminarão– iniciativas de redistribuição de renda e combate à pobreza. Sem negar que haja sacrifícios pela frente, cumpre refutar tal argumento. O aparato de seguridade e os direitos instituídos pela Constituição de 1988 decerto constituem conquistas civilizatórias e alicerces do período mais pleno de democracia no país. Justamente para preservar tais avanços, é imperativo adequá-los aos recursos disponíveis para seu financiamento. Despesas com previdência e assistência social, educação, saúde e amparo ao trabalhador consomem hoje, nas três esferas de governo, cerca de 19% do PIB –vale dizer, da renda de todos os brasileiros. Esses desembolsos ficavam em torno de 13% no início da década passada. Com o processo inexorável de envelhecimento da população, os encargos passam por uma escalada que se tornará cada vez mais aguda nos próximos anos. A trajetória seria menos alarmante se desfrutássemos de crescimento econômico acelerado, capaz de, simultaneamente, ampliar a arrecadação tributária e reduzir a clientela das ações assistenciais. A realidade, porém, é bem outra. As mais recentes estimativas do FMI evidenciam o desempenho insuficiente do país. Entre 1996 e 2015, o PIB global mais que duplicou, e o dos emergentes quase triplicou; o brasileiro cresceu na casa dos 70%. No ano passado, o PIB per capita nacional caiu de US$ 16,2 mil para US$ 15,7 mil. Evidencia-se nos resultados o peso de uma máquina estatal que absorve em tributos mais de um terço da renda das famílias e empresas; cujo endividamento, elevado e crescente, demanda juros que deprimem os investimentos. Sem um equacionamento gradual e planejado dos gastos, portanto, a política social está fadada a sofrer um ajuste, mais doloroso, imposto pelas leis da escassez –uma disputa caótica por verbas entre escolas, hospitais, aposentados e desempregados. editoriais@grupofolha.com.br
2016-02-16
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1739868-o-bolo-a-dividir.shtml
Caminhando contra o vento, sem lenço e sem documento
Vivemos tempos difíceis: recessão de 4% ano passado e chances altas de piora esse ano, inflação altíssima e resistente, dívida pública crescendo de forma acelerada, desemprego caminhando para dois dígitos, incertezas políticas e uma profunda falta de esperança de que poderemos sair dessa situação no médio prazo. Não há mais horizonte no Brasil, não sabemos quando a economia vai parar de piorar e muito menos quando será possível retomarmos ao padrão de vida de cinco ou dez anos atrás. Com exceção das empresas exportadoras e dos indivíduos que optaram por estar dolarizados pós-eleições, o brasileiro está mais pobre. Mesmo que o governo venha a implementar novamente uma política de estímulo ao crédito, o resultado será inócuo. Não há mais dinheiro que possa ser criado artificialmente na crise fiscal atual e não há mais uma China crescendo a taxas exorbitantes, capaz de fazer as commodities que exportamos voltarem aos patamares passados. Não precisava ser assim. Se tivéssemos poupado nos tempos de bonança, poderíamos estar amenizando o mal-estar atual. Confiamos na permanência do boom de commodities, investimos pouco e estimulamos o consumo via política fiscal e parafiscal de forma desenfreada. O Fundo Soberano do Brasil é um exemplo clássico da falta de vontade de poupar. Criado em 2008, sua função era formar uma poupança pública, que poderia ser usada para combater os efeitos de eventuais crises econômicas. Mesmo tendo patrimônio modesto em comparação com os demais fundos soberanos, o nosso fundo nunca teve estratégia clara de gestão. Investiu em ações de estatais e bancos públicos e acabou sendo usado em 2015 para ajudar a tornar menos pior o déficit primário. Ou seja, a ideia de se formar uma poupança foi na verdade transvertida em "investimentos" que sustentaram a política de expansão fiscal e o intervencionismo do governo. O que sobrou do fundo foi gasto para amenizar uma conta furada. O resultado da falta de poupança e do crescimento excessivo dos gastos se reflete na dívida pública. Não é difícil argumentar que com uma dívida bruta caminhando para 80%, com um PIB potencial indo para menos de 1%, e com a taxa de juro real próxima a 8%, estamos numa trajetória insustentável. Qualquer cidadão sabe que o governo perdeu completamente a capacidade de cortar gastos e aumentar impostos a fim de gerar superávits primários de 4%. É muito sacrifício para um país cujo déficit está em 2% e o desemprego perto de 10%. Para piorar, temos pela frente a capitalização da Petrobras, implicitamente já admitida pelo governo, que pode adicionar cerca de 2,5 pontos percentuais à dívida pública e com a Caixa Econômica também à espera da capitalização. Crises são sempre momentos propícios para arroubos criativos e busca por soluções fáceis. Há diversas sugestões como, por exemplo, usar reservas para incentivar o investimento em infraestrutura, controlar o câmbio e baixar os juros, afrouxar as metas fiscais para horizontes mais longos, entre outras. Todas seguem a cartilha da "Velha Matriz Econômica": estimulando o crescimento, poderemos alcançar o ajuste fiscal. A criatividade é tanta que o governo insiste em afirmar que política de crédito não tem relação com política fiscal. Difícil entender como a taxa de juros a longo prazo não implicaria em subsídio e como não deveria de forma alguma fazer o Banco Central apertar a política monetária. Mas e a inflação? Um dia cairá, já que o mundo é deflacionário. O mundo, aliás, sempre surpreende o governo e as autoridades monetárias com recessão, políticas expansionistas e juros negativos. Conseguiremos literalmente inserir o Brasil no mundo, em breve, quando os juros ficarem negativos. Perdemos o bonde da história: desperdiçamos o maná que a China nos deu, jogamos no lixo o tripé macroeconômico que por algum tempo nos permitiu ter o selo de bom pagador e agora corremos o risco de vender nossas joias para nos endividarmos mais. A história de sair da era do ajuste fiscal para entrar na era do crescimento com responsabilidade é simplesmente uma história. Não existe crescimento com desajustes, nem responsabilidade fiscal que ignore o tamanho do rombo. Enquanto isso, o estoque da dívida e a inflação continuam crescendo. A triste verdade é que somos gastadores, não investimos e não queremos controlar nada além do mínimo para sustentar ao máximo uma governabilidade precária. SOLANGE SROUR é economista-chefe da ARX Investimentos * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-02-16
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1739772-caminhando-contra-o-vento-sem-lenco-e-sem-documento.shtml
Acordo frágil
Reunidos na cidade de Munique (Alemanha), representantes das potências anunciaram na última quinta-feira (11) um acordo para suspender as hostilidades na Síria e permitir que a ajuda humanitária chegue às áreas sitiadas do país. A iniciativa, programada para entrar em vigor nesta semana, marca um entendimento inédito entre Estados Unidos e Rússia –enquanto os norte-americanos insistem na deposição do ditador Bashar al-Assad, os russos buscam manter no poder seu maior aliado no Oriente Médio. Mais importante, o acordo, se realmente for implementado, levará à primeira interrupção dos combates desde 2011. Trata-se de uma trégua mais do que necessária. Os quase cinco anos de guerra provocaram a maior catástrofe humanitária deste século, causando a morte de quase 500 mil pessoas. A destruição de cidades inteiras e a perseguição nas áreas controladas por facções extremistas levaram cerca de 13 milhões de pessoas –cerca de dois terços da população síria– a deixar suas casas. Já se aproxima de 5 milhões o número das que buscam abrigo em outros países. A economia síria entrou em colapso, tendo encolhido, estima-se, cerca de 50% desde 2011, e a expectativa de vida baixou de 70 para 55,4 anos de 2010 a 2015. As diversas lacunas do compromisso recém-acertado, porém, recomendam moderar o otimismo com relação à iniciativa. Em primeiro lugar, as discussões não incluíram facções radicais, como Estado Islâmico (EI) e Jabhat al-Nusra, que controlam largas porções do território sírio. Não está claro, ademais, se o pacto envolve todos os grupos rebeldes que lutam contra Assad nem qual será o comprometimento da milícia libanesa Hizbullah e dos combatentes iranianos que hoje defendem seu governo. Por fim, há dúvidas sobre se os ataques aéreos russos –em tese parte da luta contra o EI, mas que também atingem a oposição a Assad– serão interrompidos. Tudo leva a crer, portanto, é improvável que o ensaio de cessar-fogo leve ao fim imediato da violência no território sírio. Na melhor das hipóteses, pode se transformar num primeiro passo na longa estrada para a paz. Nem isso, entretanto, está garantido. editoriais@grupofolha.com.br
2016-02-16
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1739866-acordo-fragil.shtml
Desacertos
As enchentes de Verão em São Paulo já criam dificuldades, mas a Prefeitura investiu muito pouco em "intervenção de controle de cheias em bacias de córregos". Dos R$ 915,3 milhões previstos no Orçamento de 2015, gastou efetivamente R$ 348,4 milhões - apenas 38%. Deixou de aplicar, portanto, R$ 566,9 milhões, o equivalente a 62%. Para a dotação orçamentária "manutenção de sistemas de drenagem", a Câmara Municipal estipulou recursos da ordem de R$ 178,1 milhões em 2015. A administração não investiu R$ 35,6 milhões, ou seja, 20% do total. Ao mesmo tempo, a Prefeitura dispunha de R$ 40,3 milhões no Orçamento para aplicar em "implantação de vias cicláveis – ciclovias, ciclofaixas e ciclorrotas". Não foi suficiente. O prefeito ordenou uma suplementação de R$ 10,3 milhões. Total: R$ 50,6 milhões. Aqui, Fernando Haddad liquidou R$ 49,2 milhões –o correspondente a 97% do total. Outra prioridade da administração tem sido gastar com publicidade. A gestão empenhou (destinou para pagamentos) R$ 104 milhões dos R$ 110 milhões estabelecidos pelo Orçamento de 2015 - o equivalente 94,5%. No ano anterior, em 2014, o dispêndio com propaganda foi ainda maior: R$ 118,2 milhões do teto de R$ 122,3 milhões, em valores atualizados –um percentual de 96,7%. Em contraposição temos, por exemplo, o fraco desempenho na construção de Centros de Educação Infantil. Apesar de a falta de creches se constituir um dos maiores problemas sociais de São Paulo, a Prefeitura empenhou R$ 128,7 milhões dos R$ 389,9 milhões autorizados pela Câmara em 2014, em valores atualizados - somente 33% do previsto. Em 2015 o índice de eficiência cresceu, mas ainda assim mostrou-se insuficiente diante da gravidade da situação. Dos R$ 257,7 milhões indicados para erguer novas creches, o governo municipal empenhou R$ 191,7 milhões - apenas 74,4%. O resultado não poderia ser diferente. Embora o prefeito tenha prometido em seu programa de metas a construção de 243 Centros de Educação Infantil, entrou no último ano de administração com apenas seis unidades construídas –mais as 28 construídas em parceria com o governo estadual. As 34 creches representam 14% da promessa eleitoral. Outro aspecto que indica a ineficácia da administração municipal é a virtual paralisia frente à violenta queda no índice de participação do ICMS. Caiu em 6,35% na gestão do atual prefeito. Como se sabe, 25% da arrecadação do ICMS cabe aos municípios. No caso de São Paulo, os prejuízos vêm se acumulando nos últimos anos. A diminuição reflete o processo de desconcentração industrial e de descentralização econômica que atinge fortemente a cidade. Essa tendência histórica, aliada à circunstância de que o ICMS é um tributo de competência estadual, faz supor, erroneamente, que nada resta à Prefeitura a não ser se conformar com o inexorável decréscimo de seus índices de participação. Além de políticas de incentivo à instalação e manutenção de empresas com a adoção de reajustes mais brandos no IPTU, por exemplo, o prefeito dispõe de mecanismo para intervir diretamente na apuração do ICMS. O instrumento é previsto na legislação e visa proporcionar condições para obter uma melhor arrecadação. Desconhecemos se o prefeito tem feito algo nesse sentido, embora seja facultado aos governos locais o livre acesso às informações e documentos utilizados pelo Estado para calcular os índices do tributo. O fato é que São Paulo já amarga na atual gestão uma perda de R$ 1,4 bilhão com ICMS. GILBERTO NATALINI, 62, é médico e vereador em São Paulo pelo PV * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-02-15
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1739111-desacertos.shtml
Dilemas tucanos
Todo partido importante oscila entre dois polos. De um lado, cabe-lhe firmar a própria identidade. De outro, preparar-se para exercer o poder. Entre seus adeptos, o dilema se traduz, conforme o perfil de cada sigla, na polaridade entre radicalização e governabilidade. Em nenhum partido, provavelmente, essa escolha se apresenta tão dramática quanto no PSDB. Ninguém há de negar, na mentalidade de seus principais líderes, o gosto pelo realismo administrativo, pela sensatez política, pelo meio-termo ideológico. Ao mesmo tempo, o eleitorado de oposição tende, cada vez mais, a atitudes extremas: a bandeira do impeachment possui, na militância tucana, um prestígio que seus líderes não estão propriamente felizes em compartilhar. Prosseguem, evidentemente, na batalha judicial que contesta a lisura da eleição de Dilma Rousseff (PT). Enquanto a causa é examinada no Tribunal Superior Eleitoral e os sucessivos escândalos envolvendo o PT acendem a indignação e a incredulidade da opinião pública, o mundo apartidário da economia e do Orçamento continua a dar seus próprios sinais de alarme. Não deixa de ser bem-vinda, portanto, a disposição do novo líder do PSDB na Câmara dos Deputados, Antonio Imbassahy (BA). O peessedebista diz-se pronto a admitir erros cometidos no ano passado. Entre outros, decerto pensa na votação pela derrubada do fator previdenciário, uma iniciativa criada no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). De fato, o PSDB tem investido menos na coerência doutrinária do que no esforço de inviabilizar a administração petista. Por gigantescos que tenham sido os erros de Dilma, qualquer tentativa de corrigi-los deve ser vista com bons olhos. Derrubar o seu governo –uma possibilidade que depende de novas revelações e reforço nos escândalos– é menos importante, no momento, do que enfrentar a crise que Dilma criou. A presidente, em suas últimas manifestações, parece consciente dos problemas que sua mendaz campanha eleitoral insistiu em disfarçar. Pode não ser justo, do ponto de vista doutrinário, apoiar medidas que o petismo sempre renegou. A alternativa seria pior. Um PSDB sectário e irracional, como o que se tem visto nas últimas decisões parlamentares, pode atender à ira de seus militantes. Não se qualifica, todavia, como opção razoável de poder. A mentira, na política, pode ter rápido sucesso. Nada mais equivocado, a longo prazo, do que um partido aparentar o que não é. O PT paga por isso. O PSDB tem enveredado pelo mesmo caminho –mas indica disposição de mudar. editoriais@grupofolha.com.br
2016-02-15
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1739548-dilemas-tucanos.shtml
O supremo constituinte
Tenho particular admiração pelos 11 ministros da Suprema Corte. Todos eminentes juristas, com atuação doutrinária marcante no direito brasileiro, independentemente da atuação como magistrados. Nem por isto, apesar de velho advogado provinciano e modesto professor universitário, concordo com muitas de suas decisões. Um dos pontos de divergência diz respeito à decisão sobre o processo de impeachment da presidente Dilma, que hierarquizou o Senado Federal, como casa julgadora da Câmara dos Deputados e não apenas da presidente da República. Reza o caput do artigo 86 da Constituição que "Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade". Por tal dispositivo, admitida a abertura de processo de impeachment pela Câmara, cabe ao Senado apenas dar curso ao referido processo, em nenhum momento permitindo a lei maior que o Senado julgue a Câmara, para dizer se agiu ou não corretamente. Vale a pena lembrar a origem do Senado. Foi ele criado, nos EUA, para assegurar a escravidão. Com efeito, de 1776 a 1787, discutiu-se se deveria ser, a América do Norte, uma confederação de 13 países ou uma Federação de 13 Estados. As colônias do Sul, que viviam da agricultura e consideravam o trabalho escravo relevante, não queriam aceitar nem a Federação, nem uma única Casa Legislativa, pois, tendo os Estados do Sul menos população, seria fácil aos Estados do Norte abolirem, como muitos já desejavam, a escravidão de imediato. A solução encontrada foi criar uma Casa Legislativa em que, não o povo, mas as entidades federativas fossem representadas em igualdade de condições. Com isto, surgiu o Senado e atrasou-se em aproximadamente 80 anos a abolição daquela chaga. Ora, a autêntica Casa do Povo é a Câmara dos Deputados. Para o Senado o povo escolhe um ou dois nomes indicados sem opção pelos partidos, não tendo o pleito o amplo espectro que as eleições para Deputados ofertam para os eleitores. Por esta razão, inúmeras federações não têm Senado, como, por exemplo a Alemanha, em que apenas o "Bundestag" é considerado Parlamento e não o "Bundesrat". Subordinar a Casa do Povo à Casa do Poder, tornando-a uma Casa Legislativa de menor importância, como o fez o STF, é subverter por inteiro o Estado democrático de Direito, onde a Câmara, que tem 100% da representação popular, resta sujeita ao Senado, em que os eleitores escolhem um ou dois nomes pré-estabelecidos e que, indiscutivelmente, traz a marca de origem de ter sido a instituição que garantiu a escravidão americana por 80 anos, antes da Guerra de Secessão. Com todo o respeito que um idoso operador de direito tem pelo talento, cultura e brilhantismo dos 11 ministros do STF, parece-me que subverteram o princípio constitucional, tornando-se poder constituinte originário sem que para isto tivesse o Supremo competência, visto que é apenas o guardião da Constituição (artigo 102). A meu ver, cabe ao Senado, uma vez admitido o processo de impeachment, apenas julgar o presidente e nunca julgar, inicialmente, a Casa do Povo e, se entender que a Câmara não errou, julgar, em segundo lugar o presidente. Nenhuma das instituições legislativas está sujeita ao julgamento de outra pela lei maior (artigos 44 a 58), razão pela qual entendo, "data maxima venia", que os eminentes Ministros do Pretório Excelso invadiram área interditada por ser da competência exclusiva do Congresso. IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, 81, advogado, é professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-02-15
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1739222-o-supremo-constituinte.shtml
Itamaraty e Guantánamo
O Itamaraty sabe tergiversar. Apesar da insistente pressão por parte da sociedade civil, o ministério não havia se posicionado clara e publicamente sobre a possibilidade de abrir as portas do país às pessoas detidas ilegalmente na prisão americana de Guantánamo, símbolo das violações cometidas em nome da chamada "guerra ao terror". O silencio foi quebrado em janeiro. Em matéria publicada pela Folha ("Exigência de monitoramento fez Brasil não aceitar presos de Guantánamo", Mundo, 22/1), o órgão afirma em nota que abandonou as negociações sobre uma eventual transferência de detentos por considerar que as exigências impostas pelo governo americano violavam os direitos dessas pessoas, como a vigilância permanente e as restrições de movimento. A chancelaria acertou no raciocínio, mas errou feio na decisão. Dos 91 homens que permanecem no complexo, 34 já estão "liberados para a transferência". Isso significa que seus casos foram analisados por uma comissão interministerial (incluindo órgãos de inteligência como a CIA e o FBI) e que, por decisão unânime, já não são considerados suspeitos de nenhum crime pelos EUA. A pergunta imediata: por que não estão soltos? Quando o assunto é Guantánamo, nada é obvio. A maior parte dos entraves foram colocados pelo Congresso americano. Ele determinou que qualquer pessoa que tenha passado pela prisão está proibida de entrar no território americano. Já o Executivo impôs moratória ao retorno de iemenitas ao seu país, e eles são maioria no grupo de liberados para transferência. Sem opções, esses homens permanecem detidos indefinidamente, esperando pelo reassentamento solidário em outros países. Encontrar uma solução humanitária para o impasse de Guantánamo passa, portanto, por colocar a libertação dessas pessoas em primeiro lugar. Não é possível fechar uma prisão enquanto suas celas estiverem cheias. Nesse sentido, o que o Brasil e outros países comprometidos com o fim das violações no complexo devem fazer não é recusar o reassentamento dos presos, condenando-os novamente a mais anos de isolamento, tortura e privações, mas justamente enfrentar as exigências supostamente colocadas na mesa pelo governo americano. Os homens de Guantánamo esperam liberdade digna e justa, não a nossa inação. E o Itamaraty tem grandes chances de sair vitorioso de uma eventual negociação, assim como aconteceu com o Uruguai. Em dezembro de 2014, o então presidente José Mujica acolheu seis ex-detentos como refugiados sem ceder às exigências. Considerando que o tema deve tirar o sono do presidente Barack Obama em seu último ano de mandato, sob o risco de descumprir uma de suas principais promessas de campanha, o Brasil tem hoje ainda mais poder de barganha. É positivo que o Itamaraty tenha finalmente exposto a razão pela qual o Brasil ainda não se juntou ao grupo de países que acolheram ex-detentos de Guantánamo e louvável que a chancelaria se preocupe com a garantia de seus direitos e liberdades e se negue a fazer espionagem em nome dos EUA. Se quer consolidar a imagem de ator responsável, no entanto, deve fazer muito mais do que fraquejar diante das imposições. Em nome do direito ao refúgio, digamos sim. JESSICA CARVALHO MORRIS é diretora executiva da Conectas Direitos Humanos LAURA WAISBICH é assessora do programa de Política Externa da mesma organização * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-02-14
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1739213-itamaraty-e-guantanamo.shtml
O papa e o patriarca
Um encontro de apenas duas horas, como o realizado na sexta-feira (12) entre o papa Francisco e o patriarca ortodoxo russo Cirilo, não poderia reverter um passado de controvérsias e atritos que se estende por quase um milênio. A Igreja Católica e a Igreja Ortodoxa se separaram em 1054, quando se deu a mútua excomunhão de suas cúpulas –no evento conhecido como Grande Cisma do Oriente. A resistência ao comando centralizado de Roma, por parte dos cristãos do Império Bizantino, somou-se a divergências doutrinárias acerca de temas tão variados quanto a existência do purgatório e a exigência do celibato sacerdotal. Dentro desse panorama multissecular de desencontros, uma nova fonte de dificuldades, desta vez interna aos quadros do cristianismo ortodoxo, também se manifesta. Esforços de aproximação entre o Vaticano e um setor do culto oriental têm sido registrados há bastante tempo, no que comentadores católicos afirmam ter sido um insistente projeto do papa João Paulo 2º. Foi assim que o patriarca de Constantinopla, Bartolomeu 1º, quebrou um tabu de quase mil anos ao presenciar a missa que entronizou Francisco, em 2013. Mais numerosa e influente do ponto de vista político, a Igreja Ortodoxa Russa tinha-se mostrado refratária a tais iniciativas. Em consonância com longa tradição de autonomia cultural, a atitude parecia conjuminar-se à estratégia do presidente russo Vladimir Putin, cioso de expandir as áreas de influência de seu país contra os processos de "ocidentalização" e "europeização" de nações antes submetidas à hegemonia soviética. É particularmente delicada, sob esse prisma, a situação dos católicos na Ucrânia. Ao mesmo tempo, as ameaças do fundamentalismo muçulmano, assim como o engajamento de Putin na luta contra a facção extremista Estado Islâmico, tendem a facilitar um diálogo mínimo entre o papa e o patriarca russo: é na qualidade de cristãos, antes de mais nada, que fiéis de ambas as igrejas têm sido perseguidos e mortos. Diversas camadas de história, portanto, se sobrepõem no encontro dos dois líderes religiosos, do qual resultou um comunicado que soube, com habilidade, mencionar os mais importantes tópicos dessa complexa conjuntura. Qualificar de "histórica" a breve conversa entre o papa Francisco e o patriarca Cirilo talvez seja exagerado, dadas as dimensões seculares do cisma –mas a simbologia do encontro só se torna mais eloquente quando se pensa no quanto este demorou para ocorrer. editoriais@grupofolha.com.br
2016-02-14
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1739330-o-papa-e-o-patriarca.shtml
Nova provocação
Um mês após realizar um teste nuclear condenado pela comunidade internacional, a Coreia do Norte volta a provocar inquietação com o lançamento de um foguete. Na versão da ditadura comunista, o evento do último dia 7 serviu apenas para pôr em órbita um satélite de observação, iniciativa de interesse científico e fins pacíficos. Para o restante do planeta, porém, tratou-se de novo teste de míssil balístico intercontinental, com autonomia para atingir os EUA. Num comunicado divulgado depois de reunião convocada às pressas, o Conselho de Segurança da ONU criticou com veemência a iniciativa –que viola resoluções do órgão– e afirmou que irá adotar novas sanções contra o país asiático. A apreensão é justificada. As ações mais recentes de Pyongyang, que incluem, segundo a inteligência dos EUA, o religamento de reatores nucleares, deixam poucas dúvidas sobre o temerário caminho escolhido pela Coreia do Norte. Não é claro, contudo, o que move o desatinado ditador Kim Jong-un. Talvez tudo não passe de estratégia de barganha; o anacrônico regime, cada vez mais empobrecido, poderia aceitar limites ao programa nuclear em troca de dinheiro. Há outras possibilidades, todavia: busca de legitimação interna por meio de demonstrações de poderio militar; tentativa de dissuadir eventuais adversários domésticos e inimigos internacionais. Em qualquer hipótese, sabe-se muito bem qual o efeito da beligerância norte-coreana: aumento da tensão regional e incentivo para uma indesejável corrida armamentista entre as nações vizinhas. Sejam quais forem os objetivos de Kim Jong-un, portanto, urge abortá-los. Os esforços da comunidade internacional nesse sentido, infelizmente, têm sido pouco efetivos. A Coreia do Norte, embora sofra sanções desde 2006, continuou realizando testes nucleares e de mísseis de longo alcance. Mesmo assim, ações diplomáticas ainda constituem a melhor opção para lidar com Pyongyang –a outra, uma campanha militar, carrega enormes riscos e deveria ser considerada apenas como alternativa derradeira. As esperanças, assim, estão depositadas sobre a China, único aliado e principal parceiro comercial da Coreia do Norte. Só o empenho de Pequim fará as tratativas avançarem. Do contrário, o impasse tende a se prolongar. editoriais@grupofolha.com.br
2016-02-13
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1739185-nova-provocacao.shtml
Nem isso, nem aquilo
São Paulo é dividida em pelo menos quatro zonas geográficas muito diferentes entre si. É difícil alguém da zona norte se adaptar à zona sul. E mudar da zona leste para a zona oeste, ou vice-versa? É quase como mudar de país! Qual a diferença? Difícil definir, são distintas as vozes que falam nesses lugares. Na minha fantasia, a voz do sul sussurra. A voz do norte fala com todas as letras, claramente. A zona leste não fala, faz. Já a zona oeste é uma área de passagem onde tipos variados ficaram e criaram raízes. Motivo? As estradas de ferro Santos-Jundiaí e Campinas""Santos, construídas no final do século 19. Um grande corredor interior, beira-mar. E depois falam mal do marxismo. Para contar a história de São Paulo, é preciso contar a história da produção agrícola do glorioso interior. Quem vinha do Vale do Paraíba ou do Vale do Tietê para consertar as máquinas que quebravam ou substituir as enxadas que se partiam dava de cara com duas estações: Lapa e Brás. Não por acaso, são dois centros de "colonização italiana". Os italianos foram os nossos primeiros mecânicos, eletricistas, ferramenteiros. Gente que trouxe do além-mar muita sabedoria. Os relojoeiros também eram italianos, o que mais poderiam ser? E, como os joalheiros, alguns eram também ourives. Era da mão de um italiano que se ganhava o primeiro par de brincos, o primeiro anelzinho e o primeiro relógio. Eram italianas as mãos que nos enfeitavam. Tecidos eram com os turcos. Por que chamávamos de "turcos" todos os sírios e libaneses? Porque eles fugiram de lá para cá justamente para se afastar do Império Otomano, ou turco. Então, nos documentos entregues pela Polícia Federal quando chegavam, eram classificados como turcos. Fugiram do Império Otomano para serem turcos aqui. O núcleo central dos bairros formados ao longo da estrada de ferro era a rua de comércio, onde predominavam "turcos" e judeus. Os árabes adaptaram-se melhor do que os judeus. Trocar de nacionalidade é mais fácil do que trocar de Deus. Uma das grandes vergonhas da minha infância era que meus pais, apesar de judeus, eram ateus, embora participassem e até trabalhassem nas festas judaicas. Assim, eu cresci sem ser nada. Para piorar (ou melhorar?) as coisas, minha mãe matriculou-me num colégio católico, de freiras. Estava sempre por fora. Minha infância poderia resumir-se em "sem preconceito e nenhuma tradição", rodeada por gente extremamente tolerante que nos acolheu. Talvez por isso hoje eu me sinta uma não estranha em qualquer ninho. Tudo é muito familiar para quem não tem família tradicional. Todos à minha volta eram diferentes de mim quando criança. Por isso, aos 12 anos, decidi ser judia. Judia praticante, apesar de estudar em colégio de freiras e ser filha de ateus. Comemorei a instalação do Estado de Israel e, por meio dessa longínqua história de luta, constituí minha identidade. Escolhi a ilusão do sionismo como âncora. Qual a voz que me representa hoje? Nenhuma. Só a que sai da minha própria boca. Ouço-a gravada num aparelhinho e percebo um certo toque italiano, um quê de árabe, expressões judias e tom católico. Prestando mais atenção, detecto ao longe a aspereza do húngaro e a música da Lapa. Nem isso, nem aquilo, muito pelo contrário. Não sei se é bom ou ruim. É a minha voz. ANNA VERONICA MAUTNER, 80, é psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora) * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-12-02
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1738772-nem-isso-nem-aquilo.shtml
Uma década de avanços em biotecnologia
Ao longo de 2015, uma silenciosa revolução biotecnológica aconteceu no Brasil. Neste ano a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) analisou e aprovou um número recorde de tecnologias aplicáveis à agricultura, medicina e produção de energia. O trabalho criterioso dos membros da CTNBio avaliou como seguros para a saúde humana e animal e para o ambiente 19 novos transgênicos, dentre os quais 13 plantas, três vacinas e três microrganismos ou derivados. A CTNBio, priorizando o rigor nas análises de biossegurança e atenta às necessidades de produzir alimentos de maneira mais sustentável aprovou, no ano passado, variedades de soja, milho e algodão tolerantes a herbicidas com diferentes métodos de ação. Isso permitirá que as sementes desenvolvam todo seu potencial e que os produtores brasileiros tenham mais uma opção para a rotação de tecnologias no manejo de plantas daninhas. Sem essa ferramenta tecnológica, os agricultores ficariam reféns das limitações impostas pelas plantas invasoras. As tecnologias de resistência a insetos proporcionam benefícios semelhantes. Na área da saúde, a revolução diz respeito aos métodos de combate a doenças que são endêmicas das regiões tropicais. Mais uma vez, mostrando-se parceira da sociedade, a CTNBio avaliou a biossegurança de duas vacinas recombinantes contra a dengue em regime de urgência e deu parecer favorável a elas. Soma-se a estes esforços a aprovação do Aedes aegypti transgênico. O mosquito geneticamente modificado aprovado em 2014 tem se mostrado um aliado no combate ao inseto que, além de ser vetor da dengue, também está associado a casos de transmissão dos vírus Zika, Chikungunya e da febre amarela. Nos últimos 10 anos, até o momento, o advento da nova CTNBio pela Lei 11.105 de 2005 - a Lei de Biossegurança - proporcionou a aprovação comercial de 82 Organismos Geneticamente Modificados (OGM): 52 eventos em plantas; 20 vacinas veterinárias; 7 microrganismos; 1 mosquito Aedes aegypti; e 2 vacinas para uso humano contra a Dengue. Essas liberações comerciais são a maior prova de que o Brasil lança mão da inovação para encontrar soluções para os desafios da contemporaneidade. Entretanto, é necessário enfatizar que assuntos não relacionados com Ciência também se colocaram, como em anos anteriores, no caminho do desenvolvimento da biotecnologia em 2015. Manifestantes anti-ciência invadiram laboratórios e destruíram sete anos de pesquisas com plantas transgênicas de eucalipto e grupos anti-OGM (organismo geneticamente modificados) chegaram a interromper reuniões da CTNBio, pondo abaixo portas com ações truculentas. Diversas inverdades foram publicadas na tentativa de colocar em dúvida a segurança e as contribuições que a transgenia vem dando para a sociedade. A ação desses grupos preocupa, pois, se sua ideologia for vitoriosa, tanto o progresso científico quanto o PIB brasileiros ficarão irreversivelmente prejudicados. Hoje, a nossa Lei de Biossegurança é tida internacionalmente como um modelo de equilíbrio entre o rigor nas análises técnicas e a previsibilidade institucional necessária para haver o investimento. O reconhecimento global, o diálogo com a sociedade e a legitimidade dos critérios técnicos mostram que esses 10 anos são apenas o início de uma longa história de desenvolvimento e inovação no Brasil. WALTER COLLI é professor do Instituto de Química da USP * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-11-02
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737394-uma-decada-de-avancos-em-biotecnologia.shtml
Atraso na educação
Tornou-se quase um lugar-comum afirmar que a educação pública brasileira está vencendo o desafio da inclusão, mas não o da qualidade do ensino. Dá-se pouca atenção, contudo, a um terceiro desafio que o país mal começa a enfrentar: a desigualdade. Alunos pobres encontram dificuldade muito maior para aprender e escapar do círculo vicioso que leva do mau desempenho ao atraso e ao abandono da escola. Não há de fato igualdade de oportunidades, porque eles já largam em desvantagem no longo percurso que deveria culminar numa formação e num nível de renda dignos. Crescem em bairros mais violentos e ambientes insalubres, sem local próprio para estudar e com parentes de vocabulário limitado. Despendem mais tempo no trajeto até colégios de infraestrutura precária. Têm de se contentar com professores menos preparados, pois os melhores docentes se transferem para estabelecimentos menos periféricos e problemáticos. Não admira, assim, que o nível socioeconômico apareça como o fator que mais explica o desempenho dos alunos em avaliações como o Enem, segundo disse ao jornal "Valor Econômico" Priscila Cruz, diretora do movimento Todos pela Educação. O Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) nos anos finais do ensino fundamental (6º ao 9º ano) é bem diverso entre escolas mais e menos vulneráveis. Naquelas com maior proporção de estudantes beneficiários do Bolsa Família, por exemplo, o Ideb fica em 3,5, numa escala de 0 a 10; nas mais afluentes, sobe para 4,1 -bem mais perto da meta de 5,5 fixada pelo Plano Nacional de Educação (PNE) para 2024. Não é o caso de deixar de reconhecer que já se avançou muito no atendimento às crianças mais desfavorecidas. Em 2011, na quinta parte mais pobre da população, apenas 21,6% concluíam o ensino fundamental até os 16 anos; em 2014, esse contingente mais que duplicara, para 58,4%. A desigualdade fica patente, porém, quando se volta a atenção para o quinto mais rico: os diplomados já eram 80,2% há 15 anos e chegaram a 92% em 2014. A enorme disparidade remanescente ficaria oculta se considerada apenas a média da população, em que 73% dos jovens termina o ensino fundamental aos 16 anos (ainda distante da meta PNE para 2024, de 95%). A escola pública é a instituição que encarna o ideal republicano da igualdade de oportunidades. Por ora, ela parece empacada no degrau inicial -garantir a presença de crianças pobres nos seus bancos. Precisa fazer muito mais: dedicar-lhes atenção especial, na sala de aula, para compensar as desvantagens que enfrentam só por nascer onde nasceram. editoriais@grupofolha.com.br
2016-10-02
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1738194-atraso-na-educacao.shtml
Entendimento profícuo
Em artigo publicado na Folha, no dia 5/2, o dr. Vicente Andreu, diretor-presidente da Agência Nacional de Águas (ANA), refere-se ao Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica) como uma instituição que, desde 2014, vem passando por um contínuo esvaziamento do poder regulatório, submetendo-se aos interesses da Sabesp. O Daee informa que, de 2014 até o presente momento, age em conjunto com a ANA, com os comitês PCJ (das Bacias Hidrográficas dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí) e Alto Tietê e com a Sabesp no âmbito da gestão do sistema Cantareira. Delibera ainda com a própria ANA acerca das vazões que serão praticadas no Cantareira. A autarquia sempre buscou se posicionar de forma técnica, considerando uma operação que não levasse a população da região metropolitana de São Paulo a sofrer com o racionamento de água. Ao mesmo tempo, preza pela segurança hídrica dos reservatórios. Consideramos que a referida gestão do Cantareira foi e tem sido praticada com sucesso, tendo em vista que passamos pela pior seca jamais registrada em nosso Estado. Com relação às demandas citadas da Sabesp para o mês de janeiro de 2016, o Daee, em sua nota técnica de 8 de janeiro, concordou em atender à solicitação da concessionária, de retirada de vazão do Cantareira daquele mês, por entender que, naquele momento, não havia risco significativo para a recuperação dos volumes dos reservatórios. A nota possuía a ressalva da necessidade da revisão de eventuais liberações de vazões ao final de janeiro, visando assegurar ganhos significativos de volumes para os reservatórios até 30 de abril de 2016. O fato de o Daee ter concordado com a contraproposta da ANA, de retiradas inferiores às solicitadas pela concessionária, demonstra a autonomia dos órgãos gestores, ANA e Daee, e não a submissão aos interesses da Sabesp. O entendimento do Daee sempre foi o de evitar situações de conflito entre os órgãos gestores, uma vez que a Sabesp, se necessário, poderia solicitar a revisão das vazões autorizadas a qualquer instante. O Daee tem uma história importante no país em gestão de recursos hídricos, tendo servido como exemplo a outros Estados brasileiros e, inclusive, à própria ANA. Alguns dos diretores da agência são ex-funcionários desta casa. Contribuíram para a formação e crescimento de lá com a experiência aqui adquirida. A respeito da delegação, entendemos ser uma opção da agência. Porém, independente desse ato, o sistema Cantareira, formado por barragens e reservatórios situados em rios de domínio da União e do Estado de São Paulo, terá sempre, por razões legais e por qualquer instrumento, uma gestão conjunta das duas instituições. O entendimento entre os quadros técnicos permanentes do Daee e da ANA, desde a constituição da agência em 2000, tem sido prolífico, respeitoso e de ótimo nível, procurando sempre melhorar a qualidade dos instrumentos de gestão dos recursos hídricos do Brasil e de nosso Estado. Temos a certeza de que esse entrosamento continuará a crescer e se intensificará em benefício de nossa geração e das futuras. RICARDO BORSARI é superintendente do Departamento de Águas e Energia Elétrica * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-10-02
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737441-entendimento-proficuo.shtml
Trabalho escravo?
Um escravo que tem os olhos furados como castigo por ter visto a senhora de engenho se banhando no açude. Eis o mote da canção "Sinhá", de Chico Buarque e João Bosco. Assim se davam as penas no Brasil Colônia: chicotadas, tronco, peles esfoladas. O quadro é o do trabalho escravo clássico, longínquo, observado apenas em filmes e novelas. Em tempos de smartphones, assim como não mais se viaja em carruagens, também não se escraviza e castiga nos moldes de outrora, em que pese a crueldade ser a mesma. Falar em trabalho escravo contemporâneo significa tratar de uma das espécies contidas no art. 149 do Código Penal: restrição de liberdade, servidão por dívida, jornada exaustiva e condições degradantes. Esfola-se não a pele, mas a dignidade do trabalhador. A avançada legislação brasileira, em conjunto com as políticas públicas desenvolvidas nos últimos vinte anos, situaram o país como modelo e referência mundial na matéria. Neste 28 de janeiro de 2016, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, temos ainda a comemorar: a condenação dos assassinos da Chacina de Unaí e a recente aprovação de emenda constitucional que determina que se expropriem, sem direito a indenização, os imóveis urbanos e rurais em que trabalhadores forem submetidos a esse tipo de exploração. À espreita, propostas de modificações legais inaceitáveis. O projeto de lei do senado 432/2013 busca esvaziar o conceito de trabalho escravo já consolidado, retirando de seu núcleo a jornada exaustiva e as condições degradantes e reduzindo-o àquelas situações mais afetas à escravidão do século 19. Põe-se um véu sobre a realidade e impõe-se a erradicação do trabalho escravo pela via legislativa. Da mesma forma que em 2014, quando o Supremo Tribunal Federal (STF), durante o recesso forense, suspendeu a publicação da Lista Suja –outro importante instrumento para o combate a esse flagelo–, a proposta foi incluída na pauta do Senado, em caráter de urgência, no apagar das luzes de 2015. Após intensa movimentação das entidades que atuam na área, a votação foi transferida para 2016. O debate público sobre a questão é imprescindível neste momento. Utilizando outra vez o linguajar do trabalho escravo clássico, avistamos novos e antigos capitães do mato em ronda. A analogia com a figura que capturava os escravos fugidos no Brasil colonial é bem adequada, ou o que dizer daqueles que têm interesse numa alteração legislativa que protege quem prejudica seus concorrentes de forma desleal e ilícita, a ordem econômica e a produção brasileira, para além de violar direitos humanos? Como o castigo impingido ao escravo na música mencionada acima, o que se fará caso tais mudanças sejam aprovadas é algo parecido: amputar o olhar da sociedade brasileira para o problema, impedindo que veja, e chame pelo verdadeiro nome, o que de fato continuará ocorrendo: trabalho escravo. CHRISTIANE VIEIRA NOGUEIRA e RAFAEL GARCIA RODRIGUES são procuradores do Trabalho e membros da Coordenação Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo no Ministério Público do Trabalho * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-10-02
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737371-trabalho-escravo.shtml
Engenharia nacional ameaçada
A crise que assola o mundo e o Brasil exige que se busque um consenso em torno de soluções, tendo por base o interesse nacional. Afinal, o que está em jogo não é o curto prazo, mas o Brasil das próximas décadas. Não existe nação forte sem empresas nacionais fortes. Essa compreensão esteve presente nos planos brasileiros de desenvolvimento desde os anos 30 do século passado. Em torno dela o país se industrializou e modernizou a sua agropecuária, combinando sempre o planejamento governamental e o vigor da iniciativa privada. Nesse contexto a nossa engenharia se desenvolveu, através de projetistas, construtoras e montadoras, que responderam à demanda de dotar o país da infraestrutura que o levou, nos últimos 70 anos, ao grupo das 10 maiores economias do mundo. Foram essas empresas que fizeram as rodovias, ferrovias, metrôs, hidrelétricas, portos, aeroportos, refinarias, indústrias de todo tipo, redes de água e de esgoto, habitações, etc. Em resumo, construíram e constroem o Brasil. É claro que ainda falta muito a ser feito para que todos os brasileiros tenham uma vida mais digna. O Brasil ainda está em construção. Mas com certeza a destruição, que ora se pretende, das maiores construtoras nacionais não contribuirá para o país alcançar um patamar mais alto. Ao longo de suas histórias, as empresas de engenharia nacionais produziram conhecimento e se tornaram detentoras de respeitabilidade técnica reconhecida no mundo inteiro. Tanto que várias delas trilharam o caminho da internacionalização e participam hoje de empreendimentos em mais de 40 países, entre os quais Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido e Portugal. O mercado da exportação de serviços, com apoio de organismos financiadores, e em particular, do BNDES, é por elas disputado com êxito crescente. Entretanto, o que devia ser motivo de orgulho é colocado sob suspeição. Se o Presidente da República promove o Brasil no exterior, faz tráfico de influência. Se o BNDES concede financiamento à exportação de serviços, é criticado. É hora, pois, de se desnudar os interesses que, sob a capa do necessário combate à corrupção endêmica (patrocinada por empresas que há décadas agem em conluio com políticos dos principais partidos), o que conta com o decidido apoio da sociedade, têm por objetivo destruir a engenharia nacional. É o que já se viu quando a Mitsui japonesa, embora envolvida na Lava Jato, pôde adquirir participação na Gaspetro na bacia das almas, e agora ficou mais evidente a partir da oposição que fazem à medida provisória 703. Não se trata aqui de antagonizar empresas estrangeiras, tão somente de mostrar a diferença de critérios no trato da questão. A MP 703 foi editada pelo Governo Federal para regulamentar acordos de leniência, nos quais as empresas serão punidas, arcarão com multas pesadas e terão de se comprometer com ajustes de conduta, mas continuarão habilitadas a participar de licitações, pois há a compreensão de que são estratégicas para o país. Os acordos, no âmbito administrativo, não extinguem os processos criminais. Ou seja, quem cometeu crimes deve pagar por eles, mas sem que se fechem empresas, pois isso seria punir seus milhares de trabalhadores e jogar fora parte fundamental da nossa engenharia. Assim se procede na Europa e nos Estados Unidos, como atestam os casos recentes da Volkswagen e do Goldman Sachs, penalizados, mas preservados. Com base na longa tradição, de 135 anos, de pensar o Brasil e de defender a engenharia nacional e as nossas empresas, que são artífices e depositárias da memória desse conhecimento, o Clube de Engenharia denuncia à sociedade o risco de destruição do que há de melhor na nossa engenharia. PEDRO CELESTINO é presidente do Clube de Engenharia * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-09-02
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737336-engenharia-nacional-ameacada.shtml
Intenções no limite
A equipe econômica do governo Dilma Rousseff (PT) manifesta de modo cada vez mais frequente a intenção de fixar, em lei específica, um limite para gastos ou para o crescimento de despesas federais. É incerta, no entanto, a disposição da presidente Dilma para aceitar normas que possam manietar a administração, contendo inclusive dispêndios em benefícios sociais. Essa possibilidade, é bom que se diga, seria decorrência de uma legislação séria a respeito do ritmo de crescimento do gasto público. Afinal, um limite que apenas venha a acomodar o aumento não faz sentido algum. Para que sobrevenham efeitos práticos e o programa inspire confiança nos agentes econômicos, de todo modo, será necessário esclarecer como se enfrentará a questão das despesas que crescem automaticamente, seja por razões práticas, seja por força de lei. O número de benefícios previdenciários se expande sem controle. Dada a legislação atual e o envelhecimento da população, a despesa nessa área tem avançado em velocidade superior à do PIB. Aumenta também o contingente de beneficiários de programas sociais. O piso da despesa com saúde e educação, por definição legal, acompanha o aumento da receita. O restante dos gastos expressivos do governo federal deve-se a salários de servidores e a investimento. Mantida a expansão ilimitada das verbas das rubricas previdenciária e social, as outras áreas precisarão encolher para a equação resultar em cifra compatível com o limite de despesas. Quando sobrevém a necessidade urgente de cortes, sabe-se que o investimento é prejudicado. A fim de organizar de modo eficiente a evolução dos dispêndios totais, parece óbvia a necessidade de criar normas que limitem cada item e seu padrão de crescimento. Além disso, o governo e o Congresso devem ter a liberdade de readequar a verba de cada programa de acordo com as necessidades. Tudo parece óbvio, mas não é assim que funciona. Valores de benefícios e outras despesas são indexados, corrigidos automaticamente -ressaltem-se as vinculações orçamentárias (reservar obrigatoriamente parte da receita a tal ou qual espécie de despesa). Sem limitadores formais da despesa presente e crescente, sem liberdade de alocação de verbas e sem regras de contenção de cada gasto quando se aproxima do limite, o teto não funcionará. É muito bem-vinda a iniciativa do ministro Nelson Barbosa (Fazenda). Pode vir a ser uma grande reforma da administração pública. Por enquanto, porém, sem especificação de regras, o plano limita-se a uma boa intenção. editoriais@grupofolha.com.br
2016-09-02
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737995-intencoes-no-limite.shtml
Tolerância máxima
Desde janeiro, um dos livros mais repulsivos jamais escritos está liberado para publicação. Setenta anos depois da morte do autor, o genocida Adolf Hitler, período no qual o Estado da Baviera vinha impedindo a reedição, o texto cai agora em domínio público. Trata-se da autobiografia panfletária (1925) em que o futuro ditador alemão empilha ressentimentos e os traduz em ódio patológico contra judeus, comunistas, eslavos e outros povos e minorias "inferiores". Essas noções foram derrotadas tanto pela ciência, como pelas armas; subsistem numa franja de extremismo passadista e inexpressivo. Duas editoras brasileiras apressaram-se a lançar o livro. A primeira edição, que se resume ao texto original, foi proibida e apreendida pela Justiça fluminense, que ainda deverá examinar recurso. Uma segunda edição, acompanhada de aparato crítico, está prevista para o mês de março. Numa sociedade de fato democrática, convém cultivar a liberdade de expressão na latitude mais ampla, dado que ela é pré-requisito para o exercício das demais liberdades e garantia de que, mediante o confronto desimpedido das opiniões, a própria sociedade se esclarece e evolui. Ideias, mesmo que estúpidas, combatem-se com ideias melhores. Existem, ademais, razões práticas para tolerar barbaridades como este "Minha Luta": proibições tendem a glamurizar obras que não merecem sequer essa distinção emprestada, além de resultarem inócuas, pois o texto segue disponível em versões clandestinas na internet. Mas há uma questão de princípio. Embora não admita a censura prévia, pelo que acarreta de cerceamento, a melhor tradição democrática estipula situações em que o abuso da liberdade de expressão justifica sanção. É quando se pratica injúria pessoal ou se divulga informação falsa por má-fé; é também quando se incita ao desrespeito das leis e à violência. Este último é o caso, sem dúvida, de "Minha Luta". Ainda assim, o risco de incitação deveria ser atual, premente, imediato -o que não acontece neste livro rancoroso que, cultuado embora em círculos extremistas isolados, é hoje uma pálida reminiscência histórica de uma era felizmente superada. A própria tragédia da Alemanha durante a República de Weimar (1919-1933), que naufragou no pesadelo nazista, recomenda à democracia ser tolerante com ideias, por odiosas que sejam, mas implacável contra a mais tênue ameaça de implantá-las pela força.
2016-09-02
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737997-tolerancia-maxima.shtml
Revalidação de diplomas médicos no Brasil
Estabelecer um processo isonômico e reconhecido pela academia e pelas entidades médicas foi o que norteou a criação do Exame Nacional de Revalidação dos Diplomas Médicos expedidos por Instituições de Educação Superior (IES) estrangeiras (Revalida). A iniciativa tem a colaboração dos Ministérios da Educação, da Saúde, das Relações Exteriores e das IES públicas brasileiras. As Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Medicina (DCNM, 2001) foram um marco na organização curricular no Brasil, seguindo experiências semelhantes de organismos internacionais como General Medical Council, World Federation of Medical Schools, Association for Medical Education in Europe e Accreditation Council for Graduate Medical Education (EUA). As novas DCNM e o Programa Mais Médicos enfatizam o estágio obrigatório na atenção básica no Sistema Único de Saude (SUS) e a avaliação específica do estudante do curso de graduação em medicina, a cada dois anos, com instrumentos e métodos que verifiquem conhecimentos, habilidades e atitudes. As DCNM foram determinantes para a revisão do papel das escolas médicas na consolidação do SUS. O inegável avanço na articulação entre os Ministérios da Educação e da Saúde para regular, avaliar, supervisionar e qualificar a formação dos profissionais de saúde traduz-se na criação de políticas de Estado (Pró-Saúde, Pet-Saúde e Pró-Residência). O Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior e a Comissão Interministerial de Gestão da Educação na Saúde denotaram a decisão política de investir na formação dos profissionais de saúde. Vencidos os desafios de despolitizar o tema e de abandonar concepções deterministas, foi articulada uma rede de IES pública. A contribuição foi a construção da Matriz de Correspondência Curricular, que detalha o perfil de habilidades e competências do médico recém-formado no Brasil e estabelece o grau de desempenho, referencial até então inexistente no país. A Matriz constitui um marco na superação da hiperespecialização e da visão disciplinar "que fragmenta em parcelas a percepção do global, desune e compartimenta os saberes", impossibilitando a apreensão do "que está tecido junto". Na sexta edição do Revalida, sob coordenação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), inscreveram-se 4.309 médicos formados no exterior. Deste total, 3.988 fizeram a prova na primeira etapa e 2.011 (50,42%) farão a prova de habilidades clínicas. A porcentagem superior a edições anteriores pode indicar que os participantes têm realizado estudos complementares à sua formação, preparando-se para o exame. O processo de construção das provas por docentes das IES brasileiras visa valorizar saberes em cada área do conhecimento. A criação do Banco Nacional de Itens (BNI) busca reunir, de forma classificada e ordenada, itens com qualidade técnica, pedagógica e psicométrica. Avessos à deturpação dos fins e à resistência de examinandos e instituições, os educadores e gestores envolvidos mantiveram o compromisso de dar seguimento, com transparência e responsabilidade, aos objetivos de avaliar a adequação entre as habilidades mobilizadoras do conhecimento e à prática do exercício profissional médico no cotidiano, em toda a sua complexidade, pois "ao andar se faz o caminho". HENRY DE HOLANDA CAMPOS, médico, é professor-titular e vice-reitor da Universidade Federal do Ceará e membro da Subcomissão de Revalidação de Diplomas Médicos ANA ESTELA HADDAD, cirurgiã-dentista, é professora associada da Faculdade de Odontologia da USP e membro da Subcomissão de Revalidação de Diplomas Médicos CLAUDIA MAFFINI GRIBOSKI, pedagoga, é professora adjunta da Universidade de Brasília e membro da Subcomissão de Revalidação de Diplomas Médicos * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-08-02
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737423-revalidacao-de-diplomas-medicos-no-brasil.shtml
O Carnaval nas ruas de São Paulo
Aquela ideia de São Paulo como o túmulo do samba, com ruas desertas e tristes nos dias de Carnaval, virou coisa do passado. Tempos em que os paulistanos buscavam desesperadamente pegar um congestionamento em alguma estrada ou se endividar para curtir a folia em Salvador, Recife ou Rio de Janeiro. Os que saíam da cidade eram considerados felizardos, apesar do custo e das horas em deslocamentos. Os que ficavam, com exceção de quem desfilava em escolas de samba, viravam meros expectadores, geralmente no sofá, curtindo com certa frustração os desfiles dos sambódromos do Anhembi ou da Sapucaí ou a folia nas ruas de outras cidades. Isso mudou a partir de 2013, quando, por iniciativa da Secretaria Municipal de Cultura, dirigida pelo hoje ministro Juca Ferreira, a prefeitura alterou sua postura em relação ao Carnaval de rua. Como resultado do diálogo entre o poder público e os blocos, a folia deixou de ser reprimida ou ignorada e passou a ser regulamentada. Hoje as ruas estão coloridas, as pessoas estão fantasiadas e a cidade está preparada para virar o cenário de uma festa popular que vem sendo ressignificada pela capacidade criativa dos blocos. Paulistanos podem, a custo zero, se divertir nas ruas, transformando o espaço público em lugar de festa, sociabilidade, namoro e liberdade. Essa alegria é resultado do modelo adotado para o Carnaval de rua, consolidado em um novo decreto municipal neste ano. As regras estabelecem que a participação é livre, voluntária e gratuita, proibindo a venda de abadás ou de acesso privilegiado. "Vai quem quer", nome de um dos mais antigos blocos da cidade, é o espírito desse Carnaval que nasceu de baixo para cima, de forma espontânea, sem a paternidade e tutela do Estado. O poder público, entretanto, não pode se ausentar. O sucesso da festa –neste ano o número de blocos cresceu 36,5% e o número de foliões deve dobrar em relação a 2015– é resultado da potência cultural dos coletivos e do papel da prefeitura na organização e no apoio aos desfiles. O planejamento do Carnaval de rua começou há seis meses, sob a coordenação da Secretaria Municipal de Cultura e contando com a contribuição indispensável das subprefeituras e de várias secretarias. Organizamos percursos e horários, considerando a dimensão dos blocos, a capacidade de vias e a interferência em serviços fundamentais. Nesses percursos foi montada a infraestrutura necessária para os desfiles, como banheiros, atendimento de saúde, controle do tráfego, limpeza das ruas etc. O conforto dos moradores não foi esquecido. Em áreas críticas, como a Vila Madalena, montou-se um esquema especial para evitar os problemas dos outros anos. Grandes blocos que não eram da região foram deslocados para locais mais adequados, fora da zona saturada. O horário dos desfiles foi reduzido e passou-se a controlar a entrada de produtos irregulares e perigosos, assim como o excesso de visitantes. Apesar do crescimento geral, o número de blocos na subprefeitura de Pinheiros foi estabilizado. Em contrapartida, nas áreas periféricas o crescimento foi de 44%. Ocupação das ruas com o Carnaval integra a política cultural e urbana da gestão Haddad, que valoriza o espaço público, transformando-o em cenário de eventos culturais e de lazer, abertos aos cidadãos e à cidadania. NABIL BONDUKI, 61, arquiteto e urbanista, é Secretário Municipal de Cultura de São Paulo e professor titular de Planejamento Urbano na USP. Foi o relator do Plano Diretor de São Paulo (2014) * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-07-02
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737412-o-carnaval-nas-ruas-de-sao-paulo.shtml
O potencial dos jovens latino-americanos
Um em cada cinco latino-americanos entre 15 e 24 anos acorda todas as manhãs sem ter uma escola para frequentar ou um trabalho remunerado para realizar. Pressionados por restrições econômicas, gravidez precoce, violência ou baixas expectativas, eles são os chamados "nem-nem" (nem estuda, nem trabalha) e somam mais de 20 milhões de pessoas. Mesmo durante o vigoroso desempenho econômico e o forte crescimento da América Latina, o número de jovens que não trabalham ou estudam não diminuiu, por conta de um substancial aumento na quantidade dos "nem-nem" do sexo masculino. Sem dúvida, o impacto pessoal é grande para cada indivíduo. Pode-se dizer o mesmo para as comunidades e os países em que vivem. Os "nem-nem" ajudam a perpetuar a desigualdade intergeracional. Na região, quase 60% deles são provenientes de famílias pobres ou vulneráveis, situadas entre os 40% na extremidade inferior da distribuição de renda. A carência de educação e de habilidades técnicas tende a mantê-los em condições de baixa renda de uma geração para a seguinte. Enfrentar esse desafio, além de garantir um futuro melhor para as pessoas diretamente afetadas, acarretará também um estímulo ao enorme potencial de cada uma delas, o que contribuirá para o futuro da região como um todo. Por essas razões, o novo relatório do Banco Mundial, "Fora da Escola e Fora do Trabalho: Risco e Oportunidades para os 'nem-nem' latino-americanos", é especialmente oportuno. O estudo oferece um diagnóstico profundo dos desafios e uma abrangente análise das opções políticas que podem ser adaptadas a contextos específicos. Para reduzir o número de "nem-nem", precisamos evitar que os jovens abandonem a escola precocemente e também ajudar na transição para um emprego estável. No México e na Colômbia, por exemplo, os programas de transferência condicional de renda aumentaram a matrícula escolar. Na Argentina, no Brasil e no Chile, a adoção do ensino em tempo integral elevou os níveis de aprendizado e as taxas de graduação. Considerando-se que dois terços dos "nem-nem" são mulheres, os programas escolares para evitar a gravidez e as iniciativas que visam ajudar as grávidas e as mães adolescentes a permanecerem na escola têm se mostrado eficazes para reduzir as taxas de abandono. Também é relevante ampliar a escolaridade obrigatória, as bolsas de estudo meritocráticas e o desenvolvimento da primeira infância. Além disso, para ampliar as chances de os jovens encontrarem trabalho, vários países da região promovem experiências de sucesso com uma abordagem de formação baseada no mercado, inspirada pelo programa Jóvenes do Chile, de 1991. Uma coisa é clara: precisamos combater a percepção de que os "nem-nem" são jovens desmotivados e indiferentes, condenados à pobreza e ao desespero. "Nem-nem" ou não, os jovens são repletos de potencial. Temos a responsabilidade de ajudá-los a exercê-lo. Isso pode ser feito. Muitos esforços bem-sucedidos já estão em andamento na América Latina. Tudo isso, é certo, demanda importantes investimentos públicos, o que pode ser especialmente difícil no contexto de desaceleração econômica atual. O adiamento desses esforços, contudo, poderá ser ainda mais custoso. JORGE FAMILIAR é vice-presidente do Banco Mundial para a América Latina e o Caribe * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-07-02
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737409-o-potencial-dos-jovens-latino-americanos.shtml
Cultura do patrocínio
O Tribunal de Contas da União (TCU) tomou nesta semana uma decisão que pode provocar verdadeira transformação no universo cultural brasileiro. Proibiu que eventos lucrativos ou autossustentáveis captem recursos por meio da Lei Rouanet. A determinação ainda não está em vigor, e decerto não faltarão setores contrariados dispostos a tentar derrubá-la antes que produza algum efeito. Em seu formato atual, a Lei Rouanet tem-se mostrado instrumento perfeito para empresas que querem patrocinar a atividade cultural sem gastar muito com isso. Na outra ponta, produtores e artistas bem-sucedidos na captação de recursos nem precisam se preocupar com as receitas da bilheteria. Até seria possível discutir vantagens e desvantagens do modelo se o dinheiro saísse de carteiras privadas. No ano passado, porém, do total (R$ 1,18 bilhão) angariado por meio da lei, 96% (R$ 1,13 bilhão) foram bancados pelos contribuintes. Ou seja, a empresa pega uma cota de R$ 100 de patrocínio, mas desembolsa apenas R$ 4,4. O mecanismo é conhecido. Quem direcionar verbas a projetos aprovados com base em critérios técnicos pode descontar de 30% a 100% desse valor do Imposto de Renda devido. O fato de o governo abrir mão dessas cifras sempre suscitou questionamentos. O montante deveria ser destinado a iniciativas que sobreviveriam sem auxílio oficial? Não seria melhor direcionar os recursos para outros fins? Ao analisar o "Rock in Rio", o TCU chegou a uma resposta. "Não consigo vislumbrar interesse público a justificar a renúncia de R$ 2 milhões de receita do Imposto de Renda em benefício da realização de um projeto com altíssimo potencial lucrativo", disse o relator do caso, ministro Augusto Sherman. Tem toda razão. Como esta Folha há muito defende, o estímulo estatal na área da cultura deve voltar-se às frentes de formação (bibliotecas, cursos, salas), à preservação do patrimônio histórico e a setores que que não encontrem sustentação no mercado. editoriais@grupofolha.com.br
2016-06-02
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737456-cultura-do-patrocinio.shtml
Na carona do Uber
É bom o projeto encampado pelo prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), para regulamentar o uso de aplicativos como o Uber na cidade. E pode ficar ainda melhor após o processo de consulta pública a que foi submetido. Não há dúvida quanto à necessidade de disciplinar a matéria. Vive-se hoje no pior dos mundos. Motoristas associados à megaempresa Uber exercem uma atividade profissional, aproveitam-se da malha viária, contribuem para piorar o trânsito e, como estão na clandestinidade, não pagam nenhum tipo de tributo por isso –e deles a prefeitura nada pode exigir. Taxistas, que arcam no mínimo com os custos de um alvará e têm obrigações para com o poder público, entendem que a Uber faz concorrência desleal, tendo alguns deles chegado a intimidar e agredir seus choferes e passageiros. Como não há segurança jurídica, potenciais concorrentes do aplicativo de origem norte-americana preferem nem correr o risco de disputar mercado, facilitando a formação de um monopólio. A proposta da prefeitura ataca todos esses problemas. A ideia é estimular a criação de empresas semelhantes à Uber –as Operadoras de Transporte Credenciadas (OTCs)–, que serão responsáveis por arregimentar motoristas e garantir certo padrão de segurança, conforto etc. Elas também terão a obrigação de monitorar as corridas, emitir recibos eletrônicos para os usuários e contratar um seguro para o caso de acidentes. O pagamento de tributos se dará por meio da compra de créditos que permitirão aos carros vinculados às OTCs rodar um certo número de quilômetros. A venda dos créditos pela prefeitura ocorrerá semanalmente, e as empresas terão dois meses para utilizá-los. O preço, que ainda não foi definido, poderá variar conforme necessidades de regulação. As inovações não acabam nesses aspectos. Corridas realizadas fora dos horários de pico ou em zonas periféricas custarão menos créditos. Veículos adaptados para deficientes também terão um bônus na utilização dos quilômetros. Imagina-se que, com tal estímulo, o próprio mercado se encarregará de cobrir áreas hoje esquecidas. Há, no entanto, algumas extravagâncias. Não faz sentido, por exemplo, a exigência de que 15% dos créditos sejam utilizados em corridas com motoristas mulheres. Se a prefeitura acha mesmo que é o caso de fazer políticas de gênero na praça, deveria ter insistido na fórmula do desconto, e não desviado para a reserva de mercado. Táxis ainda conservarão algumas prerrogativas exclusivas, como o direito de apanhar passageiros nas ruas (e não apenas pelo aplicativo), e continuarão a ser tributados pelo município apenas na compra e na renovação do alvará. A questão da concorrência predatória, por sua vez, em tese estará superada. A cobrança de créditos equalizará os custos, e a cidade receberá da Uber algo pelo uso intensivo de seu espaço viário. A competição entre os táxis e as várias OTCs tende a melhorar a qualidade dos serviços prestados aos usuários e pode até mesmo levar a uma redução no preço. editoriais@grupofolha.com.br
2016-06-02
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737457-na-carona-do-uber.shtml
Ainda as águas do Cantareira
Em artigo na última quarta (3) nesta Folha, o ex-diretor da Agência Nacional de Águas (ANA) e hoje secretário estadual de Saneamento e Recursos Hídricos de São Paulo, Benedito Braga, retoma o tortuoso caminho de acobertar as falhas da direção da Sabesp. Tenta responsabilizar a ANA ao afirmar, entre outras coisas, que a decisão dos limites de retirada de água do sistema Cantareira foi unilateral e, ainda pior, que a medida prejudica mais de 1 milhão de habitantes. Os fatos, simples como são: a Sabesp solicitou aumentar de 15 m³/s para 24 m³/s a retirada do sistema Cantareira em janeiro de 2016. A ANA e o Daee (Departamento de Águas e Energia Elétrica) autorizaram 19,5 m³/s, por meio do comunicado conjunto nº 252. No fim das contas, a Sabesp utilizou em janeiro menos de 16 m³/s. Considerando ainda que a autorização ANA/ Daee ocorreu em meados de janeiro –o que, em termos médios, permitiria à Sabesp ter distribuído para a população de São Paulo os 24 m³/s pretendidos durante os últimos 15 dias do mês–, a conclusão do dr. Braga, para ser coerente, deveria ser a de que a direção da Sabesp utilizou 8 m³/s a menos do que o autorizado, prejudicando quase 3 milhões de pessoas. Como superior hierárquico do Daee e também presidente do Conselho de Administração da Sabesp, o dr. Braga deveria exigir da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo o esclarecimento de por que não utilizou a totalidade da vazão autorizada para reduzir os impactos sobre as pessoas e compartilhar com a população esses esclarecimentos. Preferiu acusar a ANA. Lamentável. O posicionamento da ANA é estritamente técnico, procurando compatibilizar, de um lado, a necessária segurança hídrica do Cantareira diante das incertezas do futuro e, de outro, a redução dos impactos para a população atendida. A premissa da Sabesp para justificar a retirada de 24 m³/s baseia-se na meta de chegar a dezembro de 2016 com 5% do volume útil do sistema Cantareira. Se chuvas não vierem, utiliza-se novamente o volume morto. Com a concordância do Daee, a definição da ANA de 19,5 m³/s para janeiro baseou-se na oportunidade de aproveitar o atual ciclo favorável de chuvas para combinar o aumento da segurança hídrica no Cantareira com a melhoria no abastecimento da população atendida. Foi utilizada, para tanto, a meta de 20% no volume útil do Cantareira em dezembro de 2016, meta esta assumida pela ANA e pelo Daee como o desejável nível mínimo de segurança para operação desse sistema durante o processo de renovação de sua outorga. No caso de termos chuvas mais intensas do que as previstas nas simulações, a vazão de 19,5 m³/s pode ser proporcionalmente aumentada. Com chuvas escassas, ANA e Daee têm a possibilidade de decidir entre os limites de manter a meta de segurança e reduzir a vazão ou manter a vazão e reduzir o nível de segurança de 20%. Todas essas informações estão disponíveis no site da ANA. Desde 2014, no início da crise hídrica, ficaram evidentes o contínuo esvaziamento do poder regulatório do Daee e a submissão deste órgão e da Secretaria de Recursos Hídricos aos interesses da direção da Sabesp. O dr. Braga apenas segue nessa mesma direção. Cada vez mostra-se mais desnecessária e ineficiente a delegação de competências da ANA ao Daee. VICENTE ANDREU, 58, é diretor-presidente da Agência Nacional de Águas - ANA * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-05-02
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737020-ainda-as-aguas-do-cantareira.shtml
A bela trajetória de um diplomata
Luiz Felipe Lampreia, que nos deixou na terça (2), foi um diplomata de grande qualidade. Com seu talento e suas virtudes, teve destacada atuação na condução da política externa do país. Foi o primeiro chanceler do presidente Fernando Henrique Cardoso e, nesta condição, soube operar diplomaticamente, com competência e determinação, a visão do presidente sobre desafios e oportunidades da inserção internacional brasileira no globalizado mundo pós-Guerra Fria. Antes, destacara-se como embaixador em Genebra, tendo tido papel de relevo no fecho das negociações multilaterais que levaram à criação da OMC (Organização Mundial do Comércio). Integrava notável geração de diplomatas, altamente representativa dos grandes quadros do país. Lampreia tinha muita clareza sobre a relevância da política externa para o desenvolvimento. Daí o significado que sempre atribuiu à diplomacia econômica. Cada um de nós tem a estratégia própria de sua personalidade. Lampreia era uma forte e afirmativa personalidade, com gosto pela vida. Características de seu modo de ser e do seu agir de diplomata foram marcantes: a nitidez na definição dos propósitos, a segurança no encaminhamento das questões, a inteligência na delegação de tarefas e responsabilidades, a capacidade de hierarquizar os assuntos e de focar no relevante, sem perder-se em minúcias. Quem não teve a oportunidade de com ele conviver pode apreciar suas qualidades pela leitura do livro "Diplomacia Brasileira - Palavras, Contextos e Razões" (1999), no qual Lampreia comenta as posições brasileiras nas límpidas e personalíssimas notas que contextualizam seus discursos e artigos. Os textos comentam as formas de projetar o Brasil no plano internacional, discutem o quadro das nossas principais relações bilaterais na região e no mundo, examinam os assuntos econômicos e comerciais de grande transcendência para o Brasil, analisam os temas da pauta política multilateral e da segurança internacional. O livro sintetiza, enfim, como Lampreia cumpriu de maneira superior não só o ofício de orientar e definir mas também o de explicar para a sociedade a política externa, parte integrante da tarefa de um chanceler num país democrático. Em 2010, publicou "O Brasil e os Ventos do Mundo", livro de memórias em que faz uma estruturada narrativa reflexiva sobre a política externa brasileira, na perspectiva organizadora de quem dela participou em todos os estágios da carreira diplomática. Nas cinco décadas retratadas, os ventos sopraram em vários caminhos, mas o livro indica que Lampreia não perdeu o sentido de direção, pois, em consonância com seu modo de ser, não confundiu o que é acidental com o que é de fato importante para o país. Dizia o padre Antônio Vieira: "perdem-se as repúblicas porque os seus olhos veem o que não é, e não veem o que é". Lampreia sabia ver o que é e não se atrapalhava, como tantos, com as ilusões e fumaças do que não é. Por isso, foi na condução do Itamaraty, com o repertório de seu conhecimento e de sua experiência, um eminente membro da equipe de governo da esclarecida e lúcida Presidência FHC. Como seu amigo de longa data, parceiro de muitas jornadas, seu sucessor em Genebra e no Itamaraty, evoco com saudade, afeto e admiração a sua pessoa e a sua bela trajetória de serviços prestados ao país e à diplomacia brasileira. CELSO LAFER, 74, é professor emérito do Instituto de Relações Internacionais da USP. Foi ministro das Relações Exteriores em 1992 (governo Collor) e entre 2001 e 2002 (FHC), além de embaixador-chefe da missão do Brasil em Genebra (1995-1998) * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-05-02
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737019-a-bela-trajetoria-de-um-diplomata.shtml
Tragédia industrial
A indústria fechou o ano passado com queda de 8,3%, o pior resultado desde 2003. A retração, tanto mais grave, não constitui fato isolado; representa apenas o capítulo mais recente de uma longa história de problemas e erros que derrubaram a produção ao nível do começo deste século. É possível contar essa tragédia em três atos. O primeiro, grosso modo, vai de 2003 a 2007, quando a manutenção de uma política econômica responsável em um contexto de forte crescimento mundial e custos internos baixos permitiu bom desempenho da indústria. O setor avançou em média 4% ao ano, impulsionado pelo aumento da demanda doméstica e pela exportação de manufaturados. O Brasil colhia então os frutos da estabilização econômica, com salários internos competitivos e valorização aceitável do real. Foi possível expandir inclusive a indústria mais sofisticada, como o segmento de máquinas e equipamentos. O quadro começa a mudar a partir de 2008. Como reação à crise internacional, o governo Lula (PT) acelerou o gasto público, multiplicou o crédito dos bancos oficiais e passou a intervir cada vez mais nos vários campos industriais, no intuito de proteger mercado e forçar a nacionalização de componentes. Verdade que a indústria se recuperou nos dois anos seguintes, acompanhando o restante do mundo. Mas o êxito momentâneo levou o governo a imaginar que havia descoberto um atalho para o desenvolvimento, por meio do dirigismo estatal e do fechamento da economia ao comércio internacional –nada mais equivocado. O último ato tem início em 2011, quando a produção estagnou. A principal causa foi a política econômica, que suscitou aumento de salários e custos acima da produtividade, juros altos e valorização extrema do real, tudo para prejuízo da competitividade. Vendo a indústria brasileira patinar, o governo da presidente Dilma Rousseff (PT) dobrou a aposta no intervencionismo –perdeu, e não faltaram alertas nesse sentido. A derrocada foi tamanha que restou demonstrado de forma cabal o equívoco da estratégia adotada. Nisso, aliás, talvez resida o único aspecto positivo dessa história: não há como deixar de procurar uma correção de rumos. Parece formar-se um consenso, inclusive nos meios empresariais, de que o caminho passa necessariamente pela abertura e pela integração às cadeias globais de produção, sem o que não haverá competitividade possível. O câmbio já se ajustou; os salários começam a fazê-lo. É preciso trabalhar na agenda da produtividade e celebrar acordos comerciais que abram novos mercados. editoriais@grupofolha.com.br
2016-05-02
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1737035-tragedia-industrial.shtml
Adesão automática à Funpresp, nova fronteira para a previdência
A Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe) completa três anos no próximo dia 04 de fevereiro com motivos para comemorar. Uma das entidades pioneiras no segmento de fundos de pensão no serviço público, a Funpresp nasceu vocacionada para cumprir a tarefa de proporcionar aos servidores do Executivo e do Legislativo Federal a possibilidade de manter seu padrão de vida no momento da aposentadoria. Isso porque a partir da aprovação dos planos de previdência complementar do Executivo e do Legislativo no primeiro semestre de 2013 todos os funcionários que ingressaram no serviço público passaram a ter suas aposentadorias limitadas ao teto do INSS (R$ 5.189,82 em 2015). Essa mudança de paradigma representa um marco histórico no sistema de fundos de pensão. A partir de então, o setor foi revigorado com a instituição de novas Fundações em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e Bahia. E a tendência é de crescimento –como acontece no mundo, em que as maiores previdências são de servidores públicos (GPIF/Japão e TSP/USA). Rio Grande do Sul, Paraná, Pernambuco, Ceará e Rondônia já aprovaram leis de criação de seus fundos para servidores. A sanção da Lei nº 13.183, de 2015, pela presidente Dilma, a partir de proposição do Parlamento, trouxe outra importante mudança que traçou novo desenho para todo o setor. O servidor entrante nos órgãos da administração direta, autarquias e fundações federais passa a ser inscrito automaticamente no plano de benefícios da Entidade –tem 90 dias para desistir, ou seja, permanece facultativo– usufruindo imediatamente da paridade de contribuição do órgão patrocinador e da proteção e cobertura dos benefícios não programados de invalidez, pensão por morte e longevidade. A adesão automática representa um divisor de águas, uma conquista tão importante quanto o advento da própria previdência complementar no serviço público. Os primeiros resultados, com baixa taxa de desistência (5%), já apontam para experiências bem sucedidas de países como Estados Unidos e Reino Unido que apresentam índices de aceitação superiores a 90%. É comprovadamente um estímulo para promover e fomentar a formação de poupança previdenciária, necessária em todos os países que vivem uma transição demográfica acelerada. A adesão automática inverte a lógica de dois vieses da economia comportamental, o viés da inércia, em que o servidor resiste à mudança mesmo quando ela é benéfica, e o viés da aversão à perda, no qual o servidor não quer mexer no seu status quo em função da percepção de uma perda potencial no futuro. Ou seja, mesmo sabendo das vantagens de um plano de aposentadoria, no nosso caso, destacando-se a contribuição paritária de 8,5% e os incentivos fiscais de até 20,5%, o servidor pouco se mobilizava voluntariamente, e às vezes com pequenas resistências dos segmentos da educação e segurança, demandando um grande esforço de comunicação e de gestão da Funpresp para alertá-lo sobre os benefícios. Esse trabalho levou a Fundação a encerrar 2015 com 22,2 mil participantes e uma taxa de adesão de 77% com relação a quem tomou posse no ano passado. É uma curva ascendente de crescimento que não foi influenciada ainda pela inscrição automática, já que esse ano, pelo ajuste fiscal, a perspectiva é de não ocorrer novas entradas no serviço público. A Funpresp tem abrangência nacional com mais de 200 patrocinadores, 125 carreiras (professor, médico, policial, diplomata e outros), já arrecada mensalmente R$ 14 milhões, possui um patrimônio financeiro de R$ 230 milhões e já apresenta uma rentabilidade acumulada de 37% no período. Com apenas três anos, vem se confirmando as premissas iniciais da criação da Entidade, ou seja, de contribuir com a solvência de médio e longo prazo para a previdência pública e de se tornar um dos maiores investidores institucionais do Brasil. Por fim, o sistema de capitalização dos fundos de pensão é uma das soluções para o novo regime populacional que passa o Brasil e está alinhado ao incremento da expectativa de vida saudável, contribuindo assim para que o País possa enriquecer antes de envelhecer. RICARDO PENA, economista com doutorado em demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG é presidente da Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo, auditor da Receita Federal - Funpresp-Exe * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-04-02
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1736689-adesao-automatica-a-funpresp-uma-nova-fronteira-para-a-previdencia.shtml
ANA e as águas do Cantareira
A recente notícia de que a Agencia Nacional de Águas (ANA) negou pedido da Sabesp de alteração da regra operacional do Sistema Canteira merece esclarecimento. A Constituição define como estaduais os rios que correm dentro dos Estados e federais aqueles que servem de divisa ou atravessem fronteiras. Em bacias hidrográficas compartilhadas por dois ou mais Estados, cabe à ANA assegurar o uso múltiplo e equitativo das águas por todos os brasileiros que nelas habitam. A ANA contribuiu, por exemplo, para o bem-sucedido acordo entre paulistas, fluminenses e mineiros para utilização compartilhada das águas do rio Paraíba do Sul. Uma parte do sistema Cantareira insere-se em uma bacia hidrográfica que é compartilhada por São Paulo e Minas Gerais: quatro reservatórios interligados por túneis e alimentados por rios de mesmo nome: Jacareí e Cachoeira –estaduais de São Paulo– e Jaguari e Atibainha –federais. Dois outros reservatórios localizados em rios paulistas, Paiva Castro e Águas Claras, completam o sistema. A água flui por gravidade desde o reservatório Jacareí até o rio Juqueri, que alimenta o Paiva Castro. Daí, a estação de bombeamento Santa Inês eleva a água até o Águas Claras, onde ela é tratada e distribuída para a região metropolitana de São Paulo. A ANA e o Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee), do governo paulista, têm igual direito e dever de decidir quanta água pode ser retirada do Cantareira. Ao longo da crise de 2014-2015, as duas instituições emitiram resoluções conjuntas de limites de captação. Entretanto, nesse início de 2016, a ANA tenta impor unilateralmente a sua visão sobre o tema. A Sabesp, entendendo que estamos voltando à normalidade hidrológica, solicitou autorização para usar água conforme previsto na outorga que vigorou até outubro de 2014, ou seja, com o ponto de captação no túnel que sai do reservatório Atibainha. A solicitação foi para que o limite de transferência daquele túnel fosse de 19,5 m³/s. O Daee concordou porque estudos técnicos detalhados mostram que o pedido não compromete a recuperação do Cantareira, ao mesmo tempo em que permite minimizar situações de desconforto a uma parcela da população. Porém, a ANA não concordou que o limite fosse aplicado ao túnel do Atibainha. Insistiu que fosse mantido o Paiva Castro. Essa divergência entre Daee e ANA pode parecer um detalhe técnico-jurídico. Mas não é, porque pode resultar em sacrifício totalmente desnecessário e tecnicamente infundado da população. Considerando-se que a vazão média no rio Juqueri está hoje em 4,5 m³/s, a proposta da ANA equivale a impedir que essa vazão adicional seja aproveitada. São esses 4,5 m³/s, suficientes para abastecer mais de 1 milhão de pessoas, que constituem a diferença entre Daee e ANA. A impossibilidade de contar com essa água dificulta a diminuição dos períodos de pressão reduzida. Isto é, atrasa a retomada da normalidade, prejudicando as populações que se localizam em pontos topograficamente elevados e nas pontas das redes de distribuição de água. Apesar dessa diferença sensível, um eventual impasse seria ainda mais prejudicial à população, pois manteria a retirada de água ainda menor. Por isso, apesar de ter competência para barrar a proposta da ANA, o Daee decidiu aceitá-la, lamentando a intransigência da agência federal e o consequente sacrifício que impõe à população da região metropolitana de São Paulo. BENEDITO BRAGA é secretário estadual de Saneamento e Recursos Hídricos de São Paulo e presidente do Conselho Mundial da Água * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-03-02
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1736392-ana-e-as-aguas-do-cantareira.shtml
Parado na direção certa
Os anos de bonança econômica proporcionaram aos governos petistas um conforto temporário e ilusório na gestão da Previdência Social –e um pretexto conveniente para a procrastinação de reformas impopulares. De 2005 a 2012, houve sensível redução do desequilíbrio entre receitas e despesas do INSS. Graças à expansão da renda e da arrecadação, o deficit caiu ao equivalente a 0,8% do Produto Interno Bruto do país, menos da metade do pico inicial de 1,7%. No mesmo período, os gastos com aposentadorias e outros benefícios se mantiveram estáveis, em torno de 6,5% do PIB. Os números eram recitados pela presidente Dilma Rousseff (PT) para refutar críticas ao manejo temerário do Orçamento. Mas se tratava, como hoje salta aos olhos, de um castelo de cartas. A virada dos ventos da economia desmanchou as contas previdenciárias. O deficit subiu em 2015 a 1,4% do PIB; as despesas, a 7,4% –perto da média de 7,9% dos países da OCDE (Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento), nos quais a proporção de idosos na população é o dobro da brasileira. Sem ter mais como negar-se a encarar a realidade, a administração petista faz anúncios genéricos de intenções de reforma, enquanto a área técnica rumina medidas que arrepiam os políticos do partido. Nesta terça (2), no início do ano legislativo, Dilma prometeu uma proposta ainda no primeiro semestre. Conforme noticiou esta Folha, estuda-se unificar regras que hoje diferenciam homens e mulheres, trabalhadores rurais e urbanos, celetistas e servidores públicos (não atendidos pelo INSS). Até aí, caminha-se no terreno do bom senso. Levantamentos apontam que mais da metade dos países não faz hoje diferenciação de gênero ao fixar idades mínimas para a aposentadoria. Tarefas domésticas, que justificam uma regra mais favorável às mulheres, são cada vez mais compartilhadas pelos homens. A Previdência Rural, exitosa na redução da pobreza no campo, quase nada exige em contribuições de seus segurados, num modelo insustentável; quanto ao funcionalismo público, seus privilégios já sofreram corte considerável. Não basta, porém, rever o acesso aos benefícios: os valores destes e seus reajustes devem ser desvinculados do salário mínimo, o que permitiria deter mais prontamente a ascensão dos dispêndios. Falta, sobretudo, um texto formal a ser negociado na arena adequada –o Congresso. Ideias anônimas destinadas a fóruns de entidades corporativas serão apenas mais uma estratégia de tergiversação. editoriais@grupofolha.com.br
2016-03-02
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1736436-parado-na-direcao-certa.shtml
A justiça injusta
Sempre que um recurso criminal chega às mãos da juíza Kenarik Boujikian, ela confere um fato básico: se o preso já cumpriu sua sentença e permanece encarcerado. Ela me disse que no último ano ela determinou a soltura de aproximadamente 50 pessoas que estavam atrás das grades, ainda que já tivessem cumprido sua pena. A manutenção da prisão era ilegal, arbitrária e uma violação dos direitos fundamentais dos detidos. No entanto, em vez de receber aplausos, a juíza Kenarik enfrenta um processo disciplinar que pode resultar em uma sanção desde a advertência até a aposentadoria compulsória. Vinte e cinco desembargadores decidirão nesta quarta (3) seu destino. Em agosto, um magistrado instaurou uma representação contra Kenarik alegando que ela violou o regimento interno do Tribunal de Justiça de São Paulo ao expedir alvarás de soltura em dez casos, ao invés de remeter a questão para o colegiado de três juízes que decidiria sobre os recursos. A questão sobre se o regimento do tribunal foi violado é, na melhor das hipóteses, uma distração do verdadeiro problema. A representação contra Kenarik reflete a crença amplamente difundida entre alguns juízes, policiais e promotores de que o encarceramento em massa é a solução para o grave problema da criminalidade no Brasil. Essa crença tem contribuído para a crise nas prisões brasileiras, que hoje abrigam 61 por cento mais pessoas do que sua capacidade, em celas insalubres e violentas que são um terreno fértil para o recrutamento por facções criminosas. A juíza Kenarik acredita que ela não só pode como tem a obrigação legal de expedir alvarás de soltura sempre que verificar que um preso já cumpriu sua sentença. A Constituição Federal diz que o Estado indenizará a pessoa que ficar presa "além do tempo fixado na sentença". Em 3 dos 10 casos em questão, o Ministério Público interpôs recurso requerendo sentenças mais longas. Mas os três presos já tinham cumprido suas penas, e exigir que eles esperassem na prisão até que os recursos fossem decididos seria ilegal. Ainda pior, nos outros casos, os recursos foram interpostos pelos próprios presos, questionando as penas a eles impostas. Ou seja, não havia qualquer possibilidade de terem que servir mais tempo na prisão. De 2008 a 2014, o Conselho Nacional de Justiça identificou pelo menos 48.000 pessoas presas mesmo depois de terem cumprido suas penas. Por exemplo , J. P. deveria ter sido liberado em 2004 de uma prisão de Pernambuco. No entanto, sem um advogado ou um familiar que pudesse auxiliá-lo, passou uma década a mais atrás das grades. Ele foi solto após uma defensora publica ter ingressado com um habeas corpus em seu favor. Não é de todo claro que Kenarik tenha violado o regimento do tribunal; um parecer do professor de direito Maurício Zenoide de Moraes, encomendado pelos advogados de Kenarik, concluiu que não. Entretanto, mesmo se houvesse qualquer violação processual, seria inaceitável que pessoas que já cumpriram suas penas sejam obrigadas a aguardar, atrás das grades, que três juízes encontrem tempo para examinar seus processos. Kenarik acredita que só a abertura de processo disciplinar contra ela já mandou um recado a todos os juízes do estado que pensem duas vezes antes de liberarem presos, mesmo aqueles detidos ilegalmente. Priorizar a punição ao invés de defender o Estado de Direito é a antítese do que o Brasil precisa para enfrentar as mazelas em suas prisões. CESAR MUÑOZ ACEBES, 42, é pesquisador da ONG Human Rights Watch * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-03-02
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1736381-a-justica-injusta.shtml
Justiça, desta vez
Dois anos e meio depois do desaparecimento do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, morador da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, a Justiça chegou na última sexta-feira (29) a um veredito em primeira instância. Com o apoio de evidências amplamente divulgadas pela imprensa ao longo desse período, concluiu-se que 13 policiais militares foram responsáveis pelos crimes de tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual. O pedreiro tinha sido detido numa delegacia da UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) em sua comunidade; nunca mais foi encontrado. Depois, vídeos mostraram a movimentação de um comboio policial em seguida ao crime, transportando o que se acredita ser o cadáver da vítima para destino insuspeito. Eram cabais as provas coligidas, e o caso suscitou inusual mobilização da sociedade –entre muitas razões, porque o crime ocorreu numa UPP, supostamente modelo de novo relacionamento entre a polícia e o público a que deveria servir. Não espanta que tenha sido relativamente curto, assim, o intervalo entre o crime e a condenação –cabendo ainda recurso, todavia, a instâncias judiciais superiores. A regra costuma ser outra. De acordo com a ONG Anistia Internacional, das 220 investigações de homicídio por ação da polícia carioca abertas em 2011, apenas uma resultou em denúncia à Justiça, ao passo que 183 permaneciam sem conclusão até meados de 2015. Não se trata, por óbvio, de particularidade do Rio de Janeiro. Basta lembrar que o massacre do Carandiru, ocorrido em 1992, em São Paulo, teve seu primeiro veredito condenatório concluído 21 anos depois. São diversas as causas para o quadro de impunidade. Policiais dispõem de recursos técnicos, sem contar com eventual conivência de seus pares e o poder de intimidar testemunhas, para ocultar provas. O ambiente da opinião pública, confrontada com relatos diários e verídicos sobre a sanguinolência e o poder bélico do crime organizado, contribui para o descontrole. A tese "bandido bom é bandido morto" obtém apoio de largas parcelas da população, ainda que ninguém ignore a possibilidade de inocentes serem trucidados no cumprimento dessa estúpida assertiva. Amarildo de Souza foi, sem dúvida, uma dessas pessoas. Mesmo que tivesse algum envolvimento com o crime, seu assassinato brutal, assim como as tentativas de ocultar o ocorrido, seria inadmissível em qualquer país civilizado. Menos mal que, desta vez, a Justiça não tenha tardado demasiadamente em sua missão. editoriais@grupofolha.com.br
2016-03-02
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1736437-justica-desta-vez.shtml
Em defesa do risco
Desde o Renascimento, nossa civilização adota o pressuposto de que a racionalidade é monopólio da ciência. Desconfia-se do que não é científico. A ciência precisa estar presente em todas as situações onde se procura uma resposta. Todos os saberes humanos almejam o status de ciência. Em consequência, a ciência parece infalível e completa. Se há falha, não é ciência; se há limite é porque não há suficiente pesquisa. A paixão pela ciência vai até a crer que ela resolverá todos os problemas humanos incluindo a transposição planetária e a finitude do corpo. Constata-se que ciência e direito competem pela prerrogativa de dizer o que é e dizer como deve ser na relativamente curta história humana. Uma corrente de pensamento atual reconhece que não há um território comum a essas duas disciplinas, mas há linhas de interface. Na interface de direito e ciência, um pode se valer do outro em seus processos e na sua substância. Como em toda fronteira, a convivência às vezes é problemática o que determina a essência da ética. Pensemos na engenharia como domínio científico cuja praxis se dá em um mundo em que o direito diz como deve ser. Quando o direito busca uma resposta que não tem em seu corpo teórico, a ciência, orgulhosa, jamais se confessa incompleta, cheia de vazios e manchas escuras, ignorante como qualquer mortal, em suma. O direito, ingênuo nesse aspecto, no afã de mostrar todo o seu poder em conformar o mundo ao que deve ser, pode se tornar injusto. Indo direto a fatos, se uma barragem de rejeitos se rompe ou um edifício da importância da Estação da Luz se incendeia, o direito pergunta à ciência como devem ser esta coisas e ela não declina do pedido. Imbuída de seus pressupostos de causalidade, diz que uma barragem bem feita não se rompe nunca e que uma edificação projetada com todos os aparatos de segurança não se incendeia. O problema está quando o direito move toda a sua força na direção destas afirmações científicas, arguindo dos atores profissionais uma responsabilidade criminal. Os sistemas humanos tendem a ser complexos adaptativos. Isto quer dizer que o seu comportamento foge aos pressupostos da ciência causal newtoniana. Em engenharia se diz que "não há risco zero" e, popularmente, se diz que "sempre alguma coisa pode dar errado". O uso de uma edificação é genuinamente aleatório e, portanto, não responde ao princípio da causalidade. Isto é, apesar de todas as medidas de prevenção, jamais um engenheiro poderá dizer que um edifício não se envolverá em um incêndio. Poderá, sim, dizer que as medidas preventivas aumentam a confiança de que tal fatídico evento não ocorrerá. Mas, ao usar o termo "confiança", ainda que expressa por uma probabilidade, ele se situa fora da ciência ou, pelo menos, nas suas margens. Do mesmo modo, não há modelos de engenharia capazes de captar o comportamento real de uma grande barragem de rejeitos. Não há linearidade, homogeneidade e equilíbrio estático como supõe a geotecnia. Portanto, não há um dever ser e sim um modo de ser com uma probabilidade aceitável. O direito com o instituto da responsabilidade civil objetiva dá conta muito bem das consequências desastrosas de eventos indesejáveis como os citados. É uma solução com a substância genuína do Direito. Entretanto, quando busca o aporte da ciência, incorre no erro de criminalizar uma prática profissional que está eivada de riscos. Se o engenheiro abdicar do risco, não fará engenharia nenhuma. Não há, portanto, dolo eventual nesses casos limites. Fiquemos na esfera cível em que o montante da responsabilidade civil objetiva já é condenação justa. Criminalizar a prática profissional trará ao país imenso prejuízo, ainda que momentaneamente do lado da opinião pública. ANTONIO MARIA CLARET DE GOUVEIA, 55, professor da Universidade Federal de Ouro Preto, pós-doutor pelas Universidades de Sheffield (Reino Unido) e de Lund (Suécia) * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-02-02
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1736035-em-defesa-do-risco.shtml
A vez do social
Merecem ser ouvidas com atenção as considerações de Valdir Simão a respeito dos programas bancados pelo governo federal. Em entrevista a esta Folha, o novo ministro do Planejamento destacou a intenção de acabar com o "piloto automático" nas iniciativas estatais, incluindo no raciocínio aquelas destinadas à área social. "Temos hoje um conjunto de políticas que são implementadas, mas a avaliação da qualidade e da efetividade ainda não é boa", afirmou. "Eu preciso sistematicamente, ano a ano, avaliar se determinado programa social, se determinado investimento deve ou não continuar." Não estará errado quem enxergar apenas o óbvio nessas declarações, sobretudo porque o ministro discorria acerca da necessidade de haver uma reforma do Estado. Ocorre que, no governo da presidente Dilma Rousseff (PT), as medidas mais óbvias e mais sensatas são também as mais raras, em particular quando se trata de aprimorar a administração pública. Daí por que a sugestão de Simão provoca surpresa e, naturalmente, igual dose de ceticismo. Como o PT sempre se opôs ferozmente à ideia de promover qualquer corte na área social, é grande a chance de que tudo não passe de jogo de cena para tentar impressionar empresários e investidores. A esta altura, o que mais poderia oferecer um governo que, sem força política para aprovar seus próprios projetos, já se revelou incapaz de controlar as contas públicas e viu sua credibilidade cair a patamar ainda mais baixo que o das ações da Petrobras? Por outro lado, o simples fato de o ministro do Planejamento tocar num assunto que o PT considera tabu revela muito sobre as dificuldades atuais. Nos últimos anos, a hipótese de diminuir os gastos públicos em programas sociais não apareceu nem como reforço retórico nos discursos petistas. Não se pode descartar, portanto, que as práticas citadas por Valdir Simão venham de fato a ser adotadas –não por um surto de responsabilidade do governo Dilma Rousseff, mas porque a crise talvez não lhe dê outra opção. editoriais@grupofolha.com.br
2016-02-02
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1736100-a-vez-do-social.shtml
Emergência zika
Quem ouve ou lê as explicações e justificativas emanadas do Planalto e do Ministério da Saúde sobre a epidemia do vírus da febre zika fica convencido de que o governo federal ainda não se deu conta da gravidade da situação. Uma emergência dessas –agora reconhecida em escala planetária pela Organização Mundial da Saúde (OMS)– pede muita informação, coordenação e mobilização. Brasília tem negligenciado as três, ainda que nos últimos dias pareça tomada de hiperatividade. Informação é crucial para dar ao surto sua verdadeira dimensão, de modo a combater tanto o alarmismo desnecessário quanto a inércia usual do poder público. Sem conhecimento e comunicação de dados precisos, autoridades federais, estaduais e municipais se perdem na ação desconjuntada, e a população fica à mercê da epidemia. Primeiro, os números sobre a relação entre zika e microcefalia. De acordo com o boletim epidemiológico mais recente, notificaram-se, a partir do segundo semestre do ano passado, 4.180 casos de suspeita da malformação, dos quais 3.448 ainda estão sob exame. Só 732 investigações foram concluídas, com 462 diagnósticos de microcefalia rejeitados e 270 confirmados (diante da média de 150 ocorrências anuais). Em apenas 6 desses 270 casos a presença do vírus zika pôde ser detectada, mas isso não diz muito, pois a infecção ocorre meses antes de a malformação ser diagnosticada no bebê. Toda a dificuldade reside em que não existe teste rápido para confirmar a presença do zika no organismo. Além disso, a microcefalia pode ser causada por outras infecções e condições genéticas. Para complicar ainda mais a situação, governos estaduais estão empregando critérios díspares para o diagnóstico de microcefalia –uma falha inimaginável de coordenação do Ministério da Saúde. Nada disso justificaria ignorar que está praticamente comprovado que a causa do surto de malformação é o vírus. Como não se deverá obter uma vacina antes de três ou quatro anos, o prioritário agora é combater a ação dos mosquitos transmissores do gênero Aedes. É importante lembrar que a população do mosquito já esteve sob controle e que este se perdeu. Antes do flagelo do zika, ele disseminava a dengue, doença que teve em 2015 uma explosão de 1,6 milhão de casos no Brasil, com 863 mortes. Uma solução mais duradoura para o problema do Aedes depende da universalização do saneamento, que eliminaria os locais de reprodução de larvas, como lixo e armazenamento inadequado de água. Mas, no ritmo atual, isso demorará ainda quatro décadas Sobra, assim, recuar aos métodos consagrados em 1903 por Oswaldo Cruz e suas brigadas de mata-mosquitos. A presidente Dilma Rousseff (PT), contudo, diante da debilidade política e orçamentária em que meteu seu governo, só soube delegar ao Exército a obrigação inadiável de mobilizar o país contra um inimigo conhecido e derrotado mais de um século atrás. É muito pouco, na crise atual. Dilma tem de engajar-se pessoalmente em liderar governadores e prefeitos para dar cabo da tarefa. editoriais@grupofolha.com.br
2016-02-02
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1736094-emergencia-zika.shtml
Meu nome está à venda
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) analisou recentemente um recurso de apelação no caso envolvendo as marcas Sommer e Marcelo Sommer, que, embora inicialmente criadas pelo estilista Marcelo Sommer, foram posteriormente alienadas como parte da aquisição da empresa Sommer Confecções. Quando da transação, o estilista concordou em não concorrer com a empresa adquirente e deixar de utilizar tais marcas. Porém, anos depois, a C&A Modas lançou uma linha de produtos assinada pelo estilista, com etiquetas que traziam a indicação "Coleção Sommer". A questão não é nova. Inúmeros juristas já se arriscaram a analisar as marcas formadas por nome civil ou patronímico (que levam o sobrenome paterno de seu criador). Não obstante, o tema permanece altamente controverso. Poderia um indivíduo alienar seu nome, ainda que como marca? E, caso positivo, quais os limites de tal alienação? Estaria ele eternamente vinculado ao contrato e, portanto, impedido de usar seu próprio patronímico para fins futuros de denominação de produtos? Não haveria um direito de se arrepender sobre a alienação da marca? Os debates filosóficos que permeiam a questão a tornam intrigante e complexa. Englobam a possibilidade de um indivíduo dispor de elementos relacionados à sua própria personalidade e dignidade, afetando questões que permanecem tabus em nossa sociedade. Afinal, na modernidade, o limite entre o exercício completo da liberdade pessoal e a interferência do poder público na esfera privada ainda não foi perfeitamente traçado. Os limites que o Estado impõe sobre o nome civil impressionam por seu rigor. A Lei de Registros Públicos prevê os casos em que estará autorizada a alteração do nome civil. Isso porque o nome é visto não só como parte integrante da dignidade de um indivíduo, mas contém um indissociável teor informativo frente à coletividade. Em tempos de ampla utilização das mídias digitais, resta ainda mais clara a ampla utilidade do nome de um indivíduo, possibilitando que, em poucos cliques, descubra-se o seu passado profissional, pessoal, gostos e preferências. Também com base nessa função informativa, até há pouco tempo os tribunais se recusavam a modificar o nome constante nos documentos de identificação de indivíduos que se submeteram a procedimentos cirúrgicos de redesignação sexual. O debate em questão não é novo, como revelam os casos envolvendo as marcas Kenzo, Francesca Romana e Tufi Duek. No julgado recente, o TJ-SP concordou com a tese levantada pela empresa autora, tendo proibido a C&A Modas e o estilista de usarem as marcas Marcelo Sommer e Sommer para competir no mesmo ramo de atividade da autora. Para fundamentar a decisão, o tribunal ressaltou que o estilista havia alienado tal marca livremente e se comprometido a não competir com a adquirente. No julgado, prevaleceu a liberdade de contratar. Além disso, é interessante observar que o tribunal optou por trilhar um caminho mais restritivo em relação ao nome civil e mais liberal na busca da proteção dos próprios termos do contrato. Talvez seja esse o motivo pelo qual a recente decisão é ainda mais emblemática. Resta saber se ao longo do tempo tal tese irá prevalecer. E não se anime, caro leitor, o título é mera provocação. FELIPE ZALTMAN SALDANHA, 26, é advogado da Trench, Rossi e Watanabe e mestre em direito e economia pelas Universidades de Bologna, Gent e Erasmus Rotterdam * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-01-02
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1735276-meu-nome-esta-a-venda.shtml
Superaremos nossa condição urbana?
Um dos maiores obstáculos à evolução do tecido urbano de São Paulo é a falta de um marco legal que permita consolidar terrenos para o desenvolvimento concertado de determinada área. Historicamente, tem prevalecido a lógica fragmentária de exploração por terreno, em detrimento de um ordenamento de áreas mais estendidas, em que ganhos de escala pudessem propiciar um equilíbrio maior entre usos urbanos e espaços públicos mais amplos, uma oferta mais balanceada de locais de moradia e de emprego, comércio e serviços. A França enfrentou o problema com a criação de sociedades de economia mista, fundamentais para o equacionamento de problemas fundiários das chamadas ZACs. Alemanha, Coréia do Sul e Holanda recorreram a mecanismos de "land pooling". Nos EUA e no Reino Unido, intervenções urbanas foram viabilizadas por mecanismos como os Section 106 Agreements, que regularam a contrapartida privada para a presença de incorporadores em More London, ou as PPPs que deram moldura a projetos como o Hudson Yards e o Highline em Nova York. Traço comum desses diferentes mecanismos é a definição clara pelo poder público dos objetivos do projeto de renovação urbana, os mecanismos de concertação de interesses públicos e privados, as regras de desapropriação e os seus prazos, a repartição dos custos das infraestrutura e as responsabilidades sobre a gestão do território. São Paulo finalmente avança na boa direção com a regulamentação dos Projetos de Intervenção Urbana (PIU) e a edição da medida provisória 700/2015. Essas medidas aprimoram a legislação existente: passam a permitir a desapropriação e comercialização de áreas que integrem um projeto de requalificação urbana proposto por iniciativa governamental ou privada, debatido pela população e estabelecida pelo poder público. Nossa condição urbana é marcada pela ausência de três legados. Não recebemos o legado de uma paisagem natural marcante. Esse é um primeiro traço da nossa existência, quando nos comparamos com o Rio ou Vancouver, cidades dotadas de uma natureza excepcionalmente bela. De forma não-afirmativa, a ausência de exuberância natural nos define como cidade. Tampouco recebemos o legado de um grande patrimônio histórico, equiparável ao de cidades como Roma ou Pequim, ou de cidades mais recentes como Nova York e Londres. Nossa história e patrimônio urbanos são muito recentes. Em 1870, éramos um vilarejo de 30 mil habitantes, enquanto Nova York e Paris já possuíam mais de 1,5 e Londres incríveis 4 milhões de habitantes. Claro portanto que, com um povoamento muito mais recente, nosso patrimônio histórico seja mais reduzido. A terceira herança ausente é a inexistência de um plano anterior que tivesse apontado com clareza uma visão espacial para a cidade. O tema é controverso, mas parece justo afirmar que cidades como Nova York, Paris ou Chicago herdaram do passado planos que continham visões que foram mais permanentes. O grid nova-iorquino é de 1811. O plano de Hausmann para Paris é de 1850 e o de Chicago de Burnham é de 1909. A visão desses planos ensejou um ordenamento que lançou e continua a lançar essas cidades para o futuro com condições de possibilidade melhores do que o Plano de Avenidas (1930) ensejou para São Paulo. Não herdamos uma bela natureza, um grande patrimônio, nem um planejamento virtuoso; resta-nos a tarefa de construir nosso futuro, com a melhor visão de convergência do interesse de todos, a partir de um marco de regras inovador, que nos permita abandonar os anacronismos de toda sorte, desde os que levam em conta apenas interesses particularistas, até aqueles que temem sem razão uma suposta privatização da cidade. Os avanços regulatórios registrados abrem um caminho de esperança para São Paulo e merecem ser amplamente conhecidos e debatidos. PHILIP YANG, 53, mestre em administração pública pela Universidade Harvard, é fundador do Urbem, Instituto de Urbanismo e Estudos para a Metrópole. * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo
2016-01-02
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1735285-superaremos-nossa-condicao-urbana.shtml
Números do crime
Em meio a tanto pessimismo com a situação do país, os paulistas podem ao menos conformar-se com a queda nos índices de violência no Estado. No mais sensível deles, a taxa de homicídios dolosos, houve uma melhora cuja medida deve ser mais bem qualificada. De acordo com os dados do governo Geraldo Alckmin (PSDB), 2015 fechou com a marca notável de 8,73 casos por grupo de 100 mil habitantes, a menor da série estatística iniciada em 1996 e a primeira abaixo do limiar de 10, adotado como referência internacional. Trunfo caro ao tucanato estadual, a queda dos números da criminalidade costuma ser alvo de contestação técnica e política. E, de fato, há o que questionar. Na cifra em tela, considera-se a quantidade de ocorrências –não a de vítimas. Chacinas com oito ou 12 mortos, por exemplo, acrescentam igualmente apenas uma unidade à contagem. Casos de latrocínio, ademais, são listados à parte. O efeito embelezador da metodologia tucana não é desprezível: houve 3.757 ocorrências de homicídio doloso no ano passado; já o número de vítimas, incluindo as de latrocínio, chega a 4.318. Com a segunda conta, a taxa estadual se manteria ligeiramente acima de 10 por 100 mil habitantes. Ainda assim, não existe dúvida de que o Estado exibe os melhores resultados do país. Assim indica o anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, formado por especialistas no setor. Em qualquer dos critérios –casos ou vítimas–, as taxas paulistas são inferiores às dos demais Estados, ao menos até 2014. A média nacional de ocorrências é de 25,2 por 100 mil habitantes e está em alta. Os dados de São Paulo apontam retração em todos os indicadores de criminalidade: 20,4% em roubos de veículos, 17,5% em sequestros, 12,6% em roubos a bancos e 7,8% em latrocínios. O desempenho é menos satisfatório nos roubos em geral (queda de 1,2%), que somaram 307,4 mil casos em 2015. Especialistas apontam a melhoria da investigação pela polícia e a alta taxa de encarceramento como fatores importantes para os avanços. Há que considerar ainda a demografia, uma vez que o contingente de jovens, mais propensos à criminalidade, está em queda. Por fim, há a sempre aventada influência da facção criminosa dominante em São Paulo, de difícil comprovação. Sua hegemonia teria limitado as mortes em disputas por pontos de tráfico, alega-se. Com o exame dessas e outras hipóteses, os Estados poderiam reproduzir o que dá certo aqui. O governo paulista, por sua vez, precisa esclarecer por que insiste em considerar o total de ocorrências, e não o de homicídios. editoriais@grupofolha.com.br
2016-01-02
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/02/1735686-numeros-do-crime.shtml
Deixemos a política para os políticos
Há uma advertência preciosa, de um dos maiores pensadores do Ocidente, que sempre me impressionou: aquele que se mete em política, afirmou o alemão Max Weber, selou um pacto com o Diabo. Confesso que, durante um certo tempo, esqueci-me ou tentei esquecer-me dessa observação. Talvez isso explique o sonho que me embalou enquanto admiti aceitar o convite para disputar a prefeitura de uma das maiores metrópoles do mundo. Era o sonho de ajudar as pessoas por meio da política. Durou até a realidade se impor. E a realidade da política no país forma um quadro repelente, que recebe diariamente novas pinceladas de horrores. Isso, por um lado, incentivava-me a iniciar um trabalho que pudesse avançar na contramão dos maus hábitos políticos, buscando um modo mais saudável de atender ao interesse público. Foi o que alimentou o meu sonho por um tempo. Logo ficou claro, entretanto, que um cara como eu, que se move pela sinceridade antes de tudo e que tem ódio de falsidades e artimanhas, enfrentaria dificuldades enormes para conviver com o exercício daquilo que mais despreza: a pequena política de interesses pessoais e de grupos. Tudo isso, e aí vai o grande argumento final de minha recusa, numa paisagem construída de lances estarrecedores de corrupção. Confesso minha fraqueza: não tenho estômago para isso –embora reconheça que nem tudo esteja dominado pelos vícios da má política. É bom deixar claro que ainda consigo identificar bons políticos no Brasil. Pessoas que acreditam em seus ideais, que tentam cumprir suas tarefas com a melhor das intenções. Alguns são meus amigos. Torço para que continuem tentando. A cidade merece, o paulistano merece. Continuarei, do meu posto e a meu modo, a cuidar dos interesses da população. Sem partidarismos e sem perseguições a quem quer que seja, mas com a franqueza, por vezes rude, e a obsessão com que sempre defendi meus princípios. Busco em meu trabalho a defesa intransigente de soluções reais para os problemas das comunidades. Vem daí a relação de confiança que estabeleci com o público . Uma confiança construída dia a dia, ao longo de anos de convivência intensa, na qual este âncora tenta expressar o conteúdo que atenda milhões de pessoas –a maioria sem voz e, muitas vezes, sem esperança. A desesperança, neste momento doloroso da vida política do país, marca a alma do povo. Um dos aspectos significativos das manifestações de rua, em voga desde junho de 2013, é a crítica não apenas aos políticos que agridem a população, mas ao próprio sistema. No Brasil, o sistema político já é um desastre comprovado. O povo simplesmente não se sente representado. É o resultado natural da distância entre eleitos e eleitores. Trata-se de um sistema cheio de vícios, dos quais se nutrem exatamente aqueles que deveriam modificá-lo. É por isso que não sai a reforma política. E é por isso que as pressões populares devem aumentar de forma organizada e democrática. Do meu posto, longe da política partidária, estarei atento às questões que interessam ao povo. Quando me vi em segundo lugar nas pesquisas para a Prefeitura de São Paulo, uma disputa em que nem cheguei a entrar, as coisas ficaram ainda mais claras para mim. Meu dever é continuar de mãos dadas com a população nesta aliança enriquecedora que fornece substância para minha vida de jornalista e de cidadão. Deixemos a política para os políticos. JOSÉ LUIZ DATENA é jornalista e apresentador do programa "Brasil Urgente" (Band) * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-31
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1735264-deixemos-a-politica-para-os-politicos.shtml
Israel é a premissa do ódio
A Folha publicou, no último dia 24 de janeiro, na "Ilustríssima", elegante defesa do sionismo, assinada pelo jornalista Alon Feuerwerker e intitulada "Quatro premissas erradas sobre Israel". A síntese do postulado apresentado pelo autor está em frase clara, pela qual busca explicar obstáculos para a fundação do Estado palestino: "a ampla maioria dos líderes árabes e muçulmanos tem recusado qualquer solução de compromisso que inclua um Estado judeu". A assertiva camufla uma falácia: ao contrário do que afirma o escriba, a Organização pela Libertação da Palestina, desde 1993, quando foi assinado o Acordo de Oslo, reconhece a legalidade de Israel, somando-se ao ponto de vista advogado por Egito e Jordânia, entre outras nações árabes. As lideranças palestinas, ao assumirem essa posição, aceitaram a fórmula da convivência pacífica e soberana de dois Estados, um árabe e outro judaico, como o mapa do caminho para a independência e a descolonização. Sucessivos governos sionistas, no entanto, das mais distintas colorações partidárias, continuaram a política de ocupação dos territórios anexados à força nas guerras posteriores a 1947. A Autoridade Palestina, criada após as negociações entre Yasser Arafat e Yitzhak Rabin, permanece estrangulada por um sistema militar e administrativo que impede sua plena soberania. Repartida em bantustões formalmente autônomos, localizados em territórios descontinuados, não tem controle sobre riquezas naturais, fluxos comerciais, estradas de passagem, política de defesa ou cobrança de impostos. O Estado de Israel persevera em violação sistemática de resoluções internacionais que obrigam o recuo às fronteiras existentes até a guerra de 1967. O texto de Feuerwerker aborda o tema como se fosse um mero conflito entre dois Estados. Abusando da fantasia, traça paralelo com as tratativas que sedimentaram a paz entre França e Alemanha no século 20. A questão palestina tem outra natureza: expressa situação neocolonial, na qual uma nação invade e governa terras que não lhe pertencem, ditando o destino de outros povos e impondo seus interesses geopolíticos. Ao longo de sucessivas batalhas de ocupação, o Estado de Israel ampliou sua posse sobre a antiga Palestina britânica, dos 53% determinados pela partilha original até superar atualmente os 80%. Além das guerras de conquista, estabeleceu processo de usurpação e discriminação contra a população palestina, incorrendo em práticas de colonialismo frontalmente condenadas pela comunidade das nações. À luz da norma internacional, Israel comporta-se como Estado pirata. De índole semelhante a da África do Sul durante o apartheid, no qual um regime de ordenamento racial protegia a supremacia branca. Todos os povos submetidos a esse tipo de garrote possuem o direito à rebelião, historicamente caracterizado como autodefesa diante da opressão estrangeira. Todos os governos que atropelam princípios estabelecidos pela carta fundacional das Nações Unidas e suas decisões correlatas devem ser pressionados e boicotados até que retomem a rota da legalidade. Mesmo que seja longo o caminho para a derrota da doutrina expansionista, ao inverso do que esboça o respeitado jornalista, a responsabilidade pelo ódio é uma pena que sempre cabe ao agressor. BRENO ALTMAN, 54, é jornalista e diretor editorial do site Opera Mundi * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-31
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1735262-israel-e-a-premissa-do-odio.shtml
Além da adição
O novo diretor do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa), Marcelo Viana, é exato com as palavras: "A formação do professor é catastrófica", afirmou em entrevista à Folha publicada nesta quinta (28). Viana aponta a deficiência no preparo de docentes de matemática, acertadamente, como uma das principais razões para a disseminada incompetência dos alunos brasileiros nessa matéria. A instituição que dirige conta com alguns dos melhores matemáticos do mundo, mas ele assinala que meros 4% de nossos estudantes dominam o suficiente nessa disciplina para qualificar-se a trabalhar no setor de tecnologia. É de acabrunhar, de fato. Mais de dois terços (67,1%) dos brasileiros de 15 anos avaliados no exame internacional Pisa, em 2012, revelaram baixo rendimento. Ninguém pode conformar-se com ver o Brasil na faixa entre a 57ª e a 60ª colocação em um ranking com 65 nações. Dito isso, há que registrar o fato de o país ter melhorado nessa matéria ao mesmo tempo em que atraía mais jovens para os bancos escolares –a imperativa inclusão de alunos pobres, afinal, tende a rebaixar o rendimento acadêmico. Em 2003, 35% dos jovens de 15 anos estavam fora da escola, grupo que se reduziu a 22% em 2012. Nesse período, a média de desempenho dos estudantes aumentou de 356 para 391 pontos, o maior ganho registrado pelo Pisa no intervalo. Para a continuidade e aceleração desse progresso ainda tímido, uma ferramenta decisiva será a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), se e quando chegar a bom termo o processo tortuoso de sua formulação pelo MEC. A BNCC possibilitará dar foco aos ultrateóricos cursos de licenciatura, pois deixará claro aquilo que o docente terá obrigação de ensinar. Felizmente, o capítulo de matemática está mais bem encaminhado do que os de língua e literatura e de ciências humanas, contaminados por ideologias pedagógicas e políticas. A base, contudo, constitui apenas um fundamento (perdoe-se o pleonasmo). Sobre ela terão de mobilizar-se pais, mestres e diretores de escola para garantir que nossos jovens aprendam aquele mínimo de matemática sem o qual ninguém pode tornar-se cidadão pleno do século 21. editoriais@grupofolha.com.br
2016-01-29
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1734812-alem-da-adicao.shtml
Compromisso com a saúde mental
A saúde mental como política pública voltou a ocupar o centro dos debates há quase dois meses. A discussão não se refere a análises de suas estruturas e serviços. Também não critica a ausência de uma boa política, pois o SUS (Sistema Único de Saúde) avançou com a lei nº 10.216/2001 ao fechar hospitais manicomiais e criar centros de atenção psicossocial para dar ao paciente o que é seu direito: dignidade, respeito e liberdade de ser e viver. A atual política de saúde mental decorre dessa lei sancionada há 15 anos, de pactos firmados por União, Estados e municípios, e da participação da sociedade, por meio do Conselho Nacional de Saúde. A execução fica a cargo dos Estados e municípios, não cabendo ao Ministério da Saúde a gestão de serviços, mas tão somente o aperfeiçoamento das diretrizes das políticas e parte de seu financiamento. Em reunião no Conselho Nacional de Saúde, comprometi-me pessoalmente com os avanços dessa política, assim como fiz em artigos publicados. Tenho mantido diálogo com todos os que me procuraram, assim como tenho procurado interlocutores para dialogar. Em todos esses fóruns, assumo posicionamento frontalmente contrário a qualquer forma de retrocesso no desenvolvimento da política pública de saúde mental. A preocupação que me assalta nos últimos dias, resultado de intensa discussão, é a dificuldade de diálogo com os manifestantes que discordam da nomeação, pelo Ministério da Saúde, do psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho para a Coordenação Nacional de Saúde Mental. Essa dificuldade tem sido expressa em publicações nas mídias, em movimentos sociais e até mesmo em uma ocupação de sala do Ministério da Saúde, impedindo servidores de desempenharem suas tarefas. Pergunto-me se esse movimento de ocupação de sala, com pessoas vivendo de forma inadequada, em condições incompatíveis com a sua saúde, se justifica, pois o diálogo foi e está francamente aberto. Tentam fazer a sociedade crer que a saúde mental irá sofrer um revés com o retorno dos manicômios e do encarceramento de pessoas. Isso tem sido constrangedor para a política de saúde mental e não contribui para a verdade dos fatos. Não é possível julgar atos que não foram praticados, muito menos condenar o Ministério da Saúde por isso. Como defensor da atual política de saúde, devo contar com a confiança das pessoas até prova em contrário. São infundadas as publicações que afirmam meu descompromisso com os avanços dos direitos das pessoas com transtorno psíquico. Tais atos apenas alimentam inverdades, geram medo e fantasias, promovem ofensa e desconfiança imotivadas. Meras suposições não podem acarretar o bloqueio do diálogo, que precisa ser exercido em todas as circunstâncias. A contenda é falsa, pois não há ideias divergentes. Parece-me que há nos dias de hoje uma personalização da política pública, quando a mesma deve ser exercida de forma impessoal. Minha luta no ministério caminha na direção da melhoria das condições de saúde das pessoas com transtorno mental, da preservação da dignidade, do humanismo no cuidado e do respeito aos pactos firmados. Estou aberto ao diálogo de forma franca e imparcial. Reafirmo aqui meus compromissos com os avanços da saúde mental no país. MARCELO CASTRO, 65, é ministro da Saúde * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-29
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1734768-compromisso-com-a-saude-mental.shtml
Mais florestas para São Paulo
A vegetação nativa, como Mata Atlântica e Cerrado, é importante provedora de produtos e de serviços, como alimentos, energia, princípios ativos medicinais e paisagem. Cada vez mais aprendemos que esses ecossistemas também são reguladores de ciclos naturais como o da água e o do carbono, cuja perturbação pode levar a desastres naturais e a mudanças climáticas. Pela sua importância para a qualidade de vida, os remanescentes de vegetação têm seu uso e proteção regulados por leis especificas, como a Lei da Mata Atlântica, a do Cerrado Paulista e a de Proteção da Vegetação Nativa, conhecida como o novo Código Florestal. Antes destas, já havia proteção legal, a começar do velho Código Florestal de 1934. O Estado de São Paulo tem a lei estadual nº 2.223 de 1927, com restrições ao desmatamento e o decreto 49.141 de 1967, que regulava a exploração do Cerrado. São Paulo possui uma área de quase 25 milhões de hectares, dos quais cerca de 18% estão ocupados por vegetação nativa –boa parte em áreas privadas. Para adequar as propriedades rurais paulistas a esta lei, se estima que será preciso recuperar de 1 milhão a 1,5 mi de hectares. Cumprir essa meta não deve afetar a agricultura, porque o Estado tem cerca de 12 milhões de hectares de pastagens, em sua maioria com menos que um animal por hectare, produtividade muito abaixo da média possível com boas práticas. O processo de recuperação dessas áreas se inicia com o registro dos imóveis rurais no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e, havendo áreas a serem recuperadas, com a entrada no Programa de Regularização Ambiental (PRA), que deve definir as regras para recuperação de áreas de preservação e reservas em propriedades rurais, além de mecanismos de apoio e monitoramento por parte do Poder Público. O processo de regulamentação do PRA em São Paulo tem sido demorado e vem enfraquecendo a oportunidade de proteger ou recuperar a vegetação. No início deste ano o Governador Alckmin publicou o Decreto que regulamenta o PRA no Estado. Uma regra frágil, pois deixa em aberto pontos importantes, como a restrição à evasão de compensações de reservas para outros Estados. Também abre brechas para a dispensa das obrigações legais de recomposição e compensação. Na sequência, a Secretaria do Meio Ambiente publicou a Resolução SMA 004/2012, que define regras para, por exemplo, evitar que as compensações de reserva legal sejam realizadas em regiões de outros Estados que não contribuam diretamente para os mananciais de abastecimento. Uma clara estratégia de melhorar a infraestrutura verde dos sistemas de abastecimento de São Paulo como o Sistema Cantareira e o Paraíba do Sul. Estranhamente, a Resolução foi revogada menos de uma semana após sua publicação. Um sinal negativo para a regularização ambiental. Da parte das atribuições da Secretaria da Agricultura não temos ainda as diretrizes legais e técnicas para definir critérios de dispensa das obrigações de recomposição, nem as que vão orientar o uso adequado das áreas de usos consolidado, liberadas do reflorestamento. Como envolve a segurança hídrica, questões climáticas, economia e biodiversidade, o assunto interessa a toda a sociedade e necessita de um amplo debate público envolvendo representantes dos agricultores, sociedade civil, universidade, empresas e coletivos para que sejam consideradas as experiências, oportunidades e limitações de todos os interessados no estabelecimento de um PRA que leve ao aumento da cobertura florestal de São Paulo. As regras devem garantir segurança jurídica, ambiental, econômica e social. AURELIO PANDOVEZI, 40, é vice-coordenador do Pacto pela Restauração da Mata Atlântica e gerente de programas de florestas e água do WRI Brasil - World Resources Institute ROBERTO RESENDE, 48, agrônomo, é presidente da Iniciativa Verde e atua no Observatório do Código Florestal * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-29
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1734727-mais-florestas-para-sao-paulo.shtml
Porque você vai perder a próxima eleição
Na última eleição para prefeito, João tinha objetivos claros: derrotaria o candidato da situação e seria o prefeito de uma importante capital. Sua primeira tarefa foi providenciar recursos para pagar a empreitada. Fez as contas e viu que o dinheiro do fundo partidário não faria frente ao adversário, que contava com o apoio de fornecedores da prefeitura e funcionários em cargos comissionados. Decidiu procurar alguns empresários e amigos que pudessem ajudá-lo. Prometeu-lhes que suas provas de amizade seriam bem apreciadas em caso de vitória. Conseguiu financiamento e foi montar sua equipe. O marqueteiro, com uma série de vitórias famosas em seu currículo, foi o primeiro a ser escolhido. Em seguida, procurou uma pessoa de mobilização, capaz de contratar, orientar, mobilizar e pagar cerca de dois mil cabos eleitorais. Contratou também um grupo de intelectuais capazes de montar o plano de governo crível e factível. Pesquisas foram encomendadas. Descobriu-se os bairros em que o candidato era reconhecido e os que ninguém tinha ouvido falar dele; a roupa que passaria a imagem de político comprometido e até as palavras ideais para cada situação. A mídia tradicional local recebeu um conjunto de anunciantes ligados ao candidato, com a condição de serem, no mínimo, complacentes. O circo estava montado. O marqueteiro tratou de fazer o seu trabalho, e o fez muito bem. Nas primeiras semanas, a propaganda da televisão mostrava apenas vídeos do candidato, com seu nome, histórico familiar e seus amigos. Nas semanas seguintes, propostas para melhorar a cidade, jingles envolventes, depoimentos de jovens com esperança nos olhos e gráficos com o crescimento de seus eleitores. O site e as redes sociais foram reflexo do que a televisão exibia. As propagandas não mencionaram sequer o endereço do site. Para todos, inclusive o marqueteiro, a web era apenas um canal sem muita relevância. Nas últimas duas semanas, o candidato a prefeito passou a marcar seu número e pedir o voto. Invadiu o tempo de televisão dos vereadores para massificar seu pedido. Usou todo espaço que poderia ter. O resultado não poderia ser outro: vitória! Apertada, por menos de 5%, mas vitória! Em resumo, as condições que possibilitaram que João fosse eleito foram: muito dinheiro, tempo de televisão aproveitado por meio de programas com produção profissional, equipe de rua numerosa, comunicação tradicional, adversários com mentalidade tradicional e mídia favorável. Com as novas regras eleitorais, definidas pela reforma política, João certamente perderia a eleição. Sem recursos devido a proibição do financiamento privado, como contrataria tantas pessoas? Como pagaria o marqueteiro? De onde viriam recursos para bancar vídeos com produção cinematográfica? Além disso, a campanha foi reduzida. A televisão não terá mais do que 30 dias para convencer eleitores. Mas há alternativas. A presença digital de um candidato pode ser trabalhada a qualquer tempo. Ficou proibido apenas o pedido de voto antes do prazo, mas qualquer candidato pode construir sua base usando seus sites e perfis em redes sociais. Hoje, o candidato que apostar na televisão como prioridade corre o risco de ser massacrado por quem estrategicamente se preocupa em formar base de simpatizantes, captar endereços de e-mails e números de celular, apresentando um discurso transparente e coerente. O que fará a diferença na próxima eleição é o entendimento que cada candidato tem do novo jogo. Como em tudo, o que se adaptar sobreviverá. Quem acreditar que tudo será como antes terá uma surpresa amarga na urna. MARCELO VITORINO, 36, estrategista de comunicação digital, é professor de marketing digital na ESPM - Escola Superior de Propaganda e Marketing e IESB - Instituto de Educação Superior de Brasília * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-28
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1734250-porque-voce-vai-perder-a-proxima-eleicao.shtml
Direito de brincar e de aprender
O debate público sobre o papel e a função da educação infantil no Brasil tem sido marcado por uma falsa dicotomia entre o direito de brincar e o de aprender. Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que, no campo dos direitos, não há concorrência nem sobreposição, mas complementaridade. Também é consenso que a educação infantil é uma política poderosa no enfrentamento das desigualdades. Assegurá-la, com qualidade, a todas as crianças é uma das principais metas que o país precisa urgentemente concretizar. A tarefa não é simples e exige um amplo esforço do Estado e de toda a sociedade. Há uma vasta literatura sobre o impacto da educação infantil de qualidade no desenvolvimento integral das crianças. Trataremos aqui da ampliação do acesso à cultura letrada, essencial para o pleno exercício da cidadania. Infelizmente, no Brasil a garantia desse direito ainda é um desafio para as políticas públicas, mesmo para aqueles que frequentam a escola, como indica o relatório da ANA (Avaliação Nacional da Alfabetização), divulgado em 2015 pelo Inep. Segundo o documento, apenas 11% dos estudantes do 3º ano do ensino fundamental estavam no nível 4, o mais alto da escala em leitura. Na escrita, o desempenho também é pífio: somente um em cada 10 alunos alcança o nível 5, no topo da escala. Frente a esse cenário, há quem prefira insistir no eterno debate sobre a idade ideal para a alfabetização, quando o cerne deveria ser como assegurar as condições de ensino e aprendizagem para que todos acessem o mundo das letras. Agora, com o debate da Base Nacional Comum Curricular, corremos o risco de desconsiderar a importância da intencionalidade pedagógica na aprendizagem da linguagem oral e escrita na educação infantil, resultado da falsa dicotomia entre o direito de brincar e o de aprender. Por isso, é preciso concentrar nossos esforços para que o documento do MEC seja aprimorado. As diretrizes nacionais são claras: a educação infantil é parte integrante da educação básica e tem como finalidade desenvolver integralmente a criança, assegurando-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania. Isso não significa transformá-la em uma educação preparatória para o ensino fundamental, muito menos em uma educação compensatória, idealizada para superar "supostos deficits" de aprendizagem das crianças das camadas populares. Tampouco podemos retroceder, voltar a reproduzir experiências da década de 1970 de uma educação para o desenvolvimento de habilidades restritas, como motora e perceptiva. Em pleno século 21, precisamos de reflexão, e não da mera repetição ou memorização de conteúdos. Cabe ao Estado criar políticas, estratégias e condições que assegurem todos os direitos de crianças e adolescentes, independente da origem social, étnica, do local de moradia ou de seu perfil familiar. Portanto, precisamos romper com essas polarizações artificiais que atendem a interesses outros que não o das crianças e o de uma educação pública de qualidade com equidade. MARIA ALICE SETUBAL, a Neca, doutora em psicologia da educação pela PUC-SP, é presidente dos conselhos do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária - Cenpec e da Fundação Tide Setubal. Foi assessora de Marina Silva, candidata à Presidência em 2014 * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-28
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1734301-direito-de-brincar-e-de-aprender.shtml
Batalha perdida
Os operosos assessores anônimos de Brasília fizeram saber que o ministro da Saúde, Marcelo Castro, está desgastado no governo. No cargo desde outubro, quando se licenciou do mandato de deputado federal pelo PMDB do Piauí, Castro acrescentou ao folclore da capital uma coleção de gafes políticas. Na mais recente e embaraçosa delas, disse que o Brasil está "perdendo feio" a batalha contra o mosquito Aedes aegypti, o principal vetor das várias arboviroses que vêm acometendo o país. Dias antes, afirmara que iria torcer para que mulheres contraíssem a febre zika antes de entrar na idade fértil, o que dispensaria o ministério de vaciná-las. Num parêntese, cumpre dizer que a vacina ainda não existe. Pesquisadores começaram agora a elaborar planos para desenvolvê-la, o que não ocorrerá antes de dois ou três anos, no cálculo mais otimista. Quando enveredou pela economia, o ministro, psiquiatra de formação, não se saiu melhor. Numa de suas primeiras declarações como titular da pasta, defendeu que a CPMF fosse cobrada tanto no débito como no crédito em conta corrente. Gabava-se de ter descoberto uma fórmula para arrecadar o dobro sem aumentar a alíquota. Castro está longe de ser um caso isolado. Aliás, na comparação com sua chefe, a presidente Dilma Rousseff (PT), ele leva vantagem: suas declarações, embora politicamente desastrosas e tecnicamente discutíveis, ao menos não contrariam a biologia básica. Dilma, quando abordou a zika em dezembro, disse uma série de desatinos. Pretendendo ser didática, a presidente, que já chamara o mosquito de vírus e a zika de vetor, atribuiu a transmissão da doença a ovos infectados por vírus e criou uma variante do inseto especializada em zika que permanece desconhecida da ciência. A presidente jamais se notabilizou pela montagem de gabinetes de excelência. Mesmo quando gozava de alta popularidade e força política, não se empenhou em nomear para o primeiro escalão especialistas com notório saber nas respectivas áreas e projetos definidos de políticas públicas. Desde que a prioridade única de sua gestão passou a ser evitar o impeachment, até pastas fundamentais como Saúde e Educação se converteram em moeda de troca no varejo partidário. Não por acaso, o Palácio do Planalto fez saber que Castro, a despeito do falatório inconveniente, tem boa chance de permanecer na cadeira. Afinal, argumenta-se, é considerado um eficiente articulador de apoios no Congresso. editoriais@grupofolha.com.br
2016-01-28
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1734340-batalha-perdida.shtml
Literatura portuguesa naufraga no Brasil
A proposta beira o absurdo. O Ministério da Educação, por meio do documento intitulado Base Nacional Comum Curricular, elimina a obrigatoriedade do estudo da literatura portuguesa, como se, até hoje, ela tivesse sido desnecessária à educação dos jovens que conseguiram terminar o ensino médio. Desde a primeira proposta da reforma ortográfica agora vigente, o governo brasileiro argumentava a favor da padronização linguística, dadas as afinidades culturais e a unidade em torno da língua dos países de fala e escrita portuguesa. A lusofonia, afinal. Falamos o mesmo idioma? Então somos irmãos. Linguistas, literatos, gramáticos, historiadores, intelectuais em geral não foram convidados ao debate. E hoje ocorre o mesmo com a discussão da base curricular. Quem elaborou as atuais propostas? Ninguém sabe, ninguém viu. O projeto do MEC para o ensino da literatura nesse segmento apresenta inovações, já adotadas por alguns colégios menos formalistas, como a inversão temporal da sequência da história literária: os alunos do primeiro ano leriam autores contemporâneos e, nas séries seguintes, mais maduros e preparados, teriam contato com obras de períodos anteriores. Também louvável é a ênfase ao estudo da contribuição dos países africanos de língua portuguesa e à cultura dos povos indígenas. Como, porém, apagar Europa e Portugal de nossas origens? Tirando do mapa? Surgiram artigos, nem todos contundentes, sobre a base curricular, mais focados, porém, na área de história –e um tantinho na linguagem, na norma dita padrão e na gramática. O resto é silêncio. É difícil imaginar uma justificativa para a discriminação da cultura europeia e da literatura portuguesa. Será que, mais uma vez, a seleção de conteúdos foi contaminada por um viés político e ideológico anacrônico? Já que Portugal teria sido uma metrópole colonialista europeia que explorou as riquezas de suas colônias e escravizou populações negras e indígenas na América e na África, agora seria o momento de dar voz à cultura dos oprimidos, em detrimento da Europa elitista e opressora. Escritores lúcidos e críticos ao processo político colonizador lusitano, como os portugueses José Saramago e António Lobo Antunes, não poderiam ser estudados por não serem africanos, tal qual o moçambicano Mia Couto. A Base Nacional Comum Curricular cobre apenas um rol mínimo de informações e conceitos obrigatórios, a serem complementados com outros tantos conteúdos de cunho eletivo ou facultativo. Mas deveria o estudo da literatura portuguesa ser opcional? Camões e Fernando Pessoa, sem falar do Padre Antônio Vieira e de Eça de Queiroz, dependem agora do gosto e/ou da escolha de colégios ou professores? Como compreender a cultura popular nordestina, suas canções, seus repentes, seus cantos de aboiar, sua literatura de cordel, sem reconhecer a presença da literatura medieval da Península Ibérica, em particular as cantigas trovadorescas e as novelas de cavalaria? E "Morte e Vida Severina", de João Cabral de Melo Neto, e "Auto da Compadecida", de Ariano Suassuna, nada devem ao teatro humanista português de um Gil Vicente? Fugir ao diálogo Brasil/Portugal é negar origens e contextos produtivos. A quem interessa mudar tanto o programa de literatura? Em que buraco negro estão as milhares de sugestões feitas por quem tem conhecimento da base curricular? O que fazer com as toneladas de livros didáticos já oferecidas anteriormente pelo próprio MEC às escolas públicas e/ou compradas pelas famílias de alunos de escolas particulares? Como atualizar os professores que aprenderam literatura portuguesa, por vezes a duras custas? Passaremos a ter melhores classificações nas avaliações internacionais sem a cultura europeia e a literatura portuguesa? Seremos mais finlandeses, talvez. FLORA BENDER GARCIA é doutora em teoria literária e literatura comparada pela USP JOSÉ RUY LOZANO é autor de livros didáticos e professor de produção textual do Instituto Sidarta * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-28
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1734307-literatura-portuguesa-naufraga-no-brasil.shtml
Sem garras
Desfrutando de clara hegemonia no cenário político estadual, o PSDB encontra dificuldades para apresentar um candidato consensual e forte na disputa pela Prefeitura de São Paulo. É positivo, assim, que proceda a uma consulta prévia entre seus militantes, marcada para o dia 28 de fevereiro. Três nomes se apresentam para a disputa interna: o empresário João Doria Jr., que conta com o apoio aparente do governo Geraldo Alckmin, o deputado federal Ricardo Tripoli, o mais votado do partido em 2014, e o vereador Andrea Matarazzo, que já ocupou importantes cargos nas administrações municipais tucanas. De nenhum deles será lícito dizer que foge ao figurino, à identidade, ao estilo característico da política peessedebista. As rotulações mais inconvenientes que adversários aplicam a um ou outro –a de "higienista" ou de "coxinha", por exemplo–, talvez já não tenham, no atual cenário ideológico paulistano, especial poder pejorativo. Com o acúmulo dos escândalos e erros protagonizados pelo PT, deixa de ser motivo de constrangimento, para um candidato, que seu estilo político e modos de vida se localizem nos antípodas do populismo tradicional. Torna-se mais decisivo, até, canalizar o sentimento que, em São Paulo como em outros centros, mobiliza amplas parcelas da população contra a herança do lulismo. Mais do que por seus próprios insucessos, o prefeito Fernando Haddad (PT) surge a esta altura como o alvo preferencial das inconformidades e indignações resultantes do modelo que lhe garantiu a vitória em 2012. De índole cautelosa e avessa ao confronto, o PSDB demonstra dificuldades em se apropriar dos dividendos da evidente polarização política –entre petismo e oposição, entre os favoráveis ao impeachment e quem o contesta. Ademais, a permanente divisão entre as principais lideranças do partido dificulta o método, até há pouco tempo tão recorrente e bem-sucedido no campo petista, de ungir unilateralmente um nome, mesmo que quase desconhecido, para o pleito, transferindo a popularidade de Lula a qualquer pessoa de sua predileção. Abre-se caminho, desse modo, para que outros candidatos, como Marta Suplicy (PMDB) e Celso Russomanno (PRB), ocupem o terreno do voto oposicionista. Por certo, a eventualidade de uma "terceira força" entre PT e PSDB raras vezes sobrevive, no Brasil, às corrosões de uma campanha. Mas a falta de densidade pessoal dos pré-candidatos do PSDB, ao menos por enquanto, torna menos improvável essa hipótese no pleito paulistano. editoriais@grupofolha.com.br
2016-01-28
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1734341-sem-garras.shtml
Arena de competição dos bancos
Inovações tecnológicas e novos modelos de relacionamento com os consumidores surgem a cada dia e conquistam públicos cada vez mais amplos. Para os bancos, o desafio é alcançar velocidade e modelos renovados que beneficiem os clientes. A mobilidade é um desses vetores, por permitir a supressão de barreiras de tempo e espaço para que o cliente faça suas transações bancárias. Os smartphones se tornaram o novo território disputado pela indústria financeira. O cotidiano das pessoas muda rapidamente em função da influência dos dispositivos móveis. Os contact centers vão migrar para plataformas de relacionamento por meio de aplicativos, e as soluções de pagamentos no varejo deixarão, aos poucos, os cartões de plásticos e migrarão para um mundo totalmente digital. Está em jogo, nesse cenário, um grande número de vantagens e ameaças para as instituições financeiras. As vantagens mais óbvias estão na redução de custos com a geração de mais eficiência operacional e na melhoria da qualidade do atendimento ao cliente, que não precisaria mais se deslocar diariamente a uma agência bancária. As ameaças surgem com a hipótese de as entidades não financeiras, intensivas em uso de tecnologias digitais, passarem a dominar o relacionamento com o consumidor final, deixando os bancos apenas com as atividades de processamento financeiro e guarda do dinheiro. Existe, ainda, a possibilidade de as empresas não financeiras começarem a exercer atividades específicas, altamente especializadas e até então restritas aos bancos, como é o caso das instituições que disputam os mercados de meios de pagamentos e de crédito. Nesse cenário, é claro que os bancos não ficarão parados. O uso de tecnologias cada vez mais avançadas está gravado no DNA dos bancos brasileiros de varejo. O poder de investimento e de inovação já se mostrou efetivo em vários outros momentos de transformação do mercado brasileiro. Mesmo nesse contexto de digitalização do relacionamento, os bancos brasileiros continuarão investindo em suas agências físicas. Uma grande instituição financeira afirmou, segundo notícias em jornais, ter reservado vultosos recursos para reformular sua rede e ainda abrir mais pontos num novo modelo digital. No Banco do Brasil, os investimentos previstos na rede física beiram o patamar de bilhões, inclusive com a abertura ou transformação de mais de 200 agências que também serão especializadas no modelo digital até o final de 2016. Os gastos em digitalização e em estruturas físicas podem parecer, a princípio, estratégias díspares. Na realidade, são complementares, por se pautarem pelo relacionamento e pela melhoria do serviço. No lugar das tradicionais agências, os bancos investem em "ambientes de negócios". Amparado pela tecnologia, o novo modelo de atendimento personaliza soluções, diminui a burocracia e acaba com os horários inflexíveis. A realidade digital traz novas complexidades ao sistema bancário, em um cenário composto por consumidores mais exigentes e por novos entrantes ávidos a oferecer serviços financeiros semelhantes aos prestados pelos bancos. Resta uma certeza: no final, o ganhador dessa configuração de forças será o consumidor. RAUL FRANCISCO MOREIRA, 44, é vice-presidente de Negócios de Varejo do Banco do Brasil * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-27
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1733845-arena-de-competicao-dos-bancos.shtml
Perseguidos e refugiados, o que isso nos lembra?
"Vocês não afligirão nem oprimirão o estrangeiro, porque o foram na terra do Egito"- Êxodo 22:20. Esse trecho afirma que ninguém deve ser considerado forasteiro ou estranho onde viverá. Nós, judeus, peregrinamos até chegar à Terra Prometida. Como e inúmeras vezes nos foi negado o direito de viver em um pedaço de chão? "Escravos fomos do faraó no Egito, agora somos homens livres", repetimos ano após ano, em nossa Páscoa. No Holocausto, seis milhões de judeus pereceram e também, homossexuais, membros de outras fés, comunistas, quem não ia ao encontro dos interesses da máquina de morte nazista. Setenta anos transcorreram desde então, e ainda, perplexos, assistimos esse tipo de episódio. Lembrem-se a chocante cena do sírio Aylan, de 3 anos, que ao tentar alcançar à União Europeia, morreu na costa turca junto com os sonhos de sua família. E, vítimas, também, de perseguição, jocosamente, a publicação Charlie Hebdo desdenha o episódio. De volta ao tema, os imigrantes de onde a perseguição religiosa, fome, e violência tornaram-se insuportáveis buscam ajuda internacional, e acabam esbarrando, muitas vezes em condições subumanas. Tivemos vistos negados, bens (materiais e emocionais) usurpados, vidas confiscadas pelo fato de sermos judeus ou descendentes deles. O mundo, ou boa parte dele, silenciou! Há registros desse período pela coragem dos que ousaram documentar e até mesmo porque na cabeça dos nazistas, era preciso gravar com precisão seus "feitos". Com o advento das redes sociais e outras mídias as informações trafegam em tempo real, logo é inconcebível se omitir ou ser um mero espectador dessa nova barbárie. Essa é a pior crise de refugiados desde a 2ª Guerra, cerca de 60 milhões de pessoas em todo mundo se encontram deslocadas devido a conflitos armados e perseguição de diferentes tipos, sobretudo motivadas pela questão religiosa, o que fere o artigo 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos ("todo homem é livre para pensar, ter consciência e religião, com liberdade para mudar de religião ou manifestá-la de forma coletiva ou isoladamente"). Mas, não é preciso uma lupa para enxergar o que gerou esse colapso em distintos países. Na ponta do iceberg, a Síria, com a fragmentação de forças do governo e núcleos insurgentes, abriu espaço para que radicais agissem. O Afeganistão teve quatro grandes ondas migratórias (invasão soviética, guerra civil, regime do talibã, e a intervenção militar após o 11/9), reforçando a presença do talibã. A Eritreia, após conquistar sua independência em 1993, se tornou reconhecida por sua forte repressão e recrutamento militar sem previsão para o término do serviço. Na Somália, a fome é permanente e as milícias radicais se instalaram, e por aí vai. Mazelas são recorrentes e dão vazão ao apoderamento de extremistas. O êxodo acaba sendo a única saída para que essas populações continuem existindo. Na contramão desse fluxo migratório, há os mal-intencionados que provocam o terror em nome de uma santidade autoproclamada salvadora. O resultado de tudo isso é que muitos governos não estão preparados para receber tamanha massa humana; outros tendem a proibir a entrada visando "se protegerem" e, ainda, ressurge a xenofobia. Repete-se a história. O Brasil tem recebido imigrantes. A União Europeia tenta acolher esse montante. Mas, no geral, vemos barracas, trapos, fome e falta de condições para abrigar a todos. Alguns países fecham suas fronteiras para barrar "os indesejáveis". O que tudo isso nos lembra? O Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto é uma boa oportunidade para refletirmos sobre isso! JACK TERPINS é presidente do Congresso Judaico Latino-Americano * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-27
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1733784-perseguidos-e-refugiados-o-que-isso-nos-lembra.shtml
Há lobbies e lobbies
Deflagrada no ano passado para apurar sinais de um esquema bilionário de sonegação de impostos, a Operação Zelotes, da Polícia Federal, deparou-se com um episódio que, na hipótese mais branda, expõe meandros constrangedores do processo legislativo do país. Medida provisória editada em novembro de 2009, no governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), prorrogou a vigência de benefícios tributários para a indústria automotiva das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Descobriu-se que um lobista investigado pela PF havia atuado em favor da norma, posteriormente convertida em lei. Alexandre Paes dos Santos, o lobista em questão, confirmou ter sido procurado para realizar trabalho de assessoria a Mauro Marcondes, cujo escritório atendia a empresas ligadas às montadoras Mitsubishi e Hyundai. Então chefe de gabinete de Lula, Gilberto Carvalho relatou ter intermediado encontros entre Marcondes e o ex-presidente, antigos conhecidos, para o debate de providências de estímulo à economia. A partir dos dados reunidos nas investigações, calcula-se que o escritório de Marcondes recebeu R$ 17 milhões pela empreitada –e um total de espantosos R$ 57 milhões, entre 2009 e 2015, pelos serviços prestados aos mesmos clientes. Verificou-se que o lobista contratou, em 2010, firma advocatícia pertencente ao filho de uma alta funcionária da burocracia federal; por fim, que pagou R$ 2,4 milhões, desde 2014, por trabalhos da LFT Marketing Esportivo, de Luís Cláudio Lula da Silva, filho de Lula. Nada disso, por si só, configura ato criminoso; o desenrolar da ação penal aberta a respeito do caso –que não inclui Luís Cláudio, alvo de outro inquérito– demonstrará se procede a acusação de que a MP de 2009 e outras duas, de 2010 e 2013, tenham sido "compradas". Os réus afirmam que há uma tentativa de criminalizar a atividade de lobby, a defesa de interesses particulares corriqueira –e necessária– na democracia e na economia de mercado. São justamente as dimensões das cifras e personagens envolvidas, além do obscuro emaranhado de relações pessoais e profissionais entre elas, que evidenciam a urgência de uma regulamentação do lobby no Brasil, tarefa adiada pelo Congresso desde os anos 1990. Tal legislação, como defende esta Folha, deverá definir a atividade e proporcionar a identificação transparente de contratantes e contratados, seus interesses e estratégias de atuação, incluindo os contatos com autoridades públicas. Assim serão delimitadas com mais clareza as fronteiras entre a pressão legítima, o tráfico de influência e a corrupção. editoriais@grupofolha.com.br
2016-01-27
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1733873-ha-lobbies-e-lobbies.shtml
A dura lição do Holocausto
Há 71 anos, no dia 27 de janeiro de 1945, tropas soviéticas entraram no campo de extermínio nazista de Auschwitz, na Polônia, para liberar os poucos sobreviventes. Diante do avanço das forças aliadas, os nazistas vinham esvaziando o campo no qual mais de 1 milhão de pessoas, a grande maioria judeus, foram exterminadas. Permaneceram apenas algumas centenas, como os mais fracos e doentes, que não tinham força para participar das infames "marchas da morte". A tentativa nazista de esconder o genocídio, porém, foi em vão, como os próprios soldados soviéticos perceberam ao se depararem com pessoas em condições sub-humanas e evidências como roupas, malas e sapatos das vítimas. Aquela data, libertadora ainda que tardia, foi escolhida pela ONU para marcar o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, que celebramos hoje. Mais do que nunca, o mundo precisa refletir sobre o crime inominável que matou 6 milhões de judeus no coração da "moderna" Europa pelo simples fato de serem judeus. Hoje, infelizmente, está claro que as lições do Holocausto não foram aprendidas. A intolerância explode e mata em várias partes do mundo, embalada por ferramentas poderosas de comunicação, capazes de promover o ódio com eficiência inédita na história. O antissemitismo cresce de forma alarmante, principalmente pela Europa e pelo Oriente Médio, agora conduzido por campanhas de ódio –cada vez mais explícitas– contra Israel. Poucas décadas depois do Holocausto, judeus novamente temem andar pelas ruas europeias, em decorrência do antissionismo (a negação do direito de os judeus terem seu Estado em Israel), atualização do antissemitismo de outrora. A chanceler alemã, Angela Merkel, disse no último sábado (23) que os alemães, e os europeus em geral, precisam fazer mais para combater o crescente antissemitismo na região. O presidente e o primeiro-ministro franceses já disseram o mesmo, após vários ataques contra judeus no país. Neste mês de janeiro, um professor de escola judaica foi agredido em Marselha, ao ser identificado como judeu, por usar um quipá na cabeça. Assustado diante de tantos ataques, o líder da comunidade judaica local sugeriu que os judeus parassem de usar sinais externos que identificassem sua religião. Numa manifestação contra Israel nas ruas da Alemanha há pouco tempo, ouviram-se gritos de "Hamas, Hamas, judeus à câmera de gás". O extremismo jihadista ataca em Paris, Copenhague, Toulouse e Jerusalém. No Brasil, ainda estamos longe desse tipo de radicalismo e ações violentas. Presenciamos, no entanto, ataques contra homossexuais e praticantes de religiões de matriz africana. E, cada vez mais, grupos de interesse, que trazem o antissemitismo em sua essência, promovem o mesmo ódio a Israel e as mesmas campanhas discriminatórias de ataques e boicotes contra o Estado judeu. Criticar o governo de Israel ou o de qualquer outro país é um direito de todos, mas escolher Israel como Estado pária vai muito além do aceitável e só pode ser fruto da ignorância, da intolerância ou de ambos. Por isso, a Conib (Confederação Israelita do Brasil) escolheu o combate à intolerância como tema deste ano na comemoração do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. O mundo e o Brasil não devem esquecer o que aconteceu (e ainda acontece) na Europa para que tudo aquilo não se repita. A intolerância não pode ser tolerada, seja contra os judeus ou contra qualquer outro grupo. É essa a lição maior do Holocausto, e consideramos um dever compartilhá-la. Aprendemos a distinguir quando a intolerância começa. E como ela termina. FERNANDO LOTTENBERG, 53, é presidente da Conib - Confederação Israelita do Brasil * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-27
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1733844-a-dura-licao-do-holocausto.shtml
Decreto bolivariano
A Assembleia Nacional da Venezuela derrubou na última sexta-feira (22) o decreto pelo qual o presidente do país, Nicolás Maduro, requisitava poderes especiais para intervir na economia. Anunciado no dia 15 deste mês, o diploma ora rejeitado constituía tentativa do Executivo de lidar com penúria terminal das finanças públicas venezuelanas e o desabastecimento geral de produtos. A reprovação não causou surpresa num Parlamento dominado pela oposição pela primeira vez desde 1999. Disputas partidárias à parte, o conjunto de medidas mais agrava que atenua a crise do país. O decreto estabelecia um "estado de emergência econômica" por 60 dias, período no qual o Executivo teria amplos poderes para, por exemplo, alterar o Orçamento sem consultar o Legislativo. Chegava-se a permitir a requisição (não ficava claro se temporária) de meios de produção "para garantir o acesso da população a alimentos, remédios e demais bens de primeira necessidade". Tratava-se, em resumo, de radicalizar o modelo populista e intervencionista vigente, responsável direto pelo estado catastrófico da economia da Venezuela. De acordo com a projeção mais recente do Fundo Monetário Internacional, o PIB do país deve encolher 8% neste ano, após um recuo de 10% em 2015 –taxas mais encontradiças em casos de guerras e desastres naturais. O desabastecimento, que segundo o Banco Central venezuelano atinge 87% dos produtos do país, provocou uma explosão nos preços, com inflação acima dos 200% no ano passado. Em 2016, pelas contas do FMI, a taxa deve chegar a inacreditáveis 720%. Diante desse quadro desastroso, é lamentável que Nicolás Maduro ainda se guie pelo voluntarismo, acusando a oposição de arruinar os esforços para reerguer o país. Mesmo que as medidas propostas primassem pela razoabilidade, a pretensão de instituir um Executivo salvador da pátria, agindo ao arrepio das instituições, já conspurcaria a iniciativa. No longo prazo, tal comportamento leva a abusos de poder e acentua a insegurança de cidadãos e empresas. Teme-se agora que o presidente busque amparo em decisões do Tribunal Supremo de Justiça para atropelar a negativa da assembleia. Dominado por chavistas, o órgão máximo do Judiciário deu seu aval ao decreto na semana passada. Se optar por esse caminho, Nicolás Maduro aprofundará ainda mais o caos em seu país, ao agregar à estarrecedora crise econômica um confronto institucional. editoriais@uol.com.br
2016-01-26
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1733446-decreto-bolivariano.shtml
Zika exportada
Têm-se ampliado para além do Brasil as preocupações com o vírus causador da febre zika e suas prováveis complicações. No dia 15 deste mês, autoridades do Havaí divulgaram o primeiro caso registrado nos EUA de microcefalia em bebês associada ao vírus. Suspeita-se que a mãe tenha sido infectada durante uma viagem ao Brasil feita em maio de 2015. Na mesma ocasião, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA pediu a grávidas que considerem adiar viagens para locais que registraram surtos da doença. Já na semana passada, a Organização Pan-Americana de Saúde afirmou que são grandes os riscos de a enfermidade, já presente em 18 países do continente, se espalhar por toda a América Latina e pelo sul dos EUA neste ano. O órgão, além disso, reiterou o alerta sobre o aumento de casos da síndrome Guillain-Barré, doença rara que gera fraqueza muscular e pode levar à paralisia dos membros, também associada ao vírus. Enquanto isso, no Brasil, país mais atingido pela febre zika, cientistas começam a desvendar os mistérios da interação entre o patógeno e o corpo humano. Pesquisa recém-desenvolvida pelo Instituto Carlos Chagas, no Paraná, mostrou que o vírus é capaz de atravessar a placenta durante a gravidez e, portanto, atingir o feto. Tal resultado reforça a hipótese de o zika ser o principal responsável pelo vertiginoso aumento de casos de malformação craniana no país. Diante da ausência de uma vacina, a única forma de conter a propagação do patógeno é por meio do combate ao mosquito transmissor, o Aedes aegypti (o mesmo da dengue e da chikungunya). É uma tarefa na qual o Brasil deveria considerar as novas tecnologias que estão sendo desenvolvidas para esse fim, pois os métodos tradicionais se mostraram incapazes de impedir as recentes epidemias. Enquadram-se nesse caso os mosquitos transgênicos dotados de um gene que faz a descendência morrer antes de atingir a fase alada. No último experimento, realizado em Piracicaba (SP), houve redução de 82% na população de A. aegypti nas áreas testadas. Sua comercialização, porém, depende do aval da Anvisa, que analisa o caso desde maio de 2014. Numa batalha que o país vem perdendo, nenhuma arma pode ser deixada de lado. editoriais@uol.com.br
2016-01-24
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1732835-zika-exportada.shtml
Chutes na lama
Está difícil dizer onde os governos federal e mineiro erraram mais no caso do rompimento das barragens da Samarco, o maior desastre ambiental do país. Três semanas após a tibieza da reação imediata à onda de lama, Brasília, Minas Gerais e Espírito Santo anunciaram com estardalhaço que iriam processar a mineradora. Estranhou-se que o caso, complexo e certamente longo, fosse levado à Justiça, que não prima por agilidade e preparo especializado. A ação promovida pela Advocacia-Geral da União exigia que a Samarco e suas proprietárias, Vale e BHP Billiton, depositassem R$ 2 bilhões anuais, por uma década, para custear saneamento e remediação. Com efeito, o total de R$ 20 bilhões obteve forte repercussão, embora fosse de todo misterioso por qual via se chegara a ele. Bastaram menos de dois meses para ver tanta determinação e dureza se esvaírem em dúvida e opacidade. Reuniões promovidas em Brasília e Belo Horizonte nesta semana exalaram sinais de um início de afrouxamento nas exigências pecuniárias às empresas. "Até remédio na dose errada mata o doente", disse após um dos encontros Onofre Batista Júnior, advogado-geral de Minas, segundo o jornal "O Tempo". Não ficou claro se isso quer dizer que Samarco, Vale e BHP já ficarão isentadas de depositar os valores exigidos. Não se pode afirmar com segurança que um eventual adiamento seja absurdo, até porque o montante assinalado sempre pareceu provir de um palpite federal –de um chute, como se diz. Na falta de plano concreto sobre o que e quando fazer, o poder público se valeu da cifra para dar a impressão de que agia com o máximo rigor. Das tais reuniões resultou que agora, sim, se inverterá o processo: primeiro, definir as ações necessárias, para só então orçá-las. O programa, segundo a Advocacia-Geral da União, estará concluído na primeira semana de fevereiro. Uma fundação bancada pelas mineradoras arcará com a conta. Cabe aos governos federal e estaduais, contudo, reafirmar o princípio de que se gastarão tantos bilhões quantos forem necessários para remediar a catástrofe, ainda mais quando se avolumam os indícios de que a Samarco tinha ao menos conhecimento parcial dos riscos de ruptura da barragem. O ritmo e a magnitude do dispêndio não podem ficar condicionados à disponibilidade financeira da Samarco; há que comprometer também as sócias Vale e BHP Billiton, se preciso. Muita lama e águas turvas marcaram a tragédia de Mariana e suas vítimas. O momento pede justa responsabilização e, não menos importante, transparência. editoriais@grupofolha.com.br
2016-01-23
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1732723-chutes-na-lama.shtml
Solução de hoje, problema de amanhã
A proposta de Fernando Haddad de eleições para as subprefeituras em São Paulo retomou o debate sobre a reforma do Estado em nível subnacional. O projeto de lei, agora no Legislativo municipal, propõe a eleição de subprefeitos por meio do voto popular, facultativo, na mesma data do escrutínio municipal. Inequivocamente, a proposta toca uma questão crucial para o futuro da maior metrópole do Brasil: a modernização de sua administração. O desenho de governo no Brasil é fruto da trajetória histórica. A vitória da oposição ao regime militar nas eleições locais, no início dos anos 1980, tornou a descentralização uma tendência no processo de democratização. Os municípios tornaram-se entes federativos, o que não ocorre, por exemplo, em repúblicas federativas como EUA e Alemanha. No entanto, com a ampliação do leque de serviços públicos, em um contexto de permanente restrição orçamentária, as estruturas estatais vêm sofrendo significativas mudanças, visando a maior racionalidade. Em diversas partes do mundo, ganha importância o princípio da subsidiariedade, ou seja, o governo central só deve atuar quando a sua ação é mais eficaz do que uma ação desenvolvida em nível regional ou local. Assim, políticas como defesa nacional convergem para entidades centrais, inclusive de caráter supranacional, como a União Europeia. De outro lado, criam-se órgãos locais para cuidar do transporte público, limpeza de ruas etc. As autoridades de transporte público de Chicago (CTA) ou de Nova York (MTA) são bons exemplos, pois administram os serviços de vastas regiões metropolitanas, o que não ocorre, por exemplo, em São Paulo, em que há multiplicidade de agências: SPTrans, Metrô, EMTU etc. Nesse sentido, o debate sobre a reorganização de São Paulo é, inclusive, tardio e incompleto. Outro aspecto importante é a circunstância da proposição da prefeitura de São Paulo. Busca-se aproximar a administração do cidadão a partir de uma medida sem grande diálogo com a sociedade. A ideia diverge da plataforma do governo, que sinalizava como meta a despolitização das subprefeituras, com a indicação de técnicos. Ao contrário, o projeto visa tornar as antigas administrações regionais essencialmente políticas. Outro ponto crítico é a necessidade de o candidato pertencer a partido político, inviabilizando que lideranças locais independentes, constituídas por meio das redes sociais próprias, ocupem a cadeira de subprefeito. Inclusive, a excessiva partidarização das subprefeituras pode transformá-las em moeda de barganha na disputa política. O projeto não explica como serão definidos o financiamento de suas atividades e as competências dos subprefeitos. De que adianta a eleição sem a descentralização da alocação dos recursos? Outra dúvida: e se o prefeito e algum subprefeito forem de partidos rivais? E se um subprefeito despontar como futuro rival eleitoral do prefeito? Inúmeros são os desafios que devem ser enfrentados para a modernização administrativa de São Paulo. Apenas para ilustrar, um modelo alternativo, comum no oeste dos Estados Unidos, é a contratação de administradores profissionais, supervisionados por conselhos consultivos locais eleitos. É evidente, portanto, que uma condição imprescindível para o sucesso da reorganização de São Paulo é o amplo debate, que deveria estar na pauta das próximas eleições municipais e não em um projeto de final de mandato. No cenário atual, a solução de hoje pode ser o grande problema de amanhã. GUSTAVO ANDREY FERNANDES, 34, é professor de administração pública da FGV - Fundação Getulio Vargas e pesquisador visitante da Universidade Harvard. Foi coordenador da Escola de Contas Públicas do TCE-SP IVAN FILIPE FERNANDES, 30, é vice-coordenador do bacharelado de políticas públicas da Universidade Federal do ABC e doutor em ciências políticas pela USP * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-22
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1732188-solucao-de-hoje-problema-de-amanha.shtml
Nova aposta da Sabesp
O presidente da Sabesp, Jerson Kelman, tem razão no que afirmou em entrevista a esta Folha: não existe certo ou errado na sua decisão de elevar a captação de água no sistema Cantareira. Terá havido um cálculo correto ou incorreto dos riscos, algo que só será possível estabelecer daqui a um ano. Ninguém nega –mais que isso: festejam todos– que o nível dos reservatórios da Grande São Paulo tenha subido em ritmo acentuado, graças à normalização das chuvas. Em dezembro, por exemplo, a precipitação sobre o Cantareira ficou 18% acima da média histórica. Com isso, a situação do principal reservatório da região metropolitana melhorou de forma acelerada. O volume armazenado chegou nesta semana a 13% do volume útil, condição bem mais confortável que o 0,3% no fim de 2015. A direção da Sabesp solicitou à Agência Nacional de Águas (ANA) permissão para elevar a quantidade captada no Cantareira e obteve resposta positiva. Em janeiro, poderá retirar desses reservatórios até 19,5 mil litros por segundo (l/s), contra os 13,5 mil l/s de dezembro (a capacidade máxima de produção é de 33 mil l/s no sistema). Segundo Jerson Kelman, mesmo aumentando a captação seria possível chegar ao final deste ano com 5% do volume útil, portanto sem problemas de abastecimento. De fato, a companhia já encolheu os intervalos em que reduz a pressão da água na rede distribuidora, forma dissimulada de racionamento levada a cabo pelo governo de Geraldo Alckmin (PSDB). Para Kelman, seria injustificável, agora que há mais água disponível, prolongar o sacrifício imposto aos usuários mais afetados pela redução de pressão, como os que habitam as regiões mais altas da metrópole paulista. Na sua avaliação, o abastecimento só voltaria a preocupar a partir de abril de 2017. Mas aí, argumenta, já estariam concluídas as obras para ampliar a capacidade do sistema metropolitano. Há dois pressupostos nesse raciocínio. Primeiro, que as obras não sofram mais percalços. Segundo, que não haja novas anomalias climáticas, como as que motivaram tanto as chuvas copiosas de agora quanto a seca de 2014. A Sabesp manteve a sobretaxa para quem consumir acima da média, mas dificultou há pouco a obtenção de bônus por quem economizar. Aumentar a retirada de água do Cantareira implicará elevar o consumo e, por consequência, recompor a receita da empresa. Beneficiária imediata dessa aposta, a população será sócia majoritária de seus riscos. editoriais@uol.com.br
2016-01-22
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1732211-nova-aposta-da-sabesp.shtml
Mais segurança para as motos
De tempos em tempos, a mídia foca a grave questão do percentual de acidentes graves que envolvem motocicletas em São Paulo, mas também em pequenas cidades no Norte, no Nordeste e outras regiões. Estatísticas comprovam que um percentual elevado dos traumas que adentram em prontos-socorros tem origem em acidentes com motos. Uma proporção elevada desses acidentes resulta em morte ou perda de capacidade de trabalho, dor da perda de familiares, dificuldades de sobrevivência para famílias e desperdício de vidas produtivas. Quando um jovem morre, todo o gasto social para sua educação se perde. É claro que automóveis também causam acidentes graves, mas a relação entre acidentes e frota é inegavelmente desfavorável às motos. Diante deste quadro, cabem duas reflexões: o IPI é menor para motos que para bicicletas. É possível comprar uma moto com prestação mensal menor que o uso mensal do transporte público. Não parece estranho que ao mesmo tempo em que os governos municipais apoiem o uso da bicicleta, o imposto federal seja maior para este meio de transporte que para as motos? Não parece inconsistente que os preços relativos tornem mais barato pagar uma moto que usar o transporte público? No limite, melhor dar uma moto para cada habitante do que construir metrô. Ainda mais se lembrarmos que o transporte público é parcialmente subsidiado. Por um lado, bilhões públicos são gastos para oferecer ônibus e trens para a população, de outro, um "concorrente" de mobilidade sobrecarrega as vias públicas e os hospitais, sem que nada seja feito a respeito. Os próprios órgãos estatais reconhecem a impossibilidade de fiscalizar o uso das motos. Compare-se o número de radares capazes de captar as motos com o número de radares fixos em São Paulo. Nesse contexto, deve ser ressaltado o programa de redução de acidentes com motos preparado pelo Denatran (Departamento Nacional de Trânsito). O trabalho informa que as motos são 27% da frota nacional de veículos e que o número de motos cresceu 30% de 2011 a 2014. E que no período de 2010 a 2014, acidentes com motos foram 74% dos sinistros. Ademais, dados de 2012 e 2013 mostram que resultaram em 27% das mortes no trânsito. Mais um dado surpreendente: em 11 Estados o número de condutores habilitados é significativamente menor que a frota de motos! Entre outras proposições, estão sugeridas a implantação de módulo específico no curso teórico de condutores, uso de simulador para duas rodas e campanhas publicitárias. Quanto a itens de segurança, é mister a comparação com regulamentações internacionais, com vistas a poluição do ar e sonora (poluição também mata, inclusive não condutores, e sobrecarrega o sistema de saúde e previdenciário), alças para passageiros, tanque de combustível, espelhos retrovisores, sinalização e iluminação, saliências externas etc. A exigência de freios ABS, independentemente da cilindrada, a proibição e fiscalização de alterações nos veículos e o posicionamento das identificações dianteira e traseira são relevantes. Nas vias, sugere-se limitações ao uso de tachas. A circulação entre automóveis e o acesso de motos de pequena cilindrada a vias de tráfego rápido são questões fulcrais a serem enfrentadas. O fato é que, enquanto não houver foco e vontade política para e enfrentar a questão da segurança da circulação das motos, vamos continuar a assistir diariamente ao drama humano da morte, à sobrecarga do sistema público de saúde e previdenciário e ao desperdício do investimento público feito em pessoas. TELMO GIOLITO PORTO é professor doutor da Escola Politécnica da USP * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-21
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1731675-mais-seguranca-para-as-motos.shtml
O desafio da reciclagem
A Prefeitura de São Paulo vai universalizar a coleta seletiva de resíduos secos em toda a cidade a partir de fevereiro, contratando as cooperativas de catadores para também realizarem esse serviço já feito parcialmente pelas concessionárias. A gestão Haddad também implantou as duas centrais mecanizadas de triagem com capacidade conjunta de 500 toneladas/dia, somando-as ao trabalho desenvolvido pelas 21 cooperativas conveniadas, duplicando (de 40 mil toneladas em 2013 para 83 mil em 2015) o volume de reciclagem de resíduos secos. A prefeitura dá passos concretos para construir novos galpões, estruturar melhor as cooperativas e auxiliá-las na gestão por meio de convênios já assinados com o BNDES, que investirá aqui R$ 42 milhões em recursos não reembolsáveis, e com o Ministério do Trabalho, no valor de R$ 5 milhões. A política de redução de uso de sacolas plásticas distribuídas pelo comércio, outra iniciativa da atual gestão, também teve excelente resultado. Nosso compromisso com a reciclagem foi assumido na campanha de 2012 e materializado no Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos aprovado com ampla participação social. Enquanto dava passos importantes, a cidade aguardava a finalização do acordo setorial que implementaria a logística reversa dos resíduos de embalagens recicláveis, com definição de metodologia das empresas privadas na coleta, reciclagem e reutilização dos mesmos pela indústria, interrompendo a destinação final nos aterros. Esperávamos que o acordo, enfim assinado em novembro último pelo Ministério do Meio Ambiente e entidades do setor, cinco anos após a sanção da lei, aliviasse os municípios de todo o peso de investirem sozinhos nesses serviços. Infelizmente, o conteúdo do acordo não representou a melhor solução e frustrou principalmente as entidades representativas dos municípios, entre elas a Frente Nacional de Prefeitos. As entidades não se sentiram devidamente ouvidas no processo, mesmo sendo os municípios os titulares dos serviços de limpeza urbana, e decidiram notificar o Ministério do Meio Ambiente, questionando a metodologia aprovada. O acordo setorial estabeleceu o compromisso de as empresas privadas trabalharem nas 12 capitais que foram sedes da última Copa do Mundo, recolhendo 3,8 mil toneladas por dia dos seus resíduos. As empresas também teriam, entre outras funções, que triplicar as cooperativas e os postos de entrega voluntária num período de 24 meses. Todavia, não está claro como isso será feito. Irão implantar estruturas paralelas às que os municípios já instalaram ou se somarão a elas? As ações de capacitação das cooperativas de catadores em vigor serão aproveitadas? Os pontos de entrega poderão incluir os ecopontos implantados por muitas prefeituras? Além de esclarecer esses pontos, é fundamental agora restabelecer o diálogo entre os gestores públicos municipais e o setor privado. É hora de mostrarmos nossa preocupação com o futuro do planeta. Só trabalhando de maneira conjunta teremos garantia de sucesso. SIMÃO PEDRO CHIOVETTI, 51, mestre em sociologia política, é secretário municipal de Serviços de São Paulo * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-21
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1731746-o-desafio-da-reciclagem.shtml
A saúde no tribunal
Estudo da USP mostrou que 92,4% das decisões judiciais envolvendo planos de saúde da cidade de São Paulo favoreceram o paciente. Em 88,1% dos casos, o usuário teve sua demanda atendida na íntegra. As operadoras tiveram sucesso em apenas 7,4% dos processos. No restante, o êxito do querelante foi parcial. O trabalho avaliou 4.059 decisões de segunda instância proferidas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo acerca de planos coletivos de 2013 a 2014. Quase a metade dos casos diz respeito a exclusões de cobertura. Para Mário Scheffer, coordenador do estudo, existem lacunas na lei, o que dá ensejo à judicialização. O paciente entende que tem sempre direito ao melhor tratamento disponível, enquanto as operadoras se fiam na literalidade do contrato e nas listas de procedimentos obrigatórios da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar) para negar a cobertura. Os números mostram que a Justiça tem favorecido os pacientes, ao entender que a relação entre usuários e planos não se rege apenas pelo princípio do "pacta sunt servanda" (acordos devem ser cumpridos): também está sujeita às proteções previstas no Código de Defesa do Consumidor e na jurisprudência das cortes. Não haveria problema com essa interpretação mais generosa do Judiciário, desde que os usuários não se importassem em pagar o preço. Se mais clientes recebem tratamentos mais caros, ocorre um aumento de custos das operadoras que, mais cedo ou mais tarde, serão repassados a usuários e empresas. Não surpreende que 34% dos processos contra planos digam respeito a valores de mensalidades, nos quais a Justiça também tem favorecido os usuários. Ao fim e ao cabo, a realidade se impõe. As mensalidades rotineiramente aumentam num ritmo que supera o da inflação oficial. Em 2015, o encarecimento dos planos de saúde chegou a 12,2%, maior taxa em nove anos e acima dos 10,7% do IPCA, índice de referência para as metas do Banco Central. Dito isso, vale notar que a judicialização é um custo em princípio evitável. Uma melhor regulação pela agência federal do setor, ao lado de um maior comedimento da Justiça, e a ampliação dos canais de mediação do próprio órgão regulador seriam muito bem-vindas. Elas poupariam a já salgada inflação médica de custos que em nada se relacionam à saúde, como honorários advocatícios e indenizações por danos morais. No final, recorde-se, quem paga esses extras são os consumidores. editoriais@uol.com.br
2016-01-21
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1731759-a-saude-no-tribunal.shtml
Projeto irrefletido
Há algo de simpático, à primeira vista, na proposta apresentada pelo prefeito Fernando Haddad (PT) de eleições diretas para as subprefeituras de São Paulo. Predomina, como se sabe, a prática de nomeações puramente fisiológicas para tais cargos. Com 32 administrações regionais à sua disposição, um prefeito tanto pode ampliar sua influência pessoal, desvirtuando a intenção descentralizadora do sistema, como atender ao caciquismo dos vereadores de sua base partidária. Em tese ao menos, o mecanismo proporcionaria vantagens análogas às do voto distrital, que permite ao eleitor escrutinar mais de perto a atuação do eleito. Não são poucas, entretanto, as dúvidas jurídicas e dificuldades práticas que se antepõem à ideia –e a provável resistência dos vereadores à aprovação do projeto nem é a mais importante delas. As atribuições de um subprefeito estão centradas em tarefas miúdas de zeladoria de bairros, como varrição e poda de árvores. Seu grau de autonomia não faz crer que suas decisões tenham de fato o caráter político que justifica um mandato eletivo. Pela lei em vigor, de 2002, os subprefeitos têm a função de "representar política e administrativamente a prefeitura na região". Esse ponto teria de ser alterado –coisa que o projeto de Haddad desdenhou de fazer. Segundo a terminologia um tanto vaga da legislação, cumpre aos subprefeitos coordenar esforços "para elevar índices de qualidade de vida, observadas as prioridades e diretrizes estabelecidas pelo governo municipal". Devem ainda elaborar e executar seus orçamentos. A prevalecer a ideia de eleições para subprefeito, estaríamos diante de uma situação curiosa: a de uma autoridade legitimamente constituída para tarefas como as referidas acima, sem ninguém com mandato para fiscalizá-la. O prefeito não poderia demitir um subprefeito consagrado pelas urnas, e este se encontraria sem um Legislativo local para discutir seu orçamento ou lhe fazer oposição. Como fazer, ademais, com que as expectativas e programas (sem nada falar dos gastos de campanha) criados numa eleição paroquial se conciliem com a política mais ampla –em transportes, saúde, educação– de um município em que tudo se interliga? A proposta, no mínimo, teria de ser reelaborada e discutida. Tal como está, num projeto que apenas determina o mecanismo das eleições, o que o prefeito Haddad apresentou à Câmara se aproxima mais de um gesto publicitário do que de uma tentativa concreta de mudar a política municipal e seus sempre péssimos costumes. editoriais@uol.com.br
2016-01-21
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1731760-projeto-irrefletido.shtml
Por que Haddad não desiste de concorrer também?, escreve leitor
Por que Fernando Haddad não segue o exemplo de Datena e desiste de ser candidato em São Paulo? Seria o melhor presente para a cidade no seu aniversário de 462 anos, que serão completados na próxima semana. MARCELO CIOTI (Atibaia, SP) * Se um dos motivos de José Luiz Datena deixar de ser candidato a prefeito de São Paulo é a corrupção de seu partido ("Datena desiste de concorrer à Prefeitura de São Paulo", "Poder", 19/1), ele jamais será político no Brasil. Jamais ajudará também a nossa capital, pois hoje carecemos de um líder de caráter para nos ajudar. RENATO GIOVANINI (Porto Ferreira, SP) * PARTICIPAÇÃO Os leitores podem colaborar com o conteúdo da Folha enviando notícias, fotos e vídeos (de acontecimentos ou comentários) que sejam relevantes no Brasil e no mundo. Para isso, basta acessar Envie sua Notícia ou enviar mensagem para leitor@uol.com.br
2016-01-20
paineldoleitor
Painel do Leitor
http://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2016/01/1731344-por-que-haddad-nao-desiste-de-concorrer-tambem-escreve-leitor.shtml
Marina, a esfinge
Predominam ainda nas manifestações de Marina Silva (Rede Sustentabilidade), como exemplifica entrevista publicada por esta Folha na segunda-feira (18), as abstrações e os argumentos especiosos. A ex-senadora e ex-ministra do Meio Ambiente já vai incorporando a seu discurso, porém, algumas frases lapidares que reforçam sua condição –não declarada nem assumida– de candidata de plantão à Presidência da República. "Impeachment não se fabrica, ele se explicita em função dos fatos que o justificam", diz Marina Silva. "Não se muda o presidente da República simplesmente porque a gente discorda dele." A "sustentabilista progressista", como se define, coleciona razões para se opor à presidente Dilma Rousseff (PT). Viviam às turras quando esta era ministra proeminente do governo Luiz Inácio Lula da Silva; depois, adversárias no pleito de 2014, Marina, concorrendo pelo PSB, foi alvo de canhoneio impiedoso da propaganda petista. A ex-senadora favorece o processo no Tribunal Superior Eleitoral contra a chapa de Dilma, que no seu entender deveria ser acelerado. Descarta a via do impeachment não para preservar a presidente, e sim para vê-la apeada do Planalto na companhia do vice, Michel Temer (PMDB). Essa saída, como se sabe, implicaria convocar novas eleições. Ainda que Marina se esforce por desdenhar a eventual candidatura, objetivamente sua preferência processual aproximaria a perspectiva de lançar-se pela terceira vez na disputa presidencial. Tal candidatura seria inevitável para a Rede, e aí reside o paradoxo. Com sua indefinição ideológica, que o partido pretende vender como inovação política e organizacional (tudo decidir "em rede", o que quer que isso signifique), a agremiação depende de maneira visceral da popularidade de Marina para manter-se no proscênio. Sob o pretexto de que ainda falta construir um programa desde a base, a Rede até aqui se esquivou de apresentar propostas consistentes para os rumos que daria ao governo e ao Brasil. Numa situação tão grave de deterioração política e econômica quanto a presente, isso equivale a uma omissão. O cerne ambientalista da noção de sustentabilidade, estampa inconfundível da agremiação, constitui base estreita demais para fundamentar um projeto de país. Se Marina acredita que pode equilibrar-se sobre ela para vingar como alternativa à polarização PT x PSDB, a realidade cruenta do país do PMDB se encarregará de decepcioná-la mais uma vez. editoriais@uol.com.br
2016-01-20
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1731337-marina-a-esfinge.shtml
O choro de Obama
A cena é rara na política: no início de seu último ano na Presidência, Barack Obama anuncia medidas para um maior controle de armas de fogo, enfatizando que em nenhum outro país avançado do mundo a violência é tão frequente quanto nos Estados Unidos. E reconhece: "De alguma forma nos tornamos insensíveis e começamos a pensar que isso é normal". No mesmo pronunciamento, Obama, referindo-se aos massacres ocorridos em Santa Barbara, Columbine e Newtown, exclama: "Toda vez em que penso naquelas crianças eu sinto raiva". Lágrimas lhe caem dos olhos... Assim como lá, onde a violência armada é presente "nas ruas de Chicago todos os dias", aqui são fartas e diárias as notícias de mortes causadas por armas de fogo em São Paulo, no Rio ou em qualquer outro conglomerado urbano. Se na terra do Tio Sam a resistência maior para mudar esse quadro vem do Congresso, aqui parece vir da própria população, que, no referendo de 2005, rejeitou proposta de proibição da comercialização de armas de fogo e munições. Não bastasse, a assim chamada "bancada da bala" animou-se a facilitar o acesso de civis às armas de fogo. Um projeto de lei, na iminência de ser votado no Plenário da Câmara dos Deputados, propõe a redução da idade mínima para a compra de armas de 25 para 21 anos e o aumento da validade do porte de 3 para 10 anos. O fato é que as políticas públicas não têm gerado os desejados efeitos nessa questão. De acordo com o Mapa da Violência de 2014, 56.337 pessoas foram assassinadas em 2012. Entre 1980 e 2012, o número alcançou a astronômica marca de 1,2 milhão de pessoas. No levantamento do ano anterior, o coordenador da pesquisa, o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, enfatizou que são vários os fatores que concorrem para a explicação de nossos elevados níveis de mortalidade por armas de fogo. Entre eles estão a facilidade de acesso às armas; a cultura da violência do brasileiro, com alta proporção de assassinatos por motivos fúteis (brigas, ciúmes, conflitos entre vizinhos, discussões no trânsito); e a impunidade. O índice de elucidação de homicídios é baixíssimo no Brasil: estima-se que varie entre 5% e 8%, enquanto é de 65% nos Estados Unidos, de 80% na França e de 90% no Reino Unido. Esses números, e a percepção da população sobre a violência, parecem não causar mais do que os írritos lamentos e brados ouvidos nas ruas, nas conversas, nas entrevistas e nos programas de TV, muitos destes, aliás, responsáveis pela difusão da cultura do ódio e da solução violenta dos conflitos. Será, de fato, que perdemos a capacidade de indignação diante dessa multidão de mortos todos os anos, de jovens imberbes portando armas de fogo pelas ruas dos grandes centros urbanos, de notícias de civis sendo mortos em desastradas ações policiais, de balas perdidas tirando a vida de crianças que brincam em frente de suas casas? Ao que tudo indica, estamos entorpecidos por essa realidade e, como lamenta Obama, começamos a pensar que isso tudo é normal. Se for assim, resta-nos chorar, não o choro indignado de Obama, mas o choro inútil dos conformados; ou reagir e tentar construir um outro futuro, ainda que isso pareça uma utopia. Quem o diz é o filósofo Slavoj Zizek: "Isso implica ações corajosas, que, atentas ao retrovisor da história, mirem o horizonte descortinado à frente de nosso tempo. É o que se espera de quem, nos limites de seu poder, tem a possibilidade de definir as coordenadas do futuro". ROGERIO SCHIETTI CRUZ, 53, doutor e mestre em direito processual pela USP, é ministro do Superior Tribunal de Justiça * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-20
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1731328-o-choro-de-obama.shtml
Operar frota de ônibus custa caro e não é tarefa fácil
É notório que as recentes manifestações organizadas pelo MPL (Movimento Passe Livre), amplamente noticiadas pelos meios de comunicação, têm afetado o dia a dia do cidadão que trabalha e circula pela cidade. O momento propicia uma boa oportunidade para revermos os principais conceitos e as práticas que embasam a prestação do serviço de transporte por ônibus na cidade de São Paulo. O sistema de transporte urbano, sob responsabilidade da São Paulo Transporte S/A - SPTrans, é operado por, aproximadamente, 14 mil veículos, de vários tipos e tamanhos. Quase 8.000 ônibus pertencem às 14 empresas concessionárias e outros 6.000 são propriedades das 12 empresas permissionárias (antigas cooperativas). Essa frota atua em mais de 1.400 linhas, realiza cerca de 10 milhões de viagens e percorre quase 3 milhões de quilômetros todos os dias. Como regra básica da relação público-privada, o poder público demanda a quantidade de serviço, especifica a qualidade desejada e oferece as condições em que a operação será realizada. Desde 1991, a operação dos ônibus em São Paulo tem uma particularidade -todo o dinheiro arrecadado com a venda de bilhetes é depositado numa conta bancária, administrada pela SPTrans. Esse recurso é utilizado, posteriormente, para o pagamento dos serviços prestados pelas empresas. Em outras palavras, a tarifa cobrada do usuário não vai diretamente para o caixa das empresas. Ela é parte dos recursos utilizados para pagar os serviços prestados. Atualmente, a remuneração, por passageiro, das empresas pelo serviço prestado varia de R$ 1,55 a R$ 3,31. Esses valores são inferiores à tarifa vigente, R$ 3,80. O custo dos serviços de transporte por ônibus, em 2015, foi de aproximadamente R$ 7 bilhões. O poder público arrecadou R$ 5,1 bilhões com o pagamento das passagens e aportou R$ 1,9 bilhão, a título de subsídio, para cobrir as gratuidades. Vale destacar que a Prefeitura de São Paulo subsidia quase metade dos usuários do sistema, pessoas que usam os ônibus sem pagar ou pagando metade da tarifa. As empresas operadoras não são subsidiadas. Considerando o valor atual de todos os insumos e das despesas com serviços acessórios necessários à frota de ônibus que circula em São Paulo, o custo total do passageiro pagante deveria ser de R$ 5,71. O resultado da auditoria realizada pela empresa Ernest & Young, no final de 2014, mostrou que o cálculo do custo do serviço de transporte por ônibus é uma questão de engenharia e de economia, com valores que refletem a realidade dos fatos e das condições operacionais. Os levantamentos e trabalhos realizados serviram também para enterrar preconceitos, ajudando a desmistificar a chamada "caixa-preta" do sistema de ônibus de São Paulo. Em resumo, operar uma frota de 14 mil ônibus custa caro e não é tarefa fácil. Torna-se ainda mais difícil realizar esse trabalho quando há um grande desconhecimento sobre conceitos, regras, práticas e procedimentos adotados na prestação dos serviços. FRANCISCO CHRISTOVAM, 62, é presidente do SPUrbanuss - Sindicato das Empresas de Transporte Coletivo Urbano de Passageiros de São Paulo. Presidiu a SPTrans (empresa que gere o transporte municipal) de 1993 a 1999 * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-20
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1731330-operar-frota-de-onibus-custa-caro-e-nao-e-tarefa-facil.shtml
Estudante de Direito critica artigo de opositor venezuelano
O artigo de Julio Borges, opositor de Nicolas Maduro, surpreende pela hipocrisia: seu partido, o Primeiro Justiça, teve participação na tentativa de golpe de 2002 contra o governo democrático de Chávez. Acreditar que a oposição venezuelana seja democrática é fruto de inocência ou de interesses escusos. O que os incomoda não é o suposto autoritarismo de Maduro, mas o fato de o petróleo ser usado para melhorar a vida da população mais pobre. Gabriel Beré Motta, estudante de Direito da USP (São Paulo, SP) * PARTICIPAÇÃO Os leitores podem colaborar com o conteúdo da Folha enviando notícias, fotos e vídeos (de acontecimentos ou comentários) que sejam relevantes no Brasil e no mundo. Para isso, basta acessar Envie sua Notícia ou enviar mensagem para leitor@uol.com.br
2016-01-20
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Painel do Leitor
http://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2016/01/1731342-estudante-de-direito-critica-cartigo-de-opositor-venezuelano.shtml
Leitores elogiam artigo sobre instituições que tratam saúde mental
O artigo de Antonio Lancetti, Maria Rita Kehl e Aldo Zaiden apresenta fatos contundentes sobre o risco que se corre ao substituir a competência pelo leilão arbitrário de cargos, que culminou na indicação de Wurch Duarte Filho, ex-dirigente de "um dos piores porões da psiquiatria manicomial" ("Repetição e desejo na saúde mental", Tendências/Debates, 18/1). Que a força do desejo dos trabalhadores e usuários dos equipamentos de saúde mental possa barrar sua desmontagem. Renata Udler Cromberg, psicanalista (São Paulo, SP) * Com todos os avanços que a reforma psiquiátrica conseguiu alcançar, a mudança de comando da saúde mental do governo nos dá a nítida sensação de estarmos evoluindo de cavalo para burro. João Antonio Micheletti, médico (Santos, SP) * PARTICIPAÇÃO Os leitores podem colaborar com o conteúdo da Folha enviando notícias, fotos e vídeos (de acontecimentos ou comentários) que sejam relevantes no Brasil e no mundo. Para isso, basta acessar Envie sua Notícia ou enviar mensagem para leitor@uol.com.br
2016-01-20
paineldoleitor
Painel do Leitor
http://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2016/01/1731347-leitores-elogiam-artigo-sobre-instituicoes-que-tratam-saude-mental.shtml
Por quem os sinos dobram?
Tudo indica que o Banco Central (BC) deflagrará um novo ciclo de alta da Selic nesta quarta (20). O IPCA encerrou 2015 a 10,7%, muito acima do teto da meta (6,5%). Esse é um resultado lamentável, que corrói a renda dos brasileiros e afugenta investimentos no país. Mas é preciso ter claro: um novo galope dos juros só reforçará a desconfiança que alimenta a inflação. O aumento da Selic eleva o gasto público: mais deficit, mais dívida. Além disso, os juros maiores aprofundam a recessão, desfazendo a esperança de reduzir ou mesmo de estabilizar a relação dívida/PIB. Por último, a arrecadação do governo diminui, em razão do efeito da alta dos juros sobre a produção. Assim, a dívida bruta –de 65,1% do PIB (nov/2015), ante 57,2% do PIB (dez/2014)– vai crescer ainda mais, chegando a 72% ao final deste ano. A percepção de maior fragilidade fiscal aumenta o risco-Brasil e reforça a elevação do preço do dólar, o que alimenta a inflação. É um quadro de dominância fiscal. A diretoria do BC ignora os efeitos fiscais de suas políticas. O governo busca (sem sucesso algum) gerar superavit primário (receitas menos despesas, exclusive juros), mas esconde sob o tapete o custo elevadíssimo do pagamento de juros sobre a dívida. Usou o lucro virtual com a valorização em reais das reservas cambiais para pagar as pedaladas, no apagar das luzes de 2015, mas continua a ignorar as despesas com juros geradas pelo mesmo BC. Segundo estimam, nos bastidores, diretores do BC e, às claras, analistas do mercado, a Selic subirá de 14,25% para 15,25% até o final de 2016. Essa escalada elevará a despesa pública em, no mínimo, R$ 15 bilhões. Pior, isso não domará a inflação. Mesmo em recessão, amargaremos uma elevação do IPCA superior a 7,5% em 2016, não obstante o esgotamento dos reajustes dos preços administrados. A abertura do IPCA mostra que o aumento da inflação entre 2014 e 2015 resultou do forte reajuste desses preços (gasolina, energia elétrica, etc), além da disparada do dólar e dos choques de oferta. Em 2014, a inflação dos administrados foi de 5,3%, saltando a 18,1% em 2015, o que explica cerca de dois terços do aumento da inflação do período (de 6,4% para 10,7%). Os juros tornaram-se inócuos no combate à inflação, mas o BC continua a acreditar que a sangria é mais eficiente para baixar a febre do que um comprimido de paracetamol. A maior fragilidade fiscal decorrente dessa política monetária vai dar, via desvalorização do real, sua contribuição ao IPCA deste ano. São claros os efeitos da depressão mais séria desde a crise de 1929. A destruição de empregos alcançará 3,3 milhões de vagas no biênio 2015/2016, e o PIB despencará 7% na soma do período. Então, para que turbinar ainda mais os juros? Há três hipóteses não excludentes para entender o erro que o BC está prestes a cometer: (a) não tem o diagnóstico correto e, por isso, aplica remédios que só prolongarão a estadia do paciente na UTI; (b) pretende mostrar que é durão e manda mais do que o Ministério da Fazenda; (c) visa sancionar os juros já considerados como certos pelo mercado depois do indevido falatório de parte da diretoria do banco. Não me perguntem por quem aqueles sinos dobram. Só sei que, nesse jogo insensato, submergem os interesses da coletividade: o crescimento econômico e a estabilidade, bases para a construção de uma sociedade civilizada e justa. FELIPE SALTO, 28, economista, é professor na pós-graduação executiva na FGV/EESP - Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getulio Vargas. Mestre em administração pública, é assessor parlamentar do senador José Serra (PSDB) * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-19
opiniao
Opinião
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Dez anos da Defensoria Pública de São Paulo
O mês de janeiro de 2016 marca uma década da criação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, instituição incumbida de prestar assistência jurídica integral e gratuita a quem não pode pagar por um advogado. Assim, são dez anos atendendo a população carente do Estado, seja por meio da defesa judicial de direitos individuais ou coletivos, de métodos alternativos de solução de conflitos, do atendimento multidisciplinar ou ainda das iniciativas de educação sobre direitos. O modelo de Defensoria Pública é fruto do reconhecimento de que existem diversos obstáculos à efetivação de direitos e garantias presentes nas leis, sobretudo para a população mais pobre, razão pela qual a instituição é prevista como instrumento de acesso à justiça pela Constituição Federal de 1988. Em São Paulo, entretanto, Defensoria Pública tornou-se realidade apenas em 2006, após uma ampla mobilização de centenas de entidades da sociedade civil. Apesar das dificuldades e da longa espera, a Defensoria Pública paulista nasceu com um desenho institucional inovador e democrático, dispondo de autonomia administrativa e funcional, além de mecanismos avançados de participação popular. Nesses dez anos, a Defensoria Pública de São Paulo cresceu, ampliou seus serviços e se consolidou como instituição essencial do sistema de Justiça. Foram cerca de 10 milhões de audiências e atendimentos à população nesse período, dando concretude jurídica a demandas sociais históricas, além de milhares de acordos extrajudiciais e conciliações realizadas. Tamanha relevância também vem sendo reconhecida em recentes inovações legislativas e julgamentos do Supremo Tribunal Federal, cabendo destacar a aprovação em 2014 da Emenda Constitucional nº 80, que classifica a Defensoria Pública como expressão do regime democrático e determina que no prazo de oito anos haja defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais do país. Entretanto, a despeito desses importantes avanços, a Defensoria Pública paulista ainda vivencia dificuldades, como a quantidade insuficiente de defensores públicos e a escassez de recursos orçamentários, em especial se comparado às demais instituições do sistema de Justiça. Nesse sentido, principalmente em momento de grave crise econômica, que acarreta sensível aumento na procura pelos serviços da instituição e drástica redução do fundo que a custeia, o direito fundamental ao acesso à justiça deve ser garantido mediante o necessário aporte de recursos para que, nos moldes previstos na Constituição Federal, a Defensoria Pública tenha condições sustentáveis de continuar prestando assistência jurídica gratuita diretamente, ou por meio de entidades com ela conveniadas, a toda população necessitada do Estado de São Paulo. Mas se ainda restam muitos desafios pela frente, não há dúvidas de que a Defensoria Pública paulista segue no caminho certo e é hoje uma referência nacional. E é o seu permanente compromisso com a população mais pobre que deve trazer força e motivação para seguir avançando nos anos que virão, continuando a contribuir com o combate a todas as formas de opressão, com a redução das desigualdades e na construção de uma sociedade livre, justa e solidária. RAFAEL VALLE VERNASCHI, 36, é defensor público-geral do Estado de São Paulo * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-19
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Opinião
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Ajuste à paulista
A longa sucessão de governos tucanos em São Paulo começou por um bem-sucedido programa de reequilíbrio entre receitas e despesas promovido por Mário Covas, com auxílio decisivo do governo federal, nos anos 1990. Duas décadas depois, a conjuntura de privação orçamentária do país não poupa o Estado mais rico da Federação. É o que mostra a decisão do governador Geraldo Alckmin de bloquear R$ 6,9 bilhões em despesas autorizadas para 2016, com perdas para o custeio da máquina administrativa e, inevitavelmente, para as obras de infraestrutura e outros investimentos. Trata-se de fatia não desprezível dos dispêndios originalmente programados, de R$ 207 bilhões –ainda mais porque esse total inclui cerca de R$ 80 bilhões em gastos com o funcionalismo estadual, não sujeitos a cortes. A medida, adotada por meio de decreto publicado na sexta-feira (15), decorre da queda da arrecadação tributária, consequência, por sua vez, da crise econômica que atinge o país em geral e o parque industrial paulista em particular. De janeiro a novembro de 2015, segundo dados do governo estadual, a receita com impostos, taxas e contribuições teve recuo de 4,7% em comparação com o período correspondente de 2014, descontada a inflação. Como o alívio da recessão não está à vista, não há razões para esperar mais dinheiro em caixa neste ano. O governo do PSDB também tem sua parcela de responsabilidade pelo atual quadro de restrições, em especial por ter aderido à ofensiva desencadeada pela administração federal, no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff (PT), para estimular investimentos dos Estados por meio de financiamentos como os do BNDES. Tal política, associada à piora da arrecadação, impulsionou a alta do endividamento paulista, que chegou a 154% da receita anual em agosto, pelo dado mais recente à disposição. Dois anos antes, essa proporção se limitava a 127%. Pelos cálculos do Banco Central, o governo estadual fechou no vermelho o ano da reeleição de Alckmin e permanecia em deficit primário (ou seja, mesmo sem considerar os pagamentos de sua dívida) no período de 12 meses encerrado em junho de 2015. A penúria de São Paulo é menos dramática que as da União e da maior parte dos Estados, mas parece significativo que a gestão tucana tenha recorrido ao aumento de impostos que o partido condena na esfera federal. Sem a elevação do ICMS sobre cerveja e fumo, o corte de gastos teria sido mais duro. editoriais@uol.com.br
2016-01-19
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1730948-ajuste-a-paulista.shtml
Uma nova Venezuela
O Parlamento venezuelano eleito em dezembro, com uma nova maioria dos partidos de oposição, representa uma vitória do povo, da vontade de mudar, dos desejos de milhões de venezuelanos que disseram: "basta!". Representa igualmente a vitória da democracia, do voto consciente que sempre procura um caminho para seguir contra as aventuras, os atalhos e a violência. O Poder Legislativo juramentado na Venezuela tem pela frente o desafio e o compromisso de conseguir um governo das leis, de implementar nosso pacto fundamental e de afastar a arbitrariedade e o autoritarismo do exercício do poder. Além disso, temos a enorme missão de buscar soluções para a crise que hoje assola nosso país. Como chefe da bancada da Mudança e da Unidade, apresentei à população uma agenda de leis que traçamos com o objetivo de deslanchar imediatamente as mudanças ansiadas. Em primeiro lugar, vamos propor uma lei de anistia e reconciliação para os exilados, os presos políticos e os cassados. Que nunca mais tenhamos em nosso país presos desterrados por seu modo de pensar. Em seguida, aprovaremos uma lei que favoreça os beneficiários da Missão Moradia e os milhões de venezuelanos que vivem em nossas favelas, dando-lhes títulos de propriedade, para que não sejam apenas ocupantes, mas proprietários, com os direitos que isso implica. Para voltarmos a ter comida produzida na Venezuela, e desse modo combatermos a escassez e a inflação que nos oprimem, vamos promover uma lei de produção, com incentivos para aumentar a força produtiva nacional. Finalmente, é necessário e fundamental dar apoio a pensionistas e aposentados, com uma lei que promova acesso a alimentos e remédios. Essas são algumas das iniciativas que vamos adiantar no curto prazo para começar a buscar soluções reais para a crise que vivemos depois de anos de desacertos, controles, indiferença e corrupção. Uma crise que deixa claro que aqueles que governaram nunca procuraram libertar o povo da pobreza, mas sim construir um sistema de dominação e dependência que reprimisse a consciência das pessoas. O Executivo teve dois anos para fazer as reformas necessárias, mas não as fez. Mais do que decretos de emergência econômica, o país necessita, primordialmente, de uma direção clara para a economia. É um compromisso desta gestão parlamentar ser promotora da dignidade do povo venezuelano. A miséria da nação não deve servir de alimento a nenhum projeto político. Apostamos em uma Venezuela justa e inclusiva, onde se premie o esforço e se puna a corrupção. Um país que tenha capacidade para o consenso. Na Venezuela de nossos filhos, cada discordância deve ser motivo de reconciliação. Dissemos claramente aos deputados do oficialismo que a Assembleia Nacional será conduzida de maneira democrática, com base na Constituição. Embora tenhamos diferenças políticas profundas, nós, a bancada majoritária da Mudança e da Unidade, somos apenas adversários políticos do oficialismo, não inimigos de guerra. O povo venezuelano está à espera de soluções. Estamos engajados e ansiosos para construir esse novo país tão sonhado. Na agenda da luta, vamos vencer democraticamente um governo que já demonstrou não ser democrático. Prosseguiremos construindo uma maioria com nosso líder, Henrique Capriles Radonski, para conduzir a Venezuela ao progresso e à paz por meio do caminho pacífico e institucional. JULIO BORGES, 46, deputado venezuelano, é chefe da bancada da Mudança e da Unidade na Assembleia Nacional do país. É fundador e coordenador nacional do Primeiro Justiça, o principal partido de oposição da Venezuela. Tradução de CLARA ALLAIN * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-19
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Repetição e desejo na saúde mental
A nomeação do psiquiatra Valencius Wurch Duarte Filho para a Coordenação Nacional de Saúde Mental, do Ministério da Saúde, expressa o retorno às tenebrosas páginas da psiquiatria brasileira. Quem poderia esperar que o governo de uma ex-presa política, torturada nos porões da ditadura, nomearia um dirigente de um dos piores porões da psiquiatria manicomial para coordenar a política de saúde mental? Duarte Filho foi diretor técnico da Casa de Saúde Dr. Eiras, fechada em 2012, por intervenção federal, depois que a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados constatou graves violações de direitos humanos no manicômio. Desde os anos 1970, os coordenadores de saúde mental estiveram alinhados com a reforma psiquiátrica e a OMS (Organização Mundial da Saúde). Por que trocar precisamente o que funciona melhor em saúde mental? Sob a gestão de Roberto Tykanori, foi consolidada a Rede Nacional de Saúde Mental com 2.200 Centros de Atenção Psicossociais, muitos deles oferecendo hospitalidade intensiva por 24 horas, articulados a emergências psiquiátricas, unidades básicas de saúde, residências terapêuticas e outras formas efetivas de reabilitação. Foram inaugurados, pela primeira vez, eficientes programas preventivos ao uso problemático de drogas, que atraíram a atenção da OMS, Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) e UNODC (órgão das Nações Unidas para drogas e crime). Nos últimos 25 anos, mais de 60 mil leitos manicomiais no Brasil foram desativados. Milhares de pessoas que apodreciam em hospícios, sujeitas a torturas e maus-tratos, foram, com enorme trabalho, resgatadas para se beneficiarem de moradias terapêuticas e outras formas de cuidados, em liberdade. A reforma psiquiátrica brasileira foi considerada um exemplo pela OMS. A impressionante mobilização do movimento da luta antimanicomial no Brasil vem dando novas provas de sua força desde 14 dezembro, quando foi anunciada a troca de Tykanori por Duarte Filho. No mesmo dia ocorreram atos contra a nomeação em 600 municípios do país. A sala da Coordenação da Saúde Mental do Ministério da Saúde foi ocupada por integrantes do movimento. Na última quinta (14), uma marcha de mil psicólogos, psiquiatras, enfermeiros, usuários e familiares protagonizou um belíssimo ato em Brasília. Em 18 de maio é celebrado o dia da luta antimanicomial. Em 2016, todo dia 18 será dia de luta contra os manicômios. Por onde quer que vá o ministro (Piauí, Alagoas, Rio de Janeiro, Santos, Natal), o movimento aparece para protestar. A Associação de Juízes para a Democracia lançou nota de apoio aos ocupantes do Ministério da Saúde, milhares de professores universitários assinaram carta de repúdio e diversas entidades estão se somando ao movimento no Brasil e em outros países. Professores e personalidades da área psiquiátrica de Reino Unido, Lisboa, Espanha, Argentina e Índia já se manifestaram. A história não se repete só como tragédia ou farsa. Os movimentos libertários de agora –por melhores escolas, transporte e pelos direitos das mulheres– trazem uma corrente de ar fresco ao cenário nacional assombrado pelo ódio e pela desesperança. Baruch de Espinosa se perguntava: se o homem nunca experimentou a liberdade, o que é isso que o faz eternamente lutar por ela? E respondeu: o desejo. ANTONIO LANCETTI, 66, psicanalista, é consultor do Programa de Saúde Mental de São Bernardo do Campo. Escreveu "Clinica Peripatética" (2006) MARIA RITA KEHL, 63, psicanalista, foi integrante da Comissão Nacional da Verdade. É autora "Processos Primários" (Estação Liberdade) ALDO ZAIDEN, 35, psicólogo e mestre em ciências sociais, foi membro do conselho nacional de política sobre drogas do Ministério da Saúde * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-18
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1730505-repeticao-e-desejo-na-saude-mental.shtml
Royalties e a previdência do Estado do Rio de Janeiro
O debate sobre a reforma da previdência é inadiável. O Brasil possui regras previdenciárias incompatíveis com sua realidade demográfica. Segundo o economista do Ipea Marcelo Abi-Ramia Caetano, os estados possuem um déficit atuarial de R$ 2,4 trilhões, ou algo próximo a 44% do PIB. A conta chegou e, infelizmente, será necessário muito tempo para pagá-la. No Estado do Rio de Janeiro, ao falarmos em previdência, é fundamental discutirmos a receita, no caso, os royalties e participações especiais (R&PE), advindos da exploração do petróleo. Desde 2006, as receitas líquidas de R&PE do estado estão alocadas no fundo de previdência, o Rioprevidência. A Noruega é citada como exemplo de boa utilização dos recursos dos royalties, uma vez que equacionou sua questão previdenciária e formou o maior fundo soberano do mundo ocidental. Algumas características importantes daquele país merecem destaque. O país tem pouco mais de 5 milhões de habitantes, a produção de petróleo, que, na segunda metade da década de 1990 e a primeira metade da década de 2000, superava 3 milhões de barris/dia, em 2015 caiu para 1,6 milhão de barris/dia. O fundo de pensão do Governo da Noruega não nasceu deficitário, e as regras são conservadoras. Homens e mulheres se aposentam aos 67 anos de idade. Uma realidade muito diferente do que temos no Brasil e Rio. É importante mirar bons exemplos, mas temos que identificar peculiaridades. Não sem razão, os economistas apontam como equívoco utilizar recursos oriundos da exploração de bens naturais finitos, como por as de R&PE, para arcar com despesas correntes. O Governo do Rio vem tratando de forma diferenciada esse ativo. A alocação dessas receitas no Rioprevidência não teve a pretensão de equalizar o déficit previdenciário. O déficit se apresenta na origem da previdência do servidor, e é estrutural. O sistema previdenciário público já nasceu deficitário na Constituição de 1988, uma vez que ali foi definido o passivo, sem a devida contrapartida no ativo, isso sob a perspectiva atuarial. Já sob a perspectiva financeira à época, a preocupação dos governantes era praticamente nula, pois, em muitos entes públicos, a arrecadação com as contribuições previdenciárias suportavam o gasto previdenciário. Era questão de tempo a conta chegar, principalmente na União e nos estados que possuíam uma massa de servidores com idade média mais alta e um número cada vez maior de aposentados. No Rio, com os royalties, o Estado conseguiu arcar com as aposentadorias e pensões e, com isso, fazer investimentos em programas fundamentais ao seu desenvolvimento. Esses recursos, aliados à auditoria de benefícios que reduziu em mais de R$ 650 milhões a despesa previdenciária, permitiram ao Estado implantar uma previdência sustentável no médio e longo prazo. Por meio de leis aprovadas em 2012, o sistema previdenciário foi remodelado, e os servidores que ingressaram no estado a partir de setembro de 2013 –atualmente são de 16 mil– estão inseridos em um novo contexto. A previdência complementar implantada limitou os benefícios ao teto do INSS e garante poupança suficiente para o pagamento das aposentadorias e pensões futuras, sem a dependência dos royalties ou Tesouro estadual. Rompeu-se aí a dependência do Estado com os royalties no pagamento dos benefícios previdenciários. Os recursos de R&PE auxiliaram o Estado do Rio a realizar a transição de uma previdência com modelo estritamente financeiro, para um capitalizado, com premissas atuariais conservadoras, semelhantes aos modelos mais modernos no mundo. Essa iniciativa dará normalidade econômica e financeira, ao menos na previdência, às futuras gerações de servidores. Esse legado pode e deve ser comemorado. GUSTAVO BARBOSA, 51, é diretor-presidente do Rioprevidência - Fundo único de previdência social do Estado do Rio de Janeiro * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-18
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1730048-royalties-e-a-previdencia-do-estado-do-rio-de-janeiro.shtml
E não se move
Segundo informações divulgadas pelo IBGE na sexta-feira (15), o rendimento médio do trabalho começou a cair em outubro -baixa de 1%. O número de pessoas empregadas diminuiu 0,3%. Dada a degradação da economia, a piora ainda não é expressiva, mas não há motivo para acreditar que a situação não se tenha agravado desde então. A combinação de menos empregos e menor renda produziu a primeira queda significativa do total de rendimentos desde que se dispõe da informação em âmbito nacional, 2012. As vendas do comércio, porém, já vinham encolhendo. Até novembro do ano passado, o varejo vendera 4% menos que em 2014. Se considerados também o comércio de veículos e de material de construção, a queda vai a 8,4%. O desemprego nacional passou de 6,6% para 9% em um ano, alta devida mais ao aumento do número de pessoas que voltaram ao mercado de trabalho do que às demissões. O excesso de mão de obra disponível deve contribuir para redução ainda maior do salário médio. O ceticismo generalizado entre empresários e consumidores, os maus prognósticos para salários e comércio, a inoperância do governo e a perspectiva de crise política contínua eram bastantes para angustiar os cidadãos. Novos tumultos internacionais, todavia, tornam o quadro mais sombrio. Renovadas dúvidas sobre o grau de redução do ritmo da economia chinesa são um dos fatores principais da tensão, que provoca onda de descrédito em relação aos emergentes. Dada a instabilidade doméstica, o Brasil se vê atingido com intensidade maior -aumentou muito a percepção de que é arriscado investir aqui. Como se fosse pouco, a turbulência na China ainda contribui para derrubar os preços do petróleo, deprimido pelo excesso de oferta. O barateamento da energia seria benéfico se não fosse o estado ruinoso da Petrobras, que se desfaz de patrimônio e corta investimentos a fim de continuar respirando. Dadas a importância da empresa, seu tamanho e o fato de o governo ser na prática o garantidor de suas finanças, a derrubada de preços do petróleo prejudica ainda mais o crédito do Brasil, encarecendo o custo dos empréstimos internacionais e afetando o valor do real. Além da deterioração objetiva das condições financeiras, a confiança é ainda mais abatida. O governo da presidente Dilma Rousseff (PT), diminuído pela penúria de recursos políticos, econômicos, administrativos e intelectuais, permanece letárgico, outra vez adepto de medidas pontuais, incapaz de reagir à gravidade da situação. editoriais@uol.com.br
2016-01-17
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1730283-e-nao-se-move.shtml
Microcefalia e aborto
A recém-estabelecida relação entre infecção de mulheres grávidas pelo vírus zika e ocorrência de microcefalia traz de volta o debate sobre descriminalização do aborto. Já há notícia de casais que recorrem ao procedimento –a rigor, ilegal. Não será surpresa se juízes passarem a autorizar a interrupção de gestações por tal motivo. Certos magistrados têm proferido decisões favoráveis ao aborto quando se constatam síndromes genéticas graves no feto, como as de Edwards e Patau. Fazem-no por analogia com a decisão de 2012 do Supremo Tribunal Federal para os casos de anencefalia, que admitiu terminar a gestação quando comprovada a inviabilidade do bebê. Tal jurisprudência veio alargar o rol de situações em que o aborto já era admitido por lei. Segundo o artigo 128 do Código Penal de 1940, não se pune o procedimento, se praticado por médico, quando não houver outro meio de salvar a vida da gestante, ou quando sua gravidez resultar de estupro e a mulher consentir com a interrupção. Microcefalia não é anencefalia, contudo. Nascer com cérebro de tamanho menor pode acarretar vários problemas para a vida da criança, mas não a condena necessariamente à morte ou a expedientes extremos para sustentar-lhe a vida. Pela letra da lei, não serve de justificativa para abortar. Diplomas legais, por outro lado, não comportam regras absolutas e imutáveis. Tanto admitem exceções, como a do aborto, como terminam reinterpretados, na jurisprudência, à luz de mudanças nos costumes, no conhecimento científico e no alcance das tecnologias. Com a epidemia do vírus zika e os casos associados de microcefalia, cria-se uma dessas situações especiais: quantidade significativa de gestantes submetidas ao infortúnio de uma infecção que ameaça gravemente o desenvolvimento pleno de seus filhos. Ressurge assim, com força, o argumento humanitário de que não cabe à sociedade impor-lhes a continuação dessa gravidez. O mais racional, como defende esta Folha, seria revisar as provisões sobre aborto no Código Penal, descriminalizando a conduta. A legislação já conta três quartos de século. Parece justo, ademais, que se submeta a mudança a plebiscito ou referendo, dado seu caráter controverso. Por fim, nunca é demais reforçar a importância de o governo insistir em políticas de planejamento familiar e ampliar o acesso a pílulas do dia seguinte, de maneira a reduzir a própria necessidade de abortos. editoriais@uol.com.br
2016-01-16
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1730182-microcefalia-e-aborto.shtml
Nova medida provisória sobre acordos de leniência vai gerar impunidade? Não
INVESTIGAÇÃO NÃO PODE PARAR O PAÍS O gosto amargo das descobertas da Lava Jato não decorre de pouca coisa: graves episódios de corrupção envolvendo empresários de expressão, funcionários públicos de alto escalão e políticos com assento no Congresso e em ministérios. Com a suspensão dos contratos e pagamentos das empresas envolvidas, afora a proibição de participarem de novas licitações, vemos uma parte importante da economia minguar, o desemprego crescer e a produção decrescer. Como disse Walfrido Warde Júnior em artigo nesta Folha, as 29 empresas envolvidas na Lava Jato controlam a maioria dos projetos de infraestrutura essenciais ao país. Empreendimentos de vulto, caros, financiados por bancos públicos e fundos de pensão. Calcula-se que sociedades controladas pelas empreiteiras devam R$ 1 trilhão aos financiadores públicos. A questão é: será possível prosseguir nas investigações criminais e administrativas, punir os responsáveis, sem levar a economia do país ao colapso? No campo da investigação criminal, a utilização da delação premiada revelou-se bem-sucedida. Em troca do abrandamento ou até mesmo da exclusão das punições, foi possível a ampla coleta de provas com a identificação de novos protagonistas do crime e até mesmo a descoberta de novos delitos. Já se questionou se essa prática tem gerado impunidade, mas é indesmentível que a fórmula deu certo no que diz respeito à eficiência repressiva. Um amplo esquema de corrupção foi desbaratado e novos setores estão na reta da investigação. Prevaleceu o pragmatismo sobre a mentalidade meramente punitiva. O aparente sucesso desse método investigativo não pode ficar isolado ao campo penal. Revelando enorme sensibilidade, o governo federal editou a medida provisória 703, que institui novos padrões para a celebração do acordo de leniência. Antes restrito à primeira empresa que se apresentasse para negociar, agora o acordo pode alcançar todas as outras que se dispuserem a tanto, mesmo que já exista ação em andamento. Isso desde que ocorra: identificação dos demais envolvidos na infração, quando couber; obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação; cooperação da pessoa jurídica com as investigações, em face de sua responsabilidade objetiva; e comprometimento da pessoa jurídica na implementação ou na melhoria de mecanismos internos de integridade. A estratégia embutida na delação premiada, na qual vários criminosos podem delatar –e não apenas o primeiro–, se repete agora no campo administrativo. As empresas que tomarem parte do acordo de leniência, além da multa e da exigência de novas práticas de governança corporativa, poderão licitar e contratar com o poder público. Na prática, isso significa a continuidade de diferentes obras e emprego para os trabalhadores de diversos segmentos. As empresas permanecerão vivas, evitando-se o colapso econômico do país. Há uma evidente sintonia entre a nova medida provisória e o método da delação aplicado de forma ampla nos diferentes processos da Lava Jato, que, além do mais, tem permitido a recomposição dos cofres públicos. Na Alemanha, muitas das empresas que participaram ativamente do esforço de guerra nazista sobreviveram no pós-guerra. Isso tornou possível o reerguimento econômico do país, além do pagamento de pesadas indenizações. O ideal kantiano de punição absoluta revelou-se pouco eficaz em termos de prevenção. Mais auspiciosas são as medidas que possam garantir a produção de riquezas com empregos e pagamento de tributos, mas com a aplicação de multas e nova governança empresarial. Lidar mais inteligentemente com graves transgressões não significa capitulação ao crime, mas possibilidade concreta de sua superação. ALBERTO ZACHARIAS TORON, 56, advogado criminalista, é doutor em direito pela USP, ex-presidente do IBBCrim - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e professor da FAAP - Fundação Armando Alvares Penteado * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-16
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1730127-nova-medida-provisoria-sobre-acordos-de-leniencia-vai-gerar-impunidade-nao.shtml
Nova medida provisória sobre acordos de leniência vai gerar impunidade? Sim
LEI DESFIGURADA, ACORDÃO A CAMINHO A verdade é espantosa: o governo federal desfigurou a Lei Anticorrupção em vigor há menos de três anos com a edição da medida provisória 703. E o motivo é óbvio. Apesar de imperfeita, a lei nº 12.846, permitiu que a Operação Lava Jato celebrasse acordos de leniência com algumas das empreiteiras envolvidas no escândalo. Esses acordos revelaram estruturas sistêmicas de corrupção de agentes públicos e políticos, em benefício de empresas em obras federais, e da estrutura político-partidária que sustenta o governo. Assim, minado pelos seguidos crimes revelados, o governo atropelou mudanças legislativas discutidas no Congresso, em urgência que somente se explica pela necessidade de estancar essas revelações. Enquanto se discutia a possibilidade de expropriação do controle de empresas corruptas ou a impossibilidade de acordo sem a participação do Ministério Público, a edição sorrateira da medida provisória, em pleno recesso, trouxe mudanças que interessam, em essência, às empreiteiras investigadas. A medida provisória 703 simplesmente extinguiu os incentivos para que empresas efetivamente colaborem com as investigações. Anulou a exigência de que apenas a primeira empresa do conluio predisposta a colaborar possa celebrar o acordo. Essa regra instituía o "dilema do prisioneiro", um incentivo à quebra da unidade, do silêncio entre os corruptos. Além disso, não mais exige que o novo acordo somente ocorra com provas de corrupção em outros órgãos. Revogou ainda a admissão de culpa, trocando-a por responsabilização objetiva, sem que a empresa seja obrigada a entregar provas contra seus gestores. Enfim, todas as mudanças necessárias para viabilizar o "acordão". A justificativa dessa mudança não convence nem o mais ingênuo. Buscando a estratégia do medo, o governo afirma que esse esforço busca garantir o ressarcimento da Petrobras e evitar um mal maior à economia brasileira. Na verdade, é o patrimônio dos acionistas, de pessoas e famílias poderosas, muitos dos quais respondem a acusações criminais, que está sendo salvo pelo favor do governo. Essas empreiteiras, com décadas de atuação em um modelo de negócio corrupto, não fizeram mal apenas aos cofres públicos, dilapidados pelos preços onerosos que a corrupção e o cartel impõem, mas também sempre foram nefastas ao surgimento de empresas que trabalham licitamente. Como realizar negócios quando os concorrentes corrompem estruturas partidárias dentro do governo para ganhar licitações? A expertise está em nossos engenheiros, nossos mestres de obra, os quais seriam rapidamente absorvidos por novas empresas, e não nessas estruturas espúrias decorrentes de nosso capitalismo de compadrio. O que fica claro é que assinamos tratados internacionais contra a corrupção apenas para "inglês ver", fazemos leis para não pegarem, temos estruturas ineficientes para criar as dificuldades. Mesmo quando uma lei é cumprida e as instituições trabalham, como na Operação Lava Jato, a solução do governo é mudar a lei para continuar tudo como antes. Que país desejamos? Não podemos concordar com um modelo econômico baseado na corrupção e nos cartéis. Não importa quanto custe, devemos enfrentar isso como um dependente que enfrenta o vício. Não há caminho fácil, nem indolor. Se o combate à corrupção falhar, talvez tenhamos que esperar décadas por outra oportunidade. CARLOS FERNANDO DOS SANTOS LIMA, procurador regional da República, é mestre pela Universidade Cornell (EUA) e membro da força tarefa da Operação Lava Jato * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-16
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1730061-nova-medida-provisoria-sobre-acordos-de-leniencia-vai-gerar-impunidade-sim.shtml
Boas e más ideias na proposta do PMDB
Com a crise atual, várias ideias têm surgido na área econômica, boas e más. A proposta do PMDB, "Uma Ponte para o Futuro", traz pontos que merecem ser destacados. Alguns são obviamente bem-vindos, como a desindexação e o orçamento impositivo. A sugestão de uma idade mínima para a aposentadoria é corajosa pela óbvia dificuldade política de ser levada adiante. Poucos partidos políticos se arriscariam em tão benéfica iniciativa, pois ela é impopular, já que os eleitores colocam peso muito alto no curto prazo, pensando na sua própria aposentadoria, em vez do bem-estar de seus filhos. Por outro lado, é uma medida da maior importância, pois sabemos que o Brasil é um dos poucos países sem idade mínima para aposentadoria, o que produz reflexos crescentemente negativos na economia. Contudo, essa proposta traz algo de antiquado, talvez mesmo cavalheiresco, quando determina uma idade mínima de 65 anos para os homens e de 60 para as mulheres. Como as mulheres, em média, vivem mais do que os homens, a maioria dos países requer a mesma idade para ambos. O mais justo seria requerimento menor de anos de trabalho para as mulheres que têm filhos, já que muitas vezes elas necessitam deixar o trabalho para cuidar da família. Outra justificativa para esse diferencial seria simplesmente uma compensação para o trabalho de criar os filhos, que obviamente é maior para as mulheres. Um outro ponto que chama a atenção trata da autonomia do Banco Central. Embora não seja explícita a ideia do PMDB de limitar ou extinguir a já limitada independência, nos parece equivocada a iniciativa, inclusive porque em grande parte ela está impulsionada pela ideia de que o BC está perdendo enorme quantia de recursos devido à sua política de swaps. É importante dizer que o Tesouro possui uma substancial quantia de reservas cambiais "efetivas" (reservas menos swaps), da ordem de US$ 270 bilhões. Assim, é ele quem ganha em vez de perder quando da elevação do dólar. Poderíamos discutir se essas políticas públicas, de gerenciamento de reservas e swaps, por envolverem recursos públicos, são adequadas ou não. Portanto, é desejável que o Banco Central, mesmo com o grau de independência superior ao atual, seja sujeito somente a apresentações em comissões parlamentares verdadeiramente especializadas. Outra proposta que merece ser analisada é a eliminação das obrigatoriedades de gastos. Esta nos parece um verdadeiro desastre. O Brasil, ao longo dos séculos, relegou os gastos de saúde e educação. A última Constituinte reconheceu a necessidade de corrigir essa distorção e determinou de forma arbitrária um percentual de gastos nesses quesitos, o que melhorou nosso índice de IDH, que mede a performance social de uma nação. Muitos de nós, de forma justificada, estão insatisfeitos com o desempenho de nossos estudantes e com nosso serviço de saúde. É preciso ter em mente que a alternativa da não exigência de gasto mínimo muito provavelmente nos levaria a uma situação bem mais desastrosa. Uma Constituinte pensa no longo prazo. Foi essa a visão que balizou a introdução de cláusulas de gastos mínimos com educação e saúde. O benefício gerado pela eliminação desses gastos seria muito inferior aos ganhos advindos dessa cláusula. É melhor não tocar nela! ALOISIO ARAUJO, 69, é economista e professor da FGV - Fundação Getulio Vargas e professor visitante das universidades de Chicago e Harvard * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-15
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1729692-boas-e-mas-ideias-na-proposta-do-pmdb.shtml
A COP 21 e a Curva S
"Só sabemos com exatidão quando sabemos pouco; à medida que vamos adquirindo conhecimentos, instala-se a dúvida." (Goethe) Celebrado o Acordo de Paris, iniciamos uma nova jornada. A teoria dos ciclos de vida tecnológicos (curva S de inovação) indica que, escondidas sob a predominância das tecnologias vigentes, se desenvolvem as incumbidas de substituí-las. As novas precisam entrar na fase de crescimento exponencial para superarem a forma tradicional de como os bens são produzidos. Para tanto, costumam demandar eventos como a COP 21 como um ponto de virada, um tipping point. Christiana Figueres, secretária executiva da UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima), mencionou algumas vezes, durante a Conferência de Paris, que "o sinal está acima dos ruídos". Leia-se: a COP 21 confirmou o sinal de que o futuro será de uma economia de baixo carbono. Os ruídos são as dúvidas da citação de Goethe. Uma das discussões mais ricas diz respeito às macro alternativas para se lidar com a redução de emissões. Há uma linha que defende que as soluções virão do desenvolvimento de tecnologias voltadas para baixa emissão de carbono e de seu sequestro na atmosfera. As chamadas "árvores artificiais" são apostas dos países desenvolvidos. Do outro lado, aparece a defesa contundente das florestas como meios mais eficientes para retirar e manter estoques de carbono. O Brasil tem vantagens comparativas relevantes no uso do solo, na produção de alimentos, de fibras e de energia. A mobilização da Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, com mais de 50 representantes em Paris, atesta que os principais líderes florestais e do agronegócio, incluindo pecuária, já estão prontos para "surfar" a nova onda tecnológica. No caso brasileiro, ela está assentada na valorização ampla do nosso capital natural. Isso não significa que o Brasil atuará apenas nesse front. As emissões nacionais crescem no campo da energia e do transporte (combustíveis), mas ambas são também passiveis de soluções vindas da boa gestão do capital natural. Entre as demandas, esforços de refinamento –caso do domínio da silvicultura de espécies nativas para a agenda da restauração– e consolidação das oportunidades de combinar floresta com agricultura. Outro ponto fundamental: ajustes de políticas públicas, como é o caso do bem-sucedido etanol. Na lista de desafios práticos, aparecem os instrumentos de monitoramento, controle e rastreabilidade para acabar com o desmatamento e o comércio de madeira ilegal. Esse jogo da consolidação das novas curvas tecnológicas é, por princípio, multi atores. A liderança no desenvolvimento e no uso de novas alternativas parece estar no setor privado. Além de politicas públicas contundentes, requererá também pontos pouco abordados no acordo de Paris: a mudança de hábitos de consumo e o componente educacional da população. Ainda é crítico o financiamento da mudança tecnológica. Paris apontou para a constituição de fundos relevantes, apesar de especialistas os julgarem insuficientes. Em contrapartida, um dos pontos mais marcantes foi a inédita participação dos fundos institucionais de investimentos. Valuations mudarão com a inclusão de riscos futuros associados às mudanças climáticas. Mas não só riscos. A perda de momentum em mergulhar em oportunidades que essa agenda oferece será determinante das lideranças da economia de baixo carbono. Ou seja, os recursos não virão apenas dos fundos a serem estabelecidos, mas dos grandes investidores. E de substituição de matriz tecnológica eles sabem muito, tanto do lado dos riscos, quanto das oportunidades. Nesse campo, outro grande passo da COP 21 foi o reconhecimento do valor do carbono, abrindo um corredor de alternativas de negócios (e, talvez, de dolorosas medidas tributárias). Dentre os elementos que indicam uma nova fase da curva das tecnologias associadas ao carbono estão a decisão de revisões periódicas das INDCs, além do monitoramento de emissões e da implementação de metas. Deixamos Paris com a certeza exata de que o sinal para a economia de baixo carbono está dado, e entramos no campo das dúvidas de como esse caminho será trilhado. Como diz o poeta alemão, só assim avançamos. Como? Saberemos encontrar as respostas. ROBERTO S. WAACK, biologo, é mestre em administração de empresas pela USP, membro fundador e presidente do conselho da Amata, empresa florestal brasileira, e presidente do Conselho Diretor do WWF-Brasil. * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-15
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1729645-a-cop-21-e-a-curva-s.shtml
Suspeitas alimentares
Tem exalado um cheiro ruim o serviço de alimentação dos presos na Grande São Paulo. Investigações em curso apontam indícios de superfaturamento, pagamento indevido, fornecimento de comida de má qualidade e em quantidade menor que a estipulada em contrato. São vários os casos de irregularidades em uma rubrica que consome mais de R$ 200 milhões ao ano. No CDP (Centro de Detenção Provisória) de Itapecerica da Serra, a Secretaria da Administração Penitenciária (SAP) descobriu que as populares quentinhas fornecidas aos presidiários continham cerca de metade da carne esperada. Já o TCE (Tribunal de Contas do Estado) constatou abusos similares em outras unidades prisionais, como o envio de marmitas com pregos e cabeças de frango. O tribunal também identificou que o número de quentinhas pagas por refeição excedia a população carcerária da região metropolitana (aproximadamente 50 mil). Em outra frente, o Ministério Público investiga possível superfaturamento na entrega de alimentos ao CDP Belém 1. O contrato envolve empresa acusada de fraude num escândalo sobre merenda escolar. As irregularidades ocorreram no período em que a coordenadoria dos presídios da Grande São Paulo era ocupada por Hugo Berni Neto, cujas atribuições incluíam fechar os contratos alimentícios. Berni Neto deixou o cargo no final de setembro de 2015 após esta Folha revelar um aumento de R$ 7 milhões em seu patrimônio num período de dois anos. A SAP apura os contratos de alimentação nas 28 prisões da região metropolitana, e espera-se real empenho do governo paulista no esclarecimento das denúncias. Além disso, a administração estadual deveria dedicar maior atenção à diferença de custos entre as unidades. Eles vão de R$ 15,26 por dia/preso aonde as marmitas chegam prontas a R$ 8,07 quando os próprios presidiários cozinham. Por causa dessa economia, o governo estadual adotou o modelo de prisões com cozinha nos últimos projetos –o que também ajuda na ressocialização dos presos, que podem aprender uma profissão. São razões suficientes para dotar dessas instalação as demais unidades hoje em funcionamento. editoriais@uol.com.br
2016-01-14
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1729326-suspeitas-alimentares.shtml
Ações corretas, mesmo sem as pessoas certas?
No momento em que a sociedade brasileira discute de forma intensa se deve ou não haver uma mudança no comando político do país e o ministro da fazenda sinaliza que não permanecerá no governo, talvez seja válida a reflexão: as pessoas realmente importam tanto assim, ao ponto de justificar mudanças ou continuidades como soluções para todos os problemas? A literatura na ciência política e econômica aponta que, inicialmente, a continuidade de um mesmo partido no poder traz bons resultados em termos de crescimento econômico, em função, sobretudo, da estabilidade política e econômica, que associada ao fortalecimento da segurança dos direitos de propriedade, favorece a atração de novos investimentos, inclusive na produção e utilização de novas tecnologias. Posteriormente, no entanto, observa-se uma tendência de mudança expressiva: a manutenção de um partido no poder, leva a piores resultados nos indicadores de desenvolvimento econômico. A principal razão seria uma mudança de prioridades governamentais, que passariam das políticas de incentivo ao desenvolvimento para ações voltadas à manutenção do poder e dos benefícios aos grupos de interesse que dão sustentação política ao partido. No caso brasileiro, –a princípio, tanto no período de governo do PSDB como no do PT– houve aspectos visivelmente favoráveis ao desenvolvimento econômico de longo prazo, como o controle inflacionário, a busca do equilíbrio das contas públicas, as privatizações e o câmbio flutuante, além do aprofundamento das políticas sociais e de crédito que ajudaram fortemente na inclusão de segmentos mais pobres da população, aumentando o consumo e a renda. A manutenção do poder a qualquer custo, no entanto, parece ter sido a principal causa dos principais problemas dos dois partidos: no caso do PSDB, o projeto de reeleição provavelmente recebeu maior atenção do que as indispensáveis reformas estruturais –tributária, previdenciária e política, entre outras– contribuindo para a perda do poder para o PT. No caso do PT, os sucessivos casos de corrupção e o enorme descontrole dos gastos públicos certamente são as principais razões de nossas crises política e econômica, respectivamente, somando-se a esta última, o esgotamento do modelo baseado no incentivo ao consumo, sem que houvesse maiores preocupações com a contrapartida de aumento na oferta, ou seja, políticas de incentivos ao aumento dos investimentos e da produtividade. Diante da atual crise, para a maioria dos analistas, a coisa certa a ser feita no momento é o ajuste fiscal. Neste ponto, é interessante refletir sobre uma frase de Milton Friedman, prêmio Nobel de Economia e professor da Universidade de Chicago: "eu não acredito que a solução para os nossos problemas esteja em simplesmente eleger as pessoas certas. O importante é estabelecer um clima político de opinião que torne politicamente lucrativo para as pessoas erradas fazerem a coisa certa. A menos que seja lucrativo para as pessoas erradas fazerem a coisa certa, as pessoas certas não farão a coisa certa também, ou se tentarem, serão, rapidamente, destituídas do poder". Seria fundamental, como ponderou Friedman, independentemente de as pessoas consideradas certas ou erradas estarem governando, que as políticas certas sejam implementadas, e o ajuste fiscal brasileiro seja realizado. Também será muito importante se a hegemonia política, caso venha a ocorrer, seja exercida durante um tempo mais duradouro com as prioridades voltadas para o desenvolvimento econômico e social do país e não apenas para a simples manutenção no poder. JOSÉ ALEXANDRE FERREIRA FILHO, 50, auditor fiscal, é professor da Universidade Católica de Pernambuco e tem pós-doutorado em ciência politica pela Universidade Columbia em Nova York * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-14
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1729106-acoes-corretas-mesmo-sem-as-pessoas-certas.shtml
Regras básicas
A volta dos legítimos protestos contra o inescapável aumento das tarifas de ônibus e metrô em diferentes cidades, aos quais se associam as cenas de vandalismo mascarado e truculência policial, impõe que se desfaça uma confusão. Os manifestantes têm toda a razão ao denunciar o inaceitável abuso das forças de segurança, não somente quando estas lançam mão de violência contra a população que deveriam proteger mas também quando sua ação coíbe o livre exercício de garantias constitucionais –como ocorreu na terça-feira (12), em São Paulo. Mas a Constituição não se limita a garantir a todos o direito de se reunir "pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização"; o mesmo inciso XVI do artigo 5º estabelece a exigência de "prévio aviso à autoridade competente". A determinação, descumprida de forma deliberada e reiterada pelo Movimento Passe Livre (MPL), atende a propósitos bastante sensatos. Trata-se de evitar que um ato frustre outro convocado anteriormente para o mesmo local e de possibilitar que as autoridades adotem as providências cabíveis. Como tem lembrado Alexandre de Moraes, secretário da Segurança Pública de São Paulo, é esse aviso prévio que permite ao poder público reorientar o trânsito e transferir linhas de ônibus para outras vias, a fim de minimizar o transtorno imposto aos demais cidadãos. Permite, além disso, que o governo planeje a presença policial, dispondo suas tropas em locais estratégicos para a manutenção da ordem pública –algo particularmente importante nos protestos do MPL, dado seu histórico de tolerância com os arruaceiros intitulados "black blocs". Se Moraes acerta ao cobrar dos manifestantes o respeito a essa exigência constitucional, erra ao esperar que todos acreditem quando diz ter recebido "só elogios à atuação da polícia" na terça-feira. As forças de segurança fizeram mais que reprimir a ação dos vândalos. Cercando as pessoas que se aglomeravam na avenida Paulista e, de modo indiscriminado, disparando bombas de gás lacrimogêneo antes mesmo de a passeata começar, impediram a própria realização do protesto –em flagrante afronta à Constituição, portanto. Já não era pouco, mas o exagero continuou quando a multidão se dispersou. Policiais caçaram como bandidos manifestantes que não se confundiam com os "black blocs" e desferiram golpes de cassetete mesmo contra quem não se predispunha para o confronto. Em suma, a Polícia Militar, que no mais das vezes oscila entre a omissão diante do quebra-quebra e o abuso de força contra cidadãos, volta a exibir seu despreparo. O MPL, por sua vez, ao omitir o trajeto das passeatas e fechar os olhos para os mascarados, insiste no tumulto como estratégia de divulgação de suas bandeiras. Ambos os lados desrespeitaram regras básicas de convivência democrática –e é ocioso discutir quem o fez primeiro. editoriais@uol.com.br
2016-01-14
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1729327-regras-basicas.shtml
Quinto constitucional não é cláusula pétrea
Cláusula pétrea. Essa é uma expressão mágica, sempre pronta para ser usada quando se quer fazer proselitismo a favor de alguma coisa. Se a Constituição Federal tivesse todas as cláusulas pétreas que alguns divulgam, já teria virado uma pedreira. Dizem, agora, que o "quinto constitucional", pelo qual um quinto das vagas nos tribunais é reservado aos advogados e representantes do Ministério Público, é cláusula pétrea. As cláusulas pétreas são aquelas de que fala o art. 60, § 2º, da Constituição: forma federativa de Estado; voto direto, secreto, universal e periódico; separação dos Poderes; direitos e garantias individuais. Quem agora inventou que o quinto é cláusula pétrea, diz que decorre do princípio de separação dos Poderes. Como assim? Significa que, se não houver o Quinto, os poderes não estarão mais separados? A existência do quinto constitucional nunca foi pacífica, e entre os juízes de carreira sempre foi muito questionada. Exemplo disso é o fato de que em recente pesquisa feita pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) 80% dos magistrados se manifestaram pelo fim do quinto. É importante notar que não se trata de uma posição gratuita ou mero despeito de juízes pelos advogados ou promotores; pelo contrário, há muitos magistrados oriundos daquelas carreiras que, por sua competência e integridade, conquistam o respeito de seus pares, notadamente por incorporarem a condição de julgadores e não representantes dos advogados dentro dos tribunais. Todavia, num país como o Brasil, em que, como cada dia mais se vê, a política tem alto grau de contaminação por interesses não republicanos, as próprias indicações corporativas aos tribunais não fogem à regra, com campanhas eleitorais já no nascedouro, passando depois por uma prática de beija-mão nos tribunais e culminando com a bênção final no Executivo. Por isso, até causa estranheza quando se ouve, em tom de crítica, que os juízes não são eleitos pelo povo: o ingresso por concurso público é a garantia de qualidade técnica e distância dos apadrinhamentos políticos, além de ser cercado por investigações acerca da idoneidade moral dos candidatos. As raríssimas situações de corrupção no Judiciário, notadamente quando em comparação com os outros poderes, são indicativo disso. Infelizmente, com muita frequência, as indicações pelo quinto constitucional não estão revestidas desse grau de segurança e obedecem muito mais à relação com o poder do que a qualquer dos requisitos esperados de um bom juiz. É este o principal motivo pelo qual tantos magistrados veem com desconfiança o instituto. É de se notar que os juízes de carreira são submetidos, desde o ingresso por concurso público, à fiscalização por suas corregedorias e pelo Conselho Nacional de Justiça. O que não ocorre no processo seletivo dos magistrados oriundos da advocacia. A começar pelo organismo que faz a primeira etapa da seleção. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em que pese a sua consagrada importância na República, carece de controle social, aspecto central em modelos constitucionais que consagra ao povo a fonte de todo o poder. O objetivo não é a imediata extinção do quinto: pelo contrário, é necessário fazer um amplo debate para que a sociedade decida acerca de sua utilidade e, se considerar que deva ser mantido, seu aperfeiçoamento, até para tomar cautelas contra carreirismos. JOÃO RICARDO DOS SANTOS COSTA, 54, juiz, é presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), professor de direitos humanos da Escola Superior da Magistratura (ESM) e membro do Tribunal Permanente dos Povos * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-13
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1728657-quinto-constitucional-nao-e-clausula-petrea.shtml
O prazo da cracolândia
Há mais de duas décadas os paulistanos convivem com a terrível situação de degradação social e urbana representada pela cracolândia, questão que sem dúvida demanda atitude mais decidida por parte do poder público. Assim, provoca desalento, ao menos num primeiro instante, as declarações do chefe do departamento antidrogas da Polícia Civil paulista em entrevista a esta Folha. Na avaliação do diretor do órgão, Ruy Ferraz Pontes, serão necessários "mais dois anos, no mínimo" para que se efetue o desmonte da rede de tráfico de crack na região. Pelo menos mais dois anos, portanto, sem que se dê solução a esse persistente problema. O prazo, no entanto, parece ser antes uma estimativa imprecisa –e até otimista. Embora a polícia venha agindo de forma ininterrupta na cracolândia desde 1996, a área continua dominada por traficantes de drogas e dependentes que utilizam o crack a céu aberto. Que evidências Pontes reúne para sustentar seu prognóstico? É preciso ter em mente que as ações policiais constituem apenas uma das abordagens imprescindíveis para a restauração da região. Há também as dimensões social e sanitária, as quais pressupõem, de início, o estabelecimento de laços de confiança entre equipes de assistentes e usuários de crack. Daí a necessidade de complementar a repressão com iniciativas pautadas pela redução de danos, que proporcionem um suporte para a recuperação do dependente. É essa a estratégia que há dois anos a Prefeitura de São Paulo vem privilegiando. Seus resultados, porém, são dúbios. Se, segundo dados oficiais, conseguiu reduzir (ou dispersar?) de 1.500 para 300 o fluxo de viciados que vaga pela cracolândia, a recente defecção de uma centena de integrantes do programa expõe os limites da medida. Como se não bastasse, há nesse ponto descoordenação entre os governos municipal e estadual –este defende uma estratégia antagônica, focada na abstinência. Seja como for, a importância da ação policial não deve ser subestimada –e os recentes esforços do departamento antidrogas no combate à corrupção interna e o foco nos grandes traficantes sugerem que se está no caminho certo. editoriais@uol.com.br
2016-01-13
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1728846-o-prazo-da-cracolandia.shtml
Debate proibido
Há pouco mais de um mês, fomos convidados para participar de um debate, no Cremesp (Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo), sobre a descriminalização da maconha. O objetivo não era discutir legalização, mas unicamente uma mudança judicial que não mais considerasse o usuário um criminoso. Além disso, a meta era tratar prioritariamente de uma única droga, a maconha –uma proposta tímida, se pensarmos nos impactos que a criminalização traz ao tratamento dos usuários de substâncias ilegais. Existem manifestações favoráveis de diversos organismos internacionais à descriminalização do uso de drogas ilícitas. Na América do Sul, o Brasil faz parte de minoria que não descriminalizou o porte para uso. Ainda assim, o tema é polêmico. Há pessoas que, legitimamente, temem os impactos negativos da medida –embora, sob nossa perspectiva, os dados e as evidências científicas disponíveis não corroborem esses argumentos. O debate por aqui ainda é incipiente e deve ser aprofundado. Precisamos ouvir os argumentos mútuos, dissipar temores infundados, encontrar caminhos consensuais e definir os limites do conhecimento sobre a disputa. Nada mais afeito à natureza do Cremesp do que fomentar esse tipo de discussão. Trata-se de uma questão profissional, política, ética e constitucional que exige a multiplicidade de olhares para enriquecer a formação e a prática médica. Para alguns, no entanto, isso não parece tão óbvio assim. A Uniad (Unidade de Pesquisas em Álcool e Drogas), a Comissão de Estudos sobre Drogas da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil) e a ONG Amor Exigente enviaram uma carta ao Cremesp contestando o seminário, que consideraram inadequado pelo fato de o Conselho Federal de Medicina já ter se manifestado contra a descriminalização. É importante salientar que o órgão federal se posicionou sem amplo debate dentro da categoria e sem apresentar um documento que demonstrasse evidências científicas suficientes para sustentar tal opinião. Na coluna da jornalista Mônica Bergamo de segunda (11), nesta Folha, pode-se ler que o Cremesp respondeu a essa interpelação com a clareza e a firmeza que o assunto merece: "Não há nada, do ponto de vista normativo, legal e constitucional, que impeça a discussão de qualquer assunto por nós". É uma pena que os representantes das entidades queixosas não tenham comparecido ao debate, uma vez que houve amplo tempo para a discussão entre os presentes. A impressão que tivemos, diante dessa ausência, é a de que o contraditório deva ser, para essas entidades, evitado, pois qualquer troca de ideia sobre a descriminalização é, por si só, ameaça. Entre os que desejam que a legislação sobre a posse de maconha e de outras drogas para uso pessoal continue como está, criminalizada, e os que entendem que há melhores soluções possíveis, nenhuma, absolutamente nenhuma, posição é pior do que tentar impedir o debate. Isto tem nome: censura. LUÍS FERNANDO TÓFOLI, 43, é psiquiatra e professor do departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Unicamp - Universidade Estadual de Campinas MAURÍCIO FIORE, 38, é diretor do Cebrap - Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-01-13
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1728804-debate-proibido.shtml
Acerto geral
Vai-se comprovando não ter limites –como também tem sido sem limites a prática da corrupção no Brasil– o potencial de escândalos aberto pela Operação Lava Jato. Em poucos dias, sucederam-se acusações contra Jaques Wagner, chefe da Casa Civil do governo Dilma Rousseff (PT), contra Renan Calheiros (PMDB-AL), presidente do Senado, contra os ex-presidentes Lula (PT) e Fernando Collor (PTB-AL), contra o senador Aécio Neves (PSDB-MG) e contra figuras não identificadas do governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Nunca é demasiado lembrar, não valem como prova as alegações feitas por quem já está comprometido na investigação em curso. Na medida em que o recurso das delações premiadas ganha a adesão de mais e mais interessados, os personagens retardatários entregam-se a uma corrida para se valorizarem como portadores de informação nova e impactante. De Nestor Cerveró, ex-diretor da Petrobras, partem indicações do envolvimento de Lula nas negociatas e a afirmação de que o governo FHC teria se beneficiado de US$ 100 milhões em propinas decorrentes da compra de uma empresa argentina pela petrolífera. Nada, a esta altura do escândalo, é implausível. Ainda que o PT, tudo indica, tenha amplificado a exploração dos recursos públicos com a típica voracidade dos neófitos, poucos estariam dispostos –haja vista o caso do mensalão mineiro– a pôr a mão no fogo por seus antecessores no poder. Resta que, por enquanto, Cerveró não especificou que funcionários e políticos durante a presidência do tucano terão recebido o montante estipulado. Quanto ao ex-presidente Lula, há também muito a esclarecer. Cerveró sustenta que sua própria indicação a um cargo na BR Distribuidora representaria uma recompensa pelo papel que desempenhou na contratação da Schahin Engenharia, num negócio de US$ 1,6 bilhão. O grupo teria concedido empréstimo, nunca quitado, para que o pecuarista José Carlos Bumlai, amigo de Lula, repassasse verbas ao caixa dois do PT –em uma movimentação que se ligaria ao obscuro assassinato do prefeito Celso Daniel, ocorrido em 2002. Sem dúvida faltam a essa narrativa dados palpáveis de uma direta participação de Lula, para além da sua responsabilidade presumida. Mais circunstanciado é o relato das reuniões periódicas de "acerto geral" e de disputas entre representantes de Collor e do PT, além de Renan Calheiros em pessoa, em torno das cotas de corrupção. Enquanto isso, o ex-deputado Pedro Corrêa, do PP, negocia há meses seu acordo de delação premiada; os primeiros nomes de políticos, dentre os cerca de cem que promete, vêm à tona. Acerto geral, com efeito. Talvez não sejam necessários tantos nomes assim para colocar todo o sistema político brasileiro em estado de falência ética generalizado; só a persistência nas investigações e na punição justa dos envolvidos, entretanto, será capaz de recuperá-lo. editoriais@uol.com.br
2016-01-13
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1728845-acerto-geral.shtml
A reversão da crise está à vista
O ano de 2015 foi de crise; 2016 será a hora da reversão. A crise atual marca o fim do Ciclo Democracia e Justiça Social, que, desde 1980, nos deu estabilidade política e uma razoável diminuição das desigualdades econômicas. Foi um momento em que as classes sociais se juntaram, em que pobres e ricos, democratas e liberais, se associaram. Esse quadro começou a mudar em 2013, quando a classe média tradicional, que deriva uma parte de seus rendimentos dos juros, aluguéis e dividendos, viu os pobres melhorarem de vida e os muito ricos se tornarem ainda mais ricos. Sentindo-se esquecida, essa classe média voltou-se para a direita. Ao mesmo tempo, os economistas liberais colocavam em questão os avanços sociais da Constituição de 1988. Nas grandes manifestações de junho de 2013, os serviços de educação e saúde, que a classe média tradicional não usa, mas para os quais paga impostos, foram temas centrais. No coração da crise, assim, não está a luta dos trabalhadores para conquistar mais direitos, mas a de rentistas e de seus economistas ortodoxos para reduzi-los. Trata-se de uma luta reacionária, que não oferece solução para os dois grandes problemas brasileiros: o da retomada do crescimento e o da diminuição das desigualdades. Diante da recessão, o que eu vi foi uma comédia de erros. Os economistas liberais atribuíram a crise aos deficits fiscais "estruturais", não obstante o grande desequilíbrio fiscal só tenha ocorrido em 2014, e afirmaram que a Constituição de 1988 não cabe no PIB brasileiro. O argumento é pura ideologia, a não ser no caso da Previdência Social. Os desenvolvimentistas opuseram-se ao ajuste fiscal, que é necessário, e explicaram a recessão por esse ajuste, o que faz pouco sentido, dado o mínimo ajustamento realizado. Estão certos, porém, em criticar o aumento das taxas de juros em plena recessão para combater uma inflação que é inercial e se acelerou por conta da correção de preços administrados. Todos ignoraram que o problema fundamental da economia brasileira é o deficit em conta-corrente; o correspondente câmbio apreciado só se torna competitivo nas crises. É essa desvantagem competitiva que vem causando desindustrialização e semiestagnação desde 1990. Além dela, a brutal queda dos preços das commodities, a paralisação dos investimentos da Petrobras e a perda de confiança explicam a recessão atual. Mas não estou pessimista. O governo reconheceu seus erros, e a confiança voltará, como já voltaram as oportunidades de investimento. A previsão das consultorias econômicas –2,8% de queda do PIB em 2016– ignora que o mercado promoveu o ajuste fundamental, o equilíbrio competitivo que estimo ser R$ 3,80 por dólar. Tanto assim que as boas notícias começam a aparecer. O superavit comercial de 2015 "surpreendeu" por ter sido elevado, e a participação dos manufaturados, 35,6% em 2014, subiu para 38,1% do total de exportações. As empresas industriais têm uma nova oportunidade de crescer e não a perderão. E depois da recessão? Podemos pensar em um novo grande ciclo de desenvolvimento? Podemos reindustrializar e crescer 3% ao ano per capita, no lugar do 1% a que estamos reduzidos desde 1990? Podemos, assim, pacificar o país? Isso é possível, mas só se materializará se o governo, além de fazer reformas, como a da Previdência, revelar-se capaz de discutir com a sociedade uma nova política que mantenha a taxa de câmbio real flutuando em torno do equilíbrio competitivo nos próximos anos. LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA,81, é professor emérito da Fundação Getulio Vargas. Foi ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado e da Ciência e Tecnologia (governo FHC) * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-12-01
opiniao
Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1728409-a-reversao-da-crise-esta-a-vista.shtml
Como as escolas são apagadas
Após ser derrotado na revolução de 1932 o Estado de São Paulo criou uma Universidade como não existia até aquele momento (ou tinha existido muito tenuemente) no Brasil. No início a Universidade de São Paulo era um projeto para melhor formar nossas elites. Com o tempo esse objetivo foi se expandindo e diversificando. Mas o modelo envelheceu. Os catedráticos se tornaram déspotas, alguns esclarecidos outros nem tanto. Em 1964 tudo mudou. A ditadura impôs suas regras, demitiu professores, prendeu alunos. E mais ainda, criou a "reforma universitária" pedida há muito tempo para eliminar as cátedras, mas usada naquele momento para fragmentar os grupos que não foram eliminados pela cassação, aposentadoria ou exílio de seus líderes. Mesmo assim, a Universidade continuou sua missão. Atualmente, depois de mais de quinze lustros e diversas alterações a partir da "reforma" de 1969, o impasse da USP se tornou público com a crise econômica. Mas isso é o resultado final de uma série de pequenas mudanças decididas com visão imediatista em que projeto original, de longo prazo, se perdeu ou não foi atualizado. Como um embrião que perdeu seus mecanismos de controle do desenvolvimento, a USP se tornou um monstro teratológico incapaz de consertar os erros passados. Aos poucos foi perdendo a identidade por causa de decisões legalistas, como se todas as leis fossem justas. Concursos devem ser públicos. Funcionários e professores devem ser escolhidos baseados em critérios rígidos e inflexíveis. Professores são numericamente avaliados por algoritmos. E quando a conta do fim do ano não fecha, cortes lineares são impostos ao orçamento. A USP possui um dos maiores parques da cidade de São Paulo (área total de 7,4 km2). Os seus "habitantes" (alunos, professores, funcionários e eventuais visitantes) não têm direito a mesma infraestrutura de uma cidade como Águas de São Pedro, o município com o segundo IDH do Estado e 5,54 km2 de área. A Cidade Universitária não pode receber visitantes nos finais de semana por que não há restaurantes abertos ou banheiros públicos! Houve administrações que fecharam o campus à visitação pública nos finais de semana, impedindo sequer o acesso a pé. Antes disso, a Cidade Universitária foi murada, para aumentar a "segurança", isolando-a ainda mais de seu entorno. Quando foi proposta a instalação de um terminal de Metrô no campus, o Conselho Universitário (órgão que congrega representantes de todas as suas unidades) foi contrário, pois isso aumentaria os gastos com limpeza e conservação e reduziria a "segurança"! Mas a pá de cal do processo contínuo de desumanização da Universidade veio, no ano passado, com o fechamento de inscrições nas suas cinco creches. A explicação é de que as funcionárias, com filhos em idade que necessite dos serviços das creches, recebem um "auxílio-creche" mensal. Como se creches no local de trabalho não fossem importantes. Como a USP pouco interagiu com a população, que a manteve nos últimos 81 anos, ou interagiu seletivamente através de cursos (profissionalizantes ou não), agora ninguém se dispõe a ajudá-la. Ela sequer se preocupou em explicar aos governantes eleitos a importância de uma universidade como parte essencial do processo civilizador. A velha senhora está na UTI, em estado terminal e seus filhos, netos, bisnetos e agregados não sabem o que ela já fez (ou poderia fazer no futuro) por eles e seus descendentes, nem por que eles deveriam auxiliá-la. Quando ela se for, nem sequer chorarão sua morte. Talvez até fiquem contentes, pois finalmente ganharão mais um parque para seu lazer de fim de semana. CARLOS EDUARDO WINTER, 64, é professor associado do Departamento de Parasitologia da USP * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-12-01
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1728355-como-as-escolas-sao-apagadas.shtml
Saúde imobiliária
Uma nova investigação interna conduzida pela Santa Casa de Misericórdia de São Paulo tem reforçado as suspeitas de que a crise que atingiu o hospital há um ano e meio não decorreu somente de incúria administrativa. Como se sabe, em julho de 2014 o pronto-socorro da centenária instituição foi abruptamente fechado por cerca de 30 horas. Afirmou-se à época que não havia dinheiro para comprar medicamentos ou materiais como seringas e agulhas. A fim de restaurar o funcionamento da unidade, o governo do Estado prestou auxílio financeiro, exigindo em contrapartida a realização de auditorias –e estas revelaram um hospital enfermo. Descobriu-se, por exemplo, que a dívida da instituição (cerca de R$ 800 milhões) era quase o dobro do que a direção divulgava. Diagnosticou-se também a drenagem do patrimônio líquido (soma de bens e valores, descontadas as dívidas e desconsiderados os imóveis), que, de 2009 a 2013, caiu de R$ 220 milhões para R$ 323 mil. Agora, sindicância aberta no mês passado apura transações imobiliárias que resultaram em prejuízo para a Santa Casa e benefício para os compradores. Um dos casos envolve a negociação de três quitinetes na cidade litorânea de São Vicente (SP), doadas à instituição filantrópica com a exigência de que jamais fossem repassadas adiante. A cláusula, todavia, foi desrespeitada. Embora o valor de mercado de cada uma delas girasse em torno de R$ 80 mil, cada unidade terminou vendida por R$ 3.400. O formidável desconto de mais de 95% oferecido em 2011 torna-se ainda mais insólito pelo fato de a compradora ser a então gestora da área de radiologia do hospital. As investigações já identificaram ao menos dez imóveis comercializados nos últimos anos em condições análogas: por preços muito abaixo dos praticados no mercado e envolvendo funcionários com cargos de chefia na entidade. A nova direção –que assumiu a Santa Casa em junho de 2015– parece empenhada em esclarecer esses episódios no mínimo suspeitos. É bom que seja assim, levando-se à frente inclusive as ações judiciais pertinentes nos âmbitos cível e criminal, pois disso depende a recuperação da credibilidade da instituição. Com 2.510 leitos, a Santa Casa de São Paulo realiza cerca de 3,5 milhões de atendimentos ao ano. A rápida reestruturação do maior hospital filantrópico do país é assunto que interessa a todos. editoriais@uol.com.br
2016-12-01
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1728441-saude-imobiliaria.shtml
Impulsionar a inovação no país
Iniciamos 2016 com uma das maiores conquistas da comunidade científica no Brasil: a presidente Dilma Rousseff sanciona nesta segunda (11) o projeto de lei da Câmara 77/2015 e estabelece o mais relevante marco regulatório de ciência, tecnologia e inovação do país. Por meio dele, serão criadas as bases para o país conquistar um novo padrão de desenvolvimento científico e tecnológico, para alavancar o crescimento da economia nacional de forma sustentável, inovadora e criativa. O novo marco, aprovado pelo Congresso Nacional, vai aperfeiçoar todo o arcabouço legal das atividades de pesquisa e desenvolvimento. É, portanto, resultado de uma construção coletiva articulada com a sociedade civil, em especial com instituições científicas, lideradas pela Sociedade Brasileira de Progresso para a Ciência (SBPC) e Academia Brasileira de Ciências (ABC). Contou também com a participação de lideranças públicas e privadas, inclusive do setor produtivo. A nova legislação prevê mecanismos para estreitar os caminhos entre os centros de pesquisas e as empresas. Permitirá ao país contar com instrumentos já utilizados pelos seus principais concorrentes no mercado global há muitos anos. Teremos um sistema legal mais robusto, capaz de produzir um ciclo virtuoso entre as instituições de pesquisas, as empresas e o mercado. São mecanismos que vão tornar mais eficientes e mais transparentes os processos de financiamento e as contratações de pesquisadores dos setores públicos e privados. As aquisições de equipamentos, produtos e insumos serão simplificadas. As empresas passarão a contar com a possibilidade de isenções e reduções dos impostos de importação nas compras destinadas a projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação. Com a nova legislação, o poder público cria todas as condições para apoiar os ambientes inovadores, dentre eles as incubadoras de empresas, parques e polos tecnológicos. Assim, União, Estados e municípios poderão participar do capital social das empresas cujos projetos são voltados para o desenvolvimento de produtos e processos inovadores. Estamos certos de que vamos aprimorar a implementação de projetos de pesquisa, pois passamos a ter uma legislação que reduz as burocracias que persistiam até então. Consideramos um passo importante a alteração que tornará disponível o Regime Diferenciado de Contratações Públicas (RDC) para ações em órgãos e entidades dedicados a projetos científicos. Essas são medidas que modernizarão a gestão das políticas públicas para o setor. O marco regulatório deixa mais claro, por exemplo, que os institutos, os centros de pesquisa e os laboratórios das universidades poderão se dedicar mais aos trabalhos científicos de ponta. O projeto também estipula a ampliação do tempo máximo de trabalho dos professores das universidades federais em programas institucionais de ensino, pesquisa e extensão, assim como em atividades de natureza científica e tecnológica. Nosso compromisso é também criar condições para que os benefícios conquistados com o novo marco legal alcancem toda a população e garantam mais qualidade de vida a cada cidadão brasileiro. CELSO PANSERA, 52, é ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-11-01
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1727653-impulsionar-a-inovacao-no-pais.shtml
Maduro por um fio
Desde a derrota do chavismo nas eleições legislativas da Venezuela, no final de 2015, o presidente Nicolás Maduro tenta por todos os meios conservar o máximo de poder nas mãos. Apesar disso, acumulam-se sinais de que o seu mandato pode ser encerrado antes da próxima disputa para o Executivo nacional, prevista para 2018. A começar da perda do controle sobre a Assembleia Nacional, fato inédito desde que Hugo Chávez chegou ao poder, em 1999. A oposição conquistou nada menos que 112 das 167 cadeiras, vencendo inclusive em redutos governistas. Ao desgaste na política interna se soma o crescente isolamento externo. Aliados tradicionais do chavismo têm-se mantido neutros, como Cuba e Bolívia, ou optado por um discurso mais duro –caso do Brasil, que, numa tardia mas bem-vinda mudança de tom, cobrou respeito ao resultado das urnas. A economia venezuelana, além disso, segue em queda livre. Estima-se que o PIB do país, que em 2014 caíra 4%, tenha se contraído impressionantes 10% no ano passado. A inflação alcança cerca de 200% ao ano, enquanto a população sofre com o desabastecimento generalizado de produtos. Esse tormento resulta não só da queda no preço do petróleo –origem de 95% dos dólares que entram no país–, que passou de US$ 101, em 2011, para US$ 34, hoje, mas também de ações como o controle de preços e do câmbio. A derrocada das finanças da Venezuela ainda atinge as iniciativas que sempre garantiram o apoio popular ao chavismo, como os diversos programas sociais e os generosos subsídios. Inevitável que tais resultados se reflitam na redução da aprovação ao governo Nicolás Maduro, atualmente na casa dos 20%. Em outros tempos, não seria surpresa se as Forças Armadas, um dos pilares do chavismo, agissem para calar a oposição e manter o presidente no poder. Por comprometidos que estejam com o regime, os militares não parecem dispostos a uma aventura que os jogaria contra a maioria da população. Tudo somado, parece claro que se esvaem os pontos de apoio de Nicolás Maduro para se manter à frente da Venezuela –cenário que fortalece os planos da oposição de realizar um referendo revogatório de seu mandato. Isso, porém, dificilmente ocorrerá sem a resignação do presidente, que ainda controla tanto o Poder Judiciário como o Eleitoral. Terá certamente papel importante nessa equação a reunião da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos, no final do mês, onde estarão reunidos os líderes de todos esses países. Talvez a pressão externa termine de convencer Maduro a pôr a Venezuela acima de si e de seu partido. editoriais@grupofolha.com.br
2016-11-01
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1728000-maduro-por-um-fio.shtml
Batatas marcianas
A ideia de enviar missões tripuladas para outros planetas do Sistema Solar e estabelecer colônias fora da Terra há muito tempo anima a imaginação humana, mas sempre pareceu por demais remoto o momento em que seria possível transformar em realidade o que até hoje não passou de cenário de ficção científica. Os desafios dessa empreitada, afinal, são astronômicos. Basta dizer que se trata de enfrentar um ambiente hostil a nossa fisiologia e de superar a ausência de meios necessários para a manutenção da vida, como oxigênio, água e comida. Apesar das dificuldades, a Nasa, agência espacial dos EUA, planeja para a década de 2030 o envio dos primeiros astronautas a Marte. Em uma viagem que dura cerca de seis meses na ida e igual tanto na volta, além de um ano e meio de espera em Marte até se abrir nova janela de lançamento, a alimentação dos tripulantes ocupa lugar privilegiado na logística da missão. Não à toa a Nasa já pensa no cardápio dos viajantes, e o primeiro item escolhido foi a batata. Originárias de uma região entre o Peru e a Bolívia, as batatas são um dos alimentos mais nutritivos e calóricos que se pode cultivar, sendo considerada excelente fonte de vitamina C, zinco e ferro. A agência norte-americana se uniu ao Centro Internacional da Batata, no Peru, para plantar os tubérculos experimentalmente num ambiente que simula as condições do planeta vermelho. Para isso, serão usadas as terras vulcânicas e inóspitas do deserto de Pampa de La Joya, na fronteira do Peru com o Chile. Os pesquisadores creem ser uma aproximação razoável do solo marciano. A partir dessa base, eles pretendem replicar dentro do laboratório a atmosfera de Marte, composta por 95% de dióxido de carbono –a da Terra é predominantemente formada por nitrogênio e oxigênio–, e testar até nove tipos diferentes nessas severas condições. O teste, é bom que se diga, não servirá apenas para que os cientistas verifiquem a viabilidade de uma colônia agrícola fora da Terra. Também deve gerar conhecimentos sobre como as batatas se desenvolveriam em condições extremas, ajudando a aprimorar seu cultivo habitual por aqui. Tal expertise tende a se tornar ainda mais importante diante das alterações que podem ser provocadas pelo aquecimento global, como o ressecamento dos solos. Seja na Terra ou em Marte, aos vencidos pelo clima ou aos vencedores do espaço, as batatas. editoriais@grupofolha.com.br
2016-11-01
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1727999-batatas-marcianas.shtml
Reforma insuficiente
Durante quase uma década adversária na prática do equilíbrio das contas públicas, a presidente Dilma Rousseff (PT) indicou que seu governo estuda um plano para definir uma idade mínima e mais elevada de aposentadoria. Trata-se de bem-vinda mudança de posição, embora esteja longe de produzir resultados concretos. Dilma insinuou que o assunto ainda será debatido; de resto, o Congresso se vê dominado pela agenda do impeachment, e a presidente não há de querer melindrar de pronto as organizações sociais de esquerda que apoiam seu governo. Não há dúvida de que é preciso fixar uma idade mínima de aposentadoria bem mais elevada que os pouco mais de 50 anos com que, em média, hoje se deixa de trabalhar. Mesmo que o efeito direto da mudança não seja sentido tão cedo nas contas públicas, inclusive porque haverá inevitáveis regras de transição, ela contribuirá para restaurar a confiança no futuro econômico do país. Um plano de reforma previdenciária, porém, não pode parar aí. Deve abordar também a revisão das pensões por morte, cuja despesa média é muito mais elevada no Brasil do que nos países da OCDE, entre os mais ricos do mundo. Os benefícios aqui são integrais, fixos e desvinculados da idade e da situação social do pensionista –não importa que seja jovem, capaz de trabalhar ou diminua seu número de dependentes. A população, obviamente, não pode arcar com essa prodigalidade. Outro aspecto central diz respeito aos reajustes além da inflação. Os benefícios assistenciais não podem contar com ganhos reais automáticos. Aumentos, portanto, devem se desvincular do salário mínimo, sendo concedidos de acordo com os planos da política social e com o crescimento das receitas. Por fim, é crucial realizar mudanças na Previdência Rural, regime com normas muito diferentes das vigentes para o setor urbano. Na prática, as exigências de contribuição e comprovação de tempo de trabalho são mínimas. Trata-se, no fundo, de programa de renda mínima para idosos do campo. Gasta o mesmo que 3,5 vezes o Bolsa Família. O benefício equivale ao salário mínimo, o quíntuplo do pagamento médio do Bolsa Família. Seu deficit em 2015 deve chegar a R$ 93 bilhões (ante R$ 6,4 bilhões da Previdência Urbana). Tal programa precisa ser repensado, e suas contas, revistas. Devem ser averiguadas as condições em que são concedidas as aposentadorias; seus reajustes precisam ser limitados à taxa de inflação. A alteração provocará alguma inevitável polêmica constitucional. Trata-se de reforma politicamente difícil, sem dúvida. Contudo, ajudaria o Estado a recuperar sua capacidade de fazer política social eficaz, contribuiria para a reorganização das contas públicas no curto e no longo prazo e facilitaria a recuperação da confiança econômica. Espera-se que a presidente Dilma Rousseff leve a ideia adiante –e que o Congresso a receba com a responsabilidade que o tema merece. editoriais@grupofolha.com.br
2016-10-01
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1727771-reforma-insuficiente.shtml
O legado de Shakespeare
O quarto centenário da morte de William Shakespeare não é apenas uma oportunidade para celebrar um dos maiores dramaturgos de todos os tempos. É um momento para enaltecer a influência extraordinária de um homem que, tomando emprestada sua própria descrição de Júlio César, "cavalga o mundo estreito como um Colosso". O legado de Shakespeare não tem paralelo: suas obras foram traduzidas para mais de cem idiomas e estudadas por metade dos alunos do mundo. Nas palavras de Ben Jonson, um de seus contemporâneos, "Shakespeare não pertence a uma era, mas a todos os tempos". Shakespeare desempenhou um papel fundamental na formação do inglês moderno, ajudando a torná-lo a língua do mundo. Três mil novas palavras e frases foram impressas pela primeira vez em suas peças. O bardo inglês também foi pioneiro no uso inovador de estruturas gramaticais, incluindo versos sem rimas, superlativos e conexões para formar novas palavras, como "bloodstained" (manchado de sangue). Além disso, a excelência de sua obra ajudou na padronização da ortografia e da gramática. A influência de Shakespeare, todavia, vai além do idioma. Suas palavras, tramas e personagens continuam a inspirar grande parte da nossa sociedade. Enquanto era prisioneiro, Nelson Mandela acalentava uma citação de "Júlio César": "Os covardes morrem muitas vezes antes de sua verdadeira morte; os valentes provam a morte só uma vez". A influência do dramaturgo está em toda parte, de Dickens e Goethe a Verdi e Brahms; de "A Ratoeira", peça de Agatha Christie inspirada em "Hamlet", ao musical "Amor, Sublime Amor". Os espetáculos do bardo continuam a entreter milhões –de escolas em todo o mundo às sessões teatrais noturnas. Mas talvez o legado mais emocionante de Shakespeare seja sua capacidade de educar. Como podemos ver pelo trabalho da Royal Shakespeare Company e do Shakespeare's Globe, estudar seus textos pode ajudar a melhorar a alfabetização e confiança na aprendizagem. Ao longo de 2016, o Reino Unido convida você a fazer parte da celebração desse legado. Em 5 de janeiro, data em que se passa a peça "Noite de Reis", lançamos o William Shakespeare Lives –programa mundial de atividades para destacar sua influência e ampliar o uso de sua obra como um recurso para a educação. O programa acontecerá em mais de 70 países, liderado pelo British Council e pela campanha Great Britain. Nele, o público poderá compartilhar o seu momento favorito da obra de Shakespeare nas mídias sociais; assistir performances; visitar exposições; participar de workshops e debates; acessar novos recursos educacionais. A Royal Shakespeare fará uma turnê pela China e o Shakespeare's Globe realizará performances em todo o mundo. A campanha #PlayYourPart irá estimular a produção de tributos digitais ao bardo. Em parceria com a Voluntary Services Overseas, vamos conscientizar as pessoas sobre o combate ao analfabetismo e usar Shakespeare para criar oportunidades educacionais. Além do grande dom da linguagem, de trazer à vida a nossa história, de sua influência em nossa cultura e de sua capacidade de educar, existe ainda o imenso poder de Shakespeare de inspirar. Ele criou a mais famosa história de amor e a maior tragédia; a mais poderosa fantasia e a mais espirituosa comédia; os discursos mais memoráveis e seus vários personagens lendários. A vasta imaginação, a criatividade sem limites e o instinto para a humanidade de Shakespeare abrangem a totalidade da experiência humana como ninguém jamais conseguiu, antes ou depois. DAVID CAMERON, 49, é primeiro-ministro do Reino Unido * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-10-01
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1727637-o-legado-de-shakespeare.shtml
É de chorar
Sempre que um político chora diante das câmeras, é lícito se perguntar se o faz de forma genuína ou dissimulada –e não faltaram especulações a respeito das lágrimas do presidente dos EUA, Barack Obama, durante o anúncio de medidas com as quais ele pretende restringir, ao menos um pouco, o comércio de armas de fogo no país. Espontâneo ou calculado, o breve choro de Obama atraiu mais atenção para um tema que suscita debates apaixonados nos EUA. A esquerda americana defende controles mais rígidos sobre as armas. Seu argumento mais persuasivo são os repetidos massacres de civis perpetrados por atiradores, em geral pessoas desequilibradas que, sem maiores burocracias, adquirem até rifles de assalto. A direita afirma que o porte de armas está assegurado pela segunda emenda à Constituição; qualquer tentativa de restringir esse direito configuraria ingerência indevida do Estado sobre o indivíduo e uma violação a garantias fundamentais. A população apresenta-se dividida, com leve maioria (55% na mais recente pesquisa Gallup) inclinada a ampliar os controles. Registre-se, porém, que essa fatia ficava em torno de 70% nos anos 90. No Congresso, a oposição é maior; para driblá-la, Obama recorreu a ordens executivas –decretos com força de lei, mas que podem ser derrubados pelo Judiciário. Nesse ponto, a segunda emenda não ajuda Obama, pois estatui: "Sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito do povo de possuir e usar armas não será infringido". Essa norma somente começou a ser questionada a partir do século 20, com debates teóricos e disputas judiciais. O caráter obsoleto da regra, todavia, não emocionou a cúpula da Justiça americana. Em 2008, a Suprema Corte decidiu, por 5 a 4, que o direito de portar armas se aplica a qualquer cidadão, e não só a integrantes de milícias (forças estaduais hoje chamadas Guardas Nacionais). Verdade que a corte admitiu algumas limitações, como a proibição de certas armas e a vedação a seu porte em determinados lugares. O governo federal jamais conseguiu formar consenso para aprovar leis com esse teor, e as medidas decretadas por Obama são ainda mais tímidas. Apenas aumentam a exigência de licenças para vendedores e reforçam a checagem de antecedentes de compradores. É realmente de chorar. editoriais@uol.com.br
2016-09-01
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1727687-e-de-chorar.shtml
São Paulo, cidade digital
Na maior metrópole brasileira, pessoas e empresas multiplicam seus contatos pelas redes sociais. Usam aplicativos que aceleram as facilidades do cotidiano e modelam o mundo virtual. Sob esse prisma, São Paulo acompanha a evolução tecnológica do mundo. Os movimentos, porém, são limitados. Não há no universo eletrônico da cidade uma perfeita interação entre a comunidade e seus mais importantes entes públicos e privados. Falta uma parte essencial para unir a população paulistana em torno de suas demandas e necessidades, de suas ofertas, de seus atrativos e de suas possibilidades. Sente-se falta de um espaço virtual que propicie à cidade encontrar-se com os fluxos de uma comunicação plena e, com esse novo aparato tecnológico, avançar em direção a um mundo integrado, bem organizado, com serviços públicos mais eficientes e democráticos. Sob esse novo conceito, abriremos caminho para o que se chama de São Paulo, Cidade Digital. O objetivo é alargar a estrada, acelerar os passos de todos os grupos sociais e colocar São Paulo entre as melhores referências mundiais no que diz respeito ao uso democrático da tecnologia. Se o Rio é a cidade Olímpica, São Paulo será a cidade digital. Ao promovermos essa expansão, alcançaremos o pódio de capital intelectual do continente, maior polo do turismo de negócios, da cultura, do entretenimento, da mídia, dos setores produtivos e do trabalho. A Cidade Eletrônica se estrutura a partir da visão de que as ferramentas digitais constituem o melhor modelo para facilitar o acesso dos cidadãos aos serviços da municipalidade, integrando interesses da comunidade, estimulando atividades, empreendedorismo, criatividade e investimentos. Vale destacar o rápido surgimento das chamadas cidades virtuais pelo mundo, incentivadas por prefeituras e agências de desenvolvimento urbano para possibilitar um maior acesso à telemática e a um futuro urbano mais positivo. As cidades virtuais são espaços eletrônicos, em geral com base na internet, desenvolvidos para interligar, de forma explícita, as agendas de desenvolvimento de cada município. Funcionam como base da gestão pública direcionada a uma variedade de objetivos urbanos: marketing, estímulo ao turismo de eventos e de consumo, integração das comunicações entre população e governos, incremento da competitividade empresarial, apoio às culturas locais e melhor dinâmica nos serviços de saúde, educação e segurança. Diante dessa moldura, a situação que se enxerga neste momento na cidade de São Paulo é desanimadora: os vários setores da administração não se falam. Aliás, não há comunicação nem mesmo dentro de uma área importante como a da saúde. Por consequência, o cidadão não sabe os recursos oferecidos na cidade. Nem quais as principais carências que demandam maiores investimentos. Tratamos, portanto, da questão da transparência: a população pode e deve obter informações on-line e fiscalizar o andamento da gestão pública, tudo via internet. São Paulo, Cidade Digital é um programa viável, com investimentos majoritariamente privados, para fazer da capital paulista uma metrópole banda larga. Isso vai atrair investimentos, novas empresas e oportunidades. Dará uma nova dinâmica a São Paulo, que hoje, infelizmente, é a cidade do devagar quase parando. JOÃO DORIA, 58, é jornalista, empresário e pré-candidato do PSDB à Prefeitura de São Paulo * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-08-01
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http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1727127-sao-paulo-cidade-digital.shtml
CPMF, um imposto paulista
Seria desastroso o restabelecimento da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras), como quer o Governo Federal para cobrir seu enorme déficit orçamentário. Em primeiro lugar, por se tratar de um imposto regressivo e injusto com as pessoas de menor renda, que pagarão proporcionalmente mais. Além disso, transferir mais dinheiro dos setores produtivos aos cofres públicos significaria agravar a falta de investimentos e o nível de atividade, provocando mais desemprego e recessão. A insensata proposta é danosa ao Brasil e, mais ainda, a São Paulo, que, sem a CPMF, já é responsável por 41% da arrecadação tributária nacional, embora sua participação no PIB seja de 36%. Em 2007, último exercício em que a taxa foi cobrada, e nos anos anteriores, o Estado representava cerca de 44% da receita tributária total do País. Com o fim do imposto, a participação paulista caiu para 41%. Em 2007, 63% das receitas da CPMF saíram de São Paulo. Caso se restabeleça a taxa, o impacto negativo seria mais grave do que em 2007, pois a economia paulista está sendo mais atingida pela crise do que a média nacional. De janeiro a setembro de 2015, ante o mesmo período de 2014, a produção da indústria de transformação brasileira caiu 9,2%. Em São Paulo, o recuo foi de 10,2%. Nos segmentos têxtil e de confecção, as quebras, na média nacional, foram de 12,8% e 10,3%, respectivamente, mas em São Paulo, foram de 13,6% e 15,2%. Os impactos da crise no mercado de trabalho também são mais graves em São Paulo, onde ocorreram 27% das 818.918 demissões de empregos formais na economia nacional, de janeiro a outubro de 2015. Na indústria de transformação, aconteceram 336.437 desligamentos, sendo 39% em São Paulo. No setor têxtil e de confecção, perderam-se 54.481 postos de trabalho, sendo 36% em São Paulo. A CPMF seria hoje um duro baque para o Estado que mais investe e cria empregos e ainda mantém equilibradas as contas públicas. A indústria têxtil e de confecção paulista, embora represente 29% do PIB nacional do setor, foi responsável por 40% dos investimentos nos últimos quatro anos. A União deveria seguir o exemplo do Governo de São Paulo, que, desde 2002, diminuiu duas vezes o ICMS dos têxteis: de 18% para 12% e, depois, para 7%. Apesar disso, a arrecadação subiu. É a lógica da Curva de Laffer: professor de economia na universidade da Califórnia, Arthur Laffer demonstrou, na década de 1970, que, a partir de um determinado nível das alíquotas dos impostos, o Estado começa a perder dinheiro, pois se reduzem os investimentos e a produção. Em consequência, cai a receita tributária. Com mais imposto e recessão, a economia paulista poderá ter um colapso muito prejudicial ao Brasil. O Estado tem expressivo intercâmbio comercial e de serviços com todas as regiões do País, que seriam afetadas. Portanto, o alerta quanto à gravidade da recriação da CPMF para São Paulo é motivado por uma preocupação nacional. Pode-se estabelecer um círculo vicioso grave, em prejuízo de todos os brasileiros, a partir de um estado, pluralista e cosmopolita em sua essência, no qual vivem pessoas do Brasil inteiro. Por isso, é preciso bom senso por parte do governo e mobilização dos 70 deputados federais e dos três senadores de São Paulo, para se evitar a volta da CPMF, cuja sigla, consideradas as razões aqui expostas, poderia perfeitamente ser definida como Contribuição Paulista para o Ministério da Fazenda. ALFREDO BONDUKI, engenheiro formado pela Escola Politécnica da USP, é empresário e presidente do Sinditêxtil-SP * PARTICIPAÇÃO Para colaborar, basta enviar e-mail para debates@grupofolha.com.br. Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
2016-08-01
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Opinião
http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2016/01/1727081-cpmf-um-imposto-paulista.shtml